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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
ÁREA DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS EM INGLÊS

A CONSOLIDAÇÃO DO ESTEREÓTIPO DA
“BRUXA” E SUA RESSIGNIFICAÇÃO NA
CONTEMPORANEIDADE: NUANCES DE
UMA ALTERIDADE DISFORIZADA

VERSÃO CORRIGIDA

ANA CAROLINA LAZZARI CHIOVATTO

São Paulo
2022
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
ÁREA DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS EM INGLÊS

A CONSOLIDAÇÃO DO ESTEREÓTIPO DA “BRUXA” E


SUA RESSIGNIFICAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE:
NUANCES DE UMA ALTERIDADE DISFORIZADA

VERSÃO CORRIGIDA

Ana Carolina Lazzari Chiovatto

Tese apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Estudos
Linguísticos e Literários em Inglês,
do Departamento de Letras
Modernas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, para a obtenção do título
de Doutora em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Elizabeth Harkot-de-La-Taille

São Paulo
2022
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Chiovatto, Ana Carolina Lazzari


C532c A consolidação do estereótipo da bruxa e sua
ressignificação na contemporaneidade: nuances de uma
alteridade disforizada / Ana Carolina Lazzari
Chiovatto; orientadora Elizabeth Harkot-de-la-Taille
- São Paulo, 2022.
310 f.

Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia, Letras e


Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Departamento de Letras Modernas. Área de
concentração: Estudos Linguísticos e Literários em
Inglês.

1. Bruxas. 2. Estereótipos. 3. Feminino


transgressor. 4. literatura britânica. 5. histórica
britânica. I. Harkot-de-la-Taille, Elizabeth, orient.
II. Título.
Nome: CHIOVATTO, Ana Carolina Lazzari
Título: A consolidação do estereótipo da “bruxa” e sua ressignificação na
contemporaneidade: nuance de uma alteridade disforizada

Tese apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências


Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título
de Doutora em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês

Aprovada em: 29 de abril de 2022

Banca Examinadora

Prof(a). Dr(a). Instituição:


Julgamento: Assinatura:

Prof(a). Dr(a). Instituição:


Julgamento: Assinatura:

Prof(a). Dr(a). Instituição:


Julgamento: Assinatura:
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

ENTREGA DO EXEMPLAR CORRIGIDO DA DISSERTAÇÃO/TESE


Termo de Anuência do (a) orientador (a)

Nome do (a) aluno (a): Ana Carolina Lazzari Chiovatto

Data da defesa: 29/04/2022

Nome do Prof. (a) orientador (a): Profa. Dra. Elizabeth Harkot-de-la-Taille

Nos termos da legislação vigente, declaro ESTAR CIENTE do conteúdo deste EXEMPLAR

CORRIGIDO elaborado em atenção às sugestões dos membros da comissão Julgadora na

sessão de defesa do trabalho, manifestando-me plenamente favorável ao seu

encaminhamento ao Sistema Janus e publicação no Portal Digital de Teses da USP.

São Paulo, 26/05/2022.

___________________________________________________
(Assinatura do (a) orientador (a)
RESUMO

O presente trabalho investiga a imagem da bruxa em dois momentos históricos —


o início da Idade Moderna e a contemporaneidade —, a partir dos estudos discursivos,
enquanto figura transgressora que representa uma alteridade disforizada. Para tanto,
primeiro será realizada uma análise discursiva dessa figura em três eixos significativos
para a consolidação de sua imagem na Grã-Bretanha. No primeiro, constam obras de não-
ficção escritas para um público erudito: o tratado The Discoverie of Witchcraft (1584), de
Reginald Scot (1538?-1599) e o tratado Daemonologie (1597), do rei James VI da Escócia
e I da Inglaterra (1566-1625). No segundo, temos obras de não-ficção mais acessíveis,
embora destinadas também a uma população letrada, isto é, panfletos sobre bruxaria, a
saber: Newes from Scotland (1591), A most wicked worke of a wretched witch… (1592),
The wonderful discoverie of the witchcrafts of Margaret and Phillip Flower, daughters
of Ioan Flower, near Beuer Castle… (1619) e The Wonderfull Discoverie of Elizabeth
Sawyer a Witch, late of Edmonton… (1621). No terceiro eixo, analiso obras de ficção da
mesma época, com especial ênfase sobre a peça teatral Macbeth (c. 1603-1607), de
William Shakespeare (1564-1616). A pesquisa terá como base estudos históricos e a
fortuna crítica em torno desse recorte, sendo conduzida com o instrumental teórico da
semiótica francesa. Os resultados investigativos desta primeira etapa serão a base do
segundo momento da pesquisa: a análise da figura da bruxa na contemporaneidade, a
partir do estereótipo, que parece persistir, observando a forma como as obras analisadas
o reconfiguram e os efeitos de sentido produzidos por essa reconfiguração. Para tanto,
foram selecionadas as seguintes personagens e obras: Minerva McGonagall, Hermione
Granger, Narcissa Malfoy e Bellatrix Lestrange, da série de livros Harry Potter (1998-
2007), de J. K. Rowling (1965-); Elphaba e Glinda, do romance Wicked (1995), de
Gregory Maguire (1954-); o romance infantil Witches (1983), de Roald Dahl (1916-
1990); além de Gothel, do filme de animação Enrolados (2010), dirigido por Nathan
Greno e Byron Howard, e produzido pelos estúdios Disney. Espera-se, por meio da
análise contrastiva, identificar como a imagem da bruxa enquanto mulher transgressora
subsiste na atualidade e em que medida há transposição do discurso de conformidade e
não-conformidade femininas contido na disforização histórica dessa figura.
PALAVRAS-CHAVE: bruxa; estereótipo; feminino transgressor; literatura britânica;
história britânica
THE WITCH STEREOTYPE FORMATION AND ITS REFRAMING IN
CONTEMPORANEITY: NUANCES OF A DYSPHORIC ALTERITY

ABSTRACT: From the perspective of discursive studies, this work investigates the
image of the witch in two historical moments, as a transgressive figure that epitomises a
dysphoric alterity. In order to reach our goal, the image of the witch is going to be
discursively analysed in three consequential historic works on the delimitation of this
stereotype in England: the treatise The Discoverie of Witchcraft (1584), by Reginald Scot
(1538?-1599); the treatise Daemonologie (1597), by King James VI from Scotland and I
from England (1566-1625); and the tragedy Macbeth (c. 1603-1607), by William
Shakespeare (1564-1616). The first step of our research will refer to history studies and
literature reviews about these three works, in the perspective of French semiotics.
Secondly, our primary results are going to base the analysis of the image of the witch in
contemporaneity, in light of its enduring stereotype, by observing the way the
contemporary analysed works reframe it, and the effects such reframing has on shaping
its meaning. Hence the following works and characters have been selected: 1) Minerva
McGonagall, Hermione Granger, Narcissa Malfoy, and Bellatrix Lestrange, from Harry
Potter book series (1998-2007), by J.K. Rowling (1965-); 2) Elphaba and Glinda, from
the novel Wicked, by Gregory Maguire (1954-), the children novel Witches (1983), by
Roald Dahl (1916-1990); and 3) Gothel, from animated feature film Tangled (2010),
directed by Nathan Greno and Byron Howard, and produced by Disney Studios. By means
of contrastive analysis, it is our intent to identify how the witch image (as a trangressive
female figure) currently subsists, as well as gauge the dysphorization of this historical
figure through the discourse of female conformity and non-conformity therein.

KEYWORDS: witch; stereotype; transgressive female figure;


À minha orientadora, Elizabeth Harkot de la Taille
Agradecimentos

Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, à Fundação de Amparo à Pesquisa do


Estado de São Paulo (processo nº 2017/02150-0, FAPESP), por ter financiado minha
pesquisa ao longo de todo o doutorado, incluindo os seis meses do estágio de pesquisa
doutoral da Universidade de Edimburgo1, quando obtive a maior parte do material
essencial à realização deste trabalho.
Agradeço à minha amada orientadora, Profa. Dra. Elizabeth Harkot de la Taille,
pela paciência com minhas dificuldades nesses tempos difíceis. Demorei a conseguir
organizar meu trabalho num todo coerente; o volume do que me propus a fazer por vezes
parecia prestes a sair do meu controle. Se não fosse por sua serenidade inabalável e
confiança em mim, o estresse do período teria sido paralisante. Num momento político
de tantas incertezas, é um desafio emocional conseguir ater-se à pesquisa, e a professora
foi o apoio sólido onde pude me firmar em meio a tanta instabilidade. Obrigada por, além
de ser meu modelo acadêmico, ser uma pessoa incrível.
Sou imensamente grata ao Prof. Dr. John Corbett, cuja participação em minha
banca de qualificação foi valiosíssima por me fazer perguntas certeiras que direcionaram
a continuidade deste trabalho. Além disso, apresentou-me à minha supervisora de estágio
de pesquisa no exterior.
Obrigada à querida Profa. Dra. Sarah Dunnigan, da Universidade de Edimburgo,
minha supervisora do estágio de pesquisa, por sua disponibilidade na empreitada
burocrática que é pedir uma bolsa, pela atenção dedicada à minha pesquisa e pelo
entusiasmo com meu trabalho. Agradeço também à Profa. Dra. Sarah Carpenter, pela
calorosa acolhida na Universidade de Edimburgo, quando minha supervisora não pôde
desempenhar esse papel.
Agradeço imensamente à minha querida amiga Danielle Howarth, colega da
Universidade de Edimburgo, a responsável por me fazer me sentir em casa assim que
cheguei. Obrigada pela acolhida, pela disponibilidade, pela amizade e pela torcida.
Obrigada, também, por ser uma acadêmica incrível capaz de decifrar o texto de fontes
ilegíveis sob manchas de origem duvidosa.

1
Recebi também a Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior, processo nº 2018/10297-4, Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Obrigada ao Prof. Dr. Julian Goodare, historiador da Universidade de Edimburgo,
especialista em julgamentos de bruxas na Escócia e na Europa, por ter se disposto a
conversar comigo e me ajudar com as fontes históricas, além de ter me posto em contato
com o Dr. Ciaran Jones, a quem também agradeço pela prontidão em responder a minhas
dúvidas sobre criminosas inglesas do século XVI.
Agradeço aos bibliotecários da Universidade de Edimburgo, da National Library
of Scotland e da British Library, meus principais locais de trabalho, por serem tão
solícitos e generosos com seu tempo.
A Profa. Dra. Vima Lia de Rossi Martin merece agradecimentos especiais: estava
tanto nas minhas bancas de qualificação e defesa do mestrado quanto na de qualificação
do doutorado, e suas arguições não só me ajudaram com o trabalho sendo avaliado na
ocasião como com o direcionamento de minhas pesquisas.
Agradeço à amiga Dra. Deborah Mondari Simionato pelas conversas
estimulantes; nossos estudos não parecem se relacionar, mas observam questões
surpreendentemente próximas. Obrigada à amiga Ma. Claudia Fusco, a quem recorri na
busca de algumas fontes sobre bruxas na cultura pop.
Por fim, agradeço, como sempre, a Bruno Anselmi Matangrano, meu marido, pelo
apoio, traduzido não em palavras bonitas, mas em gestos concretos do cotidiano, sem os
quais a redação desta tese não teria sido possível.
Sumário

Introdução 1
Parte I: o estereótipo histórico da bruxa 6
Capítulo 1 6
1.1. O ato de nomear e a composição do imaginário 6
1.2. As palavras que fixam a bruxaria no imaginário 15
1.3. Diabo, misoginia e a bruxa estereotípica 23
Capítulo 2 40
2.1. The Discoverie of Witchcraft, de Reginald Scot 52
2.2. O rei James VI da Escócia e I da Inglaterra e sua Daemonologie 71
2.3. Panfletos ingleses 96
Capítulo 3: A bruxa na ficção do início da Idade Moderna 153
Parte 2: novas representações da bruxa 181
Capítulo 4: Formas da bruxa estereotípica em obras contemporâneas 193
4.1. Ser x parecer e crer x saber: a construção da figura da bruxa em Witches, de Roald
Dahl 193
4.2. Enrolados e as bruxas da Disney 238
4.3. O universo de Oz criado por L. Frank Baum e suas muitas releituras 251
Capítulo 5: Releituras dos estereótipos clássicos da bruxa na atualidade 258
5.1. Harry Potter e as múltiplas possibilidades de uma sociedade bruxa 263
5.1.1. Minerva McGonagall: a mentora 265
5.1.2. Bellatrix Lestrange: a devota 273
5.1.3. Narcisa Malfoy: a mãe 276
5.1.4. Hermione Granger e a síndrome da coadjuvante supercompetente 279
5.2. A bruxa estereotípica subvertida na animação Over the Garden Wall 283
Conclusão 287
Referências bibliográficas citadas 293
Lista de Figuras

Figura 1: Frontispício do tratado The Discouerie of Witchcraft (1584), à esquerda, e


frontispício da edição de 1665, à direita 53
Figura 2: The Discouerie of Witchcraft, edição original de 1584 (p. 1), em fonte gótica.
Foto tirada na National Library of Scotland (arquivo pessoal, 2019) 56
Figura 3: Frontispício de Daemonologie, edição original de 1597, disponível no site da
British Library 73
Figura 4: Frontispício do panfleto The wonderful discoverie of the witchcrafts of
Margaret and Phillip Flower, daughters of Ioan Flower, near Beuer Castle… (1619)
102
Figura 5: abertura da segunda parte do panfleto The wonderful discoverie of the
witchcrafts of Margaret and Phillip Flower, daughters of Ioan Flower, near Beuer
Castle… (1619) 118
Figura 6: Frontispício do panfleto The Wonderfull Discoverie of Elizabeth Sawyer a
Witch, late of Edmonton… (1621) 122
Figura 7: Página 3 do panfleto The Wonderfull Discoverie of Elizabeth Sawyer a Witch,
late of Edmonton… (1621), a abertura do relato 126
Figura 8: Página 13 do panfleto The Wonderfull Discoverie of Elizabeth Sawyer a Witch,
late of Edmonton… (1621), o início do diálogo entre o ministro da Palavra e a bruxa
135
Figura 9: Página 14 do panfleto The Wonderfull Discoverie of Elizabeth Sawyer a Witch,
late of Edmonton… (1621), com uma das notas de margem 137
Figura 10: Frontispício do panfleto A most wicked worke of a wretched witch (1592)
144
Figura 11: Verso do frontispício (p. i) do panfleto A most wicked worke of a wretched
witch (1592), contendo o hexasticon e o versículo Lv. 20: 6 145
Figura 12: Última página (p. 6) do panfleto A most wicked worke of a wretched witch
(1592) 152
Figura 13: Reprodução da xilogravura do encontro de Macbeth e Banquo com as bruxas,
nas Holinshed’s Chronicles (1577) 161
Figura 14: The Weird Sisters or The Three Witches (1783), de Henry Fuseli 180
Figura 15: pinturas pré-rafaelitas com a imagem da bruxa femme fatale. Da esquerda
para direita: Circe oferecendo a taça ao Odisseu (1891) e O círculo mágico (1886), ambas
de John William Waterhouse, e Medeia (1868), de Frederick Sandys 187
Figura 16: a “bruxa boa” em João e Maria: caçadores de bruxas 189
Figura 17: Maria, interpretada por Gemma Aterton 190
Figura 18: a bruxa da casa de doces, caricaturizada para o mal 190
Figura 19: antagonista, líder do coven das bruxas más 191
Figura 20: prova para a gravura “Linda Maestra!”, placa 68 (1799), de Francisco de Goya
(British Museum) 199
Figura 21: cena introdutória de Gothel, antes de concluir o feitiço, com a flor mágica (da
animação Enrolados) 240
Figura 22: Gothel antes e depois da conclusão da Healing Incantation 240
Figura 23: o rei, pai de Rapunzel, ao saber que a rainha está muito doente 242
Figura 24: justaposição de cenas da reprise da canção “Sua mãe sabe mais” 247
Figura 25: justaposição de cenas posteriores à conclusão do plano de Gothel 247
Figura 26: cena anterior à intervenção de Gothel e dos inimigos de Flynn 248
Figura 27: a Bruxa Má do Oeste, conforme desenhada pelo ilustrador W.W. Denslow
para a edição original do livro 252
Figura 28: A Tia Sussurros, da animação Over the Garden Wall 284
Figura 29: Lorna, transformada pela maldição 285
1

Introdução

Em 2016, durante meu período sanduíche do mestrado, na Universidade do Porto,


sob orientação da Profa. Dra. Ana Luísa Amaral, tive a oportunidade de visitar a
Bibliotèque Nationale de France, em Paris, durante três meses. Já havia começado a
esboçar meu projeto de doutorado na ocasião, de modo que foi uma excelente
oportunidade para recolher material também para isso. Eu dificilmente teria fontes
suficientes para propor minha pesquisa sem essa visita a Paris e a curtíssima viagem de
quatro dias a Londres, também realizada nesse estágio de pesquisa no exterior.
Meu interesse pelo assunto é antigo, associado à escrita de ficção1, e, por isso, já
lia teoria relacionada à temática havia pelo menos quatro anos quando decidi torná-lo uma
pesquisa formal. Meus primeiros passos nesse sentido resultaram em minha dissertação
de mestrado, intitulada A representação do feminino no Mundo de Oz, de L. Frank Baum
(CHIOVATTO, 2017, 186 pgs.), cujo Capítulo 4 tem uma seção dedicada à representação
das bruxas de Oz.
De certa forma, todo o meu trabalho — seja acadêmico, seja ficcional —
direcionou-se ao estudo de estereótipos do feminino e respectivas formas de
ressignificação e subversão, paródicas ou não, que muito dialogam com a presente
pesquisa. A escolha da temática da bruxa foi uma evolução bastante natural de meu
progresso acadêmico, pois meu interesse se concentrou principalmente nas imagens do
feminino transgressor. Parece relevante para a área de Letras trazer essa questão tão pouco
estudada por nós, mas já tão frequente em trabalhos de historiadores, sociólogos e
antropólogos, de modo a proporcionar um novo e complementar olhar a um campo de
pesquisa tão vasto.
No campo da crítica literária, estudiosos do fantástico às vezes se voltam a essa
imagem, lida sobretudo na chave da monstruosidade e analisada ao lado de outras
criaturas como vampiros, lobisomens e zumbis. No entanto, como disse o professor David
Roas, da Universidade Autónoma de Barcelona, numa conferência do congresso
Vertentes do Insólito Ficcional (UERJ, 2018), do qual participei, “a bruxa é um caso
particular”. Trata-se de uma figura importante para o movimento emancipatório feminino,

1
Escrevi três romances sobre bruxas, um dos quais, Porém Bruxa (AVEC, 2019), venceu o prêmio Odisseia
de Literatura Fantástica na categoria História Longa de Fantasia, além de um conto, “A Última Feiticeira
de Florença” (BURITI, 2013; DRACO, 2014), inspirado em grande parte pelos estudos de Carlo Ginzburg,
finalista do Prêmio Hydra em 2015.
2

ele disse, e é menos uma imagem literária do que os demais monstros canônicos da
literatura fantástica, no sentido de ter sido uma realidade na vida das pessoas e objeto
central de uma histeria coletiva impulsionada por motivos sociais, religiosos,
econômicos, políticos, dependendo do lugar e da época.
Historiadores feministas2 têm revisto o trabalho de seus antecessores sob um viés
crítico, pois alguns estudos parecem ignorar ou, ao menos, reduzir a importância da
questão do gênero para a composição do estereótipo e para o fenômeno múltiplo da caça
às bruxas, principalmente entre os séculos XVI e XVIII. Atualmente, as pesquisas dessa
área, mesmo se não filiadas aos estudos feministas, não incorrem no mesmo erro3.
Afinal, mesmo nas línguas que discriminam gênero, como o francês e o espanhol,
nas quais o termo genérico tende a ser masculino, fala-se de mulheres: bruxa, bruja,
sorcière. No inglês, witch, outrora comum de dois gêneros, foi se tornando gradualmente
uma palavra feminina. Havia bruxos, feiticeiros, magos, brujos, sorciers, mages,
magiciens etc, mas nunca descritos e/ou representados da mesma forma que as bruxas, na
medida em que os homens acusados de bruxaria não tinham o mesmo status social ou o
mesmo tratamento judicial, não sofriam o mesmo grau de desconfiança em suas
comunidades. Não aparecem em igual número: na verdade, a discrepância é gritante entre
réus homens e mulheres. A existência de um homem bruxo no seio de uma sociedade não
depunha contra todos os representantes de seu sexo, não gerava tratados sobre a fraqueza
do espírito e a falta de caráter dos homens, não lhes cerceava liberdades ou ditava
comportamentos. Diga-se ainda, que bruxos não são nem de longe vilões de histórias,
infantis ou adultas, de 1700 ou 2010, com a mesma frequência que as bruxas. Portanto,
não é a mesma coisa.
Por diversas razões a serem exploradas ao longo deste trabalho, essa
discriminação acontece porque a bruxa é o feminino transgressor por excelência, quer por
ter assim escolhido — como no caso das pessoas que se denominavam enquanto tais —,
quer por ter sido assim distinguida — situação de muitas filhas e netas de mulheres
condenadas por bruxaria, que acabavam tomadas como tais dentro de suas comunidades.

2
Tenho consciência das diversas correntes críticas do Feminismo contrárias à ideia de que um homem
possa ser feminista. Ainda assim, optei pelo masculino genérico no substantivo porque me filio ao
pensamento de que pessoas interessadas pela pauta feminista, independente do gênero, devem ser
encorajadas e que, em alguns ambientes, a presença de homens autointitulados feministas pode vir a auxiliar
nossos esforços, observando-se, é claro, as questões do lugar de voz.
3
É preciso mencionar a existência de uma contraparte a essa corrente de pensamento, isto é, alguns estudos
feministas que tendem a considerar apenas a perspectiva de gênero e ignorar outras, inclusive o contexto
sociocultural dos períodos de caça às bruxas, como muito bem observado por Diane Purkiss na introdução
de sua obra (1996).
3

Nisso, muitos historiadores concordam, embora os caminhos para alcançar tal conclusão
divirjam.
Este trabalho não pretende traçar o estereótipo às suas origens; isso já foi feito até
onde era possível, e brilhantemente. Em 2017, ano de meu ingresso no doutorado, saiu o
livro The witch: a history of fear, from ancient times to the present. Nele, o professor
Ronald Hutton analisa em diversos povos, desde a Antiguidade, as características da
magia e do operador da magia que vieram a compor a figura da bruxa no início da Idade
Moderna. Antes disso, na obra Witches and wicked bodies, catálogo da exposição
homônima de 2013, resultado de parceria entre as National Galleries of Scotland e o
British Museum, a pesquisadora Deanne Petherbridge havia resumido de modo eficiente
os vários estereótipos da bruxa através das artes plásticas.
Minha intenção, portanto, não é apenas fazer uma revisão bibliográfica de
pesquisas da área de História relativas a essa criatura fascinante; pretendo usá-las como
contexto e apoio para um estudo aprofundado sobre a construção discursiva do
estereótipo, conforme ingleses e escoceses do início da Idade Moderna o viam, e analisar
quanto desse discurso atravessou os séculos até os dias de hoje para compor o nosso
imaginário do estereótipo da bruxa e do feminino transgressor. Como para a maioria dos
historiadores nos quais embaso meu estudo, a questão da realidade ou não da bruxaria é
irrelevante no meu trabalho; interessa aqui a construção discursiva da figura da bruxa e o
que perdura no imaginário contemporâneo, além do que isso representa na construção do
feminino no imaginário.
O recorte dos países da Grã-Bretanha foi escolhido por vários motivos. Um deles
é o fato de a maior parte dos estudos sobre bruxas terem sido realizados na área de História
Cultural, como já mencionado, e, no Brasil, costumarem se concentrar nos países sob
influência dos tribunais inquisitoriais (tanto os estudos nacionais quanto as obras
traduzidas às quais temos acesso aqui). A Inglaterra já não tinha Inquisição desde o início
do século XVI, quando Henrique VIII rompeu com Roma. Ainda assim, ocorreu na Grã-
Bretanha um notável período de caça às bruxas, amplamente estudado por pesquisadores
de língua inglesa, pouco difundidos em nosso país. Outro ponto a ser ressaltado para
justificar meu trabalho é que, apesar de hoje em dia a maioria das sociedades ocidentais
não crer na existência de bruxas — salvo pequenos grupos religiosos neopagãos, como
os wicca, e alguns evangélicos fanáticos —, a dimensão da figura transgressora
transformada em bode expiatório persiste.
4

Assim sendo, os objetivos deste trabalho são investigar a imagem da bruxa


histórica em língua inglesa, num momento importante para a consolidação dos
estereótipos, isto é, os períodos elizabetano e jacobino na Inglaterra, a fim de
compreender as bases do valor disfórico suscitado por essa emblemática figura (numa
construção discursiva baseada em valores de identidade e alteridade). Além disso,
procuro analisar como a bruxa é ressignificada em textos anglófonos atuais, pois pode
figurativizar temas completamente distintos daqueles ocorrentes nas descrições
históricas, folclóricas e literárias do início da Idade Moderna, de modo a alterar sua
significação no imaginário de cada época. Por fim, analiso em qual medida, em obras
contemporâneas, a imagem da bruxa ainda se constrói sobre a ideia de alteridade do
feminino não-conforme, e o quanto isso é ou não disforizado, visando entender as
alterações sofridas pela figura do feminino transgressor na contemporaneidade.
As maiores responsáveis pela veiculação desse imaginário são as produções
audiovisuais. Primeiro, pela facilidade e rapidez de seu consumo, enquanto mídia.
Segundo, por conta da inegável interferência que as ideias reiteradas, transmitidas nas
obras destinadas a um público muito grande e diverso, exercem sobre nossa forma de
enxergar o mundo, o passado etc. (HOPKINS, 2002, p. 5). E, como na atual conjuntura
global boa parte da indústria cinematográfica que nos chega é norte-americana, interessa
analisar o imaginário predominante, em parte herdado do Velho Mundo, e como ele
opera, pois isso influencia diretamente em nossa própria forma de pensar a bruxa, em
especial, e a representação do feminino como um todo.
Sendo uma pesquisa de escopo tão amplo, foi preciso sistematizá-la em duas
partes: o estudo sobre a consolidação discursiva do estereótipo dessa figura em
documentos históricos e literários de língua inglesa e a análise dos diversos usos dessa
figura em obras produzidas na contemporaneidade.
O Capítulo 1 abrange a questão do poder dos estereótipos, trazendo um breve
resumo acerca da imagem dos variados tipos de bruxas cristalizados ao longo dos séculos,
sua indiscutível associação com o conceito de “feminino transgressor”, tanto no campo
da “verdade” conforme percebida pelas crenças vigentes nos séculos XVI e XVII, quanto
na gradual alteração dos saberes que os transportaram para o campo das variadas vertentes
do insólito ficcional nos séculos seguintes.
No Capítulo 2, estudo tratados e documentos de não-ficção dos séculos XVI e
XVII, em particular Daemonologie, do Rei James VI da Escócia e I da Inglaterra, cujo
texto, em forma de diálogo, se dedica a explicar em pormenor a relação entre o Diabo e
5

as bruxas. O tratado The Discoverie of Witchcraft, de Reginald Scot, é importante por


mostrar uma visão cética dentro de um universo onde o ceticismo não parece possível. E
seu método consiste em negar as crenças de sua época, algo muito útil para nos informar
minúcias do estereótipo em questão. Também analiso detidamente o estereótipo da bruxa
conforme descrito por panfletos do final do século XVI ao início do século XVIII, visto
que essa forma de difusão de conhecimento conjugava o saber teológico da elite e crenças
populares.
Em seguida, no Capítulo 3, apresento análises sobre Macbeth, de William
Shakespeare, uma das obras a representar bruxas mais duradouras no imaginário que
chegou aos nossos dias. O Capítulo 4 trata de obras literárias e audiovisuais
contemporâneas que se voltam aos estereótipos clássicos da bruxa, reiterando-os ora na
esfera do infantil, ora na do terror. Analiso a fundo a obra Witches, de Roald Dahl, as
bruxas da Disney, concentrando-me principalmente da Mãe Gothel, da animação
Enrolados, e as muitas versões da Bruxa Má do Oeste, personagem de L. Frank Baum no
romance infantil O Mágico de Oz, muito relida em outras obras.
Já o Capítulo 5 discute personagens da série literária juvenil, posteriormente
adaptada para o cinema, Harry Potter, de J. K. Rowling. Nela temos múltiplos
estereótipos da bruxa retomados e ressignificados em novos contextos para a produção
de significações deslocadas, em relação à bruxa histórica.
6

PARTE I
O estereótipo histórico da bruxa

Capítulo 1

1.1. O ato de nomear e a composição do imaginário


Nomear é asseverar domínio sobre algo ou alguém, é estabelecer um conceito e,
com isso, uma narrativa. Na mitologia judaico-cristã, definidora de grande parte da
cultura ocidental, já no livro de Gênesis somos apresentados a tal poder como uma forma
de impor autoridade sobre a coisa nomeada: Adão nomeia tudo na criação (Gênesis, 2:19).
Embora isso possa parecer um exagero, à primeira vista, basta buscarmos
exemplos na História para ilustrar a afirmação: durante o período colonial no Brasil, os
vários povos africanos trazidos como escravos eram obrigatoriamente batizados e
recebiam nomes cristãos, sendo seus sobrenomes a designação do engenho ao qual
pertenciam (MATTOSO, 2003, p. 44). Para além do domínio sobre o indivíduo, o
colonizador assegurou seu domínio sobre a terra e seus habitantes ao renomear extensões
de terreno segundo suas próprias divisões, e ao chamar todas as gentes nativas nela
residentes por termos genéricos (“gentio”, “índios”, “bugres”), tornando-as, assim, uma
“coisa só”, ignorando a pluralidade de línguas, rivalidades internas muito anteriores,
estruturas sociais e afins. Tais renomeações não eram um capricho, mas parte de um
truculento processo de dominação baseado não somente na reiterada violência como
também no apagamento das culturas dos povos dominados. O primeiro passo nesse
sentido foi mudar a identidade das pessoas, pois, na maioria das culturas, especialmente
nas judaico-cristãs, o mundo conhece um indivíduo pelo seu nome (e, aliás, cada
indivíduo se conhece e se define pelo próprio nome4). Em última instância, pode-se dizer
que cada pessoa é seu nome e o nome é a pessoa, já que em muitos contextos se torna
impossível dissociá-los.
Recorrendo outra vez à mitologia judaico-cristã, podemos lembrar que Jesus
renomeia um pescador chamado Simão como Pedro ao fazer dele seu apóstolo (Mateus
16,13-19). Novamente, não vemos somente a asserção de poder sobre o outro, mas uma
transposição de identidade; a mudança do nome reflete a desejada mudança de atitude e
um rompimento com o passado, quando não uma negação. Como suposto herdeiro de

4
Nesse sentido, vale mencionar que por isso, aliás, o nome social é uma questão tão importante para pessoas
transgênero.
7

Pedro, lendário fundador do catolicismo, o cardeal eleito para a posição de papa assume
um novo nome, pelo qual será chamado em toda a Igreja católica no mundo. É como se a
troca de nome engendrasse uma nova pessoa.
Pode parecer difícil sustentar essa afirmação num contexto mais cotidiano na
atualidade, por isso trago um exemplo corriqueiro: a antiga obrigatoriedade de as
mulheres adotarem o sobrenome do marido ao se casarem, substituindo seus próprios
sobrenomes (geralmente herdados do pai) em alguns países, ou acrescendo o do marido
ao seu, em outros. Uma parte rica dessa população feminina figura em quadros pelos
museus do mundo, nomeadas com o pronome de tratamento adequado a mulheres casadas
(Sra., Mrs., Mme., Frau etc.) e o nome completo de seus maridos, condicionando seu ser
ao seu papel de esposas e apagando qualquer outro aspecto de sua individualidade. Assim,
o prenome passava a ser uma designação pertencente apenas à esfera doméstica, e o novo
sobrenome e a relação estabelecida com o marido, sua única identidade pública.
Na Idade Média, o nome poderia definir a relação familiar, a profissão de uma
pessoa, entre outras coisas. Segundo o medievalista Michel Pastoureau,

o nome diz a verdade sobre uma pessoa, permite traçar sua história,
anuncia seu futuro. O simbolismo no nome próprio interpreta assim um
papel considerável na literatura e na hagiografia. Nomear é sempre um
ato extremamente forte, porque o nome versa sobre as relações estreitas
entre a pessoa e seu destino. É o nome que dá sentido à sua vida5 (2004,
p. 17).

O poder dos nomes era tão amplamente reconhecido que, em diversas religiões
antigas, era tido como fonte de magia (cf. KRONZEK, 2003, pp. 14-5). Conhecer o
verdadeiro nome de alguém seria ter poder sobre essa pessoa, divindades inclusas, como
no Egito (HUTTON, 2017, pp. 45-7). Os mesopotâmios, por exemplo, acreditavam que
saber o nome de demônios lhes daria poder sobre eles (idem, p. 49).
Um difundido conto de tradição oral ilustra isso muito bem. Recolhido pelos
irmãos Grimm (2012, pp 260-1.), narra a história de uma moça que precisa transformar
palha em ouro para o rei e, incapaz de fazer isso, é ajudada por um ser feérico, após lhe
prometer seu futuro primogênito como pagamento. No entanto, no momento de cumprir
sua parte no acordo, algo que a moça não quer, ela se salva ao descobrir o nome da

5
No original: “Le nom dit la vérité de la personne, permet de retracer son histoire, annonce ce que sera son
avenir. La symbolique du nom propre joue ainsi un rôle considérable dans la littérature et dans
d’hagiographie. Nommer est toujours un acte extrêmement fort, parce que le nom entretient des rapports
étroits avec le destin de celui qui le porte.”
8

criatura: Rumpelstiltskin. Para citar alguns exemplos mais recentes, em séries


contemporâneas de televisão, como Supernatural (de Eric Kripke, 2005-atual) e
Constantine (de Daniel Cerone e David S. Goyer, 2014-2015), adaptada das HQs
Hellblazer (DC Comics, 1988-2013), às vezes descobrir o nome de um demônio ou
entidade lhes anula o poder, possibilitando vencê-los. Do mesmo modo, na recente série
literária Ciclo da Herança (2002-2011), de Christopher Paolini, o protagonista Eragon
deve não apenas descobrir o verdadeiro nome de seu arqui-inimigo para poder derrotá-lo,
como precisa também descobrir o próprio nome na antiga língua mágica do universo, a
única coisa que lhe concederia pleno domínio sobre seus poderes.
Esses exemplos não refletem uma moda literária ou audiovisual; antes ilustram
uma questão central da linguagem presente no imaginário: sua função de restringir a
coisa, de forma a nos permitir apreendê-la e expressá-la, seja um indivíduo, seja um
objeto, seja uma ideia. Assim, à semelhança dos nomes próprios, os conceitos englobam
noções culturais cunhadas em certo contexto histórico, e seus significados tendem a se
alterar ao sabor das mudanças na sociedade. Ao fixar uma noção abstrata, os conceitos
também expressam um ponto de vista: se chamamos o que houve na França em 1789 ou
na Rússia em 1917, ou no Brasil em 1964, de “golpe” ou “revolução”, estamos
necessariamente defendendo uma determinada narrativa, que pode ou não ser a mais
socialmente aceita.
Por esse mesmo motivo, diversas religiões ao redor do globo tiveram na palavra a
fonte de magia: rituais mágicos, feitiços, o próprio mistério católico da transubstanciação
do corpo de Cristo, acontecem ao se entoar algumas palavras, às vezes numa cadência
predeterminada. Nesse sentido, a linguagem e, mais especificamente, o ato de nomear
consiste no modo humano de entender e discorrer sobre a existência:

O ato de nomear é aquilo que nos permite todo e qualquer conhecimento


sobre o mundo, nossa própria ação no mundo. Um objeto sem nome é,
para nós, um objeto impossível, mais do que desconhecido, insondável.
Ao lhe atribuirmos um nome, tornamo-lo apreensível, passível de
conhecimento. O horror […] para nós, seres falantes, é sempre o horror
do inominável. Mas esse ato não é assim tão simples, não se dispõe dele
a um preço tão baixo: a cada vez que nomeamos um objeto cometemos
um assassinato, que é ao mesmo tempo a aparição e a supressão do
próprio objeto. Georges Bataille […] cita o caso da palavra silêncio,
afirmando que “entre todas as palavras é a mais perversa, ou a mais
poética: ela é a própria garantia de sua morte.” […] Perdida a fala —
isto é, a linguagem —, perdemos toda e qualquer esperança de
conhecimento e interação com o mundo. O assassinato que caracteriza
9

o ato de nomear é o mesmo que dá vida ao homem, que o torna humano.


Não se pode chegar a ser homem sem encarar de perto essa morte, essa
distância entre o eu e as coisas (LEAL, 2007, p. 118).

A língua, portanto, atua como uma espécie de filtro através do qual pensamos o
recurso de comunicação, sendo parte inerente da cultura. Nesse contexto, nomear é uma
forma de fixar o pensamento e o aprendizado e torná-lo acessível e apreensível. E, para
discutir isso melhor, convém introduzir agora o conceito de “imaginário”, pois ele
engloba o conjunto de valores e ideias de uma determinada sociedade, época e estrato
social e, em última análise, é um dos elementos que nos permite entender e estudar formas
de pensar anteriores às nossas. Segundo o filósofo Jean-Jacques Wunenburger, o
“imaginário” consiste em:

um conjunto de produções, mentais ou materializadas nas obras, com


base em imagens visuais (quadro, desenho, fotografia) e linguísticas
(metáfora, símbolo, narrativa), formando conjuntos coerentes e
dinâmicos, que depreendem desde uma função simbólica até o senso de
uma inserção de sentidos próprios e figurados que modificam ou
enriquecem o real percebido ou concebido6 (idem, p. 10).

A esse conceito associa-se outro, central à presente pesquisa: o de estereótipos. A


rigor, os estereótipos nada mais são do que uma grade de leitura pronta que nos permite
acumular o aprendizado7, reduzindo a coisa a um nome, nas suas características mais
básicas. Por conta disso, recorrer a estereótipos é um processo fundamental de nossas
mentes para compreender e organizar o mundo segundo nossas percepções. Ou seja, em
si, ele não é algo negativo. O problema estaria em crer que a imagem estereotipada é toda
a verdade acerca daquilo que se está observando.
Da forma como entendemos aqui, os estereótipos, assim como os conceitos da
língua (no caso das abstrações) de que vínhamos falando, são imagens apreensíveis que
ajudam a compor o imaginário. Apesar de se usar o termo correntemente numa acepção
negativa, o maior problema dessa categoria é sua tendência a reduzir e, portanto, negar a
individualidade a pessoas percebidas como representantes de um grupo. Além disso, para

6
Cf. tradução em MATANGRANO, 2019, p. 41. No original: “Nous conviendrons donc d'appeler
imaginaire un ensemble de productions, mentales ou matérialisées dans des oeuvres, à base d'images
visuelles (tableau, dessin, photographie) et langagières (métaphore, symbole, récit), formant des ensembles
cohérents et dynamiques, qui relèvent d'une fonction symbolique au sens d'un emboîtement de sens propres
et figurés qui modifient ou enrichissent le reél perçu ou conçu.”
7
Discorri longamente a respeito dos estereótipos, seus aspectos positivos e negativos e suas funções sociais,
no primeiro capítulo de minha dissertação de mestrado (cf. CHIOVATTO, 2017).
10

existir como tal, o estereótipo necessita de uma ampla aceitação social — aceitação esta
que costuma coincidir com a visão de grupos sociais dominantes, por causa dos
mecanismos de propagação de ideias de que estes últimos dispõem.
Por exemplo, o discurso que associa o grupo “muçulmanos” ao estereótipo
“terrorista” relaciona-se com uma série de processos xenofóbicos exportados sobretudo
pelos Estados Unidos, de acordo com os desígnios de certos estratos da população. O
estereótipo integra, assim, o chamado “senso comum” de forma tão arraigada que
consegue perdurar mesmo se a experiência o contrariar, especialmente na
contemporaneidade, quando existem tantas formas reiteradas de representá-lo —
nomeadamente, através das indústrias audiovisual e de jogos de computador, muito
embora a literatura, o teatro, a música, a pintura e a escultura alcancem, e já tenham
alcançado muito mais, esse poder de massificação.
Nesse sentido, a pesquisadora australiana Susan Hopkins afirma:

Como Baudrillard observa, a irrealidade transformou-se em nosso


ponto de referência primário. Não se trata mais de um caso de
aparências imitando ou duplicando o real — as aparências substituíram
o real. […] Em outras palavras, vivemos em um mundo de imagens e
ficções “mediado” e “virtual”, que podemos modelar de acordo com
nossos próprios desejos e necessidades8 (2002, p. 5).

Tal capacidade de representação enquanto imagem e enquanto discurso tende a


ser subestimada. O imaginário e a cultura — outro conceito mutável de fronteiras fluidas
— constroem-se sobre um conjunto de estereótipos e sua respectiva carga fórica, sejam
de grupos de pessoas ou de objetos, sejam de noções abstratas e convenções sociais.
Sob essa perspectiva, é possível perceber algo já intuitivo: a dimensão social do
estereótipo — aquela que disforiza ou euforiza determinados grupos em detrimento de
outros — atende a certas demandas políticas, econômicas, culturais e/ou religiosas, que
podem vir a sofrer mutações conforme a necessidade ou o interesse. Por exemplo, o termo
“judeu” traz uma ideia diferente nos diferentes contextos da Inquisição ibérica, da
Alemanha nazista (mesmo sendo possível traçar paralelos), da Israel contemporânea, dos
Estados Unidos no século XX, ou dos palestinos que habitam a região de Gaza
atualmente. Assim como a questão dos nomes próprios, no nível do indivíduo, o

8
No original: “As Baudrillard observes, unreality has become our primary point of reference. It is no longer
a case of appearances imitating or duplicating the real — appearances have replaced the real. […] In other
words, we live in a ‘mediated’, ‘virtual’ world of images and fictions, which we mould and shape to suit
our own desires and demands.”
11

fenômeno do estereótipo no imaginário configura uma manifestação de domínio sobre o


outro e — quando mais amplo — sobre a narrativa histórica tida por verdadeira9.
Com isso, ao observar o apagamento do indivíduo face à disforização de grupos
dominados, pode-se inferir como trechos inteiros da história foram escritos sob
determinada ótica, a partir de narrativas centradas em certas visões de mundo. Esse
processo foi o responsável por construir e cristalizar no imaginário, ao longo dos séculos,
diversos estereótipos, fossem positivamente, fossem negativamente.
Nesse contexto, um dos estereótipos mais constantes no imaginário, ao menos
desde o século XV, é o da bruxa, quase sempre disforizado na figura de uma alteridade,
como “a encarnação definitiva da indisciplina feminina […], cuja identidade arquetípica
do início da Idade Moderna estava sendo simultaneamente construída pelas mesmas
práticas culturais e discursos que ajudaram a produzir as ‘megeras’ e as ‘rabugentas’”10
(SCHULER, 2004, p. 388). Perpetuada na atualidade na esfera das narrativas insólitas,
seja na literatura, seja no audiovisual, essa imagem tem uma longa história, que pode nos
indicar modos de ser e pensar do passado, mas também ajudar a compreender a
composição do feminino11 transgressor no presente. Para isso, é preciso refletir, no âmbito
da linguagem, sobre o ato de nomear a definição de conceitos. Como aponta Gaskill, “a
bruxaria poderia ser um nome sem um ato”12 (2010, p. 33), pois

estava enraizada tanto na linguagem quanto no sentimento, e as palavras


podiam constituir a bruxaria sem nenhuma necessidade de algum ato
ter ocorrido. O poder da fala, visto como a contraparte feminina à força
física masculina, possuía uma potência destrutiva ou de algum modo
transformadora — uma imprecação feita abertamente ou o significado
inferido a partir de comentários inócuos, porém ambíguos13 (2010, p.
33).

9
Aqui interessa remeter a Michel Foucault, lido a partir de Cesar Candiotto: “O fio condutor do pensamento
de Foucault também é a problemática da verdade. No entanto, trata-se de tomar distância dos privilégios
do sujeito de conhecimento para debruçar-se na produção histórica da verdade. Significa salientar a
enunciação de discursos que funcionam entre diferentes práticas como justificação racional de verdade,
como se fossem verdadeiros” (2006, p. 67, grifos meus).
10
No original: “the ultimate embodiment of female unruliness was the witch, whose early-modern
archetypal identity was simultaneously being constructed by the same cultural practices and discourses that
helped produce ‘shrews’ and ‘scolds’.”
11
Importa apontar que leio os conceitos de "feminino" e "mulher" de acordo com a maneira como o texto
analisado os considera. Nas obras históricas e mesmo nas contemporâneas abarcadas neste trabalho, eles
em geral consistem numa sobreposição do sexo biológico com determinadas performances sociais de
gênero.
12
No original: “witchcraft could be a name without a deed.”
13
No original: “Witchcraft was rooted in language as well as feeling, and words could constitute witchcraft
without need for any act to have occurred. Speech, seen as a female counterpart to male physical force,
possessed destructive or otherwise transformative power — the overt imprecation or the inference of
meaning from innocuous but ambiguous remarks.”
12

Essa ideia do poder da fala como uma contraparte feminina à força física
masculina é uma interessante construção retórica do período; na maioria das sociedades,
a voz foi negada à mulher nas esferas públicas da vida social em quase todas as instâncias.
No entanto, a mera capacidade da fala bastava para suscitar o medo de um poder oculto,
inexplicável, mágico, um poder que, na prática cotidiana, costumava ser exercido por
homens, para o bem e para o mal. O potencial do poder da fala feminino permaneceria
objeto de discussões promovidas por esses mesmos homens — teólogos, médicos, juristas
—, embora circunscrito ao ambiente doméstico ou, quando muito, microssocial de uma
comunidade.
Não obstante, é preciso levar em consideração a própria crença na bruxaria como
fator sociolinguístico determinante para as percepções de realidade da época e de hoje.
Stuart Clark, brilhante historiador, cuja obra Thinking with demons ainda é (cf. HUTTON,
2017) a maior autoridade no pensamento da elite intelectual do início da Idade Moderna,
referente a esse tema, discorre acerca do poder da linguagem sobre a realidade de uma
maneira menos mística do que nossos antepassados imaginavam e nós mesmos
gostaríamos de admitir:

A presunção de que a crença em bruxaria era essencialmente incorreta


[…] prevaleceu nos estudos sobre o tema por tanto tempo por causa de
um comprometimento decisivo, embora bastante tácito, com o modelo
realista de conhecimento. Nele, a linguagem é vista como uma reflexão
direta de uma realidade fora de si mesma, e julga-se enunciações como
verdadeiras ou falsas de acordo com sua precisão em descrever coisas
objetivamente. Considera-se esse tipo de referência neutra ao mundo
exterior a única forma confiável de significação e, na verdade, a mais
importante propriedade da linguagem. Em consequência, só foi possível
dar conta das crenças em bruxaria de duas maneiras. Primeira, foram
submetidas, mesmo se apenas implicitamente, à verificação empírica a
fim de determinar se correspondiam a atividades reais de pessoas reais.
Com exceções importantes, a resposta foi “não”. A entidade “bruxaria”
acabou virando uma não-entidade, pois não costuma ter referentes no
mundo real. Uma vez testada assim, as crenças em bruxaria ou foram
de cara consideradas um erro e, portanto, irracionais, ou (e essa é a
segunda possibilidade) foram explicadas como consequências de
alguma condição genuinamente real e determinante — ou seja, um
grupo de circunstâncias (sociais, políticas, econômicas, biológicas,
psíquicas etc.) que fosse objetivamente real em si mesmo, mas
engendrasse crenças objetivamente falsas. Esses processos gêmeos de
falsificação e explicação pressupõem um ao outro, claro. Uma crença
equivocada clama por uma razão para ter se mantido apesar de sua
falsidade, além de acreditarem nela; enquanto desconsiderar uma
13

crença depende, lógica se não efetivamente, de uma decisão anterior de


que era incapaz de se manter em termos de ancoragem em alguma
realidade. O que nenhum dos dois processos procura ou consegue fazer
é interpretar as crenças em bruxaria como crenças, já que no primeiro
caso são rejeitadas como insignificantes, e no segundo são reduzidas a
reflexos epifenomenais de outras coisas. […] Uma noção diferente de
linguagem deverá ser considerada — em particular, que não se deve lhe
pedir para seguir a realidade, mas para constituí-la14 (CLARK, 1997,
pp. 4-6).

Em suma, Clark aponta certo preconceito intelectual de nossa atual academia em


relação às pessoas do início da Idade Moderna, cujo sistema de conhecimento e crença15
diferia do nosso, mas não era de todo irracional, como o Iluminismo pregou e acreditamos
hoje em dia. Estamos muito dispostos a atribuir os pânicos a assuntos exteriores ao medo
da bruxaria em si, pois nosso sistema de pensamento não consegue admitir a existência
da bruxa na época, mesmo se apenas fora do mundo referencial. Embora diversas
pesquisas associem outros fatores aos tempos de maior furor nas perseguições às bruxas
(como problemas com a colheita, enchentes, secas, pestes e afins), é preciso reafirmar que
havia um predomínio na crença na realidade da bruxaria. Como bem apontou o professor
Julian Goodare (WITCH HUNT, 14/11/2019, 8’55”-9’09”), no século XVI não se
culpavam alienígenas pelas adversidades. Ora, a sociedade caçava seres sobrenaturais que
existiam, em sua concepção, e os extraterrestes ainda não haviam sido inventados.

14
No original, “The assumption that beliefs in witchcraft were essentially incorrect […] has prevailed in
witchcraft studies for so long because of an overriding, though largely unspoken, commitment to the realist
model of knowledge. In this model, language is seen as a straightforward reflection of a reality outside itself
and utterances are judged to be true or false according to how accurately they describe objective things.
This kind of neutral reference to the external world is held to be the only reliable source of meaning and,
indeed, the most important property of language. In consequence, it has been possible to account for
witchcraft beliefs (like any others) in only two ways. First, they have been submitted, if only implicitly, to
empirical verification to see whether they corresponded to the real activities of real people. With important
exceptions, the answer has been ‘no’. The entity ‘witchcraft’ has turned out to be a non-entity, because for
the most part it had no referents in the real world. Once tested in this manner, witchcraft beliefs have then
either been dismissed out of hand as mistaken and, hence, irrational, or (and this is the second possibility),
they have been explained away as the secondary consequences of some genuinely real and determining
condition — that is to say, some set of circumstances (social, political, economic, biological, psychic, or
whatever) that was objectively false beliefs. These twin processes of falsification and explanation imply
each other, of course. A mistaken belief cries out for an account of why it continued to be held despite its
falseness, other than because it was believed in; while explaining a belief away depends, logically if not
actually, on a prior decision that it was incapable of self-support in terms of its reference to something real.
What neither process attempts, or could achieve, is interpretation of witchcraft beliefs as beliefs, since in
the first case they are rejected as meaningless, an in the second they are reduced to the epiphenomenal
reflexes of other things. […] a different notion of language will have to be considered — in particular, that
it should not be asked to follow reality but be allowed to constitute it.”
15
Observei que historiadores do século XIX e início do XX tendem a manifestar com certa insistência sua
descrença na realidade da bruxaria, talvez porque nessa época as crenças anteriores ainda fossem uma
cicatriz relativamente recente e o campo de estudo ainda não estivesse tão bem estabelecido quanto nas
últimas décadas do século XX e nas primeiras do XXI.
14

Assim, a realidade enviesada criada pela linguagem poderia servir a diversos fins,
no caso da bruxaria. A própria utilização do termo acaba sendo um discurso de poder: o
que para alguns era “religião”, para outros era “magia”16, nos casos de demonização de
cultos pagãos, e mesmo na glorificação dos cerimoniais católicos que viriam a ser
rechaçados pelos teólogos protestantes por seu extremo misticismo. A diferença maior
entre a bruxaria e a religião era, essencialmente, o grau de aceitabilidade de determinada
prática, sob a perspectiva do sistema hegemônico de determinado lugar. Por exemplo,
uma missa, uma extrema unção ou um exorcismo seriam tidos por rituais quase mágicos,
numa perspectiva calvinista.
É importante também frisar que vários pesquisadores insistem no fato de ter
havido uma mudança na forma como a bruxaria era socialmente percebida. As crenças
populares, em geral, aceitavam a existência de dois tipos de magia, que poderiam ou não
ser manejados pela mesma pessoa: um bom e um mau. O conceito de “malefício” já
existia desde Roma (HUTTON, 2017). No entanto, o pacto diabólico é um construto
surgido a partir do século XV, que parte de tratados sobre demonologia (cf. CLARK,
1997) na esfera erudita e vão se mesclando à cultura popular. Segundo a pesquisadora
Liv Helene Willumsen,

Nessa época a sociedade era majoritariamente oral, e noções


demonológicas impregnavam-se de narrativas orais por um processo de
assimilação. O que facilitava tal processo era o uso da mesma forma,
estrutura e mecanismos estilísticos de narrativas conhecidas do folclore.
Narrativas contendo conceitos demonológicos eram rapidamente
transmitidas de pessoa para pessoa, e tornaram-se parte da esfera
mental17 (2013, p. 15).

O mais interessante desse processo é observar a influência das crenças pagãs


regionais nessas narrativas. Por exemplo, na Escócia e em outros países com a presença
de uma herança dos povos célticos, é comum a bruxaria envolver seres feéricos e, em

16
Segundo Hutton, a magia consiste em “quaisquer práticas formalizadas exercidas por seres humanos,
destinadas a alcançar fins específicos através do controle, da manipulação e do direcionamento de um poder
sobrenatural ou espiritual oculto no mundo natural” (2017, p. x). Ele distingue esse conceito daquele de
religião, definida como “a crença na existência de seres ou forças espirituais que em alguma medida sejam
responsáveis pelo cosmos e possuam a necessidade de seres humanos com quem possuam uma relação na
qual sejam respeitados.” Além disso, para constituir uma religião, um grupo de pessoas deve “operar da
mesma maneira” (idem). O autor reconhece que, partindo dessas definições, pode haver uma sobreposição
das duas.
17
No original: “Society at this time was mainly oral, and demonological notions were fused with traditional
oral narratives through a process of assimilation. What eased this process was the use of the same form,
structure and stylistic devices as narratives known from folklore. Narratives containing demonological
concepts were transmitted rapidly from person to person, and became part of the mentality sphere.”
15

alguns casos, uma fada ou elfo substituiria o papel do demônio na criação do pacto
diabólico (cf. WILBY, 2010). Do mesmo modo, a chamada “bruxaria” de povos africanos
escravizados nas Américas tendia a envolver seus deuses e entidades patrícios.
Desse modo, a bruxaria acaba sendo, como já dito, o palco de uma guerra pelo
domínio do discurso e, mesmo quando ancorada na crença de pessoas reais, é sujeita aos
paradigmas da sociedade na qual sua existência é inconteste ou, ao menos, bem aceita.

1.2. As palavras que fixam a bruxaria no imaginário


Hoje uma interessante figura em livros, filmes, séries, desenhos animados e afins,
a bruxa aparece quase sempre como uma manipuladora de forças ocultas e profanas.
Trata-se de uma imagem bastante longeva, construída ao longo de mais de dois mil anos
(HUTTON, 2017), um estereótipo nascido da necessidade de se lidar com choques
culturais e crises internas e externas.
À semelhança da esfera maior da cultura e do imaginário, na bruxaria tudo parte
da língua (como bem apontado por Stuart Clark acima). Até a voz divina feita discurso
escrito é sujeita a essa verdade; a Bíblia, ao ser traduzida e retraduzida, ganhou novos
termos para englobar diversas subcategorias de práticas mágicas. Na introdução da obra
The literature of witchcraft, o historiador Brian P. Levack informa: “algumas passagens
[bíblicas] que, em si mesmas, assumiam uma potência quase mágica em qualquer
discussão, condenavam explicitamente os associados humanos do Diabo e seus
asseclas”18 (1992, p. 7). O texto bíblico, dito a Palavra de Deus, é a irretocável fonte de
conhecimento a partir do qual muito se discutia e se ditava para a vida das pessoas, sendo
a questão das bruxas apenas um item. O protestantismo nascente, que trouxe essa Palavra
divina ao acesso da população ao traduzi-la para a língua vernacular, também possibilitou
a multiplicação de versões diferentes, de modo a “esclarecer” a vontade de Deus segundo
as necessidades da época.
Após o trecho referido, Levack então passa a nos apresentar as passagens mais
utilizadas para justificar a perseguição a bruxas, citando primeiro o famoso versículo do
Êxodo “Thou shalt not suffer a witch to live”, que, embora o mais célebre, não é o único.
Ele cita três versículos do livro do Deuteronômio que nos interessam particularmente
aqui, e ainda mais por ele não parecer ter atentado para a versão da tradução que estava
citando: a Authorised Version de 1611.

No original: “Human associates of the devil and of his minions were explicitly condemned in passages
18

which themselves assumed almost magical potency in any argument.”


16

Em sua obra, a Dra. Willumsen (2013) tece uma interessante relação entre as
passagens mais populares da Bíblia para justificar a perseguição às bruxas e o Wictchcraft
Act de 1563, uma lei dedicada a esse crime. Partindo daí, a pesquisadora compara as
traduções bíblicas popularmente conhecidas como Bíblia de Gênova (1560), aquela
utilizada na redação do texto legal, e a chamada Authorised Version, ou, como hoje é mais
conhecida, King James Bible (1611). Um dos trechos sobre o qual ela se debruça é
justamente aquele mencionado por Brian Levack (Deuteronômio 18: 10-11):

Que não se encontre ninguém entre vocês que faça seu filho ou filha
atravessar o fogo, ou que use bruxaria, ou observe o tempo, ou repare
no voo de almas, ou um feiticeiro// Ou um encantador, ou que se
aconselhe com espíritos ou um sothesayer, ou que peça conselhos aos
mortos19 (Bíblia de Gênova, 1560).

A tradução encomendada pelo rei James VI da Escócia e I da Inglaterra traz o


seguinte para o mesmo trecho:

Não deve ser encontrado entre vocês ninguém que faça seu filho ou
filha atravessar o fogo, ou que use adivinhações ou observe o tempo, ou
seja um encantador, ou uma bruxa// ou um charmer, ou que se consulte
com familiares, ou um mago, ou um necromante20 (Authorised version,
1611).

Esta última é a versão citada por Levack (1992, p. 7), tomada por bastante
abrangente. Observa-se nela a inclusão dos familiares [familiar spirits] e da figura do
mago [wizard], assim como a enumeração mais detalhada de praticantes de modalidades
diferentes de magia, decerto atendendo a uma necessidade de comunicação ainda não
criada/identificada quando da tradução da chamada Bíblia de Gênova. Conforme a
própria Willumsen observa ao discutir certos autos de processos escoceses,

Também é interessante o fato de as palavras charming e soothsayer


serem mencionadas nos autos do julgamento de Margaret Wallace,
correspondendo à formulação da Bíblia de 1560, enquanto na edição de
1611 nós não encontramos a palavra soothsaying. Em vez disso,
utilizam-se os termos inchanter, witch, charmer e wizard. […]
Entretanto, nos autos do caso de Wallace usam-se formulações mais

19
No original: “Let none be found among you that maketh his sonne or his daughter to go through the fire,
or that useth witchcraft, or a regarder of times, or a marker of the flying of soules or a sorcerer// Or a
charmer, or that conselleth with spirits or a sothesayer, or that asketh councel at the dead.”
20
“There shall not be found among you any one that maketh his sonne, or his daughter to pass throw the
fire, or that useth divination or an observer of times, or an inchanter, or a witch// or a charmer, or a consulter
with familiar spirits, or a wizard, or a necromancer.”
17

próximas da versão mais antiga. Note-se que ocorre a substituição do


termo witchcraft [bruxaria] da edição de 1560 para a witch [um bruxo/
uma bruxa] na de 1611, um conceito individualizado e personificado.
O uso do singular na edição de 1611 pode se referir à relação pessoal
entre a bruxa e o Diabo, vista como o estabelecimento do pacto
diabólico entre os dois. É preciso destacar que o termo consulter with
familiar spirits [pessoa que consulta familiares] apareceu nesta versão
nova da Bíblia, a de 161121 (2013, pp 104-5).

Como veremos no próximo capítulo, essas modalidades são objeto das


elucubrações do rei James em seu tratado Daemonologie (1597), e seu abarcamento na
tradução bíblica por ele encomendada não pode ser fruto de coincidência.
O poder determinante do discurso começa justamente na escolha dos termos
empregados, motivo pelo qual agora me volto à análise das palavras mais comuns
utilizadas para designar as bruxas.
Um dos vocábulos possíveis para designar a bruxa estereotípica feia, velha e má22
é hag. O dicionário Oxford23 o define da seguinte maneira: “Um mau espírito ou ser
infernal em forma feminina: inicialmente aplicado às Fúrias, às Harpias etc. da mitologia
greco-romana, e também aos seres feéricos femininos maldosos da mitologia teutônica”24.
Outras definições, já em desuso, dentro desta primeira, se referem a seres fantásticos,
eminentemente noturnos, e ao próprio pesadelo. A segunda acepção é a seguinte: “uma
mulher que se diz ter tratos com Satã e com o inferno; uma bruxa, às vezes uma mulher
infernalmente má”25. Hoje em dia, esta última é associada à terceira acepção: “uma velha
feia e repulsiva: frequentemente associada à crueldade e à malícia26”.

21
No original: “It is also interesting that the words ‘charming’ and ‘soothsayer’ are mentioned in the court
records of Margaret Wallace’s trial, corresponding to the 1560 Bible wording, while in the 1611 edition we
do not find the word ‘soothsaying’. Instead the words ‘inchanter’, ‘witch’, ‘charmer’ and ‘wizard’ are used.
[…] However, in the court records of the Wallace case formulations used are closest to the older Bible. It
should be noted that ‘witchcraft’ in the 1560 edition is replaced by ‘a witch’ in the 1611 edition, a concept
individualized and personified. The use of singular in the 1611 edition might refer to the personalized
relation between the witch and the Devil which is seen though entering into the Devil’s pact. It is to be
noted that the term ‘consulter with familiar spirits’ has entered this new authorised 1611 Bible.”
22
Falei a respeito da tríade velhice-feiura-maldade em oposição a juventude-beleza-bondade no quarto
capítulo de minha dissertação de mestrado (CHIOVATTO, 2017).
23
Utilizamos a versão online disponível pelo endereço www.oed.com (de acesso restrito), que possui uma
historiografia completa de cada vocábulo da língua.
24
No original: “An evil spirit, dæmon, or infernal being, in female form: applied in early use to the Furies,
Harpies, etc. of Græco-Latin mythology; also to malicious female sprites or ‘fairies’ of Teutonic
mythology. Obs. or arch.”
25
“A woman supposed to have dealings with Satan and the infernal world; a witch; sometimes, an infernally
wicked woman.”
26
“An ugly, repulsive old woman: often with implication of viciousness or maliciousness.”
18

Em português, o termo “bruxa” é o mais próximo de hag, mas também serve para
witch, a ser discutido em seguida. Exceto pela ressignificação promovida pela série Harry
Potter, da qual trataremos na segunda parte deste trabalho, a figura definida como
“bruxa”, em português, se mostra no imaginário ocidental contemporâneo tudo o que se
associa à hag, salvo, talvez, as associações mitológicas suscitadas nas origens deste
último termo. O dicionário Houaiss (2012) da língua portuguesa indica o primeiro
registro de “bruxa” em 1559, com a seguinte definição: “mulher que tem fama de se
utilizar de supostas forças sobrenaturais para causar malefícios, perscrutar o futuro e fazer
sortilégios, feiticeira”. E a segunda acepção, com o apontamento “derivação por extensão
de sentido”, traz o seguinte: “mulher muito feia e/ ou azeda e mal-humorada”. A título de
curiosidade, e como em português a maior parte dos substantivos têm dois gêneros, e em
geral só o masculino figura no dicionário, pesquisei “bruxo”, cuja primeira definição no
Houaiss é: “homem que, como as bruxas, se utiliza de supostas forças sobrenaturais para
causar malefícios, prever o futuro e fazer sortilégios” (grifos meus). Agora, a segunda
acepção, por extensão de sentido, é: “mago, mágico”. E o incrível sentido figurado,
conforme o dicionário, é: “homem habilíssimo, que faz prodígios”. A misoginia
linguística obviamente não é imotivada; reflete uma misoginia social. Leva-se a aparência
da bruxa em conta, mas não a do bruxo, e, no masculino, existe a possibilidade
dicionarizada de o termo constituir um elogio. Isso à parte, note-se também que “bruxa”
é uma das poucas palavras do vernáculo em que a flexão feminina precede a masculina.
Voltando à língua inglesa, o termo witch é mais neutro para se referir às bruxas
do que hag (que necessariamente tem o peso de um insulto), embora tenha muito cedo se
tornado uma forma de ofensa direcionada às mulheres em geral (GASKILL, 2010, p. 33).
Sua primeira acepção data de cerca de 900 DC, segundo o dicionário Oxford: “um homem
que pratica bruxaria ou magia; um mágico, feiticeiro ou mago”27 (grifos meus). Interessa
observar que, diferentemente do que acontece no português, a ideia da prática de bruxaria
surge antes associada ao masculino (mas note-se a diferença de quase seis séculos desse
surgimento entre as duas línguas). Pouco corrente hoje em dia, esse significado começou
a cair em desuso por volta do século XV. O mais utilizado, cujo primeiro registro ocorre
em c. 1000 DC, é: “Uma maga, especialmente, em usos posteriores, uma mulher que se

27
No original: “A man who practises witchcraft or magic; a magician, sorcerer, wizard”.
19

supõe lidar com o diabo ou maus espíritos e ser capaz, através da cooperação destes, de
realizar feitos sobrenaturais”28.
Na própria origem dos termos já existe nítido grau de misoginia, que norteia ou
reflete a construção dos estereótipos por eles abarcados. Na primeira acepção de witch,
na qual é o masculino o definidor e não o neutro (fala-se em man, e não em person), não
há qualquer referência a maldade, demônios ou contribuição de terceiros oriundos da
esfera do sobrenatural. É com a menção explícita ao feminino (female magician) que a
palavra é imbuída de todas essas cargas.
Segundo Malcolm Gaskill,

o termo witch […] vem do verbo wiccan, no inglês antigo, que significa
lançar feitiços, sem preferência por gênero. Um praticante do sexo
masculino era um wicca, e do feminino, wicce. Na Inglaterra do início
da Idade Moderna, aplicava-se witch tanto para homens quanto para
mulheres, embora àquela altura a palavra já houvesse adquirido um
significado ferozmente negativo, mais próximo ao termo latino
maleficus29 (2010, p. 29).

Gaskill parece especialmente preocupado, em seu livro introdutório Witchcraft: a


very short introduction (2010), em mitigar o efeito da misoginia na percepção social da
bruxa. Em Daemonologie, do rei James VI da Escócia e I da Inglaterra, que analisaremos
no Capítulo 2, o termo witch de fato vale para os dois sexos. No entanto, o próprio Gaskill
admite que a maior parte dos réus de processos contra bruxaria era do sexo feminino
(2010, p. 30) e chega a explorar motivos para isso, os quais, em sua concepção, não
resultam de misoginia. Exploraremos isso em pormenor na próxima seção deste capítulo.
Por ora, convém lembrar que a bruxa, mesmo sendo um estereótipo mais ou menos
fixo no imaginário, tem variações. Conforme descrito pelo inquisidor e teólogo Heinrich
Kramer, as bruxas deveriam: “renunciar à fé católica em todo ou em parte, com um
discurso sacrílego, devotar-se solenemente, de corpo e alma, ofertar bebês ainda não
batizados ao Diabo, e persistentemente participar de imundos atos carnais com demônios”
(2009, p. 120). Uma percepção doentia da sexualidade aparece também em outros
momentos do tratado. Assim, embora nem sempre a bruxa acusada de manter relações

28
“A female magician, sorceress; in later use esp. a woman supposed to have dealings with the devil or evil
spirits and to be able by their co-operation to perform supernatural acts”.
29
No original: “the term ‘witch’ […] comes from the Old English verb wiccan, meaning to cast spells,
without preference for gender. A male practitioner was a wicca, the female wicce. In Early Modern England,
‘witch’ applied to both men and women, although by then it had taken on fiercely negative meaning, closer
to the Latin term maleficus.”
20

sexuais com o Diabo (ou um demônio, dependendo da confissão ou do tratadista) seja


jovem e bonita, ela pode sê-lo. Isso se tornaria um mecanismo de refrear a “incontrolável”
sexualidade feminina. Enquanto na qualidade de hag ou witch, a bruxa costuma ser feia,
velha e má, outra face da figura advém da demonização da libido feminina, resultando na
possibilidade de se pensar numa mulher jovem, bonita e má, que não será hag, mas
enchantress: pelo viés da sexualidade que não se sujeita às normas vigentes, ela se torna
moralmente desfigurada. Há ainda a se considerar a sexualidade das idosas, tida por
abjeta.
No dicionário Oxford, a enchantress é definida no cabeçalho da página como: “a
female enchanter” [o feminino de enchanter], e consta a seguinte primeira acepção: “uma
mulher que emprega magia; uma bruxa, feiticeira”30. O sentido figurado, surgido já no
século XVIII, é “a charming or bewitching woman” [uma mulher encantadora]. Nota-se
que a mulher tida por boa é, enquanto a má age.
O interessante dessas definições é que, embora signifiquem algo eminentemente
euforizado, inclusive na acepção atual31, tanto charm quanto bewitch são palavras para
“enfeitiçar”. A ideia do feitiço como parte da sedução feminina ficou enraizada na
linguagem e depois se ampliou, podendo ser utilizada também para o masculino. Mais do
que isso, perdeu a relação com a figura da bruxa — o que talvez possa explicar por que
tanto enchant quanto charm foram dissociados de suas anteriores cargas disfóricas. Esse
movimento é mais difícil com bewitch pela própria etimologia da palavra e, no entanto,
também ocorre em contextos romantizados. Por exemplo, na “universalmente
reconhecida” obra de Jane Austen (1775-1817), Orgulho e Preconceito (1813), temos a
seguinte passagem: “Darcy had never been so bewitched by any woman as he was by
her” (1894, p. 66) [“Darcy nunca estivera tão enfeitiçado por nenhuma mulher quanto por
ela” (2017, p. 61)]. Aqui, bewitch se refere ao momento em que o protagonista começa a
perceber que está se apaixonando pela protagonista Elizabeth Bennet, com quem virá a
se casar ao final. É, portanto, um termo dotado de carga fórica positiva, por não haver
nenhuma espécie de admoestação do narrador ou das personagens à figura de Elizabeth;
não se trata de fato de um feitiço, mas de um efeito que sua personalidade causa.

30
No original: “A female who employs magic; a witch, sorceress. Also fig.”
31
Atrair um homem é uma das coisas que se espera até mesmo das protagonistas mais heroicas em boa
parte da produção literária e audiovisual (cf. CHIOVATTO, 2017, pp. 16-26). Talvez por isso, na
contramão do movimento até aqui observado, a ideia de uma mulher bewitching tenha ganhado conotação
positiva.
21

Enchanter, palavra da qual enchantress deriva32, tem a primeira acepção dividida


em duas partes: “alguém que encanta [enfeitiça], usa magia; anteriormente, também um
‘conjurador’, alguém que pratica truques de ilusionismo”33. Ou seja, embora a
enchantress possa ser também uma simples female enchanter, ela não pratica truques,
não há referências a isso em sua entrada no dicionário. A segunda parte da definição, com
a rubrica transferred [transferido], diz: “a ‘charmer’, bewitching woman”. Ou seja,
utilizou-se antes enchanter com o mesmo sentido para o qual posteriormente cunhou-se
a flexão enchantress. Enquanto masculino, não há nenhuma espécie de referência à
sedução.
Insistindo ainda no percurso etimológico, enchant originalmente significa
“exercer influência mágica sobre; enfeitiçar, pôr feitiço em. Além disso, dotar de poderes
ou propriedades mágicas”34. Também, em uso posterior, como uma metáfora consciente,
até se tornar livre no uso: “Encantar, fascinar, extasiar”35. Curiosamente, o viés sedutor
do feminino foi sendo euforizado na mesma medida em que se despiu da palavra seu
sentido primeiro, enquanto a mulher sexualmente agressiva continuava disforizada. Uma
mulher enchanting, no mais das vezes, aparece euforizada se o é de maneira inconsciente,
sem ativamente tentar seduzir (como no exemplo de Jane Austen acima mencionado).
Deve ser um traço inerente à sua personalidade.
Em português, existe um movimento similar, sem dúvida em decorrência da raiz
latina do termo. Raramente, ao se usar “encantador(a)” ou “encanto” existe uma remissão
ativa à ideia de bruxas lançando feitiços. O encanto deixou de ser uma ação carregada de
intencionalidade para se tornar uma característica, algo intrínseco a um indivíduo. Ao
perder o viés da intenção, no feminino, perdeu também a carga disfórica.
Na mesma linha, charm, enquanto substantivo, é definido como, originalmente
(cf. apontamento do Oxford): “o canto ou a recitação de um verso que se supõe ter poder
mágico ou influência do oculto; encanto, encantamento; por conseguinte, qualquer ação,
processo, frase, palavra ou coisa material a que sejam atribuídas tais propriedades; um
feitiço mágico; um talismã etc.”36. Em seguida: “qualquer coisa usada numa pessoa para

32
Note-se que a palavra deriva do francês antigo enchanteresse, feminino de enchantere (cf. Oxford).
33
No original: “one who enchants, uses magic; formerly also, a ‘conjuror’, one who practises sleight of
hand.”
34
No original: “To exert magical influence upon; to bewitch, lay under a spell. Also, to endow with magical
powers or properties.”
35
No original: “To charm, delight, enrapture.”
36
No original: “The chanting or recitation of a verse supposed to possess magic power or occult influence;
incantation, enchantment; hence, any action, process, verse, sentence, word, or material thing, credited with
such properties; a magic spell; a talisman, etc.”
22

afastar o mal ou prosperidade incerta; um amuleto”37. Novamente, repetindo o processo


de enchant, parte-se da bruxaria para alcançar o sentido figurado: “qualquer qualidade,
atributo, traço ou característica etc. que exerça influência em termos de fascínio ou
atração, provocando amor ou admiração. No plural [encantos], especialmente a beleza
feminina”38. Essa palavra já tem um sentido dúbio em sua raiz: pode ser algo usado tanto
para causar mal quanto para preveni-lo. Listadas como sinônimos, as palavras charm e
enchant tiveram processos semelhantes no advento da conotação euforicamente associada
ao feminino.
Na qualidade de verbo, temos charm como: “agir por meio de feitiço ou magia de
forma a influenciar, controlar, subjugar, vincular etc.; lançar feitiço sobre; enfeitiçar,
encantar”39. Em conformidade com o substantivo, a segunda acepção é: “dotar de poderes
ou virtudes sobrenaturais por meio de feitiços [encantos]; especialmente para fortificar
contra males ou perigos”40 (grifos meus). Outra vez existe uma ambivalência, uma igual
capacidade para fazer bem e mal, que se repetirá adiante: “Efetuar sortilégios, usar
encantamentos ou feitiços, praticar magia”41. Por fim, seu sentido figurado é:
“influenciar, fascinar, poderosamente atrair ou envolver (a mente, os sentidos etc.) por
meio da beleza, doçura ou outra característica atrativa; fascinar, cativar, enfeitiçar,
encantar, deleitar”42. Beleza e doçura, note-se, são características listadas juntas,
remetendo-nos de volta à tríade juventude-beleza-bondade e ao velho adágio socrático do
bom e do belo.
Em francês e em português, o charme sofre exatamente o mesmo processo,
partindo da acepção mais diretamente relacionada à bruxaria até se esvaziar desse sentido
e passar a ser usado de maneira corrente como uma característica individual relacionada
à sedução amorosa. O adjetivo “charmoso”, em português, não nos parece ter qualquer
relação com bruxaria, sendo amplamente utilizado, em especial no masculino e de
maneira euforizada. Além disso, temos o tradicional estereótipo masculino do Príncipe

37
“Anything worn about the person to avert evil or ensure prosperity; an amulet.”
38
“Any quality, attribute, trait, feature, etc., which exerts a fascinating or attractive influence, exciting love
or admiration. In pl., esp. of female beauty, great personal attractions.”
39
“To act upon with or as with a charm or magic, so as to influence, control, subdue, bind, etc.; to put a
spell upon; to bewitch, enchant.”
40
“To endow with supernatural powers or virtues by means of charms; esp. to fortify against evil or
dangers.”
41
“To work charms, use enchantments or spells, practise magic.”
42
“To influence, enthral, powerfully attract or engage (the mind, senses, etc.) by beauty, sweetness, or other
attractive quality; to fascinate, captivate, bewitch, enchant, delight.”
23

Encantado (Prince Charmant, em francês, e Prince Charming, em inglês), a própria


imagem do heroísmo, presente desde Perrault.
Observando a evolução da esfera semântica dessas palavras ao longo do tempo,
notamos haver coincidência com a percepção histórica e sociocultural da figura da bruxa
e, paralelamente, das feminilidades conformes e não-conformes. As alterações das cargas
fóricas dos termos analisados, após o esvaziamento de seu sentido primeiro, acompanham
uma queda na crença em poderes sobrenaturais entre as camadas mais instruídas da
população e, como não poderia deixar de ser, os esforços da Igreja em regulamentar os
principais aspectos do feminino, segundo seus preceitos (cf. BECHTEL, 2002), quais
sejam a sexualidade, o casamento, a reprodução. A bruxa, nesse sentido, como a puta e a
viúva, em dada medida, opõe-se ao convencionalmente aceito, escapando aos papéis
reservados às mulheres seja por opção própria seja por causa da eventual impossibilidade
de exercê-los.
O estereótipo que permeia nosso imaginário precisa ser compreendido para ser
identificado discursivamente, desconstruído mediante a exposição do contexto no qual se
cristalizou, para então podermos observar suas diversas mutações na atualidade.
Passemos a isso.

1.3. Diabo, misoginia e a bruxa estereotípica


Segundo Pastoureau, na Idade Média “o imaginário é uma realidade” (2004, p.
20). Essa afirmação tem bastante relevância para explicar a crença na bruxaria, que tornou
possíveis as perseguições tão absurdas aos olhos de hoje. Como já dito na primeira seção
deste capítulo, o imaginário é o filtro da experiência, de forma a moldar a realidade
percebida. Assim, como já mencionado, Julian Goodare comenta que no século XVI não
há relatos de naves espaciais invadindo a Terra e abduzindo seres humanos para realizar
experiências, mas, em certas partes da Escócia, fala-se no roubo de crianças por seres
feéricos e sua substituição por changellings.
Para o especialista no assunto Malcolm Gaskill, na mesma linha de Stuart Clark,
“enxergar a bruxaria como uma ideia culturalmente embutida desafia a costumeira
presunção de que ela seria um erro de categoria, uma entrega à emoção, uma prova de
ignorância”43, pois, “ao contrário do nosso empirismo habitual, crença e conhecimento

43
No original: “seeing witchcraft as a culturally embedded idea challenges the usual assumption that it was
a category mistake, a surrender to emotion, a badge of ignorance.”
24

são inseparáveis”44 (2010, p. 8). Ele baseia essa declaração no fato de que boa parte do
que julgamos conhecer são apenas crenças muito bem assentadas, as quais podem vir a
cair por terra na próxima grande descoberta científica. Para Nietzsche, “as verdades são
ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tomaram gastas e sem força
sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal,
não mais como moedas” (NIETZSCHE, 1999, p. 57). Nas palavras de Darren Oldridge,

Muito do que sabemos vem de segunda-mão e, como tal, é definido por


circunstâncias históricas. Como todos os aspectos da atividade humana,
visões de mundo estão sujeitas a mudanças ao longo do tempo. Tais
‘crenças de plano de fundo’ darão forma ao testemunho no qual
baseamos nosso entendimento da vida (2012, p. 15).

Por isso, julgar o credo passado aos olhos de hoje pode constituir um erro
epistemológico; a disposição de acreditar no intangível, um ramo de nossas capacidades
criativas, e a emoção são traços evolutivos que permitiram à espécie humana se adaptar
(GASKILL, 2010, pp. 6-7). Historiadores, sociólogos, antropólogos e pesquisadores de
áreas afins, especialmente aqueles que estudam o impacto da religião na cultura e na
formação das diversas sociedades, costumam trazer esse alerta no início de suas obras,
porque nosso atual ceticismo tende a debochar do fato de terem-se criado guerras,
executado pessoas e destruído cidades com base em crenças que hoje nos parecem
ultrapassadas. Também estudiosos de outras áreas se preocupam com isso; semioticistas,
analistas do discurso etc., muitos ligados à fenomenologia, lembram constantemente o
quanto nossas experiências, nosso próprio testemunho da verdade percebida, estão
sujeitas às nossas crenças. Afinal, só podemos olhar para um objeto ou uma situação a
partir de nosso próprio ponto de vista (cf. GROUPE µ, 2015), o que pode parecer óbvio,
mas, na prática, não é45.
Assim sendo, ao voltarmos à afirmação de Pastoureau sobre o imaginário ser uma
realidade na Idade Média, talvez possamos dizer que ele foi comedido: o imaginário ajuda

44
No original: “Contrary to our empirical habits of mind, belief and knowledge are inseparable.”
45
Angela Davis, bell hooks (nome grafado sempre em minúsculas) e outras feministas negras dirão, por
exemplo, o quanto uma testemunha ocular de um suposto crime pode estar enxergando uma cena sob o véu
do racismo. Há dezenas de exemplos muito recentes na internet, dos quais seleciono dois: no Wisconsin,
um jovem negro estava no carro com sua avó branca e uma amiga dela também branca, quando a polícia
os parou com suspeita de que ele fosse um assaltante (cf. ENJOLI, 2018). Em Chicago, um segurança negro
de um bar estava armado e deteve um atirador no local; quando a polícia chegou, atirou nele, embora os
clientes avisassem aos policiais que se tratava de um segurança e ele usasse um uniforme identificando-o
enquanto tal (cf. ZRAICK; JACOBS, 2018).
25

a compor a realidade em qualquer época. A diferença é que hoje não temos


distanciamento o suficiente do nosso para enxergar quanto de ficção o compõe, quanto
crédito damos aos estereótipos através dos quais filtramos nossas experiências e nosso
aprendizado, e já mudamos o suficiente desde Idade Média para questionar algumas de
suas premissas mais básicas.
Nossos estudos baseiam-se amplamente em crenças nunca questionadas ou
provadas por nós mesmos, com a diferença de que as culturas ocidentais atualmente se
constroem a partir paradigmas científicos. Acreditamos nas conclusões de pesquisadores,
os quais, por sua vez, realizam experimentos e comprovam suas teorias, amparados em
evidências e devidamente embasados por bibliografia anterior e verificados pelos pares.
Isso parece garantir, segundo critérios contemporâneos, a veracidade de seus postulados.
Contudo, importa salientar que, em tempos passados, as culturas ocidentais — assim
como algumas culturas orientais atuais — constroem-se a partir de dogmas, com suas
verdades baseadas em textos religiosos.
Obviamente há diferenças no processo: o método científico preocupa-se em se
cercar de garantias (segundo nossos parâmetros), enquanto os saberes religiosos se
sustentam pela fé. Todavia, o argumento de autoridade continua em grande medida o
mesmo, especialmente considerando o nível de sofisticação dos pensamentos
desenvolvidos por diversos doutores da Igreja católica e, posteriormente, de igrejas
protestantes, para discutir questões as mais diversas.
Da Idade Média até o Iluminismo, o clero poderia sentenciar uma verdade a partir
de sua interpretação dos textos sagrados, influenciar na aplicação da justiça, na estrutura
social e em diversas outras questões que afetavam diretamente a vida das pessoas, de
modo a tornar natural para as pessoas de então considerar seus postulados. Nesse sentido,
todo o imaginário derivado de axiomas mágico-religiosos de fato era verdade na
mentalidade da época, como apontado por Pastoureau. Da mesma maneira, hoje o
pensamento cartesiano lógico-científico se impõe como verdade, o que, embora pareça
mais coerente aos nossos olhos, não deve nos impedir de tentar entender como era
construída a visão de mundo em outro tempo, em outras sociedades e em outras
realidades. Mesmo na atualidade há povos e comunidades inteiros que sustentam crenças
e perspectivas de realidade diversas daquelas predominantes na cultura ocidental.
Podemos partir disso para refletir sobre a questão da existência do Diabo. À
semelhança do processo ocorrido com as energias espirituais e as divindades benignas,
construiu-se a ideia de forças superiores malignas, que odiavam ou invejavam os seres
26

humanos. Trata-se de uma resposta à necessidade de explicar a aparente aleatoriedade de


acontecimentos ruins, como uma súbita doença fatal, uma tempestade feroz capaz de
destruir uma plantação da qual uma vila inteira dependia para sobreviver, catástrofes
como a erupção de um vulcão ou uma enchente. Em sociedades politeístas, essas coisas
eram atribuídas ao capricho dos deuses, mas, na esfera do cristianismo, onde o único ser
divino é inteiramente bom e onipotente, onipresente e onisciente, tornou-se necessário
atribuir a outra potência a responsabilidade por essas coisas. O conceito de Satã — do
hebraico, “adversário” — fornece uma saída para esse problema. Aliás, “é possível
argumentar que o Diabo surgiu para esse propósito” (OLDRIDGE, 2012, p. 4), afinal, nos
primeiros livros do Antigo Testamento, quando o Javé ainda assumia a responsabilidade
pelo bem e pelo mal do mundo, o Diabo se mostrava um servo obediente de Deus. Mas
não só pessoas sem instrução recorriam à figura do Diabo e de demônios para explicar
suas mazelas:
A existência de Satã era um fato estabelecido na Europa e na América
pré-modernas. Em consequência disso, pessoas instruídas e sensatas o
levavam em conta em seu raciocínio. Nos últimos anos, historiadores e
filósofos têm observado que essa prática não era nem irracional nem
“supersticiosa”: como nossas próprias presunções mais entranhadas, o
Diabo simplesmente era parte da realidade percebida no mundo pré-
moderno. […] “Pensar com demônios” integrava o saber nas Idades
Medieval e Moderna, e contribuía para um entendimento sofisticado de
tópicos tão diversos quanto bruxaria e ciência natural. […] Não se deve
repudiar essa tradição apenas porque as crenças das quais ela dependia
não mais parecem verossímeis: fazê-lo seria interpretar mal o passado.
Maus espíritos não só eram críveis como uma fonte de genuína
ansiedade. A existência de forças demoníacas era tanto uma premissa
aceita na filosofia quanto um fato desagradável da vida46 (OLDRIDGE,
2012, p. 15)

Como não se questionava sua existência, a natureza de seu poder e a extensão de


sua influência sobre o mundo natural eram as temáticas centrais. Que seu objetivo seria
sempre causar todos os males possíveis foi ponto pacífico desde os últimos livros do

46
No original: “The existence of Satan as a given in pre-Modern Europe and America. As a consequence,
educated and reasonable people often factored him into their thinking. In the last thirty years, historians and
philosophers have observed that this practice was neither irrational nor 'superstitious': like our own core
assumptions, the Devil was simply part of the perceived reality of the pre-modern world. […] 'thinking with
demons' was an integral part of scholarship in the medieval and early modern age, and contributed to a
sophisticated understanding of topics as diverse as witchcraft and natural science. […] This tradition should
not be dismissed because the beliefs on which it depended no longer seem credible: to do so would be to
misunderstand the past. […] Evil spirits were not only credible but also a source of genuine anxiety. […]
The existence of demonic forces was both an accepted premise in philosophy and an unpleasant fact of
life.”
27

Antigo Testamento. Sua figura fornecia, portanto, uma válvula de escape para as
múltiplas pressões sociais da Europa medieval e moderna: “como personificação de tudo
o que se acreditava mau, ele pode servir de recipiente para tudo o que um indivíduo ou
uma sociedade rejeitam” (idem, p. 3)47.
Por causa da extensão do poder da Igreja católica no fim da Idade Média até a
Reforma Protestante e sua aliança com as monarquias em ascensão no Ocidente, o Diabo
pode ser visto não só como um inimigo da religião, mas de toda a cultura humana (idem,
p. 31). Esse adversário sobrenatural de Deus estendia seu ódio a todos os fiéis, que
constituem determinado grupo religioso (e como ele se enxerga) em detrimento de outros,
seus inimigos. Nas palavras de Ronald Hutton, isso seria uma manifestação “das
sociedades humanas de criar retratos estereotípicos do Outro, contra os quais estabelecer
seus próprios valores”48 (2017, p. 109). Assim, após o nascimento do protestantismo, para
os católicos o Diabo se associava a judeus e protestantes; para os protestantes, a “papistas”
(modo como chamavam os católicos vistos como traidores da Coroa na Inglaterra) e
judeus, e assim por diante.
Esse movimento de associar o bom à identidade e o mal à alteridade não é uma
exclusividade do sistema de pensamento judaico-cristão. Na verdade, ele vem desde a
Antiguidade. Magia e religião não eram facilmente discerníveis então, mas, de certa
forma, a partir da Mesopotâmia pode-se dizer que a religião é a forma de magia
sancionada como oficial dentro de determinada sociedade (GASKILL, 2010; HUTTON,
2017). A sobreposição dos dois conceitos acontece por terem pontos de contato, conforme
mencionado na primeira seção deste capítulo.
Nem todas as religiões possuíam um conceito uno de Satã, mas na Mesopotâmia
já havia a crença em demônios, “espíritos inerentes ao cosmos, hostis aos humanos e uma
ameaça permanente a estes, portanto inerentemente maus”49 (HUTTON, 2017, p. 49). É
curioso observar que, nessa cultura, havia bruxas estereotipicamente femininas
associadas a esses notórios inimigos da humanidade:

Os povos da Suméria, da Babilônia e da Assíria também


acreditavam em bruxas, no sentido clássico de seres humanos, ocultos
dentro de sua própria sociedade, que usavam magia para ferir os outros

47
No original: “As the personification of all that is believed to be wicked, he can serve as a container for
everything that an individual or a community rejects.”
48
No original: “of the propensity of human societies to create stereotypical portraits of the Other, against
which to define their own values.”
49
No original: “spirits inherent in the cosmos that were hostile to humans and a permanent menace to them,
and so essentially evil.”
28

porque eram intrinsecamente maus e associados com os demônios,


objeto de tanto medo. […] Presume-se que a bruxa estereotípica
mencionada nas fontes seja do sexo feminino, o que parece combinar
com o status geralmente baixo das mulheres na sociedade
mesopotâmica e tornar a bruxaria uma suposta arma dos fracos e
marginalizados. Essa sugestão encontra apoio nos outros tipos de
pessoas associadas a essa prática: estrangeiros, atores, mascates e
mágicos de quinta categoria. Nos poucos casos de processo criminal por
bruxaria, abrangendo todo o período das várias monarquias babilônicas
e assírias, as acusadas foram todas mulheres50 (HUTTON, 2017, pp. 49-
50).

