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Poucas Gotas, à Sombra

Rafael de Souza
SOBREPLANOS

Estirados na grama
com as mãos atrás da nuca,
tentávamos adivinhar formas de memória
nos cumulus mais dispersos
(quase os conseguíamos tocar,
tamanha era a nossa distração).
Testemunhávamos o tempo se despir
diante de nós, entre moinhos.
Despido ele, se insinuava a réstia dos corpos,
numa leveza de pétala
cujo sentido jazia ali, na grama e nas nuvens,
além do trânsito delas a um ermo qualquer.
E uma vez aguçada a sensibilidade,
nossos corpos como que transbordavam,
congregados num só plano,
no eixo do qual éramos guiados
ao interior das sensações,
onde o gozo, as nuvens
e os arbustos também se fundiam a nós,
numa vazante noturna,
rodeada de pirilampos.

A VOZ DAS PLANTAS


Aguça teus ouvidos e ouve
— escuta o que te dizem elas.
Não são as folhas, ou o caule,
nem os galhos. É o vibrato
de certa voz alegre, quase
um murmúrio, que penetra
a firme redoma do vento.
É uma vozinha a princípio
solitária, e vai-se espraiando,
alabastrina, até que não
lhe sobram espaços a serem
vistos. Aguça de uma vez
por todas teus ouvidos e ouve
— escuta sem impedimentos
a tênue e doce voz das plantas.

PERCURSO INFINITO
Pedalo
pedalo
junto de ti
(tu estás segura
no quadro da bicicleta
sentada de lado
teu riso
à altura do meu queixo).
Em vez da brisa
invade-me as narinas
o perfume
dos teus cabelos.
E por dentro
desejo
que nosso ponto de chegada
demore
no mínimo
a rua
a cidade
o mundo
— a vida inteira
em todas as suas
subidas
e
decidas.

DITOS E RISOS
Nossos ditos jamais ficam em branco,
passe o tempo que passar. São que nem
o beijo dos dois pombinhos no banco
da praça, ou a luz de um farol além,

que na espuma das marés se detém...


Ditos como os da noite maldormida
dos nossos avós, do frágil neném
desperto, cuja fome aborrecida

só cessa com o leite materno. E a lida


silenciada — feito o dito dos velhos
que se foram — é mesmo padecida,

tão cristalina após um riso franco,


ao darmos com a velhice nos espelhos...
E rio de mim: pobre e velho e manco!

SOBREVIDA
Os melhores versos nunca
são terminados. Continuam
sendo reescritos século
após século, ano após
ano, minuto a minuto,
a momento, ad infinitum.
Cada leitor reescreve-o
com lápis imaginário
e letras imaginárias,
em papel imaginário.
Cada um o concebe em seu
plano, segundo vivências
e revivências, além
do andar das eras. E mesmo
o mais despretensioso
dos poemas pode ser
eternizado, seguindo
o coração do leitor.
Quem o concebe, talvez
não se dê conta de tal
poder, e talvez não viva
o suficiente para
sabê-lo. É uma ironia
própria do existir. Mas ela
não consegue fazer frente
a tudo que surge e esteja
fadado à eternidade, ao
reflexo da vida nas
palavras. Assim, poema,
reescreve-te a ti próprio
e resiste, firmemente,
até o sol se esconder
(pela derradeira vez)
nas campinas, ao poente.

A LEI DO RETORNO
As galinhas cantavam, sim: todos ouviam;
e dias após vibrava, de chofre, um pio assustado, seguido de outros,
os quais, quando não indicavam a aparição de alguma raposa ou
serpente, eram denúncia de um ninho próximo.
E lá ia a senhora, já bem idosa, a embrenhar-se nos arbustos,
pois, apesar da idade, tinha pernas firmes como as do povo de sua
geração.
Passavam-se uns minutos e lá vinha ela,
trazendo um punhado de ovos no regaço da saia,
e agachava-se com cuidado para não quebrá-los ao passar por entre os
fios de arame da cerca.
Desses ovos derivavam os bolos de tacho, chamados também pés-de-
moleque,
além dos bolos de trigo e mandioca,
das batidas e mingaus
e dos ovos mexidos, que serviam de mistura tanto no café como nas
demais refeições.
E quando a idosa surgia dentre os arbustos,
com os olhos fixos nos ovos e os lábios traçando um riso pensativo no
rosto, dizia
se Deus tivesse permitido ao feijão nascer naturalmente, como nasce o
mato,
não precisaríamos plantar; apenas colhê-lo à porta. Bem assim são os
ovos,
que a terra não nos dá de graça, mas precisamos tomá-los das
galinhas, as quais só nos ofertam eles se as dermos o milho colhido de
nosso próprio suor...
É PENA

