Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
Julho de 2009
São Paulo
cantos de estima
este que é da Ilana por ritmo
da Clarisse por memória
pro Manuel pela alegria
formalmente do Eduardo
e escrito com os Marcos
é um oráculo, você toca nele
Minha paixão há de brilhar na noite
no céu de uma cidade do interior
como um objeto não-identificado
que ainda estou sozinho, apaixonado.
Caetano Veloso
13
mercúrio
caderno de viagem
18
carne
19
os guardas dormem na fronteira
De repente manifesto
a gente
20
Vasco
21
a noite que fomos ao observatório
22
infância
Não com essa ressaca e ainda mais cedo
papai me levava ao dentista
e depois de cada barbárie obturada
me recompensava com um sundae no Brooklin
o poeta não consola a herança
de nascermos destros não cuida
de terem me tirado os dentes da vida
de um jeito que nem sorvete adiantava
lembro das suas gengivas
sangrando tinta de lula
trinta e dois pontos na sala de televisão
o céu da boca da nossa morte
23
Eu sou o rio dos mortos
nasci da sede pelo dó das lágrimas
quando mortos todos os pensamentos
eu sou o rio dos mortos
me criei no pântano das palavras
dos restos tudo trago
eu sou o rio dos mortos
minha carne é das nuvens
se fujo só dou em mim
eu sou o rio dos mortos
e o meu choro o que devolve à terra
o chão do sal da terra o chão
eu sou o rio dos mortos
minha margem de árvores
dos astecas que me sangraram
eu sou o rio dos mortos
da terra não passo
e ninguém me ultrapassa sem desvão.
24
autocracia
–––––––––––––––––––––––––––––––––
sonho
e essa noite eu ia a um museu de história natural e havia
uma água os canais da Disneylândia e então com pedrinhas
seixos nas águas e plantas de plástico muito verdes dava pra
ver as ferragens as pessoas passavam a mão na água muitos
velhos em fila enfiando os dedinhos na correnteza e eu
ficava assustada que aqueles velhos passassem a mão porque
era a água do Pinheiros e relampejava um na verdade o
museu de história natural é uma contenção da nascente e
precipitava mas essa água é suja e depois mas essa água é
nova daí minha mãe me dizia sem estar presente xxx xxx é
uma água antiga que não deixa os velhos doentes mais,
–––––––––––––––––––––––––––––––––
insight
25
astrologia
Caço constelações em mim
nem sempre sou a primeira
a descobrir Centauro
o olhar pendurado em constâncias
a lua míngua, leva a maré
sugar me balança
o umbigo incha
estou gestando um poema
cadente
nascerá todo destro
esquecido do céu
andando os próprios pés.
26
caixa-preta
31.12
1.1
7.1
tristeza e sal.
27
9.1
O oceano é terrível
mira como se agita
a rêmora que nada
colada ao tubarão
meu destino tão diverso.
12.1
Deus te livre, leitor, de uma idéia fixa.
19.1
Escrever alguma coisa. Bem, estamos no trópicos. As
bananas e as mangas sobre a mesa, minha blusa listada
de sair por aí, os protetores solares que dispomos
sobre o corpo e que depois voltam num baile infinito
sobre a mesa. Conheço seus limites, Valentine, já de
olhos fechados. Dispomos também de um corpo
inteiro pra transcendências sensoriais. Estamos em
torno da verdade, da qual já nascemos docemente
distantes. Orbitáveis por fora. É isso. Virei de madeira.
Ainda não adquiri saberes de rocha.
