Você está na página 1de 48

DECLARAÇÃO DE AMOR

À POESIA
Apresentação

“Você, meu leitor, que pulsa de vida e


orgulho e amor, assim como eu: para
você, por isso, os cantos que aqui
seguem”
Walt Whitman

Seja bem-vindo a este livro de poesias maravilhosas que


escolhemos para você. Sugerimos que leia só uma a cada noite,
antes de dormir. Ao terminar todo o livro, recomece a leitura, desta
vez no ritmo e do jeito que quiser. Leia quantas poesias quiser e
quantas vezes desejar, em voz alta ou baixinho, sozinho ou para
alguém. Descubra então o que acontece quando se lê uma poesia
pela segunda vez. As palavras do livro certamente serão as mesmas,
mas será que as poesias lhe parecerão iguais? O que mudou?
Desperte para a magia deste segundo olhar e verá que
uma obra de arte nunca tem fim. Dentro desse nosso mundo há
muitos mundos a descobrir e muitas ideias para refletir. Quando
descobrimos o mundo da poesia, o que encontramos? Como nos
sentimos?
Convidamos você a responder a essas perguntas. Aproprie-
se desse livro. Anote trechos que achar importantes, escreva suas
conclusões, sentimentos, sonhos que teve durante a noite após
a leitura e experimente criar suas próprias poesias. Se gostar do
convite e quiser conhecer um mundo novo e diferente, decore um
trecho, uma ou mais poesias dentre aquelas que mais lhe fizeram
sonhar. Saber de cor é colocar uma poesia dentro do coração, um
ato de paixão, de encantamento e entrega. Permita que a poesia
se hospede dentro de você, e, como diz o poeta Paul Celan, “Para
ela, lance sua alma”. Estamos à espera! Queremos ouvir todas as
histórias, todos esses mundos novos que você certamente descobrirá.

“Uma didática da invenção; Para apalpar as intimidades do


mundo é preciso saber... repetir, repetir – até ficar diferente”
Manoel de Barros
3
Ler, ler, ler, viver a vida

Ler, ler, ler, viver a vida que outros sonharam. Ler, ler, ler,
a alma se esquece das coisas que passaram. Restam as que ficam,
as ficções. As flores nascidas da pluma. As ondas, as humanas
emoções, o decantar da espuma. Ler, ler, ler, serei leitura amanhã
também eu? Serei meu criador, minha criatura, serei o que passou?

Miguel de Unamuno

À João Guimarães Rosa


Não é contemplar
de longe
as letras na varanda vitrine;
é dormir com elas
no sertão do mundo
e gozar
em cada vogal
a senda
a vereda
em cada consoante
e conceber
cada palavra bem composta
como o jagunço afiado
que há de nos vingar
que há de nos valer

David Calderoni

4
Esta língua é fel com mel,
A seara de Saramago
cantigas a palo seco
de ninar o futuro.
Esta língua é minha semente,
machado de mulato do morro,
Esta língua é meu coração,
pátria de poeta lisboeta.
na tortura, na paixão
e no sal amargo da purificação.
Esta língua é minha visão,
o sol do soldado caolho,
Esta língua é jóia africana,
a mão do soldado maneta.
ela caça a onça caetana,
ela cruza a légua tirana.
Esta língua é minha música,
na palavra do padre pregador,
Esta língua é fruto de meu
no pássaro do padre voador.
ventre,
mata sede de amizade,
Esta língua é minha mulher
me arma nos bons combates.
tem cuidados de mãe
no leito da amante.
Esta língua não é de viver,
língua de navegar e de lamber
Esta língua é minha rosa,
e de dançar o tango argentino.
tem perfume dos sertões gerais,
tem sabor de vinhos do Porto.
Esta língua é meu berço,
esta língua me conhece,
Esta língua é meu cavalo
esta língua é meu chão.
para subir cidades e serras,
que a brisa do Brasil beija e
José Nêumanne Pinto
balança.

