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PORTUGUÊS

12.º ANO

ATIVIDADE “TRÊS POETAS/ TRÊS POEMAS”

ANTOLOGIA POETAS SÉCULO XX • PORTUGUÊS • 12.º ANO • PÁGINA 1 DE 14


GRUPO 1

Orfeu Rebelde Autocrítica

Orfeu rebelde, canto como sou: A poesia é a vida?Pois claro!


Canto como um possesso
Conforme a vida que se tem o verso vem
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento; -e se a vida é vidinha, já não há poesia
Canto, a ver se o meu canto compromete Que resista. O mais é literatura,
A eternidade do meu sofrimento. Libertinura, pegas no paleio;
O mais é isto : o tolo dum poeta
Outros, felizes, sejam os rouxinóis... A beber, dia a dia, a bica preta,
Eu ergo a voz assim, num desafio: Convencido de si, do seu recheio…
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
A poesia é vida! Pois claro!
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas, Embora custe caro, muito caro,
Violências famintas de ternura. E a morte se meta de permeio.

Bicho instintivo que adivinha a morte Alexandre O’Neill


No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.
A arte dos versos

Miguel Torga Toda a ciência está aqui,


na maneira como esta mulher
dos arredores de Cantão,
ou dos campos de Alpedrinha,
rega quatro ou cinco leiras
de couves: mão certeira
com a água,
intimidade com a terra,
empenho do coração.
Assim se faz o poema.

Eugénio de Andrade

ANTOLOGIA POETAS SÉCULO XX • PORTUGUÊS • 12.º ANO • PÁGINA 2 DE 14


GRUPO 2

Os trabalhos da mão
Começo a dar-me conta: a mão
que escreve os versos
envelheceu. Deixou de amar as areias
das dunas, as tardes de chuva
miúda, o orvalho matinal
dos cardos. Prefere agora as sílabas
da sua aflição.
Sempre trabalhou mais que sua irmã,
um pouco mimada, um pouco
preguiçosa, mais bonita.
A si coube sempre
a tarefa mais dura: semear, colher,
coser, esfregar. Mas também
acariciar, é certo. A exigência,
o rigor, acabaram por fatigá-la.
O fim não pode tardar: oxalá
tenha em conta a sua nobreza.

Eugénio de Andrade

Bom e Expressivo

Acaba mal o teu verso, diz-lhe que não, que não é,


mas fá-lo com um desígnio: que é topada, lixa três,
é um mal que não é mal, serração, vidro moído,
é lutar contra o bonito. papel que se rasga ou pe-

Vai-me a essas rimas que dra que rola na pedra...


tão bem desfecham e que Mas também da rima «em cheio»
são o pão de ló dos tolos poderás tirar partido,
e torce-lhes o pescoço, que a regra é não haver regra,

tal como o outro pedia a não ser a de cada um,


se fizesse à eloquência, com sua rima, seu ritmo,
e se houver um vossa excelência não fazer bom e bonito,
que grite: — Não é poesia!, mas fazer bom e expressivo...
Alexandre O’Neill

ANTOLOGIA POETAS SÉCULO XX • PORTUGUÊS • 12.º ANO • PÁGINA 3 DE 14


Como se faz um poema
Com muita coisa eu fiz o meu poema.
Rasguei retratos abri um poço
na planície. Habitei muitos cadernos.
Fui à guerra e morri. Fui à guerra e voltei.
Com muita coisa fiz o meu poema.

Parti vestido de soldado. Eu vi Lisboa


cheia de lágrimas. E um avião ficou
por muito tempo voando entre lágrimas e nuvens
minha amada chorando no aeroporto triste.
Com muita coisa fiz o meu poema.

Meu amigo morreu. Já disse como foi.


A mina rebentou meu amigo ficou
com as tripas de fora em cima de uma árvore.
Aprendi na terceira pessoa o verbo morrer.
Com muita coisa fiz o meu poema.

Eu vi soldados com as mãos cheias de sangue.


Mas isso foi de mais. E tive de aprender
na primeira pessoa o verbo matar. Desde aí
há certos adjectivos que me doem muito.
Com muita coisa fiz o meu poema.

Não vou dizer o tempo que demora um verso.


Como dizer-vos por exemplo o tempo
com as chaves metálicas batendo
Na minha cela que depois rimei com estrela?
Com muita coisa fiz o meu poema.