Nem sei se – – –
28
(à noite)
20.1
Nos dias em que não há colheita
e todos os mercados de trocas estão fechados
se faz necessário sair à caça
deixar a intimidade sombreada deste quarto
e achar nuns sentimentos da rua uns modos novos
dentro da crise dançar
dançar sem agitação
29
26.1
Silencio tudo aquilo que do meu coração não parte
27.1
janeiro
Do lado de lá havia chamas xxx das coisas do interior das
coisas xxx eu vivia no mundo proibida xxx pra que não
me ouvissem xxx podia apenas cantar quando chovia xxx
e a água quente pelos seios das minhas pernas xxx não
mais cacos de vidro por sobre a cabeça xxx e os poemas
que me esperavam sem entrave xxx desde que pus os pés
nessa ilha xxx porque não estava frio xxx a chuva me
diluía xxx em algum lugar da minha terra xxx o incêndio
que se apagava xxx botava submerso todo assunto que me
valia xxx
29.1
30
30 .1
Corre o rumor de que sou uma poeta sem lirismo, uma
escritora sem histórias.
A palavra é a filha que renasceu do fracasso.
31
yira-yira
32
montra
Descobri que os homens acuavam mamutes pelos
desfiladeiros porque era mais fácil derrubá-los do que
acertá-los com mira em flecha fiquei imaginando uma
flecha pra atravessar o couro de um mamute e quem
sabe talvez o mar fosse menos impossível talvez alguma
outra divina astúcia me acontecesse assim também e no
supermercado exclamar que fertilidade entre abobrinhas
poeta do finito e da matéria/ .../ cantor de um povo/... limpa-
ladrilho beterraba às vezes a única coisa que eu consigo
produzir é uma solidão radical
II
em alguma parte do marinho bate a luz e nasce um
peixe é?
os microscópios e satélites não puderam ver
poema do escuro que havia
que-quê sumiu entre nós, um crocodilo?
havia um segredo que não caísse na água?
deglutido
por esse entre-ser
evoluindo
III
búfalo também não tem mais
IV
comprei uma passagem pra Amazônia
porque eu estava observando uma coisa impressionante
no zoológico
que era uns primatas que não viviam de dinheiro.
33
o príncipe
34
esta paisagem
35
autognose
É automatismo, meu filho, te juro
puro enfoque de uma revelação
no trato sou uma calha do invisível
propulsora a palavra esquenta
então passo o texto com giletes
e das rasuras nascem flores.
36
pro inferno com a literatura
este é pro Marcos
Numa coincidência infame
tivemos a oportunidade
Bob Dylan e eu
de morrermos os dois amanhã
e os amigos lembrariam
ah como tinha futuro
ah como tinha talento
ah como sabia viver
ah como tinha sorte
ah até que veio que morreu no mesmo dia que o Bob
Dylan
eu nunca me esqueceria desse dia estavam ambos em
Lisboa
tomada por um ataque nos eléctricos nos bondes nos
pickpockets
no pitoresco mundo ibérico dos franceses que em
realidade nunca entendem absolutamente nada ah
souvenires coqueluches tíquetes de ingresso aos céus!
meia dúzia de vezes em um século alguém pode dizer
que sua amiga morreu no mesmo dia que o Bob Dylan
morreu.
37
história natural
Ele pode até gostar dela
mas que sei eu das minhas próprias mãos?
38
hoje
there are some mornings
when the sky looks like a road
there are some dragons who
were built to have and hold
Joanna Newson
Acalma teu brio de fugir, mulher
havia algo com que me deparar
vinha desde a noite do nome que dei
a algo que sabia tão bem pequena
e que até ontem não sabia que sabia bem assim
alguma coisa com nome de amor
uma luz que às vezes ilumina minhas mãos
e há nitidez nas ranhuras das digitais
e sinto uma ternura imensa
pelo passado pelo futuro
tantas vezes é de noite
e me acompanha pensar
na morte como uma insônia
madrugada passada acordei berrando porque
pedia pesadelo pra amiga grita
grita pra nos salvar
ela não gritou
ao que eu gritei
levantei a cabeça
olhei as montanhas das minhas clarezas antes de dormir
e escrevi logo ao acordar:
esqueci
e fiquei olhando as montanhas e as estrelas pra ver se
elas se mexiam.
