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Bubuia

Jéssica Martins Costa


Metade da vida é faxina. A outra metade?
Regresso do pó.
Júlia de Carvalho Hansen

Mesmo um simples bom-dia


trocado com um peixe,
a ti, ao peixe, a todos
na vida fortalece.
Wislawa Szymborska
oração

i.
saber reconhecer
o que é forte
entre a folha que trinca de muito rígida, a pedra
e a sempre-viva

saber reconhecer o que te leva


para além do reconhecível
e te converte em cegueira
e o que te põe a andar dentro de si
como se fosse terra
te põe de cara com os olhos do gato
que te devolvem seu reflexo

saber que cada pedra ou linha que você lança à água


pode ser em vão
e não brigar com o espelho por isso.
não sucumbir a carregar
uma lua em cada ombro

ii.
ser vento
ancestral a acariciar tudo que é feito de carbono
ter pelo e sangue e peito.

não convidar de bom grado a dor


ou o deserto
não botar o barco
para naufragar.
crescer os próprios jardins
de plantas telepáticas
brotar clarividência nos sulcos
por onde não passa luz

ser pássaro
ainda que seus ossos
quebrem fácil
bubuia

hoje eu já garanti o café.


desfiz o bordado que fiz ontem,

olhei por alguns minutos


sem surpresa
as plantas que morreram de causa desconhecida

de um dia para o outro.

algumas coisas morrem


e se vão, sem ritual.
algumas coisas são perenes
meu café é perene
meu olho é perene.

o corte sem cuidado,


sem satisfação
do alerta dos sentidos todos.
o sexto, inclusive.

talvez seja eu o próprio método


da tempestade:
salvar-se, sair ilesa, só um sonho cínico.
a cada manhã acordo numa praia nova
(braços, cômodos, uma emoção
até então desconhecida)

carregada de novo
pela onda da noite

só aceito.
lembrar meu nome me basta.
amargo,

amargo
vai ficar.
disso não se foge.
não se descostura do peito
o coração, das mãos as unhas,
dos seios os mamilos, da íris
as pupilas.

o que podemos é contornar


tracejar, decantar
dessas coisas sua aura própria -
um risco, uma trilha
que leva a vida toda
rotas que os pássaros
depois de anos aprenderão.

no dia da morte saber


e só nesse dia.
chegar no ponto onde o rastro recomeça.
apagar suas pegadas como quem põe abaixo as próprias paredes
desfaz um bordado que tomou toda a juventude
como quem não quer ser seguido.

no dia da morte saber, e só nesse dia.


para que as coisas não se esvaziem de si, as palavras
não deslizem de seus significados
de tão certas e seladas no cerne dos hieróglifos.
no dia da morte saber, e só nesse dia.
antes não.
avesso do azul

um passeio pelas nuvens


ignorando os sinais de que
a aura já poderia
ter se dissolvido há muito

e depois não soube mais onde procurar


em cada azul moribundo de
cada fim de dia
o mundo do avesso
o coração a tudo
obtuso

a vida torna-se clara a ponto de


tornar-se transparente, o coração vivo
pulsando na mão,
condenado

sente estar há alguns últimos minutos do abraço


da sombra
mas se resigna como
uma fruta no chão
peregrina

i.
a ondulação de uma voz

fácil se insinua
se infiltra
em um sonho

e germina uma semente


de clarividência
em qualquer domínio
que a vigília não
acessa

vira fluxo que de lua em lua


se torna
um rio torto

ii.
colho nos seus cílios
a água da chuva as palavras
que teço

dos seus dentes


meu verso minha língua
são amigos de outras vidas

iii.
beijar a extensão
das suas costas
até sua nuca seus ombros cabelos
antes que o mundo
a si mesmo dê um fim
iv.
te amar até que esse amor
seja sacudido de mim
como frutas e flores frouxas
são sacudidas de um galho
como as palavras
são sacudidas de seu significado
até que um dia
eu não te reconheça na rua
pés