Como se depreende, a associação da magia às más forças cósmicas do universo


parece ser uma constante desde muito cedo na história51, e relacioná-la ao feminino parece
um passo lógico na maioria das sociedades, nas quais a mulher é relegada a posições
inferiores. Nesses casos, quando a magia não é demonizada, ou disforizada de alguma
outra maneira, ela não fica atrelada ao feminino. No mais das vezes, na verdade, quando
alguma forma de magia é aceita (como nas religiões oficiais), ela é reservada a sacerdotes,
em sua maioria homens52.
Mesmo na esfera não religiosa dos conjuradores, existe um abismo entre os tipos
de magia realizados por homens e por mulheres:

Magia cerimonial não tinha nada a ver com bruxaria, porque a primeira
pertencia à esfera dos homens, em sua maioria, que buscavam controlar
os demônios, enquanto a segunda era majoritariamente de mulheres,
que eram servas e aliadas destes. A autoimagem desses magos, na Idade
Média e no início da Idade Moderna, baseava-se nos ideais
estabelecidos das profissões clericais, monásticas e acadêmicas,

50
No original: “The peoples of Sumeria, Babylonia and Assyria also believed in witches, in the classic
sense of human beings, concealed inside their own society, who worked magic to harm others because they
were inherently evil and associated with the demons which were the subject of so much fear. […] The
stereotypical witch mentioned in the sources is assumed to be female, which seems to match the generally
low status of women in Mesopotamian society and make witchcraft an assumed weapon of the weak and
marginalized. This suggestion is borne out of the other kinds of people associated with the practice of it:
foreigners, actors, pedlars and low-grade magicians. In the few cases of actual prosecutions for witchcraft,
which span the whole period of the various Babylonian and Assyrian monarchies, the accused were all
women.”
51
Em se falando da Antiguidade, é preciso mencionar a notável exceção do Egito, um caso particular fora
do escopo desta pesquisa. Nessa sociedade, a sobreposição de magia e religião era quase integral, e
acreditava-se que se podia usar magia para submeter uma divindade à sua vontade e que uma pessoa
bastante apta em seu uso poderia vir a alcançar um status próximo ao divino (cf. HUTTON, 2017, pp. 45-
7).
52
Note-se que, na Grécia e em Roma, há templos onde só existem sacerdotisas, como os de Héstia ou
Vesta). Ainda assim, estas deveriam ser virgens, uma norma não encontrada para a prática sacerdotal de
homens.
29

representando a si mesmos como parte de uma elite de homens piedosos


e eruditos53 (HUTTON, 2017, p. 100).

Apesar de, em tese, estes serem tão errados quanto as bruxas mais estereotípicas,
na prática, durante os julgamentos do período do início da Idade Moderna, só se
processavam esses magos cerimonialistas estudiosos muito raramente (idem).
É um sintoma da misoginia de uma cultura associar a prática de um poder não
oficial (ou criminalizado) às classes desprivilegias, nas quais as mulheres geralmente
estão inclusas. Da mesma maneira, também o é quando mesmo dentre as magias proibidas
há certa forma de hierarquização entre os gêneros. No tratado Daemonologie, a ser
discutido no Capítulo 2, o próprio enunciador, tão contrário a qualquer prática envolvendo
entidades espirituais, mostra-se menos combativo com esse tipo de magos do que com
bruxos (cf. JAMES VI & I., 1597).
Já no mundo da Grécia antiga, Francisco S. Ventura aponta que “não se encontra
uma figura que se ajuste ao protótipo de bruxa estendido na cultura ocidental, embora
estejam presentes personagens femininas com características importantes para a posterior
decantação no tempo do que se entende por bruxa”54 (2016, p. 11). Ronald Hutton aponta
a existência de diversas críticas de filósofos gregos ao uso de magia, uma palavra de
acepção negativa. Portanto, não nos surpreende descobrir que “mágicos eram
estereotipicamente do sexo feminino na literatura grega antiga, além de se presumir que
viessem de estratos sociais mais baixos: acreditava-se que mulheres respeitáveis não
tivessem o conhecimento necessário”55 (2017, p. 58). Há magias negativas realizadas por
homens, sendo as das mulheres algo costumeiramente direcionado a usos pessoais, como
a obtenção do afeto de um homem ou uma forma de vingança por ter sido rechaçada.
Além disso, gostaria de chamar atenção para o adjetivo “respeitáveis”, usado por Hutton,
mas possivelmente inferido a partir das fontes por ele consultadas. Desde a Antiguidade
atrela-se a respeitabilidade de uma mulher à sua conformidade com normas não

53
No original: “Cerimonial magic had nothing to do with witchcraft, because the former was mostly the
preserve of men, who sought to control demons, while the latter was mostly that of women, who were
servants and allies to them. The self-image of such magicians, in the medieval and early modern periods,
drew on the established ideals of the clerical, monastic and scholarly professions, representing themselves
as part of the elite of pious and learned men.”
54
No original: “En el mundo de la mitología griega antigua no se encuentra uma figura que se ajuste al
prototipo de bruja extendido en la cultura occidental, si bien sí están presentes personanes femeninos con
características importantes para la posterior decantación en el tiempo de lo que se entiende por bruja.”
55
No original: “Certainly magicians were stereotypically feminine in ancient Greek literature, and also
assumed to come from the lower social ranks: it was believed that respectable women did not have the
necessary knowledge.”
30

necessariamente legais, e sim sociais, certos modos de existir atrelados ao gênero


feminino.
As mais famosas praticantes de magia para fins não-religiosos, na Grécia, são
Circe, uma deusa, e Medeia, sua sobrinha, sendo ambas, segundo Hutton, o mais próximo
que a Grécia tem da figura de uma bruxa (embora não o sejam, da forma como ele a
define56). No entanto, por sua natureza divina, a questão de seu poder coloca-se em outra
esfera. As ações de Circe na Odisseia não configuram crime, do ponto de vista grego:
transformar homens em porcos e mesmo os matar era aceitável, pois invadiram seus
domínios. O delito de Medeia, por sua vez, não é de ordem mágica: ao matar os filhos,
ela incorre em crime de sangue, a ser punido pelas Fúrias.
Já no Império Romano, houve perseguição propriamente dita a bruxas e até
mesmo a pena instituída a réus condenados por maleficium de serem queimados na
fogueira (idem, p. 61), sendo que as caças massificadas às bruxas apenas ocorreram em
períodos de instabilidade política (idem, p. 65). É, no mínimo, um berço bem adequado
ao catolicismo, seu herdeiro em muitos sentidos. Ronald Hutton analisa seu papel com
riqueza de detalhes, mencionando documentos conhecidos e obscuros, em qual ponto do
passado surgiu cada contribuição à formação do estereótipo. Parece que o grande “mérito”
do catolicismo, graças à vasta extensão geográfica e temporal de seu poder na Europa, foi
unir esses elementos, identificá-los com práticas pagãs e demonizá-los. Algo que, aliás, a
Igreja Católica Romana aprendeu desde o nascimento:

Em 177 d.C., cristãos de Lyons, autodenominados guerreiros contra


diabolicidade dos romanos, acabaram acusados de magia negra ritual,
incesto e canibalismo. No século IV, quando o Imperador Constantino
se converteu e o Estado romano gradualmente se cristianizou, a ameaça
demoníaca passou a vir do Islã57 (GASKILL, 2010, p. 16).

Essas acusações, posteriormente atribuídas às bruxas, são sempre as mesmas


contra qualquer povo considerado adversário (satânico, no sentido etimológico do
termo)58. Desde a raiz, a bruxaria se constitui como alteridade, como o inimigo público e

56
Hutton entende o estereótipo europeu da bruxa a partir de cinco características: ela causa dano através de
meios não naturais, é uma ameaça interna à comunidade, trabalha dentro de uma tradição, é má e pode ser
detida (2017, pp. 10-35).
57
No original: “In 177 AD, Christians at Lyons, self-styled warriors against Roman devilishness, were
themselves accused of ritual black magic, incest, and cannibalism. […] When, in the 4th century, Emperor
Constantine converted and the Roman state gradually Christianized, the demonic threat shifted to Islam.”
58
Carlo Ginzburg (2012) nos fala de certa região italiana, na Alta Idade Média, onde houve três supostas
conspirações para envenenar a água da cidade com lepra, com cerca de cem anos de intervalo entre elas: na
31

o bode expiatório. O discurso predominante para estabelecê-la é o de pessoas internas a


uma estrutura religiosa e/ ou política cujo objetivo é condená-la e reprimi-la — e com um
afinco tal que nos aponta para o quanto práticas relacionadas eram difundidas. Trata-se,
então, de uma forma de poder (e, às vezes, de culto popular) exterior ao oficial e, com
isso, uma ameaça à ordem, a ser contida, especialmente em tempos de instabilidade
política (idem, p. 13).
Após o longo percurso pelos elementos da bruxaria estereotípica encontrados na
Antiguidade, Hutton comenta:

Ao que parece, as culturas que definiram a magia como ilícita,


desonrosa e ímpia, e nas quais as mulheres eram excluídas da maior
parte do poder político e social, como as gregas e as romanas (e as
hebraicas e mesopotâmicas), tendiam a unir as duas coisas no
estereótipo uno do Outro ameaçador59 (2017, P. 64).

Não por acaso, elementos das sociedades gregas e romanas parecem muito bem
alinhados com o pensamento cristão, e muitos de seus deuses serão associados a figuras
católicas. Por exemplo, na virgindade e nas vestes, Athena é identificada com Maria,
Zeus, enquanto rei dos deuses, com Deus, o Cupido, em sua forma alada, com os anjos,
entre outras. Já alguns elementos das culturas celtas, algumas matriarcais e mágicas,
parecem se relacionar com imagens do satanismo: o deus Cernuno, com sua forma
próxima à do cervo, é incorporado numa das formas estéticas de Satã, e seus rituais
religiosos com círculos de pedra e fogueiras aproximam-se de sabás60.
O estereótipo atual é, portanto, fruto de uma construção tão antiga quanto o
Ocidente, nascida do choque entre culturas e de crises internas, aliados à inegável
misoginia entranhada em seus imaginários.

primeira, os “culpados” seriam os próprios leprosos; na segunda, os judeus; e, na terceira, as bruxas. Ou


seja, variando o inimigo da comunidade em cada época, conforme julgavam-se ameaçados à ocasião.
59
No original: “It seems that cultures which had defined magic as an illicit, disreputable and impious
activity, and in which women were excluded from most political and social power, such as the Greek and
Roman (and Hebrew and Mesopotamian), were inclined to bring the two together into a single stereotype
of the menacing Other.”
60
Observe-se que esse uso do termo “sabá” é, em raiz, extremamente antissemita: “Essas cerimônias, que
se chamam ‘sinagogas’, ‘sabás’ ou ainda ‘vauderies’, remetem claramente aos judeus e à seita herética dos
vaudois, tradicionalmente acusados de se relacionar com demônios” (VISSIÈRE, 2019, pp. 22-3). No
original: “Ces cérémonies qu'on appelle ‘synagogues’, ‘sabbats’ ou encore ‘vauderies’ renvoient clairement
aux juifs et à la secte hérétique des vaudois, traditionnellement accusés de fricoter avec les démons.” Às
vezes, empregava-se o termo “sinagoga” para referir-se às assembleias noturnas das bruxas, e a escrita
hebraica poderia ser lida como feitiço ou, ao menos, percebida como portadora de poderes ocultos.
32

O fato de esse inimigo representante da alteridade ser majoritariamente feminino


se deve a muitos fatores, incluindo o fato de, como diz Guy Bechtel, ser a mulher a
minoria por excelência, pois perseguida e vilanizada por quase todos os povos em quase
todas as épocas: “nenhum grupo no mundo foi tanto tempo e tão duramente insultado”
(2002, p. 50). Desse modo, o discurso que associa a mulher à bruxa também a liga a outros
estereótipos do feminino transgressor, nos quais não pretendo me aprofundar, mas tocarei
vez por outra, por ser inevitável: a prostituta, a adúltera, a concubina, a megera, a viúva61.
Todos de alguma forma relacionados à sexualidade, não por acaso. Isso tem relação com
a ideia de que a bruxaria faz parte da inversão da ordem dita natural, aqui um sinônimo
de correta, e poderia contaminar outras esferas da vida social:

Procurar corpos era um trabalho feminino: além das bruxas, as mulheres


investigavam a suspeita de mortes pela peste, vítimas de assassinatos,
mães infanticidas e rés alegando estarem grávidas. “Júris de matronas”,
que geralmente incluíam uma parteira, tinham tanto experiência
especial quanto acesso privilegiado que lhes permitia buscar provas
médicas em casos delicados. A bruxaria era um poder feminino, e
pertencia à esfera feminina da administração de uma casa: a imagem da
bruxa tendia a ser aquela de uma mãe ou esposa supremamente
desobediente e destrutiva, e pensava-se que outras mulheres seriam as
melhores pessoas para detectar tais deficiências62 (GASKILL, 2006, p.
48).

Identifica-se aí um mecanismo estimulante da concorrência entre mulheres.


Afinal, dá a algumas delas certo grau de poder numa esfera exterior à doméstica,
concedendo-lhe relevância comunitária em casos especiais. Ao mesmo tempo, usa essas
“matronas” para estabelecer um ideal de feminino, contente em interpretar seu papel sem
ir além, e monitorar as mulheres que fugissem a esse modelo, seja por terem, manejarem
ou buscarem outras formas de poder, além daquela sancionada social e juridicamente,
seja por não cumprirem com as expectativas reservadas a seu gênero, em particular nos
papéis bem definidos de mãe e esposa.
Isso não passa despercebido por nenhum historiador, embora às vezes haja aqueles
que busquem mitigar o efeito da misoginia na percepção social da bruxa. Não obstante a

61
Para saber mais sobre essa questão, ver BECHTEL, 2002.
62
No original, “searching bodies was women's work: as well as witches, they investigated suspected plague
deaths, murders victims, infanticidal mothers and felons pleading pregnancy. 'Juries of matrons', which
usually included a midwife, had both special experience and a privileged access that enabled them to search
out medical proof in delicate cases. Witchcraft was female power, and belonged to the female sphere of
running a household: the image of the witch tended to be that of a supremely disobedient and destructive
mother or wife, and other women were thought to be the best detector of such failings.”
33

citação acima, e outras presentes neste trabalho, Malcolm Gaskill, em seu livro
introdutório Witchcraft: a very short introduction (2010) apresenta um comentário que
poderia ser interpretado de maneira enviesada. Apesar de admitir que a maior parte dos
réus de processos contra bruxaria no início da Idade Moderna era do sexo feminino (2010,
p. 30) e chegar a explorar motivos para isso, em sua concepção, a misoginia social não é
um fator determinante.
Analisemos essa questão, pois é vital para todo o restante da presente pesquisa.
No trecho de seu livro dedicado à problemática do gênero na bruxaria (2010, pp. 29-33),
Gaskill faz algumas asserções que nos podem soar um pouco dissonantes do conjunto de
seu trabalho, pois carecem de modalização.
Ao mencionar que 80% dos acusados de bruxaria eram mulheres (idem, p. 30), o
pesquisador se refere a dois casos de curandeiras processadas como bruxas para explicar
que “seu trabalho as levava a estabelecer relações que as tornavam vulneráveis a
acusações”63 (idem). Ele parece querer dizer que o ofício de vender remédios e receitas
para tratamentos os mais diversos não era sempre bem-sucedido; muitas vezes falhava e,
se o paciente acabava piorando ou morrendo, a curandeira poderia se tornar suscetível à
desconfiança e, em muitos casos, suspeita de haver provocado a enfermidade, através de
feitiços, daquele a quem deveria curar. Não ajudava sua situação o fato de as curandeiras
costumarem acumular essa função à de parteira: numa época de ampla má-nutrição, sem
saneamento básico, muitos bebês nasciam natimortos ou morriam logo após o parto. Nem
sempre isso bastava para render uma acusação; mas — se a parteira se considerasse mal
paga e praguejasse contra mãe e/ou criança, ou se não estivesse em bons termos com a
parturiente, ou se sua avó já houvesse sido acusada de bruxaria e, por isso, ela tivesse
herdado a desconfiança da comunidade, e se a isso se juntassem fatores como a aparente
boa saúde da mãe durante a gravidez, o fato de a mãe já ter tido vários partos saudáveis,
um possível sofrimento do bebê antes de morrer etc. — talvez ela fosse apontada como
bruxa. Seja como for, esse é o tipo de vulnerabilidade mencionado por Gaskill (2006).
Como era difícil distinguir ciência de magia — ou remédios e venenos de poções
(HUTTON, 2017) —, não soava estranho a pessoa capaz de curar ser a mesma a causar
males por meios aparentemente não naturais. Parteiras eram costumeiramente mulheres
por causa da natureza do ofício, até por volta do século XVIII, quando foram substituídas

63
No original: “their work led them into relationships which made them vulnerable to accusation.”
34

por médicos e se deslocou o protagonismo do parto da parturiente para o obstetra


(FEDERICI, 2017).
Até esse ponto, as justificativas do pesquisador parecem seguir um fio
suficientemente lógico. Porém, após a afirmação sobre a vulnerabilidade das curandeiras,
ele prossegue:
Ao mesmo tempo, a bruxaria era associada às mulheres porque elas
eram vistas como “o receptáculo mais fraco”, mais suscetíveis à
tentação diabólica. Aqui, a original é Eva. A misoginia, ódio às
mulheres, foi uma mutação do conceito mais positivo de patriarcado:
governo por chefes de famílias do sexo masculino. Os homens do século
XVII não odiavam as mulheres, mas a noção de que a teimosia feminina
ameaçava a sociedade rapidamente emergia em tempos de crise. Os
corpos das mulheres eram considerados inversões ou corrupções do
ideal masculino; sua constituição, instável, seus desejos, ameaçadores64
(GASKILL, 2010, p. 30, grifos meus).

É curioso que, mesmo ao indicar a existência de misoginia, e ainda a definir como


“ódio às mulheres”, o historiador a negue no século XVII, especialmente se
considerarmos o quanto todas as informações apresentadas como pensamento da época,
seguidas da adversativa “mas”, são misóginas. E mesmo antes, no início da citação: a
ideia de as mulheres serem mais fracas e, por conseguinte, mais suscetíveis ao poder do
Diabo vem muito bem dissecada no Malleus Maleficarum (1486), cujo autor principal, o
teólogo e inquisidor Heinrich Kramer, já havia sido tachado por Gaskill como um
“psicopata supersticioso”65 (2010, p. 23). Aliás, todas as supostas características
negativas femininas estão listadas por Kramer, mas também se encontram em diversos
tratados de teólogos da Igreja (cf. BECHTEL, 2002) e até mesmo em escritos médicos
(cf. FEDERICI, 2017).
Considerando tudo isso, “os homens do século XVII não odiavam as mulheres”
tanto quanto os de hoje não odeiam, talvez não no nível do indivíduo, não de modo

64
No original: “At the same time, witchcraft was associated with women because they were seen as the
‘weaker vessel’, more susceptible to diabolic temptation. The original here was Eve. Misogyny, hatred of
women, was a negative mutation of the more positive concept of patriarchy: rule by male householders.
Seventeenth-century men didn’t hate women, but the notion that female wilfulness threatened Society
quickly surfaced in times of crisis. Women’s bodies were considered inversions or corruptions of the male
ideal, their constitutions unstable, their desires menacing.”
65
Ao apresentar o famoso manual de caça às bruxas, Gaskill comenta: “não é muito histórico chamar
Heinrich Kramer de psicopata supersticioso, mas ele estaria nesse lado do espectro medieval.” Ele informa
que o inquisidor pediu uma bula papal especial para calar seus críticos, pois costumava quebrar “as regras
de todos os procedimentos, especialmente as relacionadas à tortura” (cf. 2010, p. 23).
35

consciente66 — não parece o tipo de coisa passível de ser avaliada ao certo —, mas o fato
de a suposta “teimosia feminina” emergir como culpada em “tempos de crise” deveria ser
evidência suficiente do quanto o sistema era misógino, um sistema regido por homens.
Mais adiante, Gaskill traz mais informações: “rancor e despeito, sexualidade
feminina descontrolada e poder espiritual profano estavam intimamente ligados” (2010,
p. 32); havia uma “ideia da bruxa como uma mulher furtiva e autônoma, concentrando
um poder que não era cristão, então tinha de ser demoníaco”. “A independência [das
mulheres] era perigosa” (idem). Após apontar todas essas ideias amplamente veiculadas,
Gaskill informa que o estereótipo feminino da bruxa já havia sido estabelecido em 1500,
mas afirma: “em última análise, as bruxas eram perseguidas por serem bruxas, não por
serem mulheres” (idem, destaques do autor).
Apesar de entender o motivo da declaração — afinal, mulheres que não eram
bruxas não sofriam o mesmo tipo de perseguição (embora ainda fossem impactadas pela
carga da misoginia supracitada)67 —, é como se Gaskill, ao fazê-la, negasse seu próprio
argumento. Ele ainda lista mais motivos para a maioria das bruxas serem mulheres, e
mesmo assim insiste nessa conclusão no mínimo redutora.
A socióloga Silvia Federici, em seu livro Calibã e a bruxa, lançado pela primeira
vez em 2004, demonstra o quanto tais considerações podem ser refutadas, bem como o
trabalho Les quatre femmes de Dieu: la putain, la sorcière, la sainte & Bécassine
(publicado em 2000), do historiador Guy Bechtel, já citado.
Federici traça um longo percurso histórico do nascimento do capitalismo na
Europa e amarra isso à sistemática opressão das mulheres, em especial as da classe servil,
culminando com a caça às bruxas. À primeira vista, esse olhar parece enviesado, mas todo
seu pensamento é embasado e se sustenta até certo ponto, quando contrastado com o
trabalho de outros historiadores, pois não os nega de todo, utilizando-os para construir
seu argumento, e apenas aponta que eles perderam o “detalhe” de considerar a situação

66
Não cabe aqui discutir em pormenor todos os trabalhos de feministas voltados ao comportamento social
discriminatório de gênero, que leva os homens a, na melhor das hipóteses, inspirarem-se somente em figuras
masculinas e sentirem-se ofendidos ao serem comparados a femininas e, na pior, a infringirem violência
doméstica e feminicídios. Ainda assim, a misoginia sistêmica é amplamente estudada por teóricas como
Judith Butler, Rebecca Solnit, Angela Davis, bell hooks, entre outras.
67
É preciso ressaltar que existe uma diferença entre correlação e causalidade: o gênero de uma pessoa
relaciona-se diretamente com a probabilidade de ela vir a ser acusada de bruxaria, no contexto do início da
Idade Moderna, mas seria no mínimo muito pouco acadêmico afirmar que uma pessoa se tornava ré por
causa de seu gênero.
36

da mulher na sociedade68 — um detalhe capaz de alterar por completo a chave de leitura


de fatos históricos bem conhecidos. O mais expressivo é a ideia de que bruxas estão
sempre ligadas a crimes contra a reprodução ou a subsistência: as acusações mais
frequentes tratam de assassinatos de recém-nascidos ou crianças pequenas, feitiços para
causar impotência sexual masculina, infertilidade ou abortos, destruição de colheitas,
gado e outros víveres, entre outros exemplos bem documentados (cf. GINZBURG, 2012),
para nos restringir a alguns. Alguns destes podem parecer menos calamitosos do que
outros, mas tenhamos em mente que problemas com a colheita e o gado podem ser
equiparados à morte de uma criança no contexto referido. Primeiro, porque a taxa de
mortalidade infantil era altíssima, e nem sempre atribuída à bruxaria. Segundo, porque,
dentro de uma comunidade, uma colheita destruída poderia significar a fome de uma vila
inteira durante um ano.
Já que na era cristã não se pode mais culpar o capricho dos deuses, como na
Antiguidade, a culpa de certos eventos aleatórios e infelizes deveria recair sobre alguém.
Senão sobre o próprio Diabo, impossível de se enfrentar e punir, sobre seus instrumentos
no mundo natural. Nesse sentido, as bruxas constituem o bode expiatório ideal,
fornecendo “um tipo de ser humano que não só era adequado como necessário odiar ativa
e abertamente” (HUTTON, 2017, p. 23). Não à toa costumam estar associadas também a
tabus instransponíveis no Ocidente cristão: incesto, canibalismo e orgias. Uma das coisas
mais dignas de repúdio era sua não conformidade com as normas sexuais veiculadas
principalmente pela Igreja. Segundo explica Federici,

as mulheres tentavam controlar sua função reprodutiva, já que são


numerosas as referências ao aborto e ao uso feminino de contraceptivos
nos penitenciais. De forma significativa — em vista da futura
criminalização dessas práticas durante a caça às bruxas —, designavam-
se os métodos contraceptivos como “poções para a esterilidade” ou
maleficia […] e se pressupunha que eram mulheres quem os usava
(2017, pp. 84).

O controle da reprodução parece ter sido uma prática na vida das mulheres
medievais, o que se depreende através dos documentos da Igreja destinados à sua redução.
Federici explora esse assunto, atribuindo a ferocidade católica em lutar contra a
contracepção e o aborto ao desejo de um aumento de natalidade, particularmente após o

68
Apesar dos méritos de sua pesquisa, Federici faz algumas generalizações complicadas, por vezes
ignorando o fator da crença, atribuindo todas as ações das pessoas daquela sociedade a uma deliberação
eivada de um ceticismo não dominante à época.
37

surto de peste bubônica, que dizimou cerca de um terço da população europeia. Nesse
quadro, a demanda por forças servis está no cerne da divisão sexual do trabalho, no qual
o papel da mulher é o da reprodução. Assim,

Não pode ser apenas coincidência que, no momento em que os índices


populacionais caíam e em que se formava uma ideologia que enfatizava
a centralidade do trabalho na vida econômica, tenham se introduzido
nos códigos legais europeus sanções severas destinadas a castigar
mulheres consideradas culpadas de crimes reprodutivos (FEDERICI,
2017, p. 170).

A partir dessa conclusão, Federici sustenta a ideia de que a caça às bruxas era
destinada principalmente a conter a população feminina, controlar sua sexualidade e,
principalmente, o aspecto reprodutivo. É interessante analisar sob esse viés, por exemplo,
as principais acusações feitas contra bruxas, quando o crime era contra um indivíduo
(mencionados no início da presente seção). Os crimes de provocar infertilidade ou
impotência sexual equiparavam-se aos feitiços para fazer uma mulher abortar — a pedido
ou contra a vontade dela. Causar a morte de bebês no berço, ou de recém-nascidos durante
o parto, eram outra constante entre as acusações. Partir disso para as denúncias de rituais
sacrificiais com o sangue dessas crianças e até mesmo canibalismo nos sabás não exigia
muito. Como vimos, rituais de magia “negra”, incesto e canibalismo foram atribuídos por
todos os povos a seus inimigos.
O caso especial da bruxaria é que se trata de uma ameaça interna à comunidade.
Embora estrangeiros sempre suscitassem desconfiança, era muito comum serem
apontadas como bruxas mulheres que já moravam numa mesma vila por gerações,
algumas das quais tiveram mães, avós e bisavós tomadas por tais.
Uma denúncia de bruxaria deveria ser averiguada, claro. Aquilo que identifica
uma bruxa na verdade são marcas corpóreas indicadoras de velhice ou doença, segundo
se fazia nas perseguições inquisitoriais (cf. BECHTEL, 2002): são feias e/ou velhas,
como marca de sua degeneração moral; ou lindas e sedutoras por meio de artifícios
demoníacos; têm verrugas e olhos esbranquiçados pela catarata, manchas e marcas na
pele — todos considerados sinais do demônio; andam curvadas, têm dedos tortos, entre
outras deformidades ou enfermidades. Nota-se a completa falta de empatia em relação a
idosos e deficientes, valores um tanto alterados na contemporaneidade, mesmo se não em
todos os grupos religiosos. A associação de bruxas com leprosos (GINZBURG, 2012)
também remonta à ideia bíblica de que a corrupção do corpo é uma exteriorização do mal
38

interior. Durante as investigações de uma suspeita, num caso mencionado por Guy
Bechtel, “o carrasco, que já identificou 274 bruxas, manda-a despir e encontra no seu
corpo as excrescências, verrugas e cicatrizes que calcula serem as marcas do Diabo”
(2002, p. 108). Esse procedimento inquisitorial, no continente europeu e, posteriormente,
nas colônias ibéricas, é semelhante ao realizado nas Grã-Bretanha, com a diferença de
que nelas são mulheres casadas, de boa reputação, a realizarem a busca no corpo da
suspeita (cf. GASKILL, 2006, p. 48). Nos relatos de apurações de suspeitas de bruxaria,
nota-se quase sempre que a acusada tem esses chamados “sinais”, às vezes também uma
perna manca.
A bruxa do imaginário ocidental, retomada e cristalizada, por exemplo, pelos
contos de fadas dos irmãos Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859) Grimm, foi antes
uma mulher que não se adequava aos preceitos de sua época, quase nunca
voluntariamente: ela poderia ter sido uma viúva pobre que vivia sozinha, vista com
desconfiança pelos vizinhos e pela Igreja; uma vendedora de curas e sortilégios para
prover o próprio sustento (cf. BECHTEL, 2002); ou até mesmo uma mendiga que contava
com a caridade dos fiéis (cf. GASKILL, 2006, p. 3). A transgressão social dessa figura
consiste em não estar sob a proteção de alguma autoridade masculina, um pai ou marido
ou filho, e pouco importava que ela não tivesse essa opção.
Num caso analisado por Gaskill (2006, pp. 3 e 48-54), a acusada Elizabeth Clarke
era uma viúva idosa, sem uma perna, dependente de caridade para sobreviver. Além disso,
possuía um histórico de bruxaria na família: mãe, avó e tias já haviam sido apontadas
como bruxas, embora nunca condenadas formalmente.
Se, dentre todas as mulheres, as bruxas e as prostitutas eram as vistas com mais
desconfiança (BECHTEL, 2002), e não raro as duas figuras fossem aproximadas até se
confundirem, a viúva frequentemente era qualquer coisa de intermédio: uma mulher que
já conhecera o pecado original — o prazer sexual — e não tinha mais um homem para
conter seus “apetites depravados” e “insaciáveis” (pois é segundo essa óptica — e a partir
desses termos — que os documentos eclesiásticos consideravam a libido feminina). No
caso acima referido da Viúva Clarke, descrito por Gaskill, sua confissão de ter mantido
relações sexuais com o diabo ecoa a de tantas rés inquisitoriais de bruxaria, embora ela o
descreva como “um perfeito cavalheiro” (2006, p. 50)69.

69
Em tom anedótico, Gaskill recupera através do processo contra a viúva Clarke, o interrogatório no qual
ela finalmente confessa ser uma bruxa, depois de sofrer privação do sono por vários dias. Perguntaram-lhe
se o Diabo havia “feito uso de seu corpo”, ao que ela respondeu que sim. Então, “Matthew Hopkins, um
39

Não raro, o fracasso em obter uma confissão levava inquisidores a alegar “pacto
presumido” (cf. SOUZA, 2009). Ou seja, na prática, a simples ideia de estar associada ao
Diabo poderia condenar uma mulher como bruxa, uma vez acusada. Em alguns lugares,
a confissão (ou a presunção) de pacto já era o crime, e ela poderia ser condenada se
houvesse testemunhas disso, mesmo que ela não tivesse cometido um crime contra uma
pessoa específica.
No próximo capítulo, discutiremos melhor como se constrói a figura da bruxa aos
olhos de tratados e documentos históricos de não-ficção, segundo a crença da época em
seu poder, e como a experiência e as Escrituras poderiam ser colocadas lado a lado para
alimentar o imaginário a fim de reafirmar regras de conduta na sociedade e, em especial,
entre as mulheres.

dos mais notórios caçadores de bruxas na mais famosa caça às bruxas inglesa, perguntou-lhe em qual forma
o Diabo havia aparecido para ela. Não mais mansa como antes, a viúva Clarke olhou duramente para aquele
jovem presunçoso e replicou: ‘Um cavalheiro alto de cabelo escuro muito respeitável. Um homem mais
respeitável do que o senhor’. Quando Stearne lhe perguntou com quem ela preferiria compartilhar a cama,
ela não teve dúvidas: ‘com o Diabo’” (2006, p. 50).
40

Capítulo 2

A discussão detida a respeito de alguns textos históricos de não-ficção, a serem


apresentados neste capítulo, visa a apreender os contornos do estereótipo da bruxa,
através do olhar não-ficcional, segundo cristalizado no início da Idade Moderna,
atentando especialmente ao intervalo entre o fim do século XVI e começo do XVII. Tal
recorte se justifica pela abundância de tratados sobre demonologia e bruxaria, além de
obras destinadas a um público maior (como os panfletos), nos quais a extrema repetição
de motivos e argumentos se apresenta como uma evidência da crença dominante à época.
Como Levack informa,

Já na metade do século XVI, um membro do clero, juiz ou leigo bem


instruído tinha acesso a uma vasta e variada literatura acerca da
bruxaria. Esse material com frequência tinha o efeito de intensificar seu
medo da bruxaria e fortalecer sua determinação em agir contra
indivíduos suspeitos de praticá-la. E, como essa literatura espalhou-se
fácil e rapidamente pelo continente europeu, ajudou a introduzir crenças
eruditas em áreas que ainda não as haviam recebido. Dessa maneira, a
disseminação de tratados de bruxaria tornou-se uma das forças motrizes
da grande caça às bruxas europeia70 (1992, p. ix).

Os efeitos práticos desses textos no cenário da época, seja em termos de


construção do imaginário, seja na realidade mais objetiva dos julgamentos de bruxas, são
objeto do estudo de diversos pesquisadores, que buscaram compreender a forma como
essas crenças se edificaram e se difundiram. E, apesar de tais questões apenas
tangenciarem o tema de minha pesquisa, é impossível ignorar como um discurso
compartilhado é capaz de entranhar-se no credo, enraizando-se nas ideologias
dominantes, e traduzir-se no campo das ações.
Observa-se, em tais textos, uma preocupação epistemológica, além de uma
formulação que poderia ser tida como “científica”, se não levasse em conta aspectos hoje
considerados circunstanciais, na melhor das hipóteses. Na verdade, os historiadores
insistem na importância de se abandonar os preconceitos contra o que se acreditava na
época, sob pena de nosso atual sistema de pensamento interferir na forma como

70
No original: “By the middle of the sixteenth century a clergyman, judge or educated layman had access
to a large and varied literature on the subject of witchcraft. This material often had the effect of intensifying
his fear of witchcraft and strengthening his determination to take action against individuals suspected of
practicing it. And since this literature spread easily and quickly throughout the European continent, it helped
to introduce learned beliefs in areas which had not yet received them. In this way the dissemination of
witchcraft treatises became one of the driving forces of the great European witch-hunt.”
41

entendemos os argumentos centrais dessas obras e os desdenharmos, atribuindo às


pessoas do passado motivações outras das quais seria impossível ter certeza quatro
séculos mais tarde. Sob um olhar agnóstico/ateu, voltado ao empirismo, parece difícil
compreender que certos intelectuais de fato houvessem acreditado naquilo que seus textos
defendiam. Como comentou Sydney Anglo,

muitos pensadores eruditos […] tinham tanta certeza das atividades


maléficas que estavam preparados para defender a tortura sistemática e
a punição capital daqueles acusados e condenados por terem relações
ilícitas com o diabo. Esses pontos de vista não resultavam de uma
apreensão vaga e de superstições, mas de convicções intelectuais, às
quais eles chegaram com base em fontes inexpugnáveis e evidências
tidas por autênticas. Ao longo da Idade Média e do Renascimento, em
quase todas as áreas humanas de pesquisa os argumentos
fundamentavam-se no acúmulo de fontes. Quanto mais fontes se
conseguia citar, quanto mais importantes fossem seus nomes, e mais
antigos os considerassem, mais convincente seria o argumento. E a
quantidade de fontes que apoiavam a ideia de um sistema de magia em
geral, e a realidade da bruxaria em particular, era esmagadora71 (1992a,
p. 6).

Ora, tal procedimento não difere tanto das metodologias científicas atuais. A
principal mudança está na questão crucial daquilo que se pode considerar “fonte” ou
authority em dada discussão. O presente trabalho — e todos aqueles lidos para sua
redação, referenciados diretamente ou não — utiliza o mesmo método: buscar estudos
anteriores, analisá-los e contrastá-los, procurando os pontos onde convergem e onde
divergem, e colocá-los em diálogo com outros textos, talvez de áreas afins, para extrair
conclusões segundo determinada ótica.
Não pretendo, com isso, invalidar a pesquisa científica tal como é feita, mas
apenas apontar que o atual sistema de pensamento acadêmico apenas sofreu uma alteração
substancial em relação ao do início da Idade Moderna: a crença no divino e em sua
interferência na realidade objetiva. Como já discutido anteriormente, “pensar com

71
No original: “[…] many erudite thinkers […] were so certain about maleficent activity that they were
prepared to advocate the systematic torture and capital punishment of those accused and convicted of
trafficking with the devil. These views were not vague apprehensions and superstitions. They were
intellectual convictions arrived at on the basis of seemingly unassailable authorities and authenticated
evidence. Throughout the Middle Ages and the Renaissance, arguments in virtually every field of human
enquiry proceeded upon the basis of accumulated authority. The more authorities one could cite, the greater
their names, and the more ancient they were deemed, the more cogent seemed one's argument. And the
authorities supporting a system of magic in general, and the reality of witchcraft in particular, were
overwhelming.”
42

demônios”, ou mesmo levar em consideração a força divina e o texto bíblico, era um


método científico válido naquele contexto, como hoje não é. Além disso, “a ciência nunca
se presta a estabelecer a verdade e, por conseguinte, está continuamente em progresso”
(FIORIN, 2014, p. 23). Por isso, a referência de Anglo ao peso das fontes mais antigas, e
a ênfase em sua quantidade, faz toda a diferença na leitura das obras a serem analisadas
adiante. Um teólogo nascido na aurora do Catolicismo haveria de ser uma autoridade no
assunto, estando mais próximo, de certo modo, de Jesus e dos apóstolos fundadores da
Igreja. A tradição greco-romana à qual a Igreja se filiava transbordou para o
Protestantismo, e nos tratados abundam citações a filósofos da Antiguidade como voz de
autoridade72. Há aí também uma prevalência da retórica, havendo constante menção a
verbos como “provar” quando, na verdade, trata-se de persuadir pela argumentação.
Entretanto, a postura dogmática atrelada aos pontos de vista dominantes, melhor
exemplificada pela adesão integral ao texto bíblico, não abre espaço para o debate no qual
a retórica floresceria.
Nesse contexto, é preciso mencionar uma das fontes, nem sempre diretamente
citada, de muitos dos textos a serem discutidos neste capítulo: Malleus Maleficarum ou
O Martelo das Feiticeiras (1486), de Heinrich Kramer e Jacob Sprenger, inquisidores do
Sacro Império Romano-Germânico. O livro em si foge do escopo desta pesquisa, mas
precisa ser mencionado como um dos maiores precursores dos tratados demonológicos e
jurídicos acerca da bruxaria. Segundo Anglo,

o Malleus fornece um resumo abrangente de argumentos pró-


perseguição, além de um método de perseguição, que contém
precisamente a combinação de falta de originalidade, popularidade e
influência tão valiosa ao historiador das ideias à procura do pensamento
convencional, em vez do atípico73 (1992a, p. 14).

Não só na temática e nas ideias veiculadas, os documentos a serem analisados a


seguir, com a notória exceção do Discoverie de Reginald Scot, também guardam
semelhança estrutural com o Malleus, embora seja importante destacar que são mais bem

72
Isso, aliás, continua a acontecer. A diferença é que nomes como Platão e Aristóteles costumam aparecer
atualmente numa perspectiva historiográfica, ao se reconstituir a construção de determinado pensamento
ao longo das eras. No entanto, sua importância na própria formação do saber ocidental permanece nas mais
diversas áreas do conhecimento.
73
No original: “the Malleus affords a comprehensive summary of arguments for persecution, together with
a persecution method, which has precisely that combination of unoriginality, popularity, and influence so
valuable to the historian of ideas seeking to discover conventional rather than atypical, modes of thought.”
43

redigidos, tanto quanto é possível concluir tal coisa a partir do contraste entre uma
tradução do latim e textos originalmente escritos em inglês.
Ao discutir a estrutura do mais famoso tratado inquisitorial, Anglo aponta que,

apesar da primeira impressão, […] não se trata de uma argumentação,


mas sim de uma série de asserções mascaradas por um acúmulo de
fontes e exemplos reunidos na forma de um debate. Qualquer
metodologia pode ser bem ou mal utilizada e, incômodos à parte, não
há nada de muito errado com o procedimento escolástico de apresentar
proposições, objeções e tréplicas. O método já alcançou notáveis
triunfos de sutileza e engenhosidade. Mas não nas mãos de Kramer e
Sprenger. Estes raramente conseguem vencer as objeções que eles
mesmos levantam para suas próprias proposições; às vezes deixam uma
discussão pela metade; às vezes presumem que se provou uma
proposição quando evidentemente não é o caso; os exemplos com
frequência são inadequados para embasar uma conclusão já
desenvolvida; e com muita frequência a postura assumida num ponto
do texto é contradita em outro trecho, conforme a exigência das
circunstâncias74 (1992a, p.19).

Não encontrei indicações de que tais deficiências tenham sido notadas por eruditos
da época, e mesmo posteriores, mas, talvez, as poucas referências a uma obra best-seller
(cf. ANGLO, 1992a) em textos nos quais claramente seus argumentos são retomados seja
uma evidência nesse sentido. Há, é claro, outra possibilidade: a de que os estudiosos
protestantes da temática não desejassem citar um tratado tão eminentemente papista.
Afinal, uma coisa era referenciar o texto de um autor católico. Outra muito diferente seria
celebrar textualmente o ponto de vista de dois inquisidores, defendido numa publicação
contendo uma bula papal anexa75.
Alguns historiadores também sugerem que o Malleus não foi tão popular à época
quanto se diz hoje em dia, e um intervalo de cem anos seria mais do que suficiente para

74
No original: “despite appearances to the contrary, this work is not an argument but rather a series of
assertions masked by an accumulation of authorities and exemplars assembled in disputation form. Any
methodology may be well or ill used, and - cumbrousness apart - there is little intrinsically amiss with the
scholastic procedure of propositions, objections, and rejoinders. The method had achieved some notable
triumphs of subtlety and ingenuity. But not in the hands of Kramer and Sprenger. They rarely succeed in
overcoming the objections they themselves raise to their own propositions; sometimes an argument is left
in mid-air; sometimes a proposition is assumed to have been proven when it patently has not; examples are
frequently inadequate to support a conclusion advanced; and very often a position assumed at one point in
the text is contradicted elsewhere as occasion demands.”
75
A Inquisição não tinha jurisdição sobre casos de bruxaria, a princípio. Heinrich Kramer, acusado de
abusar do poder e ignorar o protocolo em relação a diversos procedimentos, em especial o uso da tortura,
levou suas preocupações ao então papa Inocêncio VIII, que publicou a bula papal conhecida como Summis
Desiderantis Affectibus (1484), na qual recomendava uma investigação de bruxas em regiões da atual
Alemanha. Essa bula foi inclusa na primeira edição do Malleus (cf. GASKILL, 2010).
44

uma obra cair no esquecimento, mesmo se muito popular quando de sua primeira
publicação. Se for o caso, talvez as mesmas ideias tenham sido adotadas e tão repetidas
como lugar-comum que não se via necessidade de citar autoria.
Importa notar que as ideias veiculadas em tratados não necessariamente refletem
o pensamento predominante das camadas mais desprivilegiadas da população, sem acesso
à instrução e, portanto, ao conteúdo dos tratados eruditos, senão pela pregação de pastores
e ministros da Palavra. Segundo Levack,

as ideias dos clérigos e leigos cultos a respeito da bruxaria diferiam


daquelas de aldeões pouco instruídos, que costumavam ser a fonte
original de acusações de bruxaria. Enquanto as crenças populares se
preocupavam principalmente com a alegada prática do malefício ou da
magia nociva, crenças eruditas enfatizavam a natureza diabólica do
crime. Tratados de bruxaria discutiam longamente assuntos como o
pacto com o Diabo e a adoração coletiva a ele no sabá. Encontram-se
algumas das crenças eruditas em bruxaria nas confissões registradas de
bruxas, uma vez que tais confissões, tendo sido extraídas sob tortura ou
outras formas de pressão judicial, frequentemente refletiam as ideias de
seus interrogadores. Mas os tratados em si, que às vezes incorporavam
o conteúdo de tais confissões, nos dão uma imagem mais completa das
crenças eruditas da “elite”. Na verdade, os tratados ajudaram a fundir
os vários elementos que abrangem o conceito cumulativo de bruxaria,
o conjunto de ideias relativas a todas as supostas atividades de bruxas.
Quando o Malleus Maleficarum foi publicado, esse conceito já estava
em grande parte formado76 (1992, pp. ix-x).

Existia, assim, uma espécie de retroalimentação entre as crenças na bruxaria


segundo entendidas pelas elites europeias e pelas populações majoritariamente iletradas:
de um lado, boa parte das denúncias partia do povo, de vizinhos das pessoas acusadas, e
os réus, em geral, faziam parte desse grupo; do outro lado, as pessoas responsáveis por
receber as denúncias, investigá-las e julgá-las pertenciam à outra esfera. Os tratados e
panfletos, então, englobavam as crenças populares, discutiam-nas, usavam-nas como

76
No original: “The ideas of educated clerics and laymen about witchcraft differed from those of poorly
educated villagers who were usually the original source of witchcraft accusations. While popular beliefs
were concerned mainly with the alleged practice of maleficium or harmful magic, learned beliefs
emphasized the diabolical nature of the crime. Witchcraft treatises discussed at length such matters as the
pact with the Devil and the collective worship of him at the Sabbath. Some learned witch beliefs can be
found in the recorded confessions of witches, since those confessions, having been adduced under torture
or other forms of judicial pressure, often reflect the ideas of their interrogators. But the treatises themselves,
which sometimes incorporated the content of these confessions, give us a more complete picture of learned
or "elite" beliefs. Indeed, the treatises actually helped to fuse the various elements that comprise the
cumulative concept of witchcraft, the set of ideas regarding all the alleged activities of witches. By the time
the Malleus Maleficarum was published, this concept was already in large part formed.”
45

exemplos de seus argumentos. Do mesmo modo, os membros do clero, principais agentes


entre a cultura erudita e a popular, acabavam difundindo o conteúdo de tratados. E os
panfletos, mais acessíveis, também atuavam como intermediários desse processo.
Dessa maneira,

no século XVII é possível encontrar uma distinção entre um


entendimento antigo e um novo de bruxaria. O conceito antigo baseava-
se na ideia de que algumas pessoas têm poderes supranormais e
possuem a habilidade de entrar em contato com o mundo sobrenatural.
Essa visão mudou ao longo do século XV. Um novo entendimento
acerca da bruxaria apareceu na Europa pouco antes de a intensa
perseguição começar. De acordo com este, só se percebia a bruxa de
modo negativo, como uma pessoa completamente má e destrutiva. Esse
novo conceito de bruxaria teve grande importância para o
desenvolvimento dos julgamentos históricos de bruxas. [Bente] Alver
enxerga estratégias e contra-estratégias durante tais julgamentos, à luz
do entendimento das pessoas comuns quanto à bruxaria, relacionando-
o ao da elite. Enquanto esta via a prática mágica das pessoas comuns
como má e ímpia, aquelas viam o mundo enquanto mágico. Nas
comunidades locais, viam-se as pessoas com certas habilidades e
conhecimento mágicos como um intermédio entre as forças
sobrenaturais e os seres humanos77 (WILLUMSEN, 2013, p. 6).

Existe, portanto, uma dupla correspondência nessas crenças. Por um lado, o clero
atua tanto como uma força intermediária entre o sobrenatural divinal e as pessoas quanto
como tal entre as elites letradas e a grande população iletrada. Por outro, as pessoas
envolvidas com magia eram tidas por uma espécie de elo entre o mundo físico e o
espiritual. Num primeiro momento, havia ambiguidade fórica neste último papel, como
em geral ocorre nas religiões politeístas, seja nas da Antiguidade, seja nas atuais religiões
de matriz africana e/ou indígena, por exemplo, como o candomblé e a umbanda no Brasil,
o vodu no Haiti e a santeria em países da América Central. A partir daí surgiu o
contraponto, que consistia, na verdade, numa batalha pela dominância do imaginário,

77
No original: “it is possible in the 17th century to distinguish between an old and a new understanding of
the witchcraft. The old concept of witchcraft was based on the idea that some persons have supranormal
powers and have the ability to get in contact with a supernatural world. This view changed in the course of
the 15th century. A new understanding of witchcraft appeared in Europe just before the intense witchcraft
persecution started. According to this concept the witch was perceived only in a negative way, as a
completely evil and destructive person. This new concept of witchcraft was of great importance for the
development of historical witchcraft trials. [Bente] Alver sees strategies and counter-strategies during the
witchcraft trials in the light of common people's understanding of magic versus the elite's understanding of
the same. While elite saw common people's magical practice as evil and ungodly, common people saw the
world as magical. Persons with particular magical abilities and knowledge in the local communities were
regarded as a medium between supernatural forces and human beings.”
46

traduzida na violência discursiva com a qual tais pessoas e práticas passaram a ser
demonizadas.
A bruxaria é, portanto, um conceito cumulativo que desembocou num construto
demonológico. Segundo Willumsen,

esse construto insinuava que várias pessoas juntas se encontravam com


o Diabo e praticavam bruxaria. Isso, associado às confissões dos
acusados a respeito de reuniões de bruxas e operações conjuntas de
bruxaria, levava à denúncia de vários novos suspeitos, por sua vez
trazidos à justiça. As confissões correspondiam ao medo, entre oficiais
legais e membros do clero, da existência de um exército ímpio e oculto
de cúmplices do Diabo na Terra. Diversos pesquisadores enxergam o
conceito demonológico de bruxaria como o cerne das perseguições
europeias às bruxas, pois contém características centrais que constituem
o conteúdo e influenciam o desenvolvimento dos julgamentos mais
severos. A citação de cúmplices resultava nos pânicos, julgamentos
sucessivos de bruxaria durante um período concentrado. Como se
praticava bruxaria de muitas maneiras antes, durante e depois do
período histórico desses julgamentos, deve-se entender a perseguição a
bruxas em relação a fatores que poderiam ter importância para tê-los
engendrado e lhes dado continuidade no período da caça às bruxas. Para
isso, as ideias que formam a doutrina demonológica são centrais78
(2013, pp. 7-8).

Tal raciocínio bem demonstra uma conclusão que vem se desenhando ao longo de
todo este percurso desenvolvido até aqui: a de que a questão da bruxaria envolve uma
batalha pelo estabelecimento da narrativa, uma disputa filtrada pelas dinâmicas de poder.
Em nenhum momento ponho em questão a crença das pessoas envolvidas, de acordo com
o recomendado pelos historiadores, mas parece bastante lógico inferir que o crer dos
indivíduos perpassa seu querer nesse contexto, assim como em tantos outros. Ou seja, os
textos protestantes monarquistas evidenciam um querer crer que as bruxas são agentes

78
No original: “This construct implied that several persons together met with the Devil and performed
witchcraft. This the accused person's confessions of witches' meetings and collective witchcraft operations
led to denunciation of several new suspects, who were brought before the court in their turn. The
confessions corresponded to a fear among legal and clerical officials of an ungodly, hidden army of the
Devil's accomplices existing on earth. The demonological concept of witchcraft is by several researchers
seen as the core of the European witchcraft persecution, as it contains central features constituting the
contents and influencing the development of the most severe trials. Naming of accomplices resulted in
panics, successive witchcraft trials during a concentrated period of time. As witchcraft in many forms were
practised before, during and after the period of historical witchcraft trials, persecution of witches must be
seen in relation to factors which could possibly be of importance for the initiation and continuation of
witchcraft trials in the actual period of witch-hunts. Central for the start and development of the European
witchcraft trials are the ideas forming the demonological doctrine.”
47

infiltradas do Diabo para atingir o rei, alinhado com o eixo divino79. Da mesma forma,
para os macarthistas americanos, os comunistas eram mesmo uma pungente ameaça ao
sonho americano, na época do pós-guerra.
Com isso, é possível vislumbrar as crenças majoritárias através da repetição de
argumentos, da recorrência de motivos e da quantidade de textos produzidos acerca do
tema. A intensa repetição explicita noções fixas, de forma que, quando falta algum
elemento, o imaginário o preenche. Assim sendo, em alguns relatos que omitem se a
acusada participa das celebrações na igreja, seus contemporâneos bem poderiam inferir
sua ausência, pois em diversos outros casos a bruxa se mostrava “ímpia”, distante das
práticas religiosas. Mesmo quando não se fala de pacto com o Diabo, este é deduzido a
partir da crença manifesta de que aquela mulher consegue manipular os ventos.
A disputa pelo estabelecimento da narrativa também desponta na maneira como
a prova do crime da bruxaria é dada pela própria narrativa, no contexto discutido. Liv
Helene Willumsen, embora analisando autos de processos, observa um fenômeno que
ocorre da mesma maneira nos panfletos a serem analisados na terceira seção e nos tratados
favoráveis à crença na bruxaria, como o Daemonologie, discutido na terceira seção. Ela
aponta sobretudo o fator temporal num dos processos do escopo de seu estudo:

Dois eventos aconteceram consecutivamente: um deles foi a elocução


de uma palavra ameaçadora por Margaret Wallace [a suposta bruxa] e
o outro, o adoecimento repentino da pessoa ameaçada. Além do
elocutário das palavras proferidas, o fator temporal liga os dois
acontecimentos. Por trás dessa lógica, há a convicção de que as palavras
proferidas por bruxas são prejudiciais80 (WILLUMSEN, 2013, p. 109).

Ao discorrer sobre outro caso, a pesquisadora comenta:

Nada está provado, mas certamente Stewart [marido de uma


denunciante] parece ter pensado que enfatizar a relação entre os
acontecimentos fortalecia a acusação de sua esposa. Quanto mais se
evidenciam as estruturas narrativas básicas, mais óbvio fica que o

79
Isso se torna bastante patente ao longo das minhas análises, através das quais é possível observar que
autores partindo exatamente dos mesmos versículos bíblicos conseguem chegar a conclusões totalmente
opostas, como é o caso de Reginald Scot e do rei James VI & I, conforme já comentado em algumas
passagens deste trabalho.
80
No original: “Two events happened consecutively, one being the uttering of threatening word by
Margaret Wallace, the other being sudden sickness that affected the threatened person. In addition to the
addressee of the uttered words, the time factor connects these two events. Behind this logic lies a conviction
that words uttered by witches are endangering.”
48

conteúdo do que é dito parece ser a opinião tanto da testemunha quanto


do escriba81 (WILLUMSEN, 2013, p. 131).

Considera-se prova de intento criminoso e/ ou do crime uma correlação construída


sobre uma lógica de causa e consequência. Como existe um crer predominante no poder
das bruxas e em sua maldade intrínseca, uma altercação com uma “bruxa notória”
[notorious witch] — expressão bastante utilizada na época — seguida de uma
consequência ruim para seu oponente torna-se uma evidência mais do que suficiente,
especialmente se a ela se juntarem testemunhos de vizinhos relativos a ocorrências
semelhantes ao longo dos anos.
Um fator fortalecedor dessas crenças e validador da narratividade temporal de
causa e consequência como prova judicial é o número alto de confissões, em alguns
contextos extraídas sob tortura, em outros voluntariadas. A teoria da agência limitada
defende que
não apenas os poderosos, mas também os oprimidos têm e fazem
escolhas e reagem até mesmo a abusos de modo a tornar mais fácil
conviver com a desgraça e consigo mesmos; a rebelião sufocada ainda
é rebelião e as evidências a esse respeito tiram o crédito de narrativas
misóginas de passividade82 (APPS; GOW, 2003, p. 68).

Assim, apontam-se as confissões não só como resultado da passividade de uma


mulher vítima do sistema, mas, ao mesmo tempo, como forma de resistência, um modo
de se fazer ouvir numa sociedade que calava mulheres em âmbitos públicos e, quando
não as silenciava, exigia normas muito rígidas de conduta e discurso. As “línguas
indisciplinadas” [unruly tongues] (cf. WITCH HUNT, 21/11/2019, 2’40”) das bruxas, seu
uso de termos de baixo calão, os detalhes indecorosos dos relatos que envolviam contato
sexual com o Diabo, fazem parte de uma performance social, uma espécie de libertação,
mesmo se ainda aprisionada, de uma pessoa que jamais teria a atenção de figuras
importantes (incluindo um rei, nos julgamentos dos quais James VI participou, por
exemplo) em outra circunstância.

81
No original: “Nothing is proved, but certainly Stewart appears to have thought that emphasizing the
connection between the events strengthened his wife's accusation. The more the basic narrative structures
come to the fore, the more obvious it is that the content of what is told seems to be the opinion of both
witness and scribe.”
82
No original: “not only the powerful, but also the oppressed have and make choices and respond even to
abuse in ways that make it easier for them to live with misery and with themselves; suppressed rebellion is
still rebellion and evidence of it discredits misogynistic narratives of passivity.”
49

De acordo com Diane Purkiss, aldeões do início da Idade Moderna, especialmente


mulheres, criavam histórias com a figura da bruxa, histórias que até mesmo ajudavam-
nos a compor sua identidade (1996, p. 2). Em tal contexto,

a riqueza de detalhes e a unidade dos elementos que ouvimos repetidos


nas confissões de uma pessoa acusada após a outra sugere que essas
narrativas faziam parte de uma tradição oral bem conhecida na
comunidade. Isso não pode ser coincidência. Indivíduos provavelmente
contavam essas histórias uns para os outros e, quando pressionados
durante seus interrogatórios, recontavam-nas como resposta a perguntas
conducentes — bem do jeito que os interrogadores queriam escutar83
(WILLUMSEN, 2013, p. 110).

Como já comentado anteriormente, havia um intercâmbio de elementos entre a


cultura oral popular e a cultura escrita erudita e, embora as elites letradas tivessem um
controle político sobre o paradigma dominante, de modo algum a população era apenas
um recipiente passivo das ideias daquela. Por exemplo, os interrogadores responsáveis
por processos envolvendo a figura de seres feéricos jamais convenceriam as pessoas de
que estes não existiam; no máximo, conseguiam levá-las a concordar (em voz alta, senão
em seu âmago) que fadas, duendes e elfos eram apenas roupagens de demônios para
enganar os humanos84 (cf. WITCH HUNT, 14/11/2019, 12’30”).
Além disso,
a bruxa não é apenas ou simplesmente criação do patriarcado;
[…] as mulheres também investiam pesadamente na figura como
uma fantasia que lhes permitia se expressar e administrar temores
e desejos indizíveis, centrados na questão da maternidade e dos
filhos. […] A ideia de um corpo materno, que é tanto um objeto
de desejo quanto uma fonte de profanação, torna-se a base para
um entendimento da magia da bruxa como o aspecto invisível e
infinitamente alargado de seu corpo, que pode ferir além de suas
limitações aparentes. […] Mulheres acusadas de bruxaria
usavam a oportunidade da capacidade de ação e da confissão
sobrenaturais para moldar para si uma identidade, a qual
representava um meio-termo entre seu entendimento do mundo e

83
No original: “The richness of detail and the unity of elements we hear repeated in the confessions by one
accused person after another suggest that these narratives were part of an oral tradition well known in the
community. This can be no coincidence. Individuals probably told these stories to each other and when
pressed during their interrogation, they retold these stories as answer to leading questions - just in the way
the interrogators wanted to hear it.”
84
Uma evidência disso é o fato de todas as festas cristãs ocorrerem em festivais pagãos. O Natal era, antes
disso, tanto uma comemoração judaica quanto uma celebração grega do nascimento de Dionísio. A data da
Páscoa cristã é móvel por se basear em contagens lunares muito anteriores ao Cristianismo, e ter sua fonte
tanto no Judaísmo quanto em festas pagãs relacionadas à fertilidade e à colheita.
50

as categorias desenvolvidas pelas pessoas mais eruditas85


(PURKISS, 1996, p. 2).

Assim sendo, contornava-se a fragilidade do corpo e da posição social do tipo de


mulher não-conforme a ser enquadrado no perfil da bruxa. Suas experiências —
inventadas ou não, interpretadas e relidas à luz não só das perguntas diretivas dos
interrogadores como das narrativas de tradição oral que ajudavam a alimentar seu
imaginário — passavam a ser dignas de nota, em vez de reduzidas aos delírios de uma
“velha louca” ou aos resmungos ressentidos de alguém que não tinha como se defender
das diversas situações de vulnerabilidade às quais estava exposta (esta última posição é a
de Reginald Scot em seu tratado).
Na Escócia dessa época, as mulheres não eram aceitas em juízo nem como
independent criminals, isto é, rés únicas de uma acusação, nem como testemunhas
confiáveis. Em 1591, com os célebres julgamentos de North Berwick, abriu-se uma
exceção para processos de bruxaria. Ou seja, a bruxaria trouxe tanto à acusada quanto a
outras mulheres, denunciantes e/ ou testemunhas, o poder falar num importante âmbito
da vida pública no qual antes sua participação era vedada. Do mesmo modo, veio da
bruxaria a valorização do domínio feminino sobre a esfera do corpo, mesmo enquanto
integrantes da comissão acusatória; afinal, eram mulheres “de boa reputação” ou “de
reputação honesta” as encarregadas de procurar a marca do Diabo na suposta bruxa, uma
das únicas evidências físicas do crime.
Essa relevância não resistiu ao declínio das crenças em bruxaria por parte dos
grupos hegemônicos. As discussões retóricas foram se agravando e esmiuçando detalhes
sobre os quais era impossível concordar, e a bruxaria foi perdendo o fôlego enquanto
crença quando se começou a questionar a lógica interna de seu funcionamento. Isso se
demonstra pelo modo como foram decaindo as quantidades de tratados demonológicos e
panfletos a partir do final do século XVII e ao longo do XVIII na Europa. Segundo
Levack,
Após uma série de debates […], as elites europeias abandonaram suas
crenças em magia e diabolismo e recusaram-se a levar acusados de

85
No original: “the witch is not solely or simply the creation of patriarchy, but […] women also invested
heavily in the figure as a fantasy which allowed them to express and manage otherwise unspeakable fears
and desires, centring on the question of motherhood and children. […] The idea of a maternal body, which
is both an object of desire and a source of pollution, becomes the basis for an understanding of the witch's
magic as that unseen and infinitely extended aspect of her body which can do harm beyond her apparent
bounds. […] Women accused of witchcraft used the opportunity of supernatural agency and confession to
shape an identity for themselves which represented a compromise between their understanding of the world
and the categories developed by the more educated people.”
51

bruxaria à justiça. Depois disso, as crenças em bruxas permaneceram


como parte da cultura popular, mas praticamente desapareceram da
cultura erudita86 (1992, p. x).

Na prática, isso quer dizer que ainda havia denúncias às cortes incumbidas dos
casos de bruxaria. O que mudou, dentre uma série de fatores sociais e políticos, foi a
posição dos juristas e órgãos competentes, que passaram a se recusar a processá-los87.
Antes de passar às análises dos documentos específicos, é importante frisar que,
embora utilize estudos de historiadores como fortuna crítica, na qualidade de analista do
discurso não posso deixar de apontar que nesses textos acadêmicos há certa tendência de
sobrepor os papéis de autor, enunciador e narrador, atribuindo a dado enunciado o peso
da “opinião” de seu autor. Mesmo se pudermos inferi-la, através das diversas marcas
textuais enunciadas, é muito problemático pensar que temos acesso à pessoa do autor
através de seu texto. No máximo, à figura do enunciador, isto é, a forma como o autor se
projeta no texto, através do enunciado, ela própria bastante fugidia.
Dessa maneira, quando nas citações aparecem expressões como “eles
acreditavam”, “eles pensavam”, “eles não duvidavam” e afins, já encontradas algumas
vezes até aqui, entendamos isso como um exercício de aproximação entre pesquisadores
do tema e seu objeto de estudo. Na verdade, é impossível determinar quais eram os
pensamentos das pessoas reais envolvidas, e assim o seria mesmo se estudássemos diários
e cartas de próprio punho contendo afirmações do tipo “eu acredito nisso”. Procuro aqui
entender as ideias predominantes nos textos históricos, apoiando-me nos historiadores
referenciados para contextualizar as obras discutidas. O excelente estudo de Liv Helene
Willumsen utiliza-se de uma área afim para estudar processos de bruxaria, a narratologia,

86
No original: “After a series of late seventeenth-century debates, […] European elites gave up their beliefs
in magic and diabolism and refused to bring accused witches to justice. After that time witch beliefs
remained a part of popular culture but virtually disappeared from learned culture.”
87
Por motivos práticos, optei por não analisar autos de processos diretamente. A leitura de tais textos,
escritos à mão, em geral com abreviações, é por demais dificultosa para alguém sem prática, e adquiri-la
requeria um tempo que não possuía durante o período do estágio de pesquisa na Universidade de Edimburgo
(março a agosto de 2019). O Prof. Dr. Julian Goodare, historiador responsável pela Survey of Scottish
Witchcraft, e seu então orientando de doutorado, Ciaran Jones, foram muito prestativos em me apresentar
a esse material e me instruir a respeito. Após a leitura de trechos de autos e estudos relacionados, concluí
que para os propósitos da minha pesquisa esta fonte primária não era vital, pois o estereótipo da bruxa
segundo a perspectiva judicial transborda para os documentos a serem analisados aqui, isto é, tratados e
panfletos. Ressalte-se que, se eu buscasse estudar os casos jurídicos em si e por si mesmos, e procurasse a
“verdade” acerca das bruxas julgadas, os autos dos processos seriam indispensáveis. No entanto, meu objeto
é a figura da bruxa conforme projetada nos textos, estereotipada e despida de complexidades humanas, o
que veio a lhe permitir alcançar a posteridade como um arquétipo a ser relido e ressignificado de diversas
maneiras ao longo dos séculos que se seguiram. Para isso, os panfletos e tratados não são apenas
satisfatórios, como ideais.
52

cujos procedimentos são semelhantes ao método semiótico preferido aqui. Como ela
comenta,
Embora uma leitura detida do documento histórico possa dar acesso a
camadas de sentido que, de outro modo, seriam negligenciadas, é
indispensável que essa análise seja colocada num contexto histórico
para maiores interpretações. Quando se analisa uma fonte histórica, o
princípio da autonomia do texto em si mesmo — tornando-o o único
objeto de análise — não é satisfatório. Somando-se a isso, é necessário
considerar o contexto histórico para entender o significado do texto.
Portanto, o contexto histórico, além de características extratextuais,
acrescentará informações importantes a uma análise do texto imanente,
e é absolutamente necessário para se interpretar um fenômeno
histórico88 (2013, p. 30).

À semelhança da pesquisadora, será esta a metodologia adotada no presente


capítulo e, quando conveniente, em todo o resto do trabalho.

2.1. The Discoverie of Witchcraft, de Reginald Scot


Em seu prefácio a Daemonologie, o rei James VI da Escócia e I da Inglaterra alega
que uma das motivações para a escrita de seu tratado é fazer frente a certos textos, em
especial um assinado por “Scot, um inglês que não tem vergonha de publicar um livro
negando a existência da bruxaria” (JAMES, 1597, p. ii). Trata-se de Reginald Scot (1538-
1599), a cuja publicação intitulada The Discoverie of Witchcraft (1584) o rei parece
impelido a se contrapor89. Essa obra foi o primeiro tratado sobre bruxaria escrito por um
autor inglês (DAVIES, 2013, p. 381) e, na contramão do senso comum no século XVI,
“repudiava a teoria de que bruxas formassem um pacto diabólico e afirmava que mulheres

88
No original: “While a close-reading of the historical document might give access to shades of meaning
that would otherwise have been overlooked, it is imperative that this analysis has to be placed in a historical
context for further interpretation. When analyzing historical source material, the principle of text autonomy
— making the text in itself the sole object of the analysis — is not alone satisfactory. In addition, it is
necessary to consider the historical context in order to understand the meaning of the text. Hence the
historical context as well as extra-textual features will add important information to a text-immanent
analysis and is of absolute necessity for an interpretation of a historical phenomenon.”
89
Existe uma anedota de que James teria mandado queimar os livros de Scot, reproduzida por vários
historiadores, embora sempre demonstrando dúvida quanto a isso. Como apontado por Davies (2013, p.
383), vários exemplares da primeira edição sobrevivem, o que seria de fato uma evidência contrária a essa
história. Também não consta nenhuma ordem oficial dessa suposta queima. Por fim, não parece lógico que
James fosse se preocupar em ordenar a completa destruição de uma obra que ele já havia se dado ao trabalho
de rebater (posto que ele só ascendeu ao trono inglês em 1603, e Daemonologie é de 1597, quando ainda
governava apenas a Escócia).
53

praticantes de bruxaria ou eram loucas ou fraudulentas”90 (O’MAHONEY, 2009, p. 243),


questionando a validade das caças às bruxas e demonstrando ceticismo em relação ao seu
poder (SHAMAS, 2007, p. 19).

Figura 1: frontispício do tratado The Discouerie of Witchcraft (1584), à esquerda, e frontispício da edição
de 1665, à direita.

Começar a discutir o estereótipo da bruxa a partir do tratado de um firme opositor


da crença em bruxaria pode parecer um contrassenso, à primeira vista. Apesar disso, o
ethos do sujeito Reginald Scot, projetando-se enquanto enunciador do texto, é um cristão
devoto, estudioso e antipapista. À semelhança de seus contemporâneos, baseia sua linha
argumentativa num olhar cristão do universo, discorrendo sobre os fenômenos
observados à luz da Bíblia. Nisso, seu escrito não difere muito dos outros a serem
discutidos neste capítulo. A diferença jaz no detalhe de Scot declarar que Deus não
concederia tamanho poder às bruxas, mesmo acreditando no Diabo e na ideia de que
invocá-lo causaria a perdição da alma; seu texto apenas delimita o escopo da intervenção
demoníaca (MATHUR, 1977, p. 176).

No original: “This treatise dismissed the theory that witches formed a diabolical pact, and asserted that
90

women who practised witchery were either insane or fraudulent.”


54

Dessa maneira, The Discoverie of Witchcraft é duplamente interessante: mostra o


estereótipo predominante das bruxas à época, ao mesmo tempo em que manifesta um
pensamento dissidente. A prova de que o autor é, apesar de sua “iluminação”, um produto
de seu contexto sociocultural figura tanto em seus ataques às crenças por ele classificadas
como idólatras quanto em sua defesa misógina, apesar de condescendente, das acusadas
de bruxaria, como em “aquelas comumente acusadas de bruxaria são as pessoas menos
aptas de todas a falar por si mesmas”, na passagem a seguir. Enxergá-las como vítimas
das circunstâncias e do preconceito social — posição bastante popular ao longo do século
XX — é uma de suas maiores dissidências em relação a outras obras do gênero. Em
determinado trecho das dedicatórias anteriores ao tratado propriamente dito, diz:

[…] meu livro há de provar que […] (além das Venificae, que são
simples envenenadoras), há somente dois tipos de bruxas: aquela a
quem é imputada essa condição, pois é como são vistas por terceiros (e
esse tipo é vítima, não algoz), e a outra é bruxa por aceitação, ou seja,
quer ser vista assim (e estas são meras charlatãs).
Calvino, ao tratar dessas magas, chama-as de charlatãs, dizendo
que fazem uso de seus truques trapaceiros apenas para maravilhar ou
para injuriar o povo, ou pela fama, mas ele bem poderia ter dito que elas
o fazem por ganho material. […] Que se mostre, a essas pobres almas,
a benevolência legal e a compaixão cristã, em vez de rigidez e da pena
máxima, porque aquelas comumente acusadas de bruxaria são as
pessoas menos aptas de todas a falar por si mesmas, por possuírem
educação da mais básica e simplória; e porque sua idade avançada as
leva a caducar, sua pobreza, a mendigar, suas injúrias, a ralhar e
ameaçar (já que não possuem nenhum outro modo de se vingar), seu
temperamento melancólico, a alimentar suas imaginações, a principal
origem de suas confissões, motivadas por vaidade, ao dizerem que
podem se transformar e a outros em macacos, corujas, burros,
cachorros, gatos etc., e que podem voar pelo ar, matar crianças com
encantamentos, impedir a feitura de manteiga etc.91 (SCOT, 1665, p. iv
e p. xiii).

91
No original: “it shalbe proved in my booke […] that (besides them that be Venificae, which are plaine
poisoners) there will be found among our witches onelie two sorts; the one sort being such by imputation,
as so thought of by others (and these are abused, and not abusors) the other by acceptation, as being willing
so to be accompted (and these are meere cousenors). § Calvine treating of these magicians calleth them
cousenors, saieng that they use juggling knacks onelie to amase or abuse the people; or else for fame: but
he might rather have said for gaine. […] [T]he lawfull favour and christian compassion be rather used
towards these poore soules, than rigor and extremitie. Bicause they which are commonlie accused of
witchcraft are the least sufficient of all other persons to speake for themselves; as having the most base and
simple educations of all others; the extremitie of their age giving them leave to dote, their povertie to beg,
their wrongs to chide and threaten (as being void of anie other waie of revenge) their humour melancholical,
to be full of imaginations, from whence cheefelie proceedeth the vanitie of their confessions; as that they
can transforme themselves and others into apes, owles, asses, dogs, cats, &c.: that they can flie in the aire,
kill children with charmes, hinder the comming of butter, &c.”
55

O texto de Scot92 responde aos testemunhos do cotidiano, sempre se referindo às


bruxas como “velhas tolas”, “pobres tolas” e “pobres almas”. Ele procura persuadir seus
leitores de seu ponto de vista numa mistura discursiva de compaixão pelas “vítimas” de
acusações e desprezo intelectual por aqueles que as denunciam e/ou testemunham contra
elas. Para ele, o algoz é sempre generalizado na pessoa de um homem, um he/him [ele/o]
discursivo, enquanto a figura da bruxa é eminentemente feminina, textualizada através
dos pronomes relativos she/her [em português, pronomes pessoais do caso reto e oblíquo
ela/a, respectivamente].
Também é interessante notar na citação acima sua divisão acerca dos supostos
dois tipos de bruxas, aquela a quem esse rótulo é imputado e aquela que assim deseja ser
reconhecida. A primeira, seria vítima; a segunda, charlatã. Mesmo sendo esta última
alguém agindo de má-fé, ele ainda assim diminui o peso de seu crime com o adjetivo
“meras” [meere]. Essa separação é interessante porque já determina duas formas de
construção identitária: por adesão e por polêmica. Pensando nas bruxas confessas,
consegue-se entrever as duas possibilidades. Num caso, a ré acaba sendo coagida a
confessar por vários tipos de pressão judicial, incluindo o emprego de tortura. No outro,
a ré confessa livremente, seja porque crê ser uma bruxa, seja por querer algum reforço
positivo relacionado à confissão: ser poupada de procedimentos de tortura, receber
melhor atenção dos presentes, demonstrar arrependimento e, com isso, ter sua pena
mitigada. Nos lugares onde havia queima de bruxas, uma confissão voluntária poderia
permitir à ré ser enforcada antes de ir à fogueira.
Ao discorrer sobre o fenômeno da polêmica na atualidade, a analista do discurso
Ruth Amossy defende o dissenso como instrumento fundamental do debate e da
democracia contemporânea. Entretanto, segundo ela, “nas dissensões profundas, os lados
opostos passam a ver um ao outro como louco ou herege”, tornando o consenso
impossível por uma diferença irreconciliável de interesses (2017, pp. 30-1). Pois bem; no
período dos grandes pânicos do final do século XVI e começo do XVII, essa classificação
de opositores como “louco ou herege” foi bastante literal. Sendo a heresia um crime,
dentro do Catolicismo, e algo bem próximo disso, no Protestantismo britânico — para

92
Preferi citar a edição de 1665 por motivos de praticidade: a edição original de 1584 está inteira em fonte
gótica, o que causa dificuldade de leitura, embora não a impossibilite. Trabalhei com três edições: a original,
a de 1665 e a de 1886, editada por B. Nicholson, a cuja introdução me remeto algumas vezes. Em todas as
citações, conferi o texto com o original. Havendo discrepância, citarei a versão de 1584, por ser aquela do
autor.
56

quem associar-se ao Diabo, por exemplo, era crime de lesa-majestade —, tal desvio em
relação à postura dominante constituía um risco real.
Desse ponto de vista, a posição de Scot ao tachar as bruxas voluntariamente
confessas de “meras charlatãs” ou loucas (pessoas de pouca instrução cuja idade avançada
e circunstâncias sociais, associadas à uma condição melancólica, levam-nas a caducar)
seria um modo de atenuar o peso de suas confissões, desmerecendo-as como oriundas de
uma mente enfraquecida. Se isso por um lado se mostra extremamente etarista, capacitista
e misógino à luz do pensamento atual, por outro manifesta um desejo de oferecer uma
perspectiva mais amistosa em relação a essas pessoas, de outro modo repudiadas. Ao lhes
tirar a importância, debochando de seus clamores quanto a seu envolvimento com o
Diabo, oferecia uma leitura alternativa para seu comportamento, mais benevolente,
mesmo se paternalista.

Figura 2: The Discouerie of Witchcraft, edição original de 1584 (p. 1), em fonte gótica. Foto tirada na
National Library of Scotland (arquivo pessoal, 2019).
57

Além disso, como o tratado dialoga com discursos de seu tempo, o texto nos
transmite uma boa parte do que se solidificou como o estereótipo da bruxa e dos poderes
a ele associados, durante certo intervalo para a cultura erudita, e um período maior na
cultura popular. No trecho supracitado, ele descreve também as circunstâncias da maior
parte das rés de bruxaria, cujos processos foram estudados por historiadores (na Grã-
Bretanha ou no restante do continente europeu), em particular a situação de extrema
pobreza e vulnerabilidade social dessas mulheres, bem como seu comportamento
desviante do padrão, ora atribuído à maldade, na pena de alguns autores, ora atrelado às
suas debilidades socioeconômicas e tornado sintoma de melancolia, uma condição
médica na época, atualmente associada a diagnósticos de doenças psicológicas e
psiquiátricas como depressão e demência senil.
É de se imaginar que o livro de Scot tenha causado impacto. Sua retórica é bastante
adequada ao fazer persuasivo a que se propõe. Davies, estudando a recepção de
Discoverie, comenta que este sofreu críticas pela pena de todos os demonologistas (2013,
p. 383), muito embora diversos o usassem como fonte de “anedotas de fraude mágica”
(idem, p. 384) e de rituais de bruxaria. Fora do âmbito dos escritos sobre bruxaria, a
recepção do tratado de Scot foi em grande parte positiva (idem, p. 386). No entanto, dentre
o público-alvo desejado, seu texto só parece ter se popularizado depois. Segundo Leland
Estes,
O lado “prático” de Scot não estava disposto a fazer tamanha concessão
ao senso comum [aceitar a existência de bruxaria]. Do alto de sua
teologia, ele conseguia negar aquilo que outros tomavam como
empiricamente demonstrado. Não deveria surpreender que, embora ele
fosse ocasionalmente citado por críticos posteriores dos pânicos, não
foi antes do último quarto do século XVII, após a caça às bruxas já ter
adentrado um declínio abrupto, que seus argumentos específicos foram
levados a sério93 (1992, p. 186).

Ainda assim, é importante ressaltar que “nenhum outro tratado de bruxaria inglês
foi tão citado. Alguém — não se sabe quem — gostou do Discoverie o suficiente para
produzir uma cópia ligeiramente resumida, feita por um escriba profissional [a edição de
1651]” (DAVIES, 2013, p. 389). Essa edição, aliás, é intitulada Scot’s Discovery of

93
“The ‘practical’ Scot was unwilling to make such a concession to common knowledge [accept the
existence of witchcraft]. From the high ground of his theology he was able to deny that which others took
as empirically demonstrated. It should come as no surprise to discover that while he was occasionally cited
by later critics of the craze, it was not until the last quarter of the seventeenth century, after witch hunting
already had gone into a steep decline, that his specific arguments were taken seriously.”
58

Witchcraft, demonstrando que a obra era conhecida o bastante para ser considerada
comercial oitenta anos depois (idem, p. 392).
Talvez a maior prova da importância dessa obra já na época de sua primeira
publicação seja o fato de o então rei da Escócia não só a conhecer como se dignar a
escrever um tratado com a finalidade de negar toda a extensa argumentação do inglês,
esclarecendo suas próprias visões sobre como as bruxas deveriam ser julgadas e punidas.
Ambos os documentos citam a Bíblia em abundância, porém chegam a conclusões
opostas. Isso ocorre porque

dentro de uma sociedade cristã, a primeira e última voz de autoridade


em qualquer debate deveria ser as Sagradas Escrituras, apesar da
dificuldade — ao se manipular tais escritos místicos e alusivos — de
estabelecer com precisão o que as palavras significam. Na verdade, tal
dificuldade tornou-se crucial no caso de […] Scot, por [sua] tentativa
de derrubar as crenças em bruxaria, pois era possível interpretar as
Escrituras de modo a entender que a existência das bruxas nos tempos
bíblicos houvesse sido eliminada. Mesmo assim, a Bíblia parecia
inequívoca quanto à problemática geral: estabelecia de modo
conclusivo (para aqueles a quem a evidência bíblica fosse conclusiva
em si mesma) que todas as artes mágicas eram reais e, sem exceção,
condenadas quando praticadas por qualquer um que não um profeta de
Deus autorizado94 (LEVACK, 1992, p. 6).

Ou seja, dentro de uma isotopia da crença em bruxas, atém-se a determinadas


passagens bíblicas, como aquelas que proíbem a bruxaria e preveem punições severas
para seus praticantes. Já numa isotopia contrária à crença em bruxas, como a adotada por
Scot, enfatizam-se aspectos como a unicidade dos milagres de Cristo.
A discussão, no campo teólogo-filosófico, centra-se principalmente na questão de
qual entendimento seria o adequado para um cristão e, até mesmo, quem seria o cristão
mais correto. Dentro da lógica da fé, Scot argumentará que acreditar nos poderes das
bruxas equivale a menosprezar os milagres de Jesus (1665, p. 3). Tal ponto de vista,
bastante coerente com o credo cristão, não parece ter angariado um número substancial
de signatários. Na verdade, a julgar pelo prefácio contundente de Daemonologie, a ser

94
No original: “Within a Christian society both the first and the final authority in any debate must be the
Holy Scriptures, despite the difficulty - when manipulating such mystical and allusive writings - of
establishing precisely what words mean. Indeed, this difficulty became crucial in the case of Weyer and
Scot, for their attempt to overthrow witchcraft beliefs, because it was possible so to reinterpret the
Scriptures that the existence of witches in biblical times was eliminated. Nonetheless, the Bible seemed
unequivocal on the general issue: it established conclusively (for those to whom scriptural evidence was
ipso facto conclusive) that all the magical arts were real and that, without exception, they were to be
condemned when practised by anybody other than an accredited prophet of God.”
59

comentado na próxima seção, pode-se inferir que o rei James teria se sentido desafiado
com as asserções nesse sentido em Discoverie. O último parágrafo do capítulo V do Livro
1 deste último bem resume os argumentos de Scot:

Aquele que atribui a uma bruxa um poder divino, o qual só é próprio de


DEUS (o que todos aqueles que creem em bruxas fazem) é, no fundo,
um blasfemo, um idólatra, cheio de flagrante impiedade, mesmo se ele
não procure ou mande procurar sua assistência95 (1584, p. 12).

