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in Os confins de um Lapso (2023):

desconstrução,

uma revoada de palavras simples,


guardadas
ao acaso do bolso das calças
como pedras, como vagas.
Um veleiro antigo
ou as mãos brandas do destino,
esfolemos a preceito as suas
almas danadas.

serenidade urbana

sentado para um café, aguardo.


as pessoas vão ocultas nos seus medos
– deixai a manhã da cidade entrar sozinha.
que me contem os segundos e a conversa alheia

– reconheço-vos a dignidade de serem homens.

nesta distinta luz de pedra

[este depois do nascer, que não conta]

o que é quem escreve, silêncio impossível


no cio das letras
[não é só o escritor, não é só a linguagem]
quando uma parte de si deseja outro lugar
outra procedência, outra espécie inútil.
e a outra parte ser desigual de si próprio.
in O sol é secreto (colectânea, 2020):

deambulando,

pouco mais que o ar vazio


era um andarilho
a saltitar
vagabundos
de um silêncio por outro
nas pedras descalças
da rua.
choviam pássaros,
ao passar da gente.

cartas e destinatários,
a exaustão disponível.

deviam ser as bicicletas


a contemplar o futuro,
os olhos
de um gato,
um animal que sorri.
o silêncio
dava pulos
infantis, eram bonitos
esses sorrisos
que aprendíamos.
in O voo da flor enquanto rosa (2019):

simplicidade,
sem medida prévia, a vida acontece-me
numa sedução de tempo e acaso.

---

no poema só
passar do silêncio
antiquíssimo

---
uma nuvem que passa, destroçada.
sem estranheza
a manhã é a minha irmã mais querida

---
supúnhamos,
os lábios em silêncio
aberto
que ainda prendem a chuva

ao cair do vento
o abraço
aperta as folhas infinitas

---

o que é maior que a vida


além da vida,
a erudição dos olhos, talvez.

---
uma casa constrói-se com poucos corpos
pouca cor, que seja ela branca
porta, janela à solta da alma

um quarto suficiente, um lume


a volúpia e uma luz para a noite.

---

éramos um mar irreversível, sem princípio visível

daqui vê-se o mundo


e para além do seu fim

---

tudo o que sabemos


somos nós
sem palavras alheias,
aí existimos

---

no eco dos seus passos


poemas que escrevia
rente à luz
ou à lucidez.

---

ascensão
círculo mágico das coincidências
à hora prometida
aqui te deixo tudo

---

pelo Outono que tem Lisboa

o que o Outono fez às folhas


faz chorar as cores
– que o digam os gatos e os pássaros vadios
e Lisboa gosta de chorar as suas folhas
as tabernas também gostam do Outono
e gostam de Lisboa
que chora folhas e as suas cores caídas
quando o Outono é uma pequena terra cruel
– que o digam os gatos que voam os telhados
de Alcântara
hão-de os pássaros voltar a ser pássaros
e serão as asas da cidade

---

no eco dos seus passos

poemas que escrevia


rente à luz
ou à lucidez.
in Oblíquos (2018):

poema da saudade orgânica

sinto de ti uma saudade orgânica que é


dentro do sangue
o que me vai por dentro dos olhos. sim, esta
é uma saudade de Homem por onde se sente
aquela grande lonjura ausente, um sítio de
coisas pequenas, cheio de matizes de dor
por onde me calo numa boca fechada aos
beijos; eis que sinto uma saudade pulsante
de órgãos vivos. e sou navio em terra seca,
sou eu entre um brilhante colar de espinhos
hermafroditas e um promontório a olhar o
mar, um perfume verdadeiro e a justa
memória da luz – já tinha dito, mas repito-o
até o mundo se cansar: sinto uma saudade
orgânica de te pulsar madrugadas!
escuto-te numa distância de vozes e nas
palavras que disseres,
sejas então em mim a seiva líquida e todas
as ilhas-terras do existir, pois só assim
te quero a latejar ânsias eternas de escuridão
e claridade. depois, enfim – depois, só o mar.
INÉDITOS:

silencioso canto da cidade,

envelheço no aroma da noite


os olhos nómadas
sem a natureza congeminada.
envelheço na eterna solidão
dos cães,
entre velhos e novos sonhos
de antiguidade.
sou pedra entre a velha pedra
e as entrelinhas
são as de uma luz arrancada
à existência de hoje. O sorriso
(que adivinhas) foi esculpido
com o final absoluto da tarde,
era uma paisagem destruída.