5
Nunca mais o canto dos pássaros seria o mesmo

Ele talvez declarasse e podia mesmo acreditar


Que os pássaros ali em toda a volta do jardim
Tendo durante todo o dia escutado a voz de Eva
Haviam acrescentado à deles mesmos um suprasom
A tonalidade de dizer dela, mas sem as palavras
Por certo a uma eloquência tão suave
Caberia apenas ter certa influência nos pássaros
Quando o chamado ou o riso a conduzissem para o alto
Seja isso lá como for, ela se achava no canto deles
Além do mais a voz dela entrelaçada na deles
Havia agora por tanto tempo persistido nos bosques
Que provavelmente jamais se perderia.
Nunca mais o canto dos pássaros seria o mesmo
E para fazer isso nos pássaros é que ela veio.
Robert Frost

6
As coisas
O encanto
sobrenatural
que há
nas coisas da Natureza!
No entanto, amiga,
se nelas algo te dá
encanto ou medo,
não me digas que seja feia
ou má,
é, acaso, singular...
E deixa-me dizer-te em segredo
um dos grandes segredos do mundo:
– Essas coisas que parecem
Não terem beleza
Nenhuma
– É simplesmente porque
não houve nunca quem lhes desse ao menos
um segundo
olhar!

Mário Quintana

Confissões
Perguntei à terra,
ao mar, à profundeza
e, entre os animais, às criaturas que rastejam,
Perguntei aos ventos que sopram
e aos seres que o mar encerra.
Perguntei aos céus, ao sol, à lua e às estrelas
e a todas as criaturas à volta da minha carne:
Minha pergunta era o olhar que eu lhes lançava
Sua resposta era a sua beleza.

Santo Agostinho

7
Desencanto
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústica rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
— Eu faço versos como quem morre.

Manuel Bandeira

Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,


não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.


Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Cecília Meireles
8
Mar português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Ulisses
O mito é um nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É o mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,


Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre


A entrar na realidade.
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada morre.

9
Cessa teu canto

Cessa o teu canto! Deixa-me ouvir


Cessa, que, enquanto Qual o silêncio
O ouvi, ouvia Que há a seguir
Uma outra voz A tu cantares!
Como que vindo
Nos interstícios Ah, nada, nada!
Do brando encanto Só os pesares
Com que teu canto De ter ouvido,
Vinha até nós. De ter querido
Ouvi-te e ouvi-a Ouvir para além
Do que é sentido
No mesmo tempo Que uma voz tem.
E diferentes
Juntas cantar. Que anjo ao ergueres
E a melodia A tua voz,
Que não havia, Sem o saberes
Se agora a lembro, Veio baixar
Faz-me chorar. Sobre esta terra
Onde a alma erra
Foi tua voz E com as asas
Encantamento Soprou as brasas de ignoto lar?
Que, sem querer,
Nesse momento Não cantes mais!
Vago acordou Quero o silêncio
Um ser qualquer Para dormir
Alheio a nós Qualquer memória
Que nos falou? Da voz ouvida.
Não sei. Não cantes! Desentendida,
Deixa-me ouvir Que foi perdida
Qual o silêncio Por eu a ouvir...

Fernando Pessoa

10
Mar sonoro
Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.

O mar dos meus olhos

Há mulheres que trazem o mar nos olhos


Não pela cor
Mas pela vastidão da alma

E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos


Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes

Há mulheres que trazem o mar nos olhos


pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes...
e calma

Exílio

Exilamos os deuses e fomos


Exilados de nossa inteireza

11
Regressarei

Eu regressarei ao poema como à pátria à casa


Como à antiga infância que perdi por descuido
Para buscar obstinada a substância de tudo
E gritar de paixão sob mil luzes acesas.

Liberdade

Aqui nesta praia onde


Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.

Musa

Aqui me
sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos
Musa ensina-me
o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
Que me foge de repente.

12
O poema

O poema me levará no tempo


Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá


Às searas

Sua passagem se confundirá


Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes


Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará


Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas


De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

Sophia de Mello Breyner Andersen

13
O Girassol

Sempre que o sol


Pinta de anil
Todo o céu
O girassol
Fica um gentil
Carrossel

Roda, roda, roda


Carrossel
Roda, roda, roda
Rodador
Vai rodando, dando mel
Vai rodando, dando flor

