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MAURICE BLANCHOT E SUA POÉTICA DO TRADUZIR:


A TRADUÇÃO COMO VOZ VINDA DE ALHURES

Eclair Antonio Almeida Filho

LET-UNB

A importância do trabalho de tradução [...] me parece


essencial, como tudo o que se avizinha do impossível.
(BLANCHOT, 2014, p. 53)1

Em sua vasta e riquíssima obra ensaística publicada em vida, Maurice Blanchot –


tradutor secreto e anônimo de Paul Celan, como nô-lo revela Emmanuel Levinas –
consagrou apenas três textos à questão da tradução (como realização, cumprimento, obra
dada) e do traduzir (entendido como ato, exigência, devir, potência de porvir), a saber:
“Traduit de...” (1949), de La Part du Feu, “Traduire” (1971), de L’Amitié, e La Parole
Ascendante (1984, 2009), publicado originalmente como prefácio para a tradução de
Hors de la colline, do poeta e tradutor russo Vadim Kozovoi, e republicado em Lettres à
Vadim Kozovoï em 2009. Ressalte-se que nos recentes volumes da correspondência de
Blanchot com Vadim Kozovoi, bem como com seu tradutor alemão Johannes Hubner, o
tema do traduzir sempre vem à tona.
Desses três ensaios, vamos nos deter aqui em dois: de início, em “Traduit de...”,
em que Blanchot lança pela primeira vez suas noções de ‘sombra’ e de ‘língua da
tradução’ envolvidas no traduzir; em seguida passaremos a “Traduire”, ensaio em que
Blanchot dará ao tradutor um papel essencial na efetivação do sentido e da continuação
do ato literário, bem como aproximará, mas entre interstícios, entre vazios – ou em sua
linguagem, num écart – traduzir e o escrever, de modo que a prática tradutória seja o jogo
mesmo da diferença.
Ocupemo-nos, então, a ‘Traduzido de’. Durante todo o ensaio, que toma como
ponto de partida para sua discussão as obras Pour qui sonne le glas, [Por quem os sinos
dobram, em tradução francesa], de Ernest Hemingway, e La Guerra et la Paix [Guerra e

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L’importance du travail de traduction […] me paraît essentielle, comme tout ce qui voisine l’impossible.

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Paz], de Tolstoi], Blanchot põe em questão, principalmente, o modo como ‘de uma língua
se fazem duas’ e ‘como lidamos com nossa língua em um processo de estrangeirização’
Citemos Blanchot:

Hemingway, escrevendo um romance sobre a Espanha, lança de tempos


em tempos nos diálogos palavras espanholas. Convenção um pouco
ingênua, pois ela parece querer nos lembrar que os espanhóis sabem
também às vezes falar em espanhol. Entretanto, os efeitos não são tão
simples. O próprio Tolstoi se fizera a pergunta: «Por que, em minha
obra, não somente os russos, mas também os franceses falam ora em
russo, ora em francês?2 (BLANCHOT, 1949, p. 186)

É a partir deste questionamento de Tolstoi que Blanchot vai apresentar a noção de


‘sombra’ em oposição à ‘luz’. A priori, as faixas de luz remeteriam às partes em que a
tradução, mimetizando um ato primeiro de criação, confundem-se com uma obra escrita
originalmente em nossa língua, numa linguagem corrente; ao passo que os trechos de
sombra apontam para a tradução em si, para o fato de que estamos lendo uma tradução,
em que nossa língua é estrangeirizada pelo traduzir ou que a própria língua ‘original’
surge estrangeirizada como em caso de nomes de logradouros – Place de La Republique –
ou em expressões como ‘en passant’, ‘tout court’, ‘bon vivant’. A este respeito,
acrescentemos com Bernard Simeone os casos em que nos deparamos com um poema de
nossa língua traduzida no livro que iremos traduzir:

A experiência dos confins pode também se produzir ‘em


espelho’, quando traduzo os poemas pelos quais [Vittorio] Sereni, em
Étoile variable, interiorizou o ritmo mesmo da poesia de René Char,
introduzindo em seus próprios versos fragmentos de Char traduzidos
aos seus cuidados. Como traduzir em francês uma tal criação nas
fronteiras do calque [decalque]? Fazer um retorno ao texto original de
Char (e esse retorno, por uma ironia do destino, poderia ser, retomando
um célebre título do francês, de retorno a montante [amont]) ou traduzir
literalmente a tradução de Sereni, traduzi-la enquanto texto primeiro?
[...] Não é o menor paradoxo da tradução verificar a radicalidade de
seus lances [enjeux] até no estreito parentesco das línguas 3.
(SIMEONE, 2014, p. 18)

