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SEBASTIÃO ALBA

Quem não conhece Diniz Carneiro Gonçalves? Filho do Professor e também escritor Albano
Moás Gonçalves? Recordamo-lo jovem ainda, calcorreando as ruas da cidade de Quelimane, em
busca da sua reportagem (era colaborador activo do Jornal Notícias de Lourenço Marques),
“alimentando-se” da sua poesia, ora doce, ora irreverente, algo intervencionista mas… sempre
extraordinária. Quando os seus poemas começam a surgir, vêm assinados com o pseudónimo
“Sebastião Alba”. Não o necessitava fazer! Quem conhecia Diniz Gonçalves apercebia-se logo
que vivia num “mundo à parte”. O seu sorriso que vinha da bôca até aos olhos, era quase como
um rir da vida, das pessoas e das coisas. Vestiu desde cedo a roupagem dos poetas. Parecia
alheio à vida e que esta lhe passava ao lado, mas não! Diniz Gonçalves “dissecava” a vida
minuciosamente e transmitia-a em palavras rimadas com mestria.
Hoje, é considerado um dos poetas portugueses mais originais. Igualmente original foi a forma
de vida que adoptou, também essa não nos surpreendeu. Diniz Gonçalves nunca foi homem de
duas vidas e no momento de opção, ficou com a sua poesia, vivendo-a talvez de um modo
diferente, mas autêntico.
Faleceu a 14 de Outubro de 2000. Deixou um bilhete, dirigido ao irmão: "Se um dia encontrarem
o teu irmão Dinis, o espólio será fácil de verificar: dois sapatos, a roupa do corpo e alguns papéis
que a polícia não entenderá".

Do livro “O Ritmo do Presságio”, dois poemas; não porque sejam os melhores, mas porque
falam e foram dedicados a outros amigos nossos.

ÚLTIMO POEMA
(ao Jorge Viegas)

Nestes lugares desguarnecidos


e ao alto limpos no ar
como as bocas dos túmulos
de que nos serve já polir mais símbolos?

De que nos serve já aos telhados


canelar as águas de gritos
e com eles varrer o céu
(ou com os feixes de luar que devolvemos?)

É ou não o último
voo bíblico da pomba?

Que sem horizonte a esperamos


em nossa arca onde há milénios se acumulam
os ramos podres da esperança.
1941-1968

Há muito já que o último amigo


se foi pela nomeada
abertura da terra
Há muito que a brisa
se deslaça e esquiva
no rebordo do traço
de duração entre datas

Um imperativo silêncio
desloca estes versos
Tão de súbito resumida
como evocar a amizade?
Seu nome de ilimitadas
sílabas desérticas?

NINGUÉM MEU AMOR

Ninguém meu amor


ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.

NÃO SOU ANTERIOR A ESCOLHA

Não sou anterior à escolha


ou nexo do ofício
Nada em mim começou por um acorde
Escrevo com saliva
e a fuligem da noite
no meio de mobília
inarredável
atento à efusão
da névoa na sala.

A UM FILHO MORTO

Ontem a comoção foi da espessura dum susto


duma árvore correndo
vertiginosamente para dentro do desastre

E já não choramos. Passamos


sem que o mais acurado apelo
nos decida

Nas camisas
teu monograma desenlaça-se.
Tua mão vê-o nos céus nocturnos
sabe que há uma ígnea
chave algures

Minha tristeza não tem expressão visível


como quando a chuva cessa
sobre a dádiva fugaz do nosso sangue
que hoje embebe a terra

É tal a ordem em nós


que um odor a bafio sai de nossas bocas
e uma teia de aranha interrompe o olhar
que te envolveu em vão.

O LIMITE DIÁFANO

Movo-me nos bastidores da poesia,


e coro se de leve a escuto.
Mas o pão de cada dia
à noite está consumido,
e a alvorada seguinte
banha as suas escórias.
Palco só o da minha morte,
se no leito!,
com seu asseio sem derrame...
O lado para que durmo
é um limite diáfano:
aí os versos espigam.
Isso me basta. Acordo
antes que a seara amadureça
e na extensão pairem,
de Van Gogh, os corvos.