Cidade já rimei com liberdade


(muita coisa aprendi desde esse tempo)
Liberdade rimei depois com estrela e cela
Tristeza fiz rimar com alegria
Meu poema rimou com minha vida.

Com muita coisa eu fiz o meu poema.


Aprendi-o no vento. Aprendi-o no barro.
Sobretudo na rua. E nalguns livros também.
Porém foi junto aos homens que aprendi
como as palavras são terríveis e sagradas.

Aqui vos deixo o meu poema. Aqui vos deixo


cidade a não rimar com liberdade
liberdade a rimar com estrela e cela
meu poema a rimar com minha vida. Aqui vos deixo
as coisas com que fiz o meu poema.
Manuel Alegre
ANTOLOGIA POETAS SÉCULO XX • PORTUGUÊS • 12.º ANO • PÁGINA 4 DE 14
GRUPO 3

Poema pouco original do medo

O medo vai ter tudo talvez a minha


pernas com a certeza a deles
ambulâncias
e o luxo blindado Vai ter capitais
de alguns automóveis países
Vai ter olhos onde ninguém o veja suspeitas como toda a gente
mãozinhas cautelosas muitíssimos amigos
enredos quase inocentes beijos
ouvidos não só nas paredes namorados esverdeados
mas também no chão amantes silenciosos
no teto ardentes
no murmúrio dos esgotos e angustiados
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos Ah o medo vai ter tudo
tudo
O medo vai ter tudo (Penso no que o medo vai ter
fantasmas na ópera e tenho medo
sessões contínuas de espiritismo que é justamente
milagres o que o medo quer)
cortejos
frases corajosas O medo vai ter tudo
meninas exemplares quase tudo
seguras casas de penhor e cada um por seu caminho
maliciosas casas de passe havemos todos de chegar
conferências várias quase todos
congressos muitos a ratos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este Alexandre O’Neill
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez

ANTOLOGIA POETAS SÉCULO XX • PORTUGUÊS • 12.º ANO • PÁGINA 5 DE 14


Variações sobre
O POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO
de Alexandre O'Neill

Os ratos invadiram a cidade


povoaram as casas os ratos roeram
o coração das gentes.
Cada homem traz um rato na alma.
Na rua os ratos roeram a vida.
É proibido não ser rato.

Canto na toca. E sou um homem.


Os ratos não tiveram tempo de roer-me
os ratos não podem roer um homem
que grita não aos ratos.
Encho a toca de sol.
(Cá fora os ratos roeram o sol).
Encho a toca de luar.
(Cá fora os ratos roeram a lua).
Encho a toca de amor.
(Cá fora os ratos roeram o amor).

Na toca que já foi dos ratos cantam


os homens que não chiam. E cantando
a toca enche-se de sol.
(O pouco sol que os ratos não roeram).

Manuel Alegre

Epígrafe para a arte de furtar

Roubam-me Deus Sempre há quem roube


Outros o diabo quem eu deseje;
-quem cantarei? e de mim mesmo
todos me roubam
Roubam-me a Pátria; - quem cantarei?
e a Humanidade
outros ma roubam Roubam-me a voz
- quem cantarei? quando me calo,
ou o silêncio
mesmo se falo
- aqui del-rei!

Jorge de Sena

ANTOLOGIA POETAS SÉCULO XX • PORTUGUÊS • 12.º ANO • PÁGINA 6 DE 14


GRUPO 4

Prospeção
A sílaba
Não são pepitas de oiro que procuro. Toda a manhã procurei uma sílaba.
Oiro dentro de mim, terra singela!
Busco apenas aquela É pouca coisa,é certo:uma vogal,
Universal riqueza uma consoante,quase nada.
Do homem que revolve a solidão:
O tesoiro sagrado Mas faz-me falta.Só eu sei
De nenhuma certeza, a falta que me faz.
Soterrado
Por mil certezas de aluvião. Por isso a procurava com obstinação.
Cavo,
Lavo, Só ela me podia defender
Peneiro, do frio de janeiro,da estiagem
Mas só quero a fortuna do verão.Uma sílaba.
De me encontrar.
Poeta antes dos versos Uma única sílaba.
E sede antes da fonte.
Puro como um deserto. A salvação.
Inteiramente nu e descoberto. Eugénio de Andrade
Miguel Torga

Os trabalhos e os dias
Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro
e principio a escrever como se escrever fosse respirar
o amor que não se esvai enquanto os corpos sabem
de um caminho sem nada para o regresso da vida.

