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CANTOS DE ESTIMA

Júlia de Carvalho Hansen


CANTOS DE ESTIMA
em 120 exemplares

Júlia de Carvalho Hansen

Selo de estimas e grama

Julho de 2009
São Paulo
 cantos de estima
este que é da Ilana por ritmo
da Clarisse por memória
pro Manuel pela alegria
formalmente do Eduardo
e escrito com os Marcos
é um oráculo, você toca nele
Minha paixão há de brilhar na noite
no céu de uma cidade do interior
como um objeto não-identificado
que ainda estou sozinho, apaixonado.
Caetano Veloso

Ah, por que tocar em cordilheiras e oceanos!


Carlos Drummond de Andrade
 
Sei que os campos imaginam as suas
 próprias rosas.
As pessoas imaginam seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.
Herberto Helder
memória escolar

Foi preciso chamar a atenção das crianças


que descascavam as laranjas com facas sem corte:
as atividades no pomar têm limites
não se ponham a arrancar as ervas do chão
como meninas desprezadas e raivosas
 
depois de uma ciranda
é proposto pedagogicamente
que se faça um desenho
feito um contrapeso
do que a nossa cabeça pensa
as crianças todas riem de satisfação
 
mas o menino mais novo, um cata-vento
trazendo o cheiro do laranjal,
veio na direção do meu amigo Lero – – – o guindaste
e disse pra ele que não dava pra jogar aquele jogo:
— é a cabeça que pensa ou é o corpo inteiro?
 
o Lero que era só corpo
o Lero que não lia Sontag
bem, o Lero quando se agitava
a gente ia junto pra praia
ele imensão pegava os prédios em redor
com a sua garra
pegava as pessoas e as barracas de sorvete
arrancava as pedras do calçadão
tirava de mim toda essa lembrança
e lançava ao grande verde
 
feito tudo fosse aquário cheio de peixes
que um dia se descobre decorativo
e afunda no meio da água do Atlântico
silêncio violento que se ouve do cais
e os peixes libertos todos
se põem a contar notícias de além-mar.

13
mercúrio
caderno de viagem

Do alto a terra é tão extensa


que assim só conhecia o mar
se à noite fico bem quieta
meu ouvido é uma concha
em qual se ouve o rugido
 
acordei aqui
os pés enfiados
a espera da tua chegada por terra, fumo
até partir do corpo em heterônimos
escrever como o mar que avança
depois de muito retroceder
duas ondas juntando a água que veio de trás.

18
carne

Seja a casa onde for


construir estantes no pensamento
de derrubá-las
 
forrar as prateleiras com flores
no papel de parede
e livros de capa branca
 
forrar todos os livros
todas as páginas dos livros
de branco
 
com algodão secá-los
da úmida solidão
do que está escrito.

19
os guardas dormem na fronteira

De repente manifesto
a gente

vai se voltar a um outro escalão:


montanha, névoa, marulho, o metrô que é o nosso trovão

então você acha que os cantos estão mudando de lugar


mas é a gente que vê os homens constrangidos da cidade

e tenta: enseada sobre asfalto, essa manhã,


porque tudo que é, é o nosso

estou no ponto pro Jardim da Glória, lendo a realidade


cientistas descobrem Alpes submersos na Austrália

na contracapa um coração selvagem pela metade


o cheiro de perto do sal um potro de pulmões novos

e o mar, ah oceano cavalgadura,


absolutamente estrangeiro a mim nesse interior sem tamanho

eu juro que esse túnel não acaba


estão nos levando a um lugar de verdade.

20
Vasco

E batia-me ao encosto e ao virar-me nada via e jurava-lhe


morte, mas como?, estás a estar morto mas é já?, E as
lampadinhas de acender não acendiam e a aeromoça nada
que cá vinha desde a descolagem, e eu pedia a Nossa Senhora,
que a mim sempre foi uma gorda roliça e não a rapariga
magrinha, faz favoire, que não seja o andante um fantasma
que caminha a assombrar a cabina, e que Deus permita
dizeres a verdade, Senhorinha, que amanhã ao abrir da
janelita não encontre alga em lugar de nuvem, espesso
abismo turbulento, que não esteja eu a ver bobagens,
monstros vermelhos, ciclopes alagados, dragões a rogar
fogos de promessas, fortunas pelas ventas, venha, minha
Senhora, me recompensar esta vida de tormentas.

21
a noite que fomos ao observatório

Era uma bola branca quando chegamos


fui lembrando que aquilo era um planetário
e tingi o concreto de azul
tem sempre uma estrada antes
a ferocidade humana dos sentidos
sereno mato sobre a borracha
uma voz que volta dos órgãos itinerantes
15 anos de cigarras e alienígenas num só planeta
meu melhor amigo dizendo uma coisa bonita sobre o fígado
eu não escutava mas era um rádio lento
como se trouxesse a notícia da paz
a gente corre pra inspirar
o pulmão expande
o fígado se ajeitando é massageado
que vontade de apertar
a bola do observatório
e então abrir feito tenda
o físico pra nós
explicou o clarão no céu
o raio das férias
que iluminou num arco-verde
por cima dos meninos
nossos rostos de fogueira
era lixo espacial
velocidade ardendo
voltando pras atmosferas
estrela-cadente-não-existe
escureceu
quando chegamos ao ponto final
(abre coração, abre)
podia olhar por dez segundos
(mesmo assim eu não vi nada).