serei definitivo
vivo (vagarosamente vivo)
a instalar-me como só o tempo
– aclamem-me, por deus!
já não me distingo da luz. Então,

escarneçam comigo a maresia


o sangue do céu desligado
do alcatrão
a eterna consciência de ser:

– a rir, irrompe-se das palavras


é o espontâneo escarnecer do
breu. Veio à boca pelas ruas
com gente,
– era um beijo cheio de noite.
poética de uma Lisboa desbravada

UM VERSO, SOU UM VERSO:


que me cumpra sempre
e eternamente me cumpra.
o ideal seria ser de frases
perfeitas ou ser aquelas
construções de pó velho
SEM PALAVRAS ORIGINAIS.

com a mão no horizonte da cidade,

no decote
do teu súbito
vestido
um perfume
cheio de viagem,
era eu pelas
contracurvas
da paisagem.

moldura da origem

que farias se soubesses


que há palavras que são náufragos
e outras que são servas da surpresa
escravas famintas do significado?
que há ainda palavras que se colam
ao que existe entre nós e o mundo,
e que são a voz delicada das águas
enfileiradas como pássaros dóceis
num constante vento em migração?
que há virtuosidades que dizem sim
e outras que sibilam versos antigos
e fazem descobrir paisagens novas
ao fundo da rua. dúvidas sinceras
pelas esquinas sincréticas do barro,
no empedrado onde nascemos?
o poema que te entrego,
o privilégio em ser pássaro de asas
abertas.
e assim se percorre a decisão
de ser livre
como se fossemos uma água
a correr, a voar
palavras macias
e um fascínio de escrita acordada
a encher
todas as infinitas ruas da cidade.

coisas de fotógrafo

não dispunha do vagar suficiente, sequer do despacho


de um satisfatório fundamento para o confirmar.
a utopia anunciara-se pela realidade. ganhou assim
a noção da veracidade pelo foco neutro de uma lente,
várias eram as perfeições de um olhar: sabia olhar bem,
olhava de perto e de longe, atentava, e era enorme o
seu encantamento das coisas simples, próprias da Terra.
a existência dura mais que um dia, mais que uma luz
sobre o sujeito. dizes que são melancolias, inutilidades?
ridícula partícula de pó, este é o silêncio. creio que ainda

não percebeste nada.

relógio de sol

perdido na inexplicabilidade da existência


sem destino, sem cuidado

passei por briosas praças cheias de gente


amantes que são, da escuridão
---

se não te sorrir,
é impossível viver amanhã

----

consigo tocar com leveza a ponta do cabelo,


esbranquiçar o tempo necessário
para a gaivota
deixar de ser no céu
o horizonte de um perpétuo movimento

---

em oferenda
ainda não aprendi a dançar o silêncio

---

inventei-te nos olhos das estrelas.


inventaste-me na constelação do mar.
no reflexo, o amor.

---

janela, abri-vos à luz que existe


um universo rente à solidão,
imprescindível

habilidades

constelações de alta
tensão. [é só uma luz].
a lâmpada ficou acesa
desde a noite anterior.
uma cidade estrangeira
conclui a minha espera.
conversa de prostitutas, sobre ilhas desertas

a cidade chamem-lhe lisboa


vai à deriva
algures, dentro de mim.

uma jangada marginal


moderníssima
encerrada
maquinalmente
numa narrativa de silêncio.
uma claridade impertinente
assim me dizem,
asfixiada.
de paredes brancas ao acaso
e magotes de criaturas dissonantes
a vaguear ao sol.
e gente velha sem enorme voz
garrote
de adjectivos morais,

um manto tão abstracto quanto


colossais obsoletas conchas
distendidas sob a tranquilidade
púbica da luz
a sua vontade de Primavera

muito vidro inóspito,


onde estão as telhas, o barro
as inclinações antigas
para satisfação de pássaros
e gatos? espinhaços de árvores argutas
que já tiveram nome de gente
antes de serem pessoas, com sonhos.
as caravelas verdadeiras,
fragatas lhanas e negras,
as faluas perplexas dos homens.
os seus ofícios.
eis a cidade incessante,
infatigável
que cresceu para fora e de si
se desencontrou

era perto,
muito perto do lugar
onde as minhas águas serenas
se reencontram com o mar.
o mar não me cansa,
mas já não me restam
ilhas desertas.

na cidade, casa antiga

quando vier
chegarei pela súplica das tuas mãos
e nada haverá entre o nada
uma escuridão descia das árvores
inclinando-se sobre a janela, como faz o musgo e o jacarandá,
era como chegar a um sítio secreto

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