Sempre que o sol


Pinta de anil
Todo o céu
O girassol
Fica um gentil
Carrossel

Roda, roda, roda


Carrossel
Gira, gira, gira
Girassol
Redondinho como o céu
Marelinho como o sol

E ogirassol vai girando dia


afora...
O girassol é o carrosel das
abelhas

Vinínius de Moraes
14
por cima da minha vida
o mundo organiza
sem nenhum senso
a harmonia

sem nenhuma porta giratória


onde paisagens e corpos
possam discutir o ritmo de passagem
ou as armas melhores

visto do jardim
o mundo não merece
outro desenho que não
seja o tempo

Teoria do jardim

girassol
abre os braços a cada manhã
pensando no caminho
e no avesso dele nas turvas tarefas
que esgotam o seu sangue
e o meu sexo
tanta luz concentrada
numa ideia apenas
tanta miséria retida
em tão curto espaço de vida
girassol
gira loucamente
gira
porque não há sentido fora
do movimento e não existe
vida fora das breves inclinações

15
o retorno é um caminho
de temperaturas
onde os corpos se
frequentam em graus
e preceitos diversos
louvando as idades
e todas as revelações
do sinais

o retorno é o caminho
que desconstrói a chegada

Começar e o fim
a teoria dos mares prevê inúmeros regressos
tantos que são poucas as viagens
idas e vindas

nesse jogo incessante de águas


não existem mares
existimos

nesta teoria
a importância está em não se ter virtudes
existimos ora secos ora regressados

Dora Ribeiro

16
A função da arte I
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para
que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.

Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.

Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia,


depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E
foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino
ficou mudo de beleza.

E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu


ao pai:

– Me ajuda a olhar!
Eduardo Galeano

Transfiguração

Venho de longe, trago o pensamento


Banhado em velhos sais e maresias;
Arrasto velas rotas pelo vento
E mastros carregados de agonia.

Provenho desses mares esquecidos


Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados.

Retenho dentro da alma, preso à quilha


Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha

Onde sonham morrer os albatrozes...


Venho de longe a contornar a esmo,
O cabo das tormentas de mim mesmo.

Paulo Bonfim
17
A solidão e sua porta
Quando mais nada resistir que valha
a pena viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha)
Quando pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

A arquitetar na sombra a despedida


Deste mundo que te foi contraditório
Lembra-te que afinal te resta a vida

Com tudo que é insolvente e provisório


e de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório.

Soneto do desmantelo azul


Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori, as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente


e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos


que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos


e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.

Carlos Pena Filho


18
Odisséia
Ya la espada de hierro ha ejecutado
la debida labor de la venganza;
ya los ásperos dardos y la lanza
la sangre del perverso han prodigado.

A despecho de un dios y de sus mares


a su reino y su reina ha vuelto Ulises,
a despecho de un dios y de los grises
vientos y del estrépito de Ares.

Ya en el amor del compartido lecho


duerme la clara reina sobre el pecho
de su rey, pero ¿dónde está aquel hombre

que en los días y en las noches del destierro


erraba por ele mundo como un perro
y decía que Nadie era su nombre?

Odisséia
Já a espada de ferro executara
O devido trabalho da vingança;
Já os ásperos dardos e a lança
O sangue do perverso derramara.

A despeito de um deus e de seus mares


Ao seu reino e à sua rainha Ulisses volta,
A despeito de um deus e turvos ventos
E do espantoso estrépito de Ares.

Já no amor do compartido leito


Dorme a alva rainha sobre o peito
Do seu rei; mas, onde está aquele homem

Que nos dias e noites do desterro


Vagava pelo mundo qual um cão
E dizia que Ninguém era seu nome?

19
Arte poética
Mirar el río hecho de tiempo y agua
y recordar que el tiempo es otro río,
saber que nos perdemos como el río
y que los rostros pasan como el agua.

Sentir que la vigilia es otro sueño


que sueña no soñar y que la muerte
que teme nuestra carne es esa muerte
de cada noche, que se llama sueño.

Ver en el día o en el año un símbolo


de los días del hombre y de sus años,
convertir el ultraje de los años
en una música, un rumor y un símbolo,

ver en la muerte el sueño, en el ocaso


un triste oro, tal es la poesía
que es inmortal y pobre. La poesía
vuelve como la aurora y el ocaso.

A veces en las tardes una cara


nos mira desde el fondo de un espejo;
el arte debe ser como ese espejo
que nos revela nuestra propia cara.

Cuentan que Ulises, harto de prodigios,


lloró de amor al divisar su Itaca
verde y humilde. El arte es esa Itaca
de verde eternidad, no de prodigios.

También es como el río interminable


que pasa y queda y es cristal de un mismo
Heráclito inconstante, que es el mismo
y es otro, como el río interminable.

20
Arte poética
Olhar o rio feito de tempo e água
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
e que os rostos passam como a água.