HÁ POETAS COM MUSA

Há poetas com musa. Muitos.


Eu, neste jardim do Éden,
a cargo do município,
onde um velho destece a sua vida
e, baixando o olhar,
ainda lhe afaga a trama,
quando a poesia se afoita,
amuo
na agrura de, ao acordar,
tê-la sonhado.

GOSTO DOS AMIGOS

Gosto dos amigos


Que modelam a vida
Sem interferir muito;
Os que apenas circulam
No hálito da fala
E apõem, de leve,
Um desenho às coisas.
Mas, porque há espaços desiguais
Entre quem são
E quem eles me parecem,
O meu agrado inclina-se
Para o mais reconciliado,
Ao acordar,
Com a sua última fraqueza;
O que menos se preside à vida
E, à nossa, preside
Deixando que o consuma
O núcleo incandescente
Dum silêncio votivo
De que um fumo de incenso
Nos liberta.

EPÍLOGO

Fui
hóspede desta mansão
na encruzilhada
dos meus sentidos.

O verso apenas é,
transversal e findo,
o poleiro evocativo
da ave do meu canto.

Essa ave em que o Outono


se perfila
e, cada vez mais exígua
no rumo e nas vigílias
do seu bando,
de súbito, espirala
até sumir-se
num país imaginário.

PRAIA

Entre dois domingos


a cidade oculta-nos
a lisa permanência do vento
e ele rectifica uma duna
Mas já a luz elide
nossas olheiras do asfalto
velozes véus de areia descobrem
pequenos sarcófagos de conchas
Refugiamo-nos
Mortal só a distância
de nem um indício no mar.
AS CASAS CONSTROEM-SE DE SOMBRAS

As casas constroem-se de sombra


quatro sombras ao alto
longe da esfinge dos astros

Falamos das cidades


dos homens que de tão sós
as despovoam
Das casas nunca
Só as casas solitárias têm história

Giram na noite presas


à face da terra

E vede
a plasticidade das casas
ao sol
a amabilidade das casas
à porta
a incomunicabilidade das casas
sob os bombardeios.

CERTO DE QUE VOLTAS, CANÇÃO

Certo de que voltas, canção,


a incerta hora,
espero como quem mora
só, a visitação.

Sei, por sinais e anjos e desviados,


que rebentas dos sonhos desolados
em flores no chão.

Apenas flores, nem nimbos na lapela.


Flores para a mesa,
com o odor da certeza
de água, vinho e pão.

Apenas flores e tu,


ó meu amor sem nome,
e a nossa dupla fome
dum menino nu.
A PALHOTA

Espanta não ver nada


que se coma e caçarolas
As aranhas debandaram
não há moscas
até o humor secou
nas espinhas largadas
Vive-se como?
Donde a modeladora energia
que põe a carne?
Ladino um rato
como na infância o quereríamos
rói os bambus a viga
as horas urdem
e um opaco cisco indizível
aduz as proporções laqueia
a quietação à roda.

ICARO
para o Zé Craveirinha

Da Mafalala estorva-nos
a memória dos gregos
É um anjo negro segredado
e assim goza
de asas sussurrantes
Desce por entre
intervalos do vento
e findo o voo refunde
o modelo de cera
Como qualquer pássaro faz ninho
ele no vestido das mulheres
Sem céu fixo
exala a plumagem
da comum nudez interrompida.

COMO OS OUTROS
ao Rui Knopfli
Como os outros discipulo da noite
frente ao seu quadro negro que é
exterior à música dispo o reflexo Sou um
e baço

dou-me as mãos na estreita


passagem dos dias
pelo café da cidade adoptiva
os passos discordando
mesmo entre si

As coisas são a sua morada


e há entre mim e mim um escuro limbo
mas é nessa disjunção o istmo da poesia
com suas grutas sinfónicas
no mar.

COMO SE O MAR

Quero a morte sem um defeito.