39
amor
Queria que tua mão me guiasse no escuro do mundo
mas tua presença me aclara
fiquei confusa
*
deito uma pedra do meu peito
feito carvão no teu caminho
o que com ele escreves?
*
a ternura de um búfalo
com medo que as palavras
se percam na mandíbula
morde um cartão postal
*
ele é o pássaro. veio branco BRANCO invadindo meu
olhar boca tetos e ouvidos. livre e desesperado. tremia as
pernas quando nos beijamos, não, balançava-as fora do
tempo da música que tocava alto. lembro que o puxei
para o meu corpo como se eu fosse sólida. sólida feito
uma embalagem tetra-pak de leite cheia. ele se encaixou,
esteve comigo, estive com ele.
*
e descobri que há um barulho
que sempre pensei ser do mar
mas é um som do vento
um marulho que o vento faz,
43
*
vim de longe
porque eu trouxe o fogo
*
querendo comprar uma quinta e uns patos
ficar vendo os patos e dá-los de comer aos filhos
*
Angelita no norte dizia:
-Mamãe, rasguei a perna ao descer a escada do Universo.
e por baixo do letreiro do restaurante o garçom a dizer:
-A pequena de rosa, olha lá que o gelado derrete.
*
terror do oceano mudar de nome enquanto durmo
deve ser assim saber estar pra morrer
*
decido não tomar mais medidas
aos cômodos vou me mostrando
como as palavras não encostam nas coisas
e as coisas estão livres
tão livres que só o ar
quando eu era pequena
achava que não se devia tomar banho nos dias de chuva
que era uma redundância
você quer que eu pare com esse papo de amor?
44
*
faz muito tempo que tenho perto
da casa escrita
a palavra airplane
foi só essa semana que fui lá
ao lado
e escrevi duração
*
cuida de mim
como s’eu fosse um qualquer
*
ontem chorei por causa de um passarinho. às vezes acontece
da vida entrar pela janela uma história da Clarice. domingo.
um passarinho do tamanho do meu polegar entrou entre as
abas da janela e caiu no fosso em que elas se guardam. ficou
preso lá dentro. às vezes suas asinhas batiam fazendo schuif
schuif schuif. se eu abrisse a janela completamente o mataria
esmagado. demorei a entender que ele era tão pequeno e
que chorar não adiantava-nos nada. perguntava assim: o que
tenho eu a ver com a vida desse passarinho que veio cair
na minha janela por inexperiência? me respondia, tenho
tudo a ver com ele e nada dele me diz respeito. mas é a vida,
né, então fiz de tudo. bambus, varetas, lanternas, cestinhas,
farelos de bolacha pra mantê-lo vivo. precisava de mão de
obra especializada. hoje de manhã vieram salvá-lo. ele abriu
a janela e eu peguei o passarinho na mão. apavorado. voou.
estou só agora, sem o passarinho.
45
*
só me ouvem os moinhos
*
estou grávida de ti estamos a ver os patos a coaxar e os
marrecos correndo as canelas dos bandidos e na hora
em que estou quase parindo você me olha à meia luz
e diz: ESTOU CERTO DE QUE O FILHO NÃO É MEU
SUA MENTIHORORROSSSA e vai embora batendo a
porta apagando as velas depois sou eu que fico com o
coração batendo abandonado vagabundo feito tatuagem
vagabundo
*
esperarei quarenta e cinco noites
e se elas parecerem trezentas
é porque quarenta e cinco foram
*
deseja salvar as alterações em amor.doc?
sim não cancelar
46
*
a última vez que nos vimos eu – – – percebi que não sei escrever
tinha matado um alce e carreg – – – um poema que fale da tua
ando até à margem do lago – – – ausência quero dizer minha
deposito ao lado na relva – – – dor de
gravetos estalando fogo – – – .