É pena que nossas vidas


sejam tão breves, tão cheias
de problemas, que corramos
contra o tempo, contra os grãos
da ampulheta, contra táxis,
ônibus, motos... É pena.

É pena que em muitos sítios


a que vamos não possamos
mais sentir a solidão
que tantas vezes faz bem,
que não possamos trilhar
o nosso próprio caminho
de regresso, bater nossos
pastos, abrir novas sendas
ao fim das quais consigamos
chegar ao cimo da mais
alta cordilheira... É pena.

É pena haver tantos sonos


interrompidos, martírios
abafados nas cobertas
e fronhas de travesseiros,
tantas mães compungidas
pela ausência de seus filhos,
que talvez nunca regressem,
tantos livros nunca lidos
mais, entregues à poeira
e às traças da estante... É pena.

É pena que autores tão


jovens tenham falecido
antes do tempo, porque
muito mais podiam ter
escrito, e muito mais nossas
existências haveriam
de ganhar em profundez.

É pena que não se entenda


a causa de muitos males,
não se conheça o remédio
que cura as dores do espírito
em definitivo, não
se superem os limites
da gravidade sem serem
necessários alguns métodos
além das asas mecânicas.

É pena... No entanto, mais


vale uma vida com poucos
anos, mas muito bem vivida,
que uma longa a qual (é pena!),
por um motivo qualquer,
irremediavelmente
haverá de ser pequena.
OPÚSCULO

Sufoca o sol, mãos pálidas;


aperta-lhe a traqueia que emana a fulgente voz.

A consequência — marés penumbrosas em frenesi


abrandarão.

Dedos incontestes esculpirão as teclas


de um piano mudo, no espaço.

Como surdirá a rebeldia à penumbra, sem o sol?

Suspende tuas velas, mãos pálidas;


cede tua palidez à chama — e toca.
EPIFANIA

E se desfez o pudor;
se dissipou, sobretudo,
porque era necessaríssimo
em ocasião como aquela,
na qual todos são iguais
por motivo da fraqueza
dos ossos e do juízo.
Desfez-se afinal porque
todos somos terra e a ela
voltamos — como ela própria
repetia, sem resquício
de desgosto ou frustração:
ao contrário, com alguns
sorrisos e temperança —
e absolutamente nada
podemos fazer a fim
de impedir nossa partida.
E, com este pensamento,
tirou-lhe a roupa. Mas, quando
terminou, mal se deu conta
de que tudo já houvera
se passado, e que fitara
— ela desnuda de seu
pejo anterior — o corpo
que lhe trouxe à luz, e como
semelhante corpo ao mesmo
tempo era familiar
e desconhecido, tátil
e intocável, e que toda
a timidez aflorada
só lhe dizia respeito
ao caráter de finitude
dos corpos, tão visualmente
próximos (senão iguais)
quando se voltam à terra.
RETRATO DE ESTRADA

Os sujeitos perdidos na linha do tempo


se encontraram, pasmados
pela coincidência.
Cumprimentaram-se, foram a um bar
de beira de estrada
e puseram o papo em dia,
entre petiscos, chistes e chopes.
Quantos amores
(quantos pavores!) soltos
no esmalte do asfalto...
E despedindo-se entre abraços,
deram-se ao tempo, ao passo
que a linha deste — inexorável —
se rompeu a cada um,
sem testamento.
À BOCA DA NOITE