Para ele, a mera crença na bruxaria é pecaminosa e contrária à fé cristã, na qual o


protestantismo (especialmente calvinista, embora não mencionado textualmente), retém
a superioridade moral, por oposição ao catolicismo, chamado sempre de “papismo”
[popery] como uma crítica à soberania da figura papal na religião. Na verdade, todo o
capítulo VIII do Livro 1 é dedicado a criticar a Igreja católica e a Inquisição, atribuindo
os estatutos contrários à bruxaria na Inglaterra a uma herança do papado. Além disso,
exime tanto a rainha Elizabeth I, soberana à época, quanto seus magistrados da culpa
pelas perseguições, chegando a alegar que qualquer misericórdia mostrada para com as
rés acusadas do crime é devida à monarca.
A posição de Scot vai no sentido de negar a interferência direta do Diabo e seus
asseclas no cotidiano do mundo referencial, dito físico ou natural. De nenhum modo ele
nega sua existência; muito pelo contrário, ele o leva em conta durante toda a sua
argumentação, a exemplo das afirmações contidas nos estudos de Stuart Clark sobre
“pensar com demônios”. Scot “rejeitava a ideia de que o Diabo — ou, na verdade,
qualquer ser espiritual — poderia interagir de algum modo com mortais, mesmo como
um instrumento da providência” (DAVIES, 2013, p. 386). Há quem considere que ele
reduziu esses seres quase a uma metáfora e, de certa forma, trabalhou com a ideia de
consciência antes da psicanálise (idem, p. 396). Seja como for, ao defender a ideia de uma
limitação do poder diabólico, ele ajuda a abrir caminho para o pensamento científico
atual. Isto é,
embora Scot não estivesse fazendo ciência, ele e outros como ele
estavam fazendo algo extremamente importante para a iniciativa
científica. Ao banir os espíritos do mundo corpóreo, eles reduziram a
atratividade do componente físico numa explicação da esfera espiritual,
ao mesmo tempo aumentando o valor daquelas puramente naturais. Eles
estavam criando para o mundo europeu um ambiente metafísico onde

95
No original: “he that attibuteth to a witch, such divine power, as dulie and onelie apperteineth unto GOD
(which all Witchmongers doo) is in hart a blasphemer, an idolater, and full of grosse impietie, although he
neither go nor send to hir for assistance.”
60

explicações naturais, em vez de sobrenaturais, poderiam triunfar96


(ESTES, 1992, p. 185).

É importante ressaltar que, apesar disso, o “ambiente metafísico” de Scot conta


com a firme presença divinal e mesmo demoníaca. A diferença entre seu posicionamento
e os de seus contemporâneos está na esfera de atuação atribuída aos poderes de Deus e
do Diabo, muito reduzidas no caso deste último.
Outro fator interessante a respeito desse tratado é o quanto a possibilidade de lê-
lo por oposição — isto é, de tirar dele o que interessa ao leitor — manifestou-se já na
época de sua primeira publicação e, mais tarde, nas novas edições. Por um lado, como já
comentado, seus opositores eruditos usaram-no para acusá-lo de ateísmo. Por outro, “não
devemos presumir que o Discoverie foi lido apenas por seu ceticismo em relação à
bruxaria. A recepção da obra de Scot foi altamente complexa, e viajou em direções que o
próprio Scot pode nunca ter imaginado” (DAVIES, 2013, p. 401). O ceticismo expresso
do autor lhe permitiu publicar descrições detalhadas de rituais mágicos, algo que ele
dificilmente teria feito se os julgasse eficazes (idem, p. 394). Com isso,

uma grande parte da estratégia de Scot no Discoverie foi simplesmente


descrever em pormenores crenças e histórias relacionadas à bruxaria e
à magia, na (bastante otimista) esperança de que demonstrassem, em si
mesmas, o quanto eram ridículas ao serem expostas ao olhar: “supondo
que citar tais absurdos possa refutá-los”. […] Como o material de Scot
era baseado em fontes manuscritas e obras continentais em latim, ele
inadvertidamente disponibilizou tal material para o público inglês […]
Como Owen Davies explica, […] Scot produziu o que equivalia ao
primeiro grimório impresso em língua inglesa e, embora tenha feito isso
para provar a inutilidade de seu conteúdo, sem querer acabou
democratizando a magia ritual, em vez de miná-la. […] James Sharpe
[historiador] descobriu evidências de que uma cunning woman possuía
uma cópia da obra, talvez a segunda ou a terceira edição, em 1687. […]
Numa época em que a alfabetização era relativamente rara e uma fonte
de poder em si mesma, simplesmente possuir um livro poderia
engrandecer a impressão que uma cunning woman ou um cunning man
poderia causar em seus clientes97 (DAVIES, 2013, p. 383 e p. 396).

96
No original: “Though Scot was not doing science, he and others like him were doing something extremely
important for the scientific enterprise. By banning spirits from the corporeal world they were reducing the
attractiveness of a "psychical investment" in a spiritual explanation and, conversely, increasing the value
of purely natural ones. They were creating for the European world a metaphysical environment in which
natural rather than supernatural explanations might triumph.”
97
No original: “large part of Scot’s strategy in the Discouerie was simply to describe at length beliefs and
stories relating to witchcraft and magic, in the (perhaps rather optimistic) hope that they would appear self-
evidently ridiculous once exposed to plain sight: “supposing that the citing of such absurdities may stand
for a sufficient confutation thereof”. […] Because Scot’s material was based on manuscript sources and
61

Tal prova de ter havido uma interpretação por oposição do texto de Scot interessa
de várias maneiras. Uma delas é demonstrar a agência de pessoas a quem pouco se atribui
arbítrio. Talvez acadêmicos e eruditos as considerassem estúpidas por não entenderem o
elevado grau de ironia no discurso. Aqui, se houve ou não entendimento da leitura
desejada por parte dessas audiências não importa; a construção do sentido se dá também
através da recepção, e a escolha deliberada de ler uma obra cética em relação à bruxaria
como um grimório (ou seja, um livro de feitiços), é uma forma de resistência aos discursos
dominantes. O narratário da obra é presumidamente culto, pois deve conseguir ler as
citações em latim e grego, e familiarizado com uma série de questões teológicas cujo
debate estava muito em voga à época. O enunciatário, entretanto, é diverso e amplia suas
possibilidades de significação. A ironia dessa leitura por oposição é que as mesmas
mulheres pelo autor retratadas como vítimas passivas, pouco aptas a falarem por si,
usarem a obra para seus próprios fins, contrariando as expectativas declaradas na
enunciação-enunciada.
Outro emprego inusitado desse tratado foi feito por dramaturgos, que encontraram
nele uma fonte do tipo de narrativas que Scot buscava descontruir. Com o ceticismo
crescente entre certas camadas da população e o sensacionalismo envolvendo histórias
populares de bruxaria, autores serviram-se do tratado e das crenças nele narradas
[recounted beliefs] para amplificar o efeito dramático em suas peças (PURKISS, 1996, p.
195 e p. 208).
No que tange à estrutura do tratado, The Discoverie of Witchcraft é dividido em
livros, por sua vez subdivididos em capítulos. Cada capítulo contém um breve resumo
acerca de seu conteúdo, quase como o atual lide jornalístico, seguido pela exposição dos
argumentos. O tom da enunciação é seco e ocasionalmente sarcástico, projetando o
enunciador como alguém que se preza por seu intelecto e se sente superior, nesse sentido,
àqueles a quem busca refutar.
A primeira frase abre a obra com uma acusação bastante direta às pessoas de seu
tempo: “as fábulas sobre bruxaria agarraram-se com tal força e criaram raízes tão
profundas no coração do homem que poucos ou nenhum conseguem (hoje em dia)

Continental Latin works, Scot was inadvertently making such material far more widely available for an
English audience. […] As Owen Davies explains it, […] Scot produced what amounted to the first grimoire
printed in the English language, and while he did so to prove the worthlessness of its contents he unwittingly
ended up democratizing ritual magic rather than undermining it. […] James Sharpe has uncovered evidence
of a cunning woman found owning a copy of the work, presumably the second or third edition, in 1687.
[…] In an age when literacy was relatively rare and a source of power in itself, simply owning a book could
enhance the impression a cunning man or woman made on his or her.”
62

suportar com paciência a mão corretiva de Deus”98 (SCOT, 1584, p. 1). Essa ideia será a
principal base de seu raciocínio: as pessoas não aguentam a merecida punição infligida
por Deus por causa de seus pecados e desejam atribuí-la a outras causas. E isso daria
ensejo às “fábulas” [fables] sobre bruxaria, já populares quando da escrita do tratado.
A escolha do termo transmite sua opinião de modo bastante calculado; as histórias
às quais se refere como “fábulas” não são peças teatrais, poemas ou narrativas orais de
cunho sabidamente ficcional, e sim relatos verídicos — conforme as crenças então
dominantes de casos de bruxaria, sejam vindos de pessoas presentes em julgamentos e/ou
execuções de bruxas, sejam feitos via panfletos ou sermões na celebração dominical. Ao
descrevê-los enquanto “fábulas”, o enunciado já lhes atribui uma carga de ficção que
originalmente não tinham.
Após uma declaração tão contundente, o enunciador prossegue:

Pois, se qualquer adversidade, pesar, doença, perda de filhos, milho,


gado ou da liberdade, lhes acontece, eles acabam culpando bruxas,
como se não houvesse um Deus de Israel que ordena todas as coisas
segundo sua vontade, punindo tanto os justos quanto os injustos com
pesares, pestes e aflições da maneira como lhe apraz, mas sim que certas
mulheres idosas aqui na terra, chamadas bruxas, têm de ser as
inventoras de todas as calamidades do homem, e como se eles próprios
fossem inocentes e não houvessem merecido tal punição99 (SCOT,
1665, p. 1).

O tom combativo é, sem dúvida, proposital, projetando o enunciador como um


cristão exemplar ao destacar a grandeza de Deus face à pequenez humana. “Certas
mulheres idosas” [certain old women] representam o lado humano nessa comparação de
poderes — além, é claro, de expressar vividamente sobre qual grupo demográfico o
estereótipo da bruxa se assenta. No entanto, o destaque a elas no lado insignificante da
balança busca expressar que seres tão frágeis não teriam condições de ser
responsabilizados por “todas as calamidades do homem” [all mens calamities], no caso,
as calamidades que atingem a humanidade.

98
No original: “The Fables of Witchcraft have taken so fast hold and deepe root in the heart of man, that
fewe or none can (now adaies) with patience indure the hand and correction of God.”
99
No original: “For if any adversity, grief, sickness, loss of children, corn, cattel, or liberty, happen unto
them; by and by they exclaim upon Witches: As though there were no God in Israel that ordereth all things
according to his will, punishing both just and unjust with griefs, plagues, and afflictions in manner and form
he thinketh good: but that certain old women here on earth, called Witches, must needs be the contrivers of
all mens calamities; and as though they themselves were innocents, and had deserved no such
punishments.”
63

Quem recebe as duras críticas do texto são as pessoas afeitas à noção da bruxaria
como explicação para suas mazelas, em “como se […] fossem inocentes e não houvessem
merecido tal punição” [as though they themselves were innocents, and had deserved no
such punishments]. Existe um oceano de contexto sob tal provocação; era costume tratar
as bruxas como instrumentos do Diabo, atuando com a permissão de Deus (exemplos
disso serão estudados nas próximas seções). Tais textos chegavam a fazer a concessão de
que elas estariam, embora inconscientes disso, exercendo a justiça divina para punir os
iníquos. Como nem todas as supostas vítimas de bruxaria estavam dispostas a se
considerarem parte deste último grupo, havia também outra explicação para Deus permitir
que um feitiço agisse contra alguém: estaria testando sua fé, como com Jó no Antigo
Testamento, algo que só faria aos mais leais dos fiéis. O livro bíblico de Jó é um “texto
fundacional” para os escritores ingleses que se dedicavam à bruxaria, por discutir o
sofrimento infligido por Deus (DAVIES, 2013, p. 385). Em suma, vítimas de bruxaria
ficavam de dois lados opostos da fé: ou ímpios a serem punidos ou cristãos exemplares a
serem testados. Por esse motivo, a construção narrativa do crime de bruxaria, tal como é
fornecida em panfletos e autos de processos, dá-se quase sempre exaltando a honestidade
das vítimas, às vezes pouco se atendo à bruxa em si.
Essa dualidade da bruxaria marca as diversas interpretações possíveis sob a ótica
da maioria da população — que acreditava em bruxas — e resolvia a questão, sempre
espinhosa, sobre onde estaria Deus quando o Diabo feria parcelas da humanidade. Como
disse Sydney Anglo, “a frase ‘com a permissão de Deus’ é recorrente ao longo do Malleus
e cada manual de caça às bruxas similar, como um espasmo involuntário afligindo os
autores sempre que fazem asserções inconsistentes, disparatadas ou impossíveis”100
(1992a, p. 21).
Isso decerto se aplica ao tratado Daemonologie, a ser analisado na próxima seção.
Embora Discoverie o anteceda em treze anos, a lógica que este procura combater já existia
desde antes, como a menção ao Malleus Maleficarum (1486) bem demonstra. O que está
em discussão, reitere-se, é a fé, quem melhor a defende e quem manifesta melhor suas
crenças (em última análise, quem acredita em Deus “do jeito certo”), no velho embate
socrático entre ser e parecer.

100
No original: “The phrase, 'with the permission of God', recurs throughout the Malleus, and every similar
witch-hunting manual, like an involuntary spasm afflicting authors whenever inconsistent, nonsensical, or
impossible assertions are made.”
64

A manipulação retórica de Scot visa a conquistar concordância dentro desse


contexto. Ao introduzir um dos maiores poderes atribuídos às bruxas — aquele sobre o
clima —, trata os defensores de tal ideia como “pessoas sem fé” [faithless people]:

Tais pessoas sem fé (eu digo) também estão persuadidas de que nem
granizo nem neve, nem trovão nem relâmpago, nem chuva nem
vendavais vêm dos céus por ordem de Deus, e sim são originados pela
astúcia e pelo poder de bruxas e conjuradores. Tão logo ouvem um
trovão ou uma ventania, ou correm para tocar sinos, ou gritam para
queimar bruxas, ou então queimam coisas consagradas, esperando com
a fumaça gerada afastar o Diabo do ar, como se fosse possível assustar
espíritos com tais jogos de aparências101 (SCOT, 1665, p. 1).

Existe boa dose de exagero na generalização; as pessoas possuíam uma ideia mais
ou menos delimitada de quais tipos de tempestades seriam causados por bruxas e quais
não. A intenção aqui, contudo, parece ser ridicularizar comportamentos supersticiosos,
ao mesmo tempo atribuindo aos espíritos um poder mais elevado, pois eles não seriam
afastados com tais “jogos” ou “brinquedos” [toies]. A expressão “de aparências”
[external] tem a função narrativa de explicitar a futilidade desses gestos, no sentido de
serem mais uma expressão da vontade de combater o mal do que um combate
propriamente dito.
Também é interessante a utilização da expressão “tais pessoas sem fé” [such
faithless people] para se referir àqueles que creem em bruxas. Ao longo da construção
retórica, primeiro tais pessoas eram más cristãs, incapazes de aceitar a verdade de Deus
desejar puni-las por algum motivo. Logo no parágrafo seguinte, estes se convertem em
gente sem fé, a quem talvez sequer se possa classificar como “cristã”. Note-se que, apesar
de citar a Bíblia, ele não menciona os versículos contendo as proibições relativas à
bruxaria.
O texto avança, enaltecendo o poder divino e discorrendo sobre como todos os
fenômenos da natureza são obra de Deus, segundo sua vontade [his will], expressão
bastante reiterada. Em seguida, ele propõe o desafio do empiricismo, mais adequado ao
fazer científico atual: “mas me deixe ver qualquer uma delas fazer recuar e imobilizar o

101
“Such faithless people (I say) are also perwaded, that neither hail nor snow, thunder nor lightning, rain
nor tempestuous winds, come from the Heavens at the commandement of God; but are raised by the cunning
and power of Witches and Conjurers; insomuch as a clap of thunder, or a gale of wind is no sooner heard,
but either they run to ring bells, or cry out to burn Witches; or else burn consecrated things, hoping by the
smoak thereof, to drive the Devil out of the air, as though spirits could be fraid away with such external
toies.”
65

mar em momentos de tempestade, como Cristo fez, ou dar origem a um vendaval, como
Deus fez com sua palavra, e eu acreditarei nelas”102 (SCOT, 1665, p. 2). Não se trata
meramente uma questão de ver para crer, como no célebre episódio bíblico de Tomé
quanto à ressurreição de Cristo; aqui, manifesta-se a disposição de acreditar em algo que
desafia toda a lógica somente mediante um testemunho em primeira mão. Em sua
concepção (conforme textualizada), a existência de Deus e seu poder não é questionável,
assim como os milagres de Jesus, por serem de origem divina. Porém, transferir a fé nesse
tipo de milagres para criaturas humanas, encontradas no cotidiano, seria contrariar a
ordem natural das coisas e, assim, a única maneira de aceitar tais fenômenos como
verdadeiros seria presenciar sua ocorrência. Afinal, ao se estabelecer que meros seres
terrenos pudessem partilhar da capacidade de executar feitos milagrosos, crentes em
bruxas estariam reduzindo o efeito de maravilhamento dos milagres de Jesus,
transformando-os em algo cotidiano.
A questão da grandeza divina face ao Diabo é bastante reforçada no texto; paira a
acusação contra quem acredita no poder das bruxas: “estes fazem do Diabo um Deus
completo, para criar coisas a partir do nada, conhecer as reflexões dos homens e fazer
aquilo que Deus nunca fez, isto é, transubstanciar homens em animais”103 (SCOT, 1665,
p. 2). Aqui, ele aborda algumas das capacidades comumente atribuídas às bruxas,
voltando a discussão ao eixo fundamental Deus versus Satã, aquilo a que todas as
polêmicas envolvendo bruxas se resumem, ao menos no plano das ideias. Assim, ele dirá
que se enforcarem ou queimarem todas as bruxas da Inglaterra, não choverá ou ventará
mais do que se todas as mulheres fossem bruxas e todos os sacerdotes, conjuradores, para
em seguida citar o profeta Davi: “nós mesmos somos as causas de nossas aflições” e, por
isso, “não acusemos bruxas quando deveríamos pedir a Deus misericórdia” (idem).
O capítulo II do primeiro livro discorre sobre um caso específico, a fim de ilustrar
seu argumento de que o clero tem uma visão enviesada da bruxaria e, por isso, está mais
propenso a acreditar nesses casos (algo descrito como “tolice ridícula e impiedade”
[ridiculous folly and impiety], cf. SCOT, 1665, p. 3). Para ele, é impossível conciliar a fé
cristã com a crença nos poderes das bruxas: os milagres de Cristo foram, afinal, sinais de
sua condição divina, pois o Diabo não teria o poder de “abrir os olhos dos cegos” e curar

102
No original: “But let me see any of them all rebuke and still the sea in time of tempest, as Christ did; or
raise the stormy wind, as God did with his word; and I will believe in them.”
103
“[…] these make the Devil a whole God, to create things of nothing, to know mens cogitations, and to
do that which God never did; as to transubstantiate men into beasts […].”
66

doenças. Ou seja, se uma bruxa de fato firmasse um pacto diabólico (a única maneira de
obter dotes mágicos), algo em que ele não se mostra inclinado a crer, ainda assim não
saberia/poderia agir do modo benéfico que lhes era às vezes imputado.
Scot então descreve sua investigação acerca de um caso que lhe chegou aos
ouvidos, envolvendo uma mulher chamada Margaret Simons e o vigário da paróquia da
região onde ela residia. O viés da narrativa deixa seu ponto de vista e sua parcialidade a
Simons bastante evidentes:

Certa Margaret Simons, esposa de John Simons de Brenchly, em


Kent, foi acusada de bruxaria pela incitação e queixas de diversas
pessoas crédulas e maliciosas, em especial por causa de certo John
Ferral, o vigário da paróquia, com quem conversei a respeito e o
descobri apaixonadamente crédulo em relação à causa e maldosamente
inclinado contra a mulher. E (o que é pior) tão incapaz de representar
bem sua fé quanto aquela a quem acusava. Aquilo que denunciou sobre
a pobre mulher é o que segue.
Seu filho (sendo um rapaz descortês […]) passou pela casa de
Simons um dia. Por acaso, o cachorro dela latiu para ele, ao que o rapaz,
ressentindo-se, puxou sua faca e o perseguiu até a porta da mulher. Ela
o repreendeu com palavras desdenhadas pelo rapaz, que por muito
tempo não se deixou persuadir a ir embora. Ele enfim voltou à casa de
seu mestre e dentro de cinco ou seis dias adoeceu. Então veio à mente
a briga entre o cachorro e o rapaz. Assim o vigário calculou (julgando-
se privilegiado, pois sequer suspeitava que Deus castigaria seus filhos
com doença), e descobriu — em parte através de seu próprio raciocínio
e em parte (segundo ele mesmo me contou) através do relato de outras
bruxas — que seu filho fora enfeitiçado. Sim, ele também me disse que
seu filho (estando além de qualquer cura) recebeu perfeita saúde das
mãos de outra bruxa104 (SCOT, 1665, p. 3, grifos meus).

O primeiro ponto a se ressaltar nessa passagem é a construção narrativa do caso,


pois ela alude a vários aspectos do contexto da enunciação e do fato narrado. O ponto de

104
No original: “one Margaret Simons, the wife of John Simons, of Brenchly in Kent, was arraigned for
witchcraft, at the instigation and complaint of divers fond and malicious persons; and specially by the
means of one John Ferral Vicar of that Parish: with whom I talked about that matter and found him both
fondly assotted in the cause, and enviously bent towards her: and (which is worse) as unable to make good
account of his faith, as she whom he accused. That which he, for his part, laid to the poor womans charge,
was this. § His son (being an ungracious boy […] passed on a day by her house; at whom by chance her
little Dog barked. Which thing the boy taking in evil part, drew his knife, and pursued him therewith even
to her door: whom she rebuked with some such words as the boy disdained, and yet nevertheless would not
be perswaded to depart in a long time. At the last he returned to his Masters house, and within five or six
days fell sick. Then was called to mind the fray betwixt the Dog and the Boy: insomuch as the Vicar (who
though himself so // priviledged, as he little mistrusted that God would visit his children with sickness) did
so calculate; as he found, partly through his own judgement, and partly (as he himself told me) by the
relation of other Witches, that his said son was by her bewitched. Yes, he also told me, that his son (being,
as it were, past all cure) received perfect health at the hands of another Witch.”
67

vista do narrador pende contra o filho do vigário, dita vítima de bruxaria, não só de modo
explícito, como se percebe pelo uso de “rapaz descortês” [ungracious boy], como
implícito: ao contrário do que veremos nos panfletos analisados na seção 3 do presente
capítulo, seu percurso não é descrito como o de alguém heroico ou honroso, nem é
contraposto a uma bruxa notória, uma mulher perversa e outros epítetos comuns a
acusadas de bruxaria. Pelo contrário, esse ungracious boy sacou uma faca à mera
provocação do latido de um cachorro, chegando a persegui-lo até a casa de sua dona, já
anteriormente apresentada num contexto familiar (ele menciona o nome de seu marido) e
local (referindo-se à sua paróquia, que ela frequenta, portanto colocando-a como cristã
estabelecida na comunidade), e referida como “pobre mulher” [poore woman].
Assim, a narrativa a estabelece no papel de vítima, tanto pelo comportamento rude
do rapaz quanto pelas acusações, em sua visão despropositadas, de bruxaria. O narrador
vai além: aponta a hipocrisia do vigário com um sarcástico “sim” ao introduzir a última
frase do trecho: a doença do rapaz fora tomada como grave a ponto de o terem
desenganado em “além de qualquer cura” [past all cure], mas outra bruxa lhe devolveu a
“perfeita saúde” [perfect health].
Como já apontado mais acima, o narrador já não se dispõe muito a acreditar no
poder das bruxas de causar doenças, quanto mais de curá-las (cf. SCOT, 1665, p. 3), uma
capacidade que sinalizava a origem divinal de Jesus. Ou seja, aponta-se o vigário como
anticristão, embora o termo não seja utilizado diretamente. Isso, é claro, não abranda o
efeito da frase: “E (o que é pior) [o vigário mostrou-se] tão incapaz de representar bem
sua fé quanto aquela a quem acusava” [and (which is worse) as unable to make good
account of his faith, as she whom he accused]. Segundo o entendimento calvinista, o
correto seria rezar pedindo a Deus ajuda ou perdão, até a doença passar (GASKILL, 2006)
— e, se um médico “de verdade” não pudesse ajudar, então era preciso aceitar a vontade
divina. Da parte das bruxas acusadas,

É fácil, na visão de Scot, enxergar como uma mulher idosa conseguiria


angariar a reputação para a maleficência. Geralmente, é pobre e
reduzida à mendicância; recusam-lhe caridade; ela amaldiçoa primeiro
um vizinho, depois outro; até, enfim, todos em algum momento terem
sido alvo de seu desprazer e suas imprecações. Alguém acaba doente,
então, ou morre; e é quando os ignorantes suspeitam de bruxaria e
recebem confirmação disso, na opinião de Scot, de médicos inábeis, que
utilizam a superstição como uma forma conveniente de esconder a
própria inaptidão. Atribuem-se outros infortúnios, de modo similar, a
essa pobre mulher; enquanto ela, por sua vez, vendo suas maldições
68

surtindo efeito, acredita ter de fato manipulado magia. Assim, para


Scot, esse tipo de bruxa é sempre uma vítima inocente das
circunstâncias e da superstição105 (ANGLO, 1992b, p. 147).

Os capítulos III e IV do Livro 1 do Discoverie discorrem exatamente sobre o


resumido acima, retomando alguns argumentos já analisados até aqui e alinhavando-os a
outros, contíguos. O texto permanece no mesmo tom indignado, fazendo uso de uma
ironia mordaz quando não ataca diretamente pessoas e obras, citados sempre
nominalmente.
O início do capítulo III, “quem são aquelas chamadas bruxas, com uma declaração
manifesta da causa que leva os homens a tão comumente pensarem, e as próprias bruxas
a acreditarem, que elas podem ferir crianças, gado etc. com palavras e imagens mentais;
e das bruxas charlatãs”106 (SCOT, 1665, p. 4), retoma muito do já dito anteriormente no
tratado, porém estendendo seus argumentos. O estereótipo da bruxa, tal qual Scot
descreve e busca negar, chegando a troçar da imagem a fim de ridicularizar quem nela
crê, é composto de um conjunto de características físicas somado a circunstâncias sociais
específicas, que por sua vez geram desconfiança e medo em vizinhos — pessoas de
reconhecida boa índole dentro da comunidade, cuja conduta servirá de parâmetro para
medir a anticonduta da bruxa.
Nas palavras do tratadista em análise,

Um tipo daquelas ditas bruxas são comumente mulheres velhas,


mancas, de olhos baços, pálidas, feias e enrugadas; pobres, carrancudas,
supersticiosas e papistas, ou aquelas que não seguem religião alguma,
em cujas mentes letárgicas o demônio pôs um fino medo, de forma que,
não importa qual a maldade, o azar, a calamidade, ou massacre
aconteça, elas são facilmente persuadidas de serem as responsáveis.
[…] São magras e deformadas, mostrando melancolia no rosto, para o
horror de todos os que as veem. São passionais, rabugentas, loucas,
diabólicas, e não diferem muito daqueles que se julgam estarem
possuídos por espíritos, tão firmes e resolutas em suas opiniões a ponto

105
“It is easy, in Scot’s view, to see how an old women [sic] might earn herself a reputation for maleficence.
She is usually poor and reduced to beggary; she is refused charity; she curses first one neighbour, and then
another; till, at length, everybody has at some time incurred her displeasure and imprecations. Eventually
somebody falls sick, or dies; whereupon the ignorant suspect witchcraft, and are confirmed in this opinion
by unskilful physicians who use superstition as a convenient cloak for their own ineptitude. Other
misfortunes are similarly laid at the poor woman’s door; while she, in turn, seeing her curses taking effect,
believes that she has indeed wrought magic. Thus, for Scot, this kind of witch is simply the innocent victim
of a chain of circumstances and superstition.”
106
No original: “who they be that are called Witches, with a manifest Declaration of the cause that moveth
mens o commonly to think, and Witches themselves to believe that They can hurt Children, Cattel, &c.
with words and imaginations; and of cosening Witches.’
69

de uma pessoa só precisar respeitar a constância de suas palavras para


facilmente acreditar que sejam de fato verdadeiras.
Essas infelizes desgraçadas são odiosas para todos os seus
vizinhos, e tão temidas que poucos ousam ofendê-las, ou negar-lhes
qualquer coisa que peçam, de modo que elas às vezes pensam poder
fazer coisas além da habilidade da natureza humana. Estas vão de casa
em casa, e de porta em porta, pedindo uma panela cheia de leite,
levedura, bebida, sopa ao algum outro remédio, sem o qual mal
conseguiriam sobreviver, não conseguindo sequer obter por seu
trabalho ou esforços, e menos ainda por seus artifícios ou pelas mãos
do Diabo (com quem dizem que elas fazem uma barganha
perfeitamente visível) nem beleza, dinheiro, status, riqueza, adoração,
prazer, honra, conhecimento, cultura ou qualquer outro benefício107
(SCOT, 1665, pp. 4-5).

Observemos como “supersticiosas” e “papistas” se justapõem a “aquelas que não


seguem nenhuma religião” [those who know no Religion]. Persiste o ataque enunciado ao
catolicismo, situado entre os campos da superstição ignorante e do ateísmo, postos como
dois extremos de uma balança da má moralidade. Ainda assim, não se pode deixar de
ressaltar o contexto da citação, na qual se está discorrendo sobre as características mais
comuns das bruxas, cuja existência o enunciador nega com veemência. Isto é, transparece
o desejo de dissociar mesmo as identidades mais criticáveis (supersticiosas, papistas e
irreligiosas) da figura da bruxa conforme se acreditava à época.
Sabemos tratar-se de uma perspectiva irônica porque, numa isotopia da crença em
bruxas, não faria sentido nem comparar estas (perpetradoras) aos possessos (vítimas),
nem apontar que o suposto pacto com o Diabo não traz nenhum benefício às primeiras.
Com isso, a natureza da mendicância das alegadas bruxas é realçada frente ao poder a
elas atribuído, que em nada melhora suas vidas, nem no campo prático do cotidiano, nem

107
No original: “One sort of such as are said Witches, are women which be commonly old, lame, blear-
eyed, pale, fowl, and full of wrinckles; poor, sullen, superstitious, and Papists; or such as know no Religion:
in whose drousie minds the Devil hath gotten a fine fear; so as, what mischief, mischance, calamity, or
slaughter is brought to pass, they are easily perswaded the same is done by themselves. […] They are lean
and deformed, shewing melancholy in their faces, to the horror of all that see them. They are doting, scolds,
mad, devillish, and not much differing from them that are thought to be possessed with spirits, so firm and
steadfast in their opinions, as whosoever shall only have to respect to the constancy of their words uttered,
would easily believe they were true indeed. § These miserable wretches are odious unto all their neighbours;
and so feared, as few dare offend them, or deny them any thing they ask: whereby they take upon them;
yea, and sometimes think, that they can do such things as are beyond the ability of humane nature. These
go from house to house, and from door to door for a pot full of milk, yest, drink, pottage, or some such
relief; without the which they could hardly live: neither obtaining for their service and pains, nor yet by
their art, nor yet at the Devils hands (with whom they are said to make a perfect and visible bargain) either
beauty, money, promotion, wealth, worship, pleasure, honour, knowledge, learning, or any other benefit
whatsoever.”
70

na esfera do transcendente, visto que se entregar ao Diabo resultaria na pena eterna do


fogo do Inferno.
A esse contraste que, para o enunciador, se coloca como autoevidente, soma-se a
alusão a Jean Bodin: “pois o próprio Bodin confessa que não mais de dois casos em cem
de suas bruxarias e augúrios têm efeito”108 (SCOT, 1665, p. 5). Ou seja, se até um
defensor ferrenho da existência das bruxas admite uma taxa de fracasso tão esmagadora,
deve-se considerar a possibilidade de haver algo errado na crença dominante.
Observemos que a descrição física ganha efeito disforizante ao ser justaposta aos
defeitos morais, ou talvez os reforce. Em termos de intelecto, o enunciado traduz uma
atitude condescendente do enunciador em relação à figura desse tipo de mulher, lido como
bruxa. A mesma condescendência estende-se aos “vizinhos”, tomados por tão tolos e
supersticiosos quanto a mulher que se crê capaz de possuir esse poder “além da habilidade
da natureza humana”. Reitera-se a situação de mendicância dessas pessoas como grade
de leitura de sua capacidade mental reduzida e então se retoma o tom sarcástico ao se
apontar que elas não obtêm absolutamente nada de valor na suposta barganha com o
Diabo, nem sequer para sobreviver, quanto mais para melhorar de vida. Assim, dentro
dessa lógica, o enunciador demonstra julgar insensato esse acordo, ainda que o cresse
possível de ser realizado.
Esse paternalismo que se quer benévolo visa a construir o enunciador como figura
de autoridade, dotada de senso, cultura e distanciamento suficientes para compadecer-se
e estabelecer a não-bruxa no papel temático de vítima social. Embora sexista em essência,
procurava fornecer uma saída alternativa à condenação daquelas que, ainda sob a égide
sexista de seu tempo, seriam interpretadas num papel menos inócuo e, portanto, digno de
perseguição.
Os demais livros do tratado dedicam-se à análise de casos específicos e a
desmontá-los retoricamente, à semelhança do episódio discutido mais acima. Os alegados
poderes das bruxas continuam a ser ironizados frente à evidência, à lógica e a essa nova
perspectiva narrativa para enredos cotidianos que, vistos sob um ponto de vista diferente,
dominante à época, trariam conclusões opostas. Passemos a como outros autores
enxergam as mesmas situações descritas por Scot.

108
No original: “for Bodin himself confesseth, that not above two in a hundred of their witchings and
wishings take effort.”
71

2.2. O rei James VI da Escócia e I da Inglaterra e sua Daemonologie


Como já demonstrado, o fortalecimento da ideia da bruxa como inimiga não se
restringiu aos reinos católicos109. Ela já era uma imagem presente quando do nascimento
do protestantismo. Entre 1563 e 1736, a bruxaria era um crime previsto na lei, punível
com sentença de morte.
Durante o reinado de Elizabeth I (1533-1603), houve perseguição a bruxas na
Inglaterra, em parte por causa dos grandes conflitos religiosos ocorridos na época. A
ansiedade em relação a “traidores papistas” — expressão pela qual protestantes se
referiam a católicos — coincidiu com uma onda de julgamentos de bruxas. Segundo
Gaskill, “a ameaça dos inimigos católicos de Elizabeth I, com frequência associada à
ameaça das bruxas (definidas como apóstatas, além de assassinas), intensificava-se”110
(2006, pp. 27-8). Se compararmos isso com a associação das bruxas aos judeus, nos reinos
católicos, fica bastante evidente o quanto a figura da bruxa servia principalmente para
encarnar os medos e ansiedades de cada população. Pouco importava, na Inglaterra, que
os católicos empreendessem violenta perseguição à bruxaria na Europa continental. Tidos
como inimigos, vilões de uma narrativa particular, eram acusados de idolatria e
facilmente associados a elas. Festas religiosas habitualmente católicas ou de configuração
semelhante, por exemplo, onde havia banquetes, comida e não raramente flerte (podendo
levar ao sexo fora do contexto matrimonial), condenadas pelas morais puritanas, seriam
associadas aos sabás por volta da década de 1630, já no reinado de Charles I (idem, pp.
44-5). A pena de morte para as bruxas, no entanto, é anterior, datando do reinado de
Henrique VIII, conforme descrito no trecho abaixo:

Antes da época do oitavo Henrique, a lei eclesiástica lidava com


feiticeiros, punindo-os como hereges. Além disso, parece que só se
reparava em seus supostos crimes, ao menos no mais das vezes, quando
se supunha que estes pudessem interferir em assuntos de Estado ou de
pessoas importantes, como nos casos de Joana D’Arc ou de Dame
Eleanor Cobham111. Mas em nome de Henrique, provavelmente como
uma extensão de ideias oriundas do continente, talvez ajudado por um
desejo de restringir o poder eclesiástico, foi aprovado o Ato c.8 do 33º
ano de seu reinado. Com ele, foi decretado que bruxas […] deveriam

109
Aqui nos atemos à Europa ocidental, mas vale lembrar que a figura da bruxa não é uma exclusividade
dessa região. Baba Yaga, por exemplo, é uma bruxa do folclore russo (cf. PROPP, 2010).
110
No original: “The threat of Elizabeth I’s Catholic enemies was often conflated with the witch-menace,
while word from the provinces indicated that fear of witches (defined as apostates as well as murderers)
was escalating”.
111
Foi amante e segunda esposa de Humphrey de Lancaster, Duque de Gloucester. Foi condenada por
necromancia usada para alta traição contra o rei Henrique VI, em 1441.
72

sofrer pena de morte, perda de terras e bens, como criminosas, e perder


os privilégios de confissão e de santuário. […] No quinto ano de
Elizabeth, o Parlamento, no capítulo doze, decretou que, por muitos
praticarem feitiçaria, causando a ruína de pessoas e seus bens, aqueles
que causassem morte deveriam sofrer o declarado pelo c.8 do 33º de
Henrique VIII, exceto que suas esposas e herdeiros não teriam seus
direitos afetados por tal perda de direitos civis” (NICHOLSON, pp.
xxxi, 1886)112.

A ideia de que as bruxas devem sofrer pena de morte já havia muito era associada,
em sermões e tratados, ao livro do Êxodo: “A feiticeira não deixarás viver” [Thou shalt
not suffer a witch to live] (22:18) (cf. GASKILL, 2006, pp. 25-6). Numa época em que
Estado e religião estavam indissociavelmente interligados, utilizar a Bíblia para justificar
decisões legais fazia parte do cotidiano.
James VI da Escócia113 (posteriormente, também coroado James I da Inglaterra,
em 1603, após a morte de Elizabeth I) escreveu o tratado The Trew Lawe of Free
Monarchies: or The Reciprock and mutuall duetie betwixt a free King and his naturall
Subjects (1598) [A verdadeira lei das monarquias livres ou o dever mútuo e recíproco
entre um rei livre e seus autênticos súditos], no qual propôs a doutrina do direito divino
dos reis (cf. JAMES, 2008), hoje logo associada ao absolutismo. A base de sua
argumentação é inteiramente bíblica, fazendo alusões a passagens do Velho Testamento
e considerando-as provas do apuro de suas ideias.
Julgando-se vítima de bruxaria, o rei escreveu também o tratado Daemonologie
para reafirmar o poder das bruxas e intensificar a perseguição contra elas, embora existam
argumentos de que ele mesmo não poderia ser culpado pelas perseguições: “uma
verificação mais detalhada do histórico de James em instância de bruxaria, enquanto rei
da Inglaterra, revela que sua atitude estava bem distante da propensão à raivosa caça às

112
“Before the time of the eighth Henry, sorcerers were dealt with by the ecclesiastical law, which punished
them as heretics. Moreover, their supposed offences against the person seem, chiefly at least, to have been
taken notice of when they were supposed to interfere with high or state matters or persons, as in the cases
of Joan of Arc or Dame Eleanor Cobham. But in Henry’s name, probably through the extension of
continental ideas, aided, it may be, by a desire to restrain ecclesiastical power, c. 8 of the thirty-third year
of his reign was passed. By this, it was enacted that witches […] should suffer death and loss of lands and
goods, as felons, and lose the privileges of clergy and sanctuary. […] In the fifth year of Elizabeth, the
Parliament, by its twelfth chapter, enacted, that whereas many have practised sorceries to the destruction
of people and their goods, those that cause death shall suffer as was declared by 33 Henry VIII, c. 8, except
that their wives and heirs shall not have their rights affected by such attainder”.
113
É bastante citado ainda hoje, por ter sido quem encomendou e patrocinou uma importante tradução da
Bíblia, conhecida como a King James Bible (1611), na qual, aliás, consta o versículo supracitado sobre a
bruxa.
73

bruxas que lhe foi atribuída” (SHARPE, 1999, p. 178)114. Os historiadores têm revisado
o exato papel de James nos processos, pois não só ocorriam antes de seu reinado, como
se tornaram muito piores após sua morte (cf. GASKILL, 2006).

Figura 3: Frontispício de Daemonologie, edição original de 1597, disponível no site da British Library

O tratado, publicado pela primeira vez na Escócia em 1597, recebeu edição inglesa
em 1603, quando da ascensão de James ao trono da Inglaterra. Postula-se que tenha
começado a escrever a obra durante os julgamentos de North Berwick, ocorridos no início
da década de 1590, nos quais o então rei da Escócia esteve bastante envolvido115. A
publicação na verdade marca o fim do longo episódio, “com James dissolvendo todas as
comissões permanentes para julgamentos de bruxaria em agosto de 1597, poucos meses
após o livro ter sido lançado em Edimburgo”116 (NEWTON, 2002, p. 274). Não obstante,

114
No original: “a closer examination of James's track-record in instances of witchcraft while king of
England reveals that his attitudes were far removed from the propensity for rabid witch-hunting that has
been attributed to him.”
115
Em 1590, quando James estava a caminho da Noruega para encontrar sua noiva, Anne da Dinamarca,
na Noruega, enfrentou violentas tempestades em alto-mar. O navio dela, ao tentar alcançar a Escócia, já
havia sofrido com igual tipo de severos temporais, e o mesmo aconteceu quando os dois voltavam juntos
para Edimburgo, seis meses depois. Uma serva confessou ter sido autora do ataque e acusou algumas
mulheres de conspirarem contra o rei (cf. GELLER, pp. 6-7).
116
No original: “with James disbanding all the standing commissions to try witchcraft in August 1597, only
a few months after the book was published in Edinburgh.”
74

por ocasião da coroação de James como sucessor de Elizabeth I, tornou-se leitura


obrigatória “não apenas para o clero, mas para qualquer um interessado na mente do novo
monarca, o que naturalmente incluía a pequena nobreza de onde saíam os magistrados”117
(GASKILL, 2006, p. 30). Por outro lado, é preciso mencionar que James I também
gostava de expor fraudes, e chegou a punir dois juízes por executarem nove bruxas em
Leicester em 1616, o que diminuiu o número de condenações (idem).
A importância de Daemonologie, assim, é mais circunstancial do que imanente,
pois,
Como não é nem original nem profundo, sua significância, na
anonimidade, estaria apenas em se tratar da primeira defesa de crenças
continentais sobre bruxaria em língua inglesa. Mas, como a obra de
James I, [o tratado] possui um significado e interesse adicionais,
incomuns na literatura de demonologia. Foi o único livro do tipo escrito
por um monarca, naturalmente alguém com enorme potencial de
influência sobre a incidência e a severidade das perseguições. Na
verdade, há bastante evidências do envolvimento pessoal de James;
pode-se reconstituir as origens de Daemonologie ao seu papel em trazer
as bruxas de North Berwick à justiça em Edimburgo em 1590-1118
(CLARK, 1992, p. 188).

As crenças “continentais” mencionadas pelo pesquisador referem-se


principalmente à ideia da bruxa satânica e seu pacto com o Diabo, suscitadas e
fundamentadas dentro do catolicismo ao qual o rei e a maioria da população, tanto inglesa
quanto escocesa, se opunham na época. Não obstante, no caso da perseguição às bruxas,
havia ampla concordância entre esses firmes opositores, exceto quando uma religião
acusava a adversária de bruxaria.
Comecemos nossa análise a partir da construção do ethos do enunciador,
sobreposto à figura de James VI & I. Ele se coloca como autoridade no assunto, na
qualidade de rei e de vítima de bruxaria, mas também de erudito e estudioso do tema. Sua
postura já se mostra no prefácio do texto:

117
No original: “it [the tract] became required reading not just for clergyman but for anyone interested in
the mind of England's new monarch; naturally this included the gentry from whom the magistracy was
drawn.”
118
No original: “Since its neither original nor profound, its significance, in anonymity, would lie only in
being one of the first defences of Continental beliefs about witchcraft in English. But as the work of James
I it possesses quite unusual additional meaning and interest in the literature of demonology. It was the only
book of its kind written by a monarch, naturally someone with enormous potential influence over the
incidence and severity of prosecution. In fact, there is a good deal of evidence of James's personal
involvement; and the origins of the Daemonologie can be traced to his part in bringing the witches of North
Berwick to trial in Edinburgh in 1590-1.”
75

A temerosa abundância dessas detestáveis escravas do Diabo, neste


país, fez-me (amado leitor) publicar o seguinte tratado de minha autoria,
de nenhum modo (segundo atesto) com o propósito de exibir minha
erudição e engenhosidade, mas apenas para (movido pela consciência),
dessa maneira, o melhor que puder, dirimir as dúvidas no coração de
muitos, tanto no sentido de que os ataques de Satã são de fato
realizados, quanto no de que seus instrumentos merecem ser
severamente punidos. Oponho-me às execráveis opiniões de
principalmente duas pessoas de nossa era, uma das quais se chama
Scot119, um inglês, que não tem vergonha de publicar um livro negando
a existência da bruxaria, assim cometendo o mesmo erro dos saduceus,
ao negar os espíritos. […] Minha intenção com este trabalho é apenas
provar duas coisas, como já disse: a primeira, que tais artes demoníacas
existiam e existem. A outra, o tipo exato de julgamento e de punição
severa que elas merecem. Assim sendo, argumento o tipo de coisas que
essas artes possibilitam levar a cabo, e quais causas naturais permitem
sua existência. Não que eu toque cada particularidade do poder do
Diabo, pois é infinito […] (JAMES I, 1597, pp. 1-5, grifos meus)120.

O tom do texto oscila entre a calculada (falsa) modéstia e a asserção de


superioridade. Essa conclusão se baseia no fato de o texto transmitir muita segurança: ele
vai ensinar o que sabe — não planeja convencer, mas “dirimir as dúvidas no coração de
muitos” [to resolve the doubting hart of many], atesta que os instrumentos do Diabo
“merecem ser severamente punidos” [merits most severly to be punished], pondo-se na
posição de juiz; a intenção de seu trabalho é “provar” a existência de bruxas e o tipo de
punição que elas merecem. Não existe nenhum atenuante como “na minha opinião” ou
similares; seu ponto de vista se impõe como lei, verdade. James parecia se orgulhar de
sua erudição; não só fazia questão de referenciar muitos autores e obras em seus tratados
e cartas, como interferia em julgamentos, já mais ao fim de seu reinado, para indicar
falhas, enganos, testemunhos mentirosos etc.

119
Na versão original, os nomes aparecem com todas as letras maiúsculas. Optei por deixá-los na nossa
formatação habitual porque os leríamos com um destaque indevido.
120
“The fearefull aboundinge at this time in this countrie, of these detestable slaves of the Devill, the
Witches or enchaunters, hath moved me (beloved reader) to dispatch in post, this following treatise of mine,
not in any wise (as I protest) to serve for a shew of my learning & ingine, but onely (mooved of conscience)
to preasse thereby, so farre as I can, to resolve the doubting harts of many; both that such assaultes of Sathan
are most certainly practized, & that the instrumentes thereof, merits most severly to be punished: against
the damnable opinions of two principally in our age, wherof the one called SCOT an Englishman, is not
ashamed in publike print to deny, that ther can be such a thing as Witch-craft: and so mainteines the old
error of the Sadducees, in denying of spirits. […] My intention in this labour, is only to prove two things,
as I have alreadie said: the one, that such divelish artes have bene and are. The other, what exact trial and
severe punishment they merite: & therefore reason I, what kinde of things are possible to be performed in
these arts, & by what naturall causes they may be, not that I touch every particular thing of the Devils
power, for that were infinite […]”. Note-se que na transcrição do original foram adaptados para a grafia
atual os “s” alongados, os “v” e “u”.
76

Esse comportamento condiz com a falsa modéstia demonstrada nas primeiras


linhas de seu prólogo: “de nenhum modo (segundo atesto) com o propósito de exibir
minha erudição e inteligência” [not in any wise (as I protest) to serve for a shew of my
learning & ingine]. Essa construção frasal não permite debater a existência de sua alegada
erudição e inteligência; são indubitáveis fatos dados. O aposto contido nos parênteses
reforça a ideia da sua não intenção de se exibir, provocando efeito inverso, na medida em
que ele se reafirma como autoridade para declarar o que é “verdade”. Em outros tipos de
texto, um aposto como esse teria o propósito de resguardar o enunciador: “segundo
atesto” poderia traduzir um desejo de explicitar as tendências parciais do texto. Porém,
não parece ser o caso aqui; antes, demonstra uma retomada do “eu”, assinado ao fim do
prólogo: James R., King of Scotts. Embora o enunciador, conforme colocado na
enunciação-enunciada, seja sempre o mesmo, pois não concedeu voz ao texto de terceiro
algum, ele ainda sentiu necessidade de reiterar-se enquanto autor, trazendo, com isso, o
peso de seu status — de sua coroa — ao escrito.
O terceiro parêntese do trecho é outro aposto cujo efeito de sentido reafirma sua
posição: ao declarar suas intenções com a publicação do tratado, alega ter sido “movido
pela consciência” [mooved of conscience] a dirimir as supostas dúvidas de muitos quanto
à bruxaria. Coloca-se, com isso, de maneira condescendente, como uma espécie de pai na
posição de educar os filhos iletrados, ou de um deus ensinando seus fiéis — duas imagens
que transparecem de seu já referido ensaio The Trew Lawe… (1598), sobre suas teorias
acerca da realeza e a obrigação que o rei tem para com seus súditos e que estes têm para
com ele.
Sua posição também se reforça com sua nada comedida menção à obra de
Reginald Scot, The Discoverie of Witchcraft (1584), da qual trata a seção anterior:
“Oponho-me às execráveis opiniões de principalmente duas pessoas de nossa era, uma
das quais se chama Scot, um inglês, que não tem vergonha de publicar um livro negando
a existência da bruxaria, assim cometendo o mesmo erro dos saduceus” [against the
damnable opinions of two principally in our age, wherof the one called SCOT an
Englishman, is not ashamed in publike print to deny, that ther can be such a thing as
Witch-craft: and so mainteines the old error of the Sadducees] (grifos meus). Em primeiro
lugar, James se coloca como superior a Scot e ao outro tratadista que ele visa a rebater
em Daemonologie, Wierus (ou Weyer), ao se referir a seus trabalhos como “opinião”.
James pretende explicar por que a opinião dos outros dois está errada — ele sabe,
enquanto os outros meramente creem; não pretende debater, argumentar, convencer. Não
77

é que se julgue apenas correto: está defendendo a verdade. Inclusive se ampara na Bíblia
ao mencionar o “erro dos saduceus” (At 23:8), sendo o texto religioso o único argumento
de autoridade acima de sua palavra, por conter, segundo o entendimento cristão, a palavra
de Deus, o único a quem o rei deve responder (cf. JAMES, 2008).
Além disso, as opiniões “execráveis” têm um peso muito mais forte em inglês121:
damnable compreende esse significado, mas é bem mais expressivo, na conjuntura da
época, por seu radical damn, de damnation (danação). As opiniões de Scot e Weyer são,
portanto, classificadas como potencialmente amaldiçoadas ou “amaldiçoáveis”, no
sentido de poderem levar à perdição.
Diante disso, não é estranho o tom de censura de James, parecendo repreender
Scot, do alto de seu posto, pela alegada falta de vergonha em não apenas ter uma opinião
como essa, como por publicá-la e, com isso, suscitar ou alimentar as já comentadas
“dúvidas no coração de muitos”. Ter suas opiniões tachadas de damnable tornaria Scot e
Weyer pecadores. James, no entanto, não parece tratar Scot como um criminoso, ou uma
pessoa mal-intencionada, e sim como alguém menor, menos instruído, merecedor uma
reprimenda por veicular seu “erro” em meio impresso.
Após oferecer suas breves críticas a Scot e Weyer, a desculpa para a publicação,
apesar de aparentemente não dignos o bastante de serem extensamente discutidos, James
passa a justificar a escolha da forma de diálogo — “para tornar este tratado mais agradável
e fácil” [for to make this treatise the more pleasant and facill] — e explica o conteúdo
dos três livros nos quais o dividiu. Reforça uma vez mais sua superioridade de erudição,
ao declarar suas pretensões de tornar o tratado mais acessível, com alegado esforço
consciente de facilitar a leitura e, portanto, o aprendizado de seu beloved reader —
vocativo retomado nas linhas finais do prólogo.
O formato de diálogo também remete a Platão, cujas obras trazem a sabedoria de
seu professor, Sócrates, lecionando assuntos diversos. Os pensamentos de James aqui
serão veiculados através da personagem Epistemon, quem vai esclarecer as dúvidas de
Philomathes — este, representando o narratário, alguém provavelmente instruído e
benevolente, mas não tão erudito quanto seu interlocutor, e afligido por dúvidas quanto à
existência de bruxas e como é possível elas operarem no mundo natural. Epistemon, num
papel semelhante ao de Sócrates nos diálogos de Platão, ao servir de ferramenta para as

121
Não encontrei ainda um adjetivo adequado para traduzir damnable. Nenhuma das traduções da palavra
consegue conter o aspecto religioso de seu significado, no português brasileiro atual.
78

elucubrações do rei, também se eleva à qualidade de sábio, e reafirma sua “erudição e


inteligência”.
Ao final do prólogo, James declara: “E, por desejar que meus esforços neste
tratado (amado leitor) sejam eficazes em prevenir todos os seus leitores contra os erros
acima mencionados, e recomendando minha boa vontade à vossa amigável aceitação,
desejo-vos de todo coração passar bem”122 (JAMES, 1597, p. 5). Seu expresso desejo pela
eficácia do tratado contra os erros bem poderia ter valor de um édito.
Por fim, gostaria de chamar atenção para mais uma característica do texto: o
narratário é masculino. Nas últimas duas páginas do prólogo, quando menciona assuntos
dos quais não vai tratar, James indica alguns livros e autores para saciar a curiosidade do
leitor:
O curioso acerca de tais assuntos pode ler, se desejar saber sobre
essas práticas, Daemonomanie [Demonomania], de Bodinus, reunidas
com toda a diligência e escritas com discernimento, incluindo
confissões das bruxas apreendidas à época.
Se o leitor desejar conhecer qual terá sido a opinião dos antigos a
respeito do poder das bruxas, poderá encontrá-la bem descrita por
Hyperius e Hemmingius, dois escritores germânicos já falecidos, além
de inúmeros outros teólogos neotéricos, que escrevem amplamente
sobre o assunto. Se o leitor desejar ainda conhecer quais os ritos
específicos e outras curiosidades a respeito dessas artes negras (o que é
tanto desnecessário quanto perigoso), encontrará tal conteúdo no quarto
livro de Cornelius Agrippa e em Wierus123, a quem já me referi124
(JAMES, 1597, pp. 4-5).

No texto original, são usados seis vezes o pronome he para determinar um who,
que traduzi respectivamente como “o leitor” e “o curioso”. Talvez James presuma que
seu enunciatário seja do sexo masculino, talvez o direcione assim. De todo modo, não

122
No original: “And so wishing my pains in this Treatise (beloved reader) to be effectual, in arming al
them that reades the same, against these above mentioned erroures, and recommending my good will to thy
friendly acceptation, I bid thee hartely fare-well.”
123
Bodinus é a versão latinizada do nome de Jean Bodin (1530-1596), jurista francês e filósofo político,
além de demonologista. Andreas Gerhard Hyperius (1511–1564), cujo real nome era Andreas Gheeraerdts,
foi um teólogo luterano, professor de teologia em Marburg, atual Alemanha. Niels Hemmingsen era o nome
do teólogo dinamarquês de vertente luterana Nicolaus Hemmingius (1513-1600). Heinrich Cornelius
Agrippa von Nettesheim (1486-1535) era um intelectual alemão, e Johann Weyer (1515-1588), aqui
chamado Wierus, seu seguidor, era um médico holandês, ocultista e demonologista.
124
No original: “and who likes to be curious in these thinges, he may reade, if he will here of their practises,
BODINUS Dæmonomanie, collected with greater diligence, then written with judgement, together with
their confessions, that have bene at this time apprehened. If he would know what hath bene the opinion of
the Auncientes, concerning their power: he shall see it wel descrybed by HYPERIUS, & HEMMINGIuS,
that writes largelie upon that subject: And if he woulde knowe what are the particuler rites, & curiosities os
these black arts (which is both unnecessarie and perilous,) he will finde it in the fourth booke of
CORNELIUS Agrippa, and in WIERUS, whomof I spak.”
79

parece achar (ou querer) que mulheres se interessem pelas questões da demonologia, em
geral, e da bruxaria, em particular. A esfera do ensino erudito, na época, na qual
aconteciam discussões teológicas e políticas, era masculina.
Quanto às características formais, o texto apresenta intensa repetição de
argumentos e expressões. Entre estes, o verbo “provar” [prove/ proove] aparece 23 vezes
para definir o alegado efeito da argumentação retórica baseada na citação de passagens
bíblicas, uma média de um pouco mais de uma a cada quatro páginas, excluindo-se as
utilizações com outros contextos e da forma substantiva proof. No mesmo sentido, utiliza
“mostrar” [show/ shew], que, apesar de menos enfático, dificilmente deixa espaço para
questionamentos. Há ainda alguns usos de confirm e certify para esse propósito.
O tratado também recorre múltiplas vezes ao senso comum, à sabedoria popular e
à experiência cotidiana [daily experience] quando as Escrituras parecem não resolver
determinada questão. Expressões com essa finalidade ocorrem pelo menos 18 vezes ao
longo do texto, estabelecendo um diálogo ao apelar para um suposto conhecimento
compartilhado. Por exemplo, quando a personagem Epistemon argumenta em favor da
existência de bruxas: “[…] existiram e existem; a primeira afirmação é claramente
provada pelas Escrituras, e a última, pela experiência cotidiana e por confissões”125
(JAMES, 1597, p. 2). Alegações do tipo povoam toda a obra, amparando as explicações
de seu sábio, cujo papel consiste em esclarecer dúvidas e refutar os argumentos de
Philomathes. Este último encarna, como um amigo de Epistemon, tanto aqueles contrários
a James quanto pessoas genuinamente interessadas em “entender” as questões discutidas
no tratado. Vejamos mais um exemplo:

PHI. Certamente você me falou bastante sobre essa arte, se tudo o que
você alegou for tão verdadeiro quanto é espantoso.
EPI. Quanto à veracidade de tais ações, será facilmente confirmada a
qualquer um que se dê ao trabalho de ler os diversos depoimentos
autênticos e de inquirir sobre a experiência cotidiana das pessoas126
(JAMES, 1597, p. 23).

125
“No original: “wichcraft, and Witches have bene, and are, the former part is clearelie proved by the
Scriptures, and the last by dailie experience and confessions.”
126
No original: “PHI. Surelie ye have said much to me in this arte, if all that ye have said be as true as
wounderfull. / EPI. For the trueth in these actiones, it will be easelie confirmed, to anie that pleases to take
paine upon the reading of diverse authenticque histories, and the inquiring of dailiy experiences.” É preciso
comentar a dificuldade de tradução deste texto como um todo. Fora a pontuação caótica, algumas palavras
mudaram de sentido, ou o significado por extensão (ou figurado) atualmente prevalece sobre o original,
tanto em inglês quanto em português. Arte, por exemplo, ou art, na grafia atual, designa tanto o que hoje
entendemos por tal quanto compõe palavras como “artifício” ou “artimanha”, acepção que, aliás, ainda é
válida até hoje. Inclusive usei a primeira numa tradução de Jane Austen para o vocábulo arts. Esse
movimento acontece nas duas línguas. Aqui optei por manter “arte”, pois preserva a atmosfera epocal e é
80

Após essa introdução, Epistemon discorre sobre as formas de fazer um pacto, a


serem comentadas mais adiante. No trecho acima, Philomathes interpreta o cético, para
dar a seu interlocutor a oportunidade de convencê-lo e, com isso, o enunciatário. O fato
de Epistemon recorrer a três itens que na atualidade não poderiam ser considerados prova
cabal de afirmação alguma nos remete de volta à discussão sobre a construção do
imaginário e da “verdade”, filtrada pelas crenças e pelo sistema de pensamento de uma
sociedade. As Escrituras poderem embasar uma argumentação lógica era uma obviedade,
integrante do raciocínio intelectual da época. Do mesmo modo, as referências à daily
experience se baseiam em algo compartilhado que não nos é mais acessível e só podemos
supor, a partir de relatos e obras artísticas, sem compreender completamente seu
mecanismo127.
Um segundo exemplo sobre esse recurso retórico em Daemonologie está numa
referência de Philomates a algo que consta em Scot e, principalmente, em Weyer: “Como
você avalia a prática cotidiana e a confissão de tantos, que se pensa serem apenas a
imaginação melancólica de delirantes criaturas simplórias?”128 (idem, p. 28). O trecho
reproduz o pensamento dos autores aos quais James se opõe, de que tanto o testemunho
quanto a confissão de bruxaria seriam frutos de um delírio de pessoas pobres, famintas e
senis, sofrendo de melancolia. A resposta de Epistemon a isso consiste em comparar
engenhosamente pacientes de melancolia a réus por bruxaria:

mais fiel ao original. Diferente dos outros trechos em que o termo aparece, neste o Prof. John Corbett
apontou a possibilidade de que, nesse caso, “arte” seja uma palavra escocesa (fato que talvez não fosse
percebido pelo leitor inglês à época), sinônima de direction. Dentro dessa possibilidade, eu traduziria a
passagem como “você certamente me falou bastante nesse sentido […]”. Quanto à atualização dos campos
semânticos das palavras empregadas, o movimento de “arte” não se repetiu com wounderfull. A princípio
um termo neutro para descrever algo sobrenatural, mágico, dificilmente crível (e ainda o era em 1900,
quando do lançamento de The Wonderful Wizard of Oz, de L. Frank Baum, primeiro volume da série
“Mundo de Oz”, que também traduzi), aos poucos tornou-se um adjetivo elogioso, igual ocorreu com sua
tradução mais canônica para o português, “maravilhoso”. Não a utilizei aqui porque ela hoje se encontra
quase esvaziada desse sentido, tendo uma carga positiva demais para o presente contexto (exceto na teoria
todoroviana do fantástico e dos estudos de Propp, cujo público conhecedor é mais restrito). Opções de
tradução como “incrível” têm o mesmo problema: na raiz, o termo significa “não crível”, porém hoje
assumiu a positiva faceta de um elogio. Escolhi, assim, “espantoso”, embora a considere uma palavra fraca
e não muito precisa, porque traduz suficiente neutralidade, admiração e incredulidade.
127
Muitas pesquisas contemporâneas, em particular nas humanidades, partem de fatos sociais observados,
os quais são estudados como fenômenos segundo nossos atuais métodos científicos. Embora trabalhem com
vasta documentação e afins, também apresentam, em algum nível, algo da experiência cotidiana, a cujo
mecanismo estudiosos daqui a quinhentos anos podem não ter acesso, pois é tão nítido para alguém de
nossa época que não sentimos necessidade de registrar em pormenor. Por exemplo, questões envolvendo a
internet, a comunicação midiática, a vida em grandes centros urbanos etc., cujo funcionamento nos é
natural, por estarmos inseridos no meio, mas pode não ser no futuro, mesmo com todas as formas de registro
disponíveis.
128
No original: “where ye would oppone the dailie practicque, & confession of so manie, that is thought
likewise to be but verie melancholicque imaginations of simple raving creatures.”
81

Qualquer um que deseje alegar o humor natural da melancolia, de


acordo com todos os médicos que já escreveram sobre isso, descobrirá
que esta é uma capa curta demais para ocultar sua velhacaria; o humor
da melancolia é negro, pesado e terreno, assim como seus sintomas em
qualquer pessoa a sofrê-lo: magreza, palidez, desejo de solidão. Se
chegam ao seu nível mais alto, franca loucura e mania. Por outro lado,
um grande número de réus condenados ou confessos por bruxaria —
como se pode ver nos muitos que confessaram ultimamente — são o
oposto, digo: alguns são ricos e espertos, alguns gordos e corpulentos,
e a maioria se entregou completamente aos prazeres da carne, em
contínua busca por companhia e por todo o tipo de diversões, tanto
legais quanto ilegais129 (1597, pp. 29-30).

Como observamos, as características da condição melancólica são descritas


referenciando o contundente apoio de “todos os médicos” [all the Physicians], dando a
entender que a personagem (e, talvez, seu autor) leu todos, embora, é claro, esse trecho
também possa ser interpretado como uma hipérbole. Já em relação à bruxaria, a
experiência cotidiana compartilhada é evocada130. Mais adiante comentaremos os
problemas das referidas confissões, mas, por ora, parece um raciocínio bastante lógico,
para a época. Conforme já discutimos, boa parte do que sabemos vem de relatos de
terceiros a quem atribuímos algum crédito.
A essa linha de argumentação junta-se outro dispositivo retórico muito utilizado
na obra. Em onze diferentes momentos, Epistemon declara que uma pessoa deve
concordar com determinada proposição por ser cristã, ou faz outras construções frasais
com efeito de sentido similar, como um adento casual do tipo: “coisa x é assim, como
qualquer (bom) cristão sabe”. Ao recorrer ao livro de Jeremias para condenar a astrologia
(diferenciada da astronomia), por exemplo, Epistemon alude às Escrituras incluindo o
seguinte aposto, trazido entre parênteses: “que deve ser uma base infalível a todos os
verdadeiros cristãos” [which must be infallible ground to all true Christians] (JAMES,

129
No original: “Anie that pleases Physicallie to consider upon the natural humour of melancholie,
according to all the Physicians, that ever writ thereupon, they sall finde that that will be over short a cloak
to cover their knavery with: For as the humor of Melancholie in the selfe is blacke, heavie and terrene, so
are the symptomes thereof, in any person that are subject thereunto, leannes, palenes, desire of solitude:
and if they come to the highest degree thereof, mere folie and Manie: where as by the contrarie, a great
nomber of them that ever have bene convict or confessor of Witchcraft, as may be presently seene by manie
that have at this time confessed: they are by the contrarie, I say, some of them rich and worldly-wise, some
of them fatte or corpulent in their bodies, and most part of them altogether given over to the pleasures of
the flesh, continual haunting of companie, and all kind of merrines, both lawfull and unlawfull.”
130
É importante ressaltar, no entanto, que a suposta entrega “aos prazeres da carne” dos réus confessos,
alguns dos quais descritos como “ricos e espertos” ou “gordos e corpulentos”, vai na contramão do
estereótipo mais corrente da bruxa. Aqui, essa afirmação talvez refira-se à ideia de que a busca por coisas
mundanas está mais associada ao eixo do diabólico do que do divino.
82

1597, p. 14). Implícita está a ideia de que, se você não toma a Bíblia por base de tudo,
não é um cristão “verdadeiro”, algo passível de austeras sanções numa Escócia e,
posteriormente, numa Inglaterra, divididas entre “traidores papistas” e “eleitos”.
Em outro ponto do texto, ao professar o quanto os feitos do Diabo são ilusórios e
enganosos, Epistemon afirma: “E o que Cristo ou os profetas fizeram miraculosamente
nesse caso [ressuscitar os mortos], não pode, na opinião de nenhum homem cristão, ser
posto em comum com o Diabo” (idem, p. 41). Essa declaração segue-se a uma longa
explicação sobre como seria impossível o espírito de uma bruxa deixar o corpo para ir a
outro lugar, posto que isso seria a definição de morte natural, e o Diabo não tem poder de
ressuscitar os mortos, apenas de possuir um corpo morto para fingir sua ressurreição. A
julgar pelo texto, o fato é tão óbvio, tão incontestável, que dispensa maiores discussões
sobre o assunto: se Cristo faz alguma coisa, o Diabo não consegue fazer igual, e qualquer
cristão tem a obrigação moral de acreditar nisso131.
Nesse sentido, podemos dizer que Daemonologie é, antes de tudo, uma discussão
filosófica sobre os poderes e limitações do Diabo. Isso porque não admite nenhuma real
forma de magia de autoria de uma bruxa; é sempre o Diabo, um demônio ou um mau
espírito quem realiza o feito sobrenatural. A bruxa, feiticeira, mago ou necromante tem,
no máximo, a intenção de causar mal — que o Diabo levará a cabo com prazer, sendo tão
afeito à maldade.
Sua primeira característica é ser o rebelde carrasco de Deus e também seu imitador
(OLDRIDGE, 2012, pp. 2-3). É possível encontrar marcas disso no tratado. Mais citado
do que qualquer assunto, o Diabo é referido como “o pai da mentira” e o grande adversário
de Deus, mas também o relutante executor da vontade divina, no que tange à punição.
Paradoxalmente, embora seja o anjo caído e aparentemente se sinta compelido a causar
todo o tipo de miséria humana, só pode atuar com a permissão do criador. Ao longo do
texto, essa permissão é citada 24 vezes, em praticamente todas as argumentações
envolvendo o poder do Diabo e dos maus espíritos sobre a natureza e humanidade, além
de quando é mencionado seu relacionamento com as bruxas.
Em resumo, a discussão é a mesma da qual falamos no capítulo anterior: o Diabo
serve para eximir Deus da culpa do mal no mundo, podendo criar ilusões as mais diversas,
aparecer como um anjo de luz (JAMES, 1597, p. 4), possuir corpos de pessoas mortas

131
Interessante notar que essa é a exata posição de Reginald Scot sobre o assunto. Aqui, notamos a
importância da escolha ideológica do argumento, pois o mesmo poderia servir a visões diametralmente
opostas.
83

(idem, pp. 20, 52) e, ocasionalmente, de pessoas vivas (idem, p. 71), manipular o ar — e,
com isso, carregar bruxas voando para seu local de encontro (idem, p. 38). Tudo isso
(Epistemon dirá) com a devida permissão de Deus.
Talvez por se tratar de questão tão complexa para os teólogos de todas as épocas,
Daemonologie se detenha tanto sobre esse assunto e o retome a cada nova discussão na
qual o tratado entra. Uma das maiores controvérsias reside no fato de que, apesar de tantos
esforços retóricos, o Diabo não resolve o problema do mal: Deus não poderia impedir sua
maldade no mundo, sendo onipotente? Por que é permitido ao Diabo causar tantos males,
ainda mais a inocentes? Por que Deus permite não só a ação do Diabo como a de seus
instrumentos, isto é, as bruxas? Tais questões emergem bastante em Daemonologie,
particularmente no seguinte trecho:

PHI. Mas Deus vai permitir a esses malévolos instrumentos, pelo poder
do Diabo, seu mestre, atormentar com esses meios [bruxaria] qualquer
um que acredite n’Ele?
EPI. Sem dúvida, pois há três tipos de pessoas que Deus permitirá serem
tentadas ou atormentadas. Os maus, por seus horríveis pecados, para os
punir em medida equivalente; os devotos que adormeceram sobre
grandes pecados ou enfermidades e a fraqueza na fé, a fim de despertá-
los mais rápido com tal rudeza; e até alguns dos melhores, a fim de
testar sua paciência diante do mundo, como se deu com Jó132 (JAMES,
1597, p. 47).

Os mencionados “três tipos de pessoa” bem poderiam englobar todas; é difícil


supor possível a existência de outras categorias, particularmente mantendo em mente que,
no contexto, não ter nenhuma fé era um modo de pertencer à primeira. Ficamos tentados
a assumir o papel de Philomathes e perguntar em qual das categorias James se enxerga,
ao nos lembrarmos das tempestades por ele enfrentadas, dando origem aos julgamentos
de North Berwick, decerto frutos de bruxaria, pois “estas são facilmente discerníveis das
naturais por serem como meteoros no que diz respeito a seu surgimento repentino e
violento e sua curta duração”133 (idem, p. 46). O rei James, bem se nota, nunca passou um

132
No original: “PHI. But wil God permit these wicked instrumentes by the power of the Devill their master,
to trouble by anie of these meanes, anie that beleeves in him? / EPI. No doubt, for there are three kinde of
folkes whom God will permit so to be tempted or troubled; the wicked for their horriblem sinnes, to punish
them in the like measure; The godlie that are sleeping in anie great sinnes or infirmities and weakenesse in
faith, to waken them up the faster by such uncouth forme: and even some of the best, that their patience
may bee tryed before the world, as IOBS was.”
133
No original: “which likewise is verie easie to be discerned from anie other naturall tempestes that are
meteores, in respect of the suddaine and violent raising thereof, together with the short induring of the
same.”
84

verão nos trópicos. Ironias à parte, vemos aqui um exemplo mencionado tanto por
Oldridge quanto por Gaskill: uma construção lógica baseada numa experiência
observável — os diferentes tipos de tempestade e a diferença de frequência entre elas —
e na tentativa de explicá-la de modo a eximir Deus de culpa, muito embora sua
“permissão” o implique diretamente no ocorrido.
Também não fica claro, no texto, por qual motivo as bruxas devem ser punidas se
só podem agir com a permissão de Deus, ainda mais quando se considera que, em última
análise, quem causa o mal é o Diabo e não elas. Existe, nisso, certa identidade com o
tratado já comentado, publicado 111 anos antes, o Malleus Maleficarum:

A forma normal da discussão no Malleus é circular. Tudo se constrói


sobre a presunção de que Deus permite ao diabo perpetrar o mal através
de agentes humanos. Em outras palavras, todo o argumento em prol da
perseguição se assenta sobre um monstruoso paradoxo, já que as bruxas
estão meramente servindo aos misteriosos propósitos divinos e
poderiam, nesse sentido, ser consideradas mais dignas de elogios do que
de culpa. Deus, dizem-nos, frequentemente permite aos demônios
agirem como Seus ministros e servos. […]. Se o diabo não tivesse
nenhuma limitação, ele destruiria as obras de Deus. […]. Mas ele não
pode fazê-lo […]. Portanto, qualquer ato seu só pode acontecer sob a
permissão divina. Se alguém tentasse quebrar esse círculo ao exigir
saber por que Deus se dá a tamanho trabalho, Kramer and Sprenger têm
uma abundância de argumentos credenciados, mesmo se não para
convencer, ao menos para atordoar seus críticos134 (ANGLO, 1992, p.
20).

O rei James tenta escapar dessa problemática saindo pela tangente. Podemos
supor, embasando-nos nas argumentações atribuídas à personagem Epistemon, que o
problema da bruxaria está na intencionalidade, a ser discutida mais adiante. Por ora,
importa entender que essa forma de enxergar as bruxas em James não é a mais corriqueira
e certamente não integrou a parte mais longeva do estereótipo:

O significado de bruxaria variava entre grupos sociais. O mais comum


era o crime ser entendido como um tipo de ataque mágico: acreditava-

134
No original: “The normal shape of the argument in the Malleus is circular. Everything is built upon the
assumption that God permits the devil to perpetrate evil through human agents. In other words, the whole
argument for persecution rests upon a monstrous paradox, since witches are merely serving God's
mysterious purposes and might, on that account, be deemed more worthy of praise than of blame. God, we
are told, frequently allows devils to act as His ministers and servants […]. Were the devil completely
unrestricted he would destroy the works of God […]. But he cannot destroy the works of God […].
Therefore whatever he does can only be with divine permission. Should one attempt to break this circle by
demanding why God goes to such trouble, Kramer and Sprenger have an abundance of authorised
arguments, if not to convince, at least to stupefy any critic.”
85

se que as bruxas praticassem uma feitiçaria destrutiva — ou maleficium


— contra suas vítimas. […] Uma crença menos comum, mas ainda
difundida, atribuía o poder das bruxas a maus espíritos. Às vezes,
acreditava-se que a bruxa fizera um pacto com o espírito, marcado por
um sinal em seu corpo: poderia tratar-se de uma deformidade, uma
mancha insensível na pele ou, na tradição inglesa, uma “teta” usada para
alimentar o espírito com sangue135 (OLDRIDGE, 2012, p. 36).

James claramente se filiava a esta segunda vertente. Para ele, o Diabo usa artifícios
os mais diversos para iludir a bruxa, seu instrumento, no sentido de levá-la a crer ter um
poder fazer que, na verdade, não possui. Assim, ele lhe ensina rituais para dominar
tempestades (JAMES, 1597, p. 46); para confeccionar bonecos de cera ou argila para ferir
as pessoas com base em quem foram feitos (idem, pp. 44-6); para fazer pós e pedras com
os quais curar ou fazer adoecer (idem, p. 44); como preparar “venenos grosseiros que os
médicos não entendem (pois ele é muito mais astucioso do que o homem no conhecimento
das propriedades ocultas da natureza)”136 (idem, p. 44); para inspirar amor ou ódio entre
duas pessoas (idem, p. 45) ou “enfraquecer a natureza de alguns homens, a fim de torná-
los impossibilitados às mulheres, e fazê-la abundar em outros, mais do que o curso
ordinário da natureza permitiria”137 (idem, p. iv). No entanto, o único feito dessa bruxaria
toda seria levar o Diabo ou os maus espíritos a executarem a ação desejada, com o
propósito de causar mal e convencer a bruxa de seu próprio poder, para levá-la a cumprir
sua parte no acordo: negar a Deus e seus preceitos, prestar culto ao Diabo e lhe permitir
fazer uso de seu corpo e de sua alma (idem, p. 9, 17).
Nenhuma dessas ações, segundo a obra, é de fato efetuada pela bruxa, mas sim
pelo Diabo, demônio ou mau espírito com quem ela tem um pacto. Em alguns momentos,
fala-se em vários demônios e maus espíritos (cf. JAMES, 1597, pp. ii, iv, 10, 17-8, 20
etc.), noutros, supõe-se a existência apenas do Diabo em si, que pode aparecer de diversas
formas e sob diversos nomes a fim de enganar as bruxas, fazendo-as pensarem tratar-se
de várias entidades (idem, p. 76). A ideia de que o Diabo engana, ilude, confunde as
bruxas é reiterada ao longo de todo o tratado. Ele as faz crer terem poder, fingindo-se

135
No original: “The meaning of witchcraft […] varied between social groups. Most generally, the crime
was understood as a kind of magical assault: witches were believed to practise destructive sorcery — or
maleficium — against their victims. […] A less common but still widespread belief attributed the power of
witches to evil spirits. It was sometimes believed that the witch had entered a compact with the spirit,
marked by a sign on their body: this could be a blemish or insensible spot on the skin or, in the English
tradition, a 'teat' used to feed the spirit with blood.”
136
No original: “[…] uncouth poysons, which Mediciners understandes not for he is farre cunningner then
man in the knowledge of all the occult proprieties of nature.”
137
No original: “of weakening the nature of some men, to make them unable for women: and making it to
abound in others, more then [sic] the ordinary course of nature would permit.”
86

preso em seus círculos de conjuração e obediente aos seus comandos (idem, p. 17), apenas
para atraí-las para um pacto.
Os detalhes da dinâmica entre o Diabo e as bruxas são bastante complexos em
Daemonologie, parecendo se contradizer em vários momentos, especialmente naqueles
nos quais algum elemento é explicado à exaustão. Por exemplo, delimitam-se dois tipos
de pessoas que lidam com magia: os magos ou necromantes, de um lado, e feiticeiras ou
bruxas, de outro138. As diferenças, contudo, não são muito substanciais e o texto ora os
intercambia, ora compara suas pequenas divergências.
Magos e necromantes são divididos em dois grupos: instruídos e não instruídos, e
diferem das bruxas porque são movidos pela curiosidade e pelo desejo de aprender mais
sobre as forças ocultas, e usam as forças diabólicas para tentar prever o futuro e pedir
conselhos (idem, p. 20). São enganados pelo Diabo porque “seu suposto conhecimento
não aumenta nada, exceto por conhecer o mal e os horrores do Inferno, por punição, como
foi com Adão após comer o fruto da árvore proibida”139 (JAMES, 1597, p. 11). Mas, no
livro 1 [Booke One], onde estão todas as explicações sobre magia e necromancia
(enquanto aquelas envolvendo bruxaria ou feitiçaria são discutidas no livro 2 [Booke
Two]), ao responder uma pergunta de Philomathes pedindo detalhes sobre conjurações de
espíritos em círculos, Epistemon inicia sua resposta com: “Acho que você me toma por
um bruxo”140 (idem, p.16). Isso é sintomático, pois na página anterior a personagem
dissera que “conhecimento é mais perigoso do que errado, e apenas a prática torna grande
o erro”141 (idem, p. 15), chegando mesmo a insinuar que, se uma pessoa apenas busca o
conhecimento, mas não se põe “a serviço de Satã”, ao menos conscientemente, não é tão
condenável.
Diante de tal contraste, aqui parece que Epistemon quis se resguardar quanto à sua
completa consciência sobre os modos de operar do Diabo, de contrair pactos etc. Ele
conhece todos os mecanismos, mas não pratica magia. É engraçado observar que é witch
a palavra escolhida, embora presente no capítulo sobre magicians. Como o desejo de

138
O português me obrigada a escolher um gênero para três dessas palavras, embora todas as quatro, no
texto, sejam comuns de dois gêneros: magician, necromant, sorcerer e witch. A penúltima atualmente é
masculina, sendo seu feminino sorceress. As bruxas, já expliquei anteriormente porque traduzo no
feminino. “Feiticeira” optei por extensão, já que os dois primeiros termos são intercambiáveis entre si, bem
como os dois últimos. “Magos” mantive no masculino porque me parece ser mais adequado, como explico
a seguir.
139
No original: “their knowledge, for all that they presume thereof, is nothing increased, except in knowing
evill, as Adams was by eating of the forbidden tree.”
140
No original: “I thinke ye take me to be a Witch my selfe.”
141
No original: “knowledge is more perilous nor offensive and it is the practise only that makes the greatnes
of the offence.”
87

erudição é dissociado do feminino em outras partes do texto, parece que esta categoria é
mais masculina, enquanto aquela é mais feminina. O uso do termo witch em Epistemon
se deu ou por ato falho, por ser mais comum, ou talvez porque, como alega depois, todas
as bruxas possuam uma marca (idem, p. 23), cuja certeza da ausência o provaria inocente,
caso a dúvida fosse de fato suscitada. Comparando os dois tipos, Epistemon diz:

Omiti apenas uma coisa: a forma de estabelecer esse contrato, que


consiste ou em escrevê-lo com o próprio sangue do mago ou, em
comum acordo, [o Diabo] o toca em alguma parte, embora porventura
não permaneça marca, como ocorre com todas as bruxas142 (JAMES,
1597, p. 23, grifos meus).

Aqui estabeleceu-se uma das características comuns a todas as bruxas, que os


magos e necromantes podem não ter (a personagem não parece ter muita certeza, como
denota o emprego de peradventure): a marca do Diabo. Ela é um definidor, uma prova
incontestável de bruxaria, e consiste numa ferida que nunca se cura, encontrada na bruxa
após o pacto, costumeiramente encontrada perto da região genital.
Curiosamente, ao fim do livro 1, o tratado sugere uma forma de punição do tipo
reservado às bruxas aos magos/ necromantes, porém mais dura, pois seu “erro” resulta de
um conhecimento maior, tornando-os mais próximos de pecar contra o Espírito Santo.
Prevê ainda que não importam as supostas boas intenções dos magos ao buscar
informações com o Diabo ou com maus espíritos, pois não se deve usar instrumentos
ilegais (idem, p. 26). Essa ideia é retomada em outros momentos do texto, como veremos
mais adiante. Do mesmo modo, em outro trecho, lê-se que as bruxas possuem muitos
pontos em comum com os magos, pois

ambos servem um só mestre, embora de modos diferentes. E, como


dividi os necromantes em dois tipos, instruídos e não instruídos,
também devo dividi-las em outras duas classes: ricas e de maior
importância, e pobres de um nível mais baixo. Esses dois níveis de
pessoas que praticam bruxaria respondem às suas paixões interiores, as
quais (como eu já lhe disse antes) o Diabo usa como meio de atraí-las a
servi-lo, pois aquelas que vivem em grande miséria e pobreza, ele as
seduz a segui-lo com promessas de grandes riquezas e comodidade
mundana. Quanto às ricas, queimando com um desejo desesperado de
vingança, ele lhes promete satisfazê-las nesse sentido. […] Esse nosso
velho e astuto inimigo não ataca ninguém, mesmo quem toca em algum

142
No original: “One word onlie I omitted; concerning the forme of making of this contract, which is either
written with the Magicians owne bloud: or else being agreed upon […] [the Devil] touches him in some
parte, though peradventure no marke remaine: as it doth with all Witches.”
88

desses dois extremos, se a pessoa não estiver pronta para ele, ou por
uma grande ignorância daquele com quem está lidando, atrelada a uma
vida de maldade, ou por um desprezo a Deus143 (JAMES, 1597, p. 32).