me disseram que eu não deveria esquecê-los

ao entrar no rio prestar atenção


me assegurar que ainda os vejo

dois peixes brancos

pra guiar o caminho


dois peixes fortes
que persistem no cascalho e no frio

me disseram que eu não deveria esquecê-los


confiar na solidez de suas estruturas
no brilho de suas escamas

meia-irmã das sereias


fiz de tudo mas não consigo
me afogar
geografia

sei que você não falha em perceber:


todas as terras se parecem.
todo o relevo montanhas planícies
depressões
construções
dia após dia travam
seu diálogo afetuoso
com nossas dores e sopros
nossas bagagens de sempre

pelas veias azuis dos rios corremos olhares


que devoram
contornamos com a ponta do dedo
a veia, o rio –
todos deságuam no mesmo lugar:
o oceano, a mão
aberta ou fechada que beijamos

há os monumentos, construções cheias de si, os grandes prédios:


as claríssimas coisas que nos observam.
a essas nos entregamos, em desaviso
correndo as horas da vida
até que não existam mais horas

já as pequenas florestas, mesmos os bosques e campos


tememos:
a elas você e eu vamos apenas de mãos dadas
olhando para os lados
como se a qualquer momento um terrível castigo
sobre nós fosse abater-se.
mas no fim, amor, não nego o quanto pertenço
a essas clareiras, penumbras e blecautes.
nem que me escondo aqui
quando nada mais me interessa.
tudo parece gravitar para este centro.

há a terra enfim
à qual tanto nos ligamos
que depois de um tempo nossos cabelos
se misturam às raízes das árvores

só queremos chegar ao ponto


em que não duvidamos mais de nossas visões
só queremos esse descuido feliz
a impossibilidade da carta

i.
algumas imagens restam
a esmo já tijolos de outra consciência

sem caber na fala ou no poema


no choro em todo o resto
algumas imagens restam
insistem te fazem alcançar os bolsos
à procura da chave de casa
te fazem procurar no rosto alheio
o crepúsculo de outros familiares
de outras vidas

ii.
saber dizer eu não sei
como eu saberia dizer a sua voz
que lenta me ressoa pelas costelas

mesmo com a antiacústica do meu peito quebrado & como


eu saberia dizer seu semi-sorriso
que só me visita nas horas que escapam

esse quase mantra fica preso


entre a minha língua e o céu da boca
nas horas corridas do sol
essas palavras que procuro
são fios emaranhados no estômago
que só desembaraço

às vezes quando a lua nada na minha soleira


peixe branco a quem eu dou
todas as minhas cartas sem destinatário

e digo: leva embora


o que fica

sei que fiz coisas imperdoáveis nos últimos anos

enumero:
ignorei avisos da intuição
calei
preferi não estar presente
deixei tantas me escaparem das mãos
fingi (tantas e tantas e tantas vezes) que
não era comigo

calei por mais vezes que consigo contar


me deixei emaranhar em carmas
que já nem eram mais meus
contei as luas cheias nos dedos
sem nenhuma comoção

sei que fiz coisas imperdoáveis


perdi a vocação
pra flecha
deixei de escrever poemas
que perdi pra sempre no trajeto
entre a cama e o cotidiano
entre a praça e o prédio

sei que fiz coisas imperdoáveis


mas gosto de pensar que há o que seja irremediável
talvez essa insistência
no grito
essa ligeireza
que só uma palavra no susto expressa
as flores que durante todos esses anos cresceram
em pulmões e artérias
gosto de pensar que certas coisas
são irremediáveis
gosto de
dançar com essa possibilidade
ave rara

você

tem um talento muito particular

de colocar muito açúcar

na xícara de café

e matar plantas –

suas queridas gérberas vermelhas e lírios laranjas

você tem uma inconfundível tendência, inclusive

a amar mais vasos de plantas abajures

dentre outros seres inanimados

do que ama

uma boa parte do planeta

e aquele costume

de largar o sutiã nas maçanetas da casa

e de pintar as unhas dos pés em cima da cama

e manchar os lençóis de vinho

você, inclusive,

tem aquele talento engraçado

de mudar da água pro vinho

de ser a boca mais suja do bar

e profetizar seu próprio futuro

depois de três cachaças


esquecer como se faz puro teatro

deixar o coração cair e quebrar

tropeçando no caminho pra casa

você se apega a coisas decrépitas

por exemplo, o sofá rasgado no quintal

coberto de folhas da árvore do vizinho

em que você insistia

em catar poemas

seguir o desenho irregular

dos seus palpites-formiga

acordar na manhã seguinte

com os olhos enevoados

você quebra xícaras e

vai recolhendo os cacos

em parcelas

você diz

que minha visão está turva

que eu minto

(minha versão de você)