Mastiga-me, ó boca da noite,


e expõe-me teus dentes de vidro
através dos quais posso ver
sapos saltitando, tragando
os besouros desprevenidos
ao pé da calçada e mosquitos
tão miúdos que mais parecem
pernilongos cheios de sangue,
lentos pelo peso que levam
consigo. Avança, pois, até
o momento em que reinará
o mais demorado silêncio,
e não se ouça mais que o apito
do guarda-noturno e de um ou
outro automóvel veloz, rumo
a destino ignorado. Toma-me
num abraço de grossa treva
enquanto me rodeia a leve —
quando não muitíssimo densa —
ruína do entressono. Toca-me
as tuas célebres canções
que me evocam as sinfonias
em dó maior de Gustav Mahler
ou o uivo à lua dos cães
de chácara que meus avós
criavam e que até os dias
de hoje, parece, sou capaz
de escutar, ainda que longe.
Sim: mastiga-me; e se possível,
atira fora os meus caroços
restantes. Quem dera se, deles,
não me sobrarem mais algumas
noites de sossego e leveza,
enquanto aquela que me espera
não me vem, enfim, recolher.
VISITA ÍNTIMA

Cada um desses livros abertos sobre a escrivaninha


representa um mundo particular
o meu mundo
o teu mundo.
Para cada um de nós reinventa-se uma visão alegórica
de temores e festejos
de belezas e feiuras
de dispersões e junções
e de tantas outras especificidades a nós condizentes
e nossas vivências
e nossas essências
que me entediaria alistá-las uma a uma.
Basta refletir que para além do fato de representar um mundo ou
habitação
cada regresso a esses mundos e habitações também se renova
como um museu a que visitamos em intervalos regulares
e sempre que o percorremos ele parece diferente
composto por peças diversas
mas que evidentemente nos aprouve revê-lo
nos aprouve revivê-lo
como se fossem sensações que se revigoram indistintamente a cada
nova visita.
E aqui
neste cômodo familiar que mais habito
outro eu incompleto
acaba por se renovar também
ao sabor de cada reencontro.
À POETA DO RIO

Brasileira de canto transcendente


e nobre, de influência sobrante,
sabes que teus versos estão diante
do tempo? E o teu suspirar mansamente

cantado, em lábio que assovia e sente,


o romanceiro do grave levante
de Minas, sem mencionar o instante...
No entanto vives, numa torrente

margeada por íris vespertinas.


Neste nosso torrão, segues pairando
a teu próprio compasso... E como trinas?

Qual ave pescadora e sorrateira


que flana sobre a água e vai, ou um bando
de cisnes-negros que rompe a fronteira.
AINDA BEM

Ainda há boas pessoas no mundo,


que bom que há; das que auxiliam idosas
a atravessar a faixa de pedestres
e alimentam cães de rua sem nada
exigir em troca. Que bom que existem;
das que praticam o bem sem olhar
a quem; que, mesmo tendo consciência
da ingratidão de muitos, nada esperam
a não ser sentirem-se satisfeitas
por agir de tal modo. Ainda bem.
Como seria bom se essas pessoas
se multiplicassem feito gotículas
de intensa tempestade se espalhando
na terra esburacada, e de repente
se convertessem em via de regra
ainda maior, e as exceções fossem
cada vez mais raras. Que bom seria:
tão bom, ou mais, que a multiplicação
dos pães e dos peixes e das goiabas
a pender das goiabeiras, do clima
propício a um passeio matinal,
a um alegre diálogo com quem
há tempos não vemos e conversamos.
Mas que bom, em todo caso, que ainda
há tantas boas pessoas no mundo...
TRAGO COMIGO

Trago comigo
este homem que não sou
à visão dos juncos —
homem desfibrado, cujos olhos
são harpias,
e os pés, castelos de areia.
Trago comigo
esta sombra de eco,
este lenço puído ao bolso,
em que beijos se estamparam
e sumiram, unânimes.
Tênues geometrias circulando livres,
como espirais...
Ao cerco da enseada trago comigo
o sino das marés,
o pêndulo das orcas,
o choque das enguias
e a murmurante fumaça de um charuto
— trago. Trago comigo
os aguapés por correr
sem foz ou âncoras,
as serpentes aladas
de uma civilização a ser descoberta,
obsoletos teares de um navio
por afundar: trago.
E me devendo. E enxergo
através do tecido
o que ocorre,
o que foi
e o que está por vir.
DESAFIOS

Vê, remador,
se tens pendor.