O argumento é engenhoso: transmite o poder do Diabo enquanto enganador ao


mesmo tempo em que culpa a vítima por sofrer essa enganação, atribuindo-lhe a
responsabilidade por sua miséria e, com isso, eximindo-se da necessidade de prover pelas
pessoas pobres. Esta última ideia nem ao menos é citada. Talvez não lhe ocorra. Mas é
intrigante imaginar que, vendo uma pessoa em tal estado de desamparo a ponto de torná-
la propensa a cair nas armadilhas do “nosso inimigo”, não surja nenhum impulso de
resgatá-la disso, abandonando-a a uma sina de se tornar instrumento do mal, com a devida
permissão do Deus “bondoso” e “justo”. Segundo seu raciocínio, certamente essa pessoa
despreza Deus e está sendo devidamente punida. Como diz Silvia Federici, é sintomático
o quanto se condena o desejo de fartura, e a imaginada fartura obtida durante sabás, numa
época de tanta fome. Nesse contexto, segundo ela, a magia aparecia como “forma ilícita
de poder e como um instrumento para obter o desejado sem trabalhar” (2017, p. 258), um
comportamento bastante censurável numa sociedade carente de mão de obra.
A personagem Epistemon descreve em pormenor como o Diabo procede, supondo
três encontros com a futura bruxa: primeiro, encontra-a sozinha num campo ou deitada
em ócio na cama, e pergunta o que a atormenta, prometendo-lhe alguma solução com a
condição de que seu conselho seja seguido (JAMES, 1597, pp. 32-3). No segundo,
“persuade-as a se entregarem como escravas para servi-lo” [he first perswades them to
addict themselves to his service] para então revelar sua verdadeira natureza e fazê-las
renunciar a Deus e ao Batismo, e as marca em alguma parte oculta do corpo. No terceiro
encontro, “ele toma o cuidado de cumprir suas promessas” [he makes a shew to be carefull
to performe his promises] (idem). Não fica claro no tratado por que o Diabo se dá a esse
trabalho, se o tipo de gente a ele suscetível já é pecadora e provavelmente destinada ao
Inferno de todo modo. Fala-se em “obter fruição do corpo e da alma” [obteine the fruition

143
No original: “they serve both one Master, althought in diverse fashions. And as I devided the
Necromancers, into two sorts, learned and unlearned; so must I denie them in other two, rich and of better
accompt, poore and of basser degree. These two degrees now of persones, that practises this craft, answers
to the passions in them, which (I told you before) the Devill used as meanes to intyse them to his servisse,
for such of them as are in great miserie and povertie, he allures to follow him, by promising unto them
greate riches, yet burnes in a desperat desire of revenge, hee allures them by promises, to get their turne
satisfied to their hartes contentment. […] that olde and craftie enemie of ours, assailes none, though touched
with any of these two extremities, except he first finde an entresse reddy for him, either by the great
ignorance of the person he deales with, ioyned with an evill life, or else by their carelesnes and contempt
of God.”
89

of their body & soule], mas para a alma bastaria esperar a morte da pessoa em questão e,
quanto ao corpo, o livro traz uma longa discussão sobre a possibilidade de o Diabo manter
conjunção carnal com uma bruxa, chegando à conclusão de que ele pode fazê-las imaginar
que tiveram ou usar um cadáver para esse fim (idem, pp. 52, 67), sem, no entanto, explicar
qual vantagem o Diabo tiraria disso. Claro, sendo o Mal por excelência, não é difícil
imaginar: sua concupiscência parece ser ponto pacífico demais para ser discutido, mesmo
num tratado tão pormenorizado.
Existe algo de iminentemente feminino na menção à entrega às paixões das
pessoas que se supõe propensas a sofrer tentação pelo Diabo, embora o fato não seja
mencionado nesse momento do texto. Há uma noção generalizada da mulher como figura
instável, passional por natureza, muito sujeita às próprias emoções incontroláveis —
características, aliás, atribuídas até hoje.
Quando se mencionam mulheres explicitamente no tratado, no contexto de
bruxaria, Philomathes pergunta: “Qual será o motivo de haver vinte mulheres bruxas para
cada homem?” [what can be the cause that there are twentie women given to that craft,
where ther is one man?]. Essa proporção é irreal (cf. GASKILL, 2010, p. 30), mas talvez
à época, após os julgamentos de North Berwick, em que as rés eram do sexo feminino,
tenha havido uma tendência a imaginá-la verdadeira. A resposta do sábio Epistemon é a
mesma de Kramer no Malleus Maleficarum e em qualquer outra obra da época ou anterior
na qual se aborde esse assunto: “A razão é simples: o sexo feminino é mais frágil que o
masculino, portanto é mais fácil elas serem apanhadas nesses rudes ardis do Diabo, como
já se provou verdadeiro pelo fato de a Serpente ter enganado Eva no início, o que o deixa
mais confortável com esse sexo”144 (JAMES, 1597, pp. 43-4). Mais para o fim do tratado,
ao se referir a um suposto maior número de engajamento com maus espíritos entre “os
bárbaros do norte”, Epistemon diz que “onde o Diabo encontra maior ignorância e
barbárie, ali é onde ele ataca com mais violência, como já expliquei antes sobre o motivo
de haver mais mulheres bruxas do que homens”145 (idem, p. 69).
Assim, muito embora Daemonologie atenha-se pouco à questão de gênero, é
impossível ignorar que, nele, a bruxa estereotípica é mulher, e pobre, a julgar pela

144
No original: “The reason is easie., for as that sex eis frailer then man is, so is it easier to be intrapped in
these grosse snares of the Devill, as was over well proved to be true, by the Serpents deceiving of Eva at
the beginning, which makes him the homelier with that sexe sensine.”
145
No original: “where the Devill findes greatest ignorance and barbaritie, there assayles he grosseliest, as
I gave you the reason wherefore there was moe Witches of the women kinde nor men.”
90

recorrência, no texto, de menções à motivação do ganho material, embora o desejo de


vingança também seja bastante comentado.
As confissões das bruxas, bastante referenciadas, tanto quanto a daily experience,
ajudam a delinear melhor o estereótipo moldado no tratado. Nenhum pensamento é
novidade; antes consiste numa espécie de “colagem” de noções bastante difundidas na
época através de outros tratados, documentos da Igreja (católica, luterana, anglicana ou
calvinista), nas leis, em processos judiciais anteriores etc. Basicamente, o tratado
sistematiza as características mais importantes na época, incluindo aquelas que James,
através das argumentações de Epistemon, procura negar (por exemplo, o fato de nenhum
espírito poder deixar o corpo e depois retornar, como já comentado, ou a suposta
metamorfose das bruxas em animais). Para isso, as confissões integram boa parte da
argumentação dialógica, aludidas para fortalecer determinado ponto de vista.
Sobre a relação do Diabo com as bruxas, Epistemon em dado momento diz: “ele
aparece para elas sob diversas formas, segundo descobrimos pela divergência das
confissões quanto a isso”146 (idem, p. 52). Quando opõe melancolia e bruxaria, um dos
argumentos contra a ideia de que bruxas possam ser melancólicas é o fato de só
confessarem mediante tortura, “o que atesta sua culpa” [which witnesseth their guiltines],
pois pessoas que sofrem com o humor da melancolia “nunca deixam de se denunciar,
através de contínuos discursos, alimentando assim seu humor, no que não veem crime”147
(idem, p. 30).
Reparemos na diferença de lógica em relação ao senso comum atual: imaginamos
que, além de o procedimento da tortura poder extrair verdades as quais uma pessoa não
quer revelar, ele também pode extrair depoimentos falsos, induzidos proposital ou
inadvertidamente pelo investigador (que sinaliza o tipo de informações buscadas). Essa
segunda possibilidade parece não ocorrer ao enunciador. Mesmo quando se mencionam
confissões (com ou sem tortura), que não parecem naturais no entender dos interlocutores
— por exemplo, a noção de que o espírito das bruxas sai de seus corpos, possibilitando-
lhes conhecer outras partes do mundo —, não se questiona a veracidade dos depoimentos
ou o método de sua obtenção; atribui-se essa não naturalidade a uma real crença da ré,
ludibriada pelo Diabo para crer em algo falso.

146
No original: “he appeares to divers of them in divers formes, as we have found by the difference of their
confessiones in that point.”
147
No original: “never spares to bewray themselves, by their continuall discourses, feeding therby their
humour in that which they thinke no crime.”
91

Os itens já associados às bruxas anteriormente pelo interlocutor, os quais,


portanto, lhe soam naturais, não são questionados, mas parecem apropriados como prova
de que todas as confissões são em alguma medida fidedignas. Por exemplo, a ideia de
Satã reunir suas “escravas” ou seus “instrumentos” em igrejas, sobre altares, corrobora a
crença de que ele seria um imitador de Deus, necessitando manchar o local de louvor
cristão e, ao mesmo tempo, ser adorado em culto. O ósculo infame, ou seja, o beijo sobre
o ânus do Diabo, também é considerado sob uma óptica verossímil (cf. JAMES, 1597, p.
37). Esses itens aceitos em confissões constam em outros autores, junto com outras
descrições bem gráficas de como seriam as reuniões das bruxas para adorar o Diabo, de
cunho bastante misógino.
Aqui, a misoginia do enunciador, embora menos enfática do que a de alguns de
seus contemporâneos e tantos antecessores, é explicitada textualmente uma vez mais,
quando Epistemon explica o quanto a água pode ajudar a provar que alguém é bruxa:

seus olhos [são] incapazes de derramar lágrimas (ameace e torture o


quanto quiser) ao se arrependerem pela primeira vez (Deus não lhes
permite esconder sua obstinação em crime tão terrível). Porém, as
mulheres em especial conseguem derramar lágrimas a cada ocasião
trivial, quando querem, sim, embora sejam dissimuladas como os
crocodilos148 (idem, p. 81).

Como se depreende, Deus não lhes permite chorar logo ao se arrependerem, por
causa da magnitude de seus crimes, mas às vezes permite. Deus não autoriza o Diabo a
atentar pessoas inocentes, mas às vezes autoriza. Deus não deixa as bruxas ferirem
inocentes, mas às vezes deixa. Por isso, diversos pesquisadores apontaram que a lógica
de Daemonologie e outros tratados de James VI & I se constrói sobre a conveniência (cf.
GELLER, 2013). Parece, no entanto, um pouco enviesado ler nisso tanto uma deliberação
quando uma ausência de deliberação: não nos é acessível, através dos textos, saber o que
o enunciador estava pensando. Pode-se apenas depreender a ideologia subjacente ao
discurso, uma leitura possível. A óbvia conveniência indica apenas que o enunciador se
julga integrante do grupo dos “justos”, fiéis, tementes a Deus etc., mas pela qualidade
altamente repetitiva do texto, com todas as suas retomadas e tentativas de exaurir cada
tópico, parece não haver muita consciência dos paradoxos suscitados em meio às

148
No original: “not so much as their eyes are able to shed teares (thretten and torture them as ye please)
while first they repente (God not permitting them to dissemble their obstinacie in so horrible a crime) albeit
the women kinde especially, be able other-waies to shed teares at every light occasion when they will, yea,
although it were dissemblingly like the Crocodiles.”
92

argumentações. Existe uma clara tentativa de responder a questionamentos em voga na


época e de se antecipar a qualquer possível nova dúvida.
Por exemplo, há uma longa explanação de Epistemon sobre o quanto é mentirosa
a existência de espíritos feéricos (e do Rei e da Rainha das Fadas, oriundos do imaginário
pagão celta). Devia ser algo muito presente no imaginário da época, como atesta a sua
presença nas peças de Shakespeare, aliás, notadamente Sonho de uma noite de verão
(1605). Para Epistemon, eles não levam ninguém embora e muito menos bebem, cantam,
dançam ou festejam como humanos, atribuindo todas essas alegações novamente às
ilusões inspiradas pelo Diabo. Philomathes pergunta: “Mas então como várias bruxas
foram condenadas à morte por confessar justamente isso, de terem sido transportadas
pelos feéricos […]?”149 (JAMES, 1597, p. 74). Seu interlocutor repete a história das
fantasias alimentadas pelo Diabo, e, após evadir-se um pouco da questão, fala que usar o
conhecimento obtido nessas ocasiões para fazer profecias é um crime e deve ter punido
tanto quando os das outras bruxas, ou até mais (idem, p. 75). Ou seja, embora a explicação
não soe muito objetiva, com todas as voltas e repetições, há uma inegável preocupação
em abordar assuntos desagradáveis, que pareçam contradizer os argumentos defendidos,
mesmo se não o faz a contento, aos olhos de hoje.
A insistência no poder do Diabo ser capaz de criar ilusões de certa forma torna as
bruxas descritas por James menos culpáveis do que as de outros autores. Analisando
friamente, se a figura do Diabo fosse substituída por uma doença mental qualquer, os
efeitos poderiam ser bem próximos: a crença de poder metamorfosear-se em um animal,
ou deixar o corpo e vagar grandes distâncias em espírito; a crença no poder de controlar
tempestades ou causar males diversos a pessoas. Tudo, ao ser atribuído ao Diabo, aponta
a inocência da bruxa, exceto pelo crime da intencionalidade. Voltemos a ele observando
o seguinte trecho:
Enquanto os magos, atraídos pela curiosidade, em sua maioria usam
suas práticas para satisfazê-la e ganhar fama e estima popular, essas
bruxas, por outro lado, instigadas ou pelo desejo de vingança ou por
riquezas mundanas, direcionam todas as suas práticas ao ato de ferir
homens e suas mercadorias ou suas posses, a fim de satisfazer suas
mentes cruéis, no primeiro caso, ou arruinar qualquer um sobre quem
Deus lhes permita ter poder, para satisfazer seu ganancioso desejo, no
segundo150 (JAMES, 1597, pp. 34-5)

149
No original: “But how can it be then, that sundrie Witches have gone to death with that confession, that
they have ben transported with the Phairie […]?”
150
No original: “where the Magicians, as allured by curiositie, in the most parte of their practises, seekes
principallie the satisfying of the same, and to winne to themselves a popular honoure and estimation: These
93

A intenção de obter riquezas materiais aparece em detrimento de outra pessoa, que


já possuía algo por seu próprio esforço (remetendo-nos assim, à última citação de
Federici, mais acima). Não parece admissível que nenhum tipo de “riqueza mundana”
surja do nada; apenas é possível subtrair a já existente de alguém. Não há nenhuma marca
textual que atenue um roubo famélico em relação a um motivado por simples ganância,
muito embora já se tenha mencionado acima que o tratado atribui o desejo de riquezas a
pessoas paupérrimas e o de vingança a pessoas ricas. Porém, se não são as bruxas que
efetivamente transformam essa intenção em realidade, e sim o Diabo, seu mestre, a seu
pedido, qual a diferença entre elas e qualquer outra pessoa que deseje riquezas ou
vingança e não seja uma bruxa? O pacto. Havendo uma marca do Diabo, deduz-se a
existência de uma intencionalidade, mesmo se nunca confessa.
Também é atribuída às bruxas uma capacidade de enlouquecer pessoas, mas
sempre com uma ressalva: algo “muito possível para seu mestre fazer, já que [a insanidade
e a mania] são meramente doenças naturais” [very possible to their master to do sence
they are but natural sicknesses], além de serem capazes de fazer espíritos assombrarem
casas e pessoas, e até mesmo fazê-los possuírem algumas, o que, novamente, é “muito
possível” para seu mestre causar a qualquer um “que Deus permitir” (idem, p. 47).
Ao despir as bruxas de poder, torna-as mais críveis, de certa forma: só se consegue
acusá-las de desejar causar o mal e adorar o Diabo, renegando a fé cristã. Agem
egoisticamente, como seu mestre, que tudo faz a seu pedido, sempre sob a permissão
divina. Ainda assim, em meio a todas as discussões levantadas, as bruxas são
consideradas extremamente culpadas, merecedoras de penas inflexíveis, mesmo se bem-
intencionadas:
PHI. Então é ilegal usar a ajuda de alguma bruxa para curar a doença
causada pela bruxaria de outra?
EPI. Sim, é ilegal. […]
PHI. Então como a doença pode ser legalmente curada?
EPI. Apenas com franca oração a Deus, pela reparação de suas vidas e
pela mordaz perseguição, de acordo com seu chamado, a cada um
desses instrumentos de Satã, cuja punição com a morte será um
sacrifício salutar pelo paciente. E este não é apenas o modo legal, mas
o mais seguro151 (idem, pp. 48-9).

Witches on the other parte, being intised ether for the desire of revenge, or of worldly riches, their while
practises are either to hurte men and their gudes, or what they possesse, for satisfying of their cruel mindes
in the former, or else by the wracke in whatsoever forte, of anie whome God will permite them to have
power off, to satisfie their greedie desire in the last poynt.”
151
No original: “PHI. Is it not lawfull then by the helpe of some other Witche to cure the disease that is
casten on by that craft? / EPI. No waies lawfull […]. / PHI. How then may these diseases be lawfullie
94

Não obstante seja o Diabo o responsável por qualquer feitiço bem-sucedido, a


bruxa causadora da doença deve ser morta para a cura do paciente se efetuar. Esse diálogo
é importante porque, na altura, admitia-se a existência de bruxas “do bem”, chamadas
geralmente de cunning folk ou white witches, a quem se recorria para curas diversas,
inclusive de moléstias oriundas de bruxaria. Além disso, presumia-se que mesmo uma
bruxa diabólica poderia ajudar em casos de doença. Era o poder incompreensível,
insubmisso às normas da religiosidade cristã, que se queria subjugar, e por isso o tratado
sempre retorna aos mesmos pontos. Nesse sentido, como disse Silvia Federici,

foram os juristas, os magistrados e os demonólogos, frequentemente


encarnados na mesma pessoa, os que mais contribuíram na perseguição:
eles sistematizaram os argumentos, responderam aos críticos e
aperfeiçoaram a maquinaria legal que, por volta do final do século XVI,
deu um formato padronizado, quase burocrático, aos julgamentos, o que
explica as semelhanças entre as confissões para além das fronteiras
nacionais. No seu trabalho, os homens da lei contaram com a
cooperação dos intelectuais de maior prestígio da época, incluindo
filósofos e cientistas que ainda hoje são elogiados como os pais do
racionalismo moderno (2017, p. 299).

Esse pequeno resumo da socióloga diz respeito a várias das passagens analisadas
e, quiçá, ao tratado inteiro. Daemonologie mostra-se uma racionalização intelectual de
verdades de seu tempo, questionadas ou reiteradas, falando mais do Diabo e suas ameaças
do que das bruxas em si, embora sejam elas as únicas rés possíveis. Recusa-se a lhes
atribuir qualquer poder real que não o de pedir favores ao seu dito mestre, o que, de certo
modo, as torna menos ameaçadoras, vítimas de bom grado, iludidas e estúpidas, mas
absolutamente nefastas e astutas.
Essas contradições que nos saltam aos olhos na contemporaneidade não parecem
incomodar o enunciador, a julgar pelas marcas de seu discurso. Embora suas voltas
retóricas pareçam muito deliberadamente evitar questões espinhosas, por vezes, suas
personagens discutem a fundo até satisfazerem suas inquietações e, como anunciado no
prólogo, esperando ter satisfeito as do enunciatário.
Para concluir, Daemonologie encerra-se com o capítulo VI do livro 3, dedicado
ao julgamento e à pena para as bruxas:

cured? / EPI. Onelie by earnest prayer do GOD, by amendement of their lives, and by sharpe persewing
everie one, according to his calling of these instrumentes of Sathan, whose punishment to the death will be
salutarie sacrifice for the patient. And this is not onely the lawfull way, but likewise the most sure.”
95

EPI. Elas devem ser mortas, de acordo com a Lei de Deus, as leis civil
e imperial, e a lei municipal de todas as nações cristãs.
PHI. Mas que tipo de morte […]?
EPI. Costuma-se usar o fogo, mas isso é algo indiferente, a depender do
costume de cada país.
PHI. Mas nenhum sexo, idade ou classe social está isento?
EPI. Ninguém mesmo (assim usado pelo magistrado legal), pois é o
auge da idolatria, para a qual a Lei de Deus não admite nenhuma
exceção. […] Os juízes […] devem tomar cuidado com quem
condenam, pois é um crime tão grande (como disse Salomão) punir um
inocente quanto deixar escapar um culpado. A denúncia de nenhuma
pessoa infame deve ser admitida como prova suficiente […].
PHI. E podem algumas confessas servir de testemunhadas contra uma
acusada?
EPI. […] Acho que […] tal testemunha pode ser suficiente em assuntos
de alta traição contra Deus, pois quem além de uma bruxa pode
testemunhar sobre as ações de outra?152 (JAMES, 1597, pp. 77-9).

É preciso observar primeiro a questão de quem serve de testemunha ao processo.


Segundo Willumsen, “o testemunho de uma mulher não costumava ser aceito em
julgamentos criminais, mas após 1591 fez-se uma exceção para a bruxaria”153 (2013, p.
130). Além disso, aceitar o testemunho de rés confessas e condenadas num julgamento
opõe-se ao devido processo legal em qualquer outra área do Direito, na época e
atualmente, na Escócia, na Inglaterra e em outros países.
No desfecho, parece que o pecado (e, portanto, o crime) maior, superior ao da
intencionalidade, é a idolatria, sendo admissíveis as confissões de bruxas denunciando
outras, com ou sem o uso de tortura. A recomendação aos magistrados, sutil ao longo de
todo o tratado, é explicitada e enfatizada de modo inflexível, funcionando como instrução
de atuação. Se o enunciador tem consciência da contradição entre a asserção de que punir
um inocente é pior do que deixar escapar um culpado e a admissão de pessoas infames
(como outras bruxas) ser problemática em si mesma no processo legal, não adentra essa

152
No original: “EPI. They ought to be put to death according to the Law of God, the civill and imperiall
law, and municipall law of all Christian nations. / PHI. But what kind of death […]? / EPI. Is is commonly
used by fire, but that is an indifferent thing to be used in everie cuntrie, according to the Law or custome
thereof. / PHI. But ought no sexe, age nor ranck to be exempted? / EPI. None at al (being so used by the
lawfull Magistrate) for it is highest poynt of Idolatrie, where in no exception is admitted by the law of God.
[…] Judges ought […] to beware whome they condemue [sic]: For it is as great a crime (as SALOMON
sayeth,) To condemne the innocent, as to let the guiltie escape free; neither ought the report of any one
infamous person, be admitted for a suficiente proofe, which can stand of no law. / PHI. And what may a
number then of guilty persons confessions, woork against one that is accused? / EPI. […] I thinke […] such
witnesses may be suficiente in matters of high treason against God: For who but Witches can be prooves,
and so witnesses of the doings of witches.”
153
No original: “a woman’s testimony was not usually accepted in criminal trials, but after 1591 na
exception was made for witchcraft.”
96

questão. Em momento anterior do texto, igualmente ilustrativo, Epistemon chega a atestar


que os magistrados complacentes com bruxas têm maiores chances de sofrer com
malefícios, pois Deus lhes permitirá agir contra eles (idem, pp. 50-1).
Responde também à ideia, veiculada por católicos, de que havia menos bruxaria
na Escócia quando o país ainda não havia rompido com Roma, afirmando que nessa época
existia sim uma “cegueira papista” impedindo-os de ver que o Diabo andava em seu meio
(idem, p. 54). Pode-se concluir que, de fato, a bruxaria servia a propósitos políticos, mas
nem por isso pretendemos alegar que não se acreditava em sua existência e no perigo por
ela oferecido à sociedade. As duas coisas parecem andar juntas aqui, não sendo
mutuamente excludentes. O perigo da bruxaria é oferecido pela alteridade, encarnada nas
faces de populações pobres e amarguradas, para as quais não se oferecia assistência.
O tratado, entretanto, não se detém sobre isso, como não se concentra sobre a
figura das mulheres; é antes o Diabo quem predomina no discurso, e sua sempre paradoxal
relação com Deus, como seu carrasco e imitador invertido. Aliás, isso já se evidencia no
título. As bruxas são pérfidas, mas iludidas, perigosas, mas incapazes de causar mal por
si mesmas. Seus feitiços, tantas vezes confessos e amplamente descritos, inclusive
encontrados em evidências arqueológicas (cf. GASKILL, 2010), aparecem como mero
teatro ensinado pelo Diabo para enganá-las, todo o poder vindo dele e de outros demônios
e espíritos sob sua influência. A imagem dessa bruxa parece, no fim das contas, mais
vítima do que perpetradora, apesar de no discurso o contrário asseverar-se reiteradamente.
Para usar a expressão preferida do autor, ele não “prova” seu argumento (e talvez o
perceba, pelas múltiplas autorremissões e repetições dentro do texto).
Para alguns historiadores, seu ponto de vista foi decisivo no que tange à caça às
bruxas em seu reinado, mesmo se apenas durante um tempo. Sendo um rei tratadista, essa
imagem perdurou. Analisando relatos de investigações e julgamentos posteriores, não
parece que sua visão prevaleceu integralmente. A opinião mais popular era a de que as
bruxas receberiam poder do Diabo, mas o tinham em si mesmas.

2.3. Panfletos ingleses


No início da Idade Moderna, era muito comum na Inglaterra comissionar panfletos
para fins diversos, normalmente mover a opinião pública e entrar em debates que
engajassem grandes parcelas da sociedade, à semelhança das cartas de leitores a jornais
no século XIX, com suas múltiplas respostas em forma de artigo e/ou resenha.
97

Basicamente, um panfleto consistia em algo entre uma e doze folhas, no máximo,


isto é, entre oito e noventa e seis páginas em quarto: cada folha de impressão dobrada
duas vezes de modo a produzir um livro equivalente a esse tamanho, sendo que uma única
folha resultaria num panfleto de oito páginas (cf. RAYMOND, 2003, p. 5).
Como resume o professor Joad Raymond na apresentação de sua obra a respeito
do tema,
Em meados do século XVI, na Grã-Bretanha, textos impressos
desempenhavam um papel marginal no exercício da propaganda e nos
esforços de influenciar o público. Pelo final do século XVII, era
evidente que qualquer tentativa de criar apoio do público para uma
iniciativa, partido ou posição políticos teria de explorar o poder
persuasivo da imprensa. O meio de persuasão e comunicação mais
eficaz era o panfleto, que criava uma moral influenciadora e
comunidades políticas de leitores, e assim formava a “esfera pública”
da opinião política e popular154 (2003, p. i).

Como ele explica, entre os dois séculos ocorre um crescimento na importância


social desse tipo de material. Por volta de 1640, informa, “a controvérsia nos panfletos
estava estreitamente ligada ao futuro político dos reinos” (2003, p. 6). Havia qualquer
coisa de pejorativo no uso de adjetivos derivados do termo, pois não eram impressos
confiáveis, no sentido de haver uma abundância deles, cujos textos declaravam muito e
provavam pouco (2003, p. 8). Segundo Gaskill,

O fim da censura em 1641 resultara num dilúvio de material impresso,


especialmente folhas de notícias até então ilegais, encorajando um
aumento na alfabetização mesmo dos homens e mulheres mais
humildes. Em toda Inglaterra, a eclosão da guerra elevara a obsessão
por publicações baratas ao nível de febre, e em nenhum lugar a demanda
era maior ou mais energicamente abastecida do que em Londres. “Por
um penny,” o acadêmico Henry Peacham [1578~1644] maravilhava-se,
“você pode ter todas as notícias da Inglaterra, sobre assassinatos,
inundações, bruxas, incêndios, tempestades e tudo o mais”155 (2006, p.
136).

154
No original, “In mid-sixteenth century Britain, printed texts played a marginal role in propaganda
exercises and efforts to influence the public. By the end of the seventeenth century it was self-evident that
any attempt to generate public support for a political initiative, party or position would have to exploit the
persuasive powers of the press. The most effective means of persuasion and communication was the
pamphlet, which created influential moral and political communities of readers, and thus formed a ‘public
sphere’ of popular, political opinion.”
155
No original, “the collapse of censorship in 1641 had resulted in a deluge of printed works, especially
hitherto illegal news-sheets, encouraging the growth of literacy among even the humblest men and women.
Across England the outbreak of war had raised the obsession with cheap print to fever-pitch, and nowhere
was the demand greater or more energically supplied than in London. ‘For a peny,’ marvelled the scholar
98

Não surpreende, portanto, que boa parte dessas publicações contivessem forte teor
sensacionalista, desde o título, pensado para captar a atenção no mais breve dos olhares,
até a forma como o texto era concebido e o tipo de informação que iria constar. Nesse
sentido, o pesquisador ainda nos informa que “o terror e o assombro eram a especialidade
de Henry Overton [especialista em textos religiosos] e outros livreiros, seus colegas de
profissão” (2006, p. 135).
Um panfleto tinha um custo de produção muito menor do que um livro por seu
tamanho reduzido e o fato de geralmente não ser encadernado com capa. Portanto, saía
bem mais barato para quem o quisesse adquirir. Sua vida útil era menor, dada a fragilidade
do papel desprotegido, mas ele se prestava a suas pretensões: por sua natureza tão
efêmera, relatava notícias de longe e acontecimentos recentes, e suas chamadas, em geral
sensacionalistas, sinalizam que devia haver bastante concorrência pelo interesse das
pessoas. Um autor poderia solicitar, a um preço, apenas sua impressão e distribuição.
Havia também a possibilidade de se encomendar o texto a ser veiculado dessa maneira.
Dentre a extensa variedade de assuntos encontrados em meio aos panfletos
remanescentes, há, é claro, histórias sobre bruxas e feitiços, relatos sobre prisões,
interrogatórios e julgamentos de suspeitos de bruxaria e ocasionais debates acerca da
possibilidade de sua existência. Esse material interessa aqui por reunir, ao se contrastá-
los, o pensamento dominante da época, exibindo e espelhando o gosto popular e algumas
das crenças mais difundidas.
Sabe-se o que defendiam as elites através de seus muitos tratados e dos autos de
processos aos quais ainda se tem acesso, mas estes não chegavam à maior parte da
população senão filtrados por artistas, panfletistas, sacerdotes e afins. As ideias do povo
sobre bruxaria podem ser apreendidas indiretamente através do teor de denúncias e
confissões. O conteúdo dos panfletos analisados também interessa como ponte entre a
elite e a população mais pobre (embora letrada), e como reflexo das imagens
estereotípicas mais correntes, no que diz respeito à figura da bruxa. Como se poderá
observar mais adiante, muitos motivos se repetem, bem como o raciocínio argumentativo
construído no discurso. Vê-se, à semelhança dos tratados, a mesma tentativa de conciliar
a permissão de Deus com a esfera de atuação das bruxas, justificando a necessidade de
prendê-las e pará-las. Quase não se alude a tortura e, se há alguma menção, é minimizada

Henry Peacham, ‘you may have all the Newes in England, of Murders, Flouds, Witches, Fires, Tempests,
and what not.”
99

e vendida como a única via possível156 (cf. WILLUMSEN, 2013, p. 143). Nem sempre
os feitos da bruxa são o principal: alguns panfletos discutem a teoria da bruxaria e usam
o caso noticiado como defesa de seu ponto de vista. Às vezes, o depoimento de
testemunhas fica mais em evidência do que o da ré ou do réu, de modo que sua voz só
nos chega através de muitos intermediários. Isso é importante, pois, apesar de a acusada
frequentemente confessar — de a bruxa ser também uma “fantasia de poder feminina”,
além de um “pesadelo masculino” (PURKISS, 1996, p. i) — não se pode esquecer que
temos acesso a suas ações, reações e palavras através dos autos escritos por um escrivão,
dos depoimentos de testemunhas igualmente redigidos pelo escrivão, e dos relatos
publicados por panfletistas, sempre da autoria de alguém que não a própria bruxa.
Dessa maneira, não é forçoso afirmar que uma ínfima parte do discurso dominante
sobre a bruxaria vinha de bruxas, de modo a tornar o estereótipo exógeno, uma construção
imputada a figuras com pouco — se algum — poder sobre sua própria imagem
(WILLUMSEN, 2013, p. 108). Isso mudará na ficção157 dos séculos XX e XXI, quando
se torna corrente partir do ponto de vista dessa personagem, embora a narrativa secular
dominante à época (isto é, a bruxa má, satânica) coexista com esses novos formatos. Por
ora, vejamos o que se pode depreender da análise detida de alguns desses panfletos.
Sobre o tema da bruxaria, um dos mais ilustres é, sem dúvida, Newes from
Scotland (1591), que narra o desenlace dos julgamentos de North Berwick, cujo principal
objeto foram as tentativas de assassinato contra James VI e sua esposa, a rainha Anne,
em três ocasiões. Não por acaso, esse panfleto integra a edição de 1603 de Daemonologie,
publicada em Londres quando da ascensão do rei ao trono da Inglaterra.
O historiador Stuart Clark acredita que a representação do rei como cético, dada
no panfleto, tinha a função de recomendá-lo aos súditos ingleses, suspostamente menos
crédulos do que os escoceses (1992a, p. 195). O referido ceticismo de James parece
bastante improvável, dada a sua própria presença nas sessões — até então inédita para um
monarca — e participação ativa em alguns interrogatórios. O fato de ser alvo de uma

156
Como nos explica Liv Helene Willumsen, há uma escassez de documentos relacionados a tortura em
processos escoceses (o que também se aplica aos ingleses) porque, dentre outros motivos, na maioria dos
casos seu “uso era ilegal […] e, portanto, não era integralmente registrado nos autos” (2013, p. 86). As
menções à tortura, geralmente “escondidas” nos documentos, costumam só vir à tona “se uma das
testemunhas a menciona por acidente […] ou se uma pessoa acusada retira sua confissão e alega só tê-la
feito por causa do uso de tortura” (p. 143).
157
Não é meu objetivo trabalhar com cultos neopagãos, embora neles também se observe o mesmo
movimento de clamar para si a narrativa e estabelecer a figura da bruxa em seus próprios termos.
100

suposta conspiração de tamanha magnitude (cerca de cem réus, cf. p. 190) decerto pendeu
para torná-lo crédulo, visto ser ele, desde a infância, objeto de disputas políticas (p. 189).
Nesse contexto, é preciso destacar que o panfleto não alude a tortura durante os
interrogatórios, embora tenham acontecido (WILLUMSEN, 2013). A presença do rei por
si só explicaria a ocorrência — e a noção de que talvez não fosse algo bem visto pode
justificar sua exclusão do relato destinado ao amplo público. A discussão sobre a validade
da tortura também pode explicar a razão de o assunto ser abordado (e seu uso, defendido)
em Daemonologie, conforme já comentado na seção anterior.
Observa-se nos textos desses panfletos, bem como nos de tratados demonológicos
como o assinado por James VI e I, uma característica em comum com o que Willumsen
observa ao analisar detidamente autos de processos, ou seja, seu estilo “insistente, no qual
se empilham adjetivos e advérbios com o mesmo significado”158 (2013, p. 144).
Observamos essa característica em todos os documentos da época, provavelmente
uma norma de estilo à altura, uma forma de demonstrar erudição e domínio sobre o
vernáculo, além de certo veio poético, a julgar pelo número de aliterações.
Além disso, a ideia da presença do Diabo como um ser físico capaz de afetar o
plano material permeia toda a construção argumentativa. Em Newes from Scotland
(1591),
esse princípio fundamental das políticas do demonismo é de crucial
significância. Este transformava a própria impotência das bruxas de
North Berwick contra uma afirmação da natureza verdadeiramente
divina (ou a magia mais poderosa) da magistratura prematura e,
portanto, até então, bastante hesitante de James. De acordo com a
confissão de Agnes Sampson, extraída pessoalmente por ele, elas
haviam se perguntado por que “nenhum dos seres diabólicos conseguia
ferir o rei, como faziam a vários outros”, ao que o Diabo lhes
respondem: “Il est un home de Dieu' [ele é um homem de Deus]”. James
não poderia ter conseguido para si mesmo uma afirmação melhor de sua
legitimidade nem, nas circunstâncias, por uma autoridade mais
impecável nesse assunto159 (CLARK, 1992a, p. 198).

158
No original: “This is an insistent style, in which adjectives and adverbs with the same meaning are
heaped up.”
159
No original: “This fundamental principle of the politics of demonism is of crucial significance. It
transformed the very impotence of the North Berwick witches into an affirmation of the truly divine nature
(or the more powerful magic) of James's early, and hitherto very hesitant magistracy. According to Agnes
Sampson’s confession, which he personally extorted, they had wondered why 'all ther devellerie culd do na
harm to the King, as it did till others dyvers', to which the Devil had answered, 'Il est un home de Dieu'.
James could not have provided himself with a better statement of legitimacy, nor, in the circumstances,
from a more impeccable authority.”
101

No caso específico do rei James, tratava-se não somente de conter o mal sobre a
Terra, mas demonstrar ser a pessoa mais adequada a governar, não somente a Escócia, da
qual já era rei, como a Inglaterra, até então governada por uma rainha Elizabeth sem
herdeiros diretos.
As confissões das bruxas de North Berwick, descritas no panfleto, também se
preocupam em descrever o tamanho das monstruosidades executadas a fim de produzir
uma tempestade criminosa para assassinar James. A descrição do feitiço que
supostamente a ergueu ocupa duas páginas do panfleto, onde consta o seguinte:

Quando Sua Majestade estava na Dinamarca, [Agnes Tompson],


acompanhada das pessoas anteriormente nomeadas, pegou um gato e
batizou-o, e em seguida prendeu a cada parte do gato as principais
partes de um homem morto, além de diversas de suas articulações, e na
noite seguinte, as bruxas, velejando em suas peneiras ou joeiras […],
levaram esse gato para alto-mar e deixaram-no bem diante da cidade de
Leith, na Escócia. Feito isso, começou tal tempestade como nunca se
viu antes, a causa da perda de um barco ou embarcação vinda da cidade
de Burntisland para a cidade de Leith, onde estavam várias joias e ricos
presentes, que deveriam ter sido dados à atual rainha da Escócia,
quando da chegada de Sua Majestade a Leith160 (ANÔNIMO, 1591, pp.
16-7).

O descrito batismo do gato, embora possa parecer uma brincadeira ou piada de


mau gosto aos olhos de hoje, era um sacrilégio de proporções monumentais. Batizar
animais já era uma heresia dentro do catolicismo e continuou uma abominação dentro do
protestantismo, portanto algo facilmente tornado parte de rituais de bruxaria, cujo
propósito maior, em geral, seria inverter o sagrado e o profano (CLARKE, 1992b)161.
Federici vê na alegada coordenação de esforços das bruxas um medo da nobreza
de as classes servis se organizarem e se rebelarem contra a ordem natural das coisas

160
No original: “[…] at the time when his Maiestie was in Denmarke, [Agnes Tompson] being accompanied
with the parties before specially named, tooke a Cat and christened it, and afterward bound to each parte of
that Cat, the cheefest partes of a dead man, and severall ioynts of his bodie, and that in the night following
the saide Cat was conveied into the midst of the sea by all these witches sayling in their riddles or Ciues as
is aforesaide, and so left the saide Cat right before the Towne of Lieth in Scotland: this done, there did arise
such a tempest in the Sea, as a greater had not beene seene: which tempest was the cause of the perishing
of a Boate or vessell comming over from the towne of Brunt Iland to the towne of Lieth, wherein was
sundrye Iewelles and riche giftes, which should have been presented to the now Queene of Scotland, at her
Maiesties comming to Lieth.”
161
Não à toa, aliás, muitos gestos, símbolos e aparatos católicos tornavam-se elementos de feitiços, como
a hóstia, o crucifixo, a água benta, incensos, além das rezas. Isso ajudava a justificar a condenação de
católicos por bruxaria em terras escocesas e inglesas, e a associar muitas de suas festas à ideia de sabá
(FEDERICI, 2017). Além disso, tanto as festas católicas (idem) quanto os alegados encontros secretos das
bruxas frequentemente continham elementos de diversão, que podiam ser vistos como elementos de
desordem (cf. WILLUMSEN, 2013, p. 124).
102

(2017). Isso não é incompatível com a acusação de que Francis Stewart, conde de
Bothwell, teria contratado as bruxas para assassinar James VI: um poder ilegítimo
alegadamente tentou se sobrepor ao legítimo, portanto divino, por meios diabólicos.
Assim, assevera-se a imagem do rei como um fiel representante de Deus, já que tão
nefastas forças demoníacas tentam derrubá-lo. O fato de James não cair servirá para
exaltar sua ligação com o divino e, portanto, seu absoluto direito de governar. Nas
palavras do historiador Stuart Clark, “o tema recorrente tanto nas acusações de 1590-1
quanto em Newes from Scotland era o fato de a retidão cristã do rei torná-lo um dos
principais alvos do Diabo e, ao mesmo tempo, protegê-lo de todas as suas
maquinações”162 (1992a, p. 198).
No panfleto The wonderful discoverie of the witchcrafts of Margaret and Phillip
Flower, daughters of Ioan Flower, near Beuer Castle… (BARNES, 1619), encontramos
ecos das vozes das duas personagens do diálogo Daemonologie (1597), por ele
referenciado direta e indiretamente.

Figura 4: frontispício do panfleto The wonderful discoverie of the witchcrafts of Margaret and Phillip
Flower, daughters of Ioan Flower, near Beuer Castle… (1619)

162
No original: ‘The recurring theme of both the dittays of 1590-1 and Newes from Scotland was that the
king's Christian rectitude made him the Devil's principal target, and yet at the same time protected him from
all his machinations.”
103

À semelhança de outros da mesma natureza, este se inicia censurando o crime de


bruxaria e descrevendo brevemente do que se trata — embora alegue, já na primeira frase,
não ter tal intenção, “porque as Escrituras estão repletas de proibições com esse propósito
[prática da bruxaria]” [because the Scriptures are full of prohibitions to this purpose]
(BARNES, 1619, p. 1). Alude também, de um modo genérico, a figuras de autoridade
que discorreram sobre o tema: príncipes, filósofos, cronólogos, historiógrafos “e muitos
escritores dignos” [and many worthy writers] (idem, p. 2). A única explicitamente
mencionada, no entanto, é “o nosso próprio rei, erudito e deveras judicioso” [our owne
learned and most iudicious King] (idem, ibidem), o qual sabemos ser James VI & I por
causa do ano da publicação, ocorrida durante seu reinado.
Não bastasse a menção explícita, o enunciado panfletário utiliza a fórmula adotada
no tratado, tornada senso comum pela repetição: “efetuaram-se diversas ímpias e
facínoras más ações através dos instrumentos do Diabo, com a permissão de Deus […]”
[divers impious and facinorous mischiefes haue beene effectuated through the instruments
of the Diuell, by permission of God] (idem, ibidem, grifos meus).
Como nas obras já analisadas, o autor deste panfleto não adentra a seara filosófica
acerca da necessidade de seres humanos condenarem bruxas, quando elas não passam de
instrumentos de uma força extraterrena atuando sob a permissão de outra, dita superior a
todas. Àquela altura, era bem difundido no senso comum que se devia ater às ordens da
Bíblia de condená-las à morte. Como já comentado, a reiteração formulaica by permission
of God parece advir da necessidade de não incorrer na sacrílega possibilidade de
interpretação de que algo poderia ser efetuado contra a vontade divina, mesmo se lhe
soasse contrário, na mesma toada um tanto espasmódica, para retomar a expressão, já
citada, do historiador Sydney Anglo ao comentar o intenso uso dessa formulação.
O panfleto passa, então, a enumerar todas as práticas que tornariam uma pessoa
bruxa, resumindo em uma página o que Daemonologie discute a esse respeito, encerrando
com a afirmação de que wisemen ou wisewomen (bruxos curandeiros, chamados por
Hutton service magicians ou “magos de serviço”) são enganadores mal-intencionados
tentando extorquir dinheiro do leitor-implícito — a quem o texto remete discursivamente
pelo uso de “você” e “seu” [you, your] (idem, p. 3).
Mais do que isso, o texto fala de modo geral, como uma regra, o que servirá ao
particular, nesse caso:
(como eu disse antes) há certos homens e mulheres de idade avançada
e num estágio bastante avançado de melancolia e ateísmo, que — por
104

terem uma propensão maliciosa contra seus superiores, ou contra


terceiros que prosperam ao seu lado, mas também na maioria das vezes
por um desejo agudo de se vingarem, após terem alimentado a
impressão de desprazer ou indelicadeza — dedicam-se somente à
causação de estragos e a exóticas práticas de repugnantes artes e
ciências”163 (BARNES, 1619, pp. 3-4).

Ora, o caso em análise no panfleto trata de uma mãe e duas filhas que trabalhavam
para o Conde de Rutland, e uma das filhas foi demitida pouco antes de o único herdeiro
do título adoecer (BORMAN, 2014). O trecho acima destina-se, assim, a enquadrá-las
nessa espécie de regra de um conflito de classes antes mesmo de introduzi-las,
imediatamente desculpando as supostas vítimas de bruxaria (aqui aludidas indiretamente
em their betters), na forma como atribui as menos louváveis ações destes últimos à
imaginação das acusadas (no trecho hauing entertained some impression of displeasure,
and vnkindnesse, onde se fala em “impressão”). Dessa maneira, as bruxas referidas
esboçam-se como maliciosas e ressentidas, desejosas de vingança contra ato que é
produto de uma imaginação senil, melancólica e ateia.
A sobreposição da condição até então entendida como médica da melancolia com
o ateísmo, este uma espécie de doença da alma, presta-se a compor a figura das acusadas
sob um viés desfavorável. Segundo Tracy Borman (2014), o fato de as Flower, mãe e
filhas, não terem o hábito de frequentar a igreja indispunha os vizinhos contra elas, o que
ajudaria a constituir sua fama de bruxas. Além do mais, o cenário constrói-se na mesma
lógica das inversões, segundo descritas por Stuart Clark (1997), predominante no
pensamento da época: se não são devotas de Deus, são contra Deus e, portanto, aliadas
do demônio.
Após assim procurar condicionar a visão do enunciatário, o narrador do panfleto
discute o que se consolidou como estereotípico, incluindo os familiares em forma de
animais (BARNES, 1619, pp. 5-6), para então reiterar que as bruxas agem “sem nenhum
temor a Deus ou ao Homem, nenhum conhecimento de Cristo, nenhuma esperança de
redenção, confiança na misericórdia ou verdadeira crença na existência de algo a se

163
No original: “only (as I said before) there bee certaine men and women growne in yeares, and ouer-
growne with Melancholly and Atheisme, who out of a malicious disposition against their betters, or others
thriving by them. But most times from a heart-burning desire of revenge, hauing entertained some
impression of displeasure, and vnkindnesse, study nothing but mischiefe and exoticke practises of
loathsome Artes and Sciences […]”.
105

esperar, além do mundo presente”164 (idem, p. 6). Tudo isso, ressalte-se, é trazido no texto
de forma generalizada, aplicável às bruxas como um todo, construindo uma lógica que
logo será aplicada ao caso particular das Flower.
A questão principal, assim sendo, parece residir no fato de a bruxa não se contentar
com seu lugar no mundo — algo já sinalizado acima em “propensão maliciosa contra seus
superiores” [malicious disposition against their betters] — e não demonstrar “temor a
Deus ou ao Homem”, aqui se destacando que a autoridade humana e notoriamente
masculina se encontra no eixo do divino. É, dessa forma, uma questão de ordem versus
desordem, na qual as hierarquias sociais devem ser mantidas, e na qual a bruxa atua como
uma anomalia, alguém capaz de agir contra their betters por malícia, vingança ou mesmo
puro capricho, à margem da lei, alguém contra quem não há chance possível de defesa
senão a fé, dentro do protestantismo, e o processo legal, que pode no máximo punir suas
ações, não preveni-las.
Apesar de a cultura pop atual e mesmo, por muito tempo, acadêmicos terem
pintado a crença em bruxas como um fenômeno irracional de histeria generalizada, ou
uma forma fria de sadismo institucionalizado, a elite intelectual construiu-a (e,
posteriormente, desconstruiu-a) como uma verdadeira ciência, ao mencionar, como faz o
enunciador deste panfleto, casos observados e outros estudos de figuras de autoridade,
como teólogos, juristas e médicos. Se na primeira página essas pessoas referidas pareciam
abstratas, descritas como grupos de profissões, mais adiante são citados nominalmente os
tratados de James VI & I, o de um clérigo, Mr. Alexander Roberts — especificando a
“descoberta” por ele analisada, sobre um pacto com o Diabo —, o do Dr. John Cotta —
também resumindo brevemente seu conteúdo —, o do ministro da palavra George Gifford
e muitos outros (BARNES, 1619, pp. 7-9).
Toda essa metodologicamente respeitável introdução — que, exceto por misturar
Estado e religião não difere muito da atual metodologia acadêmica de vertentes teóricas
— antecede uma breve defesa do sistema de justiça, incluindo tortura, e enfim a
apresentação do caso das Flower (idem, p. 10). Ou seja, as primeiras páginas do panfleto
buscaram dar embasamento teórico ao caso empírico a ser discutido em seguida. Dessa
forma, o enunciador coloca-se como erudito, devoto e bom súdito, assumindo o papel de

164
No original: “[…] without any feare of God or Man, knowledge of Christ, hope of redemption,
confidence of mercy, or true beleefe that there is any other thing to bee looked after but this presente World
[…]”.
106

narrador confiável, mesmo não se identificando da maneira inequívoca de Henry


Goodcole, autor do panfleto analisado a seguir.
Na introdução do caso das bruxas Flower, é retomado o motivo de Jó, muito
embora não expresso textualmente, ao se asseverar que Deus pode enviar “extraordinária
vingança mesmo ao inocente” [extraordinary vengeance as well on the inocent] para
manifestar a sua glória (idem, p. 10)165. Isso é importante no contexto deste panfleto
porque, se as bruxas são um instrumento diabólico que atua sob a permissão de Deus
também como forma de punir os iníquos, o texto seria completamente diferente se a
intenção fosse atacar o Conde de Rutland, Sir Francis Manners, sempre referido aqui de
maneira respeitosa, descrito reiteradamente como Right Honourable. Isso é interessante
porque o conde e sua esposa eram católicos (BORMAN, 2014, p. 20) e em nenhum
momento o fato é mencionado no panfleto. Não há sombra da acusação “papistas”
pairando sobre eles. Assim, é certo concluir que o panfleto objetiva proteger Rutland de
suspeita num contexto tão protestante, no qual papistas são tidos por idólatras, traidores
e afins, ao defender sua honra e sugeri-lo como vítima inocente, cujos servos e filhos
foram afligidos por bruxaria (BARNES, 1619, pp. 11-2). Segundo a historiadora Tracy
Borman, Rutland era bastante próximo ao rei e sua propriedade, um lugar sempre visitado
nos tours periódicos do monarca (2014).
A família nobre é narrada como alegre e bondosa, sendo o castelo “uma recepção
diária para todo o tipo de gente, tanto rica quanto pobre, especialmente o povo tão antigo
da vizinhança”166 (idem, p. 12). Dentre essas pessoas pobres, constam Joan Flower, a
mãe, e suas filhas Phillip e Margaret, sendo esta última residente no castelo, pois trabalha
tanto no aviário quanto na lavanderia. Esse cenário muda quando Lady Rutland descobre
algo “relacionado à má conduta dessas mulheres” [which concerned the misdemeanour
of these women]. A narrativa procura eximir os Rutland de qualquer culpabilidade,
fazendo pequenas insinuações desse tipo acerca das Flower. Com a referência à sua má
conduta [misdemeanour], cria-se uma expectativa que não é imediatamente atendida;
antes vem uma longa discussão que, a princípio, não parece imediatamente relacionada,
embora logo se compreenda sua pertinência:

165
Gostaria de demarcar aqui a proximidade que esse ponto de vista guarda com o de Scot em Discoverie.
É muito interessante o quanto, apesar de partirem mais ou menos do mesmo lugar, os autores alcançam
conclusões tão diferentes por causa de sua posição prévia em relação ao assunto em debate. Isso leva a
pensar bastante em qualquer discussão política e ajuda a entender os processos retóricos de construção da
verdade, enviesados por um crer nem sempre explícito na enunciação-enunciada.
166
No original: “a daily receptable for all sorts both rich and poore, especially such auncient people as
neighboured the same.”
107

E, embora não falte a tais pessoas honoráveis toda a sorte de gente, seja
para trazer notícias, histórias, relatos, seja para servir aos mais diversos
trabalhos, de forma que se possa dizer acerca delas, tanto quanto a
respeito de grandes reis e príncipes, que têm mãos grandes, orelhas
largas e visão apurada para descobrir os confins inalcançados de seus
limites mais remotos, para chegar até suas fronteiras mais distantes e
para entender os segredos de seus súditos mais cruéis. Ainda assim,
nessa matéria, não se tratava de gente intrometida, aduladores, políticos
maliciosos, sabotadores, nem suplantadores da sorte alheia: elas
simplesmente iam trabalhar, como convém à honra do Conde e sua
Lady, e assim pouco a pouco deram-lhes a entender suas queixas167
(BARNES, 1619, pp. 11-2).

Esse é o trecho imediatamente anterior à primeira acusação direta a Joan(e)168


Flower. Nele, expressa-se primeiro uma desculpa para os Rutland não haverem notado
antes terem admitido a presença de malfeitoras, insinuando que eles estariam mais
preparados para lidar com tipos mais refinados de traidores, aos quais membros da
nobreza já esperavam estar sujeitos (gente intrometida, aduladores, políticos maliciosos,
sabotadores, suplantadores da sorte alheia [busie-bodies, flatterers, malicious politians,
vnderminers, supplanters…]). Simultaneamente, alça os Rutland ao nível da capacidade
divina de uma quase onisciência, senão onipresença (pessoas que lhes trazem notícias,
representando seus sentidos aguçados dentro de suas terras e zona de influência: mãos
grandes, orelhas largas e visão apurada [large hands, wide eares, piercing sights], e reduz
as acusadas a um ponto que torna plenamente justificável alguém não as ter percebido até
ser tarde demais.
Ocorre o alinhamento com o divino, que tudo sabe e tudo vê em seu domínio, à
mesma maneira dos príncipes e reis em relação a seus reinos, e, portanto, ao conde em
relação a suas propriedades. Infere-se que, se ele não tomou conhecimento delas, foi
porque elas não se faziam notar (“simplesmente iam trabalhar” [simply went to worke]),
numa época em que os servos mal passavam de cenário, se estivessem no exercício
correto de suas funções.

167
No original: “And although such honourable persons [the Earl of Rutland and his wife] shall not want
of all sorts of people, either to bring the newes, tales, reports, or to serue their turne in all offices whatsoeuer;
so that it may well be said of them, as it is of great Kings and Princes, that they haue large hands, wide
eares, and piercing sights to discouer the vnswept corners of their remotest confines, to reach euen to their
furthest borders, and to vnderstand the secrets of their meanest subiects: yet in this matter, neither were
they busie-bodies, flatterers, malicious politians, vnderminers, nor supplanters one of anothers good
fortune; but went simply to worke, as regarding the honor of the Earle and his Lady, and so by degrees gaue
light to their vnderstanding to apprehend their complaints.”
168
Não há padrão para o nome da Sra. Flower. Ao longo do panfleto, ele aparece como: Joan, Ioan, Joane,
Ioane.
108

Novamente, atentemos a essa lógica de opostos e notemos o quanto a construção


do ethos do enunciador e das figuras heroicizadas é tão importante quanto, ou mais do
que, a caracterização das bruxas, as inimigas, antagonistas, desempenhando o indiscutível
papel de antissujeito, no texto.
Somente após essa longa exaltação do papel da nobreza, seu suposto amplo
conhecimento acerca do que se passa em seus territórios e a desculpa velada de que as
criadas tinham pouca importância para se fazerem notar, é que se passa a falar das bruxas
em si, portanto em quase um terço do panfleto.
A descrição inicial de Joan(e) Flower não difere muito da de outros panfletos,
retomando a imagem já bem fixa da aparência e do comportamento de uma bruxa àquela
altura:
Ioane Flower, a mãe, era uma mulher monstruosa e maliciosa, cheia de
maldições, pragas e imprecações irreligiosas, e, a julgar por tudo o que
viam dela, uma evidente ateia. Além disso, recentemente até mesmo seu
semblante tinha se tornado distante, seus olhos, fulminantes e vazios,
sua fala, feroz e maliciosa, seu comportamento, estranho e exótico, e
sua conversação, distanciada. Desse modo, todo o curso de sua vida
criava grande suspeita de ela ser uma bruxa notória. Alguns de seus
vizinhos ousaram afirmar que ela lidava com espíritos familiares e
aterrorizava todos com maldições e ameaças de vingança, se houvesse
a mínima causa de desprazer ou indelicadeza169 (BARNES, 1619, pp.
13-4, grifos meus).

As únicas acusações independentes de interpretação subjetiva, no contexto, são a


linguagem indisciplinada de Joan(e), sua falta de religiosidade, interpretada como
ateísmo, e as ameaças de vingança. No entanto, uma acusação de bruxaria nessa época
não se constrói somente sobre o crime a partir do qual a bruxa é levada à justiça.
Diferentemente do que acontecia no reinado de Henrique VIII, no qual a bruxaria seria
antes um método de se cometer um crime como roubo ou assassinato, no século XVII o
próprio ser bruxa constitui um crime, muito embora normalmente outra acusação fosse
necessária para levá-la a juízo e provar, dessa maneira, a bruxaria (salvo nos períodos de
pânico, como nos casos de East Anglia entre 1640 e 1645, cf. GASKILL, 2006). Assim

169
No original: “Ioane Flower the Mother was a monstrous malicious woman, full of oathes, curses, and
imprecations irreligious, and for any thing they saw by her, a plaine Atheist; besides of late days her very
countenance was estranged, her eyes were fiery and hollow, her speech fell and enuious, her demeanour
strange and exoticke, and her conuersation sequestred; so that the whole course of her life gaue great
suspition that she was a notorious Witch, yea some of her neighbours dared to affirme that shee dealt with
familiar spirits, and terrified them all with curses and threatening of reuenge, if there were neuer so little
cause of displeasure and vnkindnesse.”
109

sendo, a hiperadjetivação característica de textos dessa altura servirá para empilhar


“evidências” contra a acusada.
As partes destacadas da passagem acima são de especial interesse por conterem
um discurso reiterado a respeito da aparência de uma bruxa. O narrador afirma que
“recentemente” [of late dayes], “até mesmo seu semblante tinha se tornado distante” [her
very countenance was estranged], reciclando a ideia de que alguma coisa na aparência ou
na expressão de uma pessoa pode indicá-la como bruxa170. Tudo o que se segue
provavelmente caberia mais adequadamente numa obra de ficção do que num texto que
se pretende objetivo, se fosse escrito hoje em dia, pois caracteriza uma personagem de
maneira enviesada sem fornecer nenhuma real informação. O que é, exatamente, um
semblante distante [countenace estranged]? Deve ser algo relacionado à sua expressão,
mas como? Seja como for, parece algo novo, ocorrido no intervalo definido por
“recentemente” [of late dayes]. Mas então o que seriam olhos “fulminantes” [fiery] e
“vazios” [hollow]? E quanto ao comportamento estranho e exótico [demeanour fell and
exoticke]? Essas descrições decerto evocam imagens que, mesmo num contexto de menor
variação social do que o nosso, são bastante imprecisas. Talvez Joan(e) Flower parecesse
aos seus conterrâneos haver se tornado mais autocentrada (a partir de hollow, se
interpretarmos a descrição como a de um olhar fito, distante) ou irascível (se nos
ativermos a fiery). Talvez exoticke refira-se ao quanto seu comportamento está deslocado
em relação ao padrão esperado, mesmo considerando que ela foi, de saída, apresentada
como uma monstrous malicious woman, já destacada como desviante.
Muito se evoca e, sobre essa imprecisão, somada ao ateísmo e às imprecações
atribuídos a Joan(e), vem a conclusão esperada: toda a sua vida levantava suspeitas de
que ela fosse uma “bruxa notória”. Não se aponta nada muito prático sobre seu cotidiano,
exceto talvez uma propensão a brigar, a partir da “fala feroz e maliciosa” [speech fell and
enuious], e da falta de observância aos modos religiosos de então, dado que ela não
costumava frequentar a igreja. Quanto à suposta inveja que transbordava da fala de
Joan(e), segundo o narrador, o enunciado já havia sugerido seu objeto: os Manners, a
família nobre com o título Rutland, que empregava sua filha.

170
No podcast Witch Hunt (BBC Scotland, 2019), historiadores discutiram interessantes casos de
witchfinders que se declaravam capazes de reconhecer uma bruxa apenas olhando para ela. Houve um, em
especial, no qual a witchfinder em questão terminou desmascarada e disso resultou uma imediata
interrupção nos processos. Ela apontava suspeitos de bruxaria e estes eram levados à justiça. Um dia,
alguém teve a ideia de trocar de roupa alguns desses acusados identificados por ela e apresentá-los outra
vez, junto a outras pessoas, e ela não apontou os mesmos (cf. WITCH HUNT, 07/11/2019, 4’14”-6’12”).
110

O narrador tem o escrúpulo de atestar, desde o início, que tais não são as suas
próprias impressões — distanciando-se da acusada e do cotidiano no qual estava inserida,
primeiro com um they difícil de localizar dentro do texto em for any thing they saw by
her. Após apontar Joan(e) como bruxa, recorre-se ao testemunho mais explícito de
“alguns de seus vizinhos” [some of her neighbours], como não poderia deixar de ser,
naquele contexto de vida comunitária a um só tempo muito próxima, interdependente e
conflituosa. Deles vem o relato de envolvimento com familiares, os demônios ou espíritos
demoníacos em forma animal, e também as ameaças de Joan(e), destacando
particularmente as de vingança mediante “o mínimo desprazer ou falta de gentileza” [so
little cause of displeasure and vnkindnesse].
Ou seja, a voz de Joan(e) não aparece nem mesmo em discurso indireto, mas
através do discurso indireto de terceiros não nomeados, já indispostos contra ela. Além
disso, reitera-se aqui também a minimização de seus sofrimentos. Isto é, Joan(e),
monstruosa e maliciosa, ateia, “boca suja”, atrelada a espíritos familiares, é ainda alguém
predisposta a uma reação desproporcional mediante a menor provocação.
Interessa observar, além disso, a proeminência dada à reação dos vizinhos a tais
ameaçadas pela própria construção frasal: “Joan(e) terrified them all”, na voz ativa que
tão pouco aparece ao longo do texto. Ela é posta como o sujeito agente, algo que a
supressão de sua voz nega. No trecho, emite-se uma opinião acerca de sua fala e de sua
conversação sem expor as bases para ela, nem dar voz à(s) pessoa(s) que o disseram, nem
mesmo as nomeando.
Já as acusações contra as filhas são de ordem um pouco mais prática: Margaret
aparentemente gastou muito dinheiro e roubou provisões da Lady Rutland, além de não
respeitar horários, “crimes” para os quais a utilização de bruxaria é supérflua, enquanto
Phillip é indiciada por enfeitiçar um homem, “pois ele não tinha poder de deixá-la” [for
he had no power to leave her], além de supostamente tê-lo “alterado” [altred], “tanto em
mente quanto em corpo, desde que a conheceu” [both in minde and body, since her
acquainted company] (BARNES, 1619, p. 14).
A despeito desses exemplos mais diretos de má conduta, aparentemente de
conhecimento público de origem antiga, o narrador prefere ater-se nesse primeiro
momento à comparação moral entre a família Manners e as Flower, e não demonstra
escrúpulos em lhes atribuir motivação, com um olhar enviesado sobre o comportamento
observado. Metade da página 15 do folheto é ocupada por uma balança valorativa entre
111

as qualidades dos Manners e os defeitos das Flower, a partir de uma estrutura frasal
repetida, formada a partir de such was:

Ainda assim, tal era a honradez deste Conde e de sua Lady; tal era a
astúcia dessa mulher monstruosa em observação a eles; tal era a sutileza
do Diabo de fazer seus propósitos acontecerem; tal era o prazer de Deus
em testar todos os seus servos; e tal era o efeito da sagacidade e da
inveja maliciosa de uma mulher maldita, que todas as coisas foram
conduzidas com a suavidade dos afetos e bom entretenimento de todos
os lados, até o Conde pouco a pouco deixar de gostar dela [Joan(e),
provavelmente] 171 (BARNES, 1619, p. 15).

A linguagem é bastante evocativa no que diz respeito ao caráter das partes e


igualmente explícita ao mencionar Deus e o Diabo, mas vai se tornando truncada e
obscura à medida que tenta (não) narrar acontecimentos. Depreende-se que Rutland
conhecia Joan(e) e, em algum nível, mantinha com ela algum contato e uma relação
cortês, aqui sugerido em “the smooth Channell of liking and good entertainment on every
side”. Essa afirmação nega a anterior de que as Flower eram desimportantes demais para
os senhores as notarem, bem como a sequência:

[O Conde acabou afastando-se] daquela familiaridade e das habituais


conversas que estava propenso a ter com ela. Até que uma moça
ofendeu [Joan(e)] de algum modo, contra quem esta deu queixa, mas
descobriu que meu Lorde não se abalou com seus clamores e relato
malicioso; até que um Sr. Vavasor abandonou a companhia dela, ou
suspeitoso de sua vida lasciva, ou enojado com sua própria aversão a
tais criaturas pobres e vis, que ninguém amava, além da família do
Conde […]172 (BARNES, 1619, pp. 15-6).

Observa-se uma completa ausência de imparcialidade — no contexto de produção


e recepção pretendida da obra, isso não só não é um valor como nem mesmo é desejável.
O enunciador coloca-se em posição de subalterno do Conde ao referir-se a ele como “my
Lord”, assumindo seu lado abertamente e não escondendo isso na construção discursiva.

171
No original: “Notwithstanding such was the honour of this Earle and his Lady; such was the cunning of
this monstrous woman in observation towards them; such was the subtilty of the Divell to bring his purposes
to passe; such was the pleasure of God to make tryall of his servants; and such was the effect of a damnable
womans wit and malitious envy, that all things were carried away in the smooth Channell of liking and
good entertainment on every side, until the Earle by degrees conceived some mislike against her.”
172
No original: “[…] and so, peradventure estranged himselfe from that familiaritie and accustomed
conferrences hee was wont to have with her: untill one Peate offered her some wrong; against whom shee
complained, but found that my Lord did not affect her clamour, and malicious information, untill one Mr
Vavasor abandoned her company, as either suspicious of her lwed life, or distasted with his owne misliking
of such base and poore Creatures, whom nobody loved but the Earles household.”
112

Como já apontado anteriormente e a citação acima bem exemplifica, o teor dos


acontecimentos permanece vago, predominando uma campanha difamatória contra as
Flower, em particular Joan(e). Não se identifica a moça de quem esta reclamou ou o
conteúdo da ofensa [wrong] e, na verdade, seu relato é de imediato tachado de
“malicioso” [malicious information]. E quem é o Sr. Vavasor que se afastou dela? Sendo
tratado por “Mr”, trata-se de alguém respeitável, em contraponto às Flower, chamadas
sempre apenas pelo nome. Dessa forma, é uma pessoa — um homem — adequado para
contrastar com Joan(e), cada vez mais vilipendiada, agora reduzida a uma das “criaturas
pobres e vis” [base and poore Creatures] que só a benévola família do Conde amava;
alguém que suscita repugnância no cavalheiro nomeado de quem nada sabemos, que
talvez tenha se afastado por suspeitar da “vida lasciva” [lewd life] de Joan(e).
As relações entre essas pessoas e seu grau de proximidade não ficam claros, mas
o fato de o texto se contradizer, sim; elas deixaram de ser empregadas desimportantes
para terem alguma “familiaridade” com a pessoa do Conde, propenso [wont] a conversar
[accustomed conferrences] com Joan(e), inclusive amadas somente pelos Manners.
Algum desses traços paradoxais foi exagerado, a fim de ressaltar alguma qualidade da
família Manners através da disparidade da comparação. Mais uma vez, as bruxas sobre
as quais a narrativa se centra servem apenas como uma grande tela negativa sobre a qual
se projeta a positividade dos heróis.
A condessa descobriu “indecências” [vndecencies] de Joan(e), tanto em sua vida
pessoal quanto na negligência ao trabalho, e dispensou-a do castelo, porém lhe deu algum
dinheiro (?), uma almofada [bolster] e um colchão de lã. Como se vê, também a Lady é
retratada como extremamente bondosa e altruísta, e o enunciador logo atribui a reação de
Joan(e) à frouxidão [slacknesse] do Castelo em cobrar o que ela devia. Amor ao
“honorável Conde e sua família” tornou-se “ódio e rancor’ [hate and rancor]. Qualquer
suposta motivação para isso é logo desconsiderada, atribuída à sua imaginação (por
exemplo, ao falar em conceived displeasures”).
Joan(e), então, “superou qualquer vergonha e feminilidade e muitas vezes
amaldiçoou todos que eram a causa de tal descontentamento, tornando-a tão repugnante
para seus antes amigos, familiares e conhecidos benévolos”173 (BARNES, 1619, p. 16).
Essa passagem interessa porque o forte julgamento do narrador deve-se ao fato de Joan(e)

173
No original: “she grew past all shame and Woman-hood, and many times cursed them all that were the
cause of this discontentment, and made her so loathsome to her former familiar friends, and beneficiall
acquaintance.”
113

ter praguejado [cursed], pelo visto publicamente, uma evidência de sua má índole e
ateísmo, que a teriam tornado terreno fértil para o Diabo. Na época, qualquer tipo de
blasfêmia enunciada em voz alta, ou mesmo pensada, poderia atrair o Diabo. As palavras
enunciadas têm poder e, se o têm em oração e bendições, também em maldições, em
particular saindo da boca de uma “bruxa notória” — e daí advém a importância de
estabelecer o caráter e a fama de bruxa de Joan(e) antes de iniciar o relato. É um formato
narrativo mais ou menos fixo porque eficaz. Na análise do próximo panfleto, Edmonton
(1621), veremos um caso ainda mais curioso sobre os males de se amaldiçoar e praguejar
em voz alta, que nos ajudará a compor um quadro mental da gravidade de agir assim
dentro daquele contexto.
Antes de passar à próxima passagem, gostaria de chamar a atenção para o uso do
termo Woman-hood, que traduzi para “feminilidade” na falta de um melhor. Não é
femininity ou femaleness, que hoje teriam uma conotação romântica (i.e. oriunda do
Romantismo) de delicadeza, fragilidade; trata da própria característica do ser mulher —
ao amaldiçoar/ praguejar publicamente Joan(e) abriu mão dessa parte de seu ser ou
negou-a e, com isso, afastou antigos amigos e “conhecidos benévolos” [beneficiall
acquaintance]. O veredito implícito é que essas pessoas decentes se afastaram, uma vez
que o comportamento a tornou “repugnante” [loathsome] a seus olhos. Se ela continuou
a ter amigos, esses não foram mencionados, e provavelmente teriam recebido uma
extensão da condenação moral direcionada a Joan(e), sendo classificados de conhecidos
não benévolos. Ou seja, má companhia.
Agora, um trecho interessantíssimo traz o narrador com focalizador no ponto de
vista do Diabo. Vê-se claramente o quanto era uma figura presente no cotidiano a partir
da segurança com a qual o enunciador pretende-se entendedor do arbítrio dessa entidade:

Quando o Diabo percebeu a disposição infeciosa dessa desgraçada, e


que ela e suas filhas poderiam facilmente virar instrumentos para
ampliar seu reino, e assim se tornarem executoras de sua vingança —
sem se importar se atingisse inocentes ou não —, ele se aproximou
delas e, em termos diretos para alcançar logo seu propósito, ofereceu-
lhes seu serviço de tal maneira que elas pudessem lhe ordenar [pedir?]
o que quisessem. Ele pode visitar você na forma de cachorro, gato ou
rato, para que elas não se amedrontem nem ninguém suspeite. Elas
concordaram com isso e (ao que parece) cederam suas almas em troca
do serviço de tais espíritos, conforme ele lhes prometera. Tais
condições imundas foram ratificadas com beijos abomináveis e um
odioso sacrifício de sangue, sem deixar de fora certos feitiços e
conjurações com os quais o Diabo as enganou, como se não pudesse
114

fazer nada sem cerimônia e uma solenidade de ratificação metódica. A


essa altura, Satã triunfa e parte satisfeito de ter apanhado esses peixes
na rede de suas ilusões174 (BARNES, 1619, pp. 16-7, destaques meus).

Observemos que o narrador não hesita em narrar a racionalização do Diabo e nem


mesmo seus sentimentos. Se o narrador percebe a “disposição infeciosa” das três Flower,
não há dúvida de que o Diabo — afeito a isso — também o percebe. Do mesmo modo, é
ponto pacífico que ele não se importa com inocentes e também parece lógico que, se se
deu ao trabalho de ir atrás das mulheres para fechar com elas um pacto, tenha saído
satisfeito com seu sucesso.
Gostaria de ressaltar também que o narrador, em meio a todo esse relato
envolvendo as Flower, o Diabo e o pacto, só inclui a ressalva entre parênteses “ao que
parece” [as it should seeme] ao anunciar que elas “cederam suas almas” [give Away their
soules] (idem, p. 17), sugerindo que seja esta a afirmação mais grave ou espantosa dentre
todas as que fez. E talvez seja: num contexto em que se sabe sobre a existência de Céu e
Inferno — mais do que se crê, na conjuntura da época —, prometer a alma ao Diabo é
concordar em passar a eternidade em seus domínios. Só o atual ateísmo ou talvez
agnosticismo preponderante na ciência permite fazer chacotas disso, como em tantas
obras audiovisuais e literárias, e até clipes musicais175.
As perspectivas do Diabo estavam integradas ao senso comum, bem como a forma
tomada pelo pacto — tanto é que esta última é dada em termos genéricos, sem grandes
detalhes, talvez porque isso não fosse fundamental para a narrativa construída no panfleto,

174
No original: “When the Divell perceived the inficious disposition of this wretch, and that she and her
Daughters might easily bee made instruments to enlarge his Kingdome, and bee as it were the executioners
of his vengeance; not caring whether it lighted upon innocents or no, he came more neerer unto them, and
in plaine tearmes to come quickly to the purpose, offered them his service, and that in such a manner, as
they might easily command what they pleased: For hee would attend you in such prety formes of dog, cat,
or Rat, that they should neither be terrified, nor any body else suspicious of the matter. Upon this they
agree, and (as it should seeme) give away their soules for the service of such spirits, as he had promised
them; which filthy conditions were ratified with abhominable kisses, and an odious sacrifice of blood, not
leaving out certaine charmes and conjurations with which the Divell deceived them, as though nothing
could bee done without ceremony, and a solemnity of orderly ratification. By this time doth Satan triumph,
and goeth away satisfied to have caught such fish in the net of his illusions.”
175
Para dar um exemplo recente, o cantor pop estadunidense Lil Nas X lançou, em 26 de março de 2021, o
videoclipe da música “MONTERO (Call me by your name)”, na qual fala sobre sua homossexualidade. A
obra audiovisual é repleta de referências bíblicas, partindo do Jardim do Éden com Eva e a serpente até,
numa reviravolta, o cantor que estava a caminho do Céu após a morte descer para o Inferno numa barra de
pole dance, fazer uma dança sensual no colo do Diabo (antropomórfico, mas animalizado com chifres,
casco e pele vermelha) e terminar por matá-lo e roubar seus chifres, que usa como uma coroa. O clipe
quebrou recordes e ficou várias semanas entre os primeiros lugares de vários países. Sua natureza
controversa provocou a mesma medida de indignação entre diversos grupos religiosos, resultando em
pedidos de retirada do ar nas instâncias competentes, inclusive obtendo sucesso em alguns países. Em meu
último acesso (22/11/2021), o vídeo oficial no Youtube tinha quase 400 milhões de visualizações. Uma
obra com tal abordagem seria impensável no início do século XVIII.
115

ou talvez porque àquela altura a audiência pretendida já soubesse bem como funcionava.
Esta última hipótese encontra respaldo em abhominable kisses e an odious sacrifice of
blood, que, de maneira vaga (apesar dos adjetivos incisivos) aludem, respectivamente, ao
beijo anal que a bruxa daria no Diabo e à oferta de sangue que ela lhe faria, o qual ele
sugaria de uma parte inconspícua do corpo, em geral na região perianal ou na virilha.
O efeito do pacto também faz parte do rol de conhecimentos demonológicos bem
difundidos na elite letrada, como os tratados referenciados no início evidenciam, e
novamente o enunciado é marcado por uma estrutura sintática repetitiva, criando efeito
de ênfase dramática:
A essa altura, essas mulheres são demônios encarnados e voltam a
ter orgulho de sua astúcia e poder artificial para fazer a maldade que
desejassem. A essa altura, aprenderam encantamentos, feitiços e
encantos. A essa altura, matam o gado que desejam e, sob o disfarce da
adulação e da familiar hospitalidade, mantêm oculta a serpente
peçonhenta da malícia e uma inclinação venenosa para a maldade. A
essa altura, o Conde e sua família estão em perigo e devem sentir o peso
de uma terrível tempestade, que através das maquinações diabólicas
dessas mulheres caiu sobre ele, sem que o suspeitasse ou entendesse. A
essa altura, tanto ele quanto sua honorável condessa são muitas vezes
assolados por doenças e convulsões extraordinárias, às quais — tendo
eles tomado por gentis correções da mão de Deus, submetem-se em
silêncio à Sua misericórdia, sem nada mais levar em consideração além
da glorificação do Criador no Céu e das cruzes a serem carregadas na
Terra.
Enfim, conforme a malícia aumentava nessas mulheres danadas,
assim a família [do Conde] sentiu a agonia da vingança e da disposição
infeciosa delas, pois o filho mais velho Henry, Lord Ross, contraiu uma
doença muito estranha e, depois de um tempo, morreu. O próximo
herdeiro do conde, chamado Francis, Lord Ross, portanto, foi
severamente atormentado por elas e bárbara e desumanamente
torturado por uma doença estranha; não muito depois, Lady Katherine
foi apanhada pelas práticas perigosas e diabólicas dessas mulheres,
muitas vezes com grande risco de vida, através de doenças extremas e
crises incomuns. Aliás (ao que parece, e depois elas confessaram), tanto
o Conde quanto a Condessa foram pegos na armadilha delas, como elas
conceberam e de fato determinaram-se a impedi-los de terem mais
filhos176 (BARNES, 1619, pp. 17-9).

176
No original: “By this time are these women Divels incarnate, and grow proud againe in their cunning
and artificiall power, to doe what mischief they listed: By this time they have learnt the manner of
inchantations, Spells and Charmes: By this time they kill what Cattle they list, and under the covert of
flattery and familiar entertainment, keepe hidden the stinging serpent of mallice, and a venomous
inclination to mischiefe: By this time is the Earle and his familie threatened, and must feele the burthen of
a terrible tempest, which from these womens Divellish devises fell uppon him, hee neither suspecting nor
understanding the same: By this time both himselfe and his honourable Countesse, are many times suiect
[?] to sicknesse and extraordinary convulsions, which they taking as gentle corrections from the hand of
116

A introdução dramática, iniciada com Satã satisfeito na citação anterior, atua


como um preâmbulo para a acusação principal, de ordem prática: o assassinato do
primeiro herdeiro do Conde Rutland, a fragilidade da saúde do herdeiro seguinte, as
doenças de Lady Katherine (filha mais velha do Conde, fruto de seu primeiro casamento,
cf. BORMAN, 2014) e a infertilidade posterior dos Rutland, que de fato não tiveram mais
filhos.
Vê-se que a família Manners é sempre reverenciada como temente a Deus,
disposta a suportar qualquer provação como se fosse uma das gentle corrections.
Portanto, eles não se supõem santos de caráter ilibado a quem Deus jamais pensaria em
testar. Essa submissão silenciosa à vontade divina depõe a favor desses nobres e estaria
destinada a captar a benevolência do público, tanto quanto os adjetivos dispensados a
Joan(e), Margaret e Phillip e a suas ações procuram afastar delas o enunciador,
expressando de qual lado ele está — do bem, de Deus, do rei, do conde. As Flower são
ou aparecem associadas a: stinging serpente of mallice, venomous inclination to
mischiefe, terrible tempest, divellish devises, damnable, revenge and inficious disposition
(esta última já uma segunda ocorrência), dangerous and divellish practises, snares. Elas
pertencem inteiramente ao eixo maligno, diabólico, necessariamente avesso a tudo o que
aquela sociedade entenderia por bom, divino, justo, correto.
Fora essas colocações drásticas, aparecem outras mais sutis, mas ainda
indicadoras do senso comum veiculado no panfleto. Chamo particular atenção para a
expressão “poder artificial” [artificiall power]. Trata-se de uma denominação a respeito
dos conhecimentos mágicos obtidos através do pacto com o Diabo, um poder que elas
adquiriram quando não deveriam, não só pela maldade em si como pela subversão da
ordem “natural” das coisas. Ponho o termo entre aspas porque, sob o ponto de vista
adotado no panfleto — o predominante no contexto —, o poder da nobreza, um braço do
poder real, vem por direito divino e, portanto, é natural. Essa estrutura social com mínima
mobilidade, quando há alguma, é a natural, livre de artifício. O que uma bruxa faz ao
selar um pacto diabólico é subverter a ordem e contornar os limites da sociedade de forma

God, submit with quietnesse to his mercy, and study nothing more, then to glorifie their Creator in heaven,
and beare his crosses on earth. § At last, as mallice increased in these damnable Women; so his family felt
the smart of their revenge and inficious disposition. For his eldest Sonne Henry Lord Rosse sickened very
strangely, and after a while died: his next named Francis Lord Rosse accordingly, was severely tormented
by them, and most barbarously and inhumanely tortured by a strange sicknesse; not long after the Lady
Katherine was set upon by their dangerous and divellish practises, and many times in great danger of life,
through extreame maladies and unusuall fits, nay (as it should seeme, and they afterwards confessed) both
the Earle and his Countesse were brought into their snares as they imagined, and indeed determined to
keepe them from having any more children.”
117

a conseguir atingir uma família nobre — por rancor, malícia ou vingança —, algo que lhe
seria virtualmente impossível sem o “poder artificial” dentro da hierarquia “natural” do
mundo, na qual títulos e status se herdam — haja vista a imediata transferência do título
de Lord Ross a Francis após a morte de Henry — e também a posição de servo, súdito,
povo. Dentro do protestantismo calvinista, a prosperidade sinalizava a parcialidade de
Deus a uma pessoa, então esta também é hereditária.
Para pessoas pobres, a quem faltava esse sinal dos céus, o destino da alma era
mais incerto e talvez por isso o absurdo de fazer um acordo com o Diabo soasse crível,
mesmo se disparatado, às elites que viam nessa pobreza uma prova do desfavor de Deus.
Sob outro prisma, é possível especular que esse desfavor fosse a causa para alguém buscar
o “poder artificial”, nos casos em que isso de fato tenha acontecido.
Não há como concluir, é claro, se foi o caso das Flower; embora o narrador do
panfleto aluda à confissão delas, ele também defendeu o sistema de justiça e o uso de
tortura contra réus por bruxaria no início do texto, o que sugere a possibilidade de elas
haverem confessado nessas circunstâncias.
O texto prossegue informando que o conde, chamado para passar o Natal na Corte,
lidou com a perda do filho “muito nobremente” [most nobly], sem nem suspeitar de
bruxaria, até que “agradou a Deus revelar as práticas vilanescas dessas mulheres” [until
it pleased God to discover the villanous practises of these Woemen] (BARNES, 1619, p
19). As Flower são presas perto do Natal, à revelia do conde, que só fica sabendo após a
prisão (cf. p. 20). As duas filhas de Joan(e), Margaret e Phillip, foram condenadas por
homicídio e executadas de acordo (idem, p. 21), e a mãe teria sido, se não houvesse
morrido antes do término do inquérito e julgamento, realizados num único procedimento:

Ioane Flower, a mãe, antes da condenação (segundo dizem) pediu pão


e manteiga, e desejou que nunca atravessassem [seu sistema digestivo]
se fosse culpada daquilo por que a investigavam. Murmurando com isso
na boca, nunca mais falou outras palavras, mas caiu e morreu enquanto
era carregada para a prisão de Lincoln, com terrível agonia de alma e
corpo177 (BARNES, 1619, p. 20).

O narrador atribui o relato a terceiros com a inclusão dos parênteses “segundo


dizem” [as they say]. Embora o conteúdo soe fabuloso, é interessante como apontamento

177
No original: “Iaone Flower the Mother before conviction, (as they say) called for Bread and Butter, and
wished it might never goe through her if she were guilty of that whereupon shee was examined; so
mumbling it in her mouth, never spake more wordes after, but fell downe and dyed as shee was carried to
Lincolne Goale, with a horrible excruciation of soule and body.”
118

do poder e da importância atribuídos às palavras, especialmente num contexto de se pôr


a verdade à prova. É como se ela houvesse desafiado Deus a contradizê-la e a justiça
divina, respondido de imediato.
A narrativa principal encerra-se aí, com as informações sobre a execução, uma
glorificação a Deus por ter permitido “a descoberta”. O narrador, então, assevera a
necessidade de compartilhar o teor dos interrogatórios e evidências apresentadas pelas
“bruxas” umas contra as outras, em que diz haver mais detalhes acerca do motivo de as
Flower odiarem o conde e sua família, de seus procedimentos de vingança e da bruxaria
em si (BARNES, 1619, p. 21).
A segunda parte do panfleto intitula-se “os interrogatórios de Anne Baker, Ioane
Willimot, and Ellen Greene; conforme seguem etc.” Na página do título, há uma
ilustração das três mulheres, identificadas pelo nome, da esquerda para a direita.

Figura 5: abertura da segunda parte do panfleto The wonderful discoverie of the witchcrafts of Margaret
and Phillip Flower, daughters of Ioan Flower, near Beuer Castle… (1619)
119

A princípio a relação dessas mulheres com o caso anterior é confusa, visto não
terem sido mencionadas. Sabe-se que há alguma porque o interrogatório é conduzido pelo
Conde de Rutland e seu irmão, Sir George Manners, fora os juízes e magistrados.
O depoimento de Anne, começando com histórias sobre cores e planetas e seus
significados, dá a entender que ela é um tipo de vidente. Como não se registravam as
perguntas dos interrogadores e sim apenas o testemunho, é difícil estabelecer a relevância
de seu depoimento. Ela fala de vários nomes de pessoas enfeitiçadas, casos dos quais foi
acusada, decerto respondendo a indagações específicas. Nos dois últimos parágrafos do
depoimento, fala da morte de Lord Henry, filho do conde.
O resto das referências a outros casos — prever as injúrias que sofreu e um
acidente de carroça que poderia tê-la matado, suspostamente matar crianças e uma mulher
com bruxaria — serve para estabelecer sua fama de bruxa, tornando-a apta a testemunhar
contra as Flower178.
Ann(e) Baker não confessa nada relacionado às acusações de assassinato, mas
parece ter admitido em juízo outras práticas de bruxaria. Ao final de seu depoimento, há
o seguinte:
A referida Anne Baker, em 2 de março de 1618, confessou perante
Samuel Fleming, doutor em teologia, que, cerca de três anos atrás, ela
foi a Nothamptonshire e, ao voltar, a esposa de certo Pearke(s?) e
Dennis, sua esposa de Belvoyre disseram-lhe que meu jovem Lord
Henry estava morto, e que havia uma luva do referido lorde enterrada
no solo e que, conforme essa luva apodrecia e se desfazia, assim
acontecia ao fígado do referido lorde.
Ela disse ainda, em 3 de março de 1618, diante de Sir George
Manners, Cavaleiro, e Samuel Fleming, doutor em teologia, que ela tem
um espírito na forma de um cachorro branco, a quem chama de seu bom
espírito179 (BARNES, 1619, pp. 26-7).

Ann(e) Baker não volta a ser interrogada, de acordo com os registros replicados
no panfleto, mas se vê que foi inquirida ao menos em três dias diferentes: 1 de março (a
data constante no registro inicial) e nos dois dias consecutivos, conforme a citação acima,

178
Lembremo-nos do tratado demonológico de James VI & I, no qual discorre acerca da capacidade de uma
bruxa de reconhecer outra.
179
No original: “The said Anne Baker, March 2. 1618. confessed before Samuel Fleming Doctor of
Divinitie, that about 3. yeares agoe, shee went into Nothamptonshire, and that at her comming back againe,
one Peakes wife and Dennis his wife of Belvoyre told her that my young Lord Henry was dead, and that
there was a glove of the said Lord buried in the ground; and as that glove did rot and wast, so did the liver
of the said Lord rot and wast. § Further shee said, March 3. 1618. before Sr. George Manners Knight, and
Samuel Fleming Doctor of Divinity, that shee hath a Spirit which hath the shape of a white Dogge, which
shee calleth her good Spirit.”
120

quando ela falou de assuntos relevantes ao caso das Flower — ou, como se estabeleceu,
do assassinato do Lord Henry Manners por bruxaria.
Aqui temos uma ideia clara do funcionamento do sistema judicial para esse crime
específico, no qual o testemunho de uma bruxa (portanto, criminosa) é levado em
consideração como prova contra outras. A “evidência” de bruxaria contra Lord Henry
baseia-se no ouvir dizer, uma história escutada de outras duas mulheres cujas identidades
são apontadas através de seus maridos. A luva enterrada é um elemento tradicional de
formas agressivas de bruxaria: pertences próximos à vítima escolhida, ou cabelos e unhas,
poderiam ser usados para feri-la, numa relação de contiguidade e continuidade; a luva
representa a mão, que se liga ao resto do corpo. Anteriormente no depoimento, a ré havia
negado ter queimado cabelo e unhas de uma criança (finada) para se vingar da mãe,
embora confessasse que estava com raiva desta.
O que fica bem claro no trecho é o quanto a bruxaria parece ser mais da alçada do
feminino: uma mulher depõe contra outras, a partir de uma história contada por outras
duas. Estas últimas nem mesmo são nomeadas no registro, enquanto todos os acusadores
de Anne Baker — supostas vítimas suas, homens ou mulheres — têm nome e sobrenome
registrados, e às vezes até local de residência: Thomas Fairebarne, William Fairebarne,
Anne Stannige, Elizabeth Hough, William Hough, Ioane Gylles, Nortley, Anthony Gill,
Henry Milles. Em três páginas, apenas desfilam histórias nas quais essas pessoas figuram
ou como vítimas ou como denunciantes, provavelmente resultado de anos de notoriedade
de Anne Baker entre seus vizinhos, e aqui tudo isso aparece para ela negar as suspeitas
mais graves, assumir as mais leves, estabelecendo seu caráter e, por conseguinte, a
relevância de seu testemunho no processo que de fato está correndo na ocasião: Margaret
e Phillip Flower pelo assassinato de Henry Manners, finado Lord Ross e herdeiro de Lord
Rutland, que está entre os magistrados/ interrogadores.
Pelos registros, Joan Willimot (viúva) depôs em pelo menos três dias diferentes,
sendo o primeiro em 28 de fevereiro. Seu testemunho já se centra diretamente contra
Joan(e) Flower. Willimot, também acusada de bruxaria (como aparece depois no
testemunho de Ellen Greene), procura determinar seu bom caráter, opondo-se às Flower
para isso. Estas duas são transgressoras180 das leis secular e divina, mas Willimot procura

180
Conforme lembra Robert M. Schuler, “para as pessoas do início da Idade Moderna, essas categorias de
feminino desviante (megera, diabolista masculinizada, rabugenta, bruxa velha) tinham raiz conceitual num
esquema de inversões morais e sociais que se sobrepunham e frequentemente convergiam” (2004, p. 387).
No original: “For early moderns, these categories of female deviance (shrew, mannish diabolist, scold or
121

se mostrar benévola, usando suas transgressões confessas para propósitos louváveis como
curar, em vez de ferir ou matar:

Esta testemunha disse que Ioane Flower contou-lhe que meu Lorde
de Rutland havia-a tratado mal e que haviam despedido sua filha.
Embora [Flower] não pudesse impor sua vontade ao meu Lorde em
pessoa, ela observara o filho dele e o atingira bem no coração. E disse
que o filho do meu Lorde foi atingido por um espírito branco e que ela
[Willimot] pode curar alguns que a alimentam, e que alguns a
recompensam por seus esforços e de alguns não exige nada.
Disse também que na última sexta-feira à noite, seu espírito veio até
ela e contou-lhe haver uma mulher má em Deeping que dera a alma ao
Diabo e que o referido espírito então apareceu-lhe numa forma mais
feia do que já o fizera e exigiu que ela lhe desse alguma coisa, embora
fosse apenas um pedaço do seu cinto, e falou-lhe que sofrera grandes
dores por ela. [Willimot], no entanto, disse-lhe que não lhe daria nada,
alegando não o ter mandado a lugar algum, apenas para ver como estava
meu Lord Ross, e que seu espírito lhe disse que este ficaria bem 181
(BARNES, 1619, pp. 28-9).