você também rabisca um poema

na entrada

e na saída
como quem acena

sai à francesa

de uma vida inteira

uma vida inteira

eu viveria ao seu lado

mas

não esta
sábado

a árvore chove folhas

uma, como uma gota, espera

(enquanto eu estiver à espreita

seus olhos não me procurarão)

a própria brisa, ocasionalmente

procura a janela

no interior da casa

nos quintais urbanos começam

as constelações a brilhar fracas

(que falta faz

uma janela com uma árvore)

ontem ainda eu decidi que ia mudar

a trama mas hoje passeio

sem meus próprios passos

sou só pés e sapatos

a cabeça leve demais

hoje a correnteza de folhas

me carrega pela calçada


nenhuma alma viva na rua

são umas três agora

lembra do que te disse?

que as pessoas todas se escondem por essas horas

preparando sabe-se lá o quê

é da brisa da janela que vem a ventania

bem-vinda

(eu me pergunto se ainda hoje atravesso a rua

antes que venha o seu cheiro de chuva)


os gregos não diziam azul e nem por isso

deixou de haver mar

se a palavra amor não existisse

teríamos um problema a menos

ele também, bom ou ruim

fica o mesmo não dito


memória (um)

remarco pra outra esquina

nosso encontro.

esse escrever seria antes escrever

nas palmas e orelhas no meio-fio nas portas de banheiro

o trânsito nos obriga, um rio do avesso -

e quantas coisas as cidades se especializaram em

virar do avesso

te disse que mesmo andando na calçada

a sensação de ser atropelada é iminente

no horário de pico.

remarco para outra esquina nosso encontro

esse escrever seria antes escrever sobre o chão e as mesas dos bares

seria antes rasurar para escrever por cima

uma outra história, um primeiro toque, uma primeira conversa fiada

atropelar lembranças

para abrigar outros desdobramentos

outras consequências, destinos irreversivelmente

remanejados

caem dos meus bolsos junto com as moedas:

todas as intenções que cabem

entre as lacunas, uma necessidade de respirar


alguns livros, um desejo que se fecha sobre si mesmo.

um caminhar à toa.
memória (dois)

ter má memória às vezes

é a única vantagem de não se

atentar ao fatos

ser um redemoinho

que não conhece o próprio rumo

às vezes é a única vantagem

de sentir

primeiro e antes de tudo

fato flexível

se estica entre as mãos dias semanas

foram para o ralo se juntar ao mar

tatuar no braço um lembrete

(pra que rimar

amor e dor?)

não confiar na própria memória

a memória

diluir no corpo
duas respostas

i.

cicatrizar

no peito um sulco

que antes não estava

cicatrizar é um ofício

acalmar o incômodo

imemorial dos tempos

dos dentes de leite

ii.

cobrir-se por dentro de rocha

perfeitamente cintilante.

"da próxima vez, seja mais dura."

só assim mesmo.
aceno

foi você quem me fez

carregada de imagens

azuis

que passo de mão em mão

como fotografias de um passado

precocemente envelhecido

costurado

às visões cotidianas

ao diário das fugas

a tudo que pretendia

da vida

é você quem me dá a mão

o braço a torcer

os olhos revoltos

em ocasiões estratégicas.