Os bons poemas
precisam do tempo,
mesmo que lento
e sem esquemas.

Por sua vez,


os maus não.
Basta a emoção
pra pequenez.

Vê, remador —
sabes compor?

Tu, que me lês,


tenho razão?
Não é em vão
mate-xadrez.

Enquanto remas,
sigo aqui vendo
o casamento
das seriemas.
CANTEIRO INTERNO

E eu
que tinha uma planta dentro de mim
pensa ele
sorrindo e sentado na cadeira de vime
enquanto lhe acarinha o rosto um vento vespertino
Eu que
quando engoli uma semente de laranja
servi de canteiro para uma muda
que cresceria em meu interior
como esclareceu minha mãe
obrigando o sono a se afastar ao escurecer
e fazendo-me ter pesadelos
ao que ela depois se desculpou
e me revelou a verdade
E seu sorriso alarga-se ainda mais
na presença do neto
de oito anos recém-feitos
que acaba de chegar
e lhe acena do portão.

II

De suas primeiras memórias,


a que conserva com maior afeição
é uma (ou melhor, várias) em que seus pais
se acocoravam a seu lado
e apontavam para algo minúsculo ou distante,
que dificilmente seria visto por si.
Aquilo, lembrava-se, despertou-lhe desconfiança
de começo, pois era como se seus pais quisessem ser
pequenos, iguais a ele...
Mas agora compreende que se agiam dessa maneira
era porque o amavam de verdade, e por isso
queriam estar à sua altura —
como hoje fazem os seus filhos e netos,
que se acocoram à altura de sua cadeira de rodas
para lhe mostrar o sutil pouso de uma mariposa
na flor de um cacto da cerca.
DEPOIS DA GUERRA

Não pensemos em vingança:


o sangue já derramou...
Verde: eis a cor da esperança.
Sem mortandade se avança,
Paz é tudo que restou.

Vai — vai e dorme, tenso corpo,


com arranhões de ferida,
tal galho crescido torto
pobre (nada) feito douto,
água em pedra convertida.

Se a paz vem, que farei dela?


Quis-lhe chuva corrosiva
no Éden das árvores de Eva.
Foi quando a bigorna fê-la
(pela vertigem) esquiva.

Com razão? Ambos não têm;


nenhum será vencedor.
E não acharão ninguém
deste planeta ou do além,
pois partiu o executor...

Gerações foram ao solo,


crianças aos pés de pais
mortos. Porém, onde pô-los?
No céu, tanto se viu corvos:
já não se escutam os ais!

Do que lhes sobrou, jardins


em floração, hipocampos
sobre pantanais carmins,
libélulas lá (e afins)
pairam, matizando campos.

E a guerra? Afinal findou...


Ouvem-se salvas de palmas,
um canhão por cá passou,
cavacos — e a morte? Xô!
Finalmente, tu te acalmas...

Vives, então, sem o medo


da morte dos inocentes.
Repara: estás todo ledo
e te levantas mais cedo
com lábios e olhos frementes.
NECESSIDADE

Nesga de sol, apenas,


precisamos, sem sombra
de dúvida. O que assombra:
viver a duras penas.

Além disso, água doce


para terra molhada —
mais um degrau na escada
é como se nos fosse.

Nosso pobre canteiro


cá bem atrás, em tal
lugar, só no quintal,
em sítio derradeiro.

Regadores — pra já!


Melhor será enchê-los.
Logo verás quão belos
nós iremos ficar.
NOVOS TEMPOS

Os tempos de susto passaram.


