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MELANCOLIA E TRADUÇÃO

EM 'LAS BABAS DEL DIABLO'', DE JULIO CORTÁZAR


Marinés Delgadillo Pedrazas (UERJ)
Rita de Cássia M. Diogo (UERJ)
Considerado um dos contos mais revolucionários de Julio Cortázar, Las babas del diablo
(CORTÁZAR, 1991) deu lugar a diversas leituras, uma entre as quais lhe atribui inclusive uma
teoria da linguagem e uma nova atitude diante das palavras, o que nos levou a analisá-lo a partir do
conceito de tradução presente no ensaio La Tarea del Traductor, de Walter Benjamin (BENJAMIN,
1994).
Dada a complexidade do ensaio, privilegiaremos três núcleos que consideramos fundamentais para
a compreensão da noção de tradução em Benjamin, já que recorrentes na obra deste filósofo, quais
sejam:
A: O MITO BABÉLICO: que remete não somente à pluralidade da linguagem, mas principalmente
ao conflito subjacente à tarefa do tradutor;
B: A IMAGEM DA ALTERIDADE: a traduzibilidade pressupõe aceitar a distância entre texto
passado e interpretação presente (entre original e tradução), junto ao desejo de reduzir a alteridade,
forçando dessa maneira que ambos coincidam;
C: O FLUXO MELANCÓLICO: resultado do jogo com a alteridade, o fluxo melancólico reflete a
aceitação do tradutor da necessária destruição e reconstrução do original em outro tempo, cultura,
língua.
A análise e a articulação destes conceitos com segmentos do conto nos servirá tanto para uma
melhor compreensão da teoria filosófica de Benjamin, quanto para a análise dos procedimentos
narrativos de Cortázar.
Quanto ao MITO BABÉLICO: um dos pensamentos que perdura através dos tempos como objeto
de estudo e especulação é a idéia da existência de una linguagem originária, universal. Linguagem
esta que, segundo Benjamin, desaparece na multiplicidade depois da queda da torre de Babel, para
reaparecer como um eco messiânico por detrás da fragmentação e incompletude de todas as línguas.
A importância da tradução, portanto, consistiria no fato de que por meio dela, o tradutor, ao mesmo
tempo que coloca em evidência a imperfeição da linguagem, permite que a língua adâmica
transpareça enquanto recordação de uma linguagem primordial.
No conto, percebemos que o narrador se vê diante da impossibilidade de construir um relato que
reflita o que ele realmente viu. O próprio Cortázar, em uma entrevista feita por Evelyn Picón
(PICÓN, 1978) afirmou:
...en Las babas del diablo hay un primer problema del escritor que quiere contar algo
muy difícil de contar, una experiencia vertiginosa, y se da cuenta que los recursos
lingüísticos que él tiene a su alcance pueden traicionarlo y pueden no servirle y
entonces duda mucho.
Ou seja, ao tentar traduzir tal experiência, o narrador se vê diante da insuficiência da linguagem,
constatando sua incompletude e imperfeição. Isso se percebe no início do conto, quando o narrador
se pergunta como narrar, começando em primeira pessoa, passando depois para a terceira,
duvidando, vacilando (CORTÁZAR, 1991: 20). O momento da prática tradutória rompe, assim,
com a suposta unidade da linguagem presente nas gramáticas e dicionários, levando o tradutor a
empreender uma busca desesperada por uma linguagem mais perfeita e única, que somente se
revela enquanto intuição, ou segundo Benjamin, enquanto eco da linguagem original.
No que se refere à IMAGEM DA ALTERIDADE, sabemos que nos últimos anos tem-se falado da
necessidade de olhar o outro de forma legítima, tendo cuidado com afirmações generalizadoras e
absolutas. O panorama mundial obriga que pensemos com clara consciência de que o outro é parte
de cada um de nós, de nossa possibilidade de ser, exigindo que nos empenhemos em um esforço
sério e rigoroso sobre a construção de seu discurso.
Transferindo o estudo de Benjamin em torno da tradução para o âmbito cultural, podemos afirmar
que neste autor, o discurso sobre o "outro" parte do reconhecimento da multiplicidade das línguas e
de sua irredutível alteridade. Para este filósofo, não se trata de abolir as diferenças, mas sim de
reconstruir uma multiplicidade amigável e generosa, de modo que a tarefa do tradutor radica em
anular a distância entre o original e a tradução, a língua estrangeira e a língua materna, fazendo com
que elas se complementem, forçando-as a coincidir no tempo e na história, a fim de chegar a um eco
comum.
Como observamos logo no início do conto, o narrador coloca em questão a sua própria "pessoa",
dramatizando o diálogo com a alteridade. Este, por sua vez, se aprofundará ao constatarmos que o
narrador se utiliza de duas máquinas para "traduzir" o real: a máquina de escrever y a "outra", a
máquina fotográfica, uma Cóntax; ora é o escritor, ora é Roberto Michel, franco-chileno, tradutor e
fotógrafo. Ambos, entretanto, se complementam, dando forma ao alter-ego do próprio autor, Julio
Cortázar.
Dessa forma, tal como vimos em Benjamin, o narrador/tradutor diante do insólito, tentará reduzir ao
máximo a distância entre a linguagem escrita e a linguagem fotográfica, convertendo as diferenças
que existem entre elas, não em um obstáculo, mas em uma possibilidade de tradução. Nesse sentido,
podemos dizer que o plano global do conto se vê imerso dentro de uma atmosfera de ambigüidade,
já que não existem linguagens perfeitas ao ponto de refletir com exatidão a "realidade", restando-