Sem planos brancos.
Sem que pequeninas luzes se apaguem
dentro dos ruídos.
Também a não quero providencial,
com um anjo vingador e secretíssimo
enfim pousado.
Nenhuma mitologia. Nenhuma
fruição poética. Assim: Como se o mar
me aspirasse os ouvidos... etc.
Mas súbita e civil,
com repartições abertas,
comércio, a luz graduada
nas altas paredes
dum bom dia sonoro.

ULTIMO POEMA
Ao Jorge Viegas

Nestes lugares desguarnecidos


e ao alto limpos no ar
como as bocas dos túmulos
de que nos serve já polir mais símbolos?
De que nos serve já aos telhados
canelar as águas de gritos
e com eles varrer o céu
(ou com os feixes de luar que devolvemos)?

É ou não o último voo


bíblico da pomba?

Que sem horizonte a esperamos


em nossa arca onde há milénios se acumulam
os ramos podres da esperança.
NO MEU PAIS

No meu país
dardejado do sol e da caca dos gaios
só há estâncias
(de veraneio) na poesia.
Nossos lábios
a um metro e sessenta e tal
do chão amarelecido
dos símbolos
abrem para fora
por dois gomos de frio.
Nossos lábios outonais, digo,
outonais doze meses.
No entanto
o equilíbrio jacente
faz florir as acácias;
a terra incha;
na derme da possível
geografia,
um frémito cinde
as estações do ano.

SUBÚRBIO
ao Rui Nogar e ao Zé Neto

Onde há casas menores com portas abertas


por sobre os espaços que a luz orna
entre as palmeiras
e vultos que amanhecem envoltos
em lençóis de que a noite suja escorreu
a manhã pousa
nos pulsos das mulheres que se elevam com ela
e meninos negros alteiam-se
no flanco das mães
de olhos que a esperança já estria
Os comerciantes assoam-se
de varanda para varanda
retribuem devagar a amizade
Que os meninos trazem para fora
das tarefas diárias
as luas carcomidas no sítio das fogueiras
enfiadas murmuramente em seus colares.

ALMOÇO À ZAMBEZIANA SOB UMA ÁRVORE

Conto as anedotas que oiço


noutras reuniões,
aos meus amigos de subúrbio,
os menos designados. E nenhum ri.

Amo essa frondosa


melancolia que os goma;
eles o meu contrário incompleto
amor maravilhado.

SEM TITULO
à memória do dr. Júlio Macedo

Para isto de dar


um bambo passo entre as estrelas
não se vai com a grande ocasião reclinada
na cabeça a ouvir Puccini

Breve empanadas as estrelas


não mais se acenderão e apagarão
O rumo estará raso
O silêncio a nada obrigará

De pouco serve a ida ao lugar de ausência

que o teu sono já não é extensível


Aboliu-se uma posição relativa na noite
Não circulando em ti com a sua mistura
o ar atravessará o esqueleto

E tudo será sem data e sem prenúncio


E não acrescentarei ao poema ainda um verso relvado Que buxo!
Ele não seria a medida ou a balança Seu inconcreto molde
restaria quebrado entre outros cacos

(Se bem que da infância suba até mim o coro admonitório dos anjos.)

OZORNIK
ao Eugênio Lisboa

Tenho o poder em torno azul das estrelas vivas

e sei já desatar as estrelas


copiá-las das árvores

é tanta a confiança nas minhas pranchas de ar de salto


que se me sento na aragem com a perna
para fora (um arrepio rabeia nas bancadas
rima os dentes das crianças aloja o medo)
os amigos me olham distraídos
com seus pássaros ao alcance da mão

deles só o coração expiável


os consterna pulsa baixinho
desiste.

AS MÃOS
ao António Quadros

Componho com as linhas dos meus dedos outros puros


cujas pontas façam girar nenhum raio sucessivo
de sol Dedos sem o cadastro de enlaces doendo
e se declamo ficções que eles escorem
Sem par noutras mãos Nem fundos na algibeira
mexidamente obscenos e a salvo da garra dos gatilhos
Dedos com um horizonte de pálpebra baixando
que assim não acordem as formas tacteadas
donde um sono mane estrie os espaços vedados
Dedos de que mesmo a chuva escorra sem uma lágrima
Ou os que já compus e assinam adiam o poema.

Fonte: Blog Zambeziana

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