Eis (e como é bem-vinda) a época
dos indivíduos que não temem
o que vem pela frente, pelas costas
ou pelos flancos, que são imunes
às amarradas dos bodes silvestres.
Não: não é que sejam apáticos.
É que a vida os ensinou, no tempo certo,
a não recear surpresas, a não sofrer
pelo que não se deve, ou seja,
a não conservar vãs expectativas,
vãos temores e amizades, vãs utopias.
Por tal razão eles amam sabendo
que o amor acabará, caem na certeza
de se erguerem do charco, mesmo
que com as roupas sujas. Se são
indivíduos de ferro? Não, são os mesmos
de carne e osso, mas de carne bruta
e osso calcificado. Têm mãos firmes,
cheias de calos das alavancas pesadas,
que tanto serviram para cavar buracos
nos currais da fadada existência.
PRÉ-VISÃO

Outrora
os hoje anciãos
miravam o céu
à noite
procurando a estrela d’alva.
Se ela estivesse próxima à lua
era certo que o ano seguinte
seria de abundância
e sobraria pastagem para todos
os animais.
Mas se estivessem longe uma da outra
queria dizer que
maus tempos estavam por vir.
Ainda hoje
entretanto
alguns desses idosos
acreditam em tal tradição
a qual para eles é muito mais certeira
que as previsões diárias
de tempo.
E quando a estrela d’alva
jaz próxima da lua
o que mais impressiona
não é a margem de acerto
da experiência
nem a iluminação
daquela
mas o contraste
do fulgor dos astros celestiais
com o dos olhos
terrestres.
TRÊS ABELHAS

Acesa a lâmpada, certa abelha africana


seguiu a seu encontro, como repetisse
“É manhã!”. Ficou investindo contra a luz
em seu zino, devido ao calor que sentia.

Isto causou-me forte impressão, sobretudo


porque me pareceu que um resplendor minúsculo
pra ela era tão intenso (até mais) que a nossa única
estrela da manhã, tornando a noite dia.

Por instantes, eu quis ser a abelha, sutil


em minhas sensações. Quando apaguei a lâmpada
e ela se foi, senti-me oco por certamente
não continuar a vê-la, numa nostalgia.

II

Nos dias do mais insuportável calor


habito os troncos das árvores,
como quem se abriga de uma tempestade
numa casa prestes a desabar.
E do ponto em que me abrigo
direciono meus olhos à extensão oliva
fronteira a mim, onde alguns seres diversos
ficam-me próximos, como que desfilando.
Uns parecem comigo, outros são o oposto.
Se me veem ou não (parece que sim),
isto me é indiferente, pois é como se não vissem.
Insinuam-se diante de mim, namoram-se
descarada e inocentemente, parecendo
se confundem com o fulgir do orvalho.
Quem me dera não ter apenas eu aqui...
Se bem que a solidão nessas ocasiões
é quase um presente dado de graça, com graça.
Mas, se a natureza completa-se a si própria,
por que eu não me haveria de completar
também, com ou sem companhia?
Reflito sobre isso enquanto um colibri
se aproxima de mim, paira e foge,
confundindo-me com uma flor qualquer.
E percebo que não tenho perfume
suficiente para ganhar-lhe um beijo.
Não me lamento: a natureza beija-me
com seus tenros lábios de ceiva e gume,
enquanto espero que minha companheira
venha, com o tempo, a meu encontro.
Quando vier, seremos nós que desfilaremos
sem o menor pudor de voar e amar.

III

Eis, aqui, a flor do maracujá,


tão sibilina... Ela é neve nas bordas,
um nuance entre violeta e roxo
na corola, como que à espera de ser
fertilizada. Só nos falta a abelha.
Chamam-na mamangava; seu papel
é fecundar os frutos por nascer,
um por um. Se ela não vier, porém,
é necessário que se faça tudo
manual e detidamente, até
que não reste nenhuma a ser passada
a infusão que visa substituir
o pólen. É final de primavera,
pronto começará o verão; é
chegado o tempo, chegado o meio
do dia... Até o começo da noite
precisa-se agir, para que a colheita
não corra o risco de se perder, ou
que a qualidade dos frutos não seja
abaixo da esperada... Mas já se ouve
o zunido! Sim, meus senhores, ela
veio em busca das flores por cair,
veio polinizá-las, numa tal
gentileza que tão bem as abelhas
sabem praticar, sem nada exigir.
Muito em breve poderemos provar
o néctar dos frutos que brotarão,
gordos, de toda a nossa plantação.
DO QUE SE PRECISA