Sentir que a vigília é outro sono


que sonha não sonhar e que a morte
que teme nossa carne é essa morte
de cada noite, que se chama sono.

Ver no dia ou no ano um símbolo


dos dias do homem e dos seus anos,
converter o ultraje dos anos
numa música, um rumor e um símbolo,

ver na morte o sono, no ocaso


um triste ouro, assim é a poesia
que é imortal e pobre. A poesia
volta como a aurora e o ocaso.

Às vezes, certas tardes, uma cara


nos olha do fundo de um espelho;
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela a nossa própria cara.

Contam que Ulisses, farto de prodígios,


chorou de amor ao divisar a sua Ítaca
verde e humilde. A arte é essa Ítaca
de verde eternidade, não de prodígios.

Também é como o rio interminável


que passa e para e é cristal dum mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável.

Jorge Luis Borges

21
Viaja dentro de ti

Pudesse a árvore vagar e mover-se com pés e asas, não


sofreria os golpes do machado nem a dor de ser cortada.
Não errasse o sol por toda a noite, como poderia ser o mundo
iluminado a cada nova manhã?
E se a água do mar não subisse ao céu, como cresceriam as
plantas regadas pela chuva e pelos rios?
A gota que deixou seu Lar, o oceano, e a ele depois retornou,
encontrou a ostra à sua espera e nela se fez pérola.
Não deixou José seu pai em lágrimas, pesar e desespero, ao
partir em viagem para alcançar o reinado e a fortuna?
Não viajou o Profeta para a distante Medina onde encontrou
novo reino e centenas de povos para governar?
Faltam-te pés para viajar?
Viaja dentro de ti mesmo, e reflete, como a mina de rubis, os
raios de sol para fora de ti.
A viagem te conduzirá a teu ser, transmutará teu pó em ouro
puro.
Ainda que a água salgada faça nascer mil espécies de
frutos, abandona todo amargor e acridez e guia-te apenas pela
doçura.
É o Sol de Tabriz que opera todos os milagres: toda árvore
ganha beleza quando tocada pelo sol.

Jelaluddin Rumi

22
Ítaca
Se partires um dia rumo à Ítaca
Faz votos de que o caminho seja longo
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem lestrigões, nem ciclopes,
nem o colérico Posidon te intimidem!
Eles no teu caminho jamais encontrarás
Se altivo for teu pensamento
Se sutil emoção o teu corpo e o teu espírito tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes
Nem o bravio Posidon hás de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser diante de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
Nas quais com que prazer, com que alegria
Tu hás de entrar pela primeira vez em um porto
Para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir.
Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos
E perfumes sensuais de toda espécie
Quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrinas
Para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas, não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
E fundeares na ilha velho enfim.
Rico de quanto ganhaste no caminho
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu
Se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E, agora, sabes o que significam Ítacas.

23
Vozes

Vozes queridas, vozes ideais


Daqueles que morreram ou daqueles que estão
Perdidos para nós, como se mortos.
Eles nos falam em sonho, alguma vezes,
Outras vezes, em pensamentos as escutamos.
E, quando soam, por um instante eis que retornam
Aos sons da poesia primeva em nossa vida,
qual a música distante que se perde noite afora.

Constantinos Kaváfis

Nenhum homem é uma ilha;


Nenhum deles está só.
A alegria de cada homem me contagia;
A dor que cada um sente me corrói.
Precisamos uns dos outros,
Assim, hei de defender
Cada homem como se um irmão fosse;
Cada um como se fora um amigo fiel.
Sou parte do gênero humano.

John Donne

24
Traduzir-se

Uma parte de mim Uma parte de mim


é todo o mundo: é permanente:
outra parte é ninguém: outra parte
fundo sem fundo. se sabe de repente.

Uma parte de mim Uma parte de mim


é multidão: é só vertigem:
outra parte estranheza outra parte,
e solidão. linguagem.

Uma parte de mim Traduzir-se uma parte


pesa, pondera: na outra parte
outra parte – que é uma questão
delira de vida ou morte –
será arte?
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta. Ferreira Gullar

25
Transposição
Na manhã que desperta
o jardim não mais geometria
é gradação de luz e aguda
descontinuidade de planos.

Tudo se recria e o instante


varia de ângulo e face
segundo a mesma vidaluz
que instaura jardins na amplitude

que desperta as flores em várias


cores instantes e as revive
jogando-as lucidamente
em transposição contínua

Orides Flores

Nós nunca chegamos aos pensamentos.