O simples fato de Willimot lidar com esses espíritos já a teria condenado por
bruxaria, não importava quais fossem suas intenções, porém ela parece achar que sua
benevolência ou a absolverá ou mitigará sua pena, de onde vem sua insistência em não
ter entregado nada de si ao espírito, mas ouvido deste acerca da situação do Lord Ross. A
“forma mais feia” [more ugly forme] dessa entidade ao se manifestar para a testemunha
talvez sinalize a gravidade do crime contra o jovem nobre, ou até uma contaminação pela
efêmera proximidade com a pessoa de Joan(e) Flower¸ “mulher má” cuja alma fora
entregue ao Diabo. Os demais depoimentos de Willimot (pp. 30-3) versam sobre espíritos
e suas formas de animais (corujas, ratos, cachorros, gatos) e histórias que Flower teria lhe
contado acerca de seu relacionamento com a família do Conde e rancor daí advindo.

callet, hag or witch) were conceptually rooted in a scheme of moral and social inversions that overlapped
and often converged.”
181
No original: “This examinat saith, that Joane Flower told her that my Lord of Rutland had dealt badly
with her and that they had put away her Daughter and that although she could not have her will on my Lord
himselfe, yet she had spied my Lords Sonne and stricken him to the heart. And she saith, that my Lords
Sonne was striken with a white Spirit and that she can cure some that fead unto her, and that some reward
her for her paines, and of some she taketh nothing. § She further saith, that upon Fryday night last, her
Spirit came to her and told her that there was a bad woman at Deeping who had given her soule to the
Divell, and that her said Spirit did then appeare unto her in a more ugly forme the it had formerly done, and
that it urged her much to give it something, although it were but a peece of her Gircle, and told her that it
had taken great paines for her, byt she saith that she would give it nothing, and told it that she had sent it to
no place but onely to see how my Lord Rosse did, and that her Spirit told her that he should doe well.”
122

Espíritos em formas de animais também integram o depoimento de Ellen Greene


(pp. 34-6), levada a fazer um pacto com estes por Willimot, assim como o das rés Phillip
e Margaret Flower (pp. 37-43), relatados alternadamente, nos quais uma acusa a outra e
ambas acusam a mãe. Espíritos familiares, a quem ordenam fazer mal aos membros da
família do Conde, reaparecem em suas histórias (de onde vem, talvez, a importância
desses seres nos depoimentos anteriores), junto com menções a pactos, sangue sugado de
partes íntimas (p. 37) ou dos seios, numa espécie de anti-amamentação (pp. 36-7). O
escrivão registra as falas das depoentes, testemunhas ou rés, em discurso indireto que
contém as respostas delas, mas não as perguntas feitas. Pela proximidade semântica
desses relatos, é de se imaginar que possam ter sido indutoras, remetendo àquele “ouvir
falar” em que consistem a maior parte das denúncias.
No documento analisado a seguir, veremos um registro atípico nesse sentido: uma
simulação da conversa entre uma ré por bruxaria e um ministro da Palavra, na qual
constam tanto as respostas daquela quanto as perguntas deste, incluindo explicações
acerca do que motivou certas indagações nas margens do texto.

Figura 6: frontispício do panfleto The Wonderfull Discoverie of Elizabeth Sawyer a Witch, late of
Edmonton… (1621)
123

Durante a leitura de The Wonderfull Discoverie of Elizabeth Sawyer a Witch, late


of Edmonton… (1621), percebem-se logo algumas diferenças em relação a outros
panfletos do gênero. Mesmo não sendo algo inédito, o destaque à autoria no frontispício
se presta a dar uma voz de autoridade ao relato, bem como a rubrica destacada published
by authority, ou seja, publicado com a devida permissão do governo. Interessa destacar
isso porque, como supracitado, publicações ilegais abundavam na época.
Henry Goodcole, somos informados, é ministro da palavra e visitante regular da
bruxa na prisão de Newgate. Esse fato, somado à autorização da publicação pelo governo,
imediatamente o torna uma fonte mais confiável de informação. Como alegado no início
do texto panfletário, circulavam boatos, os quais Goodcole declara ver-se obrigado a
desmentir, envolvendo a bruxa executada dias antes da publicação do panfleto. Segundo
a introdução,
a publicação do assunto sobre o qual ora escrevo foi-me extraída por
insistência, embora eu me contentasse em escondê-lo, sabendo a
diversidade de opiniões acerca das coisas dessa natureza, não só entre
os ignorantes como entre alguns dos estudados. Quanto a mim, não lido
aqui com nada além dos fatos, e para isso trago o testemunho dos vivos
e dos mortos, que espero serem autênticos para confirmar este relato e
livrar-me de mentes e bocas severas. Não é minha intenção discutir ou
contestar aqui [a existência] de bruxas e bruxaria; desejo obter uma
dispensa quanto a essa parte, sabendo que num tratado tão curto quanto
este não se poderia abranger efetivamente nenhum assunto, em especial
em tão curto período de ponderação quanto três ou quatro dias. E
publico isto agora para comprar minha paz. Se não o fizesse, mal
poderia ter um minuto de tranquilidade, pois muitos não aceitam um
não, e ainda desejavam de mim cópias escritas desta declaração. Outra
razão foi defender a verdade, que em certa medida já foi ferida pelas
baladas mais vis e falsas, cantadas quando de nosso retorno da execução
da bruxa. Nelas, tive vergonha de ver e ouvir histórias ridículas sobre
ela ter enfeitiçado milho na plantação, um furão e uma coruja
aparecerem diante dela diariamente, a mulher enfeitiçada estar se
automutilando e os espíritos visitarem-na na prisão. Tudo isso eu sabia
ser mais adequado a uma mesa de bar do que ao relato de um processo
na Corte de Justiça. E desse modo eu me surpreendo que essa gente
vulgar que acredita nessas baladas possa entrar rastejando nas prensas
e nos ouvidos das pessoas182 (GOODCOLE, 1621, p. 1-2).

182
No original, “the Publication of this subject whereof now I write, hath bin by importunitie extorted from
me, who would have beene content to have concealed it, knowing the diversitie of opinions concerning
things of this nature, and that not among the ignorant, but among some of the learned. For my part I meddle
heare with nothing but matter of fact, and to that ende produce the Testimony of the living and the dead,
which I hope shall be Authenticall for the confirmation of this Narration, and free mee from all censorious
mindes and mouthes. It is none of my intent here to discusse, or dispute of Witches or Witchcraft, but desire
most therin to be dispensed with all, knowing, that in such a little Treatise as this is, no matter can be
124

O tom do texto, nota-se, é bastante austero, e contribui para construir o ethos do


enunciador, aqui sobreposto ao narrador, como uma figura de autoridade condescendente
que se vê obrigada a esclarecer mentiras pelo bem do povo com acesso a relatos falsos.
A escolha vocabular em geral constrói-se sobre um irritado desprezo (ridiculous fictions,
fitter for an ale-bench, lewde Balletmongers) e uma clara contrariedade: Goodcole é
bastante enfático ao explicar que escreve por causa da insistência de terceiros e por
considerar sua responsabilidade expor a “verdade”.
A questão envolvendo o feitiço contra a plantação de milho é muito típica da
crença popular quanto à abrangência dos poderes da bruxaria: algo de ordem prática capaz
de ameaçar toda uma comunidade. Se qualquer pessoa houver enfrentado algum problema
dessa natureza pela ocasião do julgamento e da prisão da bruxa, seria um motivo lógico
atribuir isso a ela também. Como já comentado, uma bruxa é uma ameaça interna oculta
no seio da comunidade. Assim sendo, é interessante o tom do enunciado ao classificar o
rumor de que Elizabeth Sawyer teria enfeitiçado o milho junto de outras ridiculous
fictions, pois esse era um poder bem aceito das bruxas em geral, mesmo se não incluso
entre as acusações formais contra a ré nesse caso específico — um sinal da disparidade
entre as crenças populares e as da população instruída. Os demais itens desdenhados por
Goodcole como mais dignos de uma mesa de bar do que da Corte de Justiça também
constituem capacidades comumente atribuídas às bruxas, como diversas confissões e
depoimentos em julgamentos podem comprovar (GASKILL, 2006).
Conforme o próprio Goodcole comenta em sua introdução, questões envolvendo
bruxas eram bastante controversas, tamanha a dificuldade de determinar a validade das
provas contra elas. Isso, é claro, não significa que não houvesse parâmetros mais ou
menos aceitos. Diversos tratados, sermões e outros textos eruditos debatiam
acaloradamente a esse respeito. Por exemplo, o último item citado não seria um boato
ilógico; afinal, se julgam a bruxa alguém capaz de se comunicar com espíritos, por que
estes não a visitariam na prisão também? Desdenhar dessa ideia popular é um passo

effectuall therein can pe [sic] comprised; especially, in so short a time of deliberation, as thee or foure
dayes. And the rather doe I now publish this to purchase my peace, which without it being done, I could
scarce at any time be at quiet, for many who would take no nay, but still desired of me written Copies of
this ensuing Declaration. Another reason was to defend the truth of the cause, which is some measure, hath
received a wound already, by most base and false Ballets, which were sung at the time of our returning
from the Witches execution. In them I was ashamed to see and heare such ridiculous fictions of her
bewitching Corne on the ground, of a Ferret and an Owle dayly Sporting before her, of the bewitched
woman brayning her selfe, of the Spirits attending in the Prison: all which I knew to be fitter for an Ale-
bench then for a relation of proceeding in Court of Justice. And thereupon I wonder that such lewde
Balletmongers should be suffered to creepe into the Printers presses and peoples eares.”
125

necessário para alguém que é, além de tudo, figura religiosa: trata-se de estabelecer os
limites das capacidades do diabo e demonstrar o poder divino associado à Coroa, à Justiça
e à Ordem.
Se, contudo, voltarmos ao tratado Daemonologie e lembrarmos que esse
julgamento aconteceu ainda durante o reinado de James VI & I, parece difícil não
relacionar essa necessidade de negar a visita de espíritos — de torná-la ridícula — à noção
do monarca tratadista de que o devido processo contra a bruxa, a ação correta e severa do
magistrado, culminando na condenação, neutralizariam os poderes do diabo, pois Deus
não lhe permitiria atentar contra um executor da vontade divina. Boa parte da reafirmação
da figura de James como um rei bom e correto está justamente na incapacidade de as
bruxas agirem contra ele, apesar das tantas tentativas. A prisão é o espaço onde a bruxa
aguarda o processo legal, portanto integrante da esfera divina nessa disputa do bem contra
o mal. Entretanto, Daemonologie proclama algo diferente de Goodcole, abordando esse
assunto nos seguintes termos:

Se [as bruxas] forem obstinadas em negar [as acusações], ele [o diabo]


não as poupará; quando encontrar tempo para falar com elas, se as achar
de algum modo confortadas, enchê-las-á cada vez mais com uma
esperança vã de receberem algum alívio. Caso contrário, se as achar em
profundo desespero, ele o aumentará, a fim de persuadi-las a darem
cabo de si mesmas, o que é bastante comum fazerem. Mas se elas forem
penitentes e confessarem, Deus não permitirá ao diabo voltar a
atormentá-las com sua presença e suas tentações183 (JAMES VI & I,
1597, p. 51).

Segundo o tratado, portanto, seguindo um raciocínio bastante engenhoso, a


confissão livrará a bruxa dos tormentos infligidos pelo diabo, que aparentemente encontra
formas de torturar psicologicamente sua outrora protegida. Nesse contexto, os meios
utilizados para extrair uma confissão, quaisquer que sejam, acabam tendo também a
função compassiva de libertar a ré de seu mestre e fazê-la voltar à esfera da proteção
divina. Para o estereótipo da bruxa satânica, é muito importante essa relação instável com
o diabo: ele sempre parece ajudá-la, mas não está de fato ao seu lado. Engana-a e
aproveita-se de sua maldade e/ou estupidez. A bruxa estereotípica é, conforme comentado

183
No original, “if they be obstinate in still denying, he will not spare, when he finds time to speake with
them, either if he finde them in anie comfort, to fill them more and more with the vaine hope of some maner
of reliefe: or else if hee finde them in a deepe dispaire, by all meanes to augment the same, and to perswade
them by some extraordinaire meanes to put themselves downe, which verie commonlie they doe. But if
they be penitente and confesse, God will not permit him to trouble them anie more with his presence and
allurementes.”
126

no primeiro capítulo, ao mesmo tempo ingênua e pérfida, por mais paradoxal que tal
concepção soe. Como o panfleto não se presta a discutir minúcias teóricas sobre as
possibilidades da bruxaria, não sabemos se o autor se opõe à ideia de espíritos visitarem
uma prisioneira, ou simplesmente aos boatos de que algum teria visitado Elizabeth
Sawyer.
O início do relato em si é anunciado em letras grandes como “a true declaration”
(ver figura 7). Ao longo do panfleto, há 7 ocorrências de true e 15 de truth, sendo algumas
destas às vezes utilizadas no lugar que a gramática inglesa atual exigiria true (ou seja,
adjetivo). A reiteração dessas expressões visa a convencer o enunciatário da veracidade
do enunciado, utilizando-se do ethos do enunciador, já previamente constituído no
fronstispício e na introdução. O atípico início do panfleto, assim, pretende justificar sua
razão de ser — a nobre revelação da “verdade” — e oferecer uma explicação sobre como
se descobriu a bruxa na pessoa de Elizabeth Sawyer.

Figura 7: página 3 do panfleto The Wonderfull Discoverie of Elizabeth Sawyer a Witch, late of
Edmonton… (1621), a abertura do relato
127

Embora zombe do método usado para revelar a identidade da responsável por


enfeitiçar o gado e dois bebês, classificando-o como old ridiculous (1621, p. 3), o texto
narra que afinal funcionou:

Um costume velho e ridículo foi usado: arrancaram um pouco da


palha do telhado de sua casa e queimaram. Tal queima faria o autor do
estrago vir na mesma hora. Observou-se que Elizabeth Sawyer foi à
casa dos que queimaram a palha, e sem ser chamada […]
Esse teste, embora fosse frívolo e ridículo, ainda criou convicção
naqueles a quem dizia respeito184 (GOODCOLE, 1621, p. 4).

Talvez possamos ler nesse desmerecimento do costume popular um meio de


eximir a família-vítima de acusações de bruxaria. Afinal, esse método, tachado como “um
costume velho e ridículo”, muito se assemelha a um feitiço. Claro, trata-se de uma leitura
possível dentre outras, considerando os poucos elementos fornecidos no enunciado. É
curioso, no entanto, notar a zombaria para algo que de fato funcionou — de todo modo,
foi entendido assim — sem o menor respaldo investigativo. Não se menciona, por
exemplo, nenhum objeto enterrado por Elizabeth Sawyer que pudesse indicar dolo185.
Muitos historiadores respeitáveis, dentre os quais Stuart Clark, já bastante citado
neste trabalho, insistem na “realidade da bruxaria”, como já comentei, no sentido de que
algumas pessoas de fato lançavam feitiços com intenções criminosas186. Se existe crença
em magia e de algum modo a coisa pretendida acontece, estabelecer uma relação de causa
e consequência era um passo lógico, tanto para a vítima quanto para o perpetrador. Apesar
disso, é importante reparar que em boa parte dos casos mais populares não existe registro
de evidência mais forte do que um olhar enviesado ou algumas palavras hostis por parte
de alguém já com fama de bruxa, ocorrência geralmente seguida de algum acontecimento
negativo, considerado inexplicável por outras vias além da bruxaria. Para a mentalidade
atual, é fácil aceitar que uma boneca, ornada com o cabelo de uma criança, enterrada num

184
No original, “an old ridiculous custome was used, which was to plucke the Thatch of her house, and to
burne it, and it being burnd, the author of such mischiefe should presently then come: and it was observed
and affirmed to the Court, that Elizabeth Sawyer would presently frequent the house of them that burnt the
thatch […], and come without any sending for. § This triall, though it was slight and ridiculous, yet it setled
a resolution in those whom it concerned […]”.
185
A abertura do relato anuncia: “e a evidência para sua condenação” [and the evidence of her conviction].
Isso merece destaque, pois será contrastado com outras passagens mais adiante. O que se entendia por
“evidência”, no caso de julgamentos por bruxaria, é aquilo ao que hoje nos referimos como “prova
circunstancial”, atualmente inadmissível por si só num julgamento na maior parte dos países do Ocidente.
Na verdade, a narrativa cria a “prova” da bruxaria em boa parte dos casos aos quais tive acesso.
186
Há provas físicas disso, inclusive: placas de feitiços (cf. HUTTON, 2017) e bonequinhas símiles das
pessoas que se pretende enfeitiçar (cf. CLARK, 1997).
128

cemitério e queimada, possa ser lida como prova de intento (mesmo se não admitirmos
sua eficácia); agora, a circunstância do “mau olhado” ou da “má língua” soa mais abstrata.
Ainda assim, um tipo muito específico de pessoa é tomado como alguém cujos olhares
raivosos e palavras grosseiras indicam bruxaria. No panfleto em análise, um desses
indicadores consiste na menção a certo magistrado [Justice of Peace], Arthur Robinson,
descrito como digno [worthy]: mesmo antes de Sawyer ser levada a julgamento (no qual
ele é um dos juízes), ele se mantinha atento a ela, não sem um “justo motivo” [just cause]:
no caso, a suspeita constante de vizinhos dela, tornada presunção de culpa ante a morte
repentina de crianças pequenas e gado, ocorridas em estranhas condições (GOODCOLE,
1621, p. 3). Trata-se de argumento de autoridade a ser somado à lista de evidências contra
a ré. A seguir, o panfleto enumera outras evidências, conforme observadas pela família
que “descobriu” Elizabeth Sawyer:

1 Seu rosto estava bastante pálido e fantasmagórico, sem nenhum


sangue, e seu semblante macilento estava calmo e voltado para o chão.
2 Seu corpo estava torto e deformado, até mesmo dobrado ao meio, algo
que aconteceu pouco antes de sua prisão.
3 Aquela língua, que por praguejar, xingar, blasfemar e imprecar, como
depois ela confessou, foi a responsável por possibilitar o acesso do
diabo a ela […]187 (GOODCOLE, 1621, pp. 4-5).

O primeiro item é curioso como evidência, num primeiro momento, por não fazer
parte das características mais estereotípicas, mas a chave de interpretação está em “sem
nenhum sangue” [without any bloud at all]: mais adiante saberemos tratar-se de um pacto,
de modo que a “observada” palidez denota que Elizabeth Sawyer deixava o diabo beber
seu sangue. Mais adiante, quando o panfleto reproduz um pretenso diálogo entre o
ministro da palavra e a ré, então já condenada à forca, ela confessa ter de fato alimentado
o diabo, através de uma marca a ser discutida a seguir. Ou seja, antes mesmo de o texto
registrar a ideia de pacto satânico, já anuncia os elementos estereotípicos para constituí-
lo.
O segundo item também alude ao estereótipo: a deformação do corpo (crooked,
deformed, even bending together) prenunciaria uma exteriorização do mal interior, uma
denúncia física acerca da corrupção da alma. O fato de essa alteração corpórea ter

187
No original, “1 Her face was most pale & ghoast-like without any bloud at all, and her countenance was
still deiected to the ground. / 2 Her body was crooked and deformed, even bending together, which so
happened but a little before her apprehension. / 3 That tongue which by cursing, swearing, blaspheming,
and imprecating, as afterward she cõfessed, was the occasioning cause, of the Divels acesse unto her […]”.
129

acontecido “pouco antes de sua prisão” [a little before her apprehension] ajuda a edificar
a narrativa; o pacto não era antigo e foi deixando sinais cada vez mais inegáveis. Nesse
sentido, a efetuação da prisão atua como uma interrupção dessa deterioração física que
também se dá na esfera moral.
A terceira dita evidência enumerada é mais explícita no sentido de enquadrar
Sawyer num determinado perfil, adequado à narrativa que vem sendo construída. Sua
língua, aqui metonímia para os atos de “praguejar, xingar, blasfemar e imprecar” [cursing,
swearing, blaspheming, and imprecating], dificilmente seria admitida como prova de
culpa em qualquer outro tipo de processo, sob qualquer outra acusação, a não ser, talvez,
para compor o quadro geral de sua imagem pública. Essa evidência mencionada tão cedo
no relato compõe, na verdade, o fragmento de um raciocínio já concluído, de uma
condenação já sentenciada (e executada, aliás) e destina-se a predispor o enunciatário
contra Sawyer, e não a descrever o que de fato foi encontrado quando de sua prisão. Tanto
é que já de saída somos informados de que esse comportamento foi confessadamente a
porta pela qual o diabo a alcançou, algo só confesso após o final do julgamento, na cadeia
de Newgate, quando ela aguardava a execução da pena.
O julgamento não é apenas legal como moral e religioso, lembrando-nos de que o
divino e o Estado monárquico se sobrepõem188. Elizabeth Sawyer, casada — o que
normalmente a poria no eixo da feminilidade conforme — tem seu corpo procurado por
“uma viúva de reputação honesta” e duas matronas que passavam na rua quando a busca
foi sugerida pelo magistrado digno (cf. GOODCOLE, 1621, p. 8). Uma viúva, nem
sempre tomada por alguém respeitável dentro da comunidade, tem prontamente sua
conformidade anunciada, em detrimento da transgressividade de Sawyer. Está muito em
questão o capital social das pessoas envolvidas, por assim dizer, de acordo com suas
respectivas capacidades de aderir aos padrões comportamentais esperados189.
As imprecações de Sawyer integram as provas de bruxaria tanto quanto as
deformidades em seu corpo, por indicarem uma espécie de rebeldia contra o sistema.
Como Clark diz,

188
Tal fato, é claro, não é prerrogativa das monarquias do início da Idade Moderna, ou dos emirados da
atualidade, como alguns adorariam supor.
189
Isso é muito interessante por se contrapor a alguns textos sobre bruxaria assinados por acadêmicos mais
generalistas, nos quais o simples fato de uma mulher ser viúva a tornaria suspeita de bruxaria (como, aliás,
tende a fazer a própria Federici que citei abundantemente neste trabalho). Nenhuma característica única
daria origem à suspeita, pelo que se pode depreender dos textos analisados aqui e dos muitos estudos de
historiadores aos quais tive acesso, mas sim um acúmulo de características associadas a um tipo específico
de não-conformidade.
130

a bruxaria era entendida dialeticamente em termos daquilo que ela não


era; o significativo a seu respeito não era sua substância, mas o sistema
de oposições que ela estabelecia e cumpria. A bruxa — como o próprio
Satã — só poderia ser uma criatura contingente, sempre uma “função
do outro, não uma entidade independente”190 (1997, p. 9).

Assim, os atos de blasfemar e falar termos de baixo calão, hoje vistos, sobretudo
se proferidos por uma mulher, no máximo como falta de educação ou mau gosto, têm um
verdadeiro peso numa sociedade na qual o poder da palavra tem potencial de ser menos
metafórico do que literal. A palavra, usada num contexto imprecativo, não se resume a
isso, mas se torna uma forma de inserção no eixo disforizado das inversões de tudo o que
é considerado bom e justo.
Por isso o enunciador informa, ao produzir um enunciado acerca da prisão de
Sawyer, coisas que só se soube posteriormente, durante o julgamento ou mesmo após,
quando a condenada aguardava a execução. Em juízo, a ré aparenta ter demonstrado a
maldade de sua língua, apontada como evidência; Goodcole, ao afirmar o que será
retomado mais à frente, isto é, que as maledicências de Sawyer depuseram contra ela,
relata:
[…] como também se produziram evidentes provas contra ela, para
parar sua boca com a autoridade da Verdade. Ao ouvi-la, ela não foi
capaz de falar de imediato uma só palavra sensata em sua defesa, mas
disparou, aos ouvidos do juiz, do júri e de toda a boa gente que ali
estava, muitas temíveis imprecações contra si mesma, como outrora
desejara e tentara contra vários de seus vizinhos. Isso, o justo Juiz do
Céu, que ela assim invocou a fim de julgar e notar sua causa, revelou.
Assim, Deus apanhou-a de modo maravilhoso em sua própria maldade,
fazendo de sua língua instrumento de sua própria destruição, como já
aconteceu a muitos antes. E, desse modo, isto é, a partir de seu falso
praguejar, ela nem imaginava que a verdade seria encontrada; a
sobreposição de seu praguejar e amaldiçoar voltou-se contra ela, pois
tanto o juiz quanto o júri suspeitaram cada vez mais dela, e não sem um
bom motivo: pois ninguém que temesse a Deus ou a quem restasse o
mínimo da graça de Deus, iria (ou ousaria) atrever-se a afrontar a
Justiça, com blasfêmias e falsos votos, de modo tão descarado191 (1621,
pp. 5-6).

190
No original, “witchcraft was construed dialectically in terms of what was not; what was significant about
it was not its substance but the system of oppositions that it established and fulfilled. The witch – like Satan
himself – could only be a contingent being, always ‘a function of another, not an independent entity’.”
191
No original, “as also evident proofes produced against her, to stop her mouth with Truths authority: at
which hearing, she was not able to speake a sensible or ready word for her defense, but sends out in the
hearing of the Judge, Jury, and all good people that stood by, many most fearefull imprecations for
destruction against her selfe then to happen, as heretofore she had wished and indeavoured to happen on
divers of her neighbours: the which the righteous Judge of Heaven, whom she thus invocated, to judge then
and discerne her cause, did reveale. Thus God did wonderfully overtake her in her owne wickednesse, to
131

Como no tratado do rei James VI & I, chama atenção aqui a validação da


consequência imposta por um Deus-agente, atuando como sujeito no discurso: “Assim
Deus apanhou-a de modo maravilhoso em sua própria maldade, fazendo de sua língua
instrumento de sua própria destruição” (GOODCOLE, 1621, p. 5). Constrói-se uma
narrativa na qual só existe um final possível, previsto mesmo enquanto se desenrola. O
direcionamento da exposição dos fatos ao longo do texto procura justificar as conclusões
do juiz e do júri antes de detalhar quais foram, embora sejam óbvias, pelo desfecho já
anunciado.
Com essa descrição bastante subjetiva aos olhos atuais, mas que talvez tenha
parecido objetiva aos seus contemporâneos, Goodcole encerra o relato sobre a prisão da
ré e passa a falar do julgamento. Principia fornecendo todos os detalhes de local e data de
sua prisão, a paróquia do lugar, as três vezes que foi indiciada no salão da Justiça [Justice
Hall] em Londres. O detalhamento busca angariar confiança para o enunciado, criando
uma sensação de possibilidade de verificação: de posse do panfleto, uma pessoa em tese
poderia averiguar a veracidade desses dados. Infere-se a veracidade do resto do relato
cujas alegações podem não ser tão facilmente averiguáveis.
A partir daí, e como o discurso filia-se à ideologia então dominante, as partes
menos objetivas e mais enviesadas do relato ganham contornos facilmente aceitáveis, por
exemplo em frases como “não temendo a Deus diante de seus olhos” [not having the feare
of God before her eyes], “movida e seduzida pelo diabo” [moved and seduced by the
Divell], “com ajuda do diabo” [by Diabolical helpe] e “em seu coração malicioso” [out
of her malicious heart] (GOODCOLE, 1621, p. 6) — descrições que, se verdadeiras, o
enunciador não teria como asseverar, por tratarem de algo do foro íntimo da ré, impassível
de ser apreendido senão subjetivamente.
A alegada malícia de Sawyer é reiterada ao longo do panfleto: há uma ocorrência
de malicious, uma de maliciously e três de malice, quase todas mais cabíveis a um
narrador onisciente numa obra de ficção do que a um texto que se pretende a true
declaration dos fatos. Logo abaixo, na mesma página, há repetição de “com ajuda do
diabo” [by Diabolical helpe] e “por malícia” [out of her malice]. Elizabeth Sawyer foi

make her tongue to be the meanes of her owne destruction, which had destroyed many before. And in this
manner, namely, that out of her false swearing the truth whereof, shee little thought, should be found, but
by her swearing and cursing blended, it thus farre made against her, that both Judge and Jury, all of them
grew more and more suspitious of her, and not without great cause: for none that had the feare of God, or
any the least motion of Gods grace left in them, would, or durst, to persume so impudent, with execrations
and false oaths, to affront Justice.”
132

acusada de matar crianças de berço e gado, enfeitiçando-os, além de matar Agnes


Ratcleife, sua vizinha, com quem havia se desentendido. Na mesma noite do
desentendimento, segundo o marido da vítima depôs em juízo, Agnes adoeceu
gravemente, para morrer quatro dias depois, espumando pela boca. Durante a curta
doença, esteve estranhamente irritadiça, algo que gerou suspeita em todos, inclusive nos
vizinhos, de que “algum mal fora lançado contra ela” [some mischiefe was done against
her], e imediatamente atribuíram-no à ré. No leito de morte, Agnes acusou Sawyer nos
seguintes termos: “Se ela [Agnes] morresse, ela de fato atribuiria sua morte a Elizabeth
Sawyer, sua vizinha de grande malícia, cuja porca ela golpeara com um pau para bater
roupa192 (GOODCOLE, 1621, p. 7).
Conforme já dito, observa-se no texto que a evidência de bruxaria está alicerçada
na relação causal estabelecida na cronologia do narrado. A isso, soma-se o peso do
testemunho da vítima, mesmo fornecido indiretamente na pessoa do marido, porque se
considerava que alguém prestes a encontrar o criador não ousaria pôr a salvação de sua
alma em risco ao mentir sobre algo tão primordial. Não parece ter sido levado em
consideração que talvez Agnes Ratcleife acreditasse no que dizia, mas não
necessariamente soubesse.
No entanto, num contexto tão eminentemente cristão, os envolvidos têm
consciência da gravidade de arbitrar sobre a vida e a morte de alguém (idem, p. 8).
Novamente menciona-se Arthur Robinson, “devoto magistrado” [worshipfull Justice of
Peace], que já havia interrogado Sawyer várias vezes “laboriosa e minuciosamente”
[laboriously and carefully] por causa das constantes reclamações dos vizinhos, e
suspeitou mais ainda que “sem dúvidas ela era uma bruxa” [doubtlesse shee was a Witch]
(idem). A suspeita de longa data, plena de certeza, de um magistrado descrito como
worshipfull e worthy integra a pilha de evidências contra Sawyer, que, seguida da busca
do corpo da ré por mulheres tidas por confiáveis, se converterá em prova com a descrição
de duas coisas. A primeira é a marca encontrada, de acordo com o que os vizinhos haviam
denunciado a Robinson: “pouco acima do ânus […] da prisioneira, […] uma coisa tipo
uma teta, da espessura de um dedo mínimo e do comprimento de meio dedo, que se

192
No original, “if she [Agnes] did die at that time shee would verily take it on her death, that Elizabeth
Saywer her neighbour, whose Sowe with a washing-Beetle she had stricken, and so for that cause her malice
being great, was the occasion of her death.”
133

ramificava na parte superior como uma teta, parecendo ter sido sugada, […] estando
vermelha”193 (GOODCOLE, 1621, p. 10).
O segundo fator a contribuir para a certeza do magistrado devoto e digno a se
converter em prova é o comportamento da ré durante a busca pela marca. Mais uma vez
o enunciador-narrador pretende-se onisciente ao atribuir intencionalidade às ações da ré:
“procurando prevenir a busca, ela se comportou com as mulheres de modo um tanto
imundo e repugnante” [behaved her selfe most sluttishly and loathsomely towards them,
intending thereby to prevent their search of her] (GOODCOLE, 1621, p. 9), informação
logo acrescida de um aposto cheio de pudores: “minha pena teria se negado a escrever
essas coisas em nome do recato, mas eu não alteraria o que foi transmitido ao tribunal,
dito de maneira expressa e aberta” [my pen would forbeare to write these things for
modesties sake, but I would not vary in what was delivered to the Bench, expresly &
openly spoken] (idem, pp. 9-10).
Aqui, a afirmação de escrúpulos morais tem duplo efeito: recomendar o autor
como um homem de recato por não desejar chocar a audiência (segundo declara) e alguém
comprometido com a verdade, apesar disso. O choque, que bem se presta à verve
sensacionalista dos panfletos em geral, é colocado como um triste e necessário efeito
colateral, ao mesmo tempo indispondo o enunciatário contra a ré naquele contexto de
religiosidade puritana.
O comportamento de Sawyer, descrito como sluttish e loathsome, deve ter uma
natureza condenável, sem dúvida, e possivelmente sexual, mesmo sem termos acesso aos
pormenores. Na verdade, talvez justamente por não termos acesso aos pormenores: ao
fazer juízo de valor tão severo das atitudes de Sawyer durante a busca — na qual as três
mulheres investigavam o corpo da ré nua com tal minúcia a ponto de encontrar uma marca
suspeita perto de seu ânus —, o que ela fez de sluttish e loathsome é abandonado à
imaginação do enunciatário sexualmente reprimido da Inglaterra no início da Idade
Moderna. Se por um lado essa lacuna parece afastar-se do sensacionalismo amante do
escândalo, por outro os atos de Sawyer bem poderiam ter sido menos vulgares do que
somos levados a crer. Não há como saber. Só se pode supor que a ação da ré assim
caracterizada se soma a outros indícios de sua culpa, por caber bem no modelo. Sendo ela
imprópria no uso da língua, por conseguinte também o é no do corpo.

193
No original, “a little above the Fundiment of […] the prisoner […] a thing like a Teate the bignesse of
the little finger, and the length of halfe a finger, which was branched at the top like a teate, and seemed as
though one had suckt it, […] it was redde.”
134

Descreveu-se a marca encontrada, razão de sua condenação, de modo a levar a


crer que o diabo a teria utilizado numa ocasião recente. Elizabeth Sawyer foi julgada e
condenada em 14 de abril de 1621, confessou a Henry Goodcole dia 17 e foi enforcada
dia 19. Na confissão a ser analisada logo a seguir, a ré alega não ter sido visitada pelo
diabo fazia três semanas. O texto não informa quanto tempo ela ficou presa aguardando
julgamento. O estado da marca, provavelmente uma ferida de aparência recente ou
inflamada, dada a vermelhidão descrita (a menos que a suponhamos de fato imposta pelo
diabo, deve sinalizar alguma doença), foi interpretado como indício de que ela havia
alimentado seu “mestre”, embora fosse impossível determinar quando. Isso não é
questionado no texto e não parece ter sido no tribunal.
Ao fim, absolveram Sawyer das acusações de matar o gado e as crianças e a
condenaram pelo assassinato de Agnes Ratcleife, efetuado com a ajuda do diabo. A
história segue modelos reiterados, contendo elementos em comum com outras: a natureza
mal-humorada da ré, blasfema na esfera social (na doméstica não sabemos), seus
desentendimentos repetidos com os vizinhos ao longo de anos, a morte de alguém com
quem discutiu pouco após a briga, sua fama de bruxa, o corpo desfigurado, a marca do
diabo, o indício de sexualidade não conforme. Talvez, numa sociedade cética, ela fosse
tomada por uma senhora encrenqueira, mas havendo crença em bruxas seria difícil
chegarem a outra conclusão.
A narrativa do julgamento, contudo, constitui apenas metade do panfleto, não
sendo exatamente sua parte mais extraordinária. Embora condenada sem confessar nada
em juízo, o panfleto anuncia a publicação da confissão “de sua própria boca, dada a mim
na terça, após sua condenação, embora extraída com grande dificuldade, confissão que li
para ela no local da execução, e onde ela confessou ser verdade para todos os presentes”194
(GOODCOLE, 1621, p. 11, grifos meus).
A alegada dificuldade em obter a confissão da ré, em outro caso, poderia aludir a
tortura, mas aqui parece improvável; não haveria necessidade, após a condenação já ter
acontecido. É mais plausível, sendo Goodcole um ministro da Palavra, ele haver se
desdobrado para convencê-la de que a confissão ajudaria a expiar seus pecados e outros
argumentos do gênero195.

194
No original, “out of her owne mouth delivered to me, the Tuseday [sic] after her conviction, though with
great labour it was extorted from her, and the same Confession I read unto hera t the place of her execution,
and there shee confessed to all people that were there, the same to be most true.”
195
Existe uma linha de estudos, em história, sobre a performance do condenado, da qual faz parte num
primeiro momento mostrar-se hostil ou silencioso acerca das acusações, para em seguida adotar uma
135

Figura 8: página 13 do panfleto The Wonderfull Discoverie of Elizabeth Sawyer a Witch, late of
Edmonton… (1621), o início do diálogo entre o ministro da Palavra e a bruxa

postura penitente de devoção, indicativa de que a sentença de morte se seguia de uma espécie de iluminação
divina. O condenado poderia então assumir um discurso moralizante, a fim de alertar outros para não
incorrerem no mesmo erro, e isso seria tomado como um indício de salvação da alma pela compaixão de
Deus e a compreensão dos próprios erros face à iminência da morte. Tive o prazer de assistir a Ciaran Jones,
doutorando em história na Universidade de Edimburgo, apresentando um seminário a esse respeito em 4 de
abril de 2019, intitulado Conversion and Religious Identity in Seventeenth-Century Scotland: The
Murderess and the Witch [Conversão e identidade religiosa na Escócia do século XVII: a assassina e a
bruxa]. Elizabeth Sawyer parece ter se enquadrado nisso, ao menos segundo relatado no texto em análise.
136

Goodcole reitera a veracidade do relato, mencionando ter havido testemunhas


presentes quando da confissão, o que parece corroborado pelas marcas textuais das notas
na marginália, a serem discutidas mais adiante. Obviamente, a dificuldade alegada para
se obter a confissão desmente a veridicidade do diálogo reproduzido, tão direto e pouco
repetitivo. Há, como era de se esperar, traços de edição no discurso direto atribuído tanto
ao próprio ministro, que também passa a acumular o papel de interlocutor, quanto à ré,
interlocutora.
O enunciador-narrador abre essa seção do panfleto justificando a linguagem
basilar usada, dizendo-se forçado a falar “dessa maneira” para ela o entender e responder
às perguntas, “pois era uma mulher muito ignorante” [for she was a very ignorant woman]
(GOODCOLE, 1621, p. 13). Em seguida vem a primeira indagação sobre como ela
conheceu o diabo e como soube ser ele. Essa abordagem induz o campo das respostas
aceitáveis, por pressupor que Sawyer de fato o conheceu, algo que ela não havia
confessado.
A resposta atribuída a Sawyer retoma algo já comentado antes no panfleto, listado
como evidência contra ela: “a primeira vez que o Diabo veio até mim foi quando eu estava
praguejando, xingando e blasfemando” [the first time that the Divell came unto me was,
when I was cursing, swearing, and blaspheming] (idem, pp. 13-4). Nas margens do
panfleto há algumas notas no narrador, interferindo no diálogo para explicar a motivação
de uma pergunta ou as condições nas quais foi respondida. No meio do discurso de
Sawyer, há um apontamento acerca da presença de um cavalheiro, que parece ter induzido
o resto da resposta, mesmo se apenas por sugestão: “um cavalheiro chamado Sr. Maddox,
que estava por ali, ao ouvi-la mencionar blasfêmia, perguntou-lhe, três ou quatro vezes,
se o demônio havia dito: ‘acaso a encontrei blasfemando?’, ao que ela disse
confiantemente que sim”196 (GOODCOLE, 1621, p. 14). Segundo atribuído a Sawyer, o
diabo lhe teria dito: “Oh! Acaso a encontrei praguejando, xingando e blasfemando? Agora
você é minha.”

196
No original, “a Gentleman by name Mr Maddox standing by, and hearing of her say the word
blaspheming, did aske of her, three or foure times, whether the Divell sayd have I found you blaspheming,
and shee confidently sayd, I.”
137

Figura 9: página 14 do panfleto The Wonderfull Discoverie of Elizabeth Sawyer a Witch, late of
Edmonton… (1621), com uma das notas de margem

Em seguida, o discurso direto de Elizabeth Sawyer sofre uma mudança que pode
indicar duas coisas diferentes, a depender da interpretação. O comentário moralista,
emendado à suposta frase triunfal do diabo, apresenta uma curiosidade:
138

Um maravilhoso alerta para muitos, cujas línguas incorrem


frequentemente nesses pecados abomináveis. Rogo a Deus para que o
terrível exemplo dela possa dissuadi-los, fazendo-os abandonarem
[esses pecados] e detestarem-nos, e [tornem] suas línguas mais adeptas
a uma linguagem mais santificada do que a linguagem maldita do
inferno. A língua do homem é a glória do homem, e foi destinada a
glorificar Deus. Mas pior do que animais brutos são esses que têm uma
língua, assim como os homens, e com ela ao mesmo tempo abençoam
e amaldiçoam197 (GOODCOLE, 1621, p. 14).

Não se observa uma grande mudança de registro entre os dois interlocutores. O


discurso de Sawyer, se fielmente registrado, tende à performance do condenado penitente.
Mesmo se for o caso, é curioso imaginar por qual motivo ela ofereceria uma pregação
moralizante a um ministro da Palavra e seus acompanhantes. A suposta mudança de
atitude, tão brusca em relação à descrita no julgamento, também poderia se prestar a ser
um sinal de que a justiça foi feita. Nesse sentido, antes o diabo estaria influenciando seu
comportamento e, após a condenação, livre dessa influência, ela voltou a se comportar do
modo socialmente aceitável.
Na verdade, analisando bem essa fala, parece ter havido, talvez, um erro de
impressão, levando em conta que seu tom está mais de acordo com o utilizado pelo
enunciado no resto do texto, inclusive pelo campo semântico. Além do mais, o “exemplo
dela” [her example] parece comprovar que o narrador retomou a palavra sem nos avisar,
seja por erro em alguma parte da produção do panfleto, seja de forma intencional (caso
em que o uso desse her seria um lapso).
Goodcole indaga se ela não sentiu medo do diabo na ocasião descrita e o que ele
lhe disse. Segundo Sawyer, à semelhança do que se vê em depoimentos e confissões de
outras bruxas (cf. GASKILL, 2006), o diabo lhe disse para não o temer, pois ele não a
machucaria e faria o que ela precisasse. Essa resposta ecoa as de confissões em
julgamentos, inclusive por criar uma contradição quando ela alega, mais adiante, nunca
ter contado sobre o pacto a ninguém, nem ao marido, porque o diabo a intimidou
(GOODCOLE, 1621, p. 19-20). Essa dualidade na atitude do diabo em relação à bruxa,
indo da extrema amabilidade à ameaça de violência física, parece um padrão na maior
parte das confissões de mulheres por bruxaria. Em alguns julgamentos, as rés alegaram

197
No original, “A wonderfull warning to many whose tongues are too frequent in these abhominable
sinnes; I pray God, that this her terrible example may deter them, to leave and distaste them, to put their
tongues to a more holy language, then the accursed language of hell. The tongue of man is the glory of
man, and it was ordained to glorifie God: but worse then brute beasts they are, who have a tongue, as well
as men, that therewith they at once blesse and curse.”
139

que o diabo se apresentou e propôs ser “um marido amável” [a loving husband] para elas,
algumas chegando a contar terem-se deitado com ele (GASKILL, 2006, p. 86). No caso
das declarações atribuídas a Elizabeth Sawyer e a tantas outras que demonstram certa
afeição a essa figura do diabo-marido, poderíamos pensar também tratar-se de uma
fantasia de conformação social, econômica, afetiva. A frequência de vezes que lemos o
diabo prometendo “não vai lhe faltar nada” [thou shalt want nothing] é impactante, muito
expressiva sobre o tipo de necessidades que essas rés possuíam e não eram de outro modo
supridas. No caso específico de Sawyer, cujo marido existe, apesar de citado apenas de
passagem no panfleto, o diabo apresenta-se como alguém que tem a capacidade (poder)
e a disposição (querer) de realizar coisas por ela, as quais ela não teria como efetuar
sozinha. Como, por exemplo, vingar-se da agressão de uma vizinha contra um animal seu,
afastar outros tipos de ameaças. Sua fama de bruxa, antes de se tornar a acusação
responsável por levá-la à morte, mantinha-a razoavelmente segura contra pessoas e
circunstâncias contra as quais ela não seria capaz de se defender.
A ambiguidade dessa relação permanece. O diabo, para todos os efeitos, parece
agir como um homem humano: tem seus momentos de proximidade e até gentileza, mas
arroubos de violência contra sua protegida. Por exemplo, segundo Sawyer, o diabo lhe
exigiu seu corpo e alma, ameaçando “fazê-la em pedaços” se ela não aquiescesse
(GOODCOLE, 1621, p. 17). Essa dualidade pode ter várias razões e servir a vários
propósitos a um só tempo. Se por um lado agrada à ideia puritana de que o diabo só finge
ser bom quando na verdade é mau, por outro aproxima-se das relações entre gêneros numa
sociedade na qual existe uma hierarquia entre homem e mulher, portanto a forma como
uma senhora comum entenderia um relacionamento de qualquer natureza com alguém do
sexo oposto. Aqui, lembro que a lei contra traição [treason, não cheating, ou seja, algo
relacionado ao Estado e à Coroa] prescrevia a pena de queima para mulheres que
assassinassem seus maridos, pois ao fazê-lo ela não só teria cometido o crime de matar
alguém, como agido traiçoeiramente contra seu senhor e mestre (GASKILL, 2006, p.
174).
Sawyer-interlocutora afirma ainda que o diabo teria se disposto a matar pessoas
para ela, e ela “mandou-o várias vezes” [oftentimes I did so bid him] (GOODCOLE, 1621,
pp. 14-5). Essa confissão em si é bastante interessante pela utilização do verbo “bid”.
Aqui ele poderia ser utilizado com a acepção de “pressionar, suplicar, implorar, pedir”198

198
No original, “press, entreat, beg, ask […] (a person).”
140

(cf. Oxford), mas, dada a datação e a forma sintática desse uso, parece mais provável que
o verbo aqui tenha o sentido de “mandar, ordenar”199 (idem). Nesse caso, é possível
identificar também nisso uma fantasia de poder (de Sawyer ou atribuída a ela) que caberia
bem na inversão da ordem natural das coisas representada pela bruxa.
A ideia de que uma bruxa de fato possuísse poder sobre o diabo chegava a ser
risível para teólogos e demonólogos, e em Daemonologie o rei James VI & I aborda esse
assunto alegando tratar-se de um dos muitos estratagemas do diabo para enganar mortais
(1597, pp. 9, 17). Existe, como em todo o resto, uma dualidade nessa questão: o diabo
como serviçal (ou um diabo, no caso de familiares) e o diabo como mestre.
Nem no texto do panfleto nem na acusação contra Sawyer há alusão à reunião de
bruxas. Ela não agia coletivamente; nesse sentido, aproxima-se mais da figura da bruxa
pensada nas camadas populares, anterior ao estereótipo da bruxa satânica frequentadora
do sabá. Há, no entanto, uma predominância de perguntas relacionadas ao diabo. Por
exemplo, quando o enunciador-narrador-interlocutor Goodcole indaga quantas vítimas
Sawyer fez com esse poder, ela responde ter causado a morte de “muitas crianças e gado”,
embora não diga nenhum número. Confessa ter sido a causa da morte das duas crianças,
crime pelo qual foi absolvida (1621, p. 15) e nega ter se envolvido com a morte de Agnes
Ratcleife, pelo qual foi condenada (p. 16). Ao falar de sua motivação para tanto, ela
declara: “o que me levou a fazer isso foi malícia e tédio, pois se qualquer um me irritasse
de qualquer modo, eu me vingaria da pessoa e de seu gado”200 (p. 15). Ela se desmente a
seguir, ao afirmar não ter buscado causar mal algum contra Agnes, alguém que agredira
sua porca na sua frente.
O mais interessante desse diálogo é a velocidade com a qual se passa da confissão
de malefício a perguntas relacionadas à natureza da relação de Sawyer com o diabo: há
quanto tempo ela o conhece e a frequência com a qual a visitava, em qual forma vinha (p.
16), se ela teve medo da exigência do diabo de possuir seu corpo e alma e em quais
condições se deu a posterior permissão, por qual parte do corpo o diabo bebia seu sangue
e por qual motivo o fazia (p. 17). Embora aos magistrados o malefício e seus efeitos
fossem a razão do julgamento, ao ministro da Palavra (e quiçá a seus leitores) a figura do
diabo parece mais interessante. Nessas perguntas, lê-se muito do estereótipo da bruxa
satânica, um conhecimento já difundido àquela altura também em meio à população

199
No original, “command, enjoin, order, tell with authority.”
200
No original, “the cause that moved mee to do it, was malice and enuy, for if any body had angred me in
any manner, I would be so revenged of them, and of their cattell.”
141

iletrada, de modo que decerto Sawyer sabia mais ou menos o tipo de respostas esperadas.
Na nota de margem ao final da resposta sobre a sucção de sangue, lê-se: “perguntei-lhe
muito solenemente, e me respondeu assim sem parar para pensar”201, indicando que o
mesmo não se deu no resto da conversa. As indagações seguintes referem-se à mecânica
dessa interação, dado o local onde a marca ficava: o diabo erguia suas saias ou ia por
baixo delas? Durante quanto tempo bebia o sangue? Doía? (p. 18). Depois Goodcole pede
esclarecimentos sobre algo que ela disse: como assim, o diabo às vezes falava e às vezes
latia (isso porque aparecia sempre em forma de cão). Por qual nome Sawyer o chamava?
(p. 19).
Todas as falas de Sawyer-interlocutora são registradas de maneira bastante direta
e organizada, mesmo se um pouco repetitiva, à semelhança do discurso do narrador,
sempre retomando as visões deste a respeito do assunto. As coisas por ele tachadas de
mentirosas são, de acordo, negadas por ela.
Goodcole pergunta, então, se o diabo a proibiu de rezar a Deus e se ele já a
apanhou em desobediência. Na nota da margem, justifica ter inquirido isso “por uma
suspeita geral” [upon general suspitiõ]. Ao longo da dita conversa, vemos esse
direcionamento da confissão. Sawyer confirma a suspeita. Ela estava rezando para Jesus
Cristo quando o diabo chegou e mandou-a rezar só para ele, ensinando-a a reza em latim
“Santibicetur nomen tuum. Amen.”, uma corruptela de “santificado seja teu nome”, do
Pai Nosso. Goodcole pergunta se já haviam lhe ensinado essa frase antes, se ela sabe
alguma outra frase em latim ou se já a ouviu em algum outro lugar. Ela nega e alega não
entender o significado das palavras202. Seguem-se mais perguntas sobre orações e o diabo,
e então, bruscamente, ele pergunta como ela perdeu um olho. A resposta é das mais
simples: ela o espetou numa vareta que um de seus filhos segurava, na noite da morte de
sua mãe (p. 21). E logo a próxima indagação refere-se ao diabo outra vez: ela tocou-o?
Sim, fez carinho em suas costas e ele abanou o rabo.
Um dos pontos de interesse dessa sequência é que a anomalia corpórea de Sawyer
chamou a atenção no meio de um interrogatório sobre o diabo, provavelmente porque tal
marca física poderia ser mais uma a sinalizar o mal interior, como já explorado em outros
trechos deste trabalho. Outro momento curioso é a completa humilhação da figura do

201
No original, “This I asked of her very earnestly, and shee thus answered me, without any studying for
an answer.”
202
Apesar de tudo, num contexto social no qual os teólogos das várias religiões cristãs falavam latim, não
parece forçoso imaginá-la escutando um Pai Nosso sendo rezado em algum lugar.
142

diabo, ao se atribuir a ele um comportamento canino servil, em completo desacordo com


sua imagem como inimigo do poder divino. Ainda assim, não seria uma representação de
todo absurda ao pensamento da época, que vê nele o “macaco de Deus”, um imitador,
mas de acordo com uma lógica invertida. Portanto, até faria sentido, apesar de paradoxal,
ridicularizar o diabo em sua suposta eterna busca por glórias. Vê-se que, no estereótipo
da bruxa dessa época, ao menos nas esferas mais eruditas, sua figura é menos importante
do que a composição da do diabo, o verdadeiro inimigo a ser temido (mesmo se tornado
risível de quando em quando), por ser inatingível. Desse ponto de vista, a bruxa não passa
de um efeito colateral.
Ao fim do interrogatório, uma das últimas perguntas é a razão de Sawyer ter
cometido perjúrio no tribunal. “Para evitar a vergonha”, ela responde (GOODCOLE,
1621, p. 22). Gritar palavrões e blasfêmias em juízo talvez fosse menos vergonhoso do
que se confessar bruxa, mas também existe a possibilidade de esta, se for mesmo sua fala,
ser a forma como ela preferiu ser vista, no final. O ministro pergunta se ela disse a verdade
e, recebendo confirmação, inquire por que ela confessou: “alguém a instou, obrigou ou
você tem alguma esperança de sobreviver após fazê-lo?”203 (idem). A resposta de Sawyer
é a seguinte: “Não, eu o fiz para limpar minha consciência e, agora que acabou, estou
mais tranquila e melhor preparada, e com isso disposta a morrer, pois não tenho esperança
de sobreviver, embora deva confessar que gostaria de viver mais, se pudesse”204 (idem).
Como não temos nenhum acesso à verdadeira Sawyer (e, ainda que tivéssemos ao
seu próprio texto, seria impossível desvendar seus reais sentimentos através dele),
concluímos disso novamente a performance do condenado penitente, já discutida, ou ao
menos a performance imputada a ela no panfleto. O texto continua alegando tratar-se da
verdade porque, ao relatar o momento de sua morte, nas três páginas seguintes, ele
informa que tal confissão foi lida para ela no local da execução e ela confirmou sua
veracidade ali, diante de todo o público. Ela o faz, e ainda exorta os presentes a rezarem
“a Deus todo-poderoso para me perdoar por meus pecados atrozes”205 (GOODCOLE,
1621, p. 24). Quando questionada por quais meios ela espera ser salva, responde “somente
por Jesus Cristo” (idem). Estimulada a rezar a Deus para pedir perdão por suas más ações
antes da execução, ela concorda fazê-lo “com toda a minha mente e coração” (idem). O

203
No original, “did any urge you to it, or bid you doe it, is it for any hope of life you doe it?”.
204
No original, “No: I doe it to cleere my conscience, and now having done it, I am the more quiet, and the
better prepared, and thereby willing to suffer death, for I have no hope at all of my life, although I must
confesse, I would live longer if I might.”
205
No original, “pray unto Almightie God to forgive me my greevous sinnes.”
143

panfleto alega que toda essa interação foi testemunhada por muitas centenas de pessoas,
e passa a discorrer sobre a justeza da aplicação de tal pena e sobre a justiça divina.
Diferentemente de outros do gênero, a lição de moral ficou para a conclusão,
reiterando a forma como Sawyer conjurou o diabo ao fazer uso de uma linguagem baixa
e blasfema, e transforma-a num caso exemplar por oposição: ou seja, o que não fazer, a
fim de evitar um fim semelhante.
O autor parece acreditar na acidentalidade dessa conjuração; do contrário, talvez
não estivesse tão preparado a divulgar a facilidade com a qual se poderia invocar o diabo
e estabelecer um pacto com ele. A perversidade de Sawyer, nesse caso, jaz em sua
infidelidade a Deus, demonstrada por seu mau uso da linguagem. Os crimes de malefício
em si ocupam pouquíssimo espaço do diálogo entre ministro e bruxa, e apenas como
acessório para exibir o poder tentador do diabo e a iniquidade de Sawyer ao cair nessa
tentação. O que transparece, além disso, é que a figura de Elizabeth Sawyer já se adequava
à esperada de uma bruxa antes de ela ir a julgamento, e principalmente por causa de seu
comportamento transgressor das boas normas de conduta social, em particular da conduta
feminina.
O panfleto A most wicked worke of a wretched witch…206 (1592) tem muito em
comum com o de Elizabeth Sawyer, mesmo antecedendo-o em quase trinta anos. Suas
diferenças, entretanto, precisam ser analisadas primeiro. Seu título aliterativo haveria de
prestar-se a facilitar a memorização de uma população pouco letrada — razão pela qual,
talvez, atualmente esse recurso seja mais recorrente em narrativas e rimas recreativas
infantis. A hiperadjetivação pleonástica, traço desse tipo de escrita, é uma constante
também nesse texto, como já podemos depreender da composição do título e veremos em
outros exemplos.
A ilustração do frontispício apresenta um traço de vestimenta e acessório quase
teatral, com um rosto envelhecido e impossível de interpretar como feminino (ou
masculino, aliás). O cetro com uma efígie feminina transmite uma ideia de poder, mas
não do tipo oficial e bem aceito, especialmente se contrastado com os pés descalços, um
sinal de pobreza, incivilidade ou ambos (cf. Figura 10).

206
Segundo o Oxford English Dictionary, o termo wretched tem, além da acepção mais corrente relacionada
ao estado de miséria material de uma pessoa, o seguinte sentido: “Of persons, etc.: Contemptible in
character or quality; despicable, reprehensible; hateful.” Este parece ser o mais adequado, no contexto do
panfleto.
144

Figura 10: frontispício do panfleto A most wicked worke of a wretched witch (1592)

Também como outros panfletos, o frontispício dá referências sobre a vítima,


incluindo local e datas, a fim de estabelecer a confiabilidade do relato. A palavra truth
145

[verdade], aparece, não por acaso, junto a todas essas informações verificáveis. Daí, como
no panfleto anteriormente analisado, é possível inferir a validade do resto somente à base
das afirmações contidas no relato.
O verso do frontispício traz um hexasticon, isto é, um texto de seis linhas
versificadas, como abertura, logo seguida de um versículo de Levítico sobre bruxaria.

Figura 11: verso do frontispício (p. i) do panfleto A most wicked worke of a wretched witch (1592),
contendo o hexasticon e o versículo Lv. 20: 6.

Os dizeres do hexasticon são os seguintes:

Este panfleto fala sobre bruxas furiosas


E como agem contra as pessoas mais simples
O tipo de terrores que conseguem fazer por meio de feitiços.
Que Deus as extirpe dos lugares onde espreitam.
Deus as extirpa, mas Satã ainda faz eclodirem
Novos demônios através dos quais consegue apanhar todo tipo de gente
(G.B., 1592, p.i).

Os versos originais, especialmente por sua intensa aliteração e simplicidade das


rimas (num esquema ABABCC), poderiam vir a constituir algo fácil de se memorizar.
146

Seu interesse é muito mais geral do que específico: o panfleto, conforme o título, fala de
uma bruxa e uma vítima específicas, mas o enunciador optou pelo plural witches, que
conseguem fazer feitiços [they may atchieve…]. A ênfase no embate entre Deus e o Diabo
também está presente, bem como uma implícita afirmação de que a justiça secular é
responsável por executar o trabalho de Deus (God weeds them out).
Os termos escolhidos para compor o poema, mais do que apenas criarem um efeito
sonoro, evocam o campo semântico da praga, da doença, do contágio: weed out [extirpar,
mas no sentido de arrancar ervas daninhas], lurk [espreitar, como predadores ou ameaças
ocultas sobre as quais não se tem conhecimento]207, hatch [fazer eclodir ovos, chocar,
associando fresh imps a vermes].
O plural para witches, somado a essa ideia de peste que se espalha, traz uma noção
de coletividade que bebe no imaginário então crescente da assembleia das bruxas, muito
embora o panfleto não aluda a nada parecido. Dessa maneira, essa grande ameaça
presente, mas à espreita, parece superior à relatada no texto, de modo que a narrativa
trazida pelo panfleto se mostra como um exemplo, e não um caso isolado.
A citação bíblica posterior ao poema não é aquela mais comum para discutir a
bruxaria (Ex 22:18 Thou shalt not suffer a witch to live), mas a seguinte: “If any turne
after such as worke with spirits, and after soothsaiers, to goe a whoring after them, then
will I set my face against that person, and will cutte him off from amoung his people”208
(Lv20:6, cf. G.B., 1592, p. i).
Embora não se mencionem bruxas, a referência é inegável no contexto, através de
working with spirits e soothsaiers, que algumas traduções e versões atualizadas resumem
a “necromantes”, explicitando a bruxaria inferida nessa versão. O termo whoring, às vezes
traduzindo como “fornicando”, às vezes como “prostituindo-se” guarda essa acepção de
entrega ao oculto, disforizada na intrínseca crítica à sexualidade transgressora, associada
ao termo. Whore enquanto verbo pode significar tanto o ato de prostituir-se quanto o de
esbanjar dinheiro com prostitutas, portanto serve aos dois sexos, e também tinha a
acepção figurada de “buscar” ou “ir atrás”, justamente por causa de um versículo no

207
Também existe a acepção, hoje obsoleta, de escapar ao trabalho, ficar ocioso (cf. Oxford). Se for uma
leitura possível aqui, compõe uma ambiguidade, não excluindo o sentido mais corrente e ainda
predominante.
208
Aqui coloquei em inglês no corpo do texto por causa da necessidade de analisar termos específicos. As
traduções, por sua vez, variam muito. A católica Bíblia Ave Maria, uma das mais populares, traz o seguinte:
“Se alguém se dirigir aos necromantes ou aos adivinhos para fornicar com eles, voltarei meu rosto contra
esse homem e o cortarei do meio de seu povo.”
147

Êxodo (cf. Oxford). A escolha dessa citação é complementar ao poema, de forma a


condenar tanto as bruxas quanto quem se envolve com elas.
O parágrafo introdutório do texto propriamente dito refere-se à vida humana como
uma grande provação, utilizando-se de motivos bélicos para aludir à eterna disputa do
bem contra o mal: “vivemos numa guerra perpétua, um combate bastante perigoso e
mortal” [we live in a perpetuall warrefare, and most dangerous and deadlie combat]
(G.B., 1592, p. 1). Ainda não fica explícito tratar-se de uma batalha entre o divino e o
satânico, apesar de ser dedutível por conta do panfleto que o contém. A suposição inicial
logo se confirma nas linhas seguintes: fala-se da maldade do diabo e sua incansável
vontade de fazer o mal e arruinar a chances de salvação das almas humanas durante toda
a primeira página de texto e boa parte da segunda (pp. 1-2).
Antes de finalmente começar a discorrer sobre o caso anunciado no frontispício,
informa que não vai se deter muito sobre falsos pregadores, mas sim sobre bruxas. A
partir de então, adentra o relato principal sob o ponto de vista da vítima, Richard Burt,
(G.B., 1592, p. 2) especificando data e local e mencionando seu patrão, um cavalheiro,
também nomeado, tendo seu endereço fornecido. O protagonista da história é
estabelecido pelas boas referências, ao modo como o panfleto sobre Elizabeth Sawyer
constrói o ethos do enunciador na figura de Goodcole-narrador.
Após a introdução moralizante e professoral, o texto torna-se narrativo. Burt
entrou no celeiro de seu patrão, acompanhado de um mastim inglês, um cão de grande
porte, bastante encorpado, e viu uma lebre, que se sobressaltou à sua entrada. Apesar de
atiçar o mastim contra ela, o cachorro não só se recusou a avançar como se acovardou e
começou a correr em torno do homem, ganindo penosamente, “como se dissesse que tal
esporte não era para eles” (G.B., 1592, pp. 2-3).
As narrativas panfletárias são construídas de modo a tentar evitar ao máximo a
interpretação por oposição, portanto nesse começo lê-se a primeira evidência contra ela.
Não seria visto como algo comum um cachorro grande temer uma lebre, muito menos
“acovardar-se” [faint] diante dela, trazendo, assim, reações caninas associadas ao medo.
Não bastasse a composição de cena do relato, ainda há uma interpretação muito subjetiva
da atitude do mastim em “como se dissesse que tal esporte não era para eles”. Há um
alerta de perigo no próprio comportamento descrito do cachorro, mas também na leitura
que se fez dele.
A lebre escapa, logo sendo seguida por Burt, que a vê entrar na casa de Mother
Atkins, alguém “que, desde antes, sabia ser uma bruxa notória. Portanto ele se persignou
148

e, sem se esquecer do nome de Deus, disse ousadamente: ‘vá-te, bruxa’”209 (G.B., 1592,
p. 3). Novamente vemos o padrão da fama da ré precedendo o caso contra ela. Aqui, no
entanto, Burt não a supunha bruxa, mas sabia tratar-se de uma “bruxa notória” [notorious
witch]. Esse dado é apresentado como fato e não está aberto a debates. Ele “ousadamente”
[boldly] dirige-se a ela, ousadia esta que constitui parte de sua construção no papel
temático de herói a ser vitimizado por um poder diabólico.
Isso se confirma logo adiante, quando o narrador se refere a ele como “poore
Richard Burt” (idem, p. 3), a um só tempo anunciando seu papel de vítima e pondo-se ao
seu lado, ao nomear o que houve com ele como “futura tragédia” [future tragedie]. Ora,
se o narrador estivesse ao lado da bruxa, Burt não seria tratado com comiseração no
discurso, e nem sofreria uma tragédia. Sua fala para ela não teria sido “ousada”, mas
despropositada ou covarde. Essas escolhas vocabulares visam a demonstrar o poder de
alguém que, de outro modo, só poderia ser tida por indefesa, dado sua idade avançada e
estado de mendicância.
O relato prossegue: “ocorreu que dito Richard Burt, um mês depois, encontrando-
a perto do celeiro de seu patrão e saudando-a, ela, como uma mulher perversa, uma vespa
perigosa, uma bruxa pestilenta, inflamada pelo ódio ao vê-lo, abaixou a cabeça e não se
dignou a falar”210. Há uma nota de margem ao lado desse trecho, comentando: “indizível
é a malícia de uma mulher má” [unspeakable is the malice of a wicked woman] (G.B.,
1592, p. 3). Note-se que esse trecho vem logo depois do anúncio da “futura tragédia” de
Richard Burt. Ou seja, a narração prepara o enunciatário para simpatizar com Burt e
esperar coisas ruins de Atkins, muito embora uma senhora recusar-se a falar com alguém
que a chamou de “bruxa” pudesse ser interpretado como uma reação natural, se houvesse
predisposição nesse sentido. Burt, segundo o relato, saudou-a [giving hir the time of the
daye] como se não a houvesse esconjurado um mês antes, o que parece incongruente, mas
bem poderia soar normal num contexto em que vizinhos viviam em meio a
desentendimentos e intrigas gerados exatamente por sua proximidade e interdependência
(cf. BRIGGS, 1996). A nota generalista sobre a malícia indizível da mulher má tem a
função de enquadrá-la num perfil bem estabelecido, assim como os pares de adjetivos
iniciados em p e substantivos iniciados em w, reiterando com ênfase semântica e formal

209
No original, “whome before that time he knew to be a notorious witch: Whereupon blessing himselfe,
& mindful of the name of God, he boldly said, avant witch.”
210
No original, “It hapned the said Richard Burt a month after, meeting hir neere to this maisters barne, and
giving hir the time of the daye, like a perverse woman, like a perillous waspe, like a pestiferous witch,
incensed with hate at the sight of him held downe hir head, not daigning to speake.”
149

quais os comportamentos esperados desse tipo de gente: like a perverse woman, like a
perillous waspe, like a pestiferous witch, “como uma mulher perversa, uma vespa
perigosa, uma bruxa pestilenta”. Se por um lado o enunciador aparenta ter o cuidado de
compará-la a essas coisas em vez de a tachar assim, por outro não tem escrúpulos em
asseverar que a razão de ela não ter respondido a Burt era estar inflamada de ódio ao vê-
lo [incensed with hate at the sight of him], algo que — como já dito acerca de Goodcole
em relação a Elizabeth Sawyer de Edmonton — ele não teria como afirmar, senão como
o narrador onisciente de uma obra de ficção.
A perversidade feminina, bastante reiterada na passagem em destaque, é associada
outra vez à ideia de pestilência, tanto pelos adjetivos quanto pela imagem da vespa.
Assim, cria-se um paralelismo e uma gradação: mulher [woman] > vespa [wasp] > bruxa
[witch], bem como uma relação implícita entre maldade, perigo e peste: perverse >
perillous > pestiferous.
Note-se, portanto, que a fama anterior de Atkins, somada à valoração disfórica
atribuída a suas ações e reações e ao encadeamento dos fatos observáveis, constituirão as
“provas” necessárias para seu enquadramento na figura da bruxa enquanto uma ameaça
oculta no seio da comunidade. Os fatos em si, destaque-se, são temperados pelo narrador
com o tipo de comentários como o acima discutido, sem a menor pretensão da
neutralidade do enunciado, a qual não é um valor nessa sociedade.
No dia seguinte à extremamente perversa atitude de Atkins de não cumprimentar
Burt de volta, “uma quarta-feira, dia 8 de março”, ele voltou ao celeiro do patrão, e
“porque não ficava se arrastando para lá e para cá para escapar do trabalho, carregava o
jantar consigo” [bicause he would not trudge too [to] and fro for letting his work, carried
his dinner with him] (G.B., 1592, p. 3). A construção de Burt enquanto personagem dá-
se sempre numa esfera positiva, que, por contraste, tornará Atkins cada vez mais
monstruosa. A refeição é descrita, e informa-se que ele trabalhou duramente até meio-dia
[labouring hard], quando parou para comer, tomado pela fome e seguindo o costume
[hunger assailing and custome prevailing]. A refeição, no entanto, foi interrompida por
um “gato preto monstruoso” [monstrous black Cat] que começou a remexer a palha e
formar com ela um montinho. No susto, ele se levantou (com a torta de maçã na mão, o
narrador assinala, pois seria uma pena desperdiçar tão bom repasto), e ouviu uma voz
mandando-o sair. Ele perguntou para onde deveria ir, ao que o espírito (não há qualquer
ressalva em atribuir a origem da voz a um espírito) respondeu: “saia e deixe para trás sua
comida e também sua faca” [Come and leave thy vittels behind thee and thy knife also]
150

(idem). Ainda segurando sua torta de maçã, o coitado [poore simplicity] foi à porta do
celeiro, “onde de repente foi alçado ao ar e levado, sobrevoando vários campos” [where
suddenly hee was hoised up into the aire, and carried over many fields]. Segue-se toda
uma descrição do cenário, explicando que Burt não pediu ajuda a ninguém por causa da
violência com a qual era arrastado de um canto a outro, efeito explicitamente nomeado
de “tortura”. Ele visita as redondezas antes de ir parar num lugar cheio de fogo onde ouvia
lamúrias e choro, muito barulhento e fétido, além de escaldante. Uma espécie de limbo
(como é nomeado no panfleto) ou inferno (G.B., 1592, pp. 3-4). Nesse lugar, ele constata
não haver trabalho para ele, renovando sua imagem de homem trabalhador e honesto.
Vozes ordenam-lhe não contar onde esteve, e ele responde que seu patrão desejará saber.
Ante sua recusa, ele sofre consequências: sua língua incha na boca, suas pernas são
queimadas, seu casaco arrancado e jogado ao fogo, ele é arrastado em meio a um relevo
acidentado, no qual é afogado, queimado e espetado por espinhos. Depois de devolvido à
sua vizinhança, da qual ficara afastado por dias, não foi imediatamente reconhecido pelo
cavalheiro para quem trabalhava, estando num estado alucinado. O sr. Edling, seu
empregador, pergunta-lhe o que houve, e ele aponta a casa de Mother Atkins, olhando
para lá de modo muito sinistro e feroz [grislie and fiercelie] (G.B., 1592, pp. 4-5).
O sacerdote é chamado e ajuda a abrir sua boca e a desenrolar sua língua. Livre
para falar, as palavras de Burt são as seguintes: “Que aflições recaiam sobre Mother
Atkins, pois ela me enfeitiçou” [Woe Worth Mother Atkins, for she hath bewitched me].
Mandaram chamá-la e, em sua presença,

ele não descansou enquanto não a arranhou e lhe tirou sangue,


convencido de que isso seria remédio suficiente para Deus, que o
deixaria bem; isso não foi um erro capital, conforme a experiência
atesta, pois desde então ele melhorou sensivelmente e agora vai à
Igreja211 (G.B., 1592, p. 5).

As supostas provações de Burt, um homem trabalhador que desapareceu do


trabalho e voltou depois em tal estado irreconhecível, ao serem por este atribuídas a
Mother Atkins, “bruxa notória”, ocupam muito maior espaço no texto do que qualquer
coisa que ela tenha feito ou dito, a fim de servirem como evidência contra ela ao opô-la a
ele.

211
No original, “he never ceased til he had scratched and drawne bloud on hir, perswading himselfe that
was a remedy sufficient under God, that would make him well: neither was it or is it any Capital error,
experience testyfies: for since that he hath mended reasonablie, and nowe goeth to the Church.”
151

O panfleto não registra se ela foi levada a juízo por isso, mas provavelmente não
(ao menos, até a data de publicação), ou a informação não seria omitida. Em vez disso,
finda a história sobre o “poore Richard” e, em dois parágrafos, encerra o texto com mais
dois exemplos contra Atkins, bastante resumidos, um tanto estereotípicos. No primeiro,
Atkins foi pedir leite numa casa e as empregadas, ocupadas em preparar produtos
derivados de leite, recusaram (fica implícito que por estarem ocupadas). Tão logo Atkins
retirou-se, tudo estragou. O narrador inclui na margem dessa passagem a observação:
“bruxas são as criaturas mais nocivas do mundo” [witches ar the moste unprofitable212
creaturs in the world]. A relação entre o pedido recusado a Atkins e o azedamento do
leite já permeava o imaginário, e atrelá-la à bruxaria não exigiria muitas explicações.
O segundo exemplo narra que Atkins foi pedir um “alívio” [releese] a certo
Gregorie Coulson, explicando que ela vivia da “caridade da boa gente”, e, encontrando-
o ocupado (como as empregadas da outra casa), este lhe recusou o pedido, por não querer
abandonar as ovelhas das quais estava cuidando. Depois que Atkins vai embora, quando
ele termina seu trabalho, duas delas começam a pular sem parar e assim ficam até morrer.
Eis o final do texto.
O curto parágrafo entre um exemplo e outro acrescenta uma afirmação que não
chega a informar nada: “muitas semelhantes ações de extrema crueldade e ira lhe são
imputadas, mas vamos concluir e encerrar essas proposições, com o seguinte”213 (G.B.,
1592, p. 6). Analisando esse encerramento um tanto brusco, existe uma chance de o
panfleto destinar-se justamente a expor Atkins ao público, predispondo a opinião geral
contra ela, a fim de levá-la a julgamento. Note-se, na Figura 12, o quanto o fechamento
do panfleto se dá dessa maneira em suspenso, sem nenhum parágrafo a título de
conclusão, apenas pela inscrição “FINIS”.

212
Traduzi unprofitable por “nocivas” porque, segundo o Oxford, a primeira acepção dessa palavra, hoje
obsoleta, é justamente “evil, wicked, harmful”, que cabe muito bem ao contexto.
213
No original, “Many and sundry like actions of extreame rage and crueltie are imputed to her, only we
will conclude, and shut up these clauses, with this that followeth.”
152

Figura 12: última página (p. 6) do panfleto A most wicked worke of a wretched witch (1592). Observe-se a
nota de margem.
153

Capítulo 3
A bruxa na ficção do início da Idade Moderna: Macbeth

Os diversos tratados ajudavam a estabelecer, reafirmar ou alterar a imagem da


bruxa, enquanto os panfletos criavam e alimentavam o sensacionalismo em torno dos
relatos extraordinários e julgamentos envolvendo-a, mas é possível argumentar que o que
alcança a posteridade, por seu caráter mais perene, está na esfera da arte214.
Logo no início do período jacobino (como é chamado o reinado de James VI da
Escócia e I da Inglaterra), o dramaturgo William Shakespeare (1564-1616),
estabelecendo-se na Corte, escreveu Macbeth (c. 1603-1607)215, não por acaso uma peça
com bruxas a propósito do direito divino da sucessão dos reis, prevendo a desgraça para
usurpadores do trono.
Conforme o Oxford Reference resume o enredo da peça, “Macbeth e Banquo,
generais de Duncan, rei da Escócia, voltando de uma campanha vitoriosa contra rebeldes,
encontram três bruxas, que profetizam que o primeiro será thane de Cawdor e então rei,
e que o último produzirá reis, embora não venha a ser um. Logo em seguida, chega a
notícia de que [Duncan] tornou Macbeth o thane de Cawdor. Este, motivado pela profecia
e incitado por Lady Macbeth, assassina Duncan, que está em visita a seu castelo” 216. A

214
Com essa afirmação, talvez eu esteja me rendendo a um exercício duramente criticado por uma das
pesquisadoras com cujo objeto e metodologia de pesquisa mais me alinho, Diane Purkiss, pois eu
provavelmente tenha supervalorizado o papel da literatura na composição e fixação do imaginário. Nesse
momento, aperto o botão “estou ciente e quero continuar”: construí meu percurso até aqui de maneira a
trabalhar todos os textos mobilizados na esfera do discurso, centrando-me em suas respectivas formas de
representação e no que parecem defender ou criticar com elas, dentro de seus contextos específicos. Embora
seja impossível negar o papel basilar de toda a não-ficção analisada na construção da figura da bruxa, creio
ser possível sustentar, mesmo sem nenhum rigor teórico-metodológico, que é mais fácil encontrar pessoas
familiarizadas com a existência de Macbeth do que de Daemonologie. Recorro a uma anedota pessoal:
quando eu buscava uma edição atualizada do tratado do rei James em livrarias especializadas na Inglaterra,
na Escócia e em outras partes da Europa, absolutamente todas as pessoas com quem interagi sabiam quem
era Shakespeare e que ele escreveu uma peça chamada Macbeth, enquanto ninguém tinha ouvido falar do
tratado de James (e um número significante de pessoas só se lembrou desse rei quando mencionei a King
James’ Bible). Essa perenidade da obra artística também pode ser inferida através das inúmeras referências
diretas e indiretas à peça pela cultura pop contemporânea, mas há que se fazer a ressalva de que outros
dramaturgos do período não gozam da mesma notoriedade do Bardo atualmente, sendo que inúmeras peças
envolvendo a temática da bruxaria se perderam no tempo ou permanecem obscuras perante o público não
acadêmico (cf. PURKISS, 1996, pp. 181).
215
Houve algumas controvérsias quanto à autoria da peça, principalmente em razão da diferença entre as
datas de montagem e representação no palco (em 1606, no Globe) e de sua publicação (1623), além de
algumas características, como o tamanho reduzido do texto, as diferenças formais entre as falas das bruxas
e as de outras personagens e o fato de duas das músicas estarem presentes na peça The Witch, de Thomas
Middleton. Atualmente parece bem estabelecido que Shakespeare escreveu Macbeth, mas pelo menos as
duas músicas em questão são da autoria de Middleton, que efetuou alterações no texto original (cf. CLARK;
MASON, 2019).
216
No original: “Macbeth and Banquo, generals of Duncan, king of Scotland, returning from a victorious
campaign against rebels, encounter three witches, who prophesy that Macbeth shall be thane of Cawdor,
154

escolha temática, associada à inclusão da personagem Banquo, de quem James julgava


descender, dificilmente seria acidental, embora haja argumentos de que a peça seja “no
mínimo ambivalente ao tratar dos temas mais próximos ao coração do rei” (CLARK;
MASON, 2019, p. 21). Para as pesquisadoras responsáveis pela edição da obra na coleção
The Arden Shakespeare — e as referências por elas citadas para embasar essa visão —,
existe uma crítica à Escócia subjacente no texto e talvez certa exotização da história do
país. Segundo elas, “a Escócia da peça é tanto um mundo primitivo pré-moderno quanto
um lugar onde noções de reinado e poder refletem preocupações jacobinas de maneira
reconhecível”217 (idem, p. 29), o que podia transmitir mensagens ambíguas ao público
inglês, dependendo de sua filiação política. Da mesma forma que Shakespeare incluía
núcleos e personagens destinados a agradar a Corte, havia aqueles direcionados
explicitamente às camadas populares de seu público, e o mesmo efeito poderia se dar
entre apoiadores de James e cortesãos menos entusiasmados com a sucessão de um
escocês ao trono inglês. O texto parece permitir — como virtualmente qualquer obra
ficcional — uma leitura por oposição, isto é, a possibilidade de o enunciatário extrair
exatamente o tipo de opinião que está buscando, mesmo se esta não for a interpretação
mais óbvia do enunciado.
À época, personagens escocesas eram comumente retratadas de modo caricato,
ridículo e até vilanesco (idem, p. 22) em peças anteriores à ascensão de James, além de
algumas após, um imaginário compartilhado em Macbeth. Nesta última, entretanto, não
se poderia condenar a representação de escoceses antagônicos, quando, por centrar-se no
país, os heróis compartilham da mesma nacionalidade. Por outro lado, um público da
época que desejasse ler nos vilões o “fiel retrato” de um escocês bem poderia fazê-lo, a
partir de elementos presentes na obra. É no mínimo curioso que se trate da única peça de
Shakespeare contada do ponto de vista de um herói que também é criminoso218 (cf.
CLARK; MASON, 2019, p. 2-4).

and king hereafter, and that Banquo shall beget kings though he be none. Immediately afterwards comes
the news that the king has created Macbeth thane of Cawdor. Motivated by the prophecy and urged on by
Lady Macbeth, Macbeth murders Duncan, who is visiting the castle”. Disponível em https://www-
oxfordreference-com.ezproxy.is.ed.ac.uk/view/10.1093/acref/9780199608218.001.0001/acref-
9780199608218-e-4707?rskey=rSXDG9&result=2949 (acesso restrito com login). Último acesso em
27/05/2019.
217
No original: “The Scotland of the play is both a primitive, pre-modern world, and also a place where
notions of kingship and power reflect recognizably Jacobean concerns.”
218
As pesquisadoras comentam que Shakespeare havia tentado fazer o mesmo com Ricardo III, mas esse
efeito se deu plenamente apenas em Macbeth, cujo protagonista vira um criminoso muito cedo na obra.
155

Esse intertexto sociopolítico da peça soa um tanto mais dúbio do que a


composição do sobrenatural, com a qual mantém estreita relação, conforme veremos.
Gibson e Esra afirmam que, “para Shakespeare, goblins e espíritos, bruxas e demônios,
magia e conjuradores, parecem existir num espaço privilegiado onde a definição
demonológica é menos importante do que a arte de contar uma história e seu potencial”219
(2014, p. 5). Nota-se nos pesquisadores uma parcialidade ao trabalho do autor, parecendo
considerá-lo acima dos jogos políticos do contexto no qual escrevia. Para eles, o
dramaturgo evade-se de uma discussão valorativa sobre a natureza de seres dessa esfera,
em termos de bondade e maldade, o que em certos aspectos e em outras obras do autor é
defensável, especialmente porque,

ao contrário de Jonson, por exemplo, Shakespeare não era tão fascinado


pelas minúcias da demonologia quanto por outros aspectos da vida
humana. Talvez se possa enxergar a estrutura demasiado simplista/
binária da demonologia como algo na contramão na maioria de suas
obras. Enquanto Jonson usava explicitamente uma imagética
demonológica, astrológica e alquímica para adular as pretensões
stuartianas a um absolutismo britânico ou para satirizar a
mercantilização dos relacionamentos humanos, o interesse de
Shakespeare manifestava-se de modo muito menos sonoro220
(GIBSON; ESRA, 2014, pp. 4-5).

Existe uma tendência a se atribuir tais ambuiguidades somente à genialidade de


Shakespeare, que, embora sem dúvida mereça parte na estruturação do pensamento
veiculado na peça, não estaria alheio às crenças dominantes em seu tempo. O mundo onde
maus espíritos circulam, sempre à espreita de uma oportunidade para causar mal às
pessoas, é o mundo do início da Idade Moderna, como vimos discutindo até aqui. Se o
dramaturgo acreditava ou não nesses seres é impossível depreender, e de todo modo
completamente irrelevante para minha análise.
Os pânicos contra as bruxas no período elizabetano na Inglaterra seguiram-se de
calmarias, que antecederam novos pânicos, movimento que se repetiu em diversas partes

219
No original: “for Shakespeare, goblins and spirits, witches and fiends, magic and conjurors, seem to
exist in a privileged space where demonological definition is less important than storytelling and its
potential.”
220
No original: “unlike Jonson — for example — Shakespeare was not as fascinated by the nitty-gritty
detail of demonology as he was by some other aspects of human life. Its oversimplifying/ binary structure
may perhaps be seen as going against the grain of most of his words. Where Jonson used explicitly
demonological, astrological or alchemical imagery to flatter Stuart pretensions to British absolutism or to
satirise the commodification of human relationships, Shakespeare’s interest manifested itself much more
quietly.”
156

da Europa continental. As crenças nas quais se baseavam variavam conforme os credos


dominantes em cada região (o que matizava a figura da bruxa pela cor local, digamos, por
exemplo, ao associá-la a judeus/ cristãos-novos num país católico, ou a católicos, num
país protestante). O que Shakespeare e outros dramaturgos fazem ao mobilizar essa figura
consiste em apoderar-se de tais crenças e usá-las para amplificar o efeito dramático de
suas peças, enviando mensagens de moral ambígua ao público — o que diversos críticos
(aqui citados ou não) tomam por demonstração de ceticismo; afinal, se acreditassem nas
forças sobrenaturais manipuladas por servas do Diabo para Deus punir os iníquos, talvez
não lhes dessem momentos de comicidade ou não exibissem rituais sacrílegos num
palco221.
A pesquisadora Diane Purkiss defende que Macbeth remete-se mais ao lado cético
de James (dados os hábitos do rei de, posteriormente à sua ascensão ao trono inglês,
investigar e “desmascarar” casos fraudulentos de possessão e encantamento) do que à
interpretação corrente de que se trata de uma “encenação da misoginia violenta de um
absolutista patriarcal, paranoico com os poderes das mulheres”222 (PURKISS, 1996, p.
206), apontando, inclusive, que uma das principais fontes de Shakespeare teria sido The
Discoverie of Witchcraft, de Reginald Scot.
À semelhança da própria Escócia, as bruxas na peça podem ser lidas sob diversos
vieses, e de fato o foram ao longo dos séculos. No que tange especificamente a essa figura,
Purkiss aponta que
contextualizar uma peça a respeito de bruxas significa reconhecer seu
lugar numa disputa de significados, enxergando-a como algo que
escolhe lados numa série de lutas manifestas e encobertas. Mas também
significa reconhecer os pontos nos quais o teatro procura ou

221
Houve sugestões de que as bruxas não passassem de uma externalização da psicologia de Macbeth, uma
vez que elas expressam o que poderia ser um desejo seu por ainda mais poder, embora inconfesso, chegando
a recusar-lhes mesmo a existência (MATHUR, 1977, p. 6). Quanto à sua existência, o fato de também
Banquo vê-las e interagir com elas parece-me dirimir qualquer dúvida. A questão de as Weird Sisters
operarem magia ou não também me parece menos difícil de resolver do que à primeira vista, pois a escolha
de como representá-las no palco, a cargo do diretor, em geral exige a priorização de determinados aspectos
textuais em detrimento de outros. No começo do século XX, “foram mais típicas as montagens [que]
retratavam as bruxas (através de cortes judiciosos de suas falas) primeiro como velhas sem nenhuma
sugestão de poder sobrenatural, pilhando cadáveres no campo de batalha e prevendo o futuro de Macbeth
e Banquo através de quiromancia, e mais tarde como projeções alucinatórias da imaginação doente de
Macbeth” (2019, p. 101). Para mim, se são necessários “cortes judiciosos” nas falas das bruxas para que
elas percam o viés sobrenatural, isso quer dizer que o texto trabalha com a existência de bruxaria conforme
entendida à época de sua produção. No original: “more typical have been stagings [that] depicted the
Witches (through judicious cutting of their lines) first as old women without any suggestion of supernatural
powers, plundering corpses on the battlefield and telling the fortunes of Macbeth and Banquo through
palmistry, and later as hallucinatory projections of Macbeth’s diseased imagination, like Banquo’.
222
No original: “staging of violent misogyny for the benefit of a patriarchal absolutist paranoid about
women’s powers.”
157

inadvertidamente obtém sucesso em desatrelar-se de suas fontes


discursivas ou em transformá-las, incluindo tanto discursos da elite
quanto os populares. […] Histórias sobre bruxas e tropos de bruxaria
frequentemente são parte de uma tentativa de trazer ao palco algo da
espetacularização dos impressos populares e talvez da cultura oral, ao
mesmo tempo atendendo à fascinada aversão que a audiência culta
nutria por tais espetáculos223 (1996, p. 180, destaque da autora).