E todos nós, sem exceções,


diante do peito que sente,
nos embriagamos com vinho
sem sequer erguermos a taça.
Pois o que seria de nós
sem o nosso peito que sente?
Que seria de nós se o peito
pungido não quisesse sentir?
Seríamos pedra de calçada,
divindade ausente de preces,
percussão sem que houvesse mãos,
uma borboleta argentina
perdida entre panapanás
tombando arabescos de pólen,
seríamos um grão de sal
achado no meio do Atlântico.
Ora, mais do que no passado,
é imperioso a cada um
apenas um peito sensível,
que atente para a mutação
dos casulos por rebentar,
para a queda das tanajuras,
e possa entrever, em pleno auge,
o último símbolo da paz.
VISTA DA CIDADE

Há nessa insensibilidade
mecânica e prometedora
um moroso vagar de instâncias
e prédios com elevadores
enferrujados. E os patamares
cedem espaço ao receio
de alguém tropeçar lá de cima.
As janelas oferecem uns
contornos longínquos de nuvens,
e nos esgotos encardidos
se movem as patas dos ratos.
Longe, drapejam as cortinas
na brisa ebúrnea tal tropel
sobre a cerração de planícies
rosadas. Trata-se de tela,
ou antigo filme projetado?
Não; é a vida palpitando,
frenética e em voo, lá fora.
UMA GARÇA PERDIDA

Era, antes, um ponto invisível sob as nuvens.


Depois foi baixando, até que se entreviram as asas,
o pescoço enorme, além do bico.
Estava com muita fome: à distância parecia um esse de contornos
delgadíssimos.
E quando avistou os cavalos deu um mergulho de nadador naquela
direção.
Na piscina de seus sonhos, cuja cor da água se confundia com o pelame
lustrado
dos outros bichos, abundavam peixes cinzentos presos ao couro
(a maioria peixezinhos cheios de sangue, a ponto de explodir)
que lhe encheram o papo em questão de minutos,
enquanto os cavalos, satisfeitos a relinchar, seguiam o trote.
De repente, a garça voou, invisibilizando-se.
Não houve agradecimento, nem um sussurro ou adeus.
Só um longínquo rumor de folhas.
DESTINO

Tantas coisas a lembrar


e outras tantas a esquecer...
Uns querendo a falta do ar,
outros querem é viver

durante anos e mais anos…


Outros, reinos e castelos
buscam. Alguns, mais humanos,
têm anseios mais singelos:

algo pra comer, vestir,


e pouca coisa além disso.
É claro, paz ao porvir...
Quando vão plantar, o viço

do arroz, do feijão, do que


mais no chão houver brotado.
Não dissimulam; só creem.
Estão num mundo encantado

onde — a despeito das dores,


dos medos e dos escombros
— existem coisas piores
e tantos a ofertar ombros

(e não de ombros) pra os que caem;


ou, senão, caem consigo.
Então, para e repara: há em
qualquer lugar um abrigo

desses com cobertas quentes,


onde poderás dormir
durante as longas enchentes,
até a névoa sumir…

De manhã regressarás.
E, sob o sol diamantino,
lerás — olhos fixos no ás
de espadas — o teu destino…
DE FRENTE AO ESPELHO

Aquele era teu


pincel, com o qual
besuntavas o
rosto com espuma
de sabão de pedra.
E aquele era teu
espelho, à visão
do que (pendurado
num prego à parede)
teu rosto se punha
suspenso e sozinho;
e, buscando um ângulo
melhor para o aparo,
juntavas gilete
— espuma mexida —
navalhete e espelho
a um muro de adobe,
e davas início
a um meticuloso
ritual, ao cabo
do qual tua face,
mesmo que marcada
por pequenos cortes,
parecia-nos nova,
de um outro sujeito…
(Quanto a teu bigode,
aparavas as
pontas; não pintavas;
Melhor ofertar
à idade o seu
verdadeiro aspecto.)
Davam-te, no mínimo,
dez anos a menos,
e rias alegre,
mas sem vaidade,
pois sabias muito
bem em que passo ias.
Dizia-nos, logo,
que quando criança
querias a barba
mais do que qualquer
outro feito, e que
antes dos quinze anos,
totalmente imberbe,
já te barbeavas
enquanto tomavas
banho, às escondidas
de teu pai. Aí
tu nos revelava,
não sem embaraço,
o arrependimento
que desses longínquos
tempos conservavas…
E ias dormir, pois
vergonha nenhuma
(falavas direto)
consegue durar
após umas horas
de tranquilo sono,
em que os pensamentos
se fazem vertigem,
e as recordações,
meras fantasias,
como que espantalhos
enterrados nas
dobras do passado.
DESPEDIDAS

Nunca me soube despedir...