22
infância
 
 
Não com essa ressaca e ainda mais cedo
papai me levava ao dentista
e depois de cada barbárie obturada
me recompensava com um sundae no Brooklin
 
o poeta não consola a herança
de nascermos destros não cuida
de terem me tirado os dentes da vida
de um jeito que nem sorvete adiantava
 
lembro das suas gengivas
sangrando tinta de lula
trinta e dois pontos na sala de televisão
o céu da boca da nossa morte

de dentro da sua enorme lucidez


não finja mais que não teme ao seu redor
dispersões bandidos choques elétricos
a noite que seu pai não veio mais.
Eu sou o rio dos mortos
dos meus parentes mortos
e os meus mortos são o mundo inteiro
 

23
Eu sou o rio dos mortos
nasci da sede pelo dó das lágrimas
quando mortos todos os pensamentos
 
eu sou o rio dos mortos
me criei no pântano das palavras
dos restos tudo trago
 
eu sou o rio dos mortos
minha carne é das nuvens
se fujo só dou em mim
 
eu sou o rio dos mortos
e o meu choro o que devolve à terra
o chão do sal da terra o chão
 
eu sou o rio dos mortos
minha margem de árvores
dos astecas que me sangraram
 
eu sou o rio dos mortos
da terra não passo
e ninguém me ultrapassa sem desvão.

24
autocracia

–––––––––––––––––––––––––––––––––
sonho
 
 
 
 
e essa noite eu ia a um museu de história natural e havia
uma água os canais da Disneylândia e então com pedrinhas
seixos nas águas e plantas de plástico muito verdes dava pra
ver as ferragens as pessoas passavam a mão na água muitos
velhos em fila enfiando os dedinhos na correnteza e eu
ficava assustada que aqueles velhos passassem a mão porque
era a água do Pinheiros e relampejava um na verdade o
museu de história natural é uma contenção da nascente e
precipitava mas essa água é suja e depois mas essa água é
nova daí minha mãe me dizia sem estar presente xxx xxx é
uma água antiga que não deixa os velhos doentes mais,
 
 
 
 
–––––––––––––––––––––––––––––––––
insight

25
astrologia

 
Caço constelações em mim
nem sempre sou a primeira
a descobrir Centauro
 
o olhar pendurado em constâncias
a lua míngua, leva a maré
sugar me balança
 
o umbigo incha
estou gestando um poema
cadente
 
nascerá todo destro
esquecido do céu
andando os próprios pés.

26
caixa-preta

31.12

Ainda não apareceram em mim muitos compromissos


eufóricos com a noite de réveillon. A taxa de saudosismo
também está baixa e o futuro é uma entidade calma,
sentada sempre à janela. Como num vagão de três
passageiros, o futuro, eu no meio e escurecendo à
esquerda, o passado. O sonho é ver as formas invisíveis,
trançar meus braços dados. Às vezes me aflige estar
muito alto no céu sobrevoando, outras não peço
pra olhar, que é pra não ver o mar, porque sei que a
embarcação afunda quando eu enjoar.

mas ah! que naufrague! os despojos na praia também


serão lindos.

ah! esse ano de xxxx! só não direi que - - - - - - - -


porque não direi nada.
é isso mesmo que vou fazer, não vou dizer nada.

1.1

Às vezes aparecem homens que andam sobre as águas.


Um dia serei daquela tipografia de mulher-marfim que
parou de respirar e agora só vive debaixo d’água. Mas
tanta coisa ainda me assedia com desconversa,

7.1

Da raiva descobrir a alegria


e o que eu não sei mais

tristeza e sal.

alguma coisa, acre Valentine, que me comove em nossa


capacidade íntima de estar no subterrâneo. Sair, voltar,
deixar você me ver chorar, sorrindo.

27
9.1
O oceano é terrível
mira como se agita
a rêmora que nada
colada ao tubarão
meu destino tão diverso.

12.1
Deus te livre, leitor, de uma idéia fixa.
 
19.1
Escrever alguma coisa. Bem, estamos no trópicos. As
bananas e as mangas sobre a mesa, minha blusa listada
de sair por aí, os protetores solares que dispomos
sobre o corpo e que depois voltam num baile infinito
sobre a mesa. Conheço seus limites, Valentine, já de
olhos fechados. Dispomos também de um corpo
inteiro pra transcendências sensoriais. Estamos em
torno da verdade, da qual já nascemos docemente
distantes. Orbitáveis por fora. É isso. Virei de madeira.
Ainda não adquiri saberes de rocha.
Nem sei se – – –

o centauro de madeira tomou corpo e consciência


e saiu vigoroso e leve, a andar. toda articulada.
aí há consistência. sem dúvida um estado de crise.

28
(à noite)

estou em cinco lugares ao mesmo tempo. pensava na


Europa. a Europa seria só mais uma grande ilha. não.
estou cansada de me parecer com as pessoas. cansada de
me adaptar aos hábitos locais. não. um janeiro difícil,
esse. não.