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Hemingway, écrivant un roman sur l’Espagne, jette de temps en temps dans les dialogues des mots
espagnols. Convention un peu naïve, car elle a l’air de vouloir nous rappeler que les Espagnols savent aussi
quelquefois parler en espagnol. Cependant, les effets ne sont pas si simples. Tolstoï lui-même s’était posé la
question : « Pourquoi dans mon œuvre, non seulement les Russes, mais aussi les Français parlent-ils tantôt
en russe, tantôt en français ? »

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A imersão das sombras escavaria a “superfície da linguagem, introduzindo nela toda sorte
de diferenças de nível e deslocando [dépaysant] assaz nitidamente as línguas para torná-
las todas estrangeiras4” (BLANCHOT, 1949, p. 186).
Afirmará então Blanchot que não é necessária a clara presença de sombras

para que se opere o recuo do texto, a decalagem que indica que o que
lemos não é exatamente o que deveríamos ler, e também essa
metamorfose pela qual sentimos através de nossa língua habitual se
abrirem interstícios e vazios donde nos é permitido vigiar a
aproximação extremamente misteriosa de uma outra língua, de nós
totalmente desconhecida5. (BLANCHOT, 1949, p. 186).

Para Blanchot o tradutor não deveria, de nenhum modo, renunciar “a fazer sua língua
submeter-se à transmutação que de uma só língua deve extrair duas, uma que é lida e
compreendida sem desvio, a outra que permanece ignorada, calada e inacessível e cuja
ausência (a sombra de que fala Tolstoi) é tudo o que dela captamos 6”. (BLANCHOT,
1949, p. 186-187). Destarte, lançando mão de uma metáfora fotográfica tão cara a
Blanchot, arriscamos depreender que na tradução temos algo como um negativo do
‘original’, cuja revelação depende da luz e da câmara escura do tradutor.
Por sua vez, em “Traduire” Blanchot continua sua poética do traduzir baseada no
écart entre luz e sombra a partir de uma análise do famoso ensaio de Walter Benjamin “A
tarefa do tradutor” (La tâche du traducteur – Die Aufgabe des Übersetzers), na qual o
filósofo francês busca acenar para o estatuto da diferença, uma diferença original no

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L’expérience des confins peut aussi se produire « en miroir », quand je traduis les poèmes par lesquels
[Vittorio] Sereni, dans Étoile variable, a intériorisé le rythme même de la poésie de René Char, introduisant
dans ses propres vers des fragments de Char traduits par ses soins. Comment traduire en français une telle
création aux frontières du calque? Faire retour au texte originel de Char (et ce retour, par une ironie du sort,
pourrait être, en reprenant un célèbre titre du Français, de retour amont) ou traduire littéralement la
traduction de Sereni, la traduire en tant texte premier? [...] Ce n’est pas le moindre paradoxe de la
traduction que de vérifier la radicalité de ses enjeux jusque dans l’étroite parenté des langues.
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la surface du langage, y introduisant toutes sortes de différences de niveau et dépaysant assez nettement
les langues pour les rendre toutes étrangères)
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pour que s’opère le recul du texte, le léger décalage qui indique que ce que nous lisons n’est pas
exactement ce que nous devrions lire, et aussi cette métamorphose par laquelle nous sentons à travers notre
langue habituelle s’ouvrir des interstices et des vides d’où il nous est loisible de surveiller l’approche
extrêmement mystérieuse d’une autre langue, de nous tout à fait inconnue.
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à faire subir à son langage la transmutation qui d’une seule langue doit en tirer deux, l’une qui est lue et
comprise sans détour, l’autre qui reste ignorée, tue et inaccessible et dont l’absence (l’ombre dont parle
Tolstoï) est tout ce que nous en saisissons.

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traduzir, bem como para a importância do tradutor na continuidade do ato literário.