Eles vêm a nós.
É a hora conveniente para a conversação.
Isto nos dispõe para a meditação em comum.
Esta nem considera o opinar contraditório, nem tolera o concordar
condescendente.
O pensar permanece firme ao vento da coisa.
De uma tal convivência
talvez alguns surjam como companheiros no ofício do pensar.
A fim de que inesperadamente um deles se torne mestre.

Martin Heidegger

26
Primeiro escuto, começa sempre por aí.
Qualquer escritor é um escutador em primeiro lugar.
Depois capturo o que me comoveu e me roubou o chão.
Tem de ser algo quase que me dissolve.
Uma frase, uma pessoa, um momento,
tem de tomar posse de mim, fico perdido.
Depois para dar um sentido às coisas tenho de sair de mim,
e aí começa a história.

Mia Couto

Homem, presta atenção

O que diz a profunda meia-noite?


Eu dormia, dormia
e de um profundo sonhar eu despertei.
O mundo é profundo
Mais profundo do que o pensa o dia
Profunda é sua dor
O prazer – mais profundo ainda que a dor
A dor diz: Passa!
Mas todo prazer deseja eternidade
Uma profunda, profunda Eternidade.

Friedrich Nietzsche

27
Da dama incerta
Dama inquieta borboleta que não pousa seu pousar, ramo frá-
gil tempo breve que ao eterno quer chegar. Mas se tudo em ti só
voa, puro pólen pelo ar, não te falte a esperança da Criança vis-
lumbrar. Buscas longe o que a teu lado canta o mundo sem cessar,
não te cansa, forasteira, nesses mares navegar? Sal na face, sol no
seio, rude o vento a fustigar tua audácia e teu receio, frágil barco
em alto mar. Se a coragem fosse tua e o temor temor do mar, a
voragem vos teria feito a todos naufragar. Mas quem guia a nau
incerta muito além do vosso ousar é a Estrela que desperta vosso
Amor-além-do-amar

Dora Ferreira da Silva

Quando ela fala


Quando ela fala, parece
Que a voz da brisa se cala;
Talvez um anjo emudece
Quando ela fala.

Meu coração dolorido


As suas mágoas exala.
E volta ao gozo perdido
Quando ela fala.

Pudesse eu eternamente,
Ao lado dela, escutá-la
Ouvir sua alma inocente
Quando ela fala.

Minh’alma, já semimorta,
Conseguirá ao céu alçá-la,
Porque o céu abre uma porta
Quando ela fala.

Machado de Assis
28
Rápido e rasteiro
Vai ter uma festa
que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.
aí eu paro
tiro o sapato
e danço o resto da vida.

Chacal

Soneto 151
Se te comparo a um dia de verão
És por certo mais belo e ameno;
O vento espalha as folhas pelo chão,
E o domínio do estio é bem pequeno.
As vezes brilha o sol em demasia,
Outras vezes desmaia com frieza;
O que é belo declina num só dia,
Na eterna mutação da natureza.
Mas em ti o verão será eterno;
Esse encanto que tens não perderás,
Nem chegarás da morte ao triste inverno:
Nestas linhas, com o tempo crescerás.
E enquanto na terra houver um ser,
Meus versos te farão viver.

William Shakespeare

29
Dame la mano

Dame la mano y danzaremos;


dame la mano y me amarás.
Como una sola flor seremos,
como una flor, y nada más…
El mismo verso cantaremos,
al mismo paso bailarás.
Como una espiga ondularemos,
como una espiga, y nada más.
Te llamas Rosa y yo Esperanza;
pero tu nombre olvidarás,
porque seremos una danza
en la colina y nada más…

Dá-me tua mão

Dá-me a tua mão e dançaremos;


dá-me tua mão e me amarás.
Como única flor seremos,
Como uma flor e nada mais…
O mesmo verso cantaremos,
E ao mesmo passo bailarás.
Como uma espiga ondularemos,
Como uma espiga e nada mais.
Te chamas Rosa e eu Esperança,
porém teu nome esquecerás,
porque seremos uma dança
na colina e nada mais…

Gabriela Mistral

30
A palavra mágica
Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira


no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.
Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.