À medida que escrevo, vou ficando espantado


com a convicção que a mínima coisa põe em não ser nada.
Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser hábito.
Vem, teimosa, com a alegria de eu ficar alegre,
quando fico triste por serem palavras já ditas
estas que vêm, lembradas, doutros poemas velhos.

Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem.


E os convivas que chegam intencionalmente sorriem
e só eu sei porque principiei a escrever no princípio do mundo
e desenhei uma rena para a caçar melhor
e falo da verdade, essa iguaria rara:
este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo.
Jorge de Sena

ANTOLOGIA POETAS SÉCULO XX • PORTUGUÊS • 12.º ANO • PÁGINA 7 DE 14


GRUPO 5

É preciso um país

Não mais Alcácer Quibir. Dies Irae


É preciso voltar a ter uma raiz
um chão para lavrar Apetece cantar, mas ninguém canta.
um chão para florir. Apetece chorar, mas ninguém chora.
É preciso um país. Um fantasma levanta
Não mais navios a partir A mão do medo sobre a nossa hora.
para o país da ausência.
É preciso voltar ao ponto de partida Apetece gritar, mas ninguém grita.
é preciso ficar e descobrir Apetece fugir, mas ninguém foge.
a pátria onde foi traída Um fantasma limita
não só a independência Todo o futuro a este dia de hoje.
mas a vida.
Apetece morrer, mas ninguém morre.
Manuel Alegre Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.
Quem a tem...
Oh! maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas,
Não hei-de morrer sem saber Que deixam ver a vida que não temos
qual a cor da liberdade. E as angústias paradas!
eu não posso senão ser
desta terra em que nasci. Miguel Torga
embora ao mundo pertença

E sempre a verdade vença,


qual será ser livre aqui,
não hei-de morrer sem saber.
trocaram tudo em maldade,
é quase um crime viver.

Mas embora escondam tudo


e me queiram cego e mudo,
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
Jorge de Sena

ANTOLOGIA POETAS SÉCULO XX • PORTUGUÊS • 12.º ANO • PÁGINA 8 DE 14


GRUPO 6

E de Novo, Lisboa...
E de novo, Lisboa, te remancho,
numa deriva de quem tudo olha
de viés: esvaído, o boi no gancho,
ou o outro vermelho que te molha.

Sangue na serradura ou na calçada,


que mais faz se é de homem ou de boi?
O sangue é sempre uma papoila errada,
cerceado do coração que foi.

Groselha, na esplanada, bebe a velha,


e um cartaz, da parede, nos convida
a dar o sangue. Franzo a sobrancelha:
dizem que o sangue é vida; mas que vida?

Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui,


na terra onde nasceste e eu nasci?
Alexandre O’Neill

Em Lisboa com Cesário


Nesta cidade, onde agora me sinto Lisboa ainda
mais estrangeiro do que um gato persa; 20-03-2020
nesta Lisboa, onde mansos e lisos Manuel Alegre, poema escrito em 20 de março
os dias passam a ver as gaivotas, de 2020
e a cor dos jacarandás floridos Lisboa não tem beijos nem abraços
se mistura à do Tejo, em flor também; não tem risos nem esplanadas
só o Cesário vem ao meu encontro,
não tem passos
me faz companhia, quando de rua
nem raparigas e rapazes de mãos dadas
em rua procuro um rumor distante
de passos ou aves, nem eu já sei bem. tem praças cheias de ninguém
Só ele ajusta a luz feliz dos seus ainda tem sol mas não tem
versos aos olhos ardidos que são nem gaivota de Amália nem canoa
os meus agora; só ele traz a sombra sem restaurantes sem bares nem cinemas
de um verão muito antigo, com corvetas ainda é fado ainda é poemas
lentas ainda no rio, e a música,
fechada dentro de si mesma ainda é Lisboa
sumo do sol a escorrer da boca,
ó minha infância, meu jardim fechado, cidade aberta
ó meu poeta, talvez fosse contigo ainda é Lisboa de Pessoa alegre e triste
que aprendi a pesar sílaba a sílaba e em cada rua deserta
cada palavra, essas que tu levaste ainda resiste.
quase sempre, como poucos mais,
à suprema perfeição da língua. Manuel Alegre
Eugénio de Andrade