No mesmo sentido, de acordo com o pesquisador Robert Schuler, “a bruxaria está


entrelaçada tanto com transgressões de gênero quanto com alta traição nas primeiras
peças históricas”224 (2004, p. 387), juízo que parece descrever bem o caso de Macbeth. A
ideia de que as bruxas teriam mais poder sobre alguém já propenso ao mal, patente na
peça, predomina nas discussões demonológicas da época, como já discutido. Aqui,
contudo, seu poder sobre Macbeth não consiste num feitiço fatal, ao menos não
diretamente, e ele não adoece no sentido físico, na esfera da saúde, e sim num âmbito
moral, na esfera do caráter, que, no contexto, seria também político-religiosa.
O que se observa nessa obra segue a linha dos textos de não-ficção analisados no
capítulo anterior: as bruxas podem ser a causa de todos os males, mas não passam de uma
sombra a se interpor na história principal, a de sua vítima. Toda a discussão de bem e mal,
rei legítimo e usurpador tirano, centra-se em Macbeth e, em certa extensão, na Lady,
definida por Purkiss como uma “virago simbolicamente aliada à bruxaria”, que “é o
recurso das mulheres, porque simboliza a única maneira que elas podem agir
politicamente; de forma furtiva, em segredo, em vez de no campo público da batalha ou
do debate” 225 (1996, p. 191). As bruxas (autoidentificadas pelo epíteto coletivo de Weird
Sisters) atuam como (anti-)destinatador, apenas, e os debates morais não pesam
inteiramente sobre elas, pois não são personagens propriamente ditas. Em termos de
enredo, constituem um entretenimento incluso pelo prazer estético do medo; assistir à

223
No original: “Contextualising a play concerning witches means recognising its place in a context of
meanings, seeing it as taking sides in a series of overt and covert disputes. But it also means recognising
the points at which drama seeks to or inadvertently succeeds in uncoupling itself from or transforming the
discourses upon which it draws, including both elite and popular discourses. […] Stories about witches and
tropes of witchcraft are often part of an attempt to bring to the stage some of the spectacle of popular print
and perhaps oral culture, while also catering to the educated audience’s fascinated dislike of these
spectacles.”
224
No original: “Witchcraft is intertwined with both gender transgression and treason in the earliest history
plays.”
225
No original: “virago symbolically allied to witchcraft”, “[…] is the resort of women because it
symbolises the only way they can work politically; by stealth, in secret, rather than on the public field of
battle or debate.”
158

performance de um feitiço no palco há de ter sido impressionante para o público do século


XVII.
O poder das Weird Sisters é principalmente o da predição do futuro, em princípio
manifesto através do diálogo inicial com Macbeth e Banquo e da interpretação que os
dois fazem das palavras ambíguas delas (o que as coloca, num primeiro momento, no
papel mais facilmente atrelado às deusas mitológicas de onde tiraram seu nome). Essa
primeira interação é inesperada, do ponto de vista do protagonista. Já o encontro seguinte,
que traz uma profecia mais elaborada, dá-se com a visita de Macbeth ao trio, que lança
um feitiço nos moldes descritos nas demonologias. Esse dom (involuntário) ou feitiço
(voluntário) de prever o futuro foi tomado como uma forma de induzir o protagonista em
seu caminho criminoso e sacrílego de alta traição. No entanto, as bruxas disseram somente
que Macbeth seria rei, não que para isso ele deveria assassinar Duncan, conforme observa
Frye:
[elas] deixam para sua imaginação ativa escolher modos de tornar a
predição realidade. Esse é o cerne da tentação, a possibilidade sedutora
que Macbeth acabará abraçando. Mas até então ele enfrenta apenas a
sugestão ou o convite do mal que o procurou226 (FRYE, 1987, p. 253).

O fato de profecias induzirem ao erro por causa das dificuldades de interpretação


não é estranho às artes dramáticas, visto ser um tropo presente no teatro clássico grego.
A isso soma-se o contexto histórico de produção da peça, poucos anos após o fim do
reinado de Elizabeth, quando profecias de ordem política (especialmente relacionadas à
sua data de morte) foram proibidas por sua capacidade de excitar rebeliões e atentados
contra a rainha (cf. PURKISS, 1996, pp. 190-1). Dessa forma,

enquanto Jackson e Marcus veem as bruxas das peças Henry em termos


dos discursos jacobinos a respeito, incarnados no julgamento de North
Berwick em 1591, pode-se argumentar, mais plausivelmente, o oposto:
que a obsessão de Macbeth com a sobreposição de bruxaria e profecia
ecoa as últimas duas décadas do reinado de Elizabeth e suas antigas
profecias pesadamente politizadas227 (PURKISS, 1996, p. 191,
destaque da autora).

226
No original: “[…] leaving it to his active imagination to choose ways to make the prediction come true.
That is the core of the temptation, the enticing possibility which Macbeth will eventually embrace. But thus
far he faces only the suggestion or solicitation of evil which has sought him out.”
227
No original: “While Jackson and Marcus see the witches of the Henry plays in terms of the Jacobean
witch-discourses incarnated in the North Berwick trial of 1591, one might more plausibly argue the
opposite; that Macbeth’s obsession with the overlap between witchcraft and prophecy harks back to the last
two decades of Elizabeth’s reign and its heavily politicised ancient prophecies.” Diane Purkiss deu um
excelente argumento aqui; as artes constroem-se sobre referências ao presente e como ele se relaciona com
o passado. Seria ingênuo argumentar que a bruxa foi se tornando uma figura popular no teatro apenas por
159

O contexto político esparrama-se no teatro, onde ganha múltiplas formas. Na peça,


as três bruxas surgem para profetizar a ascensão do protagonista ao trono escocês e prever
sua queda, o que as liga às divindades triádicas de diversas religiões antigas. Na terceira
cena do primeiro ato, quando falam em coro, apresentam-se da seguinte maneira: “The
weird sisters, hand in hand,/ Posters of the sea and land […]”228 (SHAKESPEARE, 1996,
p. 859). O termo weird deriva do anglo-saxão wyrd, cujo significado é “destino”. No
plural, refere-se às Moiras gregas (hoje, the Fates, cf. Oxford English Dictionary), ou às
Parcas romanas, também chamadas Fiandeiras, ou ainda às Nornas da mitologia nórdica,
por serem as deusas que fiam, tecem e cortam o fio da vida de todos os mortais: “Os
antigos representavam as Parcas sob a forma de três mulheres de rosto severo, curvadas
pela velhice, com coroas feitas de volumosos flocos de lã entremeadas de narciso”
(COMMELIN, 2008, p. 83). Como aponta Laura Shamas, elas são “uma complexa
construção mitológica trinitária feminina, um amálgama único de elementos clássicos,
folclóricos e sociopolíticos229 (2007, p. 3), uma mistura utilizada tanto por Shakespeare
quanto por seus contemporâneos na composição da figura da bruxa:

Essa sopa de ingredientes alimenta-se imparcialmente nas fontes da


cultura popular inglesa, dos tratados continentais sobre bruxaria de
pacto, dos textos literários antigos e outras peças, sob uma perspectiva
que achata as diferenças entre essas esferas discursivas, eliminando-as,
e entende todas as bruxas simplesmente como emblemas daquela
desordem feminina que significa insensatez popular. A crua oposição
entre ordem e desordem era uma peça vital no equipamento mental do
início da Idade Moderna, uma grade que poderia ser imposta a qualquer
enredo ou acontecimento. Uma função ideológica da mascarada cortesã
era tornar essa ferramenta de raciocínio fácil disponível para a Corte230
(PURKISS, 1996, p. 203).

causa de James, quando já houvera tantos julgamentos durante o reinado de Elizabeth. A pesquisadora ainda
aponta que o número diminuto de bruxas em peças durante o período elizabetano pode ter a ver com o fato
de que os opositores da rainha desdenhavam de sua legitimidade, portanto seria possível sobrepor a monarca
à bruxa, por ambas deterem um poder que não deveriam (cf. 1996, p. 186-7).
228
“As três irmãs, de mãos dadas,/ Por terra e mar viajadas […]” (SHAKESPEARE, 2010, p. 453).
Infelizmente, na tradução de Barbara Heliodora perdeu-se a referência vital ao destino, contida no termo
weird. Traduzindo literalmente, temos: “As irmãs-destino de mãos dadas/ velozes viajantes por mar e por
terra”.
229
No original: “complex feminine trinitarian mythological construction, a unique amalgamation of
classical, folkloric and socio-political elements.”
230
No original: “This stew of ingredients draws impartially on English popular culture, learned treatises on
Continental pact witchcraft, ancient literary texts and other dramas from a perspective which flattens out
the differences between these discursive spheres and understands all witches simply as emblems of that
feminine disorder which signifies popular unreason. The crude opposition between order and disorder was
a vital piece of early modern mental equipment, a grid which could be imposed over any story or event.
One ideological function of the court masque genre was to make this tool for easy thinking available to the
court.”
160

O dramaturgo serve-se de todos esses elementos na construção de suas bruxas e


no formato de sua bruxaria. O poder da profecia é diabolizado nessa época, conforme
James discorrera passionalmente em Daemonologie, bastando para derrubar as Weird
Sisters da altura da divindade para o submundo dos seguidores de Satã. Assim, em vez
da elevação das Moiras — divindades a quem até os olimpianos deviam se submeter —,
as Weird Sisters se reduzem a servas, embora mais poderosas do que meros mortais.
Apesar de haver outros fatores a considerar acerca de tal representação, esse
aprisionamento das deusas dentro do estereótipo, na obra shakespeariana, ajudou a
estabelecer novos moldes para a figura da bruxa, ao mesmo tempo dando-lhe força e
longevidade (cf. PETHERBRIDGE, 2013, p. 83).
Na cena do encontro entre elas e Macbeth, se olharmos somente para o texto
escrito e desconsiderarmos a montagem no palco (cuja natureza variou bastante), a forma
como a profecia aparece poderia ser divinal, não fossem certas marcas relacionadas à sua
aparência (a serem discutidas mais adiante). Já na cena das aparições, é difícil não
enxergar todos os elementos de bruxaria descritos por demonólogos.
Laura Shamas, ao apontar a origem mitológica das Weird Sisters, esforça-se para
demonstrar que elas estão mais para seres feéricos ou deusas propriamente ditas do que
bruxas, trazendo à discussão questões de arquétipos jungianos (2007, p. 9). Embora essa
base mitológica seja ponto pacífico, é difícil ignorar o texto da peça, como a pesquisadora
parece fazer ao afirmar que só aparece o termo witch uma vez (vocativo de uma das irmãs
ao se dirigir a outra, o que por si só já derrubaria seu argumento de que elas não eram
percebidas como bruxas, mas feéricas ou ninfas, cf. p. 9; não se pode ignorar a
autodeterminação). No entanto, as três são demarcadas textualmente por “1ª bruxa”, “2ª
bruxa” e “3ª bruxa”, o que resolve a questão. Outro argumento da autora é o de que o trio,
conforme descrito por Holinshed em suas Crônicas (texto histórico que foi uma das fontes
de Shakespeare), não teve sua imagem atrelada a bruxas, nem esse encontro profético, à
bruxaria, mas aqui talvez convenha lembrar que o historiador e o ficcionista, embora
possam se servir dos mesmos materiais, têm ideias diferentes de como encaminhá-los;
este último emprega, ressignifica, distorce e reconstrói segundo sua conveniência. O trio,
conforme representado na xilogravura na obra de Holinshed, é formado de mulheres
graciosas de vestes aristocráticas, o que não combina com os comentários da personagem
Banquo sobre a aparência delas na peça de Shakespeare (a serem analisados logo mais).
161

Figura 13: reprodução da xilogravura do encontro de Macbeth e Banquo com as bruxas, nas Holinshed’s
Chronicles (1577)

A linguagem profética das Weird Sisters, repleta de paradoxos cujo entendimento


é incerto, reverbera em todo o texto como um constante aviso de que o destino depende
de interpretação. A começar pela discussão sobre o futuro reencontro das três na primeira
cena, com a referência da 2ª bruxa a “quando a batalha for perdida e vencida” (“When the
battle’s lost, and won”, cf. 1.1.4), e um dos versos mais célebres da peça, “Fair is foul,
and foul is fair” (1.1.9), mais tarde ressoado pelo protagonista ao proclamar: “So foul and
fair a day I have not seen” (1.3.36). Como observa Floyd-Wilson, “notoriamente,
[Macbeth] ecoa as Weird Sisters mesmo antes de as encontrar”231 (2006, p. 151).
Uma das razões para essas oposições terem efeitos amplificados na trama é o
quanto o discurso retoma o imaginário das inversões do início da Idade Moderna. Afinal,

[as bruxas] fornecem a tentação desencadeadora que o protagonista


aceita por seu próprio livre arbítrio e para sua própria perda trágica. As
portadoras da tentação são chamadas Weird Sisters no texto da peça e
“bruxas” nas indicações da personagem que fala, mas são mais
completamente identificadas como “os instrumentos das trevas” por
Banquo no primeiro ato e “esses demônios dançantes” [these juggling
fiends] por Macbeth no último (1.3.124 e 5.8.19). Essa cena de abertura
é curta, mas eficaz, e fecha-se com o refrão assustador e inesquecível
cantado pelas três bruxas: “Fair is foul, and foul is fair/ Hover through
the fog and filthy air”. Para essa peça, podemos chamá-lo de credo
demoníaco: afirma uma mistura, uma confusão, e até mesmo uma
inversão de bom e mau, e assim torna possível cometer atos de outro

231
No original: “Notoriously, [Macbeth] echoes the Weird Sisters even before meeting them.”
162

modo conhecidos por serem abomináveis e rejeitar aqueles conhecidos


por serem justos232 (FRYE, 1987, p. 250).

No mesmo sentido, o pesquisador Daniel Fischlin observa:

O poder do encantamento das bruxas em Macbeth é tanto mais potente


por construir o paradoxo [entre fair e foul]: um construto discursivo que
reúne opostos improváveis na ilusão de um todo imaginativo e
homólogo. Isso quer dizer que o poder das bruxas conforme constituído
literariamente é o poder sobre palavras e seus efeitos, o poder de dobrar
a realidade, de moldar a imaginação através do encantamento. E é um
poder ao qual Macbeth sucumbe tanto em sua apropriação do
encantamento delas quanto ao dar vida à profecia. Mulheres falam
imaginativamente. Homens agem de acordo, embora tragicamente. As
weird sisters representam precisamente o poder imaginativo e
discursivo temido por Kramer e Sprenger. Está em poder delas gravar
na imaginação de Macbeth a noção do poder absoluto que ele buscará,
assim como está no poder delas transmutar “as imagens mentais na
faculdade imaginativa” da audiência que elas entretêm com sua
inebriante combinação de charme, dança, música, imagem e
encantamento […]. A profecia, feita logo após a primeira aparição de
Macbeth na peça, efetivamente localiza a fonte de busca pelo poder nas
artes da bruxa. Nem é acidental que as primeiras palavras faladas por
ele — “So foul and fair a day I have not seen” (1.3.36) — não passem
de ecos do encantamento das bruxas que encerra a primeira cena da
peça […]. Macbeth literalmente adentra a peça falando em palavras do
feitiço, um lembrete não tão sutil, talvez, de conexões latentes entre a
estrutura da narrativa trágica, a bruxaria e a sede de poder à qual
Macbeth logo sucumbirá233 (1996, p. 6).

232
No original: “[the witches] provide the triggering temptation which the tragic protagonist accepts of his
own free will and to his own tragic loss. The bringers of temptation are called Weird Sisters in the text of
the play and Witches in the speech labels, but are more fully identified as ‘the instruments of darkness’ by
Banquo in the first act and ‘these juggling fiends’ by Macbeth in the last [1.3.124 and 5.8.19]. This opening
scene is short but effective, and it closes upon a haunting and unforgettable refrain chanted by the three
witches: ‘Fair is foul, and foul is fair: Hover through the fog and filthy air.’ For this play we may call that
the demonic creed: it affirms a mixing, confusion, and even reversal of good and evil, and so makes it
possible to commit acts otherwise known to be foul and reject those known to be fair.”
233
No original: “The power of the witches’ incantation in Macbeth is all the more potent in that it frames
the paradox […]: a discursive construct that renders improbable opposites into the illusion of an
homologous, imaginative whole. Which is to say that the witches' power as it is constructed literarily is the
power over words and their effects, their power to bend reality, to shape the imagination through
incantation. And it is a power to which Macbeth succumbs both in his appropriation of their incantation as
well as in living out the power of their prophesy. Women speak imaginatively. Men act accordingly, albeit
tragically. The weird sisters represent precisely the imaginative and discursive power feared by Kramer and
Sprenger. It is in their power to impress on Macbeth's imagination the notion of the absolute power he will
pursue, just as it is in the weird sisters’ power to transmute ‘the mental images in the imaginative faculty’
of the audience which they entertain with their heady combination of charm, dance, music, image and
incantation. […] The prophesy, made just after Macbeth’s first appearance in the play, effectively locates
the source of Macbeth's drive to power in the witch's craft. Nor is it accidental that the first words spoken
by Macbeth — ‘So foul and fair a day I have not seen’ (1.3.36) — are but echoes of the witches’ incantation
that ends the very first scene of the play […]. Macbeth literally enters the play speaking in the words of the
163

A batalha perdida e vencida mencionada pela 2ª bruxa e o dia bonito e horrível de


Macbeth de certa forma dialogam. Afinal, o protagonista e seus soldados, lutando pelo
exército do rei Duncan, conseguiram suprimir os rebeldes. Uma guerra, no entanto,
sempre tem perdas humanas (e, no caso, os dois lados pertenciam ao mesmo povo), então
a comemoração da vitória não deixa de ser agridoce. Além disso, o rei saiu vitorioso e
premiou um de seus generais com um novo título, apenas para perder a vida para a
ambição dele. Clark e Mason observam que “batalha” [battle] poderia significar ainda
tanto um “encontro hostil” quanto um “corpo de tropas ou mesmo um exército inteiro”
(2019, p. 128), ressaltando a ambiguidade do verso, para ampliar a possibilidade de
significações.
As bruxas, entre si na cena de abertura da peça, manifestam interesse no desenlace
da batalha, que está acontecendo ou para acontecer, e marcam sua nova reunião para
depois dela, a fim de encontrar/ atacar Macbeth. Clark e Mason trazem, nessa passagem,
uma nota gramatical segundo observações de N. F. Blake, informando que no inglês do
início da Idade Moderna “meet with” é um phrasal verb que pode significar “atacar” ou
“apanhar em uma emboscada”, e que talvez o significado do verso “There to meet with
Macbeth” (1.1.7) divirja do que seria se ele usasse apenas meet (2019, p. 129). Claro, se
lermos “meet with” no sentido da emboscada, seria metaforicamente, pois elas não o
atacam com agressões físicas ou feitiços hostis. Nesse caso, seria prova da deliberação
das Weird Sisters de fazer uma profecia ambígua, que levará Macbeth a se tornar um
criminoso e, em última instância, o matará. E isso faria dessas bruxas literárias muito
mais sutis e calculistas do que mesmo os magistrados, teólogos e inquisidores mais
misóginos atribuiriam à perfídia feminina, no sentindo de que elas demonstram um
profundo conhecimento da mente humana (masculina, no caso) e de quais informações
reter e quais compartilhar com Macbeth para manipulá-lo a agir contra seus próprios
interesses, ao mesmo tempo levando-o a crer que segue o melhor caminho para suas
ambições.
Assim, novamente precisamos contrapor a figura da bruxa à do (anti-)herói. Em
Shakespeare, eles não são o negativo um do outro e, com isso, ele sai perdendo em relação
aos sujeitos de outros relatos envolvendo bruxas, pois, se fosse um homem reto, de moral
ilibada, talvez não lhe houvesse ocorrido usurpar o trono ao escutar a profecia. Ele, na
verdade, acaba ilustrando o caso do qual tantos tratadistas falavam, mas em que nenhuma

witches’ incantation, a not-so-subtle reminder, perhaps, of the latent connections among tragic narrative
structure, witchcraft, and the will-to-power to which Macbeth will soon succumb.”
164

vítima de bruxaria no mundo natural parecia disposta a se enquadrar: o da pessoa sobre


quem Deus permite os feitiços agirem como forma de punição. O próprio texto da peça
reforça essa interpretação através de sutilezas no plano de expressão. Por exemplo, “o
discurso das irmãs […] é conspicuamente aliterativo, outra característica linguística que
chama atenção para si mesma e liga seu estilo verbal ao de Macbeth”234 (CLARK;
MASON, 2019, p. 48). Ora, se o protagonista se alinha às bruxas sob um aspecto
linguístico, isso deve insinuar que orbite o eixo delas, o do baixo e vil.
Durante o curto diálogo entre as Weird Sisters na primeira cena, elas se remetem
a seus familiares em forma de sapo e gato (1.1.8) — o que também contraria a leitura de
Laura Shamas acima mencionada sobre elas não serem exatamente bruxas — e afirmam
sua ligação com o clima, tanto na tempestade indicada na rubrica que descreve o cenário
inicial quanto nas opções que a 1ª bruxa dá para o futuro reencontro das três: “in thunder,
lightning, or in rain?” (1.1.2) ou no verso que antecede sua saída de cena, dito em
uníssono: “hover through the fog and filthy air” (1.1.10), tendo este último sido tomado
algumas vezes como referência à sua habilidade de voar, atribuída às bruxas, porém
negada por James VI & I em Daemonologie. Essa interpretação deve-se ao emprego do
termo “hover” [pairar], cuja denotação foi bastante discutida, podendo ser tanto um verbo
no imperativo (o mais provável) quanto no indicativo, ou até mesmo um substantivo (o
menos provável, cf. CLARK; MASON, 2019, p. 129).
A tempestade presente em cena e na fala evoca o clima escocês, o feitiço
supostamente realizado contra James, sobre o qual se falou no panfleto Newes from
Scotland (1591), e a ligação das bruxas com os elementos naturais mais hostis à
humanidade:
as bruxas e maus espíritos em Macbeth são predominantemente
elementais — comandam e às vezes até encarnam o clima. Além disso,
como sustentam muitos escritores do início da Idade Moderna, esses
poderes elementais marcam-nas como nativas das regiões mais ao norte
do mundo, incluindo tanto a Escócia quanto a Dinamarca. Em vez de
reforçar a virtude moral de seu povo, o ambiente natal dos Macbeth
poderia predispô-los a uma corrupção mais perigosa235 (FLOYD-
WILSON, 2006, p. 136).

234
No original: “The Sisters’ speech […] is conspicuously alliterative, another linguistic feature which
draws attention to itself and links their verbal style with Macbeth’s.”
235
No original: “the witches and evil spirits in Macbeth are predominantly elemental-they command and
sometimes even embody the weather. Moreover, as many early modern writers maintain, these elemental
powers marked them as indigenous to the world's northernmost regions, including both Scotland and
Denmark […]. Rather than bolstering the moral virtue of its people, the Macbeths’ native environment may
predispose them to a [more dangerous] corruption.”
165

Essa percepção deve partir da ideia prática de que o constante mau tempo dificulta
a subsistência, e ganha proporções maiores com o fato de que tempestades violentas e/ ou
duradouras tinham potencial de arruinar plantações inteiras. Há referências a dilúvios
causados por bruxaria em alguns tratados e panfletos, embora outros neguem tal poder
(como o tratado do cético Scot e o panfleto do crente Goodcole).
De todo modo, na peça, o estreitamento do laço entre o clima e a bruxaria atrela
os elementos mágicos aos naturais de ordem mais mundana; o sobrenatural manifesta-se
explicitamente, e não só nas cenas mais óbvias, como, por exemplo,

o pano de fundo sobre o qual o curso das ações [de Macbeth] se


desenrola coloca-se enfaticamente como um onde nem todos os
acontecimentos têm explicação e onde a ordem social normalmente não
prevalece. Na noite da morte de Duncan, […] a noite sobrepõe-se ao
dia, os animais comportam-se de maneira não natural, […] um poder
aterrorizante anima a criação […]. Banquo, como a Lady, tem
consciência de viver em um mundo onde os espíritos malignos
“aguardam as más ações da natureza” e estão sempre prontos a
envolver-se em atividades humanas. Em tal mundo, quão livre é
Macbeth para determinar suas próprias escolhas? […] Ele parece mais
suscetível às Irmãs do que Banquo; é por que a predição destas lhe
despertou “profundos desejos sombrios” que ele já nutria? A peça
levanta tais questões, mas as deixa em aberto236 (CLARK; MASON,
2019, pp. 7-9).

Animais e elementos atuando de forma divergente do que se supõe sua natureza,


ou a ideia de que a natureza tivesse seus episódios de crueldade, isto é, contrários à
humanidade, aparecem na peça como sinais da corrupção humana. A escrita ficcional
tende, ainda hoje, a estabelecer ligações entre o clima e as emoções e/ ou ações das
personagens, especialmente protagonistas, embora também se projete em atores
desempenhando papéis antagônicos.
A noite que se sobrepõe ao dia, antecedendo o assassinato de Duncan, constitui
um sinal de inversão, desordem, além de evocar a ideia de maldição, que anda de mãos
dadas com a de profecia. Naquele momento, o tempo sinaliza o cruzamento de uma

236
No original: “[…] the background against which [Macbeth’s] course of action is played out is
emphatically not one where all events are explicable and normal social order prevails. On the night of
Duncan's death, […] night takes over from day, animals behave unnaturally, […] creation is animated by
terrifying power […]. Banquo, like the Lady, is conscious of living in a world where evil spirits ‘wait on
nature's mischief' and are all too ready to engage with human activity. In such a world, how free is Macbeth
to determine his own choices? […] He is, it appears, more susceptible to the Sisters than Banquo; is this
because their predictions awaken ‘dark and deep desires' he has already felt? The play raises such questions
but leaves them open.”
166

fronteira sem volta, a escolha que tornará a primeira profecia verdade e possibilitará a
realização da segunda como se esta última fosse uma maldição (a de que só um homem
não nascido de uma mulher seria capaz de matar Macbeth).
De certa maneira, a forma como os eixos do bem e do mal se estabelecem na peça
diverge um pouco da construção teológica — e até da crença popular dominante — dessa
relação. No cotidiano da época,

uma maldição poderia ser quebrada ou desfeita [uncursing], mas na


literatura as maldições tendem a realizar-se de modo imutável e
inquebrável, portanto incorporando a noção de justiça poética,
frequentemente num caso em que a vítima de uma injustiça obtém
vingança contra um adversário poderoso através do poder das
palavras237 (GIBSON; ESRA, 2014, p. 7).

As mesmas palavras que funcionam como fonte de magia e meio para executá-la
em toda a tradição associada à temática da bruxaria são instrumento do mal mundano: as
Weird Sisters não estão praticando magia stricto sensu ao profetizarem a Macbeth sua
ascensão e, com isso, alimentarem nele ideias usurpadoras. No entanto, se adotarmos a
definição de magia num sentido mais amplo, no qual palavras atuam como o veículo
canalizador da vontade a fim de produzir um efeito desejado, pode-se entender Macbeth
como enfeitiçado — pelas bruxas ou pela sedução do poder.
Um dos sinais de que a magia se faz presente mesmo quando parece haver apenas
um diálogo é o texto em si. Segundo a análise de Clark e Mason,

A linguagem característica das Irmãs apela fortemente à mente ouvinte,


usando muitos mecanismos: a rima, que produz efeitos de
encantamento; a musicalidade infantil e cômica; a aliteração; a
repetição; a antítese e a inversão; o paradoxo. Elas podem ser “falantes
imperfeitas”, mas não lhes falta comando da língua. Elas começam a
peça — a única de Shakespeare a abrir com um diálogo rimado — com
uma cena de dez versos estabelecendo um padrão fortemente rítmico e
envolvendo quatro sons rimados encerrando falas […], além de outros
internos […]. Sua métrica típica é o tetrâmetro trocaico pesadamente
acentuado. A métrica normativa do verso na peça é o pentâmetro
iâmbico branco, de modo que essa forma desviante chama atenção para
si mesma; é um recurso deliberado, criando um efeito de alteridade, cuja

237
No original: “A curse could be lifted by uncursing, but in literature curses tend to work themselves out
unchallengeably and unbreakably — they thus embody the notion of poetic justice, often in a case where a
victim of Injustice gets their revenge on a powerful adversary through the power of words.”
167

estranha musicalidade lembra formas primitivas como a cantiga de roda


e o doggerel verse238 (CLARK; MASON, 2019, pp. 46-7).

Tal diferenciação discursiva, além de demarcar o lugar de alteridade das bruxas,


ressalta o peso de seu discurso enunciado em voz alta, evidenciando a capacidade mágica
de sua palavra engendrar (re)ação, como de fato vem a acontecer. Segundo Schuler,

Catherine Belsey mostrou como no teatro das eras Tudor e Stuart,


mulheres transgressoras (ou seja, ‘não femininas’) são demonizadas; e
como, por outro lado, as mulheres da época de fato condenadas por
bruxaria foram caracterizadas como não femininas em termos de
aparência e conduta — especialmente em sua loquacidade/ tagarelice239
(2004, p. 387).

Aqui, a expressão da voz feminina importa num contexto social em que elas não
têm agência na esfera pública, a não ser enquanto rés e/ ou testemunhas de processos por
bruxaria. É demonizada tanto pelo modo como fala quanto pelo simples ato de falar.
Por razões diversas, fora as linguísticas, as bruxas colocam-se enquanto figuração
do feminino transgressor, o que perpassa também sua forma física. Além, é claro, do fato
de serem velhas, elas têm “talvez a representação mais universalmente perturbadora da
barba feminina no palco no início da Idade Moderna”240 (JOHNSTON, 2007, p. 21), como
atesta Banquo no início da peça:

[…] — What are these241


So wither’d, and so wild in their attire,
That look not like th’inhabitants o’th’earth,
And yet are on’t? — Live you? Or are you aught
That man may question? You seem to understand me,
By each at once her choppy finger laying
Upon her skinny lips: — you should be women,

238
No original: “The Sisters’ characteristic idiom makes a strong appeal to the listening mind. It draws on
many devices: rhyme, which produces effects of incantation, doggerel and childish musicality; alliteration;
repetition; antithesis and inversion; paradox. They may be ‘imperfect speakers’ but they do not lack
command of their language. They begin the play – the only one of Shakespeare’s to open with a rhyming
dialogue – with a ten-line scene establishing a strongly rhythmic pattern and involving four rhyme sounds
ending the lines […], plus others within […]. Their typical metrical form is the heavily stressed trochaic
tetrameter. The normative metrical form of the play’s verse is unrhymed iambic pentameter, so this deviant
form draws attention to itself; it is a deliberate device, creating an effect of otherness, its strange musicality
recalling primitive forms such as nursery rhymes and doggerel verse.”
239
No original: “Catherine Belsey has shown how in Tudor and Stuart drama transgressive (i.e.,
‘unwomanly’) women are demonized; and how, conversely, contemporary women actually convicted of
witchcraft were characterized as unwomanly in appearance and demeanor — especially in their volubility.”
240
No original: “perhaps the most pervasively unsettling representation of female beardedness on the early
modern English stage.”
241
Essa edição está com a grafia modernizada.
168

And yet your beards forbid me to interpret


That you are so (SHAKESPEARE, 1996, p. 859)242.

No trecho, a aparência das bruxas as faz parecerem vindas de outro mundo, talvez
do submundo: são decrépitas [withered], vestem-se de maneira não normativa [wild in
their attire]243, têm dedos tortos [choppy finger] e lábios descarnados [skinny lips].
Banquo sabe instintivamente que são do sexo feminino, mas faz a ressalva de não poder
afirmá-lo ao certo, por terem barbas. Ou seja, trata-se de mulheres distantes de qualquer
padrão de beleza feminina (da época ou atual).
No entanto, a barba significa muito além de mero desvio do potencial de
atratividade; é uma forma de marcar sua alteridade, sua natureza não-conforme, e até de
monstrificá-las:
A barba facial feminina confrontava a cultura inglesa do início da Idade
Moderna com uma profunda contradição que ameaçava
simbolicamente a economia patriarcal com uma castração econômica e
sexual. Como a barba facial masculina operava tanto no registro
econômico quanto no sexual para sinalizar os privilégios de viabilidade
autônoma, a barba facial feminina desafiava esse sistema espetacular de
significação pelo qual o patriarcado naturalizava sua própria
constituição e, portanto, figurava como um local sobre o qual a
significância econômica/ erótica do corpo feminino requeria reasserção.
[Então vem a ideia de que,] na ausência de vigilância masculina,
aparecerá uma barba no rosto da mulher e sinalizará sua falta de um
adequado direcionamento masculino — sua independência econômica
e erótica, ou, em termos galênicos, seu ardor masculino não natural244
(JOHNSTON, 2007, pp. 2-3).

O possível erotismo das Irmãs depende um pouco do olhar do diretor sobre a peça
ao longo da montagem, mas resquícios dela aparecem tanto no fato de serem três mulheres

242
“[…] Quem são essas,/ Tão secas e tão selvagens no vestir,/ Que não parecem habitar a terra/ Mas ‘stão
aqui. ‘Stão vivas? São capazes/ De responder? Parecem compreender,/ Pelo gesto que fazem com os
dedinhos/ Nos lábios secos. Parecem mulheres,/ Mas as barbas proíbem que eu afirme/ Que o são.”
(SHAKESPEARE, 2010, p. 453).
243
O Oxford English Dictionary traz exatamente essa frase para exemplificar a acepção 14.b. do termo: “Of
strange aspect; fantastic in appearance” (de aspecto estranho, de aparência sobrenatural).
244
No original: “the female facial beard confronted early modern English culture with a profound
contradiction that symbolically threatened the gendered economy of patriarchy with economic and sexual
castration. Since the male facial beard operated in both economic and sexual registers to signal the
privileges of autonomous viability, the female facial beard challenged that spectacular system of
signification by which patriarchy naturalized its own constitution and so figured as a site at which the
female body’s economic/erotic significance required reassert. [Then comes the idea that] in the absence of
male surveillance, a beard will appear on the female face and signal the woman’s lack of adequate male
headship — her economic and erotic independence, or, in Galenic terms, her unnatural masculine heat.”
169

sozinhas, livres de qualquer tutela masculina, e em detalhes linguísticos, como alguns


empregos do verbo “do” e do substantivo “deed”.
Clark e Mason discorrem longamente a respeito, pois tanto Macbeth quanto a
Lady referem-se ao assassinato de Duncan sempre nesses termos, sendo tanto “a deed
without a name” quanto o feitiço realizado pelas Weird Sisters em 4.1. A conotação de
‘do’, para elas, é outra:
“do” começa a assumir um lado sombrio na terceira cena, quando
repetido três vezes pela 1ª Bruxa, ao resumir suas intenções malévolas
quanto à esposa do marinheiro:
Her husband’s to Aleppo gone, Master o’th’Tiger:
But in a sieve I’ll tither sail,
And like a rat without a tail,
I’ll do, I’ll do, I’ll do.
Embora essa passagem seja frequentemente explicada com
insinuações sexuais, que a palavra ‘do’ pode conotar, a linguagem pode
ser mais potencialmente sugestiva se mantida vaga”245 (2019, pp. 43-
4).

A imprecisão discursiva que marca o estilo das Weird Sisters direciona suas
ambiguidades a mais caminhos do que apenas à pretendida ruína de Macbeth; mantendo
aberta a chave para uma leitura de viés sexual, alude muito sutilmente a um dos tipos de
transgressão associados à bruxa, isto é, o da licenciosidade.
A barba literal das Weird Sisters remete à outra imagem do feminino transgressor
na peça: “imaginava-se que a barba feminina pudesse existir em manifestações que não o
pelo facial. Uma mulher abertamente sexual ou economicamente independente poderia
ser barbada alusiva ou metaforicamente”246 (JOHNSTON, 2007, p. 2). Embora Lady
Macbeth não se enquadre exatamente nessa descrição, ela me parece apta a encarnar uma
dessas “metaforicamente barbadas”, no sentido de ser uma manifestação de feminino
desviante; ela seria uma bruxa, num sentido lato247: a fantasia de poder, uma vez almejada

245
No original: “‘do’ begins to take on dark colouring in the play’s third scene, when repeated three times
by the First Witch as she sums up her malevolent intentions towards the sailor’s wife: ‘Her husband’s to
Aleppo gone, Master o’th’Tiger: / But in a sieve I’ll tither sail, / And like a rat without a tail, / I’ll do, I’ll
do, I’ll do.’ While this passage is often glossed with sexual implications, which the word ‘do’ could carry,
the language may be more potently suggestive if kept vague.”
246
No original: the female beard was imagined to exist in manifestations other than literal, facial
beardedness. An overtly sexual or economically independent woman could […] be allusively or
metaphorically rather than literally bearded.”
247
Gary Wills observa que as peças de Shakespeare com personagens femininas importantes amontoam-se
em períodos quando ele tinha à disposição algum jovem ator de desempenho espetacular, e Lady Macbeth
inclui-se entre essas (1995, p. 77). Segundo o pesquisador, “O amontoado de papéis de Rice [o ator] com
um aspecto bruxesco (Lucrécia Bórgia, Cleópatra, Lady Macbeth) parece apoiar aqueles que consideram
Lady Macbeth ‘a quarta bruxa’ da peça. Diretores enfatizaram sua natureza maligna ao associá-la às bruxas
170

por ela, transforma-a em ávida defensora e, mais tarde, executora das ações para alcançar
esse fim. Suas palavras surtem efeito; ao proclamar “unsex me here” em seu célebre
monólogo e, em seguida, executar o ato de violência física que costuma ser a contraparte
masculina da perfídia feminina, ficamos com a impressão de que seu desejo foi atendido
— se pelas entidades incorpóreas às quais pediu ou por sua própria psique248, depende do
enunciatário. Sob esse aspecto, há quem defenda que a Lady é, de fato, uma bruxa:
chamou pelos espíritos e obteve o que buscava (cf. CLARK; MASON, 2019, pp. 10-1).
Também julgo possível interpretá-la como uma releitura de Eva: Macbeth, tentado
por uma ideia diabólica — partida de bruxas, instrumentos do Diabo, para atentar contra
o direito de sucessão, dito divino — ainda é tomado por dúvidas, crises de consciência,
escrúpulos, como Adão. Nada disso perturba a Lady; ela apenas deseja o poder e a
transposição dos obstáculos para assegurá-lo. Atua como uma Eva nos moldes descritos
pela teologia da época.
Nesse sentido, o feminino transgressor é mais completamente abraçado na figura
da Lady, enquanto as bruxas direcionam sem tocar e sem se deixar tocar, à semelhança
de entidades, e não de pessoas passíveis de punição por um crime. As Weird Sisters não
são enfrentadas, perseguidas, julgadas e condenadas. Após o cumprimento da profecia
sobre Macbeth não se tem notícia delas, porque não importam para o conflito central. No
entanto, isso também poderia dar a entender que ficaram à solta, livres para fazer
maldades e induzir outros a tentar derrubar um rei legítimo. Conhecendo os julgamentos
de North Berwick e as confissões das rés de terem sido contratadas por opositores
políticos para matar James, essa ausência de final para as Weird Sisters bem poderia
constituir um aceno descompromissado à ameaça oculta que James descobrira e da qual
suspostamente livrara o mundo.
As Weird Sisters aproximam-se das bruxas descritas por tratados também por
fazerem feitiços usando seres tidos como repulsivos (sapos, lagartos, vermes) e sangue.
Na primeira cena do quarto ato, a 1ª Bruxa diz: “Say, if th’hadst rather hear it from our

visualmente, ou até mesmo fazendo-a interpretar também o papel de Hécate” (idem, p. 79). No original:
“The clustering of Rice’s roles with a witch-like aspect (Lucretia Borgia, Cleopatra, Lady Macbeth) would
seem to support those who consider Lady Macbeth the ‘fourth witch’ of the play. Directors have emphasized
her evil nature by associating her with the witches visually, or even by having her double the role of
Hecate.”
248
Falar em “psique” é dolorosamente anacrônico. No entanto, alguns críticos de Shakespeare estão prontos
a defender que o autor possuía um superior entendimento da natureza humana. Há nítida disposição
argumentativa de deslocá-lo do contexto no qual o material e o metafísico não se distinguiam por linhas tão
demarcadas quanto o querem os séculos XX e XXI.
171

mouths,/ Or from our masters?”249 (SHAKESPEARE, 1996, p. 874). Macbeth manda-as


chamarem seus mestres, e segue-se o surgimento de algumas Apparitions, cujo papel é
fazer profecias e dar conselhos ao protagonista. A referência aos “mestres” é uma alusão
aos demônios com os quais se julgava que as bruxas tivessem pactos, e aos quais deviam
seus poderes sobrenaturais e conhecimentos profanos. Essa cena é uma das remissões
mais explícitas ao tratado Daemonologie, de James VI & I, que em determinada
passagem, ao discutir os males da necromancia, afirma: “Ele se obrigará a entrar num
corpo morto, e ali com frequência dar respostas sobre batalhas, assuntos relacionados ao
estado das nações e outras grandes perguntas do tipo”250 (JAMES, 1597, p. 10).
Na cena 3.5., apelidada pela crítica de Hécate, temos outra entidade originária na
mitologia grega apresentada como líder das bruxas, portanto uma delas251. Hécate surge,
parecendo irritada (3.5.1.) e explica a origem de sua ira num longo monólogo que se
converte aos poucos em ordens para as Weird Sisters. Dizendo-se “mestra dos seus
feitiços” [mistress of your charms], reclama de ter sido excluída da iniciativa de encontrar
Macbeth e falar da profecia:

And I, the mistress of your charms,


The close contriver of all harms,
Was never called to bear my part
Or show the glory of our art?252 (3.5.6-9)

A linguagem do monólogo é mais direta, sem marcas de dubiedade, o que pode


significar que as bruxas têm um código de conduta entre si e, mesmo ao se desentenderem,
consideram-se aliadas, sendo desnecessários jogos linguísticos em suas interlocuções.
Percebe-se no trecho que ela equivale feitiços a propósitos danosos, não
levantando a possibilidade de usar a bruxaria para um bem. E os feitiços e seus respectivos
efeitos ligam-se à “glória de nossa arte”, o que sugere orgulho e superioridade, reforçando
sua autoafirmação como mestra.

249
“Diz se preferes que falemos nós,/ Ou nossos mestres?” (SHAKESPEARE, 2010, p. 528).
250
No original: “[…] He will oblish himself to enter in a dead bodie, and there oft to give such answers, of
the event of battels, of maters concerning the estate of commonwelths, and such like other great questions.”
251
Já se debateu muito acerca da autoria dessa cena, por vezes atribuída a Thomas Middleton, tanto por
causa da diferença métrica, quanto pela inclusão do início da canção que consta inteira em sua peça The
Witch. (cf. CLARK; MASON, 2019, p. 228). Os críticos não chegaram a um consenso. De qualquer forma,
a mera presença de outra deusa grega “bruxificada” na peça contribui para demonstrar o imaginário do
contexto de produção e sua posterior publicação. Sandra Clark e Pamela Mason dizem que Hécate não é
uma bruxa sem maiores argumentos a respeito (2019, p. 237). Ela de fato não é apresentada enquanto tal,
mas se enquadra como uma no contexto da peça.
252
“E eu, mestra de seus feitiços,/ a minuciosa inventora de todos os danos,/ não fui chamada para fazer
minha parte,/ ou mostrar a glória de nossa arte?”
172

No entanto, ela não se sobrepõe ao Diabo, pois mais ao final do monólogo


interrompe sua fala, apontando seu “espiritozinho” [my little spirit], que a espera (3.5.34-
5). A forma como o diz, priorizando-o e informando-as de que “estou sendo chamada” [I
am called] sugere que ela não tem a opção de recusar; talvez se trate de uma convocação.
Sendo assim, mesmo líder de um agrupamento de bruxas, Hécate parece ser tão serva
satânica quanto suas subordinadas253.
Antes de perceber seu little spirit, entretanto, prevê que Macbeth virá procurá-las
para saber mais e, por isso, instrui as Weird Sisters a fazer o feitiço, deixando claro que
busca enganá-lo:
[he] Will come, to know his destiny.
Your vessels and your spells provide,
Your charms, and every thing beside.
I am for th’air: this night I’ll spend
Unto a dismal and fatal end.
Great business must be wrought ere noon.
Upon the corner of the moon
There hangs a vaporous drop profound,
I’ll catch it ere it come to ground;
And that, distilled by magic sleights,
Shall raise such artificial sprites
As by the strength of their illusion,
Shall draw him on to his confusion.
He shall spurn fate, scorn death, and bear
His hopes ‘bove wisdom, grace and fear;
And you all know, security
Is mortals’ chiefest enemy254 (3.5.17-33).

Alguns termos escolhidos inserem-se no campo semântico da enganação: a


referência a magic sleights, a feéricos artificiais [artificial sprites] (sendo aqui tanto algo
fruto de astúcia e artifício quanto produzido à revelia da natureza) e ilusão tem o propósito
declarado de confundir/ derrubar Macbeth, levando-o a desdenhar do destino [spurn fate],

253
Ela parece, de fato, um pouco deslocada na peça, e suas pequenas participações redundam em relação
ao resto. Além do mais, é difícil encaixá-la, em termos de entidade, como comentado na nota anterior. Se
ela não é uma bruxa, não é tratada como deusa, tem um little spirit, e, na cena 4.1(42-3) fala em imitar
fairies e elves ao redor do caldeirão para enfeitiçar todos os ingredientes (encantamento este que já foi
lançado, na verdade) a fim de introduzir uma música (presente na peça de Middleton), o que ela é? Como
muitas obras da atualidade têm feito, é um aglomerado de figuras sobrenaturais, tomando emprestado de
sistemas mitológicos diversos para construir uma figura de autoridade lida como “mais má”.
254
No original: “[…] ele há de vir/ Pra saber seu porvir./ Levem panelas e encantos/ Com mágicas e com
quebrantos./ De noite eu voo para o mal,/ Pois vou fazer feito fatal./ Antes que chegue o meio-dia,/ Num
canto da lua fria,/ Há uma gotinha de vapor;/ Nela, caindo, a mão vou pôr:/ Por mágica manipulada,/ Sendo
por elfos elevada,/ Com a força de sua ilusão/ Vai aumentar-lhe a confusão;/ Desafiando fado e morte,/
Pr’além de medo, graça e sorte;/ E sabem: confiar demais/ É o inimigo dos mortais.” (tradução de Barbara
Heliodora, cf. SHAKESPEARE, 2010, p. 518).
173

menosprezar a morte [scorn death] e dar mais ouvidos a suas esperanças do que à
sabedoria, à bondade e ao temor.
Termina com uma formulação geral sobre a humanidade, aplicada ao caso
particular de Macbeth, dada como uma verdade conhecida e compartilhada: o excesso de
confiança é o maior inimigo dos mortais. Tal generalização contém uma profecia,
especialmente pela escolha do termo mortals no lugar de humans, men etc., prenunciando
o futuro próximo do protagonista. Com isso fica o questionamento: elas são mortais?
Humanas? Por serem bruxas, parece que sim. Pela inspiração mitológica, talvez estejam
separadas da humanidade em algum grau superior àquele ditado por textos não-ficcionais
da época.
Tanto essa cena 3.5 quando a próxima com as Weird Sisters, a 4.1, trazem na
rubrica “Trovão” [thunder], sinalizando a entrada das bruxas. As montagens da peça
costumam situar 4.1 numa caverna escura (CLARK; MASON, 2019, p. 234), o que devia
potencializar o efeito sonoro do trovão, tornando o cenário mais aterrorizante.
Antes da entrada de Macbeth em cena, as Weird Sisters estão empenhadas em
lançar um longo feitiço sobre um caldeirão, cozinhando uma poção com ingredientes
comumente associados à bruxa por serem exóticos, venenosos ou sacrílegos, repetindo
três vezes um célebre refrão em dois versos: “Double, double, toil and trouble;/ Fire burn,
and cauldron bubble”255 (primeira ocorrência em 4.1.10-1). A poção/ feitiço parece
precisar dessas palavras invocatórias, junto como o ato de nomear os ingredientes à
medida que vão sendo adicionados, como se a fala lhes desse poder. Ao mesmo tempo,

muito frequentemente essa fala é lida como um hocus-pocus ou


abracadabra sem significado, reduzindo-a a uma espécie de baboseira.
Pelo contrário, é uma imprecação significativa para duplicar e
reduplicar a labuta e as dificuldades humanas: as obras dos
instrumentos da escuridão são para aumentar a desventura humana,
multiplicar a dor e a angústia, o caos e a tirania. O credo demoníaco
aparece na primeira cena da peça, enquanto esse índice multiplicador
do mal é declarado cedo no quarto ato, mas os resultados trágicos de
uma confusão e uma inversão de valores explicitam-se do começo ao
fim256 (FRYE, 1987, p. 251).

255
“Dobrem males e aflição/ Nas bolhas do caldeirão” (tradução de Barbara Heliodora, cf.
SHAKESPEARE, 2010, p. 525).
256
No original: “Too often that line is read in a meaningless hocus-pocus or abracadabra way, reducing it
to a kind of gibberish. On the contrary, it is a meaningful imprecation to double and redouble human toil
and trouble: the works of the instruments of darkness are to increase human misery, to multiply pain and
distress, chaos and tyranny. The demonic creed appears in the first scene of the play, while that demonic
multiplication table of evil is avowed early in the fourth act, but the tragic results of a confusion and reversal
of values are made apparent from beginning to end.”
174

Além do refrão encantatório, há o aspecto festivo da cena, que remete a um sabá


estereotípico, “com o cozimento de uma poção abominável e a conjuração de maus
espíritos para profetizar o futuro de Macbeth. Danças cerimoniais eram uma característica
geralmente associada ao sabá e isso se reflete na dança e na canção das bruxas”257
(CALHOUN, 1942, p. 185). A matéria textual do feitiço em si reúne vários elementos
que congregavam estereótipos da bruxaria e, ao fim, acabaram por ajudar a fixá-los no
imaginário:
1 WITCH
Round about the cauldron go;
In the poisoned entrails throw.
Toad, that under cold stone
Days and nights has thirty-one,
Sweltered venom sleeping got,
Boil thou first i’th’ charmed pot.

ALL
Double, double, toil and trouble;
Fire burn, and cauldron bubble.

2 WITCH
Fillet of a fenny snake,
In the cauldron boil and bake;
Eye of newt and toe of frog,
Wool of bat and tongue of dog,
Adder’s fork and blind-worm’s sting,
Lizard’s leg and howlet’s wing,
For a charm of powerful trouble,
Like a hell-broth boil and bubble.

ALL
Double, double, toil and trouble;
Fire burn, and cauldron bubble.

3 WITCH
Scale of dragon, tooth of wolf,
Witch’s mummy, maw and gulf
Of the ravined salt-sea shark,
Root of hemlock digged i’th’ dark,
Liver of blaspheming Jew,
Gall of goat and slips of yew
Slivered in the moon’s eclipse,

257
No original: “with the boiling of a foul brew, and the conjuring up of evil spirits to prophesy Macbeth’s
future. Ceremonial dancing was a feature usually associated with the Sabbat, and this is reflected in the
witches’ dance and song.”
175

Nose of Turk and Tartar’s lips,


Finger of birth-strangled babe
Ditch-delivered by a drab,
Make the gruel thick and slab.
Add thereto a tiger’s chawdron,
For th’ingredience of our cauldron.

ALL
Double, double, toil and trouble;
Fire burn, and cauldron bubble.

2 WITCH
Cool it with a baboon’s blood,
Then the charm if firm and good258 (4.1.4-38).

O primeiro elemento a analisar tem proeminência visual na peça representada no


palco, e consta no primeiro verso: o caldeirão, este que é hoje tão próximo da figura da
bruxa que parece quase impossível dissociá-los. No contexto da peça, contudo, trata-se
de um utensílio doméstico dos mais corriqueiros, utilizado tanto para cozinhar quanto
para assar, visto que na época somente padeiros e casas ricas possuíam um forno. Na
verdade, a domesticidade do caldeirão é importante para o impacto da cena, pois promove
a subversão da função de um item de cozinha, ligado ao feminino conforme da esposa e
mãe que prepara a refeição para o marido e os filhos. Sendo agentes da inversão da ordem,
as bruxas usam-no para algo nefasto, tão deslocado do eixo do bem quanto elas próprias.
Todavia, é preciso ter em mente que o caldeirão mágico também dialoga com
fontes mitológicas separadas do cristianismo, especialmente de origens célticas, o que
não pode ser desconsiderado numa narrativa passada na Escócia. Como Miranda
Aldhouse-Green comenta,

uma característica persistente tanto da mitologia irlandesa quanto da


galesa é o tema do caldeirão mágico, um recipiente capaz de levantar
os mortos e de fornecer uma provisão de comida que sempre se

258
“1ª BRUXA O caldeirão vai girando,/ As tripas envenenando;/ Sapo que na pedra fria/ Todo mês, de dia
a dia,/ Tem seu veneno destilado,/ Ferve no pote encantado./ TODAS Dobrem males e aflição/ Nas bolhas
do caldeirão./ 2ª BRUXA Cobra de terra encharcada,/ No caldeirão cozinhada;/ Pó de sapo e de girino,/ Lã
de morcego, cão latido;/ Língua dupla de serpente./ Verme de veneno quente;/ Perna de lagarto coxo,/ Asa
de corujo roxo; Pra criar muita aflição/ No inferno do caldeirão./ TODAS Dobrem males e aflição/ Nas
bolhas do caldeirão./ 3ª BRUXA Mau dragão, dente de lobo,/ Múmia de bruxa com lodo;/ Tubarão louco e
salgado,/ Veneno à noite apanhado;/ Fígado de mau judeu,/ Fel de ovino que escorreu/ Em luar
empratecido;/ Nariz de turco e bandido,/ Dedo de neném matado,/ Por puta no chão jogado,/ Faz um caldo
bem pesado;/ Com sangue de tigre-fera/ Nosso caldeirão tempera/ TODAS Dobrem males e aflição/ Nas
bolhas do caldeirão./ 2ª BRUXA Sangue de macaco esfria/ E bom encanto se cria.” Tradução de Barbara
Heliodora (SHAKESPEARE, 2010, pp. 525-6). Como podemos observar, a tradução poética sacrifica
detalhes do significado importantes para esta análise.
176

reabastece. O deus irlandês Daghdha, “O Bom Deus”, possuía um


imenso caldeirão inexaurível […]. O foco central do banquete do Outro
Mundo irlandês era o caldeirão, cuja comida nunca acabava. […]
Muitos caldeirões foram encontrados na Irlanda, na Escócia e em Gales,
colocados num pântano ou num lago como evento ritual, parecendo
resultar de crenças relacionadas à conexão entre caldeirões e água[,
cuja] afinidade […] pode ter principiado nos poderes vivificantes e
regenerativos tanto de depósitos de água naturais quanto de recipientes
contendo líquidos259 (2018, p. 26).

A capacidade do caldeirão mágico de ressuscitar os mortos pode ter inspirado seu


uso, pelas Weird Sisters, para fabricar as Apparitions, enquanto a ligação com a
sacralidade do banquete é desfeita pelos ingredientes e o propósito do que está sendo
cozido em cena, ao mesmo tempo em que a remissão indireta a um Outro Mundo casa
perfeitamente com a noção de que as bruxas comunicam-se com o Além.
Enquanto objeto encantatório das trevas, pode ter sido apropriado a partir da
leitura do primeiro tratado ilustrado sobre bruxaria, pois, apesar de usados por muito
tempo,
seria necessária a publicação de De Bruxas e Tiradoras de Sorte em
1489, o primeiro tratado ilustrado sobre bruxaria, para demonstrar o uso
de um por bruxas. […] O tratado influenciou posturas em relação à
natureza e às mulheres, ainda mais quando foi reproduzido amplamente
como resultado de uma relativamente moderna tecnologia conhecida
como impressão260 (HIGHFIELD, 2017, p. 38).

A ilustração em questão

mostra duas mulheres idosas colocando uma cobra e um galeto num


grande caldeirão, na tentativa de invocar uma chuva de granizo.
Percepções populares de bruxas como feias, desfiguradas e demoníacas
podem, em última análise, conduzir de volta a essa publicação
altamente influente261 (HARRISON, 2017, p. 11)

259
No original: “a persistent feature of both Irish and Welsh mythology is the theme of the magical
cauldron, a vessel capable of raising the dead and of providing ever-replenishing supplies of food. The Irish
god Dahgdha, (‘the Good God’), possessed a huge inexhaustible cauldron […]. The central focus of the
Irish Otherworld feast was the cauldron, which never ran out of food. […] Many cauldrons have been found
in Ireland, Scotland and Wales, placed in a bog or lake as a ritual event, seemingly as a result of beliefs
about the connection between cauldrons and water[, whose] affinity […] may have had its beginnings in
the life-giving and regenerative powers of both natural watery places and liquid-holding vessels.”
260
No original: “It would take the publication of On Witches and Female Fortune Tellers in 1489 however,
the earliest illustrated treatise on witchcraft, to demonstrate one in use by witches. […] The treatise
influenced attitudes to nature and women, even more so when it was reproduced widely as a result of a
relatively newfangled technology known as printing.”
261
No original: “First printed image of witches with a cauldron, found in a book published in Cologne in
1489. This illustration shows two elderly women placing a snake and a cockerel into a large cauldron, in a
177

Com isso, vemos ilustrado em Macbeth o quanto a origem divinal do objeto-


caldeirão foi despida, relegando-o ao objeto de instrumentos do Diabo262. Os ingredientes
de origem vegetal são ou plantas venenosas ou colhidas numa ocasião especial a fim de
ampliar sua suposta eficácia: a raiz de cicuta, planta notoriamente venenosa, é extraída
no escuro, provavelmente à noite [root of hemlock digged i’th’ dark] (4.1.25), enquanto
as lascas de teixo, outra planta tóxica, foram arrancadas durante o eclipse da lua [slips of
yew/ slivered in the moon’s eclipse] (4.1.27-8, em enjambement), uma época percebida
como de má sorte para atividades legais (CLARK; MASON, 2019, p. 236).
Os elementos mais aterrorizantes dessa poção, no entanto, não são venenos
vegetais, mas as múltiplas referências a partes de corpos animais (entrails, fillet, eye, toe,
wool, tongue, fork, sting, leg, wing, scale, tooth, maw and gulf, gall, chawdron, blood) e
humanos (mummy, liver, nose, lips, finger), blasfemas e, portanto, mágicas, embora por
razões diferentes.
O primeiro grupo procede de animais percebidos como inadequados para consumo
humano, ou a parte utilizada não o é (como no caso da vesícula biliar ou a bile [gall] de
cabra. Os itens vêm de impressionante variedade de animais: sapo, cobra, rã, salamandra,
cachorro, víbora, lagarto, filhote de coruja, dragão, lobo, tubarão, tigre e babuíno, sendo
três anfíbios e três répteis (quatro, se contarmos o dragão), criaturas de sangue frio em
geral associadas à umidade, à noite, ao veneno e à doença. Termos relacionados a
toxicidade aparecem duas vezes: as entranhas envenenadas [poisoned entrails] e venom.
Dos quatro mamíferos da lista, o cachorro é um comum familiar de bruxas, outros dois
são predadores (sendo o lobo um inimigo antigo do ser humano e, por isso, nada benquisto
à época), como, aliás, o é o tubarão, então percebido como uma criatura muito voraz. Já
a coruja era considerada uma ave de mau agouro. Shakespeare não sabia, mas a lista
compreende o que mais tarde os biólogos viriam a classificar como os cinco reinos
animais.

bid to summon up a hailstorm. Popular perceptions of witches as ugly, haggard and demonic can ultimately
be traced to this highly influential publication.
262
A imagem do caldeirão também foi “profanada” pouco antes dessa época por outro fator, estudado a
fundo pela pesquisadora Isabelle Anchieta. Ela analisa representações imagéticas do caldeirão da bruxa na
Europa anteriores e posteriores à chegada dos portugueses ao Brasil, especialmente às expedições que
fizeram contato com indígenas tupinambás praticantes de rituais canibalistas. Ela conclui que,
anteriormente, o caldeirão assemelhava-se mais a uma panela grande, como o utensílio doméstico. Após o
contato, entretanto, parece ter havido o surgimento de caldeirões imensos, onde caberia uma pessoa adulta
(2019, pp. 133-6 e pp. 165-78). Embora as Weird Sisters não pratiquem canibalismo direto, o imaginário
do século XVII já incluía a bruxa devorando bebês (ou ao menos bebendo/ banhando-se em seu sangue), e
alguns dos ingredientes listados são partes humanas.
178

As partes humanas, por outro lado, são de pessoas tidas por pecadoras. Além da
bruxa, há o judeu, o turco e o tártaro, três grupos que negavam a divindade de Cristo,
como observam Clark e Mason, lembrando também que “o uso de corpos exumados para
bruxaria era crime capital no estatuto de 1604”263 (2019, p. 235). Já o bebê mencionado
advém de circunstâncias mais específicas: parido numa vala por uma prostituta,
provavelmente ilegítimo, dadas as circunstâncias, e decerto não batizado, pois não teria
dado tempo, se sufocou ao nascer. Nenhuma dessas cinco almas teria passagem para o
Céu, na concepção de um cristão da Inglaterra de Shakespeare, fosse protestante de
qualquer vertente ou católico e, por isso, seus cadáveres deviam ser percebidos como
capazes de aumentar a potência maléfica do feitiço. Desses “ingredientes”, obras infantis,
juvenis e de horror adulto ainda referenciam bastante partes improváveis dos anfíbios e
répteis (como Harry Potter, o filme infantil Abracadabra, a série As aventuras sombrias
de Sabrina e muitas outras). Abracadabra menciona partes humanas também,
especificamente de crianças. Em Harry Potter, as mais utilizadas em poções tendem a ser
aquelas que não necessitem vir de cadáveres, como cabelo e unhas (aliás, dois
ingredientes bastante populares para feitiços no início da Idade Moderna, porém aqueles
de natureza hostil, geralmente com a intenção de matar a vítima, o que não é o caso em
Harry Potter). O terceiro filme da série adaptada, aliás, usa uma parte do texto das Weird
Sisters como música (composta por John Williams) do coral de Hogwarts, a escola de
magia onde o protagonista estuda, apenas eliminando toda a parte da 3ª Bruxa após o
verso “witch’s mummy, maw and gulf”, provavelmente por soar-nos preconceituosa hoje
em dia.
A canção do coral de Hogwarts se encerra com um verso que não integra o feitiço
no caldeirão: “something wicked this way comes”, algo interessantíssimo em Macbeth,
pois faz parte de uma fala da 2ª Bruxa que antecede a entrada do protagonista em cena:

By the pricking of my thumbs,


Something wicked this way comes.
Open locks, whoever knocks (4.1.44-6).

Trata-se de um presságio, provavelmente relacionado a uma superstição,


conforme observam Clark e Mason (2019, p. 237). O protagonista é a coisa cruel que está

No original: “the use of exhumed bodies for witchcraft was a capital offence in the witchcraft statute of
263

1604.”
179

chegando, um apontamento bastante curioso, considerando quem o faz e todos os seus


feitiços envolvendo ingredientes venenosos e profanos.
A cena prossegue com Macbeth chamando-as de “secret, black and midnight
hags” (4.1.47) a título de cumprimento e atribuindo-lhes grandes e tenebrosos poderes
antes de pedir-lhes para responderem a suas perguntas e, ao ser-lhe indagado se deseja
ouvi-las ou seus mestres diretamente, ele prefere a segunda opção.
As Apparitions provavelmente não são os “mestres” em si, mas uma manifestação
do poder que as governa. Instadas a trazê-las à tona, as Weird Sisters colocam mais itens
no caldeirão (4.1.63-7) e chamam alguém “high or low”, para se mostrar e realizar seu
dever (4.1.67). Não há repetição do refrão clamando por double trouble: elas parecem
convocar a entidade para falar ao protagonista. A rubrica “trovão” sugere a sobreposição
do outro mundo com aquele de Macbeth. Fica em suspenso o propósito do feitiço anterior,
que Hécate havia ordenado como preparo para enganá-lo, porém, dado o desenlace,
entendemos que elas não mentiram; apenas falaram de modo truncado que pudesse ser
mal interpretado.
O número três continua a ser reiterado: três Apparitions surgem para falar com
Macbeth (uma cabeça decepada com um elmo, uma criança ensanguentada, um bebê
coroado com uma árvore na mão), três vezes as duas primeiras repetem o nome do
protagonista. A primeira apenas o avisa para tomar cuidado com Macduff e pede para ser
dispensada. Trata-se de um conselho amigável; Clark e Mason sugerem que essa aparição
represente a cabeça de Macbeth, decepada por Macduff ao final da peça (2019, p. 240).
A segunda Apparition, que talvez represente o próprio Macduff, “tirado prematuro
do útero de sua mãe” (cf. CLARK; MASON, 2019, pp. 240-1), sela o destino de Macbeth
ao lhe dar o excesso de confiança que Hécate planejara: “none of woman born / shall
harm Macbeth” (4.1.79-80). Ora, Macduff nasceu de uma cesariana emergencial que
matou a mãe, não pela via natural, e isso foi tomado como não ter nascido de mulher.
Inconsciente do fato, o protagonista pergunta por que haveria de temê-lo, após ouvir essa
profecia, mas decide matá-lo apenas para se certificar (cf. 4.1.82-5).
A terceira Apparition fala com um tom ainda mais vago, que conduz Macbeth,
tomando-o por literal, a ver sucesso onde está sua derrota, pois ele nunca será vencido até
a Grande Floresta de Birnam e Dusinane Hill insurgirem-se contra ele (4.1. 91-3). Nesse
momento, Malcolm está vindo da direção de Birnam para juntar-se a Macduff e destronar
o protagonista.
180

Feliz com os excelentes agouros que ouviu, Macbeth pergunta se a linhagem de


reis da Escócia virá de Banquo. As Weird Sisters aconselham-no a não insistir em saber
mais. Contudo, como ele não lhes dá ouvido, elas cedem, invocando, primeiro uma a uma
com o imperativo “Show” (4.1.106-8), depois em uníssono: “show his eyes, and grieve
his heart; / come like shadows, so depart”. Segue-se o surgimento dos oito reis com
Banquo, e Macbeth, antes de vê-lo, enxerga nos outros a semelhança com o outrora
amigo.
Ele fica tão preso ao desfile e ponderações sobre as semelhanças e os herdeiros
legítimos que não as vê partir, provavelmente voando (CLARK; MASON, 2019, p. 245),
e depois, quando Lennox entra em cena e afirma que as Weird Sisters não passaram por
ele, amaldiçoa-as com “infected be the air whereupon they ride” (4.1.137), parecendo
reconhecer como elas sumiram.

Figura 14: The Weird Sisters or The Three Witches (1783), de Henry Fuseli

O ambiente soturno, o trovejar que acompanha as cenas das bruxas, o preparo


venenoso com ingredientes profanos, o caldeirão, a dança e a música encantatórias, as
menções ao voo, a aparência decrépita do trio, suas habilidades de profecia e a forma
enganosa como escolhem empregá-las são todos elementos muito longevos na
composição da figura da bruxa mais estereotípica que alcança o imaginário atual.
Shakespeare não foi seu inventor, mas os reuniu, através da narratividade, de maneira a
espalhar-se pelas artes na Europa, inspirando pintores a retratar as Weird Sisters de modos
os mais diversos, até torná-las uma espécie de ícone pop, a ser apropriado e ressignificado.
Em Harry Potter, uma famosa banda de rock leva esse nome, bem como um trio de bruxas
ambíguas em As Aventuras Sombrias de Sabrina.
Outros autores, contemporâneos a Shakespeare, em muito contribuíram para o
estereótipo, embora suas influências diluam-se mais do que as bruxas de Macbeth.
181

PARTE II
Novas representações da bruxa

Se, ao estudar a figura histórica da bruxa, sou obrigada a me ater tanto à de seus
opositores, é porque o discurso dominante sobre a bruxaria se constrói sobre essa lógica.
Como veremos, alguns ficcionistas discutidos nos capítulos a seguir valeram-se do
mesmo recurso. Em quase todos os textos analisados na seção anterior, a bruxa é o
narrado, não a narradora, e sua imagem é a do anti, a do contrário, nos mesmos moldes
que o Diabo o é para Deus. Nesse sentido, a bruxa é o próprio Satã, isto é, o adversário.
Assim sendo, não surpreende o que ela se tornou ao longo do século XX e começo do
XXI, como ícone pop e feminista, contraventora da sociedade patriarcal. Ela já o era desde
o berço, a bruxa satânica inimiga da ordem.
O que mudou foi o paradigma cultural a respeito do quanto a ordem social poderia
estar correta entre o fim do século XVI e o início do XVII — e o fato de que se começou
a refletir sobre quem seriam e como viviam as mulheres reais por baixo das personagens
dessas narrativas, ficcionalizadas ou não. Quando os teólogos das variadas vertentes do
Cristianismo concordaram que os poderes do Diabo eram limitados no plano terreno e
circunscreviam-se à esfera da influência soprada sem voz real ao pé do ouvido, e os
juristas fizeram-lhes eco264, o mundo foi perdendo a magia e a bruxaria tornou-se um
crime imaginário:
No século XVIII, o ceticismo e a luta contra a superstição em nome das
Luzes farão extinguirem-se as fogueiras, sem, entretanto, pôr em
questão a imagem da bruxa diabólica. Certamente, começa-se a
reconhecer que se mulheres juraram ter participado do sabá, foi após
terem sofrido horríveis abusos. Começa-se também a debochar dos
delírios dos demonólogos. A imagem onipresente do diabo esvanece.
Porém, a bruxa feia e cruel, às vezes até mesmo canibal, permanece um
contra-modelo que os autores românticos exploram. Os contos infantis,
principalmente os dos irmãos Grimm, incontestáveis best-sellers do
século XIX, servem-se dela para fins pedagógicos e morais: ela é o mal,
a encarnação do perigo que ameaça os pequenos. Um homem, no
entanto, lançará um novo olhar sobre a Carabosse: Jules Michelet, que
mostra em La sorcière [A Feiticeira] (1862) a grandeza da mulher,
necessariamente poderosa, mas esmagada pelo patriarcado. Esse livro
fará um escândalo, mas as mulheres, bruxas ou não, devem-lhe o
reconhecimento de seu potencial e da importância de seu lugar na

264
No último julgamento escocês, um magistrado, frente a uma acusação de voo noturno contra a ré,
retorquiu que voar não era crime previsto em lei (CLARK, 1997).
182

sociedade. Em suma, trata-se de um dos primeiros livros feministas265


(GOLLIAU, 2019, p. 47).

Embora atribuir esse suposto pioneirismo feminista a um homem oitocentista seja,


na melhor das hipóteses, um exagero, é oportuno apontar no comentário acima tanto a
mudança gradual de paradigmas, apesar de efetuada apenas parcialmente, quanto o papel
de Michelet na construção deste que se tornou um dos estereótipos mais recorrentes da
bruxa, em parte por ter caído no gosto geral: a bruxa curandeira da floresta. A contribuição
de Michelet para esse estereótipo se dá em sua visão da bruxa como “uma mulher livre,
poderosa, vítima do machismo secular”266 (GOLLIAU, 2019, p. 51), enxergando a mulher
como alguém que “encarna a parte natural do ser humano, sendo o homem a parte
intelectual. Para ele, foi a natureza que as fez bruxas”267 (GOLLIAU, 2019, p. 56):

é o gênio próprio à mulher e a seu temperamento. Ela nasceu feérica.


Pelo retorno regular da exaltação, é Sibila. Pelo amor, é maga. Por sua
sutileza, sua malícia (frequentemente extravagante e benévola), é bruxa
e tira a sorte, ao menos adormece, engana os males […]. O homem caça
e combate. A mulher se esforça, imagina; dá à luz sonhos e deuses. Ela
é clarividente em certos dias, tem a asa infinita do desejo e do sonho.
[…]
O clero não tem fogueiras suficientes, o povo, ofensas suficientes, a
criança, pedras suficientes, contra a desafortunada. O poeta (também
criança) atira-lhe ainda uma outra pedra, mais cruel para uma mulher.
Ele supõe, gratuitamente, que ela seja sempre feia e velha. Ante o termo
Bruxa, evocam-se as horríveis velhas de Macbeth. Mas seus cruéis
processos ensinam o contrário. Morreram muitas precisamente porque
eram jovens e belas268 (MICHELET, 2016, p. 29-31).

265
No original: “Au XVIIIe siècle, le scepticisme et la lutte contre la superstition au nom des Lumières
vont faire s’éteindre les bûchers, sans pourtant remettre en question l’image de la sorcière diabolique.
Certes, on commence à reconnaître que si des femmes ont avoué avoir participé au sabbat, c’est après avoir
subi d’horribles sévices. On commence aussi à se moquer des délires des démonologues. L’image
omniprésente du diable s’estompe. Mais la sorcière laide et cruelle, cannibale même parfois, demeure um
contre-modèle qu’exploitent les auteurs romantiques. Les contes pour enfants, au premier chef ceux des
frères Grimm, incontestables best-sellers du XIXe siècle, vont s’en servir à des fins pédagogiques et
morales: elle est le mal, l’incarnation du danger qui menace les petits. Un homme, pourtant, va jeter un
regard nouveau sur Carabosse: Jules Michelet, que montre dans La sorcière (1862) la grandeur de la femme,
nécessairement puissante mais écrasée par le patriarcat. Ce livre fera scandale, mais les femmes, sorcières
ou non, lui doivent la reconnaissance de leur potentiel et de l’importance de leur place dans la societé. L’un
des premiers livres féministes, en somme.”
266
No original: “une femme libre, puissante, victime du machisme séculaire.”
267
No original: “[…] incarne la part naturelle de l’être humain, l’homme étant la part intellectuelle. Pour
lui, c’est la nature qui les a faites sorcières.”
268
No original: “C’est le génie propre à la femme et son tempérament. Elle naît fée. Par le retour régulier
de l’exaltation, elle est Sibylle. Par l’amour, elle est magicienne. Par sa finesse, sa malice (souvent fantasque
et bienfaisante), elle est sorcière et fait le sort, du moins endort, trompe les maux […]. L’homme chasse et
183

Observamos aqui que parte do processo de reabilitação da figura passa por uma
romantização e uma higienização de sua imagem269. Michelet não cita aqui julgamentos
específicos, de modo a tornar difícil confirmar sua asserção de que muitas foram
perseguidas justamente por sua beleza e juventude; a esmagadora maioria dos processos
que estudei, diretamente ou através das pesquisas de terceiros, versa sobre mulheres
idosas ou ao menos de meia-idade. Ainda que fosse verdade, no entanto, vemos no trecho
uma característica que marcará a nova bruxa, quando euforizada: ela se despe da rabugice,
da feiura, da velhice, em suma, dos atributos considerados desagradáveis em geral, e mais
especificamente na mulher.
Interessa salientar a persistência da figura da bruxa diabólica, mesmo após o
advento dessa bruxa boa da floresta, a curandeira incompreendida, pois aquela, de fato,
ainda hoje permeia nosso imaginário. Antes ameaça real, tornou-se vilã de histórias
infantis e fantásticas — com os propósitos morais e pedagógicos supramencionados por
Catherine Golliau —, um movimento que depende de adotar o ponto de vista do modelo
demonológico como verdade. Mesmo obras recentes optam por esse caminho, como o
livro infantil As Bruxas [Witches] (1983), de Roald Dahl, a ser discutido na próxima
seção, ou o filme de terror A Bruxa [The Witch] (2015), dirigido por Robert Eggers.
Ao mesmo tempo, essa bruxa satânica habita quase sempre o universo da ficção.
Prevalece na sociedade ocidental da atualidade uma visão não-metafísica do mundo, e,
com essa mudança de paradigma fortalecida durante o Iluminismo, foi muito natural
passar a encarar as antigas perpetradoras no papel de vítimas de um sistema monstruoso
— como tendemos a fazer ao ler principalmente os panfletos e tratados. No entanto, o
sistema só pode ser monstruoso aos olhos de hoje, quando ele próprio se tornou o outro.
O monstro é, por definição, alteridade, e quando o sistema define a si mesmo ele não o
pode ser. A bruxa só pôde passar de monstro a vítima porque o paradigma mudou, veio

combat. La femme s’ingénie, imagine; elle enfante des songes et des dieux. Elle est voyante à certains jours;
elle a l’aile infinie du désir et du rêve. […] Le clergé n’a pas assez de bûchers, le peuple assez d’injures,
l’enfant assez de pierres, contre l’infortunée. Le poète (aussi enfant) lui lance une autre pierre, plus cruelle
pour une femme. Il suppose, gratuitement, qu’elle était toujours laide et vieille. Au mot Sorcière, on voit
les affreuses vieilles de Macbeth. Mais leurs cruels procès apprennent le contraire. Beaucoup périrent
précisément parce qu’elles étaient jeunes et belles.”
269
Sob um viés atual, é difícil considerar esta uma visão “feminista” da bruxa, como o quis a pesquisadora
Catherine Golliau logo acima. No entanto, há que se considerar que foi uma postura inovadora à época,
admitindo características positivas a mulheres que não se conformassem ao padrão de esposa e mãe (ainda
que, ressalte-se, a associação de beleza e juventude à bondade seja uma idealização milenar). Do mesmo
modo, a visão romantizada de um homem bélico contra a de uma mulher pacífica e ligada à natureza
(quando antes justamente essa ligação tornava-a hostil e imprevisível) é uma novidade. O paradoxo de
afirmar o homem como “intelectual”, mas violento, não parece ter sido notado pelo autor.
184

um novo sistema autodeclarado racional, no qual o anterior precisava ser antagonizado.


Nós ainda construímos nosso pensamento sobre a lógica das inversões incapazes de
coexistir.
Também não surpreende a construção mais recente da figura da bruxa não apenas
como vítima passiva das injustiças de seu tempo, e sim como contraventora ativa,
engajada. Por um lado, há certo revisionismo histórico — o qual não me interessa muito
na presente pesquisa, senão como exercício intelectual, pois não parece possível
depreender ao certo o que pensavam as bruxas, nem enquanto coletividade nem enquanto
indivíduos. Por outro, a ficção buscou e tem buscado fazer o mesmo, mas adotando o
ponto de vista da bruxa na qualidade de narradora e/ou sujeito, protagonista da narrativa.
Profanas ou religiosas, pagãs ou cristãs, exteriores ou interiores à comunidade não-bruxa:
tamanha variedade bem poderia dar conta da parte humana da experiência. Na ficção, o
dito “real” importa menos do que a verossimilhança, mesmo nas obras que procuram
mimetizar o mundo natural.
Tenhamos em mente, a princípio, a existência de grande investidura emocional na
figura da bruxa, seja na época em que se acreditava em sua associação ao Diabo, seja em
suas posteriores releituras ao longo dos séculos. Como aponta a analista do discurso Ruth
Amossy,
[…] as emoções se desenvolvem embasadas em uma atividade da razão
[…]. Ao contrário, e de forma recíproca, os raciocínios válidos são em
alguma medida baseados em sentimentos, que integram premissas
partilhadas a partir das quais esses raciocínios são construídos. Assim,
por exemplo, um silogismo se constrói: a partir de uma premissa maior,
que deve ser considerada verdadeira pelo auditório (ela deve assumir,
em determinada época, um caráter de verdade geral). Todavia, no que
se refere a questões humanas, a verdade dessas premissas depende de
crenças e de opiniões dominantes em uma dada época ou em dado meio
social — crenças e maneiras de ver que são inseparáveis de afetos
frequentemente fortes e de implicações identitárias carregadas de
paixão (AMOSSY, 2017, pp. 147-8).

No caso específico da bruxa, suas mudanças acompanham, como já dito, uma série
de transformações culturais, políticas, sociais e econômicas, e ela veste em cada momento
uma roupagem, uma nova faceta a ser explorada conforme a conveniência. Se a bruxa é
boa ou má, bonita ou feia, jovem ou velha, e como esses atributos se combinam, depende
em grande parte do tipo de mensagem que o enunciador deseja transmitir. O feminino
transgressor, categoria que a bruxa integra e na qual é figura proeminente, tem um tipo
185

de carga fórica muito diferente em textos feministas, contos de fadas moralistas dos
séculos XVIII e XIX, discursos conservadores ou revolucionários.
Recentemente, pouco após eu dar início à presente pesquisa, a bruxa voltou à
moda na cultura pop, o que gerou uma grande quantidade de obras literárias e
audiovisuais. Por motivos óbvios, foi impossível abarcá-las, como me haveria agradado,
de forma que apresento aqui reflexões a respeito de algumas das mais emblemáticas em
relação ao objeto deste trabalho.
Antes de analisar exemplos, gostaria de discutir certas alterações na representação
da bruxa desde que a crença em seus poderes sobrenaturais deixou de ser dominante no
pensamento das culturas ocidentais. Diane Purkiss, na introdução de seu livro The witch
in history [A Bruxa na História], é bastante contundente ao falar da bruxa inocente e
vítima como um “mito religioso” do feminismo radical (PURKISS, 1996, p. 8). Apesar
do tom um tanto combativo, a pesquisadora (também feminista, diga-se de passagem)
traça de maneira resumida um percurso de como a bruxa foi sendo adaptada e
ressignificada. Convém discuti-lo aqui, pois isso fundamenta a versatilidade da figura nas
obras da atualidade.
Quanto à inovação introduzida por Michelet, Purkiss comenta que

A bruxa herborista representa uma fantasia de uma profissão que


combina com a ideologia de feminilidade construída para e na esfera
doméstica, em vez de conflitar com ela. Dito de modo mais simples, ela
expressa uma fantasia na qual habilidades domésticas são valorizadas
na comunidade como se fossem habilidades profissionais270
(PURKISS, 1996, p. 20).

Isso se relaciona ao que tanto Silvia Federici (2017) quanto Guy Bechtel (2002)
comentam acerca do processo de desvalorização do trabalho doméstico não remunerado,
no qual as atividades tidas por femininas, como cuidar da casa e dos filhos, vão sendo
cada vez mais percebidas como algo menor, embora ainda consideradas vitais para o bom
funcionamento da sociedade. Além disso, há o fato de que mesmo dentro da demonologia
“o estereótipo da bruxa se confunde com a velha mulher rural” 271, por causa do número

270
No original: “The herbalist-witch represents a fantasy of a profession which blends into rather than
conflicting with the ideology of femininity constructed for and in the domestic sphere; more simply, it
expresses a fantasy in which domestic skills are valued in the community as if they were professional
skills.”
271
No original: “Le stéréotype de la sorcière se confond même avec la vieille femme rurale.”
186

mais elevado de rés de procedência do campo do que dos conglomerados urbanos


(BECHTEL, 2019, p. 1031).
No entanto, por mais que o senso comum leia na bruxa uma sábia conhecedora de
curas e mezinhas alheias à masculinidade, só 9% dos julgamentos escoceses envolvem
curandeiras. Caça às bruxas é diferente de caça a mulheres curandeiras (cf. McGill em
WITCH HUNT, ep. Fairies, 29’30”). Euforiza-se repetidamente, através de obras dos
mais diversos gêneros, inclusive na não-ficção, a imagem da bruxa na floresta, aquela que
teria uma ligação especial com os mistérios da natureza ainda não desbravados. No
entanto,
tal equalização [mulher e natureza] arrisca reiterar um número de
significados separados por gênero, que funcionam de modo a tornar a
mulher passiva, a recipiente propensa ao cultivo masculino. A equação
de mulher com natureza e homem com cultura é reconstruída272
(PURKISS, 1996, p. 35.

Esse processo acaba por reforçar a ideia de mulher enquanto ser selvagem,
irracional e incontrolável, tão defendida por Kramer e Sprenger e seus sucessores273.
Muitos discursos sobre o sagrado feminino, não obstante a intenção de valorizar a mulher
e o tipo de conhecimento passado de avó para mãe para filha, relegam-na ao papel de
misteriosa incompreendida e incompreensível, atraente por um lado, indigna de um
convívio mais duradouro, de ser considerada uma igual, por outro.
Também esta é a origem da bruxa enquanto femme fatale, que se agiganta através
de um poder sexual, somente existente graças à validação masculina:

os poetas do Romantismo haviam pegado para si a figura da bruxa e


a transformado numa musa, o objeto de uma missão poética repleta de
perigo e desejo. A sexualidade que veio a ser associada às belas
feiticeiras ainda era um objeto de medo, mas também passou a ser
atraente porque, através do acesso ao corpo de uma mulher, o poeta
ganhava controle sobre a natureza […].

