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Rafael de Souza
SOBREPLANOS
Estirados na grama
com as mãos atrás da nuca,
tentávamos adivinhar formas de memória
nos cumulus mais dispersos
(quase os conseguíamos tocar,
tamanha era a nossa distração).
Testemunhávamos o tempo se despir
diante de nós, entre moinhos.
Despido ele, se insinuava a réstia dos corpos,
numa leveza de pétala
cujo sentido jazia ali, na grama e nas nuvens,
além do trânsito delas a um ermo qualquer.
E uma vez aguçada a sensibilidade,
nossos corpos como que transbordavam,
congregados num só plano,
no eixo do qual éramos guiados
ao interior das sensações,
onde o gozo, as nuvens
e os arbustos também se fundiam a nós,
numa vazante noturna,
rodeada de pirilampos.
PERCURSO INFINITO
Pedalo
pedalo
junto de ti
(tu estás segura
no quadro da bicicleta
sentada de lado
teu riso
à altura do meu queixo).
Em vez da brisa
invade-me as narinas
o perfume
dos teus cabelos.
E por dentro
desejo
que nosso ponto de chegada
demore
no mínimo
a rua
a cidade
o mundo
— a vida inteira
em todas as suas
subidas
e
decidas.
DITOS E RISOS
Nossos ditos jamais ficam em branco,
passe o tempo que passar. São que nem
o beijo dos dois pombinhos no banco
da praça, ou a luz de um farol além,
SOBREVIDA
Os melhores versos nunca
são terminados. Continuam
sendo reescritos século
após século, ano após
ano, minuto a minuto,
a momento, ad infinitum.
Cada leitor reescreve-o
com lápis imaginário
e letras imaginárias,
em papel imaginário.
Cada um o concebe em seu
plano, segundo vivências
e revivências, além
do andar das eras. E mesmo
o mais despretensioso
dos poemas pode ser
eternizado, seguindo
o coração do leitor.
Quem o concebe, talvez
não se dê conta de tal
poder, e talvez não viva
o suficiente para
sabê-lo. É uma ironia
própria do existir. Mas ela
não consegue fazer frente
a tudo que surge e esteja
fadado à eternidade, ao
reflexo da vida nas
palavras. Assim, poema,
reescreve-te a ti próprio
e resiste, firmemente,
até o sol se esconder
(pela derradeira vez)
nas campinas, ao poente.
A LEI DO RETORNO
As galinhas cantavam, sim: todos ouviam;
e dias após vibrava, de chofre, um pio assustado, seguido de outros,
os quais, quando não indicavam a aparição de alguma raposa ou
serpente, eram denúncia de um ninho próximo.
E lá ia a senhora, já bem idosa, a embrenhar-se nos arbustos,
pois, apesar da idade, tinha pernas firmes como as do povo de sua
geração.
Passavam-se uns minutos e lá vinha ela,
trazendo um punhado de ovos no regaço da saia,
e agachava-se com cuidado para não quebrá-los ao passar por entre os
fios de arame da cerca.
Desses ovos derivavam os bolos de tacho, chamados também pés-de-
moleque,
além dos bolos de trigo e mandioca,
das batidas e mingaus
e dos ovos mexidos, que serviam de mistura tanto no café como nas
demais refeições.
E quando a idosa surgia dentre os arbustos,
com os olhos fixos nos ovos e os lábios traçando um riso pensativo no
rosto, dizia
se Deus tivesse permitido ao feijão nascer naturalmente, como nasce o
mato,
não precisaríamos plantar; apenas colhê-lo à porta. Bem assim são os
ovos,
que a terra não nos dá de graça, mas precisamos tomá-los das
galinhas, as quais só nos ofertam eles se as dermos o milho colhido de
nosso próprio suor...
É PENA
E se desfez o pudor;
se dissipou, sobretudo,
porque era necessaríssimo
em ocasião como aquela,
na qual todos são iguais
por motivo da fraqueza
dos ossos e do juízo.
Desfez-se afinal porque
todos somos terra e a ela
voltamos — como ela própria
repetia, sem resquício
de desgosto ou frustração:
ao contrário, com alguns
sorrisos e temperança —
e absolutamente nada
podemos fazer a fim
de impedir nossa partida.
E, com este pensamento,
tirou-lhe a roupa. Mas, quando
terminou, mal se deu conta
de que tudo já houvera
se passado, e que fitara
— ela desnuda de seu
pejo anterior — o corpo
que lhe trouxe à luz, e como
semelhante corpo ao mesmo
tempo era familiar
e desconhecido, tátil
e intocável, e que toda
a timidez aflorada
só lhe dizia respeito
ao caráter de finitude
dos corpos, tão visualmente
próximos (senão iguais)
quando se voltam à terra.
RETRATO DE ESTRADA
Trago comigo
este homem que não sou
à visão dos juncos —
homem desfibrado, cujos olhos
são harpias,
e os pés, castelos de areia.
Trago comigo
esta sombra de eco,
este lenço puído ao bolso,
em que beijos se estamparam
e sumiram, unânimes.
Tênues geometrias circulando livres,
como espirais...