Memória
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido


contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas


muito mais que lindas,
essas ficarão.

31
Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.


Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,


não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, do tempo presente,
os homens presentes,
a vida presente.

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.


E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

32
Amar
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,


sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
e o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,


o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,


distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa


amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

Carlos Drummond de Andrade

33
Soneto

Necessito de um ser, um ser humano


Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler

À luz da lua que ressarce o dano


Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.

Necessito de um ser, de seu abraço


Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e lasso

Contra meu ser arfante:


Necessito de um ser sendo ao meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.

Mário Faustino

34
Eu te darei amor
Eu te darei, amor, mais do que a angústia
De minhas ânsias por um mundo justo,
Eu te darei, fermento resoluto,
Meu canto, que supera o homem mudo.

Eu te darei, num sonho vigilante,


A certeira emergência da alvorada,
Desvelando, num canto lancinante,
A oclusão da clausura obstinada.

Eu te darei o som, que compendia


Mil vozes das palavras preteridas,
E te darei, na áspera alegria,
As vozes sufocadas de mil vidas.

E assim, tudo o que a simples mão fraterna


Associa em uníssono e coesão
– A Rosa, a liberdade, o sonho, o pão... –
Eu te darei, amor, neste poema.

Aurora de tempos novos


Dividimos o pão, o sonho, a aurora
Com alma solidária e mão aberta,
Que a urgência do tempo nos aperta
E não suporta o amor pausa ou demora.

Seja o tempo do encontro, logo agora,


Com as provas de amor, em hora certa,
E, pronto para a amizade, sempre alerta
Esteja o coração, a toda hora.
Fraterna seja a vida: o amor, fraterno,
E tudo se entrelace num abraço,
Que seja muito estreito e muito terno

Triunfe a luz do amor, anule o espaço


E se abra para o novo, para um eterno
Arco-íris, sem entrave ou embaraço
Antonio Lázaro de Almeida Prado
35
Tu e eu

Feliz o momento em que nos sentarmos no palácio,


dois corpos, dois semblantes, uma única alma
– tu e eu.

E ao adentrarmos o jardim, as cores da alameda


e a voz dos pássaros nos farão imortais
– tu e eu.

As estrelas do céu virão contemplar-nos


e nós lhe mostraremos a própria lua
– tu e eu.

Tu e eu, não mais separados, fundidos em êxtase,


felizes e a salvo da fala vulgar
– tu e eu.

As aves celestes de rara plumagem


por inveja perderão o encanto
no lugar em que estaremos a rir
– tu e eu.

Eis a maior das maravilhas: que tu e eu,


sentados aqui neste recanto, estejamos agora
um no Iraque, outro em Khorassan
– tu e eu.

Djalal ad-Din Rûmi

36
Amor é fogo que arde sem se ver
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões

Ela1
Contigo aqui em Mertu
É como se já estivesse em Heliopolis.
Regressamos ao jardim das muitas árvores,
Os meus braços cheios de flores.

Olhando o meu reflexo no quieto lago –


Os meus braços cheios de flores –
Vejo-te a aproximares-te pé ante pé
Para me beijares por trás,
Os meus cabelos carregados de perfume.

Com os teus braços à minha volta


Sinto-me como se pertencesse ao faraó.

1
O poema egípcio data entre 1567 e 1085 a.C. Tradução: Hélder M. Pereira

37
Ensinamento

Minha mãe achava estudo


a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo
com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

Impressionista

Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

Adélia Prado

38
Desejos

Quero asas de borboleta azul,


para que eu encontre
o caminho do vento
o caminho da noite
a janela do tempo
o caminho de mim.

Vende-se

Vende-se uma casa encantada


no topo da mais alta montanha.
Tem dois amplos salões
onde você poderá oferecer banquetes
para os duendes e anões
que moram na floresta ao lado.
Tem jardineiras nas janelas
onde convém plantar margaridas.
Tem quartos de todas as cores
que aumentam ou diminuem
de acordo com o seu tamanho
e na garagem há vagas.

Roseana Murray

39
A palavra seda

A atmosfera que te envolve


atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.
E como as coisas, palavras
impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.
É certo que tua pessoa
não faz dormir, mas desperta;
nem é sedante, palavra
derivada da de seda.
E é certo que a superfície
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,
nada tem da superfície
luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”.
Mas em ti, em algum ponto,
talvez fora de ti mesma,
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas,
há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,
de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza, que sob a palavra gasta
persiste na coisa seda.