Ademais, como um eco a “Traduzido de”, Blanchot enfatiza que, mormente, no traduzir,
é o tradutor que se sente estrangeiro em sua própria língua-morada.
Blanchot inicia seu ensaio, apontando para um certo resquício – messiânico, com
certeza – de um sonho com uma linguagem originária, pré-Babel, que se tornaria
acessível por meio da tradução, a qual, a partir do caráter de incompletude das línguas,
visaria uma complementaridade. Para Benjamin, todas as línguas diriam as mesmas
coisas, mas segundo um modo de visada diferente. Observa-se, aqui, uma perspectiva
provavelmente platônica, em que os sentidos estariam à disposição das diversas línguas,
que os veiculariam por meio de simulacros. Por sua vez, Blanchot aponta para o perigo
que implica tal concepção, uma vez que ela sinalizaria para

uma linguagem superior, que seria a harmonia ou a unidade


complementar de todos esses modos de visada diferentes e que falaria
idealmente na junção do mistério reconciliado de todas as línguas
faladas por todas as obras. Donde um messianismo próprio a cada
tradutor, se este trabalha para fazer crescerem as línguas em direção a
essa linguagem última, atestada já em cada língua presente, no que ela
encerra de porvir e do qual a tradução se apropria 7. (BLANCHOT,
1971, p. 70)

Blanchot entende que, caso o anelo benjaminiano se cumprisse, teríamos o fim de


todas as línguas, ou seja, de todas as diferenças e, por conseguinte, de toda origem e todo
porvir que cada língua encerra. Em contrapartida, Blanchot nos chama a atenção para o
fato de que

[o] tradutor é um escritor de uma singular originalidade, precisamente


lá onde ele parece não reivindicar nenhuma. Ele é o mestre secreto da
diferença das línguas, não para aboli-la, mas para utilizá-la, a fim de
despertar, na sua língua, pelas mudanças violentas ou sutis que ele lhe

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No original: un langage supérieur qui serait l’harmonie ou l’unité complémentaire de tous ces modes de
visée différents e qui parlerait idéalement à la jonction du mystère réconcilié de toutes les langues parlées
par toutes les oeuvres. D’où un messianisme propre à chaque traducteur, si celui-ci travaille à faire croître
les langues en direction de ce langage ultime, attesté déjà dans chaque langue présente, en ce qu’elle recèle
d’avenir et dont la traduction se saisit.

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traz, uma presença do que há de diferente, originalmente, no original 8.


(BLANCHOT, 1917, p. 71-72)

Assim, o tradutor, na visada blanchotiana, buscaria não suprimir a diferença – localizada


não só no estrangeiro, mas também no que consideramos nossa morada.
A tradução – a obra outra, original –, além de dar sobrevida ao original
estrangeiro, se constituiria como ato de escritura, não literal mas literário – como vimos
anteriormente em “Traduzido de”. Blanchot acrescenta que, no caso de obras escritas em
línguas que nenhuma comunidade linguístico-geográfica mais fala, as chamadas ‘línguas
mortas’, elas ganhariam, não apenas uma sobrevida, mas uma nova vida quando
traduzidas, de sorte que a tradução as reconduzia para “o que elas têm de mais próprio: à
sua estranheza de origem9”.
Tal potência tradutória criadora de porvires e de vidas novas coloca o tradutor
numa situação em que, ao se defrontar com a diferença manifestada pela língua
estrangeira, ele passa a se sentir sem morada em sua própria língua, a perceber que a
tradução não pode abrigar os lugares comuns, os já ditos, o que, por conseguinte, numa
busca, o força, o impele a criar, a recriar, a vasculhar o lugar da diferença na diferença do
lugar tanto estrangeiro quanto familiar. Para Blanchot, é essa falta que o tradutor “precisa
preencher pelos recursos de uma outra língua, ela mesma tornada outra na obra única
onde ela torna a se agrupar momentaneamente 10”(BLANCHOT, 1971, p. 72), abrindo
para uma voz vinda de alhures, sem necessariamente tempo e espaço precisos.
Ciente de que a tensão criadora se cumpre na tradução tanto entre a língua do
original e a língua para a qual se traduzirá, quanto na própria língua do tradutor, Blanchot
contesta a declaração de Rudolf Pannwitz, apropriada por Benjamin, segundo a qual o
tradutor, no caso, o que traduz para a língua alemã, ao aproximar, por meio da diferença
entre ambas, a língua traduzida e aquela a traduzir da Ur-Spracht, da língua originária,
empregaria como recurso de sua liberdade uma estrangeirização extrema de sua própria
língua, numa desembocadura do procedimento da literalidade em tradução.
8
No original: Le traducteur est un écrivain d'une singulière originalité, précisément là où il paraît n'en
revendiquer aucune. Il est le maître secret de la différence des langues, non pas pour l’abolir, mais pour
l’utiliser, afin d’éveiller, dans la sienne, par les changements violents ou subtils qu’il lui apporte, une
présence de ce qu’il y a de différent, originellement, dans l’original.
9
No original: ce qu’ils ont de plus propre : vers leur étrangeté d’origine.
10
No original: qu’il lui faut combler par les ressources d’une autre langue, elle même rendue autre en
l’œuvre unique où elle se rassemble momentanément.