Durasse o tempo que durasse,
preferia o nunca partir;
ou, então, que ficasse o impasse

entre permanecer ou ir,


fosse no agora ou no porvir...

Sendo um amigo ou um parente,


quando se ia de minha casa,
me deixava como que ausente,

e eu, triste, queria sumir...


Nunca me soube despedir.
LIÇÕES

As lições do tempo
aprendidas na tristeza e na bonança
são como um matrimônio
ao longo do qual exclusivamente se vai descobrindo
o genuíno humor dos noivos.
E como são irônicas!
Como nos assomam, tais lições!
Assustam-nos, por certo. Devoram-nos. Mas como marcam
feito ferro ardente empurrado em nossa pele
acossada já por velhos estremecimentos...
Assim são as lições do tempo
aprendidas sejam por vontade própria
sejam à força
até que algo nos diz
Pare! Eis a última lição:
é tempo de aprender a seguir.

II

De uma hora para outra,


passei a admirar as formigas em sua organização.
Como podem ser tão disciplinadas, se nem dormem?
Como podem obedecer a uma longa fila indiana sem se enfastiar
ou se indignar?
E como esperam, também sem queixa, a época
de ganhar asas que as conduzirão aonde quiserem?
Fascina-me, parecidamente, o modo como
todas investem em pés sem prudência,
como a proteger algo que lhes vale mais que a vida...
E eu, totalmente confuso, tento me organizar
entre algumas folhas de papel
e meia dúzia de compromissos!
SONHO INSÓLITO

Se da linhaça, do sorgo e do trigo


nada se pode plantar ou colher,
de modo semelhante na colher
nada haverá de pousar (eu vos digo)

e a fome deverá vencer... Irrigo


o meu pomar nas horas de lazer
e sigo vendo — a me satisfazer —
as folhas surgindo, como no antigo

período de fartura... Sozinho,


sonho em penedos não muito distantes,
onde haverá alimento de sobra

inclusive ao transcurso do caminho


e, como pedras, sonho diamantes
e ouro a tremeluzir na água salobra...
ESPERANÇA
Can a mother sit and hear
An infant groan, an infant fear?

William Blake

Todas as noites, antes de dormir,


ia até a mãe pra bênção pedir...
Quando (sem aviso) ela se foi, não
mais o fez. E tomou a decisão:

toda noite rezaria por ela


deixando (enquanto isso) aberta a janela.
Nessas noites, não se sabe o porquê,
não a fechava... Como que à mercê

da aragem, acordava em pleno escuro


e, mirando o céu de estrelas maduro,
assistia ao tremular das cortinas...

Era como se visse as mãos franzinas


da mãe... Pensava: “Voltarei a vê-la
um dia, sob a forma de uma estrela”.
VIM-VIM

Manhãzinha: silvas.
E, quando te pões
a silvar, é certo
que virá visita...
Geralmente é dia
claro, sem presença
de nuvens, e amigos
teus também dão o ar
da graça, mas não
delicadamente
como tu, pulando
igual gafanhoto
entre os galhozinhos
da antiga romãzeira,
confundindo-se, por
vezes, com as graciosas
flores entreabertas.
E como é costume,
somes logo quando
chegam as visitas,
fazendo-as descrerem
no que é dito a teu
respeito... Somente
regressas no dia
seguinte, quando o ar
da graça esfumou-se,
tornou-se anedota
dita ao pé do ouvido.
Ao reapareces,
porém, as visitas
já terão partido,
e o que ficou são
serpentinas ao
chão, como que réstias
de um carnaval cuja
atração maior
deixou-se quedar
num ninho ignorado
de repleto frêmito
e íntimo desfile.
Cedo virás outra
vez, e partirás
para Deus sabe onde...
Quiçá, onde o vento
da chuva se esconde.

