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Universidade Federal do Rio Grande O relógio

Instituto de Letras e Artes


Ao redor da vida do homem
Oficina de leitura do texto literário
Profas. Cláudia Mentz Martins há certas caixas de vidro,
Fabiane Resende dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.

Se são jaulas não é certo;


Seleção de poemas para a gravação do vídeo
mais perto estão das gaiolas
Atividade avaliada – 2º bimestre
ao menos, pelo tamanho
e quadradiço de forma.

Umas vezes, tais gaiolas


Fatal
vão penduradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
Os moços tão bonitos me doem,
vão num bolso, num dos pulsos.
impertinentes como limões novos.
Eu pareço uma atriz em decadência, Mas onde esteja: a gaiola
mas, como sei disso, o que sou será de pássaro ou pássara:
é uma mulher com um radar poderoso. é alada a palpitação,
Por isso, quando eles não me veem
a saltação que ela guarda;
como se me dissessem: acomoda-te no teu galho,
eu penso: bonitos como potros. Não me servem. e de pássaro cantor,
Vou esperar que ganhem indecisão. E espero. não pássaro de plumagem:
Quando cuidam que não, pois delas se emite um canto
estão todos no meu bolso. de uma tal continuidade.

(Adélia Prado) (João Cabral de Mello Neto)

Motivo
Boa ideia para um poema
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa. Anotei uma frase num caderno
Não sou alegre nem sou triste: encontrei-a algum tempo depois
sou poeta. pareceu-me uma boa ideia para um poema
escrevi-o rapidamente
Irmão das coisas fugidias, o que é raro
não sinto gozo nem tormento. logo depois me ocorreu que a frase anotada no
Atravesso noites e dias caderno
no vento. parecia uma citação
pensei me lembrar que a copiara de um poema
Se desmorono ou se edifico,
pensei me lembrar que lera o poema numa revista
se permaneço ou me desfaço,
procurei em todas as revistas
– não sei, não sei. Não sei se fico
são muitas
ou passo.
não encontrei
Sei que canto. E a canção é tudo. pensei: se eu não tivesse me lembrado de que a
Tem sangue eterno a asa ritmada. frase não era minha
E um dia sei que estarei mudo: ela seria minha?
– mais nada. pensei: se eu me lembrasse onde li todas as frases
que escrevi
(Cecília Meireles) alguma seria minha?
pensei: é um plágio se ninguém nota? Testamento lírico
pensei: devo livrar-me do poema?
pensei: é um poema tão bom assim? Se quiserem saber se pedi muito
pensei: palavras trocam de pele, tanto roubei por Ou se nada pedi, nesta minha vida,
amor, em quantos e quantos livros já li Saiba, senhor, que sempre me perdi
histórias sobre nós dois
Na criança que fui, tão confundida.
pensei: nem era um poema tão bom assim

(Ana Martins Marques) À noite ouvia vozes e regressos.


A noite me falava sempre sempre
Do possível de fábulas. De fadas.

O mundo na varanda. Céu aberto.


Pós Castanheiras doiradas. Meu espanto
Diante das muitas falas, das risadas.
Antes era mais fácil — sim, porque era
mais difícil, havia mais em jogo,
Eu era uma criança delirante.
e o tempo todo se jogava à vera.
Precisamente: mais difícil, logo Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
mais fácil. Porque sempre se sabia De não saber dizer coisas amantes.
de que lado se estava — havia lados,
então. E a certeza de que algum dia O que vivia em mim, sempre calava.
tudo teria um significado.
E não sou mais que a infância. Nem pretendo
Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!
E nós seríamos os responsáveis
Ter escolhido um mundo, este em que vivo
por dar nomes aos bois. Havia bois
a nomear, então. Coisas palpáveis. Ter rituais e gestos e lembranças.
Tudo teria solução depois. Viver secretamente. Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e dócil.
Chegou o tempo de depois? Digamos
que sim. E no entanto os nomes dados Querer deixar um testamento lírico
não foram, nem um só, os que sonhamos.
Talvez porque sonhássemos errado, E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.
talvez porque, enquanto alguns se davam
ao luxo de sonhar, outros, insones,
Nem sempre há de falar-vos um poeta.
imunes, implacáveis, se entregavam
E ainda que minha voz não seja ouvida
à tarefa prosaica de dar nomes Um dentre vós, resguardará (por certo)

sem antes os sonhar. E, dia feito, A criança que foi. Tão confundida.
agora tudo é fácil. E por isso
difícil. Não, a coisa não tem jeito.
(Hilda Hilst)
Nem nunca teve, aliás. Desde o início.

(Paulo Henriques Britto)

Desencanto
Eu faço versos como quem chora
De desalento… de desencanto…
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente…
Tristeza esparsa… remorso vão…
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

– Eu faço versos como quem morre.

(Manuel Bandeira)

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