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GRUPO 7

Reabro as portas do poema, portas de ouro


Da estrofe, e entro num chão de terra negra,
Pisando a cinza de quem ali viveu.
Soneto Científico A Fingir
Tu, Camões, com a lenta memória de amigas
E madrugadas, levantas-te de um sepulcro Dar o mote ao amor. Glosar o tema
De rimas e mágoas, com as mãos cansadas. tantas vezes que assuste o pensamento.
Se for antigo, seja. Mas é belo
E tu, Garrett, suando o ócio de amores e e como a arte: nem útil nem moral.
Desamores, já não corres pelos campos
Onde viveste para nunca mais. Que me interessa que seja por soneto
em vez de verso ou linha desvastada?
Mesmo tu, Antero, cujo tédio se estende O soneto é antigo? Pois que seja:
Pelas paredes onde jazem Cristos estéreis, também o mundo é e ainda existe.
Perdeste o impulso da oração.
Só não vejo vantagens pela rima.
Puxo-vos para dentro das palavras. E ouço Dir-me-ão que é limite: deixa ser.
O murmúrio que escorre dos lábios, Se me dobro demais por ser mulher
Como um salmo que o poema repete. [esta rimou, mas foi só por acaso]

Nuno Júdice Se me dobro demais, dizia eu,


não consigo falar-me como devo,
ou seja, na mentira que é o verso,
Majestade ou seja, na mentira do que mostro.

Passa um rei — é o Poeta. E se é soneto coxo, não faz mal.


Não pela força de mandar, E se não tem tercetos, paciência:
Mas pela graça mágica e secreta dar o mote ao amor, glosar o tema,
De imaginar. e depois desviar. Isso é ciência!
O ceptro, a pena — a lançadeira cega
Do seu tear de versos. Ana Luísa Amaral
O manto, a pele — arminho onde se pega
A lama dos caminhos mais diversos.

Um grande soberano
No seu triste destino
De ser um monstro humano
Por direito divino.
Miguel Torga

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GRUPO 8

Espionagens verbais

Anda desde a manhã uma palavra Canção do Semeador


… a perseguir-me, a espreitar-me de longe
em atitude nítida de pose, Na terra negra da vida
em clara posição de desafio. Pousio do desespero,
É que o Poeta semeia
Sugere-se ligeira e disfarçada, Poemas de confiança.
depois foge como uma Mata-Hari O Poeta é uma criança
lexical. Não sei o que em mim vê: Que devaneia.
não tenho alta patente nem estatuto.
Mas todo o semeador
E contudo ela anda por aí. Semeia contra o presente.
Sonora e inaudível, surge-me Semeia como vidente
do silêncio e dos ruídos longos, A seara do futuro,
brevíssima nos cantos ? e perigosa. Sem saber se o chão é duro
E lhe recebe a semente.
Lá passou outra vez. E anda nisto
desde que me vesti e vi o sol. Miguel Torga
Nada a faz desistir: nem a tarde
a cair, nem a minha ameaça de fuzis.

Ana Luísa Amaral

O ar está cheio de palavras; e


até as que se perdem contra o fundo
de muros, as que caem no outono
como as folhas das árvores, as
que se afogam no pântano das indecisões,
deixam no ar o seu eco. Assim,
o poeta segue um destino de colecionador
ao recolhê-las, mesmo essas
cujo murmúrio se confunde com o vento,
e prendê-las à página, onde se agitam,
estremecendo com o sopro da voz,
ou adquirem a dureza do mármore, brilhando
apenas quando a luz do verso
as toca.