*
bem comportada não vai dar em nada
*
CENA DE SANGUE NUM BAR
DA AVENIDA SÃO JOÃO
*
não fiz nada eu juro
eu tava aqui no escuro
e senti o cheiro do aeroporto de Guarulhos
*
passei a tarde em poemas
às dúzias como fotos digitais
seqüência de frames
de desenho animado
a gente vai estrelar junto
na tela da televisão
eu, Teddy Corpete,
enrolando você
entre os ossos da bacia
47
*
mensagem pra dizer:
“abraça uma andorinha. que vive em ti em você? se não
fosse o coração dos animaizinhos eu estava tão sozinha.
então escuta, tão rápido e: a explosão da tua alegria
é lindo. depois fico pelo buraco da porta a espiar que
ninguém sobe a escada. encosto abertas as palmas da mão.
e calo. a madeira respira por mim.
não, não é a causa da Andorinha. abrace a própria. a porta,
a andorinha, a longitude. os instintos farejam e comem
nossas equações de medos. sobram os ossinhos do medo
entre as ervinhas. com eles fazemos um relicário em cetim,
pousamos junto aos nossos pés, aliados. ficamos olhando.
isso porque agora entendo o homem da festa de Paris
exclamando para a namorada: “o amor é uma guerra,
uma guerra que se luta junto”. e ela, que era mexicana,
quase atirou um vaso na cabeça pra que ele ficasse quieto,
lhe deu uma bebida, um beijo estalado e basta de filosofia.
riram. isso foi na casa da menina que tinha o mesmo
pôster que eu, esse aqui na porta do Brasil. e me disse
que nunca tinha acreditado que faria, ‘uma parisiense
vivendo em San Diego, imagine’ com um bibliotecário
surfista, a explosão da alegria linda, todo nariz sangra um
dia, a calçada escura do ensolarado,” etc.
48
*
POEMA DO MAR DE RESSACA
*
vim andando de longe, pensando, pensando
é para os rochedos entre o mar que o amor se vai
quando acaba?
ou é na vida sem lógica sentimental dos peixes?
uma casa em que se tirassem as paredes e o ar caísse
sobre nós?
*
tenho medo que o tempo
tenha apagado nós dois
de ti
na tua ausência
tranço nas palavras
porque sei que quando você as lê, são tuas,
e como só posso me despir, sou poeta.
49
*
entro no quarto
enquanto dormes escuro
com a câmera de gravar
tudo tão quieto respira tão bem
e o meu maquinário tem a propriedade de filmar
mas só passa os sonhos do que amamos em cores
não sei, se insisto ou se parto,
queimando os lugares reticentes do mundo
aperto o botão e do início a gravação
na tela curta se reproduz de imediato
então tu?
sonhas a lua?
tem uma relva cresce um rio lilás
mas lá não estás
és o homem que desenha os trajes aos homens
na hora de pisarem na lua
calculas em ti
todos os específicos
a respiração do ar lunar
e quando um astronauta pisa o solo do satélite
tu também encontras a poeira homem subindo as solas
e organizando-se à outra gravidade celeste
então os homens voltam pra casa
os bolsos cheios de estrelas
tua ternura de abraçá-los de perto
os poros feito uma cratera
tomas a pedra sem quarentena entre os dedos
o homem do teu sonho não tem medo
coloca e chupa dentro da boca
é uma bala doce que lá da lua veio
sentado com os amigos
bebendo uma coca-cola
o homem constrói então um novo objeto:
50
redes de caçar borboletas para astronautas
onde na falta de borboletas lunares se prende o invisível
*
preciso de ti
como se isso fosse um estar
no coração de uma selva
à noite escura ouvisse
a respiração de um animal de olhos firmes
se aproximando luminosos entre a folhagem
tu és o animal
eu sou a árvore
a luz vem da cidade
*
mas não adivinhei se a tua letra é sempre como está no
caderno
porém, não era pra dizer isso! é que eu não sinto mais
essa luta de romper assim não agora eu sinto mesmo
é como se escrever fosse um pássaro que voando no
mato
se desviasse por dentro das árvores
*
e os jatinhos
a voarem nossa sorte.