nos resignarmos diante de suas distintas versões. No fragmento abaixo, podemos perceber a fusão
do "eu" e do "outro", a identificação entre o narrador e Michel:
Pasaron varios días antes de que Michel revelara las fotos del Domingo (...) acepté lo
que había hecho, desde la foto en sí hasta la ampliación (...) y no me pregunté
siquiera por qué interrumpía a cada rato la traducción del tratado de José Norberto
Allende... (CORTÁZAR, 1991: 72)
Como vemos, a presença da terceira pessoa do singular empresta à narração um sentido de
indeterminação, que confunde as pessoas do narrador e de Michel, e por tanto, de suas respectivas
linguagens: a da ficção e a da fotografia. Este fato, por outro lado, estabelece um jogo ambíguo
entre a mentira e a verdade, a imaginação e a história, o sonho e a vigília, mergulhando o leitor nas
armadilhas da literatura fantástica.
Por último, nos propusemos a falar sobre o FLUXO MELANCÓLICO. Nesse ponto, nos deteremos
particularmente no sentido de perda, que corresponde a um dos sentimentos mais presentes na obra
de Benjamin, especialmente em seu ensaio sobre a tarefa do tradutor.
Segundo Susana Lages (LAGES, 2002) a melancolia se configura no processo da tradução pela
impossibilidade de se fazer um resgate racional dos significados, de forma que a totalidade do
original seja recuperada. Assim, a imagem da "ânfora quebrada" usada por Benjamin (BENJAMIN,
1994) aponta, por um lado, para a característica desarticulação do original, e por outro, para o fluxo
melancólico diante da tentativa de sua plena reconstrução. Poderíamos dizer que esta desarticulação
se manifesta quando o tradutor se vê diante da difícil e quase impossível tarefa de transportar o
original para outra língua de forma plena. É quando aquele se revela como algo incompleto,
"quebrado", esperando que o movimento messiânico da tradução lhe devolva a completude.
Uma vez mais, estamos diante da insuficiência da linguagem para refletir de modo autêntico os
diferentes aspectos da realidade. No conto, no momento em que o narrador tenta traduzir uma
experiência insólita para a linguagem verbal, se dá conta da fragmentação do real, das múltiplas
verdades que encerra, e simultaneamente, da impossibilidade de restituir a sua plenitude e
totalidade. Assim, a desarticulação do original, e, ao mesmo tempo, o desejo de encontrar seu
verdadeiro sentido, se refletem nesta frase: "Nunca se sabrá cómo hay que contar esto" (Cortázar,
1991: 61).
Depois da tradução através da linguagem verbal, o narrador busca outro tipo de linguagem: a não
verbal, por meio das fotos do acontecimento insólito, que mesmo que ampliadas, não trouxeram
nenhuma resposta. O sentimento de impotência do narrador/tradutor resulta em uma profunda
melancolia, ou ainda, em um profundo sentido de perda diante do irrecuperável, como evidencia
este fragmento: "...fijó la ampliación en una pared del cuarto, (...) estuvo un rato mirándola y
acordándose, en esa operación comparativa y melancólica del recuerdo frente a la perdida realidad.
(CORTÁZAR, 1991: 72)
Por outro lado, esta desarticulação do real se reflete no conto através da
desconstrução da própria linguagem. Assim, no primeiro parágrafo encontramos: "Si
se pudiera decir: yo vieron subir la luna, o: nos me duele el fondo de los ojos, y sobre
todo así: tú la mujer rubia eran las nubes que siguen corriendo delante de mis tus sus
nuestros vuestros sus rostros. Qué diablos". (CORTÁZAR, 1991: 61).
Do ponto de vista lingüístico, os enunciados referidos seriam inaceitáveis, já que grande parte de
seus elementos não guardam nenhuma relação entre si, ou seja, que não respeitam a estrutura
morfosintática do espanhol. De fato, ao desestruturar a linguagem, o narrador tenta encontrar um
meio de realizar a tradução da forma mais fiel possível do "original", já que a linguagem habitual
demonstra-se incompetente para isso. Ao contrário da suposta plenitude com a qual tanto a
gramática quanto o dicionário nos tenta confundir, a tradução revela o verdadeiro caráter de toda
língua: sua incompletude.
Outro aspecto que merece ser considerado, posto que põe em cena a imagem melancólica, é o uso
constante da partícula "se", ora com valor dubitativo, ora condicional, ao longo dos cinco primeiros
parágrafos. No quinto parágrafo, por exemplo, encontramos:
Si me sustituyen, si ya no sé que decir, si se acaban las nubes (...), si algo de todo
eso...Y después del "si", ¿qué voy a poner, cómo clausurar correctamente la oración?
Pero si empiezo a hacer preguntas no contaré nada. " (CORTÁZAR, 1991: 63).
O uso reiterado da conjunção "se" nada mais é do que uma forma de manifestar uma série de opções
sobre como poderiam ser contados os acontecimentos da história. Assim, ao mesmo tempo que nos
revela a multiplicidade da linguagem, das diferentes formas de relatar, evidencia a presença do
fluxo melancólico diante da perda do referente: falar sobre ele implica num processo de seleção,
que por sua vez, exclui todas as demais possibilidades de leitura que o mesmo oferece. O acesso à
totalidade de dito "texto" encontra-se, pois, obstruída, restando-lhe esperar pacientemente pela
prática tradutória, quando então as diferentes linguagens se unirão para o recompor, restituindo-lhe
o sentido.

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