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Antologia Poética – Eucanaã Ferraz

Eucanaã Ferraz
A POESIA NOS TEMPOS DE HOJE

In: Livro primeiro, 1990 PASSEIO

Na entrada do cinema, o drops


LUGAREJO
pode ser misto ou de hortelã,
O trem muge o longe. o misto tem gosto de frutas,
Os vagões levam toneladas de horas o de hortelã de hortelã.
e astros enferrujados.
As pessoas são muitas pessoas.
Bicho de ferro atravessando
a facão o lombo do dia, enchendo Dentro do cinema, quanto tudo é escuro
de metálica melodia a vida são todos anônimos e mesmo em inúmeros
dos homens dali. assim como são, ficam uma só pessoa
no escuro, como se não fosse ninguém.

18.05.1961 QUANDO EU MORRER

Nasci num lugar pobre, Pai, quando eu morrer,


onde o hospital era longe, ficarei rosa como uma menina
onde era longe a estrada
 (você não deve ralhar ou querer que eu minta
e os anjos não conheciam. porque tudo será exato, sem mesmo carecer de
ensaio).
Nasci mês de maio, azul
de tardes macias, Quando eu morrer sou tranquilo
de pai José, como um príncipe que beijasse
mãe Maria. a boca do nada (você vai achar bonito
esse quadro de tintas longínquas).
Batizaram-me: Terra Prometida.
Terra pobre, onde a felicidade passa Pensarão que sou uma menina, um barco,

longe, mas daqui eu a vejo
 um pombo. Todo o meu doce virá à tona.

e todo o meu corpo brilha. Veja pai, sou um mineral,


intacto e sem passado.

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Antologia Poética – Eucanaã Ferraz

O OVO Mas, por entre o estridor


de soldados e funcionários,
O ovo é seu próprio ninho
cava uma saída:
ele próprio morador e casa
o próximo poema
pilotis e teto de si mesmo
(promessa de delicadeza e silêncio)
habitante e arquiteto.
– ouve cantar uma cereja.

In: Martelo, 1997


NOTÍCIAS PARA GRAÇA E QUITÉRIA

ACONTECIDO As terras estão lá


e os céus de sempre.
Como quem se banhasse
As casas são as mesmas,
no mesmo rio
pequeninas, pele e osso.
de águas repetidas,
De ser feliz, não se sabe,
outra vez era setembro
nem há notícias de Deus.
e o amor tão novo.
Usinas, canaviais,
Iguais, teu hálito mascavo
como um dilúvio.
e minha mão inquieta.
Morrer é facil
Novamente o quarto,
e não há justiça.
a praça vista da janela,
O chão que vocês pisaram,
teu peito.
o azul que seus olhos viram – eternos.
Depois eu era só - vê -
A mãe, o irmão,
sob a chuva miúda daquele dia.
eternamente, dormindo
no Olho d’Água da Pedra.

PAISAGEM PARA ANNA AKHMÁTOVA

O corpo, ainda corpo, FORMA


sabe de cor
Palavras, arrumá-las
a dor. Dizer adeus,
de tal jeito
carpir, esconder,
– cilada –
bater palavras contra o muro.
que se possa
Ruas de São Petersburgo
apanhar com elas
sob a neblina – o corpo
um sentimento que passa.
sabe de cor
onde se morre.

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Antologia Poética – Eucanaã Ferraz

ROMÂNTICO que nossos olhos


podem anotar
Amar noutro mundo
sem complicação,
que não este.
sem gula ou fastio.
Poder equilibrar – perfeito –
um prato sobre um alfinete.
Mesmo da morte a repentina
Equilibrar um livro, uma casa,
ternura, se vista de tal modo:
sobre um alfinete.
num vaso, haste, pétala
Outro mundo. Sua maquete:
que cede.
palavra e cavalete.
Outro: este, mas
Sobre a cômoda, sobre a mesa,
em falsete. Sete vezes
belezas que um nosso gesto
mais belo, mil mais leve.
pode anexar ao peito
Setecentos o mesmo gesto – amar –
sem grande peso.
e, no entanto, não se complete.
Um rio que se repetisse,
Ou, ainda, o peso nenhum
um Tibete ameno, translúcido – e seu fundo,
de quando nenhum atavio:
em que não se chegasse,
tábua
era jamais a morte.
sem nada em cima.