40
A mulher e a casa
Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui


tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca


só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,


ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;
pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:


seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem


estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem


efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.

João Cabral de Melo Neto


41
Velha chácara
A casa era por aqui...
Onde? Procuro-a e não acho.
Ouço uma voz que esqueci:
É a voz deste mesmo riacho.

Ah quanto tempo passou!


(Foram mais de cinqüenta anos)
Tantos que a morte levou!
(E a vida... nos desenganos...)

A usura fez tábua rasa


Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa...

— Mas o menino ainda existe.

Manuel Bandeira

A casa estava quieta e o mundo calmo


A casa estava quieta e o mundo calmo.
Leitor tornou-se livro, e a noite de verão.
Era como o ser consciente do livro.
A casa estava quieta e o mundo calmo.
Palavras eram ditas como se livro não houvesse,
Só que o leitor debruçado sobre a página
Queria debruçar-se, queria mais que muito ser
O sábio para quem o livro é verdadeiro
E a noite de verão é perfeição da mente.
A casa estava quieta porque tinha de estar.
Estar quieta era parte do sentido e da mente:
Acesso da perfeição à página.
E o mundo estava calmo. Em mundo calmo,
Em que não há outro sentido, a verdade
É calma, é verão e é noite, a verdade
É o leitor insone e debruçado a ler.

Wallace Bruce
42
Poema XVIII
Os dias não se descartam nem se somam, são abelhas
que arderam de doçura ou enfureceram
o aguilhão: o certame continua,
vão e vêm as viagens do mel à dor.
Não, não se desfia a rede dos anos: não hà rede.
não caem gota a gota de um rio: não há rio.
O sonho não divide a vida em duas metades,
nem a ação, nem o silêncio, nem a virtude:
a vida foi como uma pedra, um só movimento,
uma única fogueira que reverberou na folhagem,
uma flecha, uma só, lenta ou ativa, um metal
que subiu e desceu queimando em teus ossos.

Pablo Neruda

Poema VI
Tudo vive em mim. Tudo se entranha
Na minha tumultuada vida. E por isso
Não te enganas, homem, meu irmão,
Quando dizes na noite, que só a mim me vejo.
Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam
Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,
O olhar agudo, todos eles em mim,
Porque o poeta é irmão do escondido das gentes
Descobre além da aparência, é antes de tudo
LIVRE, e porisso conhece. Quando o poeta fala
Fala do seu quarto, não fala do palanque,
Não está no comício, não deseja riqueza
Não barganha, sabe que o ouro é sangue
Tem os olhos no espírito do homem
No possível infinito. Sabe de cada um
A própria fome. E porque é assim, eu te peço:
Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta
O homem está vivo.

Hilda Hilst
43
Hino de consagração a Eros1

A inteligência sem amor, te faz perverso.


A justiça sem amor, te faz implacável.
A diplomacia sem amor, te faz hipócrita.
O êxito sem amor, te faz arrogante.
A riqueza sem amor, te faz avaro.
A docilidade sem amor te faz servil.
A pobreza sem amor, te faz orgulhoso.
A beleza sem amor, te faz ridículo.
A autoridade sem amor, te faz tirano.
O trabalho sem amor, te faz escravo.
A simplicidade sem amor, te deprecia.
A oração sem amor, te faz introvertido.
A lei sem amor, te escraviza.
A política sem amor, te deixa egoísta.
A fé sem amor te deixa fanático.
A religião sem amor se converte em tortura.

Hesíodo, séc. VIII a.C.

“Vigie os seus pensamentos, porque eles se tornarão palavras;


vigie suas palavras, pois elas se transformarão em atos;
vigie seus atos, porque eles se tornarão seus hábitos;
vigie seus hábitos, pois eles formarão seu caráter;
vigie seu caráter, porque ele será o seu destino”.

Píndaro, Fragmentos, séc. VI a.C.