20.1
Nos dias em que não há colheita
e todos os mercados de trocas estão fechados
se faz necessário sair à caça
deixar a intimidade sombreada deste quarto
e achar nuns sentimentos da rua uns modos novos
dentro da crise dançar
dançar sem agitação

ao voltar para casa


esqueceu tão bem
seus melhores mantimentos
a canção que ainda falta um refrão
a comida que resta há dias em cima da mesa
porque a fome que sentes é outra
fome de anjo que extermina dor e dúvida
o caderno a que evitas dar o nome de diário
porque temes os nomes que alcançam ou não atingem o
grau de batismo.

29
26.1
Silencio tudo aquilo que do meu coração não parte

27.1
janeiro
Do lado de lá havia chamas xxx das coisas do interior das
coisas xxx eu vivia no mundo proibida xxx pra que não
me ouvissem xxx podia apenas cantar quando chovia xxx
e a água quente pelos seios das minhas pernas xxx não
mais cacos de vidro por sobre a cabeça xxx e os poemas
que me esperavam sem entrave xxx desde que pus os pés
nessa ilha xxx porque não estava frio xxx a chuva me
diluía xxx em algum lugar da minha terra xxx o incêndio
que se apagava xxx botava submerso todo assunto que me
valia xxx

29.1

O que dança na visão do enforcado? dias limpos


para trás e os homens que me sorriem na memória
ganham de mim um sorriso de retribuição, para além
da reprodução. Aperto-me no espelho até colocar os
cabelos bem arrepiados, numa figura que me lembra
homens inteligentes e soltos que me divertem no
corpo de mulher. E meu pai assim me chama de Gomes
Cardim, porque há dias se elegeu aos cachos do maestro
Chiafarelli, tal a rua da minha cidade, San Pablo de las
Neves. Acertamos cabeças de siris com amêndoas que
caem dos chapéus de sol na praia. A mira do moleque
matou dois. Sem querer. Rimos.
 

30
30 .1
 
Corre o rumor de que sou uma poeta sem lirismo, uma
escritora sem histórias.
A palavra é a filha que renasceu do fracasso.

Perguntam se eu penso essas coisas pela minha história


ou por alguma história que eu esteja escrevendo
(pergunto pra mim) e o vinho abaixa a nossa rotação

Valentine, que tornou a ser sweet, comic, Valentine, meu


coração vagabundo, replica, triplica e espraia. Os franceses
que dias atrás nos viram trabalhando na praia ficaram
ligeiramente comovidos. Entre encantados com uma
aparição da cultura datiloscrita ocidental à Bahiá. Achei
simpático ou será que foi o narcisismo terciário?

31
yira-yira
 

As nuvens de vidro nos prédios


o úmido vem de dentro da garagem
confio na sabedoria dos ambulantes
como quem se despede da raiva
a vida passando toda nesse esperar o ônibus
você que volta atrás em me dizer adeus
como quem desce a Consolação
e dentro duma luminária
descobre nossa lenta constelação.

32
montra
  
Descobri que os homens acuavam mamutes pelos
desfiladeiros porque era mais fácil derrubá-los do que
acertá-los com mira em flecha fiquei imaginando uma
flecha pra atravessar o couro de um mamute e quem
sabe talvez o mar fosse menos impossível talvez alguma
outra divina astúcia me acontecesse assim também e no
supermercado exclamar que fertilidade entre abobrinhas
poeta do finito e da matéria/ .../ cantor de um povo/... limpa-
ladrilho beterraba às vezes a única coisa que eu consigo
produzir é uma solidão radical
 
II
em alguma parte do marinho bate a luz e nasce um
peixe é?
os microscópios e satélites não puderam ver
poema do escuro que havia
que-quê sumiu entre nós, um crocodilo?
havia um segredo que não caísse na água?
deglutido
por esse entre-ser
evoluindo
 
III
búfalo também não tem mais
 
IV
comprei uma passagem pra Amazônia
porque eu estava observando uma coisa impressionante
no zoológico
que era uns primatas que não viviam de dinheiro.

33
o príncipe
 

Sonhei com alguém pra me proteger


ele cortava o mato de uma clareira
e eu a cada dia mais perto das ervas rasteiras.

Ao topo de toda a minha época herói de mim mesmo revigoro:


acredito que existam intimidade, calor e frio,
o estômago é o novo coração e o coração é o novo leão.

34
esta paisagem
 

Ou é tudo uma seqüência de imediatos


todo dia de manhã ao espelho
me tiram num 3x4
 
e estão enfileirando porta-retratos
que se embaçam ao menor contato
de respiração humana.

35
autognose
 
 
É automatismo, meu filho, te juro
puro enfoque de uma revelação
no trato sou uma calha do invisível
propulsora a palavra esquenta
então passo o texto com giletes
e das rasuras nascem flores.

36
pro inferno com a literatura
 
este é pro Marcos
 
 
Numa coincidência infame
tivemos a oportunidade
Bob Dylan e eu
de morrermos os dois amanhã
 
e os amigos lembrariam
ah como tinha futuro
ah como tinha talento
ah como sabia viver
ah como tinha sorte
ah até que veio que morreu no mesmo dia que o Bob
Dylan
eu nunca me esqueceria desse dia estavam ambos em
Lisboa
tomada por um ataque nos eléctricos nos bondes nos
pickpockets
no pitoresco mundo ibérico dos franceses que em
realidade nunca entendem absolutamente nada ah
souvenires coqueluches tíquetes de ingresso aos céus!
meia dúzia de vezes em um século alguém pode dizer
que sua amiga morreu no mesmo dia que o Bob Dylan
morreu.