51
azul
réveillon ou poética
Sei que posso ser salsugem na margem de outro
ou rabugem em mim que isso lá é mentira de poeta
então estalo os dedos,
por favor, anjo surdo
traga-me outra fumaça
me dê outra maneira
de fúria, adivinhação e máscara
quem sabe pintura, esgrima?
carruagem ou esquadro
ou tipo um jogo de tirar palavras
num amigo-secreto
quem perder primeiro o dadá-
me a roupa que me ganha
num estouro de borbulhante
de primeiro do ano beba, babe
na boca, mergulho no mar
feito um gargalo de garrafa
se abrindo o peito enquanto engulo
toda a sua vaga, enamorado.
55
sábado
56
a ilha
As embarcações foram feitas pra você
que pudesse observá-las
ao modo dos loucos
que oscilam ao largo do nosso corpo
e mordem as ventosas dos peixes
e as luzes do cais
na superfície do dilúvio
os riscos.
57
desta amurada
58
o espelho imantado
60
IV
é uma maravilhosa sonolência
que te traz em imagem enigmática
mas como um galho, pela margem,
a correnteza estanca
pára de rodar o Danúbio
nunca vai limpar o Pinheiros
e o dedo que me ajeita o cabelo
era capaz de ser teu fantasma de pau
tua língua
minha língua
estrangeira de mim em qualquer parte.
61
Lisboa
62
me dê de presente o teu bis
63
romance ao marechal dos ares
Deixei um cartão
num banco de parque em Amsterdam
contava a história completa
e as gotas no papel parecem nuvens.
64
tira ouro do nariz
A criança meditativa sobre dinamites
sonhou de repente todos os poetas
desse país ao tórax enterrados
acordou remelenta e descansada
abriu a janela e pela rua toda torta
tarde muita noite sobre nossos corpos
trepavam abóboras em carruagens.
65
suposições
Se pelo menos tivesse nascido mais velho. Podia ao menos,
com o pé em cima da máquina exclamar: sou o cavaleiro
do aspirador de pó. Isso com a toalha vermelha nas costas.
E os ossos magrinhos no raio-x. Mas, Vênus em fúrias,
essa mulher sem cabeça pra vida. Fantasiava. Tinha uma
herdada do irmão mais velho, de astronauta, que a mãe
só lhe deixava usar pra lavar louça. Era a compensação
de não ser menino. Decorava a ordem dos planetas. Nem
sabia porque queria isso. Mas veio de tão antes que sumiu.
Foi bem antes de você aparecer. Foi na época que sumiu
bem antes de ser alguma coisa mais além do que uma
mulher. Foi só quando você apareceu que comecei a me
sentir sozinha. Não consigo visitar ninguém.
II
Amarra meu cabelo ao corpo deste bebê, dá-lhe um dedo
meu pra que chupe, se quiser o poema me come a carne.
O problema é o poema da caixa torácica. Meu poema
que não te atravessa.
III
Cheguei da fazenda pensando. E esse pensar, se ficasse no
pensar, era uma coisa. Mas quem não tem destino e pensa,
desdobra a existência nesse pensar. Pensei: um problema
de existência carece então de teorização. Fui aos homens.
Estou indo ainda, não digo muito mais. Fui cair na teoria
dos homens, mas discordo de tudo ou plasmo sem
sinceridade. Poeta também não tem mais. A única coisa
que me interessa é ficar vendo me devolverem as coisas.
66
IV
Alguma coisa
acredita em mim
que está guardado
o segredo astrofísico
que desaprendi na matéria da escola.
V
Sim, avistarei. A ti também. Avistará.
O que me intriga não é de vermos, continuemos,
corredores.
O que anseio é a dúvida feroz, está no fazer o amor.