POR VEZES, NÃO RARO...


In: Desassombro, 2001

Por vezes, não raro,


basta um gesto, sua borracha,
UM FIO DE LUZ... um quase nada de alvaiade,
um rasgo e só.
Um fio de luz:
tesoura que baste
No entanto, o carvão
para tornar nítido
de certas palavras,
o que
de alguns nomes,
não se apaga fácil.
sobre a cômoda,
sobre a mesa:
Afogá-lo, inútil:
um lápis, uma pera,
o maralto traz
um cálice,
de volta cada sílaba

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em sal fortalecida. o tempo estreito de um laço


perfeito entre dois
Enterrá-lo? Logo renascerá:
árvore alta, trigo, praga. touros ou duas flores,
No fogo, irrompe a letra, entre dois lugares
inda mais sólida liga.
retornados ao um.
Há que esperar do esquecimento
o dente miúdo
e lento roer a nódoa na língua, In: Rua do mundo, 2004
o travo no peito.
UM MUNDO
EXPLICO-TE...
Onde montanhas não são levantamentos

Explico-te íngrimes de terra. Onde rios não são cursos

o que é um eclipse: de água que se vão lançar no mar,


nos lagos, noutros rios. As casas

dois navios, maralto,


miram-se no rosto não têm paredes ou teto, ruas
não são vias de acesso, caminhos não vão

um do outro, de um modo que de um ponto a outro e os pontos não põem

já não sabem, ao certo, o que são: fim, não abreviam, não são laçadas na malha

se dois homens, da lã ou nas voltas da linha. Por sua vez,

se duas mulheres, linhas não são fios, nem fibras, nem traços.
Não há sulcos na palma das mãos. Não há frentes

se dois sóis ou duas conchas de combate. Linhas não são rumos

que se abrissem
ou normas. O Equador não é o anel extremo do globo

para tecer com a saliva e as superfícies esféricas não se chamam esferas.

uma da outra Não há moedas. O espaço ilimitado, indefinido


no qual se movem os astros é a terra, enquanto

a árvore rara do instante,


que não vive mais que acima das cabeças, pregados pelo horizonte, densos,
amarelos, vão jardins em movimento. Venta.

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Há um vento constante, há um canto constante. enquanto os rios, erráticos, desaguarão


Pode-se ver a música, de terraços, belvederes à porta dos edifícios da Senador Vergueiro.

e torres instaladas para tal finalidade. Mundo


em que se ganha o que se perde. GRAÇA
Toda pedra é pérola. Onde o amor
Não saberia dizer a hora
é entre duas mulheres.
em que me desfizera de tudo o que não era teu,

quando cada coisa se deixou cobrir


PRESTO
por tua presença sem margens
Os dias despencam
aos pedaços. Logo será janeiro. e deixou de haver um lado
que fosse fora de ti.
Posso farejar o amarelo das amendoeiras
de então (amarelas como teu cabelo) VIA

Eu caminhava nu, sem que você visse.


e a praia, os bares, a ferrugem, nossas costas
Pra que você visse, eu caminhava sem.
e braços liquefeitos. Tanto faz a solidão,
Você não via. Pra que você soubesse,
eu caminhava nem, sem que você visse,
a companhia: tudo são doenças tropicais,
incuráveis. O verão virá, forasteiro,
eu caminhava livre, além do limite de
ser ninguém, sem remo e sem alento,
no voo tonto, nupcial dos cupins
o andar isento quase de mim mesmo,
em volta das lâmpadas. Janeiro
num estranho, cansado engano,

está próximo, pressinto seu peso, a alegria,


sem âncora, no vento, e mais contente.
o tremor, a sezão, o óleo,
Nu, livro ao avesso; nu, anel sem dedo;
nu, anel sem dentro; nu, a pedra
a girândola veloz dos relógios
bruta; nu, um livro bruto, antes
a nos golpear no ventre. Girassóis

do acabamento, cimento grosso,


em bando assestarão suas lâminas
na antemão da cal, da letra, descampado,
em direção aos táxis
como se a mão de alguém me desenhasse,
antiqüíssimo, no dorso de um vaso.

