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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ JOÃO CABRAL DE MELO NETO

DEPARTAMENTO DE LITERATURA
LITERATURA BRASILEIRA IV CATAR FEIJÃO
Cid Ottoni Bylaardt
Catar feijão se limita com escrever:
MUITOS TEXTOS POÉTICOS após 1945 joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
MÁRIO QUINTANA e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
Fragmentos do Caderno H água congelada, por chumbo seu verbo;
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e o oco; palha e eco.
A IMAGEM E OS ESPELHOS (p. 58)
Jamais deves buscar a coisa em si, a qual depende tão- Ora, nesse catar feijão entra um risco:
somente dos espelhos. o de que entre os grãos pesados entre
A coisa em si, nunca. A coisa em ti. um grão qualquer, pedra ou indigesto,
Um pintor, por exemplo, não pinta uma árvore. Ele pinta- um grão imastigável, de quebrar dente.
se uma árvore. Certo não, quando ao catar palavras:
E um grande poeta — espécie de Rei Midas à sua maneira a pedra dá à frase grão mais vivo:
— um grande poeta, bem que ele poderia dizer: obstrui a leitura fluviante, flutual,
— Tudo o que eu toco se transforma em mim. açula a atenção, isca-a com o risco.
(in A educação pela pedra)
ENTOMOLOGIA (p. 177)
A borboleta mais difícil de caçar é o adjetivo. HENRIQUETA LISBOA

TRÁGICO DILEMA (p. 39) ESTA É A GRAÇA


Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer,
um dos dois é burro. Esta é a graça dos pássaros:
cantam enquanto esperam.
NÃO DESPERTEMOS O LEITOR (p. 52) E nem ao menos sabem o que esperam.
Os leitores são, por natureza, dorminhocos. Gostam de ler
dormindo. Autor que os queira conservar não deve Será porventura a morte, o amor?
ministrar-lhes o mínimo susto. Apenas as eternas frases Talvez a noite com uma nova estrela,
feitas. (...) Pois não é mesmo tão bom falar e pensar sem a pátina de ouro do tempo,
esforço? O lugar-comum é a base da sociedade... alguma cousa de precário
assim como para o soldado a paz?
CARTAZ PARA UMA FEIRA DO LIVRO (p. 5)
Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e Com grave mistério de reposteiros
não lêem. um augúrio dimana, incessante,
do marulho das fontes sob pedras,
A BORBOLETA (p. 19) do bulício das samambaias no horto.
Cada vez que o poeta cria uma borboleta, o leitor exclama:
“Olha uma borboleta!” O crítico ajusta os nasóculos e, No ladrido dos cães à vista da lua,
ante aquele pedaço esvoaçante de vida, murmura: — Ah! acima do desejo e da fome,
sim, um lepidóptero...” pervaga um longo desespero
em busca de tangente inefável.
SINÔNIMOS? (p. 103)
Esses que pensam que existem sinônimos, desconfio que O mesmo silêncio da madrugada
não sabem distinguir as diferentes nuanças de uma cor. prenuncia, sem dúvida, um evento
que já não é o grito da aurora
PARÁBOLA? (p. 9) ao macular de sangue a túnica.
Os espelhos partidos têm muito mais luas.
E minha voz perdura neste concerto
A FACE E O ESPELHO (p. 77) com a vibração e o temor de um violino
Assim devia ser a relação de autor para leitor: uma face pronto a estalar, em holocausto,
nua num espelho límpido. Mas é tão difícil... Ou a face as próprias cordas — demasiado tensas.
está mascarada ou o espelho embaciado. (in Flor da morte)
Espere que cada um se realize e consume
ACIDENTE com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Quebra-se o púcaro de fino Não colhas no chão o poema que se perdeu.
cristal vibrante contra lájea: Não adules o poema. Aceita-o
restam avelórios feridos. como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Do vento escuto o balbucio
por entre os galhos das árvores. Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
Percebo-lhe o timbre, o ritmo. tem mil faces secretas sob a face neutra
Porém não as palavras: e te pergunta, sem interesse pela resposta,
interceptadas, interceptadas. pobre ou terrível, que lhe deres:
(in Flor da morte) Trouxeste a chave?
Repara:
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE ermas de melodia e conceito,
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
PROCURA DA POESIA rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Não faças versos sobre acontecimentos.


Não há criação nem morte perante a poesia. JARDIM
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina. Negro jardim onde violas soam
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não
contam. e o mal da vida em ecos se dispersa:
Não faças poesia com o corpo à toa uma canção envolve os ramos,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à
efusão lírica. como a estátua indecisa se reflete

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no


escuro são indiferentes. no lago há longos anos habitado
Nem me reveles teus sentimentos, por peixes, não, matéria putrescível,
que se prevalecem do equivoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. mas por pálidas contas de colares
que alguém vai desatando, olhos vazados
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das
casas. e mãos oferecidas e mecânicas,
Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto
à linha de espuma. de um vegetal segredo enfeitiçadas,
O canto não é a natureza enquanto outras visões se delineiam
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto. e logo se enovelam mascarada,
Não dramatizes, não invoques, que sei de sua essência (ou não a tem),
não indagues. Não percas tempo em mentir. jardim apenas, pétalas, presságio.
Não te aborreças. (in Novos poemas)
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável. DISSOLUÇÃO

