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À POESIA
Apresentação
Ler, ler, ler, viver a vida que outros sonharam. Ler, ler, ler,
a alma se esquece das coisas que passaram. Restam as que ficam,
as ficções. As flores nascidas da pluma. As ondas, as humanas
emoções, o decantar da espuma. Ler, ler, ler, serei leitura amanhã
também eu? Serei meu criador, minha criatura, serei o que passou?
Miguel de Unamuno
David Calderoni
4
Esta língua é fel com mel,
A seara de Saramago
cantigas a palo seco
de ninar o futuro.
Esta língua é minha semente,
machado de mulato do morro,
Esta língua é meu coração,
pátria de poeta lisboeta.
na tortura, na paixão
e no sal amargo da purificação.
Esta língua é minha visão,
o sol do soldado caolho,
Esta língua é jóia africana,
a mão do soldado maneta.
ela caça a onça caetana,
ela cruza a légua tirana.
Esta língua é minha música,
na palavra do padre pregador,
Esta língua é fruto de meu
no pássaro do padre voador.
ventre,
mata sede de amizade,
Esta língua é minha mulher
me arma nos bons combates.
tem cuidados de mãe
no leito da amante.
Esta língua não é de viver,
língua de navegar e de lamber
Esta língua é minha rosa,
e de dançar o tango argentino.
tem perfume dos sertões gerais,
tem sabor de vinhos do Porto.
Esta língua é meu berço,
esta língua me conhece,
Esta língua é meu cavalo
esta língua é meu chão.
para subir cidades e serras,
que a brisa do Brasil beija e
José Nêumanne Pinto
balança.
5
Nunca mais o canto dos pássaros seria o mesmo
6
As coisas
O encanto
sobrenatural
que há
nas coisas da Natureza!
No entanto, amiga,
se nelas algo te dá
encanto ou medo,
não me digas que seja feia
ou má,
é, acaso, singular...
E deixa-me dizer-te em segredo
um dos grandes segredos do mundo:
– Essas coisas que parecem
Não terem beleza
Nenhuma
– É simplesmente porque
não houve nunca quem lhes desse ao menos
um segundo
olhar!
Mário Quintana
Confissões
Perguntei à terra,
ao mar, à profundeza
e, entre os animais, às criaturas que rastejam,
Perguntei aos ventos que sopram
e aos seres que o mar encerra.
Perguntei aos céus, ao sol, à lua e às estrelas
e a todas as criaturas à volta da minha carne:
Minha pergunta era o olhar que eu lhes lançava
Sua resposta era a sua beleza.
Santo Agostinho
7
Desencanto
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústica rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
— Eu faço versos como quem morre.
Manuel Bandeira
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Cecília Meireles
8
Mar português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Ulisses
O mito é um nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É o mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
9
Cessa teu canto
Fernando Pessoa
10
Mar sonoro
Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.
Exílio
11
Regressarei
Liberdade
Musa
Aqui me
sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos
Musa ensina-me
o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
Que me foge de repente.
12
O poema
O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento
(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)
13
O Girassol
Vinínius de Moraes
14
por cima da minha vida
o mundo organiza
sem nenhum senso
a harmonia
visto do jardim
o mundo não merece
outro desenho que não
seja o tempo
Teoria do jardim
girassol
abre os braços a cada manhã
pensando no caminho
e no avesso dele nas turvas tarefas
que esgotam o seu sangue
e o meu sexo
tanta luz concentrada
numa ideia apenas
tanta miséria retida
em tão curto espaço de vida
girassol
gira loucamente
gira
porque não há sentido fora
do movimento e não existe
vida fora das breves inclinações
15
o retorno é um caminho
de temperaturas
onde os corpos se
frequentam em graus
e preceitos diversos
louvando as idades
e todas as revelações
do sinais
o retorno é o caminho
que desconstrói a chegada
Começar e o fim
a teoria dos mares prevê inúmeros regressos
tantos que são poucas as viagens
idas e vindas
nesta teoria
a importância está em não se ter virtudes
existimos ora secos ora regressados
Dora Ribeiro
16
A função da arte I
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para
que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.
– Me ajuda a olhar!
Eduardo Galeano
Transfiguração
Paulo Bonfim
17
A solidão e sua porta
Quando mais nada resistir que valha
a pena viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha)
Quando pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha
Odisséia
Já a espada de ferro executara
O devido trabalho da vingança;
Já os ásperos dardos e a lança
O sangue do perverso derramara.
19
Arte poética
Mirar el río hecho de tiempo y agua
y recordar que el tiempo es otro río,
saber que nos perdemos como el río
y que los rostros pasan como el agua.