37
história natural
 
 
Ele pode até gostar dela
mas que sei eu das minhas próprias mãos?
 

38
hoje
 
there are some mornings
when the sky looks like a road
there are some dragons who
 were built to have and hold
Joanna Newson
 
Acalma teu brio de fugir, mulher
havia algo com que me deparar
vinha desde a noite do nome que dei
a algo que sabia tão bem pequena
e que até ontem não sabia que sabia bem assim
alguma coisa com nome de amor
uma luz que às vezes ilumina minhas mãos
e há nitidez nas ranhuras das digitais
e sinto uma ternura imensa
pelo passado pelo futuro
tantas vezes é de noite
e me acompanha pensar
na morte como uma insônia
madrugada passada acordei berrando porque
pedia pesadelo pra amiga grita
grita pra nos salvar
ela não gritou
ao que eu gritei
levantei a cabeça
olhei as montanhas das minhas clarezas antes de dormir
e escrevi logo ao acordar:
esqueci
e fiquei olhando as montanhas e as estrelas pra ver se
elas se mexiam.

39
 amor
Queria que tua mão me guiasse no escuro do mundo
mas tua presença me aclara
fiquei confusa
   
*
deito uma pedra do meu peito
feito carvão no teu caminho
o que com ele escreves?
 
*
a ternura de um búfalo
com medo que as palavras
se percam na mandíbula
morde um cartão postal


ele é o pássaro. veio branco BRANCO invadindo meu
olhar boca tetos e ouvidos. livre e desesperado. tremia as
pernas quando nos beijamos, não, balançava-as fora do
tempo da música que tocava alto. lembro que o puxei
para o meu corpo como se eu fosse sólida. sólida feito
uma embalagem tetra-pak de leite cheia. ele se encaixou,
esteve comigo, estive com ele.

*
e descobri que há um barulho
que sempre pensei ser do mar
mas é um som do vento
um marulho que o vento faz,

43
*
vim de longe
porque eu trouxe o fogo
 
*
querendo comprar uma quinta e uns patos
ficar vendo os patos e dá-los de comer aos filhos

*
 Angelita no norte dizia:
-Mamãe, rasguei a perna ao descer a escada do Universo.
e por baixo do letreiro do restaurante o garçom a dizer:
-A pequena de rosa, olha lá que o gelado derrete.

*
terror do oceano mudar de nome enquanto durmo
deve ser assim saber estar pra morrer

*
decido não tomar mais medidas
aos cômodos vou me mostrando
como as palavras não encostam nas coisas
e as coisas estão livres
 
tão livres que só o ar
 
quando eu era pequena
achava que não se devia tomar banho nos dias de chuva
que era uma redundância
 
você quer que eu pare com esse papo de amor?
 
44

faz muito tempo que tenho perto
da casa escrita
a palavra airplane
 
foi só essa semana que fui lá
ao lado
e escrevi duração

*
cuida de mim
como s’eu fosse um qualquer

*
ontem chorei por causa de um passarinho. às vezes acontece
da vida entrar pela janela uma história da Clarice. domingo.
um passarinho do tamanho do meu polegar entrou entre as
abas da janela e caiu no fosso em que elas se guardam. ficou
preso lá dentro. às vezes suas asinhas batiam fazendo schuif
schuif schuif. se eu abrisse a janela completamente o mataria
esmagado. demorei a entender que ele era tão pequeno e
que chorar não adiantava-nos nada. perguntava assim: o que
tenho eu a ver com a vida desse passarinho que veio cair
na minha janela por inexperiência? me respondia, tenho
tudo a ver com ele e nada dele me diz respeito. mas é a vida,
né, então fiz de tudo. bambus, varetas, lanternas, cestinhas,
farelos de bolacha pra mantê-lo vivo. precisava de mão de
obra especializada. hoje de manhã vieram salvá-lo. ele abriu
a janela e eu peguei o passarinho na mão. apavorado. voou.
estou só agora, sem o passarinho.

45
*
só me ouvem os moinhos

*
estou grávida de ti estamos a ver os patos a coaxar e os
marrecos correndo as canelas dos bandidos e na hora
em que estou quase parindo você me olha à meia luz
e diz: ESTOU CERTO DE QUE O FILHO NÃO É MEU
SUA MENTIHORORROSSSA e vai embora batendo a
porta apagando as velas depois sou eu que fico com o
coração batendo abandonado vagabundo feito tatuagem
vagabundo

*
esperarei quarenta e cinco noites
e se elas parecerem trezentas
é porque quarenta e cinco foram

*
deseja salvar as alterações em amor.doc?
 
sim não cancelar
 

46
*
a última vez que nos vimos eu – – – percebi que não sei escrever
tinha matado um alce e carreg – – – um poema que fale da tua
ando até à margem do lago – – – ausência quero dizer minha
deposito ao lado na relva  – – – dor de
gravetos estalando fogo – – – .