é você quem declara

a conta-gotas

suas intenções

é você quem me oferece seu nada

seu silêncio

as costas serenamente viradas

é você quem se oferece a caber em meus espaços vazios


quem abre minha concha silenciosa

mas nunca diz

uma palavra

não me alcança nunca:

é o que te peço

apenas
as palavras só me vêm

quando estou pisando longe

sem pensar que elas existem

as palavras não existem

nas mãos

páginas

canetas

existem nos bancos de parque

em toda vida que vive sem ser observada

verdadeiramente anônima

como a das formigas

no quarto fechado à tarde

nos sóis que se põem

não assistidos
domingo

ser um, ser dois.

achei a fenda do tempo.

quantas vezes tive que dar essa volta?

quebrar galhos, arrancar folhas?

a vida é bamba como a vontade

(não é órbita de planeta, camada de gelo)

mas algumas conversas adiantam.

algumas conversas andam pelo bairro

com passos próprios,

a tarde talvez calma

o entardecer

sobre as costas das formigas

sobre a umidade

assentada nos cabelos

sobre a borboleta quase morta

sobre a existência sem porte

das esquinas e dos bueiros

ser dois desde sempre


em dois em um

descobrir onde a rua recomeça


fronteira

só tenho como viver se desvio.

passo me esquivando, finjo o sorriso,

prefiro não.

se fecha tudo sobre mim:

ao menos se tivesse

terra ou mar para onde abrir o arco

passaria noites dias imersa

em um ritmo outro que não

o desta cidade que arfa de sufoco

e calor

(sonho uma vez por semana

que moro a quarenta passos do mar)

meu afeto todo para as janelas

os quintais os becos

o que existe ainda de espaço

deita aqui

vou ler pra você aquele poema


depois dar no pé

evaporar

quanto menos gente souber melhor


quinta-feira

i.

todas as cidades grandes são pequenas

passo pelo carro que é semáforo que é padaria

pela árvore

(visitante enraizada na esquina)

que é bar que é oficina

o caminho pra sua casa não é diferente

da janela escura do ônibus

um tédio de estações prédios hotéis postos de gasolina

ii.

o espaço mais amplo de toda a cidade

entre os pés da sua cama seus olhos dois cômodos

sem portas ou janelas

para receber sem restrições

a previsão do tempo

(vento, chuva, suor)

no seu quintal

como em todos os outros dessa cidade

não se distinguem constelações

não se ouvem cigarras

não se necessita de bússolas


que esperança eu deveria ter?

um dia, num sonho, ouvir o barulho

da tempestade com a cabeça

no burburinho da água

ou oito horas de sono à mercê

do torvelinho

muito mais próximo

iii.

o sol já nascido há algumas horas

estou de volta

ao formigueiro

não bem certa da minha missão

de sobreviver sem janelas

ou entre elas
trilha

emprestar das plantas o equilíbrio

a essa posição bípede que só vê

mas não alcança

ajustar o enquadramento ao redor

ver a serra que tosse

ou a borboleta que é quase folha desprendida

ou a pedra que cicatriza uma palavra

por milhões de anos, depois ainda

de você deixar as terras soltas deste mundo

no seu tempo menor você germina

a sua própria palavra

enquanto necessário for


mergulho

a opacidade da sua fumaça

brilha ao meu lado na cama

como uma lua que me fizesse

carinho nos cabelos

a mão apaga a luz do abajur

mergulhamos.

eu antes já senti, neste mesmo quarto

os rastros das falésias e das conchas

no escuro, ao pé da cama,

meu dicionário oculto de palavras

registradas das últimas vidas.

você não vê. mas eu sei.

mais do que acredito, eu só sei.

quando só restam raízes

o amor cresce à revelia do sangue, do sal

e dos acidentes.

te digo mais: se fosse uma fruta de gosto ligeiro

uma jabuticaba ou acerola

se fosse, ainda sim eu queria


porque tenho paciência

e um balde.

te digo mais, muito mais coisas:

que apaixonar-se traz as mãos vazias,

os bolsos cheios de areia.

que nessa vida, só não valem a pena os funerais.

nada se tumultua nos seus olhos com as coisas que digo

porque você sabe tão bem quanto eu:

quem quiser entrar no mar

que se acostume em ter as feridas salgadas

que um pouco de sal na ferida

está tão longe da morte quanto pode estar

confirma a existência

da pele e do mar

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