20
Arte poética
Olhar o rio feito de tempo e água
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
e que os rostos passam como a água.
21
Viaja dentro de ti
Jelaluddin Rumi
22
Ítaca
Se partires um dia rumo à Ítaca
Faz votos de que o caminho seja longo
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem lestrigões, nem ciclopes,
nem o colérico Posidon te intimidem!
Eles no teu caminho jamais encontrarás
Se altivo for teu pensamento
Se sutil emoção o teu corpo e o teu espírito tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes
Nem o bravio Posidon hás de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser diante de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
Nas quais com que prazer, com que alegria
Tu hás de entrar pela primeira vez em um porto
Para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir.
Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos
E perfumes sensuais de toda espécie
Quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrinas
Para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas, não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
E fundeares na ilha velho enfim.
Rico de quanto ganhaste no caminho
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu
Se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E, agora, sabes o que significam Ítacas.
23
Vozes
Constantinos Kaváfis
John Donne
24
Traduzir-se
25
Transposição
Na manhã que desperta
o jardim não mais geometria
é gradação de luz e aguda
descontinuidade de planos.
Orides Flores
Martin Heidegger
26
Primeiro escuto, começa sempre por aí.
Qualquer escritor é um escutador em primeiro lugar.
Depois capturo o que me comoveu e me roubou o chão.
Tem de ser algo quase que me dissolve.
Uma frase, uma pessoa, um momento,
tem de tomar posse de mim, fico perdido.
Depois para dar um sentido às coisas tenho de sair de mim,
e aí começa a história.
Mia Couto
Friedrich Nietzsche
27
Da dama incerta
Dama inquieta borboleta que não pousa seu pousar, ramo frá-
gil tempo breve que ao eterno quer chegar. Mas se tudo em ti só
voa, puro pólen pelo ar, não te falte a esperança da Criança vis-
lumbrar. Buscas longe o que a teu lado canta o mundo sem cessar,
não te cansa, forasteira, nesses mares navegar? Sal na face, sol no
seio, rude o vento a fustigar tua audácia e teu receio, frágil barco
em alto mar. Se a coragem fosse tua e o temor temor do mar, a
voragem vos teria feito a todos naufragar. Mas quem guia a nau
incerta muito além do vosso ousar é a Estrela que desperta vosso
Amor-além-do-amar
Pudesse eu eternamente,
Ao lado dela, escutá-la
Ouvir sua alma inocente
Quando ela fala.
Minh’alma, já semimorta,
Conseguirá ao céu alçá-la,
Porque o céu abre uma porta
Quando ela fala.
Machado de Assis
28
Rápido e rasteiro
Vai ter uma festa
que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.
aí eu paro
tiro o sapato
e danço o resto da vida.
Chacal
Soneto 151
Se te comparo a um dia de verão
És por certo mais belo e ameno;
O vento espalha as folhas pelo chão,
E o domínio do estio é bem pequeno.
As vezes brilha o sol em demasia,
Outras vezes desmaia com frieza;
O que é belo declina num só dia,
Na eterna mutação da natureza.
Mas em ti o verão será eterno;
Esse encanto que tens não perderás,
Nem chegarás da morte ao triste inverno:
Nestas linhas, com o tempo crescerás.
E enquanto na terra houver um ser,
Meus versos te farão viver.
William Shakespeare
29
Dame la mano
Gabriela Mistral
30
A palavra mágica
Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.
Memória
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão
31
Mãos dadas
Ausência
32
Amar
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
33
Soneto
Mário Faustino
34
Eu te darei amor
Eu te darei, amor, mais do que a angústia
De minhas ânsias por um mundo justo,
Eu te darei, fermento resoluto,
Meu canto, que supera o homem mudo.
36
Amor é fogo que arde sem se ver
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Luís de Camões
Ela1
Contigo aqui em Mertu
É como se já estivesse em Heliopolis.
Regressamos ao jardim das muitas árvores,
Os meus braços cheios de flores.
1
O poema egípcio data entre 1567 e 1085 a.C. Tradução: Hélder M. Pereira
37
Ensinamento
Impressionista
Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.
Adélia Prado
38
Desejos
Vende-se
Roseana Murray
39
A palavra seda
40
A mulher e a casa
Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.
Manuel Bandeira
Wallace Bruce
42
Poema XVIII
Os dias não se descartam nem se somam, são abelhas
que arderam de doçura ou enfureceram
o aguilhão: o certame continua,
vão e vêm as viagens do mel à dor.
Não, não se desfia a rede dos anos: não hà rede.
não caem gota a gota de um rio: não há rio.