*
bem comportada não vai dar em nada

*
CENA DE SANGUE NUM BAR
DA AVENIDA SÃO JOÃO

*
não fiz nada eu juro
eu tava aqui no escuro
e senti o cheiro do aeroporto de Guarulhos

*
passei a tarde em poemas
às dúzias como fotos digitais
seqüência de frames
de desenho animado
a gente vai estrelar junto
na tela da televisão
eu, Teddy Corpete,
enrolando você
entre os ossos da bacia

47
*
mensagem pra dizer:
 
“abraça uma andorinha. que vive em ti em você? se não
fosse o coração dos animaizinhos eu estava tão sozinha.
então escuta, tão rápido e: a explosão da tua alegria
é lindo. depois fico pelo buraco da porta a espiar que
ninguém sobe a escada. encosto abertas as palmas da mão.
e calo. a madeira respira por mim.
 
não, não é a causa da Andorinha. abrace a própria. a porta,
a andorinha, a longitude. os instintos farejam e comem
nossas equações de medos. sobram os ossinhos do medo
entre as ervinhas. com eles fazemos um relicário em cetim,
pousamos junto aos nossos pés, aliados. ficamos olhando.
 
isso porque agora entendo o homem da festa de Paris
exclamando para a namorada: “o amor é uma guerra,
uma guerra que se luta junto”. e ela, que era mexicana,
quase atirou um vaso na cabeça pra que ele ficasse quieto,
lhe deu uma bebida, um beijo estalado e basta de filosofia.
riram. isso foi na casa da menina que tinha o mesmo
pôster que eu, esse aqui na porta do Brasil. e me disse
que nunca tinha acreditado que faria, ‘uma parisiense
vivendo em San Diego, imagine’ com um bibliotecário
surfista, a explosão da alegria linda, todo nariz sangra um
dia, a calçada escura do ensolarado,” etc.

48
*
POEMA DO MAR DE RESSACA

*
vim andando de longe, pensando, pensando
é para os rochedos entre o mar que o amor se vai
quando acaba?
ou é na vida sem lógica sentimental dos peixes?
uma casa em que se tirassem as paredes e o ar caísse
sobre nós?
 

*
tenho medo que o tempo
tenha apagado nós dois
de ti
 
na tua ausência
tranço nas palavras
porque sei que quando você as lê, são tuas,
e como só posso me despir, sou poeta.

49
*
entro no quarto
enquanto dormes escuro
com a câmera de gravar
tudo tão quieto respira tão bem
e o meu maquinário tem a propriedade de filmar
mas só passa os sonhos do que amamos em cores
não sei, se insisto ou se parto,
queimando os lugares reticentes do mundo
aperto o botão e do início a gravação
na tela curta se reproduz de imediato
então tu?
sonhas a lua?
 
tem uma relva cresce um rio lilás
mas lá não estás
és o homem que desenha os trajes aos homens
na hora de pisarem na lua
calculas em ti
todos os específicos
a respiração do ar lunar
e quando um astronauta pisa o solo do satélite
tu também encontras a poeira homem subindo as solas
e organizando-se à outra gravidade celeste
 
então os homens voltam pra casa
os bolsos cheios de estrelas
tua ternura de abraçá-los de perto
os poros feito uma cratera
tomas a pedra sem quarentena entre os dedos
o homem do teu sonho não tem medo
coloca e chupa dentro da boca
é uma bala doce que lá da lua veio
sentado com os amigos
bebendo uma coca-cola
o homem constrói então um novo objeto:

50
redes de caçar borboletas para astronautas
onde na falta de borboletas lunares se prende o invisível

desligo a aparelhagem, então posso,


me deito no fundo escuro da cama
e durmo contigo a salivação do oceano,
 

*
preciso de ti
como se isso fosse um estar
no coração de uma selva
 
à noite escura ouvisse
a respiração de um animal de olhos firmes
se aproximando luminosos entre a folhagem
 
tu és o animal
eu sou a árvore
a luz vem da cidade

*
mas não adivinhei se a tua letra é sempre como está no
caderno
porém, não era pra dizer isso! é que eu não sinto mais
essa luta de romper assim não agora eu sinto mesmo
é como se escrever fosse um pássaro que voando no
mato
se desviasse por dentro das árvores
 
*
e os jatinhos
a voarem nossa sorte.

51
azul
 réveillon ou poética 
 
 
Sei que posso ser salsugem na margem de outro
ou rabugem em mim que isso lá é mentira de poeta
então estalo os dedos,
por favor, anjo surdo
traga-me outra fumaça
me dê outra maneira
de fúria, adivinhação e máscara
quem sabe pintura, esgrima?
carruagem ou esquadro
ou tipo um jogo de tirar palavras
num amigo-secreto
quem perder primeiro o dadá-
me a roupa que me ganha
num estouro de borbulhante
de primeiro do ano beba, babe
na boca, mergulho no mar
feito um gargalo de garrafa
se abrindo o peito enquanto engulo
toda a sua vaga, enamorado.
 

55
sábado

My eye is a young lady.


Hoje não tem Fernando Pessoa.
Como poeta, a psicanálise é o meu catolicismo.
O rei já usava azul antes d’eu nascer.
O júri é muito simpático mas é incompetente.
A forma é um caranguejo.
Mistério sempre há de pintar por aí.