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O que lemos de Blanchot é que tal perspectiva, ao invés de ressaltar, expor a


diferença na e pela tradução, investe na semelhança, própria à literalidade benjaminiana,
entre uma língua e outra (ainda que não do modo tradicional que implicaria a
germanização do grego, mas resultando, pois, no que se chamaria a helenização do
alemão), tornando assim inútil o trabalho da tradução, trabalho da diferença e não da
diferença que só tem lugar pela similitude entre as línguas. Por sua vez, o tradutor
exploraria o entre línguas ou então investiria em uma linguagem do écart. O écart
significa, assim, a abertura de um hiato entre as línguas envolvidas no traduzir, no qual,
por mais que o tradutor – tal Hércules – tentasse aproximar uma língua da outra, jamais
haveria uma fusão pura e total, uma unidade; tem-se aí o que poderíamos chamar a
irreconciliabilidade anti-babélica do traduzir.
Com Blanchot, o tradutor porta um estatuto de escritor, de modo que, embora se
continue a dizer que “há aqui os poetas, lá os romancistas, até mesmo os críticos, todos
responsáveis pelo sentido da literatura, é necessário contar do mesmo modo os tradutores,
escritores da espécie mais rara, e verdadeiramente, incomparáveis” 11 (BLANCHOT,
1971, p. 69). Ademais, Blanchot percebe que, tal como a palavra crítica – que vem a ser
um espaço aberto no qual se passa a escritura – o tradutor-escritor como passador,
médium, fora de sua morada –, a palavra tradutória se dá para a palavra criadora da qual
ela seria como a atualização necessária, sua evanescente epifania.
A essência da escritura – da tradução – é escapar a toda determinação essencial:
ela não está jamais já lá (ou está lá em sua ausência), visível-invisível, clara-escura,
sempre a se reencontrar e a se reinventar, vinda de alhures. A tradução – o traduzir –,
como novo ato de palavra, recomeça o incessante movimento – interrompido no original
– da escritura.

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No original: il y a ici les poètes, là les romanciers, voire les critiques, tous responsables du sens de la
littérature, il faut compter au même titre les traducteurs, écrivains de la sorte la plus rare, et vraiment
incomparables.

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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

BENJAMIN, Walter. A tarefa-renúncia do tradutor. In A tarefa do tradutor, de


Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Belo Horizonte: Fale/UFMG,
2008. p. 66-81. Tradução de Susana Kampff Lages.

BLANCHOT, Maurice. La Part du Feu. Paris: Gallimard, 1949.

BLANCHOT, Maurice. Lautréamont et Sade. Paris: Éditions de Minuit, 1949,


1963.

BLANCHOT, Maurice. Le Livre à Venir. Paris: Gallimard, 1959.

BLANCHOT, Maurice. L’Amitié. Paris: Gallimard, 1971.

BLANCHOT, Maurice. Traduire. In BLANCHOT, Maurice. L’Amitié. Paris:


Gallimard, 1971. p. 69-73.

BLANCHOT, Maurice. L’Écriture du Désastre. Paris: Gallimard, 1980.

BLANCHOT, Maurice. Lettres à Vadim Kozovoï. Paris: Manucius, 2009.

SIMEONE, BERNARD. Écrire, Traduire, en métamorphose. Paris: Verdier,


2014.

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