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Sem poder ser belo, sem poder ser feio, Fiquei com o que sei
coisa-coisa no espaço, no tempo, eu ia. de cor
O sol me reconhecia: eu era o filho
mais novo do boro e do alumínio. – outro cão, em mim,
garra e faro –
Meu passo exalava o hálito do barro.
As crianças me apontavam, riam. no extremo
Tudo se condensava à minha roda. dos meus dedos.
No entanto, nenhuma flor surgia

nos meus passos: os brejos permaneciam PRESENÇA


sáfaros, cobertos de urzes, sem que nada
A retidão, o cuidado
fosse esquivo, estranho ou intratável,
com que o dia elabora
nenhum recife, navalha ou gesto sórdido.
à roda dos que dobraram a noite
entre o sexo e o silêncio
E pra que se desse a ver, meu silêncio
dizia: cabelo, pele. Sorri: os anjos de pedra
– dormem agora –
me acenaram. Eu caminhava sem,
a colmeia de uma luz perfeita,
em você, sem que você visse.
que não fere, não erra, não range
ao desdobrar uma chama

DE TI
de outra chama
Já não recorro às fotografias e emergir,
– perfil, pose, paisagem – a dentre o que se amarrotara,
em cabal geometria.
como o cego ao cão
que fia o caminho.
ARRANHA-CÉUS
Deixei que os dias
A água parada
– outro cão, todo dentes –
dos vidros
(a sede estanca diante dela,
te devorassem
de sua retidão salina).
os arames nítidos do foco.

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O fogo parado In: Cinemateca, 2008


dos vidros
(chama que não se exaure, OUTROS
agora inteiramente agora).
Céus que se levantam lentos.
Sob a névoa, sob seu perfume
A água fria,
o fogo frio
sem perfume e branco, frio,
(sem reverso, dentro é fora)
as montanhas desaparecem.
das altas lâminas:

Casas em bando também


lagos de quartzo
vão embora. O que tinha peso
estendidos ao vento imparcial da cidade;
fogos silenciosos, parados,
evapora. Deserto o palco
do artifício.
pedrento das ruas.

Ouro Preto? Não. Abram-se


os olhos: nem anjos, partiram.
DO CONCRETO APARENTE

Nenhuma pele tão bela, Outro mundo, outra educação


concisão aparente, pela pedra. Descalços, pisemos
à flor da flor dela mesma.
de um tempo diverso o anel,
Nenhuma, na aparente mudez, quando – ouro! – o corpo
tal veemência e convicção
diante do vento e das vitrines. é tão-só o júbilo das coisas
nascendo da fome e, crianças,
Que outra, conceito aparente, mais enxuta
e descalça, se a nu vê-se o próprio olho rodopiamos doidos por
que a vê assim, escalvada e franca? vales, estradas,

Tão extrema, pele nenhuma, outras pedras, outros


ela própria osso, concórdia aparente mundos.
entre a ruína e o aço.

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CRISTAL NO RIO

Desabotoa-se por fim a cena Frias as luzes, a praça, o pátio


que se desenhava no baço sob a chuva, podiam ver,
da janela do sonho (o sonho
é uma espécie de vidraça?) de dentro daquele aquário ao avesso,
em movimento, onde boiavam,
e tudo que se realiza vive
da necessidade, agora erravam ternuras absurdas,
que o motor do instante se agita breve teatro de sombras, gota
e vibra sua perfeição. Enfim,
a gota luzes verticais caindo,
vem à luz a experiência podiam ver, no interior daquela crônica
que se vinha elaborando no laboratório
de algum andar do sonho (o sonho de amor – amor? – e desencontro,
é uma espécie de edifício?): o mar que o motorista lia pelo espelho:

nasce de amar, e – cristalinas – águas espinhos, relâmpagos, respiração.


sem margens usurpam a cidade, Estavam perdidos.
arrastam inocentes, os amantes
gozam, é justo que seja assim. Vamos pela praia,
por favor.
TERCETO
ÁGUA-FORTE
Não há matéria para se fazer a tristeza
nessa manhã, manhã perfeita À beira de você, toda paisagem
se a mão que me deu maio fosse a tua. se resume a isto: nenhuma urgência

SUMÁRIO que seu rosto brilhe, mas ele arde


como se quisesse compensar em luz
O poema ensina a estar de pé.
Fincado no chão, na rua, o verso
o seu silêncio. Gastaria a vida assim,
não voa, não paira, não levita.
à orla do céu que se reflete

Mão que escreve não sonha


na água quieta que brota no intervalo
(em verdade, mal pode dormir à luz
entre nós. Demoro-me aqui,
das coisas de que se ocupa).