272
No original: “Such equation [women and nature] risks reiterating a number of gendered meanings which
function to render women passive, the prone recipient of male cultivation. The equation of women with
nature and man with culture is reconstructed.”
273
Na cultura pop, figuras femininas superpoderosas como Jean Grey/ Dark Phoenix, em X-Men (tanto nos
quadrinhos quanto no cinema) recebem tramas inteiras sobre não terem controle sobre seu próprio poder.
Em X-Men, o professor Xavier, um homem, telepata como Jean, cria a Dark Phoenix ao prever que ela
perderia o controle e, com sua mente, aprisiona a maior parte do poder dentro da cabeça da jovem, muito
mais poderosa do que ele próprio. Nesse caso, há um desequilíbrio de autoridade em jogo, pendendo a
balança para ele, tanto pela diferença de idade quanto pela de gênero, e um reforço da ideia de que o homem
conhece mais e a mulher conhece menos. Jean não sabe nem a verdade sobre si mesma até ter desenvolvido
um transtorno de dupla personalidade, que coloca seu lado poderoso como um duplo monstrificado, não
muito diferente do Mr. Hyde de Stevenson.
187

As representações [da feiticeira pré-rafaelita] baseavam-se em


textos que também glamourizavam a imagem da bela feiticeira, a
feiticeira cuja impetuosidade e não convencionalidade poderiam ser
cognatas do mal, mas também significantes de liberdade. Tais imagens
supunham-se ao menos parcialmente admonitórias, mostrando o perigo
do desejo feminino, ao mesmo tempo emitindo um alerta sobre a beleza
feminina como uma espécie de magia inevitável e emasculante274
(PURKISS, 1996, pp. 35 e 39).

Essas reflexões levam-nos a uma construção de bruxa muito comum na


contemporaneidade, que se desdobra em tipos de enredo diferentes e, por isso, acaba
dando origem a bruxas diversificadas.

Figura 15: pinturas pré-rafaelitas com a imagem da bruxa femme fatale. Da esquerda para direita: Circe
oferecendo a taça ao Odisseu (1891) e O círculo mágico (1886), ambas de John William Waterhouse, e
Medeia (1868), de Frederick Sandys.

A primeira é a daquela de fato satânica, no sentido de ter se entregado ao Diabo,


mas se desvela a narrativa de um passado no qual ela foi vítima das injustiças e misoginia
de seu tempo, de sua condição social, explicando assim seu desvio do bom caminho. Às
vezes, volta para se vingar, como em uma das subtramas da terceira temporada da série
de vampiros True Blood (2008-2014, produção da HBO, criada por Alan Ball, baseada

274
No original: “Meanwhile the Romantic poets had taken up the figure of the witch and transformed her
into a muse, the object of a poetic quest fraught with danger and desire. The sexuality which came to be
associated with the beautiful sorceress was still an object of fear, but also came to seem alluring because
through the access to the body of the woman, the poet gained control over nature. […] The images [of pre-
raphaelite sorceresses] were based on texts which also glamorised the image of the beautiful sorceress, the
sorceress whose wildness and unconventionality might be cognates of evil, but also signifiers of freedom.
Such images were supposed to be at least partially admonitory, showing the peril of female desire while
warning about female beauty as a species of inescapable and emasculating magic.”
188

na série literária de Charlaine Harris). Na obra, o espírito vingativo de Antonia Gavilán


de Logroño, uma jovem bruxa espanhola perseguida, torturada e morta pela Inquisição, é
despertado por uma bruxa do interior dos Estados Unidos da atualidade, incorpora nela e
lhe concede conhecimento e poderes necessários para destruir seus inimigos (no caso, os
mocinhos/ anti-heróis vampíricos da série). Aqui, embora ela desempenhe o papel
antagônico, o enunciatário é levado a simpatizar com ela, não desejando sua destruição,
mas que seu espírito possa descansar em paz.
Em Versos Satânicos (1988), Salman Rushdie reconta o episódio bíblico de Agar
e Ismael no deserto. Agar, escrava de Sarah e Abraão, um dos patriarcas bíblicos, vira
mãe do filho mais velho dele, Ismael, por sugestão da esposa, idosa demais para gerar
herdeiros. Anos mais tarde, Sarah concebe Isaque, que, por ser filho de seu casamento e
um verdadeiro milagre divino, torna-se o filho preferido. Ismael, ciumento, é percebido
como um perigo à integridade de Isaque e, por isso, Abraão abandona-o junto com Agar
no deserto. No livro do Gênese, mãe e filho são socorridos duas vezes por um anjo. Na
obra de Rushdie, o Diabo conta essa história, tomando partido de Agar, na seguinte
passagem:
Na antiguidade, o patriarca Abraão veio a este vale com Agar e Ismael,
filho dos dois. Aqui, neste deserto sem água, ele a abandonou. Ela lhe
perguntou, pode ser esta a vontade de Deus? Ele respondeu, é. E partiu,
o bastardo. Desde o princípio os homens usavam Deus para justificar o
injustificável. Ele age de formas misteriosas: dizem os homens. Pouco
surpreende, então, que as mulheres tenham se voltado para mim. —
Mas vou me ater à questão: Agar não era uma bruxa. Era cheia de
confiança. Então Ele certamente não vai me deixar morrer 275 (1998, p.
95).

Como Agar continuou a confiar em Deus, ele lhe enviou o anjo Gabriel para
mostrar onde havia água. Ainda assim, em Rushdie o Diabo mostra-se indignado com o
comportamento de Abraão, e é assim que alguns autores retrataram a relação entre a
mulher e o Diabo, ao admiti-la como verdadeira: mudando a visão sobre o próprio Diabo
ao tomar partido da mulher que sofreu alguma injustiça.
A defesa quanto à acusação de bruxaria, ao cabo do trecho, hoje aparentemente
desnecessária, é importante para a época do narrado, pois a figura só se tornou simpática

275
No original: “In ancient time the patriarch Ibrahim came into this valley with Hagar and Ismail, their
son. Here, in this waterless wilderness, he abandoned her. She asked him, can this be God’s will? He replied,
it is. And left, the bastard. From the beginning men used God to justify the unjustifiable. He moves in
mysterious ways: men say. Small wonder, then, that women have turned to me. — But I’ll keep to the point;
Hagar wasn’t a witch. She was trusting: then surely He will not let me perish.”
189

com uma reformulação daquilo que ela conota. As curandeiras, parteiras e sábias
[wisewomen] de outrora só eram identificadas como “bruxas” se fossem criminalizadas e
rechaçadas pela comunidade. Do contrário, gozavam de prestígio na comunidade.
Resumindo, “bruxa” era uma ofensa, e só deixou de sê-lo quando o feminismo se
apoderou do conceito e o ressignificou.
A partir desses reveses na representação da bruxa, sobrepondo-a mais à vítima e
à mulher rechaçada, surgem outros moldes para a figura, como a possibilidade de assumir
o papel de heroína/ anti-heroína, que parece, mas não se dissocia completamente da moral
cristã imposta às bruxas, pois esta é frequentemente jovem e bonita, mesmo se não
sexualizada. Na verdade, em alguns contextos, ela aparece com ares virginais, quase uma
donzela em perigo, a exemplo da produção hollywoodiana João e Maria: caçadores de
bruxas276 (dir. Tommy Wirkola, 2013).
Essa releitura do conto de fadas clássico dos irmãos Grimm traz os protagonistas
adultos, trabalhando como caçadores de bruxas tanto para se sustentar quanto para livrar
o mundo das criaturas que assassinaram seus pais. Logo no início do filme, a personagem
de João interrompe uma acusação pública a uma moça — aliás, jovem e bonita — e,
enquanto a verifica em busca de sinais, explica: “Quando uma mulher mexe com bruxaria
de verdade, não consegue esconder: uma podridão se instala, e aparece nos dentes, na
pele e nos olhos. Esta não é uma bruxa. Ela está limpa” (11’22”).
A acusada em questão de fato manipula magia, como os irmãos vêm a saber mais
tarde, mas ela é uma light witch, como, aliás, a finada mãe deles, que passou isso a uma
insuspeita Maria. Observemos cenas do filme:

Figura 16: a “bruxa boa” salva por João, em João e Maria: caçadores de bruxas. À esquerda, o
momento em que ela é exposta ao público por dois magistrados/ caçadores.

276
Escolhi comentar brevemente esse filme em vez de outros porque, justamente por causa do enredo
previsível, repleto de clichês, ele se presta a resumir os estereótipos da bruxa que nos chegam à atualidade,
depois de muito lidos e relidos pelas artes as mais diversas.
190

Figura 17: Maria, interpretada por Gemma Aterton

Já a personagem Maria atende ao estereótipo da “mulher forte”, um tipo


atualmente bastante popular de heroína ficcional em formas narrativas destinadas ao
grande público, na esteira da Trinity da trilogia Matrix (dir. Irmãs Wachowski) 1999):
sabe lutar, mesmo contra homens mais fortes, usa armas pesadas (uma espécie de
espingarda e variadas balestras), cujo recuo violento sequer a faz piscar. Sua beleza e
juventude são naturais, isto é, desprovidas de artifícios, imaculadas mesmo após combates
físicos que teriam deixado qualquer mulher (qualquer pessoa) comum suada, inchada,
descabelada e cheia de hematomas.
A primeira bruxa estereotípica da tradição histórica a aparecer no filme é aquela
do conto clássico, a bruxa da casa de doces. Esta é bem velha, com olhos quase brancos,
de tão claros, o que poderia ser uma marca de catarata ou alguma outra doença da visão
que acomete pessoas idosas, pouquíssimo cabelo e pele bastante enrugada. Não tem quase
nenhum dente, o que, aliás, era mais regra do que exceção na época na qual a narrativa
supostamente se desenrola. Fora a careta e as agressões físicas contra os dois irmãos, ela
poderia ser uma senhora qualquer.

Figura 18: a bruxa da casa de doces, caricaturizada para o mal


191

As mocinhas, por sua vez, têm todos os dentes, o que pode ser uma incongruência
histórica, mas com certeza é muito mais agradável ao espectador de hoje.
Aqui ressalto, outra vez, a oposição entre os eixos temáticos da bondade e da
maldade. O tema da bondade é figurativizado pela beleza e pela juventude, enquanto o da
maldade é figurativizado pela feiura e pela velhice, coisas intrinsicamente ligadas, pois
as duas personagens femininas que representam o bem são jovens e, por isso, bonitas.
O antissujeito do percurso narrativo é atorializado por uma espécie de líder do
coven. Ela e todas as demais bruxas más no caminho de João e Maria exibem uma
aparência atraente, mesmo se não na flor da juventude (afiliando-se, talvez, à femme fatale
dos pré-rafaelitas), para se passar por mulheres comuns, uma espécie de máscara mágica,
um glamour que se desfaz quando elas precisam lançar feitiços.

Figura 19: antagonista, líder do coven das bruxas más. No canto superior esquerdo, ela segura
uma faca ritual; sem realizar feitiço algum, externaliza uma face “artificial”. No canto direito, duas cenas
em que está lançando feitiços e, portanto, exibindo seu rosto verdadeiro, pútrido. No canto inferior
esquerdo, sua ligação com cães, remontando aos demônios familiares da bruxa inglesa estereotípica.
192

Ela alimenta sua beleza, como se alegou acerca de várias de suas antepassadas,
através de rituais mágicos envolvendo sangue e consumo de carne humana, o que, de
certa forma, a sobrepõe ao vampiro. Esta, é claro, é uma discussão para outro momento.
Quis encerrar a introdução da Parte II com esses breves apontamentos numa obra
específica porque eles resumem os pontos mais fundamentais dos múltiplos estereótipos
da bruxa, servindo-se, como fizeram os dramaturgos do início da Idade Moderna, do
sensacionalismo envolvendo a figura e de sua capacidade de evocar medo ao mesmo
tempo em que cativa a audiência. Aqui, a escolha do enunciador em mobilizar
sentimentos reverberados por tantas obras ao longo dos séculos procurava a adesão do
público através do senso comum.
193

Capítulo 4
Formas da bruxa estereotípica em obras contemporâneas

4.1. Ser x parecer e crer x saber: a construção da figura da bruxa em Witches, de


Roald Dahl
A obra infantil The Witches [As Bruxas] (1983), do galês Roald Dahl, compõe seu
universo a partir de características de contos de fadas — à semelhança de O Mágico de
Oz, de L. Frank Baum —, num cenário contemporâneo onde o sobrenatural existe e é
mais ou menos aceito (embora camuflado, não causa grande estranhamento ao se
desvelar), o que o inscreve numa categoria específica do insólito ficcional: o maravilhoso,
na qual
os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular
nem nas personagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para
com os acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, mas a
própria natureza desses acontecimentos. […] Relaciona-se geralmente
o gênero maravilhoso ao conto de fadas; de fato, o conto de fadas não é
senão uma das variedades do maravilhoso […] (TODOROV, 2008, pp.
59-60).

Na mesma linha de outras narrativas semelhantes destinadas ao público infantil,


The Witches apresenta o percurso de uma personagem saída do mundo natural, o que tem
o efeito de facilitar a suspensão da descrença no enunciatário. O protagonista órfão e
narrador em primeira pessoa abre o texto discorrendo sobre como reconhecer bruxas, num
primeiro capítulo introdutório que depois saberemos se passar num momento posterior à
trama central.
O registro linguístico, importante para minha análise, coincide em muito com o
das obras históricas estudadas nos capítulos 2 e 3, caracterizado por hiperadjetivação,
empilhamento de palavras do mesmo campo semântico, em geral sinônimos com pouca
ou nenhuma gradação, ênfase na repetição de termos e estruturas frasais — inclusive
utilizando paráfrases para reiterar informações já dadas, às vezes no mesmo parágrafo.
Essa proximidade entre a escrita literária contemporânea para o público infantil e
a do início da Idade Moderna voltada à ampla circulação já havia sido mencionada no
item 2.3, e interessa aqui porque tem o mesmo papel de construir a figura da bruxa como
alteridade; sua “função” de ameaça oculta que circula como parte do cotidiano aparece
na obra. Na verdade,
194

ecoando sentimentos de gerações passadas de que o “inimigo está no


nosso quintal — substitua “inimigo” por nazistas, bárbaros, comunistas,
judeus, católicos, infiéis etc., baseadas em qualquer dado momento
histórico —, Dahl usa uma insinuação já poderosa a respeito da relação
entre o eu e o outro277 (MITCHELL, 2012, p. 26).

Embora o acréscimo de “nazistas” junto aos outros grupos indicados seja bastante
infeliz, de fato o livro recorre a essa ideia advinda de períodos de pânicos coletivos, nos
quais o inimigo é aquele “que não sou eu”, isto é, alguém externo ao grupo com o qual o
sujeito dominante se identifica. A autora apenas deixou de mencionar as bruxas como um
desses exemplos. E esse perigo interno, prestes a causar o mal a toda a comunidade,
insinua-se desde os primeiros parágrafos de The Witches:

Em contos de fadas, as bruxas sempre usam chapéus pretos bobos


e capas pretas e voam em vassouras.
Mas isto não é um conto de fadas. Estou falando de bruxas de
verdade.
[…] BRUXAS DE VERDADE vestem roupas comuns e parecem muito
mulheres comuns. Moram em casas comuns e têm EMPREGOS
COMUNS.
Por isso é tão difícil pegar uma278 (2016, p. 1, destaques do autor).

No trecho, o narrador anuncia que apresentará bruxas diferentes do estereótipo


tradicional associado aos contos de fadas. Com essa introdução, define-as a partir do que
não são, o que cabe perfeitamente nas análises de Stuart Clark sobre o imaginário da
bruxaria no início da Idade Moderna.
A subversão proposta pelo narrador, entretanto, não se concretiza após sua
afirmação de se voltar às “bruxas de verdade” [real witches]: a noção de que é difícil
pegá-las por se misturarem ao cotidiano, contida nas quatro repetições do termo ordinary
(comum) em vinte e quatro palavras, no texto original, remete à ideia de sua figura como
uma ameaça oculta no seio da comunidade, pronta a devorá-la por dentro. Qualquer
mulher poderia ser uma, de acordo com o texto, ou seja, todas as mulheres são suspeitas.

277
No original: “Echoing sentiments from previous generations that the “enemy is in our backyard” —
replace “enemy” with Nazis, barbarians, Communists, Jews, Catholics, infidels, etc., based upon any given
historical moment — Dahl uses an already-powerful insinuation about the relationship between self and
other.”
278
No original: “In fairy-tales, witches always wear silly black hats and black coats, and they ride on
broomsticks. § But this is not a fairy-tale. This is about real witches. […] REAL WITCHES dress in ordinary
clothes and look very much like ordinary women. They live in ordinary houses and they work in ORDINARY
JOBS. § That is why they are so hard to catch”.
195

Tal insinuação não se distancia das proposições de tratadistas seiscentistas e setecentistas


de que as mulheres se atraíam mais à bruxaria do que os homens.
Também chama atenção no trecho a escolha vocabular da última frase: catch
(pegar, apanhar, capturar, surpreender). Embora ainda não se tenha revelado, o narrador
é uma criança, portanto não alguém tradicionalmente atrelado ao papel de captor de uma
bruxa. Portanto, propaga-se ainda mais uma ideia recorrente do estereótipo: a bruxa deve
e pode ser pega, algo classificado como “tão difícil”, mas não impossível.
A narração, sempre tendendo ao exagero, com repetição de vocábulos e estruturas
sintáticas, passa a discorrer sobre o que as bruxas sentem em relação às crianças — ódio
nutrido por “pensamentos sanguinolentos e assassinos” [murderous bloodthirsty
thoughts] (DAHL, 2016, p. 1). Essa pretensão do narrador em primeira pessoa de
conhecer algo do foro íntimo do narrado remete à minha análise do panfleto The
Wonderfull Discoverie of Elizabeth Sawyer a witch, late of Edmonton… (1621), no item
2.3. Como a presente obra é assumidamente ficção, permite certa flexibilidade ao
narrador, que nem mesmo precisa ser confiável.
Num tom generalista, o narrador discorre sobre como as bruxas procedem para
caçar e matar crianças — ao menos uma por semana, senão ficam mal-humoradas (cf.
DAHL, 2016, p. 2). E as bruxas, embora existam em coletividade, são uma unidade
achatada sem especificidades individuais: “esse é o lema de todas as bruxas” [that is the
motto of all witches] (2016, p. 2), “uma bruxa nunca é pega [pela polícia]” [a witch never
gets caught], “uma bruxa é sempre uma mulher” [a witch is always a woman] (p. 3),
“todas elas parecem boas senhoras” [They all look like nice ladies] (p. 4). Seu poder é
sobrenatural e demoníaco, repercutindo a tradição do pacto satânico.
Em meio a todas essas regras, sugere-se repetidamente que bruxas se escondem
bem à vista. Desse modo, mesmo sendo improvável o narratário (you, presumido uma
criança) encontrar uma, já que nenhum país abriga muitas em proporção à população total
(cf. DAHL, 2016, p. 3), ele precisa se preparar para essa possibilidade. O narrador anuncia
sua intenção de ensinar a distingui-las, sempre insistindo no quanto passam acima de
suspeitas, o que as torna mais ameaçadoras:

Não se esqueça de que ela tem magia nos dedos e diabolismo


dançando no sangue. Pode fazer pedras pularem por aí como sapos e
línguas de fogo cruzarem a superfície da água tremeluzindo.
Esses poderes mágicos são muito assustadores.
Uma bruxa é sempre uma mulher.
196

Não quero falar mal das mulheres. A maioria delas é adorável. Mas
o fato é que todas as bruxas são mulheres. Não existe bruxo homem.
[…] No que diz respeito às crianças, uma bruxa de verdade é
facilmente a criatura viva mais perigosa do mundo. O que a torna
duplamente perigosa é o fato de não parecer perigosa279 (DAHL, 1983,
pp., destaques do autor).

Conforme observamos, só ocorre a menção concreta a dois poderes: as pedras


pulando como sapos e as línguas de fogo na água. A própria capacidade de manipular
magia é tida por diabólica e assustadora. Não há dubiedade. Exemplos menos abstratos
quanto à ameaça que as bruxas constituem às crianças delineiam-se através das
referências ao ódio e desejo daquelas de destruir [squelch] estas.
Essa introdução às bruxas, portanto, procura estabelecer seu papel de alteridade
monstruosa e antagônica antes de a história de fato começar, funcionando como uma
espécie de alerta geral a ser esmiuçado com a narrativa de um caso particular, tornando-
a uma espécie de cautionary tale. O procedimento segue estratégia idêntica à dos
panfletos históricos analisados neste trabalho, e não difere tanto dos tratados discutidos e
outros que não foi oportuno abordar. A linguagem da obra infantil decerto é simplificada,
mas também se constrói sobre repetições de termos, paralelismos sintáticos, gradações e
paráfrases acumuladas, nas quais se fazem várias vezes as mesmas afirmações, conforme
mencionado acima280.

279
No original: “Don’t forget that she has magic in her fingers and devilry dancing in her blood. She can
make stones jump about like frogs and she can make tongues of flame go flickering across the surface of
the water. § These magic powers are very frightening. […] A witch is always a woman. § I do not wish to
speak badly about women. Most women are lovely. But the fact remains that all witches are women. There
is no such thing as a male witch. […] As far as children are concerned, a real witch is easily the most
dangerous of all the living creatures on earth. What makes her doubly dangerous is the fact that she doesn’t
look dangerous.”
280
Talvez pelo fato de os panfletos seiscentistas usarem as estratégias retóricas que obras infantis como
Witches passaram a adotar, e pelo fato de a anterior crença em bruxas ser uma espécie de embaraço
histórico, a ideia de que políticos, juristas, médicos e teólogos possam um dia de fato ter aderido a essas
crenças hoje tidas por infantis foi — e ainda é, na pena de alguns — rechaçada, desconsiderada ou atribuída
a outros interesses. A supremacia do pensamento científico-empírico da pós-modernidade tende a nos fazer
crer em sua prevalência em outros contextos, de forma que o senso comum abrace o nosso imaginário
multicultural contemporâneo como aquele a governar outros tempos. Quando a crença no terror das bruxas
esvaziou-se de sentido, foi relegada ao plano da ficção, e frequentemente ao da ficção para crianças. Aqui,
escolho o termo “relegada” deliberadamente, por sabê-lo enviesado. Existe uma dominância da ideia de
realidade sobre a de ficção, no sentido de que uma história real é mais adulta (portanto mais racional,
inteligente, superior e verdadeira) do que uma fictícia. A ficção é tida como o reduto das impossibilidades,
e apenas algumas áreas de estudo atentam ao fato de que mesmo assim ela pode impactar o cotidiano de
modos bem concretos. Por outro lado, em algumas esferas a figura bruxa extrapola a ficção, ainda no século
XXI, e, nesses ambientes, ela é levada quase tão a sério quanto no início da Idade Moderna. Damares Alves,
Ministra de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, também pastora evangélica, possui
vídeos (captados e veiculados por terceiros) alertando os fiéis sobre os perigos de as escolas ensinarem
sobre bruxas e bruxarias, cf. “Bruxaria nas escolas” https://www.youtube.com/watch?v=PBQUBUNovsA,
“Damares e a Bruxaria no Nordeste” https://www.youtube.com/watch?v=F9-KXDZNlvY, “Damares
197

O segundo capítulo de Witches apresenta a personagem da avó, a figura feminina


que se contrapõe às bruxas. Discutiremos mais adiante suas características, pois nela
ocorrem as maiores subversões do texto no que tange à representação do feminino.
No capítulo em questão, intitulado “Minha avó” [My grandmother], o narrador
apresenta a si mesmo e, em sumário, conta como se tornou órfão aos sete anos num
acidente de carro na Noruega, terra da avó e de seus pais, e anuncia o conteúdo da história
a seguir nos moldes preventivos da literatura fantástica oitocentista:

Eu mesmo tive dois diferentes encontros com bruxas antes dos oito anos
de idade. Do primeiro, escapei ileso, mas na segunda ocasião não tive
tanta sorte. Aconteceram-me coisas que provavelmente farão você
gritar quanto ler a respeito. Não há o que fazer. A verdade deve ser
contada. O fato de eu ainda estar aqui e ser capaz de falar com você (por
mais peculiar que seja a minha aparência) deve-se inteiramente à minha
maravilhosa avó281 (DAHL, 2016, p. 6).

O narrador propõe-se aqui a atuar como destinador do narratário, de forma a


preveni-lo desse grande perigo. A “maravilhosa avó”, no percurso narrativo, atua como
destinadora do sujeito (sobreposto ao narrador), dotando-o do conhecimento necessário
para sobreviver. E, como este conta sua própria história, sabemos de antemão que ele de
fato sobreviveu, apesar da aparência “peculiar” comentada, cuja natureza ainda
desconhecemos nesse trecho, mas, ao final, saberemos ter mudado: ele foi transformado
em um rato. Aqui, simula-se a relação entre interlocutor e interlocutário, atribuindo o
papel do primeiro ao narrador e do segundo, ao narratário e, em última instância, aquele
busca se sobrepor também ao papel de enunciador, alocando este no de enunciatário. Ao
referir-se a “você” e à própria aparência, constrói o discurso como se, no ato da
enunciação, estivesse acontecendo uma conversa entre o contador da história e sua
audiência, na qual esta o enxerga, o que, obviamente, não é o caso. Ele inclusive chega a
brincar com isso, referindo-se à professora que supostamente está lendo a história em voz
alta para sua classe e a possibilidade de ela ser uma bruxa disfarçada (DAHL, 2016, p. 5).

afirma que a princesa do Frozen é lésbica e vai beijar a Bela Adormecida”


https://www.youtube.com/watch?v=-wzXSK9F4GM.
281
No original: “I myself had two separate encounters with witches before I was eight years old. From the
first I escaped unharmed, but on the second occasion I was not so lucky. Things happened to me that will
probably make you scream when you read about them. That can’t be helped. The truth must be told. The
fact that I’m still here and able to speak to you (however peculiar I may look) is due entirely to my
wonderful grandmother.”
198

As histórias da avó versam sobre cinco crianças desaparecidas, vítimas nomeadas


para dar credibilidade aos relatos, e servem para introduzir o modus operandi das bruxas
e as lições sobre como reconhecê-las, a informação prometida desde o início e até então
mantida em suspense.
Após fornecer os relatos sobre as vítimas — analisados mais adiante, quando me
voltar aos feitiços e poderes —, a avó-destinadora reitera o quanto, na superfície, bruxas
passam-se por mulheres comuns, algo intensificado em todo o diálogo tanto através das
dúvidas do protagonista quanto das elucidações subsequentes. Para resumir o apresentado
ao longo de todo o capítulo 4 da obra, intitulado “como reconhecer uma bruxa” [how to
recognize a witch]:
Uma bruxa de verdade sempre está usando luvas […] porque […]
no lugar de unhas, tem garras finas e encurvadas, como um gato […].
A segunda coisa a lembrar é que uma bruxa de verdade é sempre careca
[e] usa peruca para esconder isso. Usa perucas de primeira. E é quase
impossível distinguir uma verdadeira peruca de primeira categoria de
cabelo comum […]. Essas perucas causam um problema bem sério para
as bruxas [;] fazem o couro cabeludo coçar terrivelmente […]. Causam
feridas doídas na cabeça […].
As bruxas têm narinas um pouco maiores do que as de pessoas
comuns. A borda de cada narina é rosa e sinuosa, como a borda de um
tipo de concha marinha […]282 (DAHL, 2016, pp. 18-20).

À primeira vista, não se retoma muito do estereótipo mais comum da bruxa; não
há menção ao nariz grande e adunco com uma verruga na ponta — como a antagonista
da Branca de Neve da Disney. Em vez disso, enfatizam-se as narinas incomuns283, o que
introduz a discussão sobre seu olfato extraordinário, e as garras semelhantes às de um
gato no lugar de unhas, reforçando sua relação com a animalidade. As bruxas de Dahl
estão sempre a meio caminho de uma metamorfose que nunca se completa; sua forma
natural é híbrida, aparentemente humana exceto por pequenos detalhes, elementos
bestiais passíveis de ocultação perante pessoas desavisadas e desatentas. Assim, as bruxas

282
No original: “a real witch is certain always to be wearing gloves […] because […] instead of finger-
nails, she has thin curvy claws, like a cat […]. The second thing to remember is that a real witch is always
bald [and] wears a wig to hide her baldness. She wears a first-class wig. And it is almost impossible to tell
a really first-class wig from ordinary hair […]. These wigs do cause a rather serious problem for witches.
[…] They make the scalp itch most terribly […]. I causes nasty sores on the head. § Witches have slightly
larger nose-holes than ordinary people. The rim of each nose-hole is pink and curvy, like the rim of a certain
kind of sea-shell […].”
283
A pesquisadora Jennifer Mitchell faz uma leitura um tanto exagerada sobre a descrição das narinas “em
termos vagamente vaginais” (2012, p. 29), por causa das bordas “rosa e sinuosas, como as […] de um tipo
de concha marinha” (DAHL, 2016, p. 20). Essa leitura freudiana não me ocorreu até Mitchell tê-la
destacado em seu artigo, e tenho dificuldade de atribuir esse valor ao enunciado e seu contexto literário
infantil, desprovido de menções diretas a questões de sexualidade.
199

aqui descritas associam-se às representações pictóricas de demônios e seres feéricos


diabolizados dentro do cristianismo.
Já a careca ressignifica uma imagética referente à bruxa estereotípica; nas
representações de sua figura idosa, é costume trazê-las calvas, marca de velhice e não
conformidade com qualquer padrão de beleza feminina no Ocidente.

Figura 20: prova para a gravura “Linda Maestra!”, placa 68 (1799), de Francisco de Goya (British
Museum), demonstrando que a calvície é ligada à figura da bruxa mesmo se de forma transversal.

As feridas na cabeça desprotegida, decorrentes do uso contínuo de perucas,


mesmo inseridas numa lógica de causa e consequência que pode ser lida na chave do
corriqueiro, têm raiz na marca física da maldade da bruxa histórica — os sinais e
cicatrizes que seriam identificados como a marca do Diabo e, com isso, confirmariam a
existência de um pacto satânico. Aqui, importa relembrar que no início do livro o narrador
alude aos poderes diabólicos dessas bruxas, ainda que nenhuma ênfase a religiosidades
prevaleça no texto.
No contexto da obra, tanto sua aparência verdadeira quanto a fachada que elas se
esforçam em manter são aspectos fundamentais da narrativa, justamente por construir a
figura como alteridade abjeta. Algumas de suas características, por natureza difíceis de
200

apreender, são mencionadas uma única vez e posteriormente ignoradas. Uma destas são
seus olhos:
Os olhos de uma bruxa de verdade são diferentes dos meus e dos seus.
Olhe no meio de cada olho, onde normalmente fica uma bolinha preta.
Se for uma bruxa, a bolinha preta vai ficar mudando de cor, e você vai
ver fogo e vai ver gelo dançando bem no meio da bolinha colorida. Vai
lhe dar calafrios por toda a pele284 (DAHL, 2016, p. 22, destaque do
autor).

Provavelmente pelo fato de o protagonista nunca chegar tão perto de uma bruxa,
e quando o faz não estar em condições de se deter em um detalhe tão pequeno, essa
característica não volta a ser mencionada. Entretanto, é interessante apontar tal alusão
indireta às temperaturas extremas supostamente encerradas nessas pupilas cambiantes; se
os olhos forem interpretados como “a janela da alma”, essa espécie de acesso à paisagem
interior da pessoa, os das bruxas demonstrariam, assim, sua hostilidade à humanidade
(pelo potencial destrutivo de ambos os elementos), como também sua capacidade superior
de adaptação aos ambientes (visto que o domínio sobre tais elementos possibilitou ao ser
humano adaptar-se: o fogo permite cozinhar, aquecer-se e proteger-se, enquanto o gelo,
conservar alimentos), além, é claro, da dualidade incontornável e um tanto paradoxal da
figura da bruxa. Fogo e gelo são, em tese, substâncias incapazes de coexistir senão no
manuseio humano. Tal proximidade com ambos pode sinalizar tanto o poder mágico e
hostil da bruxa quanto seu lado humano285.
A capacidade de engendrar tempestades, quer no mar, quer em terra, incluindo
geadas para destruir plantações, bastante discutida em tratados e panfletos históricos, é só
mais um item de um longo imaginário mobilizado pelo autor na composição dessa figura.
Esta caminha incógnita em meio à sociedade, por algum motivo procurando
encaixar-se. Como sacrifica qualquer conforto na manutenção da farsa, conforme se verá
adiante, leva-nos a questionar sua motivação. Tendo em vista a centralidade de seu ódio
às crianças na trama, pode-se ler seu disfarce tanto como uma forma de passar
despercebida (mulheres são menos associadas à violência no senso comum) quanto como

284
No original: “The eyes of a real witch are different from yours and mine. Look in the middle of each eye
where there is normally a little black dot. If she is a witch, the black dot will keep changing colour, and you
will see fire and you will see ice dancing right in the very centre of the coloured dot. It will send shivers
running all over your skin.”
285
Aqui talvez convenha rememorar que, em seu tratado, o rei James mencionava os conhecimentos
extraordinários das bruxas quanto a curas e mezinhas, apontando que sua extrema sofisticação em relação
aos conhecimentos dos homens só poderia vir de ensinamentos dados pelo próprio Diabo (JAMES VI & I,
1597, p. 44).
201

um subterfúgio para se aproximar de suas vítimas naturais; as mulheres tendem a orbitar


mais as esferas de convívio da criança, seja em casa, no papel da mãe, seja na escola, no
papel da professora. Se essa é a regra hoje, tanto mais no início da década de 1980, quando
o livro foi publicado.
Esse ódio tão demarcado remete ainda ao suposto desejo anti-reprodutivo da bruxa
histórica, frequentemente acusada de crimes contra a fertilidade e a natalidade. Tendo
uma fachada feminina, a bruxa de Dahl é uma anti-mulher ao se provar uma anti-mãe —
notadamente pelo fato de seus poderes contra crianças virem descritos através da fala de
uma dupla-mãe, a avó. Além disso, a adesão ao feminino é a referência mais imediata à
bruxa estereotípica, pois,

para jovens leitores, que podem evocar imagens da Bruxa Má do Oeste


de L. Frank Baum ou qualquer uma das bruxas da Disney, essa
afirmação [de que todas são mulheres] simplesmente ecoa retratos
previamente estabelecidos de bruxaria; até a primeira menção do
narrador, um ato de desconsideração, conversa diretamente com essa
imagética [ao negar imagens estereotípicas da bruxa de chapéu preto].
Embora essa introdução não explicite gênero [em inglês, witch pode ser
comum de dois gêneros], a caracterização tradicional das bruxas reforça
a ideia de que a existência de bruxos é virtualmente incompreensível.
[…] Apesar de o narrador mencionar vilões notavelmente masculinos
— ghouls e barghests — tal alusão só fornece ao leitor um contraponto
significantemente menos mau286 (MITCHELL, 2012, p. 27).

Como comentado acima, Dahl serve-se de um imaginário fixo, tão bem


estabelecido que principia por dissidir dele. É preciso ter em mente essa remissão ao
estereótipo ao se discorrer acerca da misoginia de Dahl em sua representação das bruxas,
tema sobre o qual algumas análises se debruçaram (sendo um artigo de Catherine Itzin
uma das mais radicais, ao comparar a representação de Dahl à dos inquisidores Sprenger
e Kramer em seu Malleus Maleficarum).
Abandonando o sensacionalismo e detendo-nos sobre o que de fato diz o texto,
observa-se que, ao longo do diálogo de instrução entre a avó e o menino, a natureza das

286
No original: “For young readers who can conjure up images of witches like L. Frank Baum’s Wicked
Witch of the West or any number of Disney witches, this statement simply echoes previously established
portraits of witchery; even the narrator’s first mention of witches, an act of dismissal, speaks directly to that
imagery […]. Even though gender is not explicit in this introduction, the traditional characterization of the
witches reinforces the idea that male witches as virtually unfathomable. […] Although the narrator
mentions notoriously male villains — ghouls and barghests — such slight mention only provides readers
with a significantly less-evil counterpoint […].”
202

bruxas é apresentada dentro de uma oposição entre ser e parecer, visto parecerem
mulheres humanas, mas, na verdade, serem demônios:

Você não parece estar entendendo que as bruxas não são mulheres
de fato. Elas parecem mulheres. Falam como mulheres. E são capazes
de agir como mulheres. Mas na verdade são animais totalmente
diferentes. São demônios em forma humana. É por isso que têm garras
e cabeças carecas e narizes estranhos e olhos peculiares, os quais
precisam esconder o melhor possível do resto do mundo287 (DAHL,
2016, p. 23-4).

Essa sobreposição da bruxa com o demônio — na qual em vez de uma servir a


outro eles são a mesma criatura — não é uma invenção recente, e ainda encontra eco em
produções populares para cinema e televisão. Contos de fadas associam ogros e/ ou
bruxas a madrastas/ sogras más, estratégia narrativa que não permaneceu apenas no
passado. Por exemplo, no filme Caça às Bruxas [Season of the Witch] (dir. Dominic Sena,
2011), o protagonista julga conduzir a expedição de transporte de uma jovem ao
julgamento por bruxaria. Ela se mantém ambígua até o final, quando se revela um
demônio. Apesar da reviravolta ruim nesse roteiro de qualidade questionável, é
interessante perceber o quanto seres monstruosos e antagônicos podem por vezes se
confundir, por compartilharem certas características288.
Sob esse aspecto, em Witches há tamanha identificação do demônio com a mulher
que ele não a seduz nem firma um pacto com ela; torna-se uma, inclusive submetendo-se
a todos os rituais sociais de ordem estética e comportamental para ser entendido assim:

“Bruxas nunca têm dedos do pé. […] Todas as senhoras gostam de usar
pequenos sapatos bastante pontudos, mas uma bruxa, cujos pés são
muito largos e quadrados nas extremidades, têm um trabalho horrível
de espremer os pés para caberem naqueles sapatinhos pontudos de bom
gosto”289 (DAHL, 2016, p. 24).

287
No original: “You don’t seem to understand that witches are not actually women at all. They look like
women. They talk like women. And they are able to act like women. But in actual fact, they are totally
different animals. They are demons in human shape. That is why they have claws and bald heads and queer
noses and peculiar eyes, all of which they have to conceal as best as they can from the rest of the world.”
288
Ocasionalmente, a bruxa pode se sobrepor ao lobisomem, por sua ligação com a noite, a lua e sua suposta
capacidade de se transmutar em formas animalescas, dentre as quais a do cachorro. Também não é raro se
associar ao vampiro. Partindo de tradições diferentes e folclores diversos, ambos possuem uma ligação com
o sangue e o canibalismo: enquanto o vampiro se alimenta de sangue humano e dele tira sua condição de
imortal, a bruxa ora usa partes de cadáveres em suas poções (ingeríveis ou não), ora banha-se em sangue
para conservar a juventude, ora devora crianças cozidas em seus grandes caldeirões.
289
No original: “Witches never have toes. […] All ladies like to wear small rather pointed shoes, but a
witch, whose feet are very wide and square at the ends, has the most awful job squeezing her feet into those
neat little pointed shoes.
203

Aqui demarca-se o uso de “pequenos sapatos bastante pontudos” como intrínsecos


a todas “as senhoras” [ladies], que, aliás, gostam de usá-los, apesar de incômodos. As
bruxas “mancam de desconforto” (cf. DAHL, 2016, p. 25), e não é possível determinar
se o enunciador desconhece completamente a sensação causada por esse tipo de calçado
a qualquer pé, ou se, na verdade, tem plena consciência disso e usa a fala da avó
ironicamente para debochar da moda incapacitante. A segunda hipótese parece-me mais
provável, dado o tom da narrativa. Segundo Jennifer Mitchell observa, o autor assinala às
bruxas o papel de
uma caricatura da mulher cotidiana. […] A falsidade da peruca, das
luvas, dos saltos altos, na verdade, oferece um comentário bastante
severo acerca da falsidade da feminilidade em geral. Com salto agulha
e mega hair, cílios postiços e maquiagem, a mulher contemporânea
pode facilmente cair no espectro de suspeita criado pelas descrições que
a avó faz das bruxas290 (MITCHELL, 2012, p. 29).

Com essas características, é possível imaginar que, se fosse escrito atualmente, o


livro poderia conter a descrição de pelos nas axilas e nas pernas como outro indício de
que uma mulher é uma bruxa disfarçada. E, se fosse o caso, eu não saberia dizer se isso
seria mais uma crítica às feministas ou à performance de feminilidade. O que determina
o gênero? A pessoa que usa esses “artifícios” para ser lida como mulher perante o resto
da sociedade é tida por “falsa”. A que não usa é entendida como relapsa. A única de
feminilidade conforme é a “natural”, desde que bela e jovem. Essas observações de
Mitchell levantam hipóteses interessantes, mas, a meu ver, sua interpretação não aponta
na mesma direção do discurso contido no livro. Para a pesquisadora,

a avó delineia as pistas visíveis que alertarão seu neto para a presença
de uma bruxa, destacando uma série de traços físicos que possuem
conotações especialmente femininas. Tais conotações falam
simultaneamente sobre até onde as bruxas vão para se misturar à
sociedade como mulheres, mas também sobre a performance inerente à
tentativa de qualquer não-bruxa de ser visivelmente reconhecida como
mulher. […] Embora o narrador tente distinguir mulher de bruxa, os
leitores podem achar a distinção embaçada, na melhor das hipóteses.
Além disso, a história que se desdobra no romance conta com uma fusão
entre os termos “bruxa” e “mulher”, ajudando a exagerar a vilania das
bruxas; embora tal ambiguidade possa estar ligada ao fato de as bruxas

290
No original: “The witches are a caricature of the everyday woman. […] The falseness of the wig, the
gloves, the high heels, in fact, offers rather severe commentary on the falseness of femininity in general.
With stilettos and hair extensions, fake eyelashes and makeup, the contemporary woman can easily fall into
the spectrum of suspicion roused by Grandmamma’s descriptions of witches.”
204

serem uma espécie alternativa, os lembretes constantes da relação


complicada entre bruxas e mulheres servem para sugerir que a
ambiguidade de gênero ocupa uma posição importante dentro do
romance291 (MITCHELL, 2012, p. 28).

As características às quais Mitchell se refere nem mesmo são femininas de fato.


A avó, aliás, não atende a nenhuma. E, embora seja possível alegar que há misoginia na
obra de Dahl e, mais precisamente, na maneira como ele representa suas bruxas, ela não
está onde a pesquisadora indicou.
Observando atentamente a representação em Witches, vê-se nelas o já comentado
esforço de parecerem mulheres levado às últimas consequências. Além disso, mesmo na
esfera privada, longe de olhos humanos, elas fofocam por telefone, trocam receitas
(DAHL, 2016, p. 32), em suma, subvertem as atividades domésticas, mais uma vez
remetendo-nos às representações de bruxas nos séculos XVI e XVII.
Porém, do ponto de vista da recepção do livro, as mulheres que o compram ou o
leem para as crianças tendem a identificar-se com a avó, que ensina e cuida, não com a
anti-mulher/ anti-mãe figurativizada nas bruxas. Além destas, a única outra personagem
feminina com alguma relevância é a Sra. Jenkins, uma caricatura disforizada. Embora na
superfície pareça uma mulher conforme (casada, mãe), ela não cumpre com o esperado
do papel temático ao deixar o filho à solta, descuidado, e vira alvo de ridículo. Dahl
costuma satirizar os adultos que não se põem ao lado das crianças; de acordo com Jeremy
Treglown, a misoginia em Dahl é um aspecto de sua misantropia generalizada (apud
MITCHELL, 2012, p. 29). Witches corrobora tal leitura: a única personagem masculina
positiva é o narrador-protagonista; o Sr. Jenkins (pai) e Bruno Jenkins (filho) são tão
ridicularizados quanto a Sra. Jenkins.
Na citação acima, Mitchell destacou a não existência de uma distinção clara entre
mulheres e bruxas na obra, mas ignorou completamente que a oposição prevalente é entre
mulheres conformes e não conformes. Esta última classe, a do feminino transgressor —

291
No original: “Grandmamma outlines the visible cues that will alert her grandson to the presence of a
witch, highlighting a series of physical traits that have especially feminine connotations. Those
connotations speak simultaneously to the lengths that the witches will go to blend into society as women,
but also to the performance inherent in the attempt of any non-witch to be visibly recognizable as a woman.
[…] Indeed, although the narrator makes attempts at distinguishing between a witch and a woman, readers
may find that distinction blurry at best. Further, the tale that unfolds within the novel relies on the presumed
conflation of the terms ‘witch’ and ‘woman,’ helping to exaggerate the villainy of the witches; even though
such ambiguity could be tied to the witches as an alternative species, the consistent reminders of the
complicated relationship between witches and women serves to suggest that gender ambiguity occupies an
important position within the novel.”
205

simbolicamente ou de fato —, a da anti-mãe, enquanto a coletividade das bruxas ou na


personagem da Sra. Jenkins, é antagonística.
Tanto a notável feiura da forma verdadeira das bruxas-demônios quanto seus
traços bestiais são sinalizadores exagerados de sua não-conformidade. No caso da Grand
High Witch, há ainda os exacerbados sinais de velhice.
O primeiro encontro do protagonista com uma bruxa serve como uma espécie de
susto menor para deixá-lo em alerta, preparando-o para o encontro posterior com a
convenção das bruxas no hotel e dando-lhe uma experiência prática em reconhecê-las.
Isso é importante porque elas não enfrentam adultos nem ameaçam crianças na presença
de um; quando o menino está dentro de casa com a avó parece não haver perigo, mesmo
uma bruxa circulando pela vizinhança (cf. DAHL, 2016, pp. 39-40).
Conforme a narrativa,

[…] pelo canto do olho, vi uma mulher parada imediatamente abaixo


de mim. Olhava para cima e sorria de modo muito peculiar. Quando a
maioria das pessoas sorri, seus lábios viram-se para os lados. Os lábios
dessa mulher subiam e desciam, mostrando todos os seus dentes da
frente e gengivas. As gengivas eram como carne crua.
É sempre um choque descobrir que você está sendo observado
quando acha estar sozinho.
E aliás o que essa mulher estranha estava fazendo em nosso jardim?
Notei que ela usava um chapeuzinho preto e, nas mãos, luvas pretas,
e as luvas quase alcançavam os cotovelos.
Luvas! Estava usando luvas!
Congelei por inteiro.
— Tenho um presente para você — disse ela, ainda me encarando,
ainda sorrindo, ainda mostrando os dentes e gengivas.
Não respondi.
— Desça dessa árvore, menininho — disse ela — e lhe darei o
presente mais empolgante que você já recebeu.
Sua voz tinha uma aspereza curiosa. Fazia-me pensar em um tipo de
som metálico, como se sua garganta estivesse cheia de tachinhas.
Sem desviar o olhar de meu rosto, ela colocou uma daquelas mãos
enluvadas, muito devagar, dentro da bolsa e tirou uma cobrinha verde.
Ergueu-a para eu ver.
— É dócil — disse ela.
A cobra começou a se enrolar no antebraço dela. Era verde brilhante.
Ah, vó, pensei, venha me ajudar!
Então entrei em pânico. […] disparei acima por aquela árvore
enorme igual a um macaco. Não parei até estar tão alto quanto possível
e ali fiquei, tremendo de medo. Não conseguia mais ver a mulher. Havia
camadas e camadas de folhagem entre nós.
206

Fiquei ali por horas e mantive-me imóvel. Começou a escurecer.


Finalmente, ouvi minha avó chamando meu nome292 (DAHL, 2016, pp.
36-9, destaques do autor).

Uma série de elementos desse trecho reforça as informações que a avó transmitira
ao neto anteriormente, e estes profetizam o confronto posterior. Alguns deles são mais
evidentes: as luvas — destacadas tanto através da repetição quanto do itálico — e a cobra
trazida na bolsa.
A cobra é interessante nesse contexto porque tem o efeito de mostrar ao
enunciatário que a desconfiança do menino não é descabida; o animal tradicionalmente é
atrelado ao baixo e ao vil no Ocidente, tanto mais se conectado à mulher. Ainda que não
se trate de uma espécie peçonhenta (não há como saber), não é de modo algum um
presente adequado para uma criança. Aqui pode-se ler essa passagem numa chave
moralizante e instrutiva à moda de Chapeuzinho Vermelho, apesar de a estranha suscitar
imediata desconfiança. Ela não oferece um doce ou brinquedo convencional, mas uma
ameaça simbólica, senão de fato.
Há ainda outro processo de significação em jogo ao redor da cobra, relacionado a
seu gênero. Num primeiro momento, a mulher declara que é um animal dócil [tame],
empregando o pronome de terceira pessoa neutro, aplicável a animais e objetos, it, porém
logo adiante a mulher usa o pronome masculino him, efetivamente personalizando a
criatura e informando-nos seu sexo. Como não se trata de uma forma discursiva comum,
a não ser entre pessoas que têm animais de estimação e formam laços afetivos com eles,
empregando he/ him ou she/ her. Isto é, a mulher ou mantém a cobra como um animal de
estimação (e aqui é tentador associá-lo a um familiar de bruxa) e não pretende dá-la de

292
No original: “[…] out of the corner of my eye, I caught sight of a woman standing immediately below
me. She was looking up at me and smiling in the most peculiar way. When most people smile, their lips go
out sideways. This woman’s lips went upwards and downward, showing all her front teeth and gums. The
gums were like raw meat. § It is always a shock to discover that you are being watched when you think you
are alone. § And what was this strange woman doing in our garden anyway? § I noticed that she was wearing
gloves on her hands and the gloves came nearly up to her elbows. § Gloves! She was wearing gloves! § I
froze all over. § ‘I have a present for you,’ she said, still staring at me, still smiling, still showing her teeth
and gums. § I didn’t answer. § ‘Come down out of that tree, little boy,’ she said, ‘and I shall give you the
most exciting present you’ve ever had.’ Her voice had a curious rasping quality. It made a sort of metallic
sound, as though her throat was full of drawing-pins. § Without taking her eyes from my face, she very
slowly put one of those gloved hands into her purse and drew out a small green snake. She held it up for
me to see. § ‘It’s tame,’ she said. § The snake began to coil itself around her forearm. It was brilliant green.
§ If you come down here, I shall give him to you,’ she said. § Oh, Grandmamma, I though, come and help
me! § Then I panicked. I […] shot up that enormous tree like a monkey. I didn’t stop until I was as high as
I could possibly go, and there I stayed, quivering with fear. I couldn’t see the woman now. There were
layers and layers of leaves between her and me. § I stayed up there for hours and I kept very still. It began
to grow dark. At last, I heard my grandmother calling my name.”
207

fato ao protagonista, usando-a apenas como isca para atraí-lo, ou a remissão a him é um
lapso da personagem e aponta para uma possível origem humana da cobra, que pode ser
uma criança transformada. Há ainda que se considerar a possibilidade de “him” ser um
demônio, numa referência direta ao Diabo-cobra de Eva — embora esta só possa ser uma
leitura intertextual, improvável dentro do enredo da obra, no qual as bruxas são demônios
em vez de ter pacto com eles.
Note-se, no entanto, que em nenhum momento o narrador refere-se à “mulher
estranha” [strange Woman] como “bruxa”. O leitor-enunciatário só sabe que essa é sua
suspeita, praticamente uma certeza, porque está acompanhando seu raciocínio. Com
efeito, nunca nomeia sua conclusão, conduz-nos a ela: o susto de descobrir-se observado
por alguém no jardim de sua casa (uma invasão do espaço seguro) é seguido de uma
descrição tendenciosa da observadora, demorando até chegar às luvas, a primeira
evidência de sua identidade.
Seu sorriso é “peculiar” — e, eu diria, esse veredito dá-se por fatores culturais,
visto descrever um sorriso bem aberto, talvez incomum na Inglaterra, mas não em outras
partes do mundo. O adjetivo “estranha” [strange] aparece antes de qualquer outra
característica além do sorriso peculiar, visando a persuadir o leitor de sua interpretação
do ocorrido.
À menção das luvas, ele “congela” [froze all over], inferindo-se o momento
quando percebeu o perigo. A passagem enfatiza a atenção fixa da mulher, remetendo-nos
à ideia de predador perante a presa, algo contido na reiterada menção a seus dentes e
gengivas, comparadas a “carne crua” [raw meat]. Não desvia o olhar do menino ao tirar
a cobra da bolsa, agindo, ela mesma, como o predador antes do bote ou a naja tentando
hipnotizar a caça. O menino, aliás, atua dentro deste último papel temático: suas reações
consistem em congelar, tremer de medo [quivering with fear], pensar na avó e fugir,
subindo a árvore em resposta à insistência da mulher para que descesse.
Outro fator caracterizador da estranheza dessa mulher é a voz “metálica” e áspera
[curious rasping quality], que reaparecerá no novo encontro do protagonista com bruxas.
A referência às tachinhas [drawing-pins] na garganta é inusitada; em relatos históricos
(de processos, tratados ou panfletos), fala-se desse tipo de objeto, junto com agulhas e
alfinetes de costura, como sintomas observáveis na vítima de bruxaria, não sinal
denunciante da perpetradora do feitiço. O filme A Bruxa [The Witch] (dir. Robert Eggers,
2015) inclusive faz uso desse motivo num de seus momentos climáticos.
208

Essa primeira bruxa de Dahl abraça a mesma dualidade que se revela mais tarde
na obra — e em todas as obras históricas (ficcionais ou não) acerca de bruxas, isto é, uma
impressionante incapacidade de se equilibrar as asserções de que elas são uma terrível
ameaça e sua demonstrada incompetência de se colocar dessa maneira, pelo menos
enquanto ser sobrenatural dotado de poderes mágicos. Apesar de todos os “sinais” de má
intenção e perigo, a bruxa não faz nada além de tentar e falhar miseravelmente em
convencer o menino a sair de seu esconderijo. Em cima da árvore, mesmo à vista, ele está
fora do alcance dessa bruxa sem dúvida muito maligna e perigosa.
A mera altura da árvore protege o menino, e é incerto se a bruxa não o persegue
porque não consegue (não pode) ou não pretende se dar ao trabalho (não quer). Ela, então,
tinha a intenção de fazer mal a uma criança desatenta em seu caminho, e o mero fato de
reconhecer nela perigo e não se deixar levar salvou o protagonista, transformando-o numa
espécie de anti-Chapeuzinho. Sua esperteza em agir de acordo com os ensinamentos da
avó-destinadora coloca-o no papel temático de um herói convencional, muito embora sua
ação tenha sido a fuga e não o enfrentamento. Este é um momento de preparo para o
confronto por vir.
Com isso, é de se supor que a bruxa desse episódio não foi atrás do menino seja
por não ter poder suficiente para isso, seja por não querer expor sua natureza demoníaca
à luz do dia — e, nesse caso, a bruxa parece ser impotente frente aos adultos. A limitação
física imposta por seu disfarce parece “reduzi-la” à condição escolhida de mulher
humana, anulando-lhe qualquer poder mágico capaz de ou ajudá-la a subir ou fazer o
protagonista descer. Uma adulta não escalaria uma árvore para perseguir um menino, por
mais que a bruxa odeie todas as crianças e sinta-se dominada pelo desejo assassino de
destruí-las. Enquanto figura antagonista, é risível, fato que se depreende dessa ironia da
enunciação, apesar do tom de terror da narração.
Não se sabe por quanto tempo dessas “horas” a mulher permaneceu de tocaia. Ele
só abandona o esconderijo quando a avó vem chamá-lo, e a mulher já partiu a essa altura.
A primeira fala do protagonista em toda essa sequência é dirigida à sua destinadora: “Vi
uma bruxa” [I’ve seen a witch] (DAHL, 2016, p. 39), uma afirmação contundente. Só
ousa descrever a visitante assim após sua partida, na presença da avó; até então só se
referira àquela como “mulher”.
Vem desse fato a declaração supracitada de Jennifer Mitchell, de que Roald Dahl
não distingue mulheres de bruxas em Witches. Minha contra-asserção — de que o autor
distingue mulheres conformes de não-conformes — fundamenta-se principalmente nos
209

capítulos em que o protagonista se depara com a convenção das bruxas no hotel. Isso
porque, quando o narrador sabe ou desconfia estar diante de uma bruxa, ou a chama assim
ou de “mulher” [woman ou female], como ao final, quando no salão de jantar “verteu
adentro uma grande inundação de mulheres” [in poured a great flood off females,
destaque meu] (DAHL, 2016, p. 156) e, sob a mesa, já transformado em rato, ele vê os
“sapatos e canelas dessas mulheres” [shoes and ankles of these women, destaque meu]
(idem).
Em contrapartida, se ele nem sabe nem desconfia que a pessoa em sua presença é
uma bruxa, chama-a o tempo inteiro de “senhora” [lady], em sinal de respeito. Isso fica
nítido em sua descoberta das bruxas, quando havia se escondido no auditório do hotel,
julgando que ali está para acontecer, conforme anuncia a placa na entrada, a reunião anual
da Sociedade Real para a Prevenção de Crueldade contra Crianças [Royal Society for the
Prevention of Cruelty to Children] (DAHL, 2016, p. 49). Treinando seus ratinhos de
estimação, ele observa sem ser observado (cf. p. 54).
As “senhoras” [ladies] da associação “trajavam roupas bonitas e todas tinham
chapéus nas cabeças” [wore pretty clothes and all of them had hats on their heads] (idem).
O recinto aos poucos enche-se com “essas esplêndidas senhoras” [these splendid ladies]
(DAHL, 2016, p. 55). Em conformidade com estereótipos femininos bem fixos no
imaginário, elas estão “falando mais que a boca” [talking their heads off] (idem) e, mesmo
supondo-se sozinhas entre iguais, adotam uma miríade de comportamentos sociais
demarcados por esses estereótipos: conversam como amigas, fazendo alusões a quanto
tempo não se encontram, elogiam as vestes umas das outras, convidam alguma para se
sentar ao seu lado etc. O narrador assiste a todas procurando assentos distantes do palco,
até perceber uma anomalia:

Havia uma senhora com um minúsculo chapéu verde no meio da


última fileira, coçando a nuca. Não conseguia deixar isso para lá. O
modo como seus dedos não paravam de coçar o cabelo em sua nuca me
fascinava. […] De repente, percebi que a senhora a seu lado fazia a
mesma coisa!
E a seguinte!
E a outra!
Todas elas estavam fazendo isso. Todas coçavam sem parar que nem
loucas o cabelo na nuca!293 (DAHL, 2016, pp. 55-6).

293
No original: “There was a lady wearing a tiny green hat in the middle of the back row who kept scratching
the nape of her neck. She couldn’t leave it alone. It fascinated me the way her fingers kept scratching away
at the hair on the back of her neck. […] All of a sudden, I noticed that the lady next to her was doing the
210

Talvez para suscitar ansiedade no leitor, aqui o protagonista demora mais para
perceber a ameaça, chegando a supor que a coceira generalizada se deva a pulgas ou
piolhos.
A narração prossegue:

Comecei a ficar fascinado com essas senhoras coçando o cabelo. […]


Então aconteceu uma coisa surpreendente. Vi uma senhora enfiando os
dedos por baixo do cabelo, e o cabelo, o conjunto inteiro do cabelo,
subiu como uma coisa só, e ela continuou coçando! Estava usando uma
peruca! […] E também estava usando luvas! […] Cada uma delas
estava usando luvas! (DAHL, 2016, p. 57, destaques do autor).

O lento processo de compreensão do narrador é uma estratégia de suspense; com


muito menos elementos ele já havia desconfiado da mulher ao pé da árvore. Como
naquele episódio, neste as luvas também foram um aspecto determinante para a
identificação da ameaça. Sua demora em notar a peça de vestuário a despeito de sua
centralidade no gesto de coçar pode ser atribuída, dentro da narrativa, ao fato de que ele
havia sido predisposto a julgá-las bondosas pela placa do salão, que invertia a atitude
delas para com as crianças.
Até esse ponto, elas são ladies, vestindo-se e agindo dentro da performance de
gênero esperada e, assim, dignas do tratamento discursivo mais respeitoso. Porém, ao se
perceber impedido de sair, o narrador observa: “as portas duplas já estavam fechadas e eu
via uma mulher parada diante delas”294 (idem, destaques meus). Agora que ele sabe a
verdade, tendo-a depreendido, emprega o termo woman no lugar de lady para falar de um
dos membros dessa coletividade.
Uma vez desmontado o disfarce das bruxas da convenção, o narrador fica
perturbado com o contraste “grotesco” entre suas vestes elegantes [fashionable] e bonitas
[rather pretty] e as carecas “assustadoras e sarnentas” [frightful scabby], uma visão
classificada como “monstruosa” [monstrous] e “não natural” [unnatural]. O protagonista
tem dificuldade de conciliar o que, para ele, é a conjunção de dois universos
inconciliáveis, o da lady (parecer) e o da bruxa (ser).
Nesse momento de extrema consciência do perigo, o protagonista continua
espiando o auditório de trás de seu esconderijo:

same thing! § And the next one! § And the next! § The whole lot of them was doing it. They were all
scratching away like mad at the hair on the backs of their necks!”
294
No original: “the double-doors were already closed and I could see a woman standing in front of them”.
211

Todas as mulheres, ou melhor, as bruxas, agora estavam imóveis em


seus assentos, encarando, como se hipnotizadas, alguém que aparecera
repentinamente no palco. Esse alguém era outra mulher.
A primeira coisa que notei nessa mulher foi seu tamanho. Era
minúscula, provavelmente com menos de um e quarenta de altura.
Parecia bem jovem, chutei por volta de vinte cinco ou vinte e seis anos,
e era muito bonita. Trajava um longo vestido preto bastante elegante
que ia até o chão e usava luvas pretas que alcançavam os cotovelos.
Diferente das outras, não estava de chapéu.
Para mim, ela não parecia em nada uma bruxa, mas não seria
possível não ser uma, senão o que raios estaria fazendo lá em cima do
palco? E por que, pelo amor de Deus, todas as bruxas fitavam-na com
tal misto de adoração, assombro e medo?295 (DAHL, 2016, p. 59,
destaque do autor).

O narrador corrige-se ao falar em “mulheres”, imediatamente recorrendo à


nomenclatura mais precisa “bruxas” — já que “mulher” é o parecer dessas criaturas,
enquanto “bruxa” é o ser. Não obstante, ao contrastar expectativa e experiência diante da
recém-chegada ao palco, ele conclui, pela lógica, tratar-se de outra bruxa, apesar de ela
destoar tanto do estereótipo. É descrita em termos positivos, destacando-se sua beleza e
elegância, que, somadas à sua altura diminuta, tornam-na visualmente menos
ameaçadora.
A precisão da altura é um detalhe importante, pois essa personagem será
conhecida pelo cargo, e o narrador não deduz imediatamente o fato porque Grand High
Witch é no mínimo um título irônico para alguém de um metro e quarenta. Novamente, o
leitor identifica a personagem antes do protagonista, pois meses o separam da conversa
com a avó a respeito da líder de todas as bruxas do mundo, enquanto, para o leitor,
passaram-se algumas páginas.
A inquietação das bruxas da audiência frente à da plataforma, descrita como um
“misto de adoração, assombro e medo” [mixture of adoration, awe and fear], é uma
reação bastante comum em humanos diante de monstros na literatura, mas também de

295
No original: “All the women, or rather the witches, were now sitting motionless on their chairs and
staring as though hypnotized at somebody who had suddenly appeared on the platform. That somebody
was another woman. § The first thing I noticed about this woman was her size. She was tiny, probably no
more than four and half feet tall. She looked quite young, I guessed about twenty-five or six, and she was
very pretty. She had on a rather stylish long black dress that reached right to the ground and she wore black
gloves that came up to her elbows. Unlike the others, she wasn’t wearing a hat. § She didn’t look to me like
a witch at all, but she couldn’t possibly not be one, otherwise what on earth was she doing up there on the
platform? And why, for heaven’s sake, were all the other witches gazing at her with such a mixture of
adoration, awe and fear?”
212

bruxas frente ao seu “mestre”, o Diabo, nos enredos que se aproveitam da ideia de pacto
satânico.
Essa antagonista principal, parecendo mais jovem e bonita — portanto inofensiva
— vem a revelar sua verdadeira natureza ao se despir dessa aparência, tirando a máscara
que vinha usando até ali. A remoção da máscara é a ilustração literal e a conclusão do
embate entre ser e parecer; a imagem da Grand High Witch é disforme, monstruosa, na
medida em que apresenta uma exacerbação das marcas físicas da velhice:

Aquele seu rosto foi a coisa mais medonha e assustadora que já vi. Só
olhá-lo já me fez estremecer por inteiro. Era tão amarrotado e
encarquilhado, tão chupado e enrugado, que parecia ter ficado em
conserva no vinagre. Era uma visão temível e sinistra. Havia algo de
terrivelmente errado com ele, algo putrefato e pútrido e apodrecido.
Parecia, bem literalmente, estar se decompondo nas beiradas e, no meio
do rosto, ao redor da boca e bochechas, eu conseguia ver a pele cancrada
e comida por vermes, como se larvas trabalhassem ali296 (DAHL, 2016,
p. 60).

Observamos também, no trecho, um exemplo acentuado da característica


predominante na construção textual das bruxas à qual venho me referindo como
“empilhamento de adjetivos” do mesmo campo semântico. Todos os termos escolhidos
para remeter à pele envelhecida poderiam ser facilmente traduzidos como “enrugado”,
que optei por usar para o último: crumpled, wizened, shrunken, shrivelled. Embora haja
nuances de sentido, não ocorre uma gradação propriamente dita; esses adjetivos
justapõem-se para enfatizar que se trata de uma figura envelhecida além do natural
esperado, em oposição à juventude falsa alcançada pelo uso da máscara.
A essa impressão já muito negativa, une-se o juízo de valor, igualmente reforçado
pelo acúmulo de adjetivos com significado muito próximo: fearsome e ghastly [temível e
sinistra], que retomam a abertura da descrição com frightful e frightening [medonha e
assustadora]. Novamente, utilizam-se quatro termos que poderiam, com pouca perda, ter
a mesma tradução, significando algo capaz de suscitar medo.
A figura de uma mulher idosa, ao ser associada à ideia de maldade, é facilmente
desumanizada e logo monstrificada, sem requerer grande exercício imaginativo ou

296
No original: “That face of hers was the most frightful and frightening thing I have ever seen. Just looking
at it gave me the shakes all over. It was so crumpled and wizened, so shrunken and shrivelled, it looked as
though it had been pickled in vinegar. It was a fearsome and ghastly sight. There was something terribly
wrong with it, something foul and putrid and decayed. It seemed quite literally to be rotting away at the
edges, and in the middle of the face, around the mouth and cheeks, I could see the skin all cankered and
worm-eaten, as though maggots were working away in there.”
213

ginástica retórica. Pensa-se na mulher idosa, quando dissociada do contexto da “dupla


maternidade”, abraçado na avó, e deslocada de um cenário doméstico, como a decadência
da vida humana, o encerramento das possibilidades, uma vez cessadas suas capacidades
reprodutivas. Desse ponto de decadência para o de decomposição há apenas a mudança
de estado da vida para a morte — passagem essa que é desafiada por quase todos os
monstros mais tradicionais do terror, como o vampiro, o fantasma e o zumbi, dentre os
quais a bruxa frequentemente se inclui.
Desafiar o poder do tempo sobre o corpo é temática recorrente por tratar dos
anseios mais antigos da humanidade, a preocupação com a mortalidade, o destino do
corpo morto e do espírito. A necessidade de uma continuidade da vida após a morte
resulta em várias especulações religiosas impossíveis de comprovar senão na esfera da
fé. O cristianismo tem uma ideia muito clara de dois destinos possíveis para a alma, e os
monstros bastante explorados na literatura atuam como maneiras de lidar com a
alternativa indesejável.
A tradição da bruxa, da crença histórica à ficcionalidade atual (no Ocidente), é um
aspecto desse contexto maior da alma sempre em disputa entre os dois polos até a
transição final; não à toa tantas obras literárias, televisivas e cinematográficas apoiam-se
tanto em temas orbitando a juventude e a velhice, algo sempre muito notável na
representação da bruxa.
O trecho de Witches acima, a partir do qual iniciei esta discussão, ilustra muito
bem o desprezo pela figura da velha não maternal, com quem não há identificação
possível, ao explicitar a associação da velhice com a morte, trazendo a imagem da
decomposição, agora com seis termos: foul, putrid, rotting, cankered, worm-eaten, fora a
menção às larvas [maggots].
É impossível não atribuir essa percepção do protagonista a seu olhar enviesado.
Já sabendo-as bruxas (seja pela identificação durante o momento narrado, seja pela
compreensão em retrospecto, já que conta sua história), sua descrição presta-se a
explicitar a relação anômala da bruxa observada com a passagem do tempo e com a vida
e a morte. Afinal, estando nos fundos de um grande auditório lotado, atrás de uma
divisória, de onde testemunha todo o desenrolar da convenção através de uma fresta, seria
no mínimo improvável ele conseguir enxergar tantos detalhes no rosto de alguém na
frente, mesmo em posição de destaque. Qual a fronteira entre uma pele enrugada, talvez
manchada e/ou ferida pela secura da idade, e uma em decomposição, que se possa de fato
apontar a partir de uma distância de vários metros?
214

O termo foul remete-nos ainda ao célebre verso de Macbeth na primeira cena, na


fala de uma das Weird Sisters: “fair is foul and foul is fair”. Muito já se discutiu a
dicotomia na análise da peça, e aqui ela nos interessa justamente porque tal
intertextualidade empresta nova vivacidade ao jogo de aparências figurativizado na
Grand High Witch: ela vai de uma jovem bonita [fair] a uma velha monstruosa [foul] e,
terminada a convenção, recoloca a máscara, escondendo a externalização de sua
corrupção interior [foul] e exibindo sua faceta pública de jovem lady [fair].
Além disso, a retirada da máscara também permite ao menino ver, quando sua
presença é revelada e ele é levado até ela, que a bruxa possui “duas fileiras de dentes
pontudos e azulados” [two rows of pointed teeth, slightly blue] (DAHL, 2016, p. 78], o
que se soma às características anteriores para compor o todo previamente descrito pela
avó. À velhice deformada pela decomposição, junta-se “um olhar de serpente naqueles
olhos dela” [a look of serpent in those eyes of hers] (idem, p. 60) — uma espécie de alerta
quanto ao futuro: trata-se de um predador rastejante, associado ao baixo e ao vil, cuja
presa principal são pequenos mamíferos, dentre os quais roedores, em que o menino virá
a se transformar. A metáfora ofídica é enfatizada pela repetição: “os olhos de cobra
brilhantes, tão fundos naquele horrível rosto carcomido, fulminaram, sem piscar, as
bruxas que a encaravam sentadas”297 (DAHL, 2016, pp. 61-2). Ela constitui uma ameaça
não apenas para suas presas naturais (crianças/ ratos) como para seus pares, que, no
entanto, permanecem abaixo dela. A composição do auditório em palco e plateia ilustra
essa diferença hierárquica, mais explícita conforme a convenção progride.
A feiura da bruxa é bastante reiterada em toda a sequência, bem como seu efeito
de paralisar o narrador. Ele se descreve como mesmerized, transfixed, e numbed, tudo
isso por causa da aparência da antagonista: “eu estava magnetizado pelo puro horror das
feições dessa mulher” [I was magnetized by the sheer horror of this woman’s features]
(DAHL, 2016, p. 60, destaque meu).
Todos esses elementos conduzem o narrador à conclusão incontornável de que
está diante da Grand High Witch em pessoa (p. 60). Afinal de contas, se é mais velha e
mais feia (pode-se dizer até mesmo: mais velha, portanto mais feia), é necessariamente
mais má.
A voz dessa personagem é descrita como “metálica”, à semelhança daquela da
bruxa da árvore, sendo mais alta, áspera e rouca. Segundo o narrador, essa voz “arranhava.

297
No original: “the brilliant snake’s eyes that were set so deep in that dreadful rotting worm-eaten face
glared unblinkingly at the witches who sat facing her.”
215

Ralava. Rosnava. Raspava. Guinchava. E rugia.” [It rasped. It grated. It snarled. It


scraped. It shrieked. And it growled.] (DAHL, 2016, p. 62). Além da óbvia utilização do
recurso muito explorado de insistir em termos de campo semântico próximo, aqui existe
uma associação com elementos do mundo natural que ajudam a bestializar a bruxa e, a
partir daí, demonizá-la. A voz, áspera como uma lixa, rasped e grated. Ambas as palavras,
quando empregadas para descrever o ato da enunciação oral, trazem o efeito de rispidez,
de discurso seco e direto, em geral irritado. A essa característica, somam-se dois termos
que, além de replicar esse efeito, acrescentam mais uma camada de sentido: snarl e growl
descrevem quando ou cachorro ou lobo rosnam de maneira ameaçadora, como se prestes
a atacar. O lobo teve vários dos estereótipos negativos atribuídos à bruxa: sorrateiro,
cruel, sendo um inimigo à espreita, fora sua tendência de atacar em bando.
Os dois últimos verbos utilizados para descrever a voz da bruxa relacionam-se a
ratos: scraped (geralmente o barulho de suas patinhas quando não se pode vê-los) e shriek.
Aqui, no entanto, emprega-se a imagem do rato para um efeito diferente daquele
associado ao narrador-protagonista; em vez de presa pequena cuja única defesa é fugir,
somado à imagem do lobo e da bruxa, sugere-se sua coletividade ameaçadora, a ideia de
praga, morte, infestação e podridão. Ou seja, na bruxa é disforizado e potencializa a
disforização.
A animalidade da bruxa, já sinalizada anteriormente, também encontra reforço
quando as da assembleia recebem permissão para tirar as luvas, pois elas têm “garras
marrons que se curvavam sobre as pontas dos dedos […] com cerca de cinco centímetros,
e afiadas nas extremidades”298 (DAHL, 2016, pp. 62-3). Ora, a presença de garras
compridas e afiadas é uma característica de diversos predadores dos reinos dos mamíferos
e das aves, e aparece em representações pictóricas de demônios e criaturas demoníacas.
Mais um elemento demarca essa bruxa como ameaçadora: ela é estrangeira, um
dos estereótipos possíveis (em oposição àquele de ameaça interna a uma determinada
comunidade). O narrador identifica esse fato através do sotaque dela, demarcado
textualmente ao se trocar o “w” pelo “v” e outras alterações fonéticas do tipo. Segundo o
narrador,
Ela tinha um modo de falar peculiar […] um tipo de sotaque estrangeiro,
algo áspero e gutural, e ela parecia ter dificuldades de pronunciar a letra
w. Além disso, fazia alguma coisa engraçada com a letra r. Rolava-a e

298
No original: “brown claws curving over the tips of the fingers […] about two inches long, those claws,
and sharp at the ends!”.
216

rolava-a na boca como um pedaço de torresmo quente antes de cuspi-


la299 (DAHL, 2016, pp. 63-4).

Pela descrição, infere-se logo um sotaque de algum país germânico ou


escandinavo, o que vem a se comprovar ao final, com a descoberta de que ela é
norueguesa, como o próprio protagonista, sua avó e seus falecidos pais. O fato de o eixo
dos “mocinhos” ter a mesma origem da Grand High Witch (como, aliás, também o autor,
cf. SKINTVEIT, 2014, p. 20, e YU, 2008) mitiga o efeito xenofóbico da escolha, embora
não o anule. Tanto o narrador-protagonista quanto sua avó falam bem inglês, não havendo
marca alguma de sotaque norueguês em suas falas. Ou seja, mesmo se estrangeiros são
anglófilos, integrados à comunidade inglesa onde são obrigados a viver, apesar de sua
preferência pela Noruega. É sintomático que o narrador não identifique imediatamente a
origem do sotaque, e julgue assim tão extraordinária a pronúncia do r e a dificuldade com
o w, quando ele compartilha da língua nativa dela; trata-se de um afastamento entre
protagonista e antagonista, embora tenham algo em comum300.
Até esse ponto, aludiu-se à bruxaria de fato, falando-se mais em sua natureza
demoníaca, centrada no ódio às crianças e na incapacidade (não poder) de destruí-las na
presença de adultos. Há sinais de que as bruxas, na verdade, não querem fazê-lo, pois por
algum motivo sentem-se compelidas a render-se aos caprichos estéticos da sociedade
humana que tanto as ferem, procurando passar-se por mulheres comuns.
As capacidades mágicas aparecem, num primeiro momento, através de um alerta
emitido pela destinadora do sujeito. A presença da avó boa na ausência das bruxas más,
além de ressaltar a oposição entre esses dois eixos, possibilita a discussão sobre a ameaça
antagônica sem expor o protagonista ao perigo. Dos cinco exemplos citados pela avó,
quatro versam sobre algum tipo de metamorfose, e um sobre um desaparecimento. Neste
último, como nunca houve notícias da vítima após seu sumiço (pp. 9-10), a transformação
pode ser inferida. Dois dos casos envolvem a transmutação de uma criança em animal:
um frango (p. 13) e uma toninha (p. 16). Outra criança acabou petrificada (p. 15). E o
caso mais diferente é o de uma menina que sumiu e foi parar num quadro, onde aparecia

299
No original: “she had a peculiar way of speaking […] some sort of a foreign accent there, something
harsh and guttural, and she seemed to have trouble pronouncing the letter w. As well as that, she did
something funny with the letter r. She would roll it round and round her mouth like a piece of hot pork-
crackling before spitting it out.”
300
A condição de estrangeira a faz destoar do entorno. Sua visita à Inglaterra tem o propósito de destruir
todas as crianças do país, para isso prestando-se a instruir as bruxas inglesas, bastante ineptas, em seu plano
para alcançar tal objetivo em poucos meses. Esse cenário coloca-a seguramente no papel temático da
“ameaça estrangeira”, do qual um dos maiores expoentes literários não é uma bruxa, mas sim o vampiro
Drácula.
217

cada dia numa posição e, ao longo dos anos, envelhecia (pp. 12-3). Este último remete a
um imaginário tradicional em obras de terror, no qual os quadros supostamente ganham
vida e observam o mundo exterior, aquele onde os humanos transitam.
A transformação em animal é o poder mais recorrente, e aquele a aparecer em
cena: o menino Bruno Jenkins e o protagonista são transfigurados em ratos, destino do
qual este não escapa ao final, já que só as bruxas têm poder sobre a forma; daí vem a
alusão à sua aparência “peculiar” na nota sobre as bruxas que abre o livro.
Ainda segundo a avó, “uma bruxa de verdade tem um surpreendente poder
olfativo. Ela consegue farejar uma criança do outro lado da rua numa noite preta feito
breu”301 (DAHL, 2016, p. 20, destaques do autor).
Há em todos esses poderes uma remissão aos relatos sobre bruxas do início da
Idade Moderna, especialmente pela associação de sua figura à animalidade em várias
frentes: primeiro, por sua capacidade de metamorfosear corpos de terceiros em animais.
A transformação da menina Birgit Svenson em frango dá-se de maneira gradual, ao longo
de um mês, embora resumida em duas frases pela avó do narrador, com o salto temporal
em sumário: “um dia, começaram a crescer penas por todo o seu corpo [de Birgit]. Em
um mês, ela virou um grande frango branco”302 (pp. 13-4).
Fazendo jus ao estilo de Dahl, que descreve o absurdo com uma naturalidade
irônica, a avó acrescenta o detalhe mundano de que os pais da menina a mantiveram por
anos no galinheiro e que ela até mesmo botava ovos, a partir dos quais a mãe preparava
omeletes deliciosos. Ou seja, a metamorfose efetuada foi completa e não houve solução
divina, ex machina, capaz de salvá-la desse destino. O poder das bruxas é incontornável
para humanos comuns.
Já o menino Leif mergulhou na água de um fiorde num dia de piquenique com a
família e, ficando submerso por mais tempo do que o comum, ao reemergir havia se
tornado uma toninha. Nesse exemplo, a mudança foi repentina, ocorrida no curto intervalo
em que um ser humano consegue permanecer em apneia (DAHL, 2016, pp. 16-7). Ao ser
questionada sobre como se certificaram de que se tratava de fato de Leif, a avó responde
que ele conversava com a família e “ria e fazia piadas com eles todo o tempo em que os
deixava montarem-no” (2016, p. 17). Embora Leif pareça menos animalizado por reter a

301
No original: “A real witch has the most amazing powers of smell. She can smell out a child who is
standing on the other side of the street on a pitch-black night.”
302
No original: “One day, she started growing feathers all over her body. Within a month, she had turned
herself into a large white chicken.”
218

habilidade da fala, seu exemplo continua tendo mais semelhanças com o de Birgit do que
diferenças: ambos sofrem a mutação sem que haja sinal de sua causadora (inclusive pelo
uso da voz ativa no caso de Birgit, com “she had turned herself”), portanto um perigo
insuspeito, à espreita, que os atacou sem razão aparente — exceto pelo fato de as bruxas
serem más e odiar crianças fazer parte de sua natureza. Se nos remetermos novamente à
figura da bruxa histórica, a relação com seu estereótipo explicita-se: do ponto de vista das
supostas vítimas de bruxaria, o ataque costumava ser realizado sem provocação anterior,
pelo simples capricho, maldade, inveja ou rancor despropositado da bruxa perpetradora.
As bruxas de Dahl, no entanto, são monstros disfarçados de pessoas, e um
primeiro sinal disso é a configuração anômala de seu nariz e seu olfato “surpreendente”
[amazing]. Mesmo não usando a alegada capacidade das bruxas do início da Idade
Moderna de transformar a si mesmas em animais, o olfato apurado, capaz de identificar
crianças à distância mesmo no breu constitui um traço animal, que a bestifica.
A própria habilidade de localização espacial no escuro é uma forma de alteridade
— ancorada nos mais antigos imaginários ocidentais, que atrelam a noite e a escuridão ao
mal —, e, simultaneamente, uma característica animalizante; afinal, depender mais do
olfato do que da visão (mesmo se apenas em determinadas circunstâncias) é, a um só
tempo, fraqueza e prerrogativa de animais os mais diversos, e nem todos noturnos.
A ênfase no olfato também remonta ao predador, na mesma linha do lobo em
contos de fadas como Chapeuzinho Vermelho e Os Três Porquinhos. A vítima, no caso
do romance de Dahl, não acabará devorada, virando, em vez disso, depositária de ódio
gratuito e receptáculo de violência mágica.
É apenas durante a convenção que o narrador — e, com isso, o leitor —
testemunha o exercício de magia em duas instâncias: um feitiço de ataque direto e duas
transformações (uma observada e outra sofrida pelo protagonista). A primeira ocorrência
dá-se através de palavras entoadas, numa longa canalização de oito versos, entrecortada
a cada dois pela wretched witch que irritou a Grand High Witch e será punida (DAHL,
2016, pp. 68-9), implorando para ser poupada. Os versinhos são simples, infantis, e
consistem na repetição de que a bruxa subalterna será queimada por ter cometido a
estupidez e o atrevimento de levantar uma objeção contra sua mestra:

A stupid vitch who answers back


Must burn until her bones are black! […]
A foolish vitch vithout a brain
Must sizzle in the fiery flame! […]
219

An idiotic vitch like you


Must rrroast upon the barbecue! […]
A vitch who dares to say I’m wrrrong
Vill not be vith us very long! (DAHL, 2016, pp. 68-9).

A rima conta com a comicidade evocada pelo sotaque, pela simplicidade das
asserções e pela ideia de churrasco, que atenua a remissão à fogueira histórica destina à
execução das rés de bruxaria.
Os primeiros versos de cada par enunciam a ofensa a ser punida, enquanto seus
duetos determinam a pena. A bruxa que “responde” [answers back] e “ousa dizer que [a
Grand High Witch está] errada” é chamada de “estúpida”, “tola”, “sem cérebro” e
“idiota”, na prática a mesma ofensa repetida quatro vezes. A antagonista possui um
comportamento tirânico, coerente com o atribuído ao Diabo nos textos históricos
analisados no Capítulo 2, em oposição à maneira como a avó trata o menino: encorajando-
o, através de suas dúvidas e questionamentos, ao pensamento crítico e à reflexão
independentes. A bruxa má continua sendo moldada em contraposição às figuras
heroicizadas.
O feitiço através do poder da palavra também retoma uma série de crenças
persistentes desde a Antiguidade, e sua potência converte-se de imediato em ação:

Os olhos da Grand High Witch dispararam uma corrente de faíscas que


parecia minúsculas limalhas ferventes, que voou direto para aquela que
se atrevera a falar. Vi as faíscas atingindo-a e cravando-se nela, e ela
soltou um horrível grito uivado, e uma lufada de fumaça ergueu-se ao
seu redor. Um cheiro de carne queimada preencheu o salão. […]
Quando [a fumaça] dissipou-se, a cadeira estava vazia303 (DAHL, 2016,
pp. 69-70).

Embora seja tentador comparar esse olhar incendiário à visão de laser do


Superman ou do Ciclope, de X-Men, aqui houve um exagero do mau olhado atribuído
historicamente à bruxa, isto é, ao seu poder de infligir uma maldição fatal através do olhar,
veículo transmissor da má intenção, do dolo.
A queima é instantânea e não deixa resquício da bruxa subalterna além do cheiro
de carne queimada, talvez uma referência indireta à sua prévia animalização, retomada

303
No original: “a stream of sparks that looked like tiny white-hot metal-filings came shooting out of The
Grand High Witch’s eyes and flew straight towards the one who had dared to speak. I saw the sparks striking
against her and burrowing into her and she screamed a horrible howling scream and a puff of smoke rose
up around her. A smell of burning meat filled the room. […] when [the smoke] had cleared way, the chair
was empty.”
220

no verso do encantamento “roast upon the barbecue”. Apesar do efeito imediato, o teor
do feitiço em si guarda mais uma relação com o estereótipo da ré de bruxaria: sua não-
erudição. Isso porque ela canaliza o feitiço na língua vernácula (da narração e das bruxas
da assembleia, ao menos), por meio de frases rimadas de conteúdo repetitivo, fáceis para
uma população iletrada memorizar.
Embora haja a diferença óbvia de intento e público, Witches recupera essa tradição
muito anterior de bruxas cuja invocação de poder é limitada por seu conhecimento
linguístico (e, nisso, a Grand High Witch é superior por ser nativa de outra língua). Essa
imagem, em obras diversas, será sobreposta a outra: o mago erudito, estudioso teórico,
alquimista e astrônomo, conhecedor de línguas antigas, talvez até mesmo mortas. Na
seção sobre Wicked e no capítulo sobre Harry Potter discorrerei mais a esse respeito.
Além de sua aparência e do uso da língua inglesa para lançar o feitiço, o outro
elemento dos poderes da Grand High Witch aprisiona-a mais perto do estereótipo da
bruxa pobre e iletrada: o uso de poções, preparos mágicos a partir de ingredientes
inusitados para a ingestão humana. É através de sua receita da “formula 86 delayed action
mouse-maker” que ela transforma Bruno Jenkins e o narrador-protagonista em ratos.
Num primeiro momento, ela fala de seu plano: que as bruxas virem proprietárias
de lojas de doces, a serem devidamente envenenados com a poção para metamorfosear as
crianças da Inglaterra. A poção tem efeito retardado, para ninguém desconfiar da autoria
da mudança; ela pode soltar fogo pelos olhos, mas não quer confrontar humanos adultos,
tanto quanto as bruxas satânicas do passado em tese podiam infligir doenças, comandar
tempestades e matar gado com um olhar ou feitiço, mas eram incapazes de prover o
próprio sustento. Talvez, a seu modo irônico, Dahl use essa incongruência, como tantos
outros autores, para fazer chacota do passado e suas idiossincrasias.
O plano envolvendo a loja de doces, um aceno ao conto de fadas “João e Maria”,
é resumido numa longa canção (DAHL, 2016, pp. 79-81), passando pelos efeitos
esperados do feitiço até o final desejado: que professores e funcionários das escolas
matem as crianças transformadas em ratos com ratoeiras, assim contando com os adultos
que suspostamente deveriam proteger os pequenos para dizimá-los.
A descrição do plano e sua percebida genialidade empolgam as bruxas da plateia,
tornando suas reações similares às de fiéis durante certos cultos religiosos pelo mundo: a
Grand High Witch grita e o público faz-lhe coro em concordância, repetindo o núcleo de
cada frase daquela: “cantou a audiência, batendo palmas e ovacionando quase toda
221

palavra falada do palco”304 (DAHL, 2016, pp. 71-2). Aqui, o autor aproveita-se da ideia
de inversão que circunscrevia, além de outros assuntos, a esfera da bruxaria no início da
Idade Moderna: sabe-se como é um culto cristão, com seus momentos catárticos, então
as bruxas têm ações semelhantes, porém celebrando o oposto.
Ao fim da reunião, esse culto às avessas converte-se numa espécie de sabá:

Nessa altura, a asquerosa e velha Grand High Witch começou um tipo


de dança de bruxa, pulando no palco, batendo os pés e batendo palmas.
A audiência inteira juntou-se com palmas e batidas de pés. Estavam
fazendo uma tremenda algazarra305 (DAHL, 2016, pp. 78-9).