Enquanto isso tento arranjar alguém em mim que cuide
de ti.
VI
São fictícios os números dos títulos.
O mundo dos homens assim me recebe a convicção.
VII
Se pelo menos tivesse nascido mais velho.
Caia madura da mãe.
67
endurece o coração
Não dá em nada
perdes a esperança
é pior sem ela
andas correndo
substitui-se o vazio
pelo sangue bombeado
mas a dor nunca passa
antes te atravessa
a tinta das canetas
pigmenta os grisalhos
esse poema tinge de branco e irradia,
*
ou nasce da areia branca, toda superfície, por mais
estriada que pareça
não te agarras o bastante e grita no ouvido do homem:
sou tua, por que não me diz?
68
strike a poet
Tiro fotos da minha casa até acreditar que é uma cidade
sigo abraçando cadeiras entre o olhar imperativo dos
gatos a mão que afaga este problema a materialidade
dos livros ajuda no colegial me chamavam de menina
de outra época meu pai dizia que minha avó era uma
mulher da terra isso resume pra mim toda a poesia
contemporânea de repente ganharam o medo de dizer
coração é preciso paciência e a sensibilidade de um peixe.
Devem me ver como um dragão rasante, os miados
num abraço a gatinha tem fome e cheiro de ser vivo
pela primeira vez em um mês deixo a sala é mais fácil o
mar abrir em dois do que interromper o trânsito é por
isso que não atravesso a rua meio-dia sou o Torquato de
colar de contas descendo as delícias de aves nas mãos ela
pensa em casamento no sol de quase dezembro uma mãe
me olha saindo pelo corredor
até o portãozinho de aço range a filha vai pra escola
a mala de rodinha, vergonha não é a palavra
finalmente, virei artista os dedos sujos de tinta
e o uniforme azul-marinho o cabelo imundo embora
a seda tenha rasgado só consigo desafinar o coro dos
contentes me alimentar com drogas pra me manter
escrevendo acordada e cansada e insuficiente esta melodia
chega o texto ao fim e não reviso, it’s friday I’m in love.
69
soneto de separação
Maria tinha braços que amavam
longos capítulos
por isso os finais
eram seus favoritos.
70
farewell
depois de tantos combates
meu amigo Lero
pegou o seu corpo
e tombou em um rio
o guindaste guinchava
içando os cimentos
dos corações
contra o silêncio dos avaros
77
debaixo das pedras de toque um — subproduto do rock?
E morde a tropicália das possibilidades, há versos que
serviriam melhor de canção, escreve os diários de Ana
Cristina Cesar sem parecer inteligente ou dadivosa, mas
firme e perigo feito um abraço. Que afaga.
78
Nos cantos de estima você provavelmente não encontrará
nada de novo. Júlia de Carvalho Hansen beira o cafona e
o mal-escrito dos melhores textos que hoje se publicam
pra perder o medo de dizer coração. E se for uma poeta
sem lirismo / Por que não? Por que não? Um conjunto
de poemas que alcança a ferocidade humana / pela vida
sem lógica sentimental dos peixes / que libertos todos
de um aquário que súbito se descobre decorativo e que
afunda no meio da água do Atlântico silêncio violento
se ouve do cais, ele se põe a contar notícias de além-mar.
Marcos Visnadi
São Paulo, junho de 2009
79
cantos de estima é um livro sendo feito, em tiragens
limitadas em expansão.
revisão de texto
João Adolfo Hansen
posfácio
Marcos Visnadi
marcosvisnadi@yahoo.com.br
projeto gráfico
Eduardo J. Cintra Mauro
a autora
Júlia de Carvalho Hansen nasceu em São Paulo no 12 de
janeiro de 1984. Começou a escrever aos nove anos de
idade, depois parou. Ama, reclama e é feliz.
juliadecarvalhohansen@gmail.com
83
este exemplar leva
o número: _____