Agora que eu sou sincera, estou tentando amestrar a mão


esquerda pra que ela viva sozinha. Caso a outra, pele de
cobra, travesti presenteada dos adornos, anel de prata,
pulseira de ébano, hipertrofie. Meu jardim da infância
para sempre, inerte de ser a outra que assiste, agora
própria fazendo o trabalho, a esquerda escreve à máquina,
meio débil, no computador, corta o pão e também saliva.
Mas, somente quando desenha é que a direita não se
entedia. O amor vai nos juntar, de novo.

56
a ilha
 
 
As embarcações foram feitas pra você
que pudesse observá-las
ao modo dos loucos
que oscilam ao largo do nosso corpo
e mordem as ventosas dos peixes

expulsa das idéias o pensamento


medita o vazio dos espaços interestelares
escreve: falo por vós mas não vos compreendo

e as luzes do cais
na superfície do dilúvio
os riscos.

57
desta amurada

O que faço aqui no campo declamando aos


metros versos longos e sentidos?
Ana Cristina César
 
  
Aceite este pequeno cascalho
empoeirado relicário da minha fé
lasca desencarnada de vida
e sobre ainda estou em pé
 
inscrevo calcanhares à margem da brita
meu coração palpita sem adormecer
o rio sem peixes as palavras me acordam
pra ver pescadores a ver o mar sem ver
 
as pedras do calçamento
são a estrela-d’alva definitiva
não sei se migro feito gaivota
pro oceano da minha saliva
 
o Tejo é mesmo dentro da gente
e pois, aceite.

58
o espelho imantado

Outra vez te revejo,


Mas, ai, a mim não me revejo!
Álvaro de Campos
 
Te pus dormindo sobre o rio
trajando o negro de sempre
tua imagem bóia comigo
nesse vestido de preto rente
à janela irias me querer bem
 
aqui, perdi a metáfora,
como em outros tempos
a gravidade dos -40º lá fora
mulheres se notaram sem
suas estolas
neste espelho
perdi a matéria
minha carne
se perdeu
 
II
posso discutir com meia-dúzia de amigas
o vácuo a estratégia da beleza
posso até fotografar-nos posando disso
mas não sei se é você que me visita
ou é essa luz e meia que me enfeitiça?
 
que sentido faria um amor tão longe
de me visitar agora?
que é?
pombos-correios embratel emails
quanta dissipação, meu deus,
milhares de partículas no ar denso desse verão
dores de cabeça
caroços que incham 59
corcundas húngaras
contadas na televisão
teus olhos por trás de mim
em todos os espelhos deste infinito apartamento de
Budapeste
quantas amostras de gente
emolduradas desde 1.808
miraram sem se ver?
 
não sabem o que ouço
da imagem de vidro
talvez pela primeira vez
este espelho fale português
língua cheia de dúvida
de conjugar amar ou amando
de quem?
 
III
 vítima e conquistadora
a melhor definição de amor
não vale um beijo de namorado
e nessa tela fria tão sem cheiro
tão sem beijo tão sem seu jeito
atravessa tua imagem
o leito dos meus olhos aos litros
e tento meditar
se te suicido?
 

60
IV
é uma maravilhosa sonolência
que te traz em imagem enigmática
mas como um galho, pela margem,
a correnteza estanca
pára de rodar o Danúbio
nunca vai limpar o Pinheiros
e o dedo que me ajeita o cabelo
era capaz de ser teu fantasma de pau
tua língua
minha língua
estrangeira de mim em qualquer parte.

61
Lisboa

Parece que há uma luz lá dentro


que não se apaga nem mesmo de dia
dentro do cômodo branco de cal
de modo que ficava dourado
 
e quando a luz incendeia
meus olhos cansados
é me encostar nas paredes
para estar à fresca
 
 
II 
me encontro em renomear o mundo
com palavras que já são dele:
amor, oceano é o mar que nos divide
 
às vezes resolve uma mulher
e sai andando por sobre o Atlântico
um dia você será daquela espécie de homem-
marfim que parou de respirar
e agora só vive debaixo d’água.

62
me dê de presente o teu bis
 

Quando presa ao ar da vigília


procurar minha insistência desistiu
voltas num ponto da penumbra
e pedes pra que me abra novamente
 
se o mundo fosse um estabelecimento
havia de pesar destreza na planilha
portas sanfonadas que emperram
ferrugens do sangue de ontem

mas sabes que banho os poetas ao sol


e pelo modo de contagiar os descontentes
ouço: vim dizer que o dia te seja calmo
e não precises retirar prazer das coisas
 
em dúvida, me recoloco a escrever calados
depois dito no ritmo dos passos:
silencio tudo aquilo que do meu coração não parte.

63
romance ao marechal dos ares
 
 
Deixei um cartão
num banco de parque em Amsterdam
 
contava a história completa
e as gotas no papel parecem nuvens.

64
tira ouro do nariz
 
 
A criança meditativa sobre dinamites
sonhou de repente todos os poetas
desse país ao tórax enterrados
acordou remelenta e descansada
abriu a janela e pela rua toda torta
tarde muita noite sobre nossos corpos
trepavam abóboras em carruagens.