Não recomponhas Escurece, e não me seduz


tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a tatear sequer uma lâmpada.
memória em dissipação. Pois que aprouve ao dia findar,
Que se dissipou, não era poesia. aceito a noite.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras. E com ela aceito que brote
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero, uma ordem outra de seres
há calma e frescura na superfície intacta. e coisas não figuradas.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Braços cruzados.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Vazio de quanto amávamos, como poeta algum ousara escrever.
mais vasto é o céu. Povoações Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.
surgem do vácuo.
Habito alguma? Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E nem destaco minha pele E que, no seu maligno ar imaturo,
da confluente escuridão. ao mesmo tempo saiba ser, não ser.
Um fim unânime concentra-se
Esse meu verbo antipático e impuro
e pousa no ar. Hesitando. há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro.
E aquele agressivo espírito
que o dia carreia consigo Ninguém o lembrará: tiro no muro,
Cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
já não oprime.
Claro enigma, se deixa surpreender.
Assim, a paz, destroçada. (in Claro enigma)

Vai durar mil anos, ou MEMÓRIA


extinguir-se na cor do galo?
Amar o perdido
Esta rosa é definitiva,
deixa confundido
ainda que pobre. este coração.

Imaginação, falsa demente, Nada pode o olvido


já te desprezo. E tu, palavra. contra o sem sentido
apelo do Não.
No mundo, perene trânsito,
calamo-nos. As coisas tangíveis
E sem alma, corpo, és suave. tornam-se insensíveis
(in Claro enigma) à palma da mão.

Mas as coisas findas,


REMISSÃO muito mais que lindas,
essas ficarão.
Tua memória, pasto de poesia, (in Claro enigma)
tua poesia, pasto dos vulgares,
vão se engastando numa coisa fria JOSÉ PAULO PAES
a que tu chamas: vida, e seus pesares.
AO ESPELHO
Mas, pesares de quê? perguntaria,
se esse travo de angústia nos cantares, O que mais me aproveita
se o que dorme na base da elegia em nosso tão freqüente
vai correndo e secando pelos ares, comércio é a tua
pedagogia de avessos.
e nada resta, mesmo, do que escreves
e te forçou ao exílio das palavras, Fazem-se em nós defeitos
senão contentamento de escrever, as virtudes que ensinas:
o brilho de superfície
enquanto o tempo, e suas formas breves a profundidade mentirosa
ou longas, que sutil interpretavas, o existir apenas
se evapora no fundo de teu ser? no reflexo alheio.

(in Claro enigma) Entretanto, sem ti


sequer nos saberíamos
OFICINA IRRITADA o outro de um outro
outro por sua vez
Eu quero compor um soneto duro de algum outro, em infinito
corredor de espelhos.

Isso até o último PAULO LEMINSKI


vazio de toda imagem
espelho de um si mesmo AVISO AOS NÁUFRAGOS
anterior, posterior
a tudo, isto é, a nada. Esta página, por exemplo,
(in Prosas seguidas de Odes mínimas) não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
AOS ÓCULOS um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
Só fingem que põem folha que volta pro galho
o mundo ao alcance muito depois de caída.
dos meus olhos míiopes.
Nasceu para ser praia,
Na verdade me exilam quem sabe Andrômeda, Antártida,
dele com filtrar-lhe Himalaia, sílaba sentida,
a menor imagem. nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.
Já não vejo as coisas
como são: vejo-as como els querem Palavras trazidas de longe
qie as veja. pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
Logo, são eles que vêem, vai ter que ser traduzida,
nmão eu que, mesmo cônscio para o símbolo, para o sânscrito,
do logro, lhes sou grato para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
por qnteciparem em mim ao que só se diz ao pé do ouvido,
o Édipo curioso vai ter que ser a brusca pedra
de suas próprias trevas. onde alguém deixou cair o vidro.
(in Prosas seguidas de Odes mínimas) Não é assim que é a vida?
(in Distraídos venceremos)
À TINTA DE ESCREVER
TEXTOS TEXTOS TEXTOS
Ao teu azul fidalgo mortifica
registrar a notícia, escrever malditas placas fenícias
o bilhete, assinar a promissória cobertas de riscos rabiscos
esses filhos do momento. Sonhas como me deixaste os olhos piscos
a mente torta de malícias
mais duradouro o pergaminho ciscos
onde pudesses, arte longa em vida breve (in La vie en close)
inscrever, vitríolo o epigrama, lágrima
a elegia, bronze a epopéia. PLENA PAUSA

Mas já que o duradouro de hoje nem Lugar onde se faz


espera a tinta do jornal secar, o que já foi feito
firma, azul, a tua promissória branco da página,
ao minuto e adeus que agora é tudo História. soma de todos os textos
(in Prosas seguidas de Odes mínimas) foi-se o tempo
quando, escrevendo,
era preciso
uma folha isenta.
Nenhuma página
jamais foi limpa.
Mesmo a mais Saara,
ártica, significa.
Nunca houve isso,
uma página em branco.
No fundo, todas gritam,
pálidas de tanto. (in Distraídos venceremos)

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