1
Eros é o “Princípio Motor Cósmico”, ou o “Amor”.

44
De mãe

O cuidado de minha poesia e essa fé desconfiada,


aprendi foi de mãe, pois, quando se anda descalço
mulher de pôr reparo nas cada dedo olha a estrada
coisas,
e de assuntar a vida. Foi mãe que me descegou
para os cantos milagreiros da
A brandura de minha fala vida
na violência de meus ditos apontando-me o fogo disfar-
ganhei de mãe, çado
mulher prenhe de dizeres, em cinzas e a agulha do
fecundados na boca do mun- tempo movendo no palheiro.
do.
Foi mãe que me fez sentir
Foi de mãe todo o meu tes- as flores amassadas
ouro debaixo das pedras
veio dela todo o meu ganho os corpos vazios
mulher sapiência, yabá, rente às calçadas
do fogo tirava água e me ensinou,
do pranto criava consolo. insisto, foi ela
a fazer da palavra
Foi de mãe esse meio riso artifício
dado para esconder arte e ofício
alegria inteira do meu canto
da minha fala.
.
Conceição Evaristo

45
ÍNDICE

Apresentação 3
À João Guimarães Rosa - David Calderoni 4
A seara de Saramago - José Nêumanne Pinto 5
Nunca Mais o canto dos pássaros ... - Robert Frost 6
As coisas - Mário Quintana 7
Confições - Santo Agostinho 7
Desencanto - Manoel Bandeira 8
Motivo - Cecília Meireles 8
Mar Potuguês - Fernando Pessoa 9
Ulisses - Fernando Pessoa 9
Cessa teu Canto - Fernando Pessoa 10
Mar Sonoro - Sophia de Mello 11
O mar dos meus olhos - Sophia de Mello 11
Exílio - Sophia de Mello 11
Regressarei - Sophia de Mello 12
Liberdade - Sophia de Mello 12
Musa - Sophia de Mello 12
O poema - Sophia de Mello 13
O girassol - Vinícius de Moraes 14
Por cima da minha vida - Dora Ribeiro 15
Teoria do jardim - Dora Ribeiro 15
O retorno é um caminho - Dora Ribeiro 16
Começar e o fim - Dora Ribeiro 16
A função da arte I - Eduardo Galeano 17
Transfiguração - Paulo Bonfim 17
A solidão e sua porta - Carlos Pena Filho 18
Soneto do desmantelo azul - Carlos Pena Filho 18
Arte poética - Jorge Luis Borges 19
Odisséia - Jorge Luis Borges 21
Viaja dentro de ti - Jelaluddin Rumi 22
Ítaca - Constantino Kavafis 23
Vozes - Constantinos Kaváfis 24
Nenhum homem é uma ilha - Jhon Donne 24
Traduzir-se - Ferreira Gullar 25
Trasposição - Orides Flores 26
Nós nunca chegamos aos pensamentos - Martin Heidegger 26
Primeiro escuto, começa por aí - Mia Couto 27
Homem, presta atenção - Friedrich Nietzsche 27
Da dama incerta - Dora Ferreira da Silva 28
Quando ela fala - Machado de Assis 28
Rápido e rasteiro - Chacal 29
Soneto 151 - William Shakespeare 29
Dame la mano - Gabriela Mistral 30
A palavra mágica - Carlos Drummond de Andrade 31
Memória - Carlos Drummond de Andrade 31
Mãos dadas - Carlos Drummond de Andrade 32
Ausência - Carlos Drummond de Andrade 32
Amar - Carlos Drummond de Andrade 33
Soneto - Mário Faustino 34
Eu te darei amor - Antonio Lázaro de Almeida Prado 35
Aurora de tempos novos - Antonio Lázaro de Almeida Prado 35
Tu e eu - Djalal ad-Din Rûmi 36
Amor é fogo que arde sem se ver - Luís de Camões 37
Ela - 37
Ensinamento - Adélia Prado 38
Impressionista - Adélia Prado 38
Desejos - Roseana Murray 38
Vende-se - Roseana Murray 39
A palavra seda - João Cabral de Melo Neto 40
A mulher e a casa - João Cabral de Melo 41
Velha chácara - Manuel Bandeira 42
A casa estava quieta e mundo calmo - Wallace Bruce 42
Poema XVIII - Pablo Neruda 43
Poema VI - Hilda Hilst 43
Hino de consagração à Eros - Hesíodo 44
Vigie seus pensamentos - Píndaro 44
De mãe - Conceição Evaristo 45
Ilustração da capa: Carmen Gutiérrez

Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial


Rua Ceará 2, São Paulo - SP CEP 01243-010
Tel.: 11 3824-9633 E-mail: ifbe@braudel.org.br
www.circulosdeleitura.org.br
www.braudel.org.br

Você também pode gostar