Ao cerco da enseada trago comigo
o sino das marés,
o pêndulo das orcas,
o choque das enguias
e a murmurante fumaça de um charuto
— trago. Trago comigo
os aguapés por correr
sem foz ou âncoras,
as serpentes aladas
de uma civilização a ser descoberta,
obsoletos teares de um navio
por afundar: trago.
E me devendo. E enxergo
através do tecido
o que ocorre,
o que foi
e o que está por vir.
DESAFIOS
Vê, remador,
se tens pendor.
Os bons poemas
precisam do tempo,
mesmo que lento
e sem esquemas.
Vê, remador —
sabes compor?
Enquanto remas,
sigo aqui vendo
o casamento
das seriemas.
CANTEIRO INTERNO
E eu
que tinha uma planta dentro de mim
pensa ele
sorrindo e sentado na cadeira de vime
enquanto lhe acarinha o rosto um vento vespertino
Eu que
quando engoli uma semente de laranja
servi de canteiro para uma muda
que cresceria em meu interior
como esclareceu minha mãe
obrigando o sono a se afastar ao escurecer
e fazendo-me ter pesadelos
ao que ela depois se desculpou
e me revelou a verdade
E seu sorriso alarga-se ainda mais
na presença do neto
de oito anos recém-feitos
que acaba de chegar
e lhe acena do portão.
II
Outrora
os hoje anciãos
miravam o céu
à noite
procurando a estrela d’alva.
Se ela estivesse próxima à lua
era certo que o ano seguinte
seria de abundância
e sobraria pastagem para todos
os animais.
Mas se estivessem longe uma da outra
queria dizer que
maus tempos estavam por vir.
Ainda hoje
entretanto
alguns desses idosos
acreditam em tal tradição
a qual para eles é muito mais certeira
que as previsões diárias
de tempo.
E quando a estrela d’alva
jaz próxima da lua
o que mais impressiona
não é a margem de acerto
da experiência
nem a iluminação
daquela
mas o contraste
do fulgor dos astros celestiais
com o dos olhos
terrestres.
TRÊS ABELHAS
II
III
Há nessa insensibilidade
mecânica e prometedora
um moroso vagar de instâncias
e prédios com elevadores
enferrujados. E os patamares
cedem espaço ao receio
de alguém tropeçar lá de cima.
As janelas oferecem uns
contornos longínquos de nuvens,
e nos esgotos encardidos
se movem as patas dos ratos.
Longe, drapejam as cortinas
na brisa ebúrnea tal tropel
sobre a cerração de planícies
rosadas. Trata-se de tela,
ou antigo filme projetado?
Não; é a vida palpitando,
frenética e em voo, lá fora.
UMA GARÇA PERDIDA
De manhã regressarás.
E, sob o sol diamantino,
lerás — olhos fixos no ás
de espadas — o teu destino…
DE FRENTE AO ESPELHO
As lições do tempo
aprendidas na tristeza e na bonança
são como um matrimônio
ao longo do qual exclusivamente se vai descobrindo
o genuíno humor dos noivos.
E como são irônicas!
Como nos assomam, tais lições!
Assustam-nos, por certo. Devoram-nos. Mas como marcam
feito ferro ardente empurrado em nossa pele
acossada já por velhos estremecimentos...
Assim são as lições do tempo
aprendidas sejam por vontade própria
sejam à força
até que algo nos diz
Pare! Eis a última lição:
é tempo de aprender a seguir.
II
William Blake
Manhãzinha: silvas.
E, quando te pões
a silvar, é certo
que virá visita...
Geralmente é dia
claro, sem presença
de nuvens, e amigos
teus também dão o ar
da graça, mas não
delicadamente
como tu, pulando
igual gafanhoto
entre os galhozinhos
da antiga romãzeira,
confundindo-se, por
vezes, com as graciosas
flores entreabertas.
E como é costume,
somes logo quando
chegam as visitas,
fazendo-as descrerem
no que é dito a teu
respeito... Somente
regressas no dia
seguinte, quando o ar
da graça esfumou-se,
tornou-se anedota
dita ao pé do ouvido.
Ao reapareces,
porém, as visitas
já terão partido,
e o que ficou são
serpentinas ao
chão, como que réstias
de um carnaval cuja
atração maior
deixou-se quedar
num ninho ignorado
de repleto frêmito
e íntimo desfile.
Cedo virás outra
vez, e partirás
para Deus sabe onde...
Quiçá, onde o vento
da chuva se esconde.
VISITAS
Se os fantasmas me cercam,
atravesso-os;
sinto-lhes o hálito e a circulação pulsando, em transparência.
Se escalam pradarias, silencio
ante o seu vulto indomável.
Se me revelam segredos, guardo-os, a sete
chaves, num baú aos porões do ar.
E os penhascos se umedecem
ao seu encontro.
Num frufru de sedas,
resgato os vestidos floridos das mulheres,
o serrilho dos engenhos,
o chapinhar dos moinhos…
E os fantasmas se vão,
suas correntes a deixarem sulcos na terra batida.
CONCEPÇÃO