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à roda desse engano, Daria a isso o nome de felicidade,


dessa infinitamente triste alegria. e morreria.
Eu tenho um tipo raro.
E quanto mais me sinto afogar,
mais permaneço, O SÓ

Na longa alameda a luz aos pedaços cai


se o amador a nadar para fora
mole do alto dos postes. Ele olha.
prefere morrer na coisa amada.

Para que não doa, apenas olha.


E não dói.
O ATOR

Pensei em mentir, pensei em fingir, O DESFOTÓGRAFO


dizer: eu tenho um tipo raro de,
Vejo tudo agora diferente,
estou à beira,
como se o tempo contra o rio
dirigisse e de trás pra frente
embora não aparente. Não aparento?
eu descrevesse um livro
Providências: outra cor na pele,
a mais pálida; outro fundo para a foto:
e cada palavra nele se tornasse
livre e me fizesse livre
nada; os braços caídos, um mel
e sílaba a sílaba toda memória
pungente entre os dentes.
desaparecesse – sumisse! –
Quanto à tristeza

como se, na nossa frente, tudo


que a distância de você me faz,
o que fomos um dia num passe
está perfeita, fica como está: fria,
de mágica evaporasse num passe
espantosa, sete dedos
de música, num passo – no ar!

em cada mão. Tudo para que seus olhos


Hoje, tudo dá-se a ver sem dor,
vissem, para que seu corpo
limpo, sem um traço de paixão.
se apiedasse do meu e, quem sabe,
Os poemas se apagaram e, repara,
façamos um balanço: de nós
sua compaixão, por um instante,
transmutasse em boca, a boca em pele,
a pele abrigando-nos da tempestade lá fora.

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restou não mais que a folha livre o que nele nos ameaça se
de depois do livro, retrato em amar um leão nos acontece:
branco e branco
............................. à visão de nosso coração
ofertado, tudo nele se eriça,
In: Sentimental, 2012 seu desprezo cresce;

SOB A LUZ FEROZ DO TEU ROSTO amar um leão, se nos matasse;


se nos matasse o leão que amamos
Amar um leão usa-se pouco,
seria a dor maior, mais que esperada:
porque não pode afagá-lo
o nosso desejo de afagá-lo,
presas patas fúria cravadas em nossa carne;
mas o leão, que amamos,
como tantas vezes cão ou gato
não nos mata.
aceitam-nos a mão a deslizar
sobre seu pelo;

amar um leão não se devia,


TALVEZ HOJE
agora que já não somos divinos,
quando a flauta que tudo Estranha matéria, que sobe do fundo
à flor da memória camada de espuma
encantaria, gentes animais diário de bordo vem quebrar aqui
pedras, nós a quebramos contra
a ventania; amar sobre nosso peito com seu arsenal
de velha paisagens e gente sem rosto;
um leão é só distância: tê-lo ao lado, se quase podemos tocá-la, não sabemos,
não poder beijá-lo, o deserto
que habita em torno dele; no entanto, em que praça, em que tempo
se dão o abraço o beijo que, talhados
era mais certo amar um barco, no passado, emergem na água de agora
era mais fácil amar um cavalo;
amar um leão é não poder amá-lo; à maneira de cristais, mas que são vidros
difusos e são doces, matam a sede
e nada que façamos adoça e nos matam. Insepultos, ressurgimos.

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POR ENQUANTO In: Escuta, 2015