Nuno Júdice

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GRUPO 9

Comunhão

Tal como o camponês, que canta a semear Soneto do soneto


A terra,
Ou como tu, pastor, que cantas a bordar catorze versos tem este soneto
A serra de dez sílabas cada, na contagem
De brancura, métrica portuguesa; de passagem,
Assim eu canto, sem me ouvir cantar, o esquema abba dá esqueleto
Livre e à minha altura.
aos versos do começo: a engrenagem
Semear trigo e apascentar ovelhas podia ser abab, mas meto
É oficiar à vida aqui baba, destarte, preto
Numa missa campal. no branco, instabilizo a sua imagem.
Mas como sobra desse ritual
Uma leve e gratuita melodia, teria, isabelino, uma terceira
Junto o meu canto de homem natural quadra cddc e ee final,
Ao grande coro dessa poesia. em vez de dois tercetos, com quilate
Miguel Torga
sempre de ouro no fim, de tal maneira
porém o engendrei continental,
que em duplo cde tem seu remate.
Vasco Graça Moura
Obedecem-me agora muito menos,
as palavras. A propósito
de nada resmungam, não fazem
caso do que lhes digo,
não respeitam a minha idade.
Provavelmente fartaram-se da rédea,
não me perdoam
a mão rigorosa, a indiferença
pelo fogo-de-artifício.
Eu gosto delas, nunca tive outra
paixão, e elas durante muitos anos
também gostaram de mim: dançavam
à minha roda quando as encontrava.
Com elas fazia o lume,
sustentava os meus dias, mas agora
estão ariscas, escapam-se por entre
as mãos, arreganham os dentes
se tento retê-las. Ou será que
já só procuro as mais encabritadas?
Eugénio de Andrade

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GRUPO 10

Lamento
No meu país não acontece nada
Pátria sem rumo, minha voz parada à terra vai-se pela estrada em frente
Diante do futuro! Novembro é quanta cor o céu consente
Em que rosa-dos-ventos há um caminho às casas com que o frio abre a praça
Português?
Um brumoso caminho Dezembro vibra vidros brande as folhas
De inédita aventura, a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
Que o poeta, adivinho, que o mais zeloso varredor municipal
Veja com nitidez Mas que fazer de toda esta cor azul
Da gávea da loucura?
Ah, Camões, que não sou, afortunado! Que cobre os campos neste meu país do sul?
Também desiludido, A gente é previdente cala-se e mais nada
Mas ainda lembrado da epopeia... A boca é pra comer e pra trazer fechada
Ah, meu povo traído, o único caminho é direito ao sol
Mansa colmeia
A que ninguém colhe o mel!... No meu país não acontece nada
Ah, meu pobre corcel o corpo curva ao peso de uma alma que não
Impaciente, sente
Alado Todos temos janela para o mar voltada
E condenado o fisco vela e a palavra era para toda a gente
A choutar nesta praia do Ocidente...
Miguel Torga E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
PORTUGAL da velha lei mental pastilhas de mentol

Ó Portugal, se fosses só três sílabas, Morre-se a ocidente como o sol à tarde


linda vista para o mar, Cai a sirene sob o sol a pino
Minho verde, Algarve de cal, Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
jerico rapando o espinhaço da terra, Nesta orla costeira qual de nós foi um dia
surdo e miudinho, menino?
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo, Há neste mundo seres para quem
se fosses só o sal, o sol, o sul, a vida não contém contentamento
o ladino pardal, E a nação faz um apelo à mãe,
o manso boi coloquial, atenta a gravidade do momento
a rechinante sardinha,
a desancada varina, O meu país é o que o mar não quer
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos, é o pescador cuspido à praia à luz
a muda queixa amendoada pois a areia cresceu e a gente em vão requer
duns olhos pestanítidos, curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias, A minha terra é uma grande estrada
o grilo engaiolado, a grila no lábio, que põe a pedra entre o homem e a mulher
o calendário na parede, o emblema na lapela, O homem vende a vida e verga sob a enxada
ó Portugal, se fosses só três sílabas O meu país é o que o mar não quer
de plástico, que era mais barato!
Alexandre O’Neill Ruy Belo

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GUIÃO DE TRABALHO
Pretende-se que:

1. Façam uma interpretação dos poemas: tema e assunto, principais recursos expressivos e a sua
expressividade;
2. Identifiquem a temática aglutinadora dos poemas (Representações do contemporâneo; Tradição
Literária; Arte Poética...), apresentando elementos textuais que fundamentem a mesma;
3. Se posicionem criticamente em relação aos poemas analisados, recorrendo a uma linguagem
valorativa e desenvolvendo um juízo de valor explícito;
4. Apresentem os pontos anteriores à turma numa intervenção oral que não deve exceder os 45 mn
por sala, distribuídos equitativamente pelos elementos do grupo de trabalho.

ANTOLOGIA POETAS SÉCULO XX • PORTUGUÊS • 12.º ANO • PÁGINA 14 DE 14

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