65
suposições

 
Se pelo menos tivesse nascido mais velho. Podia ao menos,
com o pé em cima da máquina exclamar: sou o cavaleiro
do aspirador de pó. Isso com a toalha vermelha nas costas.
E os ossos magrinhos no raio-x. Mas, Vênus em fúrias,
essa mulher sem cabeça pra vida. Fantasiava. Tinha uma
herdada do irmão mais velho, de astronauta, que a mãe
só lhe deixava usar pra lavar louça. Era a compensação
de não ser menino. Decorava a ordem dos planetas. Nem
sabia porque queria isso. Mas veio de tão antes que sumiu.
Foi bem antes de você aparecer. Foi na época que sumiu
bem antes de ser alguma coisa mais além do que uma
mulher. Foi só quando você apareceu que comecei a me
sentir sozinha. Não consigo visitar ninguém.
 
II
Amarra meu cabelo ao corpo deste bebê, dá-lhe um dedo
meu pra que chupe, se quiser o poema me come a carne.
O problema é o poema da caixa torácica. Meu poema
que não te atravessa. 
 
III
Cheguei da fazenda pensando. E esse pensar, se ficasse no
pensar, era uma coisa. Mas quem não tem destino e pensa,
desdobra a existência nesse pensar. Pensei: um problema
de existência carece então de teorização. Fui aos homens.
Estou indo ainda, não digo muito mais. Fui cair na teoria
dos homens, mas discordo de tudo ou plasmo sem
sinceridade. Poeta também não tem mais. A única coisa
que me interessa é ficar vendo me devolverem as coisas.
 

66
IV
Alguma coisa
acredita em mim
que está guardado
o segredo astrofísico
que desaprendi na matéria da escola.
 
V
Sim, avistarei. A ti também. Avistará.
O que me intriga não é de vermos, continuemos,
corredores.
O que anseio é a dúvida feroz, está no fazer o amor.
Enquanto isso tento arranjar alguém em mim que cuide
de ti.
 
VI
São fictícios os números dos títulos.
O mundo dos homens assim me recebe a convicção.

 VII 
Se pelo menos tivesse nascido mais velho.
Caia madura da mãe.

67
endurece o coração
 
 
Não dá em nada
perdes a esperança
é pior sem ela
andas correndo
substitui-se o vazio
pelo sangue bombeado
mas a dor nunca passa
antes te atravessa
a tinta das canetas
pigmenta os grisalhos
esse poema tinge de branco e irradia,
 
*
ou nasce da areia branca, toda superfície, por mais
estriada que pareça
não te agarras o bastante e grita no ouvido do homem:
sou tua, por que não me diz?

68
strike a poet
 
  
Tiro fotos da minha casa até acreditar que é uma cidade
sigo abraçando cadeiras entre o olhar imperativo dos
gatos a mão que afaga este problema a materialidade
dos livros ajuda no colegial me chamavam de menina
de outra época meu pai dizia que minha avó era uma
mulher da terra isso resume pra mim toda a poesia
contemporânea de repente ganharam o medo de dizer
coração é preciso paciência e a sensibilidade de um peixe.
 
Devem me ver como um dragão rasante, os miados
num abraço a gatinha tem fome e cheiro de ser vivo
pela primeira vez em um mês deixo a sala é mais fácil o
mar abrir em dois do que interromper o trânsito é por
isso que não atravesso a rua meio-dia sou o Torquato de
colar de contas descendo as delícias de aves nas mãos ela
pensa em casamento no sol de quase dezembro uma mãe
me olha saindo pelo corredor
 
até o portãozinho de aço range a filha vai pra escola
a mala de rodinha, vergonha não é a palavra
finalmente, virei artista os dedos sujos de tinta
e o uniforme azul-marinho o cabelo imundo embora
a seda tenha rasgado só consigo desafinar o coro dos
contentes me alimentar com drogas pra me manter
escrevendo acordada e cansada e insuficiente esta melodia
chega o texto ao fim e não reviso, it’s friday I’m in love.

69
soneto de separação

 
 
Maria tinha braços que amavam
longos capítulos
por isso os finais
eram seus favoritos.

70
farewell
 
depois de tantos combates
meu amigo Lero
pegou o seu corpo
e tombou em um rio

essa noite lá pelas três 


nós no Volkswagen meia-seis
o estofado improvisado
de oncinha barquinho marinheiro

fora a vida ao relento


os faróis a iluminar o caminho
uma baleia andando no retrovisor
pela estrada do sítio

e chegados para a travessia


de cima da ponte o Lero lá na água estava
o splash que dali resultou
revogou a forma do suicídio
 
sua cauda amarela ficando ocre
cheia de um musgo, descorava
e as algas de todos os oceanos
viravam suas saias

o guindaste guinchava
içando os cimentos
dos corações 
contra o silêncio dos avaros

até que o Lero também se calou


e dentro de nós é que chovia
a água entrou pelos vidros
molhou os papéis
 
e mais nada.

mas um cheiro de promessa


que às vezes libera a maresia
cansou a ferida do Lero
meu amigo dançador. 73
posfácio
PRA PERDER O MEDO DE DIZER CORAÇÃO

uma casa em que se tirassem as paredes e o ar caísse


sobre nós?

Há uma agonia de bagagens. Este texto não será laudatório.