Imagino a fotografia recuando sob a lente curiosa,


ESTA PLACA
A imagem retraindo-se, antirrevelando-se lábio
Cabelo pele tentassem retornar à folha Como se eu mesmo dissesse,
Branca ao tempo branco como se eu próprio afirmasse
(começa com eu, meu nome)
De antes do instante-pose-flash-clique, que sou o que me nomeia:
Ao tempo-eclipse
Imagino lugar de não ser ainda,
O amante em modos de lobo solo tão só prometido,
projeto de geografia
Por trás da lupa para depois de amanhã.
Em busca do que não se fotografa: desejo
Fogo águas Meu nome não sou agora,
Para muito mais que seus olhos. moro no mundo futuro.
Meu pai me deu esse nome
sem que eu pudesse fazê-lo.
CORRESPONDÊNCIA COMPLETA
Mal posso escrevê-lo certo
A pele nem sempre semelha a água que rápida
nos documentos que o pedem.
refaz sua costura quando passam o barco o nadador
Não existo no meu nome,
coisa que vive sem mim.
o vento; repara como o instante agarra em nós
sua gelatina e como nos agarramos às pedras
Ele se diz sendo eu,
este nome que me afirma,
enganados em torno delas areia esperma;
mas o que nele me aponta
o céu – se nos visse – era todo espanto: a rapidez
é também o que me acusa

com que passamos o corpo que erramos e que


de eu não ser o que ele diz.
tantas vezes só se recompõe lentamente;
Queria viver sem nome,
ser o que sou: eu-ninguém.
há sempre o risco de nos afogarmos e
Me chamarem – ei, você! –
– risco maior – não acreditarmos nisso.

e eu me reconheceria,

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perfeitamente não sendo


senão uma coisa livre sem ser eu, sem eu, não ser.
do que jamais prometi.

Mas à cara está colada A NÍTIDA IMPRESSÃO


(certas tintas não se apagam)
Em certas brechas do sonho ou da vigília
esta placa, este engano
quase vemos os fios que nos conduzem
à beira de mim-estrada.
mas vezes com tal zelo umas vezes
com total desleixo. É quando
Se terra, sou terra a terra,
o agora sem vaticínios
nos movemos com a nítida impressão
de um norte em que mel e leite
de um teatro atado aos ossos
jorrassem fáceis, sem dor.
e de que somos arrastados
contra a nossa própria vida.
Só existo em chão estreito,
nuns versos de amor e morte,
Só o que chamamos de absurdo
palavras ditas no escuro,
parece dar a tudo algum sentido.
fósforo, poço, você.

Sou o exilado do nome


que carrego, vice-versa,
ESCADA
sem ter nunca visto a pátria
que minto quando me digo De transformar-se o amador na coisa amada
transformam-se o pescador em peixe o capitão

toda vez em que respondo: em arma em piano o pianista em desastre

como é que você se chama? o equilibrista o arquiteto desaparecido


quem sabe converteu-se em luz no livre
Vou aos livros, não encontro.
Pergunto. Não está no atlas. alto vão da escada
e como ela em espiral

E o infinito infinito. transformam-se em madrugada a namorada


em ácido o químico em mágica o mágico em livro

A terra estará cumprida o bibliotecário em poeta o poema o poema em água

quando estiver concluída. e por virtude de muito imaginar hoje sou você

Então, morarei ali, graça – de ver em mim a parte desejada.

sob ela, dentro dela,

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KODAK DE

Mulher e menino na praça na praça o lago minúsculo Tentei prender um guizo


minúsculo cortado por uma ponte uma ponte no pescoço da hora.
sobre um rio eu imaginava um rio que desaguava
no seu vestido e parecia não terminar não terminava Mas ela sobre nós arremeteu
era como se suspensos sós cruzássemos do tempo um fogo tão frio e tão afoito

a correnteza. Hoje sei que de nós muito se foi nas que não pude salvar um só instante
[águas de nossa pele se quebrando.
ou ficou ali no aluvião em torno dos olhos mirando
o muito e fundo que não pudemos. Mas se mãe e
[filho DES
intactos sorriem com ternura com ternura
Não basta salgar os olhos rasurar os lábios bater
[respondemos
O peito contra o vão de cimento é preciso deixar
sim fomos felizes.
Que chova cá dentro de modo que tudo se liquefaça
E se torne caldo em torno dos ossos que pouco
A pouco se desengrumam; não basta que a pele
Esqueça; é necessário que toda a memória
Do corpo desapareça; mas o amor
É lentamente que se mata.

Quando eu deixar de te amar


o copo d’água à boca tornar-se-á escuro
e tudo em mim será sede e susto;
direi então que os deuses nunca existiram
e era melhor que nunca existissem;
mesmo uma gérbera amarela parecerá triste;
a terra prometida saberá a terríveis doenças
porque não haverá mais coincidência
entre as metáforas e a vida.

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