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Motivo
Boa ideia para um poema
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa. Anotei uma frase num caderno
Não sou alegre nem sou triste: encontrei-a algum tempo depois
sou poeta. pareceu-me uma boa ideia para um poema
escrevi-o rapidamente
Irmão das coisas fugidias, o que é raro
não sinto gozo nem tormento. logo depois me ocorreu que a frase anotada no
Atravesso noites e dias caderno
no vento. parecia uma citação
pensei me lembrar que a copiara de um poema
Se desmorono ou se edifico,
pensei me lembrar que lera o poema numa revista
se permaneço ou me desfaço,
procurei em todas as revistas
– não sei, não sei. Não sei se fico
são muitas
ou passo.
não encontrei
Sei que canto. E a canção é tudo. pensei: se eu não tivesse me lembrado de que a
Tem sangue eterno a asa ritmada. frase não era minha
E um dia sei que estarei mudo: ela seria minha?
– mais nada. pensei: se eu me lembrasse onde li todas as frases
que escrevi
(Cecília Meireles) alguma seria minha?
pensei: é um plágio se ninguém nota? Testamento lírico
pensei: devo livrar-me do poema?
pensei: é um poema tão bom assim? Se quiserem saber se pedi muito
pensei: palavras trocam de pele, tanto roubei por Ou se nada pedi, nesta minha vida,
amor, em quantos e quantos livros já li Saiba, senhor, que sempre me perdi
histórias sobre nós dois
Na criança que fui, tão confundida.
pensei: nem era um poema tão bom assim
sem antes os sonhar. E, dia feito, A criança que foi. Tão confundida.
agora tudo é fácil. E por isso
difícil. Não, a coisa não tem jeito.
(Hilda Hilst)
Nem nunca teve, aliás. Desde o início.
Desencanto
Eu faço versos como quem chora
De desalento… de desencanto…
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente…
Tristeza esparsa… remorso vão…
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
(Manuel Bandeira)