O sonho não divide a vida em duas metades,
nem a ação, nem o silêncio, nem a virtude:
a vida foi como uma pedra, um só movimento,
uma única fogueira que reverberou na folhagem,
uma flecha, uma só, lenta ou ativa, um metal
que subiu e desceu queimando em teus ossos.
Pablo Neruda
Poema VI
Tudo vive em mim. Tudo se entranha
Na minha tumultuada vida. E por isso
Não te enganas, homem, meu irmão,
Quando dizes na noite, que só a mim me vejo.
Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam
Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,
O olhar agudo, todos eles em mim,
Porque o poeta é irmão do escondido das gentes
Descobre além da aparência, é antes de tudo
LIVRE, e porisso conhece. Quando o poeta fala
Fala do seu quarto, não fala do palanque,
Não está no comício, não deseja riqueza
Não barganha, sabe que o ouro é sangue
Tem os olhos no espírito do homem
No possível infinito. Sabe de cada um
A própria fome. E porque é assim, eu te peço:
Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta
O homem está vivo.
Hilda Hilst
43
Hino de consagração a Eros1
1
Eros é o “Princípio Motor Cósmico”, ou o “Amor”.
44
De mãe
45
ÍNDICE
Apresentação 3
À João Guimarães Rosa - David Calderoni 4
A seara de Saramago - José Nêumanne Pinto 5
Nunca Mais o canto dos pássaros ... - Robert Frost 6
As coisas - Mário Quintana 7
Confições - Santo Agostinho 7
Desencanto - Manoel Bandeira 8
Motivo - Cecília Meireles 8
Mar Potuguês - Fernando Pessoa 9
Ulisses - Fernando Pessoa 9
Cessa teu Canto - Fernando Pessoa 10
Mar Sonoro - Sophia de Mello 11
O mar dos meus olhos - Sophia de Mello 11
Exílio - Sophia de Mello 11
Regressarei - Sophia de Mello 12
Liberdade - Sophia de Mello 12
Musa - Sophia de Mello 12
O poema - Sophia de Mello 13
O girassol - Vinícius de Moraes 14
Por cima da minha vida - Dora Ribeiro 15
Teoria do jardim - Dora Ribeiro 15
O retorno é um caminho - Dora Ribeiro 16
Começar e o fim - Dora Ribeiro 16
A função da arte I - Eduardo Galeano 17
Transfiguração - Paulo Bonfim 17
A solidão e sua porta - Carlos Pena Filho 18
Soneto do desmantelo azul - Carlos Pena Filho 18
Arte poética - Jorge Luis Borges 19
Odisséia - Jorge Luis Borges 21
Viaja dentro de ti - Jelaluddin Rumi 22
Ítaca - Constantino Kavafis 23
Vozes - Constantinos Kaváfis 24
Nenhum homem é uma ilha - Jhon Donne 24
Traduzir-se - Ferreira Gullar 25
Trasposição - Orides Flores 26
Nós nunca chegamos aos pensamentos - Martin Heidegger 26
Primeiro escuto, começa por aí - Mia Couto 27
Homem, presta atenção - Friedrich Nietzsche 27
Da dama incerta - Dora Ferreira da Silva 28
Quando ela fala - Machado de Assis 28
Rápido e rasteiro - Chacal 29
Soneto 151 - William Shakespeare 29
Dame la mano - Gabriela Mistral 30
A palavra mágica - Carlos Drummond de Andrade 31
Memória - Carlos Drummond de Andrade 31
Mãos dadas - Carlos Drummond de Andrade 32
Ausência - Carlos Drummond de Andrade 32
Amar - Carlos Drummond de Andrade 33
Soneto - Mário Faustino 34
Eu te darei amor - Antonio Lázaro de Almeida Prado 35
Aurora de tempos novos - Antonio Lázaro de Almeida Prado 35
Tu e eu - Djalal ad-Din Rûmi 36
Amor é fogo que arde sem se ver - Luís de Camões 37
Ela - 37
Ensinamento - Adélia Prado 38
Impressionista - Adélia Prado 38
Desejos - Roseana Murray 38
Vende-se - Roseana Murray 39
A palavra seda - João Cabral de Melo Neto 40
A mulher e a casa - João Cabral de Melo 41
Velha chácara - Manuel Bandeira 42
A casa estava quieta e mundo calmo - Wallace Bruce 42
Poema XVIII - Pablo Neruda 43
Poema VI - Hilda Hilst 43
Hino de consagração à Eros - Hesíodo 44
Vigie seus pensamentos - Píndaro 44
De mãe - Conceição Evaristo 45
Ilustração da capa: Carmen Gutiérrez