QUE TODOS SAIBAM


Não nos enganemos:
os esqueletos também bateram cabeça,
sem querer deixaram abertos portões,
por pouco não caíram, distraídos,
ao pisar em falso, ou foram
atacados por um terrier.
Numa noite de sereno não levaram
casaco ou guarda-chuva,
tinham contas de luz atrasadas na caixa de correio
e pelos de gato soltos no sofá.
Em compensação, tiveram motivos para sorrir,
amores passageiros, fortes alergias,
gripes e enjoos intensos que os impediram
de ir à aula, à festa; e dividiram
algo de comer, prestes a acabar...
Hoje, é verdade, tartamudeiam,
num roçar de ossos;
são mais seletivos em matéria de amizade
e deixam conselhos de prudência.
No armário, viradas para baixo, há fotografias deles;
no cimento da calçada uma data inscrita;
e no muro uma chance de fuga.
Restam vidraças com rachões ao meio,
pias e vasos entupidos,
gavetas de cômoda prestes a cair
— sem falar de uns cintos com fivelas de metal,
uma bata cor de piche,
antigos relógios de parede e de pulso.
Para eles as horas não passam,
os olhares não sondam outros olhares
à procura de correspondência,
e as pontes não são mais atravessadas
pela corrente dos rios, sequer a pé...
Só lhes resta a si próprios,
a roupa do corpo — e olhe lá.
Ou um gentil parente que lhes visite
nas datas alegóricas do ano.
Mas podem crer: os esqueletos
também bateram cabeça.
Caso contrário, não seriam quem são,
não chegariam a tanto,
não venceriam as dores do mundo,
e lágrimas continuariam vertendo de seus olhos comovidos.

NOVA RECEITA VELHA


Eram recém-casados em condutas
próprias de agrado mútuo, das quais quase
nunca decorrem atitudes brutas,
ora sim de carinho que extravase,

a todo custo, as primeiras permutas.


Foi quando a mulher, tremendo na base,
serviu-lhe o prato. “Mas por que relutas?”,
ele quis saber. E, vendo outra frase

(desta vez elogiosa), sorriu.


Após uma careta indisfarçada,
acabou lhe dizendo: “Não faz mal,

amor... Não te preocupes; ouviu?”


E completou, perto de uma risada:
“Da próxima vez, tu pões menos sal.”
POUCAS GOTAS, À SOMBRA

Tão solitárias em suas cintilações;


tão submissas ao poder das intempéries,
à evaporação tácita da umidade…
Parecem pedir socorro, os braços erguidos
— num trejeito de misericórdia —
como a rogar que caiam mais,
que a neblina não se dissipe e revele,
da multidão de nuvens,
a sólida palma da mão do dia…
Poucas gotas, à sombra:
é quase certeza que não estão preparadas
para o desfecho do alvorecer;
e portanto ali repousam, suas pupilas
descerrando as cavernas do sono.

VISITAS

Se os fantasmas me cercam,
atravesso-os;
sinto-lhes o hálito e a circulação pulsando, em transparência.
Se escalam pradarias, silencio
ante o seu vulto indomável.
Se me revelam segredos, guardo-os, a sete
chaves, num baú aos porões do ar.
E os penhascos se umedecem
ao seu encontro.
Num frufru de sedas,
resgato os vestidos floridos das mulheres,
o serrilho dos engenhos,
o chapinhar dos moinhos…
E os fantasmas se vão,
suas correntes a deixarem sulcos na terra batida.
CONCEPÇÃO

Nesses tais impulsos de concepção


em que me confrange o desassossego,
o resto do viver me soa vão —
e foco a tarefa a que me delego:

escrever meus versos, esses que estão


gestando dentro de mim… Como cego
a andar no escuro, acho o lápis, então;
e, como não acho o papel, me apego

à memória, onde consigo incubar


as mais inamovíveis vastidões
de uma manhã ou de um qualquer alento.

Nessa pedra de salvação sustento


as agruras do mundo, entre clarões
de relâmpago à boca do luar…

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