/ Há um certo grau de insônia, de ruminação, de sentido
histórico, no qual o vivente chega a sofrer dano e por
fim se arruína, seja ele um homem, ou um povo, ou uma
civilização. / Simultaneamente a tradição mallarmeana
da palavra pela palavra e o extremismo psicanalítico de
uma essência que não se alcança. / Para este tempo de
acanhamentos, medo e cruel felicidade cordial, qual a
poesia?

Recorte de todos os versos antes escritos - a mordida do


novo em dentadas afoitas — galhardias dos medalhões
de bons nomes e excelentíssimas relações — Escrever
poesia pra disparatada tradição que nos escreve é
um embuste. Há hoje todo um aparato editorial que
se aciona à placidez política de um país de planos
de saúde e imperialismo periférico — e xs poetas
produzem conforto às nossas leituras. Em linhas gerais,
o que se escreve hoje une o jocoso-acidental modernista
(atualizado pelo desbunde dos 1970) à auto-satisfação
concretista do texto que, sincronizado ao melhor da
tradição, tradiciona-se acadêmico e balofo.

No mundo de todos os caminhos / é ainda com pé no


chão que se caminha. O poeta é antena da raça / um
satélite que só quer amar. Júlia de Carvalho Hansen
percorre com ritos de xamã os caminhos duradouros
que nós pisamos. O livro cantos de estima não está fora nem
longe, mas imbricado no hoje / raspa do musgo vivo

77
debaixo das pedras de toque um — subproduto do rock?
E morde a tropicália das possibilidades, há versos que
serviriam melhor de canção, escreve os diários de Ana
Cristina Cesar sem parecer inteligente ou dadivosa, mas
firme e perigo feito um abraço. Que afaga.

Talvez você possa lê-lo como uma carta, não como as


cínicas cartas forjadas. Uma carta para o mundo para
amar. E qual a ousadia em ousar dizer amor? Um amor
prolixo, que não se contém / que esbarra em si mesmo
seus fragmentos de discurso manjado, seu já-se-disse
– – – . Mas ainda não te disse. Meu amor é pra você, meu
amor. Herói de toalha vermelha amarrada no pescoço, na
titubeante e afirmativa segunda parte dos cantos de estima
está escrito o que pode ser o mote de todo o livro: o nosso
amor a gente inventa. O leitor-destinatário desses versos
não é o hipócrita da modernidade à francesa, é o amado
das cartas portuguesas. Só na entrega é que se ama.

Chega então um gesto, mais do que um texto. Este livro


nasce de um artesanato, uma edição reduzida de doze
exemplares feitos à mão e dados de presente / que
agora vêm a maior público. Dizer a que veio. Que não
seja preciosidade de fetichistas da poesia — e não é
estardalhaço da geração do mimeógrafo — isso só vai
depender de você, que tem o livro em mãos. De qualquer
forma, eu posso te dizer que as cartas — e este livro —
dificilmente são endereçadas a um leitor imaginário.
É do texto publicitário ser agradável / e dos mantras
pessoais colecionáveis que resultam da poesia consumida.
Quanto a este livro, eu sugiro que você o mastigue pelos
dentes. E sem pressa.

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Nos cantos de estima você provavelmente não encontrará
nada de novo. Júlia de Carvalho Hansen beira o cafona e
o mal-escrito dos melhores textos que hoje se publicam
pra perder o medo de dizer coração. E se for uma poeta
sem lirismo / Por que não? Por que não? Um conjunto
de poemas que alcança a ferocidade humana / pela vida
sem lógica sentimental dos peixes / que libertos todos
de um aquário que súbito se descobre decorativo e que
afunda no meio da água do Atlântico silêncio violento
se ouve do cais, ele se põe a contar notícias de além-mar.

Daqui é construção. O que ela quer da gente é coragem.


Profética e corpórea anuncia: O estômago é o novo
coração e o coração é o novo leão.

Marcos Visnadi
São Paulo, junho de 2009

79
cantos de estima é um livro sendo feito, em tiragens
limitadas em expansão.

Sua 1ª edição (2008/09) com 14 poemas pode ser vista em:


http://12exemplares-o-livro.blogspot.com

Agradeço a todos que participaram desta edição e à


minha mãe. Agradeço também a todos presentes nos 12
exemplares como participantes ou incentivadores do
projeto. Agradeço finalmente a todos os interlocutores
dos meus textos e sobretudo a todos os meus amigos, os
já conhecidos e os ainda-não. Obrigada. Este livro é carne
mútua, beijos para todos nós.

copyright © 2009 Selo de estimas e grama

Hansen, Júlia de Carvalho. cantos de estima. São


Paulo, Selo de estimas e grama, 2009. 2. edição, 120
exemplares, número de páginas.

revisão de texto
João Adolfo Hansen

posfácio
Marcos Visnadi
marcosvisnadi@yahoo.com.br

projeto gráfico
Eduardo J. Cintra Mauro

a autora
Júlia de Carvalho Hansen nasceu em São Paulo no 12 de
janeiro de 1984. Começou a escrever aos nove anos de
idade, depois parou. Ama, reclama e é feliz.
juliadecarvalhohansen@gmail.com

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este exemplar leva
o número: _____

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