A passagem dá-se no contexto de comemoração da genialidade do plano de


transformar todas as crianças da Inglaterra em ratos, uma espécie de manifestação coletiva
do êxtase suscitado pela expectativa. Estão empolgadas assim diante de uma mera
promessa, antes mesmo de testemunhar o efeito da poção em ação. A Grand High Witch,
no entanto, propõe-se a demonstrar, pois trouxe consigo amostras, a fim de distribuí-las
entre as bruxas mais idosas, que poderiam ter dificuldades para colher alguns dos
ingredientes necessários no alto de árvores ou montanhas, sendo “velhas e frágeis demais
para essas coisas” [too old and feeble for those things] (DAHL, 2016, p. 100). Vê-se, no
trecho, que essas bruxas, apesar de serem demônios, na prática estão sujeitas à ação do
tempo como se fossem humanas, e a mesma velhice desfigurada que as identifica como
bruxas atrapalha-as na prática de bruxaria. Dali em diante, o narrador passa a referir-se a
estas como “antigas” [ancient ones, ancient witches] (DAHL, 2016, pp. 102, 138-9).
A receita da poção em si é absurda e cômica de modo proposital: inclui um
despertador com o horário desejado para fazer efeito, um telescópio ao contrário — para
diminuir em vez de aumentar —, alguns ingredientes mais tradicionais de poções
mágicas, como ratos e caldo de sapo, a serem batidos junto com gema de ovo de gruntle,
uma criatura inventada. Outros ingredientes mágicos são: babblersnitch, crabcruncher,
grobblesquirt e catspring (DAHL, 2016, pp. 86-9). O resultado disso, segundo a bruxa, é
“um líquido verde de aparência maravilhosa” [a marvellous-looking green liquid] (idem,
p. 90).

304
No original: “[…] chanted the audience. They were clapping and cheering almost every word spoken
from the platform.”
305
No original: “at this point, the disgusting old Grand High Witch began to do a sort of witch’s dance up
and down the platform, stamping her feet and clapping her hands. The entire audience joined in the clapping
and the foot-stamping. They were making […] a tremendous racket.”
222

O verde aparece algumas vezes ao longo do livro, sempre associado às bruxas: é


a cor a cobra que a primeira tira da bolsa, do chapéu daquela em quem o protagonista
primeiro reparou no auditório, da sopa de ervilha que condenará todas no final. Trata-se
de uma cor bastante utilizada para a composição visual de magias malignas: a Malévola
de A Bela Adormecida, da Disney, a maldição da morte e outros feitiços “das trevas” em
Harry Potter. O verde, apesar da associação à esperança no corrente senso comum, pode
ter essa conotação negativa por causa de sua presença predominante na natureza, que
acaba por denotar, em que pese sua ligação com a vida, a inevitabilidade da morte,
especialmente na Europa, onde há predominância de plantas decíduas. Além disso, os
pigmentos e tinturas verdes eram instáveis, e algumas das substâncias usadas para
produzi-los eram tóxicas, principalmente no teatro. Por esse motivo, tornou-se uma cor
associada a coisas efêmeras, ao veneno, ao Diabo306 (PASTOUREAU, 2019; ALTARES,
2016; ADLER, 2013). A magia é uma extrapolação — e por vezes, uma negação — do
natural, por possibilitar coisas impossíveis dentro de uma lógica da natureza, como, no
caso, a transformação de uma criança em um rato.
O protagonista duvida que isso venha a acontecer, apesar de ter testemunhado o
olhar incendiário da Grand High Witch e de temer a assembleia por causa dos relatos da
avó, da aparência das bruxas e do teor da reunião. Ele assiste à chegada do menino Bruno
Jenkins com curiosidade espelhada na avidez das bruxas da convenção; este vem exigir
da Grand High Witch o novo doce que ela lhe prometera no dia anterior.
Bruno Jenkins é um menino comilão — está comendo em todas as vezes que
aparece — e gaba-se da riqueza do pai. O narrador-protagonista informa que não gosta
dele, pois o apanhou queimando formigas com uma lupa (DAHL, 2016, p. 93). Quando
se torna vítima de bruxaria, na prática está sendo punido por uma espécie de justiça divina

306
O historiador das ideias Michel Pastoureau, em seu livro Vert – Histoire d’une couleur, comenta: “[o
verde] aparece como uma cor ambivalente, senão ambígua: símbolo da vida, da sorte e da esperança de um
lado, atributo da desordem, do veneno, do diabo e de todas as suas criaturas de outro. [O verde] não é
somente a cor da vegetação, como também e sobretudo a do destino. Quimicamente instável, tanto na
pintura quanto no tingimento, ao longo dos séculos ele foi associado a tudo o que era mutável, versátil,
efêmero: a infância, o amor, a esperança, a sorte, o jogo, o acaso, o dinheiro. Somente na época do
Romantismo ele se tornou definitivamente a cor da natureza e, por conseguinte, da liberdade, da saúde, da
higiene, do esporte e da ecologia” (2019). Como li a edição do livro digital, não tenho como compartilhar
a paginação. No original : « [le vert] apparaît comme une couleur ambivalente, sinon ambiguë : symbole
de vie, de chance et d’espérance d’un côté, attribut du désordre, du poison, du diable et des toutes ses
créatures de l’autre. [le vert] n’est pas seulement la couleur de la végétation ; il est aussi et surtout celle du
destin. Chimiquement instable, tant en peinture qu’en teinture, il a au fil des siècles été associé à tout ce qui
était changeant, versatile, éphemère : l’enfance, l’amour, l’espoir, la chance, le jeu, le hasard, l’argent. Ce
n’est qu’à l’époque romantique qu’il est définitivement devenu la couleur de la nature et, par la suite, celle
de la liberté, de la santé, de l’hygiène, du sport et de l’écologie.»
223

que instrumentaliza o mal (reaproveitando-se da retórica dominante no início da Idade


Moderna).
A bruxaria continua a ser percebida como uma forma de crueldade, e a intenção
(declarada ou implícita) das bruxas ainda é fazer o mal. No entanto, como o lobo em
“Chapeuzinho Vermelho”, suas ações contra Bruno Jenkins não deixam de ter um efeito
moralizante: se não fosse sua gula, não teria aceitado um doce de uma estranha, e quem
sabe então não sofreria a terrível metamorfose. Há também uma camada a mais de crítica
— aquela aos pais permissivos, o Sr. e a Sra. Jenkins, o tipo de adultos que Dahl tende a
retratar como inimigo das crianças, nem sempre por lhes fazer mal diretamente, mas por
não fazer nenhum bem.
As bruxas recolocam seus disfarces ao admitir Bruno Jenkins ao auditório, e a
própria Grand High Witch fala com uma voz “um tanto diferente agora [,] baixa e gentil
e absolutamente doce” [quite different now {,} soft and gentle and absolutely dripping
with syrup] (DAHL, 2016, p. 94). Não fica clara a razão para tal fingimento; àquela altura
toda a convenção apenas aguarda o momento quando a poção surtirá efeito, e já não há
como reverter o processo, pois Bruno a ingeriu no dia anterior.
A descrição da transformação é detalhada, visto ser a primeira narrada, e o
segundo exemplo de magia em cena no livro.
A princípio, Bruno cala-se e enrijece. A Grand High Witch reconhece os primeiros
efeitos do feitiço e volta a pular e bater palmas (agora enluvadas), gritando uma quadrinha
de versos. Esta parece servir mais à sua comemoração do que integrar a magia; não faz
parte das instruções anteriormente fornecidas às demais bruxas presentes.
E então o narrador-protagonista descreve a transformação de modo reticente (de
fato, fazendo intenso uso de reticências), sem misturar suas reflexões ao relato do
observado, como fez antes em todos os seus outros momentos de surpresa: ele parece
incapaz de processar o que está assistindo:

Bruno estava diminuindo a cada segundo. Eu conseguia vê-lo


encolhendo…
Agora suas roupas pareciam estar desaparecendo e uma pelagem
marrom crescendo em todo o seu corpo…
De repente, ele tinha um rabo…
E então tinha bigodes…
Agora tinha quatro pés…
Tudo estava acontecendo tão rápido…
Numa questão de segundos, apenas…
E logo ele não estava mais lá…
224

Um ratinho marrom corria pelo tampo da mesa…307 (DAHL, 2016,


pp. 97-8).

A transformação bem-sucedida recebe ovações da plateia, que tece elogios


entusiasmados à Grand High Witch. O narrador só volta a incluir suas opiniões quando
esta pega uma ratoeira, pois não quer assistir à morte de Bruno. A ameaça mundana de
um dispositivo cotidiano desperta-o do anterior estupor de testemunhar magia em ação
— um estupor que não ocorreu durante o feitiço anterior contra a bruxa “atrevida”. Disso
pode-se depreender que o narrador se solidariza com Bruno, mesmo não gostando dele,
de um modo que lhe é inconcebível em relação às bruxas. Nelas, vê não só uma ameaça,
mas toda uma classe de outro que pode ter suas próprias regras internas e resolver-se entre
si. Já a bruxaria e posterior perigo aos quais Bruno foi exposto sinalizam uma ameaça ao
grupo de pessoas do qual o protagonista também faz parte: as crianças. A empatia com a
situação de um semelhante advém da relação de identidade, assim como a não empatia
com a bruxa deve-se à relação de alteridade.
O fato de a Grand High Witch escolher um modo tão corriqueiro de matar Bruno
Jenkins traz imediata comicidade: por que alguém tão poderosa recorreria a uma ratoeira?
O efeito multiplica-se ante a fuga de Bruno-rato, que logo desaparece de vista. Ela não se
incomoda muito, prevendo que uma criatura tão frágil não demore a perecer, abandonada
à própria sorte num corpo novo.
Muito convenientemente, somente ao final da convenção uma das bruxas da
última fileira fareja o protagonista, quando ele já escutou todos os planos maquiavélicos
em detalhe e já testemunhou magia vezes o suficiente para desfazer qualquer ceticismo
remanescente.
O leitor agora “vê” em cena a habilidade olfativa (animalesca, predatória) das
bruxas, antes descrita pela avó e comentada reiteradamente pelas antagonistas, ao se
referirem ao fedor da criança. O momento de descoberta da presença do protagonista,
com a descrição física da bruxa, contribui para o suspense e horror:

— Parem tudo! — Sua voz guinchada ecoou pelo salão como uma
trombeta. Todas as bruxas pararam de repente e viraram-se para a
falante. Era uma das bruxas mais altas e eu podia vê-la, de pé, com a

307
No original: “Bruno was getting smaller by the second. I could see him shrinking… § Now his clothes
seemed to be disappearing and brown fur was growing all over his body… § Suddenly he had a tail… §
And then he had whiskers… § Now he had four feet… § It was all happening so quickly… § It was a matter
of seconds only… § And all at once he wasn’t there anymore… § A small brown mouse was running around
on the table top…”
225

cabeça curvada para trás e o nariz empinado e ela absorvia ar em


inspirações longas através daquelas suas narinas sinuosas, tipo concha
marinha308 (DAHL, 2016, p. 103, destaque do autor).

A passagem lembra um filme lançando cinco anos após o livro de Dahl: Jurassic
Park (dir. Steven Spielberg, 1993). Numa das cenas mais climáticas, uma criança e um
dos adultos protagonistas estão presos numa cozinha industrial com dois velociraptors e
passam por vários apuros tentando escapar. Um dos momentos mais tensos traz a menina
precariamente escondida atrás de um balcão, e o dinossauro, em vez de continuar
correndo, para e, alongando o corpo, deixa a cabeça pender para trás, erguendo o focinho
e farejando o ar.
Não se trata de uma comparação óbvia, mas o momento de suspense, a pausa, tem
a mesma finalidade narrativa. Ambos são predadores, dos quais o enunciatário torce para
os protagonistas conseguirem fugir. Esse olfato exacerbado, tornado faro na identificação
da criança-presa, encontra ressonância também no célebre terrir infantil da Disney,
Abracadabra [Hocus Pocus] (dir. Kenny Ortega, 1993), no qual três irmãs executadas
por bruxaria no passado voltam à vida na noite de Halloween e, durante a madrugada,
precisam encontrar crianças para sacrificar a fim de manterem-se vivas no dia seguinte.
Uma das irmãs tem esse faro apurado e usa-o para caçar.
Entretanto, enquanto algumas bruxas (e os dinossauros) apresentam-se como
predadores mais tradicionais, as de Dahl não têm nenhuma serventia para as crianças que
caçam; apenas desejam exterminá-las por nenhum motivo mais específico do que essa
raiva e asco.
A Grand High Witch, ao perceber que de fato há uma criança escondida no salão,
reage com um desespero que, nas mulheres do livro — e outras um tanto estereotipadas
—, seria mais comum na presença de ratos ou insetos:

[…] Por que não sentimos seu cheiro antes? Fede como um esgoto!
Algum pequeno suíno deve estar escondido não muito longe daqui!
— Encontrem-no! — gritou a Grand High Witch. — Rastreiem-
no! Arranquem-no! Sigam seus narizes até o apanharem! […]
Arranquem-no, esse lixinho de estrume! […] Não o deixem escapar! Se

308
No original: “‘Hold everything!’ Her shrieking voice echoed through the Ballroom like a trumpet. All
the witches suddenly stopped and turned and looked towards the speaker. She was one of the taller witches
and I could see her standing there with her head tilted back and her nose in the air and she was sucking in
great long breaths of air through those curvy pink sea-shelly nostrils of hers.”
226

está aqui, assistiu a coisas muito secretas! Deve ser exterminado


imediatamente!309 [DAHL, 2016, p. 105).

Notemos como o discurso direto da Grand High Witch fica desesperado. O verbo
discendi escolhido é scream (gritar), que define uma forma de expressão carregada de
emotividade, dir-se-ia histérica. É um grito estridente, descontrolado. Outro verbo
discendi usado no trecho foi screech, um grito agudo e animalesco, às vezes traduzido
como “berro” (não obstante as traduções mais comuns por “guincho”), por ser o som
produzido por algumas aves de rapina. Além dos verbos, a fala é inteira pontuada com
exclamações, enfatizando a urgência.
Elas, em grande agitação, exaltam-se com o cheiro da criança, em sua concepção
assemelhado ao de dejetos de cachorro. Parece, então, que suas referências de mau cheiro
são as mesmas estabelecidas pelo consenso humano: esterco, esgoto. O que diverge, desse
modo, é sua interpretação olfativa do odor das crianças. Tanto estas não têm status de
seres humanos sob sua perspectiva, que todas se referem ao narrador pelo pronome it,
associando-o a suínos (também animais de pouco prestígio) e usando o termo rootle out,
geralmente empregado contra ervas daninhas — portanto no campo semântico da praga.
O verbo exterminate reforça essa ideia.
Uma vez descoberto o esconderijo do narrador, empreende-se contra ele uma
desajeitada perseguição sem nenhum tipo de magia (DAHL, 2016, pp. 106-7), o que
novamente gera comicidade. Várias bruxas são necessárias para detê-lo, imobilizá-lo e
levá-lo ao palco onde a Grand High Witch aguarda para o desfecho: obrigá-lo a beber um
frasco inteiro da poção, que, contendo quinhentas doses, tem efeito instantâneo (idem, pp.
108-9).
A descrição da transformação do protagonista é longa e detalhada, sendo a
penúltima ocorrência de magia em todo o romance:

Ah, a dor e o ardor! Foi como se uma chaleira de água fervente


houvesse sido virada dentro da minha boca. Minha garganta estava em
chamas! Então muito depressa a sensação ardente abrasadora
escaldante começou a se espalhar pelo meu peito e minha barriga e foi
continuando por meus braços e pernas e todo o meu corpo! Eu gritei e
gritei, mas mais uma vez uma mão enluvada tapou meus lábios com
força. A próxima coisa que senti foi minha pele começando a se

309
No original: “[…] ‘Why did we not smell it before? It stinks like a sewer! Some little swine must be
hiding not so very far away from here!’ § ‘Find it!’ screamed The Grand High Witch. “Trrrack it down!
Rrrootle it out! Follow your noses till you get it!’ […] Rrrottle it out, this small lump of dung! […] Don’t
let it escape! If it is in here it has observed the most secret things! It must be exterrrminated immediately!’”
227

comprimir/ tensionar. De que outro jeito posso descrever? Era, bem


literalmente, um comprimir e um encolher da pele de todo o meu corpo,
do cocoruto às pontas dos dedos das mãos e dos pés! Senti-me como se
fosse um balão e alguém estivesse torcendo o topo e torcendo e
torcendo e o balão fosse diminuindo e a pele fosse ficando cada vez
mais tesa e logo fosse arrebentar.
Então começou a espremer. Dessa vez, eu estava dentro de um traje
de ferro e alguém estava girando um parafuso, e com cada volta o traje
de ferro diminuísse e diminuísse, de maneira a me espremer como uma
laranja, até uma nojeira pastosa com o suco escorrendo dos meus lados.
Depois disso veio uma aguda sensação pinicante por toda a minha
pele (ou o que sobrara dela), como se agulhas minúsculas estivessem
forçando caminho, vindas de dentro, para romper a superfície da minha
pele, e isso — agora compreendo — era a pelagem de rato crescendo.
[…]
Eu não sou mais eu! Fui arrancado de minha própria pele!310
(DAHL, 2016, pp. 108-9, destaques do autor).

A vívida descrição da transformação suspende momentaneamente a comicidade


predominante no texto de Dahl; é uma passagem carregada de tensão, dilatando o tempo
de poucos segundos. Cada sensação é compartimentada e explorada, com o uso de
metáforas e comparações de teor visual, tendendo ao dramático, que transmite com
sucesso a ideia inapreensível de sofrer os efeitos da poção.
Há também uma primazia do sentido tátil: é quente, retesado, esmagador e
pinicante, sendo a pele o órgão afetado de maneira mais óbvia — o que faz sentido pela
perspectiva de um narrador em primeira pessoa. Se antes o enunciatário observou a
metamorfose de Bruno Jenkins através dos olhos do narrador, assistindo a cada etapa,
agora é convidado a senti-la na pele, como a própria vítima da bruxaria.

310
No original: “Oh, the pain and the fire! It felt as though a kettleful of boiling water had been poured into
my mouth. My throat was going up in flames! Then very quickly the frightful burning searing scorching
feeling started spreading down into my chest and into my tummy and on and on into my arms and legs and
all over my body! I screamed and screamed but once again the gloved hand was clapped over my lips. The
next thing I felt was my skin beginning to tighten. How else can I describe it? It was quite literally a
tightening and a shrinking of the skin all over my body from the top of my head to the tips of my fingers to
the ends of my toes! It felt as though I was a balloon and somebody was twisting the top of the balloon and
twisting and twisting and the balloon was getting smaller and smaller and the skin was getting tighter and
tighter and soon it was going to burst. § Then the squeezing began. This time I was inside a suit of iron and
somebody was turning a screw, and with each turn of the screw the iron suit became smaller and smaller
so that I was squeezed like an orange into a pulpy mess with the juice running out of my sides. § After that
there came a fierce prickling sensation all over my skin (or what was left of my skin) as though tiny needles
were forcing their way out through the surface of the skin from the inside, and this, I realize now, was the
growing of the mouse-fur. […] I am not myself any longer! I have gone clear out of my own skin!”
228

A conclusão do processo dá-se com uma dissociação do eu: sem seu corpo
original, natural, familiar, o narrador-protagonista vive um momento de incapacidade de
entender-se como a si mesmo.
Toda essa discussão remete aos tratados e panfletos da primeira parte deste
trabalho; na época, a alegada capacidade da bruxa de transmutar a si própria e terceiros
em animais foi objeto de controvérsia. Um dos argumentos mais sólidos para negar a
existência de tal poder era justamente a questão do que seria feito da matéria excedente
do corpo humano. Uma bruxa satânica não era, afinal, a Circe mitológica; não qualquer
bruxa da Grécia Antiga poderia transformar homens em porcos, tanto menos uma da era
cristã, quando só Deus tem poder sobre a matéria e o Diabo, aos poucos, vai sendo
deslocado para o domínio da mente. Muito cedo, já no fim do século XVI, James VI da
Escócia e I da Inglaterra, assim como outros tratadistas, chega à conclusão de que as
transformações das bruxas não passam de truque ou ilusão, implantada pelo Diabo na
cabeça da bruxa, ou pela bruxa (com magia diabólica) na mente de suas vítimas.
Em Dahl, o antissujeito/ antidestinador inadvertidamente assume o papel de
destinador involuntário da própria destruição, ao dotar o sujeito de um poder-fazer.
Enquanto menino, o narrador era impotente frente às bruxas, de modo que não o é na
qualidade de rato. Ao final do livro, mais de cinquenta páginas após a transformação,
quando ele coloca a poção na sopa de ervilha, teremos uma ilustração do ditado “o feitiço
virou contra o feiticeiro”, pois todas viram ratos e vão sendo massacradas pelos adultos
em frenesi no restaurante do hotel.
Esse desenrolar já se anuncia logo na sequência da transformação do protagonista.
Este, após o choque inicial da disrupção do eu, rapidamente começa a perceber uma série
de vantagens de seu corpo recém-adquirido. Primeiro, dá-se conta de sua nova
proporcionalidade por causa da distância com que vê o chão e suas patas dianteiras
(DAHL, 2016, p. 110). Como as bruxas outra vez fazem questão de usar uma ratoeira, ele
descobre, ao escapar, a adquirida supervelocidade e capacidade de correr sem fazer
barulho. Passada a dor do processo de metamorfose, sente-se bem e chega a racionalizar
as inúmeras prerrogativas de sua nova condição (sem mencionar o fato de sua existência
não mais incomodar as bruxas, cf. p. 111-3). Um dos maiores benefícios vem de sua
cauda, que lhe permitirá a acrobacia na cozinha, definidora do desfecho vitorioso (DAHL,
2016, p. 158). Ele ainda retém a capacidade da fala, com sua voz normal (cf. p. 112). Esta
atua como marca de identidade, sendo a fala seu traço remanescente de humanidade —
segundo a avó, uma prova de que a transformação não foi completa (p. 125). Assim, ele
229

não é um rato, mas um menino-tornado-rato, e seu corpo animal não mais o sujeita às
antagonistas.
Sua atitude perante o que, à primeira vista, só poderia constituir uma adversidade,
marca sua heroicização, e tal percepção o habilita a enfrentar e vencer a ameaça. Seus
monólogos internos agora caracterizam-se por certo maravilhamento: “Caramba, pensei,
que coisas incríveis um rato pode fazer! E sou só um iniciante!”311 (DAHL, 2016, p. 159,
destaques do autor).
Na sequência final do jantar, quando o protagonista executa seu plano de colocar
a poção na comida das bruxas — que, de maneira bem conveniente pedem todas o mesmo
prato, sopa de ervilha —, o narrador-protagonista carrega as marcas do herói altruísta em
verdadeira batalha: “Tinha conseguido! Mesmo se nunca voltasse vivo para minha avó,
as bruxas ainda tomariam a mouse-maker!”312 (DAHL, 2016, p. 160). Ele consegue
escapar da cozinha atribulada, mas não sem antes perder uma parte da cauda por seu
próprio descuido, quando acaba se deixando ver por um cozinheiro (p. 162). No entanto,
continua a abismar-se com seu poder: “O fato de que uma criaturinha minúscula como eu
houvesse causado tamanha comoção em meio a um monte de homens adultos deu-me um
sentimento feliz”313 (p. 167). A comoção em questão é uma longa passagem na qual todos
os cozinheiros e funcionários da cozinha tentam capturá-lo.
Esse sentimento de vitória triunfa, enfim, com o sucesso da operação: a
metamorfose das bruxas, após a ingestão da sopa de ervilha adulterada, dá-se com uma
barulheira seguida de repentino silêncio [quiet], em que o salão como um todo fica
“mortalmente imóvel” [deathly still], “cada bruxa rígida e silenciosa como um
cadáver”314 (p. 177). Em seguida, “todas as bruxas haviam desaparecido, e os tampos das
duas mesas longas pulularam com ratinhos marrons”315 (p. 179).
As bruxas são ameaça enquanto coletividade, e da mesma forma deixam de sê-lo;
as palavras para se referir ao grupo pertencem ao campo semântico da praga e do desastre
— flooding (inundar, inundação), swarming (enxame/ pulular). Como tal são percebidas
e como tal os adultos enlouquecidos as matam, ignorando ou desconsiderando que, ao

311
No original: “By golly, I thought, what marvellous things a mouse can do! And I’m only a beginner!”
312
No original: “I had done it! Even if I never got back alive to my grandmother, the witches were still
going to get the Mouse-Maker!”.
313
No original: “The fact that a tiny little creature like me had caused such a commotion among a bunch of
grown-up men gave me a happy feeling.”
314
No original: “Every single witch stood there as stiff and silent as a corpse.”
315
No original: “all the witches had completely disappeared and the tops of the two long tables were
swarming with small brown mice.”
230

menos em sua visão, segundos antes eram mulheres, enquanto as crianças se divertem
com o pandemônio, numa espécie de comemoração que o narrador atribui a um alívio
instintivo.
Chen-Wei Yu observa num artigo sobre as mecânicas de poder na obra, que,

dada a similaridade dos objetivos alcançados tanto pelas bruxas quanto


pelo protagonista, é difícil julgar quem é o vencedor e quem é o
perdedor. A troca de identidade entre vencedor e perdedor sugerida
pelas ações da personagem aqui dá testemunho do fenômeno de que a
vítima e o vilão constantemente alternam-se entre posições elevadas ou
rebaixadas em relação ao poder. Tais trocas entre as posições das
crianças e dos adultos em guerra indicam a instabilidade dos
mecanismos de poder através dos quais os poderosos estão destinados
a serem derrubados316 (2008, p. 162).

Com isso, o pesquisador parece supor a derrota do protagonista, visto a avó reter
sua autoridade sobre ele, impossibilitado de tornar-se independente. Yu afirma, a meu ver
equivocadamente, que, em vez do aparente triunfo sobre as bruxas, o narrador “perde sua
identidade como uma criança humana normal”, o que simbolizaria “o sucesso da tentativa
das bruxas em destruir crianças humanas”317 (2008, pp. 161-2). Essa leitura soa-me um
tanto superficial, no sentindo de que atribui a “normal” o valor de “bom” e “desejável”,
desconsiderando completamente os desejos da criança, em especial do protagonista, que
tem voz e agência dentro do texto.
Desde a conclusão da metamorfose, o narrador descobre-se cada vez mais
satisfeito ao pesar os prós e os contras de sua nova condição. Num primeiro momento, as
bruxas parecem tê-lo vencido e, se ele tivesse se considerado derrotado, dentro de uma
isotopia adulta de idealização da “normalidade”, talvez de fato houvessem.
Contudo, Dahl promove um empoderamento da criança, ressaltando-lhe os
desejos e vontades. Segundo James Curtis, “ao ser transformado numa criança-rato, o
narrador está recebendo a possibilidade de permanecer num estado de infância perpétua,

316
No original: “Given the similarity of goals achieved by both the witches and the main protagonist, it is
difficult to judge who is the winner and loser. The identity exchange between victor and loser implied by
characters’ actions here testifies to the phenomenon that the victim and villain constantly alternate between
higher and lower positions in their power relation. Such exchanges between the positions of children and
adults at war indicate instability in the mechanisms of power, by which the powerful are destined to be
overthrown.”
317
|No original: “he loses his identity as a normal human child” e “the success of the witches’ attempt to
destroy human children.”
231

sem nenhum dos estresses que a vida adulta mais tarde lhe infligiria”318 (2014, p. 173).
Além disso, elimina qualquer ansiedade de separação; o menino, órfão, só tem a avó idosa
de 86 anos, e expressa extrema satisfação quando ela lhe fala da baixa expectativa de vida
dos ratos:
— É a melhor notícia que já recebi!
— Por que você diz isso? — perguntou ela, surpresa.
— Porque eu nunca ia querer viver mais do que você — disse eu. —
Não suportaria que mais ninguém cuidasse de mim. [Em oito ou nove
anos], vou ser um rato muito velho e você vai ser uma avó muito velha
e logo depois nós dois vamos morrer juntos319 (DAHL, 2016, pp. 188-
9).

Existe nessa expectativa uma crueza chocante, provavelmente mais para o público
adulto do que para o infantil, a julgar pelos artigos que li sobre o livro e pelos filmes, em
que o menino volta à forma original com a ajuda de uma bruxa boa arrependida (uma
figura impossível dentro da mitologia do livro). A simples existência dessa personagem
na primeira adaptação nega alguns dos eixos principais da obra de Dahl: as bruxas como
demônios odiadores de crianças, o menino como herói que evolui ao tornar uma mudança
debilitante a chave de seu sucesso, a avó com quem o menino pode contar para tudo.
Essas caracterizações são imprescindíveis na composição do percurso narrativo
do sujeito e no desenvolvimento do protagonista. No romance de Dahl, como em outros
textos sobre bruxas, ficcionais ou não, elas existem em contraponto aos atores que
desempenham os papéis mais tradicionais de sujeito e destinador. O termo designador da
própria Grand High Witch, antissujeito máximo, parece indicar isso: Grand opõe-se
simetricamente à Grandmamma, e a escolha de grand para constituir o epíteto da primeira
não deve ser coincidência. Os papéis temáticos da avó e da anti-mãe são irreconciliáveis:
uma cuidadora e protetora da criança; outra, agressora.
O comportamento da avó em relação ao menino também a coloca como alguém
que, oferecendo segurança, dá espaço para ele crescer e testar sua independência. Após o
choque inicial de vê-lo transformado em rato e deixar-se consolar por ele, a avó aceita
que ele se sente bem em seu novo corpo e passa a agir e falar de maneiras que incentivem
isso. Conforme Bergson-Shilcock, “não há problema que ela não consiga resolver, e ainda

318
No original: “by being transformed into a mouse-child, the narrator himself is being allowed to remain
in a state of perpetual childhood, with none of the stresses that adult life would later inflict upon him.”
319
No original: “’It’s the best news I’ve ever had!’ § ‘Why do you say that?’ she asked, surprised. §
‘Because I would never want to live longer than you,’ I said. ‘I couldn’t stand being looked after by anybody
else.’ [In eight or nine years] I’ll be a very old mouse and you’ll be a very old grandmother and soon after
that we’ll both die together.’”
232

assim dá ao neto a forma definitiva de respeito: pede suas opiniões, ouve suas sugestões,
usa suas ideias”320 (2002, p. 447). Ela elogia a inteligência do neto em vários momentos,
chegando a sugerir que a nova forma tenha aumentado sua agilidade intelectual (DAHL,
2016, p. 148). É ela quem, no primeiro encontro de avó e neto no quarto após a
transformação, aponta-lhe seu rabo e lhe sugere usá-lo, o que se prova fundamental para
vencer as bruxas. Em vez de mantê-lo preso, em segurança, não só lhe permite executar
as partes mais perigosas da aventura como o ajuda com isso, estabelecendo uma relação
próxima da interdependência.
Na literatura infantil, “o perigo é evocativo e poderoso, e frequentemente reside
junto à magia. […] Histórias de magia e perigo evoluíram para dar conta das exigências
da sociedade por finais felizes e para explicar normas culturais”321 (RICHTER, 2015, p.
325). A obra de Dahl ilustra esse movimento mesmo que seu final feliz pareça
questionável para alguns. O último capítulo traz uma promessa de continuidade, que não
se costuma ver nesse tipo de narrativa, apesar da baixa expectativa de vida da avó e do
neto: eles vão juntos ao castelo da Grand High Witch na Noruega, onde encontram
informações sobre todas as demais bruxas do mundo, e propõem-se a caçá-las e destruí-
las, a fim de poupar as crianças de destinos terríveis.
É difícil enxergar, nesse contexto, como alguns críticos (como Yu, acima citado)
poderiam questionar o triunfo do protagonista só porque ele permanece na forma de
roedor, presumidamente até o fim de seus dias. Talvez tal leitura sofra da interferência da
percepção do pesquisador acerca desse destino; no mundo natural, soa algo terrível, sem
dúvida disfórico. Dentro do texto, no entanto, a transformação é lida numa chave positiva,
eufórica, ao dotar o sujeito de um poder-fazer. Trata-se de um mecanismo narrativo
comum, a ideia de um herói sacrificar algo em troca de seu crescimento/ aprimoramento;
o inusitado de Witches é que ele sacrifica a forma humana por uma percebida como mais
fraca e vulnerável, portanto indesejável. É inusitado também que o poder de escolha sobre
como lidar com isso lhe restou, e esta ficou bem clara logo na página seguinte à
transformação e durante toda a metade final do livro. Ignorar isso é forçar uma
interpretação destoante do texto e do percurso narrativo do sujeito, em prol de uma leitura
mais pessoalmente investida.

320
No original: “there is no problem she cannot solve, yet she gives her grandson the ultimate form of
respect: she asks for his opinions, she listens to his suggestions, she uses his ideas.”
321
No original: “danger is evocative and powerful, and oftentimes resides alongside magic […] Tales of
magic and danger have evolved to meet society’s demands for happy endings and to explain cultural
norms”.
233

Na prática, essa “moral” do texto de Dahl recupera aquele traço da figura da bruxa
segundo discutida por demonólogos: apesar de querer causar o mal e crer fazê-lo, acaba
tendo parte no eixo do bem (ou do plano divino, em discursos religiosos), porque o herói
consegue reverter a maldade e extrair algum proveito dela.
Claro, antes de isso acontecer, o menino recorre à avó: “ela vai saber exatamente
o que fazer”322 (DAHL, 2016, p. 116). E a avó mostra-se digna dessa confiança, servindo
para o protagonista racionalizar seus sentimentos e ponderar a mudança pela qual passou.
Juntos, divisam o plano para derrotar as bruxas, mas a ideia é dele e, uma vez convencida,
ela se empolga, chegando a dar pulinhos (p. 127).
Como em obras as mais diversas estudadas até aqui, a figura da bruxa serve como
recurso para destacar as qualidades do herói. Ela é rasa, uma espécie de conjunto de más
características destinadas a pôr em relevo tudo o que no herói se lhe opõe.
E, embora o fato de essas bruxas parecerem mulheres e serem assim chamadas ao
longo do texto (women, female), chama a atenção que sua maior transgressão, além do
ódio inato às crianças e dos feitiços contra estas que as tornam anti-mães, é querer se
passar por uma coisa (mulher humana), quando na verdade é outra (demônio). A bruxa
de Dahl apresenta uma fachada de mulher conforme e, sob o disfarce — a literal máscara
da Grand High Witch —, é um monstro.
A Sra. Jenkins, com toda a aparência de mulher conforme (esposa, mãe), acaba se
revelando também uma anti-mãe ao não reconhecer e depois não admitir a transformação
do filho Bruno Jenkins, negligenciado desde antes de ser vítima de bruxaria. As
transgressões delas ultrapassam a esfera de suas respectivas formas de anti-maternidade
para englobar esse desejo de mascarar sua não-conformidade sob uma superfície
normativa. A bruxa de Dahl só extrapola isso por ser caricata, exagerada em sua maldade
em decorrência de suas habilidades sobrenaturais. Conforme Curtis, “essas criaturas não
foram feitas parecer uma pessoa de verdade” e “evocam um senso de alívio cômico”323
(2014, p. 173). Embora seja inegável a tensão de algumas passagens, como a descoberta
das bruxas no auditório e a transformação do protagonista, a comicidade também está
nelas em muitos momentos: sua incapacidade de agir contra adultos, suas receitas na
chave do absurdo, a incompetência de querer usar uma ratoeira para matar ratos em seu
poder.

322
No original: “she’ll know exactly what to do.”
323
No original: “these creatures are never really meant to appear as anything resembling an actual person”
e “evoke a sense of comic relief”.
234

É sintomático que sua derrota aconteça no salão de jantar do hotel, sob os olhares
de pessoas comuns, quando estão tentando se encaixar. Sua tentativa de aparentar
conformidade, em vez de abraçar sua natureza desviante, revela-se sua fraqueza.
A avó tem uma série de características e comportamentos não-conformes, a
começar por ser viúva e, ainda assim, abraçar a conformidade ao assumir o papel da
maternidade. Mãe da mãe do narrador-protagonista órfão, apresenta traços incomuns no
papel temático da boa avó idosa: fuma charuto e às vezes é grosseira, embora sua atitude
em relação ao neto seja predominantemente amorosa. Nisso, quebra expectativas em
relação ao papel temático da avó boazinha, doméstica, satélite sem agência. Por exemplo,
alega ser uma “bruxófila aposentada” [retired withofile], além de que “estuda as bruxas e
sabe tudo sobre elas” [studies witches and knows a lot about them], explicando: “estou
velha demais para continuar na ativa. Mas quando era mais nova, viajei pelo mundo todo
tentando rastrear a Grand High Witch. Nunca nem cheguei perto de conseguir”324
(DAHL, 2016, p. 34).
Tanto ela se opõe às bruxas que, quando o narrador a apresenta, logo no início da
obra, dá informações a respeito destas:

Minha avó era norueguesa. Os noruegueses sabem tudo sobre


bruxas, pois a Noruega, com suas florestas negras e montanhas geladas,
é de onde as bruxas vieram.
[…] No dia seguinte [ao acidente de carro], para tentarmos nos
esquecer de nossa grande tristeza, minha avó começou a me contar
histórias. Era uma maravilhosa contadora de histórias e fiquei
enfeitiçado por tudo o que ela me contou. Mas não fiquei empolgado
até ela chegar ao assunto das bruxas. Ela era aparentemente uma grande
especialista nessas criaturas e deixou muito claro para mim que suas
histórias, diferentemente da maioria das outras, eram todas verdadeiras.
Eram verdade verdadeira. Faziam parte da História. […]
Minha avó era tremendamente velha e enrugada, com um corpo
imenso e largo […]. Ela estava ali, majestosa em sua poltrona,
preenchendo cada centímetro dela […].
Minha avó era a única avó que já conheci que fumava charutos. Ela
acendeu um agora, um longo charuto preto que cheirava a borracha
queimada325 (DAHL, 2019, pp. 6 e 8-9).

324
No original: “I am too old to be active any longer. But when I was younger, I travelled all over the globe
trying to track down The Grand High Witch. I never came even close to succeeding.”
325
No original: “My grandmother was Norwegian. The Norwegians know all about witches, for Norway,
with its black forests and icy mountains, is where the first witches came from. […] The very next day [after
the car accident], in order that we might both try to forget our great sadness, my grandmother started telling
me stories. She was a wonderful story-teller and I was enthralled by everything she told me. But I didn’t
become excited until she got on to the subject of witches. She was apparently a great expert on these
creatures and she made it very clear to me that her stories, unlike most of the others, were not imaginary
235

Ressalte-se a descrição da avó como “tremendamente velha e enrugada”, pois é


muito comum associar essa característica à figura da bruxa — como de fato acontecerá
na obra, quando uma aparecer. A diferença consiste, então, no tipo de carga afetiva que o
narrador assinala a tal atributo no caso da avó e no das bruxas.
A avó é “maravilhosa”, não só em seu papel como no de contadora de histórias, e
sua descrição física, mesmo denotando uma aparência não imediatamente relacionada à
esfera do agradável, é quase neutra no tom, prevalecendo a ideia de uma mulher grande
em comparação ao corpo pequenino do narrador, o que pode ajudar a compor sua imagem
de protetora. Apesar de idosa, ela não parece frágil: é “majestosa” [majestic],
deliberadamente alçada a uma esfera de poder e autoridade. O fato de fumar charuto e ser
a única avó conhecida do narrador a fazê-lo contribui para essa imagem. O charuto, afinal,
costuma ser associado ao masculino e a um grupo de estrato social mais elevado, o que
pode se traduzir em sinal de prestígio.
Além disso, a avó parece ser viúva, considerando a ausência de qualquer menção
a um avô, mas na obra nenhum desses fatores recai numa disforização da personagem.
Ela apresenta desvios do papel temático e em parte isso será implicitamente justificado
por ela ser estrangeira (no contexto de produção e recepção inicial da obra, no Reino
Unido dos anos 1980). Aqui, no entanto, esse “ser estrangeira” tem uma função positiva,
visto que a dota do saber acerca das bruxas, oriundas do mesmo lugar: a Noruega. Então,
o espaço estrangeiro que produziu o mal (disforizado, sob um viés um tanto xenofóbico)
é também o retentor do conhecimento para enfrentá-lo (euforizado).
A Noruega, descrita parcialmente e en passant por suas “florestas negras e
montanhas geladas”, situa-se de certa forma no eixo do noturno e do invernal — portanto
condizente com as ideias fixas de bruxaria — por se tratar de um país onde não amanhece
durante a estação. Não há referência à contrapartida de que durante o verão não anoitece,
talvez porque num cenário com o sol da meia-noite a hora das bruxas soe menos
assustadora. Além do mais, o gelo numa estrada norueguesa foi o causador do acidente
que matou os pais do narrador, de modo que seu destaque aos aspectos sombrios do país
tenha uma coerência interna na narrativa.

tales. They were all true. They were gospel truth. They were history. […] My grandmother was
tremendously old and wrinkled, with a massive wide body […]. She sat there majestic in her armchair,
filling every inch of it […]. My grandmother was the only grandmother I ever met who smoked cigars. She
lit one now, a long black cigar that smelt of burning rubber.”
236

Gostaria, agora, de chamar a atenção para a escolha vocabular do narrador para se


referir à sua reação às habilidades da avó de contar histórias: ele se descreve como
enthralled (que optei por traduzir como enfeitiçado). Não se trata de um termo estranho
ao imaginário da bruxaria, pois descreve certo encantamento (esta, aliás, outra palavra
que foi se esvaziando de seu sentido denotativo em detrimento do figurado). De acordo
com o dicionário Merriam-Webster, o verbo enthrall significa “to hold spellbound;
charm” [manter sob o efeito de um feitiço; encantar/ enfeitiçar]. Emprega-se a palavra,
por extensão de sentido, àquilo que exerce fascínio, mas seu uso é curioso no contexto de
um enredo que envolve magia. Talvez a avó seja tocada por esta, de certa maneira; um
especialista em bruxas pode acabar acusado de bruxaria, como o tratado de James VI & I
apontou em 1597. O narrador-protagonista ecoa esse sentimento durante uma conversa
ao perguntar: “como você sabe de tudo isso, vovó?”326 (DAHL, 2016, p. 19), pois ela tem
conhecimentos extremamente específicos sobre as bruxas, incluindo que elas só tiram as
luvas quando vão dormir (idem), afirmação um tanto contundente para quem não tem
intimidade com uma.
Esse papel da avó-destinadora explicita-se a cada pausa em seus diálogos com o
narrador, quando ele a observa e a alça a um pedestal, chegando a lhe atribuir certa
qualidade etérea, uma imagem atemporal para dar credibilidade à sua sabedoria sem a
macular com a suspeita de bruxaria:

Ergui o olhar, fitando minha avó, sentada como uma rainha antiga em
seu trono. Seus olhos eram cinza-enevoados e pareciam fitar algo a
quilômetros de distância. O charuto era a única coisa real nela naquele
momento, e a fumaça ondulava em torno de sua cabeça em nuvens
azuis327 (DAHL, 2016, p. 14).

O destaque para a fumaça é muito interessante nesse contexto em que a avó


transmite o conhecimento para o neto. Ela ecoa a imagem do oráculo grego — cujos
conselhos podem levar à perdição se mal interpretados — e também à do sábio idoso,
como o mago Gandalf, o Cinzento, em O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, que
aparece fumando em diversas ocasiões, especialmente em momentos de contemplação.
Sacerdotes xamânicos e nativo-americanos fumam, e a fumaça frequentemente é a
condutora de mensagens do além.

326
No original: “How do you know all this, Grandmamma?”.
327
No original: “I gazed up at my grandmother, who sat there like some ancient queen on her throne. Her
eyes were misty-grey and they seemed to be looking at something many miles away. The cigar was the
only real thing about her at that moment, and the smoke it made billowed round her head in blue clouds.”
237

Os olhos cinza-enevoados [misty-grey] da avó reforçam essa leitura simbólica; ela


pode não operar magia, mas, na perspectiva do menino, está em contato com o mundo
mágico. De certo modo, o papel da avó assemelha-se ao do sacerdote: perto o suficiente
do mal para conhecê-lo e saber combatê-lo, porém não o bastante para integrá-lo.
A avó foi criada para ser gostada pelo leitor, especialmente do público infantil:
suas histórias de bruxas incluem o detalhe sobre o olfato apurado contra crianças, e ela
afirma ser melhor tomar poucos banhos. Com a avó, o protagonista tem uma “estrutura
familiar alternativa” (MITCHELL, 2012, p. 34), e

os leitores recebem a oportunidade de condenar a família Jenkins,


“normal”, e celebrar a excêntrica formulação alternativa de família
corporificada pela avó e seu neto. Como em outros textos de Dahl, ele
conta com a representação de boas e más famílias328 (2012, p. 12).

Embora a família nuclear padrão seja incomum em diversos contextos do Brasil


atual e, em Witches, a disrupção seja fruto de uma tragédia, vale apontar que isso ajuda a
compor a não-conformidade na representação dessa avó sem, no entanto, disforizá-la.
Tudo o que a avó tem de negativo resume-se a seus charutos, descritos como vile,
foul e disgusting. O narrador não gosta do hábito de fumar, mas não dispensa maiores
julgamentos; os charutos integram a imagem da avó que, mesmo depois de uma forte
pneumonia (que os impede de passar o verão na Noruega e acaba sendo o fator decisivo
para irem parar no hotel), desobedece às restrições médicas e volta a fumar assim que
pode dispensar a enfermeira que a acompanhou durante a doença (DAHL, 2016, p. 44).
Ela usa uma bengala, sinal da fragilidade da idade, e veste-se com a mesma cor preta das
bruxas (p. 142). Ou seja, a cor aqui não é associada ao mal, e sim a um gosto feminino,
replicado pelas bruxas para se disfarçarem.
A avó mantém-se no papel de destinadora consistentemente ao longo da narrativa,
às vezes unindo-o ao de adjuvante — quando o leva na bolsa para poupá-lo do caminho
e facilitar as tarefas do neto. No final, quando os dois se mudam para a Noruega, a avó
inventa dispositivos para facilitar a vida do protagonista, incluindo sistemas de roldanas
que possibilitam ao neto abrir portas, subir nos móveis, acender as luzes etc. (p. 184).
Analisando a avó e considerando a representação das bruxas na obra, vemos que
Witches é mais um exemplo de história que veicula certos parâmetros de gênero, porém

328
No original: “readers are given the opportunity to condemn the ‘normal’ Jenkins family and celebrate
the eccentric, alternative formulation of family embodied by Grandmamma and her grandson. As in many
of Dahl’s other texts, he relies on oppositional representations of good families and bad families.”
238

não são os mais usuais329. Na mesma linha de muitas obras, o feminino transgressor
encontra redenção na (boa) maternidade. A velhice e mesmo a viuvez da avó não são
disforizadas porque sua condição lhe permite ficar todo o tempo à disposição do neto.
Nesse sentido, ela está se pondo como mulher conforme ao seguir o curso “natural” da
vida.
Para as bruxas não há possibilidade de redenção, por mais que pareçam
conformadas aos padrões sociais. Não querem e/ ou não podem ter filhos, buscam fazer
mal às crianças dos outros (arruinando famílias, boas ou não) e são podres e disformes,
anti-naturais. Através do exagero, têm a função de contraponto, fornecendo uma grade
comparativa de características socialmente aceitas e não aceitas.

4.2. Enrolados e as bruxas da Disney


O estereótipo da bruxa idosa de aparência repugnante teve uma longa história de
cristalização, passando pelos discursos teólogo-demonológicos, pelo teatro e pela
iconografia cristã, derramando-se para os contos de fadas e obras audiovisuais neles
inspirados, uma construção a várias mãos:

Caçadas por tribunais, as bruxas colocam-se então a assombrar as


histórias infantis. Charles Perrault, no século XVII, opusera as fadas
benevolentes a suas irmãs malfeitoras. Por causa da ausência de um
talher de ouro, uma fada convidada ao batismo da bela adormecida a
amaldiçoa.
Com Jacob e Wilhelm Grimm, dois séculos mais tarde, as feiticeiras
são ogras e malvadas implacáveis e seus contos, ao longo das reedições,
solidificam seus atributos, vassoura e nariz torto numa imagem cada
vez mais repulsiva, que fará a alegria, bem mais tarde, de Walt
Disney330 (GOLLIAU, 2019, p. 51).

Essas remodelagens da bruxa, bem como a criação da madrasta típica dos contos
de fadas, tiveram no século XIX fins políticos para o estabelecimento da família nuclear
como elemento vital para a ordem social (TAMAROZZI, 2019, pp. 52-4), histórias essas

329
Inclusive reitero que os homens do livro não têm uma representação nada benevolente ou idealizada.
330
No original: “Chassées des tribunaux, les sorcières se mettent alors à hanter les contes pour enfants.
Charles Perrault, au XVII siècle, avait opposé les fées bienveillantes à leurs soeurs malfaisantes. Pour un
couvert d’or manquant, la fée invitée au baptême de la Belle au bois dormant lui jette un mauvais sort. //
Avec Jacob et Wilhelm Grimm, deux siècles plus tard, les sorcières sont des ogresses et des méchantes
implacables et leurs contes, au fil des rééditions, figent leurs attributs, ballai et nez crochu en une image de
plus en plus repoussante, qui fera le bonheur bien plus tard de Walt Disney.”
239

que foram se fixando no imaginário à medida que eram empregadas na educação das
classes burguesas e, mais tarde, ganharam versões nas então nascentes artes audiovisuais.
Dentre as animações dos Estúdios Disney, a mais recente a incluir a figura de uma
bruxa no sentido estereotípico do termo é Enrolados [Tangled] (2010, dirigida por Byron
Howard e Nathan Greno), uma releitura do conto de fadas Rapunzel, dos irmãos Grimm.
Os elementos principais da narrativa são os mesmos: uma princesa de cabelos
anormalmente longos é mantida presa numa torre por uma bruxa e, mediante o
afastamento fortuito desta, um príncipe encontra Rapunzel, a princesa, e a liberta,
resultando na morte da bruxa.
As principais mudanças da animação em relação ao conto referem-se à
complexificação do enredo e das personagens. As personagens-tipo do conto dão lugar à
personagens mais nuançadas (ditas “redondas”, cf. BRAIT, 1985), havendo espaço para
a atuação das paixões não só na esfera dos atores desempenhando os papéis de sujeito,
como aqueles de antissujeito/ antidestinatário e adjuvante.
Dentre essas alterações, houve a inclusão de uma história de pano de fundo da
bruxa-algoz, Gothel, incluindo sua motivação para sequestrar a princesa Rapunzel e
mantê-la na torre. O aspecto mais interessante disso desdobra-se no desenvolvimento da
relação entre as duas, pois esta se julga filha daquela. A criação de Rapunzel em
confinamento, então, é explicada pela mãe como uma forma de protegê-la de possíveis
malfeitores. Mesmo ao escapar, Rapunzel permanece refém do sentimento de culpa por
trair a confiança da mãe, até descobrir sua verdadeira história.
Enrolados inicia-se com a apresentação de uma flor mágica, com uma origem
explicada pelo narrador, a personagem Flynn Rider, em voice-over: “Era uma vez uma
gota de luz solar que caiu do céu, e dessa gotinha de sol nasceu uma mágica flor
dourada331 (2010, 1’12”-1’16”), cujo poder era “curar os doentes e feridos”332 (1’17”).
Sua localização de difícil acesso à beira de um penhasco permite a Mãe Gothel mantê-la
escondida a fim de visitá-la periodicamente para realizar um ritual capaz de preservar sua
juventude. “Em vez de compartilhar a dádiva do sol, essa mulher, mamãe Gothel, juntou
seu poder de cura e o usou para manter-se jovem por centenas de anos”333 (2010, 2’02”-

331
Tradução original para português brasileiro disponível no catálogo do serviço de streaming Disney Plus.
Último acesso em 18 de julho de 2021. No áudio original: “once upon a time, a single drop of sunlight fell
from heavens, and from this small drop of the sun grew a magic golden flower.”
332
No original: “it had the ability to heal the sick and injured.”
333
No original: “instead of sharing the sun’s gift, this woman, Mother Gothel, hoarded its healing power
and used it to keep herself young for hundreds of years.”
240

2’10”). Após descrever o ritual, que consiste em cantar uma música impondo as mãos
sobre a flor como um padre dando bênçãos, o narrador emite um juízo de valor para a
audiência, estabelecendo sua posição em relação à personagem por ele anteriormente
descrita como “a velha” [old lady, old woman]: “assustador, não?” [creep, right?] (2’38”).

Figura 21: cena introdutória de Gothel, antes de concluir o feitiço, com a flor mágica. Destaque-se sua
expressão de raiva.

A conclusão de que o ritual envolvendo a flor é assustador, dada pelo narrador que
já sabe o desfecho desta história, busca direcionar a percepção do espectador,
sobrepondo-o ao papel do leitor implícito/ narratário. Na prática, há uma busca pela
anuência da audiência, demonstrando uma presunção de que ela tenha a mesma opinião
e visão de mundo que o narrador. Tal efeito de sentido também objetiva persuadir: caso
o espectador discorde do juízo “assustador”, ele será julgado por associação.
O discurso verbal recebe o reforço da visualidade: na cena noturna, cuja única
fonte de iluminação para o rosto de Mãe Gothel é a flor iluminada pela realização do
ritual, a personagem aparece com uma expressão raivosa, com a boca voltada para baixo
e as sobrancelhas arqueadas.

Figura 22: Gothel antes e depois da conclusão da Healing Incantation


241

A letra da música, em si, não traz nenhum efeito macabro:

Flower, gleam and glow


Let your power shine
Make the clock reverse
Bring back what once was mine
What once was mine (2’15”-2”34).

Trata-se de um encantamento simples, no qual há um pedido ao poder da flor para


devolver algo que a encantatriz perdeu e que lhe pertencia. A voz que entoa o canto é
sussurrada, mantendo-se nas notas graves, subindo um pouco ao final do segundo e quarto
versos, sendo que este último, ao ser repetido, desce o tom. Ao longo do canto,
percebemos sua voz rejuvenescendo antes de seu rosto, sendo a principal mudança sonora
ocorrida durante o segundo verso. A transformação física só se completa ao final do
último verso, quando primeiro a pele de Gothel se altera e em seguida seus cabelos
brancos adquirem um tom negro lustroso. Como vemos na figura 22 à direita, na
conclusão do ritual, quando está jovem novamente, ela chega a sorrir por menos de um
segundo, um semblante de olhos fechados que denota satisfação.
A narrativa prossegue para a complicação inicial do enredo, que servirá como o
motivador para o antagonismo de Gothel: a rainha grávida adoece e, para salvá-la, o povo
se une para “procurar um milagre” e encontrar a flor mágica. Soldados encontram-na e,
sob o olhar de uma Gothel oculta, recolhem-na para tratar a rainha. Da flor, é feita uma
infusão que a rainha bebe. Assim, discursivamente temos a conclusão de que Gothel usar
a flor em benefício próprio durante séculos, mantendo-a viva, plantada onde nasceu, é
ruim, egoísta334, “assustador”, ao passo que colher a flor e matá-la para salvar a rainha
grávida é perfeitamente aceitável, pois a rainha e o rei eram amados [beloved] pelo povo.

334
É interessante observar como o público geral adere ao discurso do narrador. Numa postagem em um site
sobre cinema, “Tangled: 10 Reasons Mother Gothel Is The Most Underrated Disney Villain” (2021), a
autora Kacie Lillejord discorre motivos para Gothel ser uma das melhores vilãs (leia-se: mais más) dentre
aquelas da Disney, e um dos itens apresentados, “She’s Incredibly Selfish” [ela é incrivelmente egoísta], é
ilustrado pelo frame de Gothel fazendo seu feitiço com a flor mágica.
242

Figura 23: o rei, pai de Rapunzel, ao saber da doença da rainha

Conforme a Figura 23, a primeira aparição do pai de Rapunzel, feita quando o


narrador explica que a rainha está doente (2010, 1’49”), tem a função de apresentá-lo
como uma personagem simpática ao público, seja através de identificação — sendo o
temor da perda de um ente querido um sentimento razoavelmente universal — seja através
de compaixão, não só por sua situação como por sua expressão facial. Ele é um homem
alto e forte, um rei, portanto poderoso, e ao ser apresentado numa situação de
vulnerabilidade cria um efeito de empatia com o espectador335. Além disso, seu rosto está
iluminado por luz natural, numa cena interna diurna.
Se nos lembrarmos de que a figura da bruxa é originalmente construída em cima
do contraste com suas vítimas, a imagem de Mãe Gothel torna-se ainda mais significativa.
Apesar de inicialmente bem mais velha do que o rei, e presumivelmente mais pobre, de
modo algum parece vulnerável. Ela já se anuncia enquanto antissujeito mesmo antes de
suas ações determinarem seu papel. Além disso, há o contraste bastante tradicional entre
a obscuridade noturna no ambiente exterior, associada a Gothel, e a iluminação diurna no
ambiente interno, no cenário familiar de um quarto, associada ao rei.
A primeira ação de Gothel nesse sentido é invadir o quarto de Rapunzel para
roubar uma mecha de seu cabelo (3’38”), numa cena noturna na qual sua sombra se
projeta sobre o berço da criança e sua voz entoa o canto do ritual. Sua mão envelhecida
com unhas compridas pretas aparece em superclose, enrolando um dedo na mecha que,

335
Parece haver uma tendência, entre as animações dos Estúdios Disney resultantes de uma adaptação de
contos de fadas, de perpetuar um imaginário da monarquia sob um viés positivo muito condizente com os
textos dos panfletos, tratados e peças analisados na Parte I deste trabalho.
243

sob a melodia mágica, ganha uma luminescência dourada como a da flor (3’47”). O corte
seguinte é um superclose do rosto de Gothel, cujas feições estão um pouco envelhecidas,
e novamente destacam-se as sobrancelhas arqueadas, os olhos estreitados e os lábios
ligeiramente virados para baixo, o tipo de expressão facial comum à personagem do vilão.
Ao ser cortada, a mecha seca, tornando-se castanha, o que demonstra a perda de sua
potência mágica. Na iminência de ser pega, Gothel foge com a recém-nascida (4’03”).
Há um corte temporal depois desses eventos, e então o narrador anuncia que, na
torre oculta, “Gothel criou a menina como sua filha” [Gothel raised the child as her own]
(4’13”), e na cena vemos Rapunzel um pouco crescida, sentada cantando a música do
ritual enquanto a Mãe Gothel penteia seus cabelos. A criança pergunta o motivo de não
poder sair, e Gothel responde, num tom que poderia ser descrito como afetuoso, que o
mundo exterior é um lugar perigoso (4’34”). O diálogo dá-se com Gothel explicando os
perigos externos à torre sempre no mesmo tom calmo, por contraste ao ambiente interno,
considerado “seguro”, enquanto penteia os cabelos e, ao fim, a mãe pergunta: “você
entendeu, flor?”, ao que Rapunzel responde com um resignado “sim, mamãe” (4’45”).
Já perto da idade adulta, embora almeje saber mais sobre a vida externa à torre
onde cresceu, Rapunzel mostra-se alegre, extrovertida e esperançosa de convencer Mãe
Gothel a permitir-lhe aventurar-se no mundo exterior por ocasião de seu aniversário — o
que deve demonstrar em algum nível a existência de uma relação amigável e positiva
entre as duas, ao menos em algumas instâncias.
Na apresentação da protagonista nessa fase da vida, sua rotina diária é mostrada
através de uma canção, cuja letra é a seguinte:

7 AM, the usual morning lineup:


Start on the chores and sweep 'til the floor's all clean
Polish and wax, do laundry, and mop and shine up
Sweep again, and by then it's like 7:15.
And so I'll read a book
Or maybe two or three
I'll add a few new paintings to my gallery
I'll play guitar and knit
And cook and basically
Just wonder when will my life begin?
Then after lunch it’s puzzles and darts and baking
Paper mache, a bit of ballet and chess
Pottery and ventriloquy, candle making
Then I’ll stretch, maybe sketch, take a climb,
Sew a dress!
244

And I’ll reread the books


If I have time to spare
I’ll paint the walls some more,
I’m sure there's room somewhere.
And then I’ll brush and brush,
and brush and brush my hair
Stuck in the same place I’ve always been.
And I’ll keep wonderin’ and wonderin’
And wonderin’ and wonderin’
When will my life begin?
And tomorrow night,
Lights will appear
Just like they do on my birthday each year.
What is it like
Out there where they glow?
Now that I’m older,
Mother might just
Let me go… (6’11-8’17”).

Rapunzel está realizando todas as atividades enumeradas pela música, primeiro


empolgada, algo traduzido visualmente por suas ações rápidas e cortes abruptos de cena.
Porém, por volta da metade da música, no verso “e vou reler os livros” [and I’ll reread
the books] (7’14”), ela se mostra cada vez mais entediada com a repetição, seus
movimentos tornam-se mais lentos enquanto sua expressão passa de alegre a aborrecida,
e as tomadas alongam-se mais. Ou seja, apesar de na prática Rapunzel ser uma prisioneira
na torre, seu comportamento não reflete esse sentimento. Quando Gothel aparece, a filha
já fez todas as tarefas, coloca uma escova na mão da mãe para ela a pentear, e canta a
música do ritual em ritmo acelerado, como com pressa de chegar ao assunto sobre o qual
quer tratar: seu pedido para a mãe levá-la para ver as luzes (lanternas que o rei, a rainha
e o povo lançam aos céus todo ano na ocasião de seu aniversário, embora ela não saiba).
Gothel primeiro tenta enganá-la, falando tratar-se das estrelas, e — quando Rapunzel a
prova errada através de suas pinturas do céu noturno —, repete argumentos relativos à
segurança da filha, antes de levantar a voz mediante sua insistência. Em suma, não age
muito diferente de qualquer mãe de adolescente.
É importante discutir todo esse contexto narrativo porque a vilania de Gothel é
mais nuançada (do ponto de vista da protagonista) do que em outros antissujeitos de obras
infantis, inclusive as anteriores dos Estúdios Disney. Mesmo considerando vilãs
tradicionais que num primeiro momento buscam se passar por aliadas das protagonistas,
como Ursula em A Pequena Sereia ou a madrasta da Branca de Neve, nenhuma tem
245

efeitos tão positivos no ser da protagonista quanto Gothel. Rapunzel é, afinal de contas,
uma pessoa espirituosa e afetuosa, imediatamente associada ao eixo do bom-belo-jovem.
Nos contos de fadas é comum existirem filhas extremamente bondosas de mães
extremamente perversas — e provavelmente Enrolados recorre a esse imaginário —,
porém, a partir do momento em que a narrativa afasta-se das personagens-tipo, é-nos
permitida uma leitura menos rígida dos papéis-temáticos que desempenham. Para todos
os efeitos, Gothel apresenta-se como uma boa mãe que educou uma boa filha, apesar das
circunstâncias sombrias da “adoção”, das quais só o espectador está ciente.
Exploremos um pouco mais essa questão da maternidade, pois a bruxa histórica
estereotípica constrói-se sobre o papel da anti-mãe (como vimos, no sentido de estar em
geral associada a crimes contra a reprodução e por ser, no mais das vezes, viúva ou má
esposa). Ora, em nenhum momento discute-se o estado civil de Gothel, mas é muito claro
que ela não tem um homem em sua vida, e sua família com Rapunzel não é tradicional.
A filha nunca pergunta sobre a figura paterna, provavelmente porque Gothel não teria
posto esse assunto em pauta e não havia mais ninguém para fazê-lo. De todo modo, Gothel
é vilanizada também a partir de sua condição de mãe solteira, mesmo se isso não se dá no
nível discursivo; quase todas as princesas Disney têm ou ambas as figuras parentais (caso,
aliás, da própria Rapunzel, como ela vem a descobrir, mas também de Merida, em
Valente, e Aurora em A Bela Adormecida), ou apenas o pai (Ariel em A Pequena Sereia,
Jasmine em Aladdin, Bela em A Bela e a Fera — e nesse caso a mãe presumivelmente
morta nunca chega a ser mencionada) —, ou apenas uma madrasta terrível que as odeia,
mantendo os moldes dos contos de fadas nos quais são inspirados (a Cinderela da
animação homônima e a Branca de Neve, já citada anteriormente).
No caso específico de Rapunzel, obra tão mais recente, Gothel incutiu-lhe valores
ainda tidos por válidos em nossa sociedade, como não confiar em estranhos, e nem mesmo
isso é verdade no enredo: nenhum desconhecido se mostra malévolo para a protagonista,
além daqueles que Gothel põe em seu caminho.
Por exemplo, Rapunzel foge da torre com um ladrão, Flynn Rider — seu par
romântico e narrador em voice-over no início em sumário do filme —, que revela ter todas
as boas características dos príncipes mais tradicionais, assemelhando-se a Aladdin pelo
papel temático de criminoso engendrado pela pobreza, um anti-herói aparente.
Numa taverna de valentões e bandidos, os modos de Rapunzel permitem-lhes
revelar aspectos ocultos que lhes conferem alguma profundidade (um é mímico; outro,
pianista; um bandido alto e robusto e mal-encarado revela-se colecionador de miniaturas
246

de unicórnios). Estes acabam ajudando Rapunzel e Flynn Rider em algumas de suas


aventuras.
Tal quebra de expectativa em relação a um cenário recorrente em filmes que
retratam períodos medievais (a taverna), embora interessante do ponto de vista da
narratividade, dá-se à custa de Gothel. Ela tem razões egoístas para haver ensinado a
Rapunzel que no mundo exterior à torre poderiam existir pessoas capazes de lhe fazer
mal; todos os perseguidores da protagonista são, na verdade, guardas do palácio real que
na realidade perseguem seu par romântico a fim prendê-lo por ele ter roubado a coroa, e
dois outrora parceiros do anti-herói (gêmeos ruivos, mas com nariz adunco bastante
estilizado, algo a ser comentado adiante), enviados pela própria Gothel a fim de provar à
filha os perigos do desconhecido.
Todas as demais personagens que Rapunzel encontra no percurso em busca de si
mesma são benévolas, numa espécie de inversão da moral do conto Chapeuzinho
Vermelho, de Perrault. Gothel acaba pairando como a única representante do mal
absoluto. Ela leva Rapunzel a crer que Flynn quer de volta coroa roubada, provocando
uma rusga entre o casal, atuando novamente como antissujeito mesmo ao tomar uma
atitude condizente com o papel-temático da boa mãe. Quando encontra Rapunzel na
floresta, num momento em que Flynn se ausenta, e esta lhe diz que encontrou alguém,
Gothel responde: “Sim, um ladrão procurado. Estou orgulhosa.” [yes, the wanted thief;
I’m so proud] (56’51”), ironia que bem se poderia esperar de qualquer mãe, não de uma
vilã de contos de fadas.
Esses dois encontros de Rapunzel com Gothel dão-se em duas noites diferentes.
Na primeira, Gothel busca persuadir a filha a voltar com ela, reprisando a canção “Sua
mãe sabe mais” [Mother knows best]. Quando Rapunzel se recusa a acompanhá-la, Gothel
volta-se a outro tipo de manipulação, no qual leva a filha a crer que Flynn fugiu com a
coroa e a abandonou. No início da primeira cena e ao final da segunda, Gothel está num
cenário noturno de floresta, numa penumbra de cores frias (azul, naquela; verde, nesta).
Na primeira ocasião, desaparece ao final, com uma expressão raivosa, encerrando a
discussão com o verso que dá título à música; na segunda, apoia a lanterna no chão e abre
os braços como uma mãe disposta a consolar o sofrimento da filha, um sofrimento que
apenas o espectador sabe ter sido causado por Gothel.
247

Figura 24: justaposição de cenas da reprise da canção “Sua mãe sabe mais”, quando Gothel falha em
persuadir Rapunzel a acompanhá-la de volta à torre com ela

Figura 25: justaposição de cenas posteriores à conclusão do plano de Gothel, quando Rapunzel crê ter
sido abandonada por Flynn

Observemos a repetição do enquadramento nas Figuras 24 e 25: nas imagens à


esquerda, Rapunzel está em primeiro plano, embora na da Figura 24 (acima) esteja em
foco, bem iluminada por uma cor quente, e tenha uma expressão alegre, em contraste com
Gothel, na parte escura do quadro, semioculta por um capuz, portanto no eixo oposto ao
de Rapunzel. Enquanto isso, na imagem da Figura 25 (abaixo), Rapunzel já sabe
anteriormente onde a mãe está, não sendo apanhada de surpresa. Gothel está em foco ao
fundo, com uma lanterna que, junto com o ambiente azulado do entorno, causa o efeito
de um esquema de cores tendendo ao esverdeado, enquanto Rapunzel aparece no eixo
noturno em desfoco. Aqui o efeito causado por contraste é o da saída de Rapunzel do
mundo da verdade para o da mentira. Gothel faz parecer ter o poder de trazê-la à luz, mas
sua lanterna é fraca e não ilumina de verdade, de modo que, para o espectador, a oferta
de abraço de Gothel, na imagem à direita, atua como um desvio do caminho bom, uma
imersão no eixo do mal, do qual Rapunzel claramente não faz parte.
Depois de bem-sucedida a sua manipulação dos eventos, Gothel consegue levar
Rapunzel de volta para a torre, e lá lhe diz que tentou avisá-la sobre a maldade do mundo.
Conta que está preparando um jantar de que a filha gosta e, como esta não responde e
continua cabisbaixa, conclui: “o mundo é egoísta e cruel. Se encontra o menor sinal de
248

sol, ele o destrói”336 (1h15’44”). Neste caso, a destruição do sinal solar havia sido feita
pela própria Gothel; a cena musical anterior à da Figura 26 (abaixo) é iluminada pelas
lanternas do aniversário da princesa:

Figura 26: cena anterior à intervenção de Gothel e dos inimigos de Flynn

Como vemos, Rapunzel, mesmo em cenas noturnas, costuma aparecer iluminada


por cores quentes — ou emanando, ela mesma, a partir de seu cabelo solar, a luz
necessária.
O maior problema de Gothel, então, é o espectador o tempo todo sabê-la má, pois
cada uma de suas palavras e ações são fruto de sua malevolência e calculismo, mesmo se
a princípio parecerem boas, e toda a construção de cena corrobora essa leitura. Uma parte
de sua perversidade traduz-se visualmente, em sua expressão facial na qual predominam
sorriso de lado, olhos estreitados e uma sobrancelha arqueada; em suas próprias feições,
belas, mas exageradas ao estilo camp337. Ela também veste roupas luxuosas num tom
vinho, dificilmente acessíveis a alguém de fora da nobreza na época retratada na obra. Ou
seja, não é uma beleza “fresca”, como a da jovem Rapunzel, mas falsa e forçada através
da maquiagem e do artifício mágico que preserva sua juventude. A imagem de Gothel,
assim, é uma espécie de retrato de Dorian Gray (a personagem de Oscar Wilde) no qual
a beleza se mantém, mas é corrompida pela maldade interior, que de algum modo acaba
por se mostrar no cenário, no enquadramento, no tom grave de suas canções e de seu
timbre de voz, todos opostos a Rapunzel, Flynn, o rei e a rainha.

336
No original: “the world is dark, and selfish, and cruel. If it finds even the slightest ray of sunlight, it
destroys it.”
337
De acordo com Susan Sontag (1964, p. 1), a essência do camp é “seu amor pelo não-natural, pelo
artificial e o exagerado”, onde existe “um exagero de características sexuais e maneirismos de
personalidade” (p. 4). Para a ensaísta, “perceber o camp num objeto ou numa pessoa é entender o ser-
interpretando-um-papel” (idem).
249

Outro aspecto vital a se ressaltar na composição da maldade pela aparência de


Gothel são os traços físicos codificados como judeus: os cabelos armados, pretos e bem
cacheados, o nariz aquilino, principalmente338, que se opõem aos cabelos loiros e lisos de
Rapunzel, marca da magia benévola de cura sobre a qual tem poder, em decorrência da
flor mágica. Sua magia tem uma visualidade solar, com capacidade de iluminar tudo
mesmo em cenários escuros e/ou noturnos. Trata-se de um poder que, mesmo se
executado secretamente, tem o efeito de, a um modo bem literal, pôr tudo às claras. Já
Gothel, embora mostre a Rapunzel sua verdadeira natureza numa cena diurna (efeito
provocado pela última), só lança feitiços à noite.
Gothel não é descrita bruxa, apesar de se enquadrar no papel por tudo o que vimos
analisando aqui, e sem dúvida podermos lê-la dessa maneira. Por um lado, a única magia
que a vemos executar é aquela envolvendo a flor. Depois disso, Rapunzel é o único ser
de fato mágico. No entanto, como já comentado na Parte I, a heroína não tem poderes por
nada que tenha feito; ela é involuntariamente assim desde seu nascimento. Despida de
deliberação, nesse sentido, pode pertencer ao eixo do bem. Gothel, por sua vez, embora
apareça fazendo magia menos vezes do que Rapunzel, realiza o feitiço mais ativamente,
no sentido de que a canção é sua. Foi ela quem divisou o modo de operacionalizar o uso
do poder mágico da flor dourada, que passa para Rapunzel através do chá ingerido pela
rainha. Como comentado pela pesquisadora Lisa Duffy,

a Disney usou a estética trabalhada da feminilidade exagerada para


marcar mulheres mágicas como más. Personagens femininas ‘boas’
possuem uma beleza natural, que esconde qualquer esforço em alcançar
sua aparência. Mulheres más devem construir sua beleza, empregando
maquiagem óbvia e roupas dramáticas em sua malfadada tentativa de
adquirir uma feminilidade desejável. A bruxaria auxilia em suas
transformações e fornece uma camada a mais de artificialidade
conforme essas mulheres comandam forças não-naturais a fim de obter
sua juventude e atratividade. É essa óbvia falsidade que as marca como
camp, existindo fora dos ideais hegemônicos da sociedade339 (2019).

338
Não é possível determinar em qual nível os profissionais de Hollywood têm consciência do
antissemitismo perpetuado imageticamente em tantas obras filmográficas, mas é bastante comum vilões e
anti-heróis terem essas feições, enquanto protagonistas de heroísmo tradicional são loiros e têm olhos
claros. Nos contos dos irmãos Grimm, João e Maria aparecem ilustrados como crianças bonitas de cabelo
claro, enquanto a bruxa apresenta características semíticas. Narizes aquilinos e aduncos são mais frequentes
em vilões e personagens tidos por feios (professor Snape, em Harry Potter, Kylo Ren/ Ben Solo em Star
Wars, episódios 7, 8 e 9), juiz Frollo em O corcunda de Notre Dame, a bruxa da Branca de Neve, depois
de transformada.
339
No original: “Disney had used the crafted aesthetic of exaggerated femininity to mark magical women
as evil. “Good” female characters possess a natural beauty, one which conceals any effort taken in achieving
their look. Evil women must construct their beauty, employing obvious makeup and dramatic clothing in
250

Embora em seu excelente artigo Duffy não analise a personagem de Gothel, sua
maneira de associar a estética camp à composição das bruxas ainda nos interessa. A
pesquisadora lê — motivadamente — o queer-coding dessa estética, interpretando a
ausência de um interesse amoroso masculino dessas vilãs como uma forma de acenar para
a homossexualidade disforizada. Sem negar os méritos dessa análise, afinal aponta na
contemporaneidade tudo o que a análise da construção histórica da bruxa já nos havia
indicado, antes de haver uma homofobia implícita nessas representações há um sexismo
explícito na oposição entre as feminilidades conforme e não-conformes. Reforça-se
nessas obras audiovisuais do final do século XX e início do XXI a transgressão
sociocultural contida na figura da bruxa histórica, construída discursivamente em tratados
e panfletos.
Duffy discute que “a sexualidade desenfreada da bruxa é a raiz de sua maldade e
é apresentada através da ausência de um par romântico. É uma figura solitária, cuja
energia libidinosa não tem lugar apropriado para ser catexizada”340 (2019, p. 2). Segundo
a autora, isso a alinha à homossexualidade, o que decerto pode ser inferido, mas não tem
apoio no discurso, e sim no contexto de produção e recepção da obra. Aqui, ela apresenta
um argumento análogo àquele que, no século XVI, associava a sexualidade da bruxa ao
Diabo, aquele que de algum modo satisfaria suas necessidades carnais fora do eixo
matrimonial, numa espécie de anticasamento.
A conclusão mais imediata é que a imagem da bruxa permanece atrelada à
transgressão das convenções sociais de feminilidade e em algumas obras esse efeito será
atrelado ao eixo euforizado, enquanto em outras será disforizado341.
A discussão entre esses opostos de ideal feminino, em Enrolados, com seus eixos
do mágico e do não-mágico, da agência contra a passividade, da deliberação contra o
natural, torna-se ainda mais explícita no confronto final entre Gothel e Rapunzel. Aquela
aprisiona Flynn para ameaçar esta, que escolhe se render em troca da liberdade do herói.
O clímax dá-se quando Flynn, à beira da morte após ser apunhalado por Gothel, usa um
estilhaço do espelho quebrado para cortar o cabelo de Rapunzel. Esse momento constitui

their doomed attempt to attain a desirable femininity. Witchcraft aids in their transformations and provides
another layer of artificiality as the women harness unnatural forces to secure youth and attractiveness. It is
this obvious falseness which marks these figures as camp, existing outside society’s hegemonic ideals”.
340
No original: “The witch’s unbridled sexuality is the root of her evil and is presented as unnatural through
her lack of romantic partner. She is a solitary figure whose libidinous energy has no appropriate place to be
cathected”.
341
O artigo de Lisa Duffy comentado acima discorre sobre a contradição e inovação da personagem Elsa,
de Frozen. Ela é uma bruxa poderosa, tem agência e usa uma estética tendendo à camp, mas permanece no
eixo do bom-belo-jovem-verdadeiro.
251

um autossacrifício, pois imediatamente seus cabelos acastanham-se, perdendo a potência


mágica. Para Rapunzel, tal perda converte-se em liberdade, pois sem o artifício de seus
cabelos dourados Gothel envelhece e cai da torre, chegando ao chão já transformada em
pó. As lágrimas da protagonista provam conter o efeito mágico da cura, ao salvarem Flynn
da morte numa cena, novamente, iluminada nos tons solares a ela relacionados.
No conflito, subjaz a vitória do artificial sobre o inerente à personagem, pois
Rapunzel fica incapaz de lançar qualquer magia “ativa”, isto é, através do feitiço cantado.
Existe a pureza da boa intenção, do triunfo do amor romântico heterossexual, que
resultará num casamento e na manutenção do status quo, totalmente euforizado com a
volta de Rapunzel para o reino e o reencontro com seus pais, que acolhem Flynn como
membro da família.

4.3. O universo de Oz criado por L. Frank Baum e suas muitas releituras


O romance Wicked: the life and times of the Wicked Witch of the West (1995), de
Gregory Maguire, mais conhecido por ter dado origem ao musical Wicked: the untold
story of the witches of Oz (2003), composto por Stephen Schwartz, é uma releitura da
obra infantil O Mágico de Oz (1900), de L. Frank Baum e, mais precisamente, feita a
partir da icônica adaptação fílmica de 1939 sob a direção de Victor Fleming. Como o
próprio título da obra de Maguire indica, a releitura imagina uma narrativa de origem para
a Bruxa Má do Oeste.
Esta, não nomeada de nenhuma outra maneira na obra original de Baum, onde
aparece apenas em um dos vinte e quatro capítulos, não passando de um dos muitos
antissujeitos do percurso narrativo de Dorothy, é alçada ao papel de protagonista no
romance de Maguire, sendo batizada Elphaba (ou Elphie, como é apelidada por Glinda,
um fator de humanização para uma figura antes inteiramente monstrificada).
Quando afirmo que a releitura de Maguire é feita a partir do filme de 1939 e não
do livro de L. Frank Baum, trata-se de um fato autoevidente: toda a trajetória de Elphaba
parte do fato de sua pele ser verde, algo que a marca como um Outro e a torna vítima de
bullying, desconfiança e outras formas de aberta hostilidade. A Bruxa Má do Oeste só é
verde no filme de 1939, em grande parte por causa da então nascente Technicolor,
possibilitando uma obra colorida, de paleta vibrante, para os parâmetros da época ainda
dominada pelo cinema preto-e-branco. No livro de Baum, o criador da personagem, não
há descrição alguma sobre pele verde; ela só é caolha, velha e feia (2014, p. 116 e p. 118),
252

e os desenhos da edição original não têm nenhuma hachura ou outro recurso para designar
uma coloração distante das demais personagens. Nestes, “a bruxa aparece de maneira
risível, com um grande nariz pontudo, meio careca, com uma espécie de trança meio
espetada e usando um tapa-olho” (CHIOVATTO, 2017, p. 113).

Figura 27: a Bruxa Má do Oeste, conforme desenhada pelo ilustrador W.W. Denslow para a edição
original do livro

Distanciando-se dessa imagem, o livro de Maguire inicia a narrativa com um


longo prólogo contando a história do nascimento de Elphaba: as condições paupérrimas
de sua mãe, de origem abastada e empobrecida pelo casamento com um missionário
religioso, frequentemente deixada sozinha por ele no casebre afastado de tudo na região
mais pobre de Oz. O pai da menina não é o marido da mãe, embora ele creia que sim, mas
um viajante que lhe deu uma estranha poção.
Elphaba nasce verde, com dentes afiados (inclusive arrancando um pedaço do
dedo da parteira), e não é benquista por ninguém, nem mesmo pela mãe. Já nesse início
percebemos o recurso a uma ideia muito antiga, anterior mesmo ao cristianismo: uma mãe
transgressora (adúltera) gera uma filha de aparência repulsiva à comunidade, de modo
que a anomalia física externalize o pecado dos pais. As pessoas de seu convívio, é claro,
tomarão sua aparência como transbordamento da corrupção interior, e daí advém boa
parte de seus problemas.
A Elphaba jovem entra para a universidade de Shiz, onde Glinda, uma espécie de
patricinha loira mágica, é sua colega de quarto e acaba tornando-se sua amiga. A trama
253

envolve Elphaba descobrindo-se filha do Mágico de Oz e, ao mesmo tempo, todas as suas


ações benevolentes acabam resultando em algo errado, pelo fato de as pessoas ao seu
redor esperarem o pior dela, motivadas por sua aparência. Ou seja, vítima de preconceito,
é enquadrada como vilã. Por exemplo, é sua a culpa da covardia do Leão, pois o defendeu
quando ele era filhote, não lhe dando espaço para se impor e adquirir a confiança de falar
por si mesmo. Além disso, ao fazer um feitiço para proteger seu interesse amoroso,
Fiyero, da tortura infligida por guardas do Mágico, acaba transformando-o no Espantalho.
No musical, esse momento acontece durante uma música solo de Elphaba, No good deed.
Sua letra reflete o momento em que a (anti-)heroína aceita sua sina de vilã:

Eleka nahmen nahmen


Ah tum ah tum eleka nahmen
Eleka nahmen nahmen
Ah tum ah tum eleka nahmen
Let his flesh not be torn
Let his blood leave no stain
Though they beat him
Let him feel no pain
Let his bones never break
And however they try
To destroy him
Let him never die
Let him never die
Eleka nahmen nahmen
Ah tum ah tum eleka nahmen
Eleka nahmen nahmen
Ah tum ah tum eleka… eleka…
Ugh! What good is this chanting?
I don't even know what I'm reading
I don't even know what trick I ought to try
Fiyero, where are you?
Already dead or bleeding?
One more disaster
I can add to my generous supply?
No good deed goes unpunished
No act of charity goes unresented
No good deed goes unpunished
That’s my new creed
My road of good intentions
Led where such roads always lead
[…]
One question haunts and hurts
Too much, too much to mention
Was I really seeking good
254

Or just seeking attention?


Is that all good deeds are
When looked at with an ice-cold eye?
If that’s all good deeds are
Maybe that’s the reason why
No good deed goes unpunished
All helpful urges should be circumvented
No good deed goes unpunished
Sure, I meant well
Well, look at what well-meant did
All right, enough
So be it, so be it then
Let all Oz be agreed
I’m wicked through and through
Since I cannot succeed
Fiyero, saving you
I promise no good deed
Will I attempt to do again
Ever again
No good deed will I do again! (SCHWARTZ, 2003).

Esse momento de introspecção tem a função de deixar o clímax em suspenso,


sendo acompanhado de uma melodia dramática, e a interpretação da atriz no papel é
direcionada de modo a transmitir desespero, certa aversão a si mesma e a resignação que
pontuam a letra. O que está acontecendo nessa cena é que a narrativa imposta sobre a
protagonista afeta sua autoimagem, até ela admiti-la como parte de sua identidade.
Relativamente ao enredo, vemos Elphaba tentando lançar um feitiço para salvar o
amado Fiyero e percebendo, a meio caminho, que não tem certeza do que está fazendo (é
uma aluna promissora, mas ainda não proficiente em todas as formas de magia) e que
existe a possibilidade não apenas de falhar como de produzir efeitos colaterais, à
semelhança do ocorrido em suas tentativas anteriores de ajudar outras pessoas. A questão
central, então, está na autoanálise de Elphaba ao se perguntar se desejava fazer o bem ou
chamar atenção e concluir que talvez por haver um interesse egoísta por trás do altruísmo
“nenhuma boa ação passa impune” [no good deed goes unpunished]. Ela acaba por decidir
que, após salvar Fiyero, não tentará mais fazer o bem.
Elphaba não se torna má como a personagem na obra original de Baum, cuja
maldade Maguire procura ressignificar. Contudo, resigna-se à imagem pública de bruxa
má como sinal de desistência de mudá-la e uma espécie de autopenitência, que ao final
se converterá em libertação das expectativas de terceiros. A conclusão dessa jornada traz
Elphaba isolando-se da vida em sociedade, como a estereotípica bruxa da floresta, porém
255

tendo um final “feliz” por estar com Fiyero-tornado-Espantalho, alguém que a admira em
suas qualidades apesar de sua aparência incomum.
O motivo do amor romântico como a linha definidora dos limites entre a mulher
boa e a mulher má perpassa vários tipos de personagens pelas literaturas ocidentais e
parece especialmente presente nas obras ditas “comerciais”, ou seja, destinadas ao
público mais amplo possível. Nesse contexto, a figura da bruxa é um terreno fértil para
ilustrar a propagação desse motivo em obras contemporâneas, em particular as
ultracontemporâneas (já do século XXI), sejam audiovisuais, sejam literárias.
A Elphaba de Maguire ganhou essa dimensão romântica em relação à Bruxa Má
do Oeste de Baum. Esta, antissujeito de um único episódio de uma obra infantil,
apresenta-como a bruxa estereotípica mais clássica, embora sob alguns aspectos desafie
o estereótipo342.
O mundo de Oz, todavia, muito presente no imaginário estadunidense, é
continuamente relido e ressignificado, e as obras posteriores fazem referências não só à
original como àquelas que as antecederam e de alguma forma passaram a integrar esse
grande intertexto.
Assim, no filme Oz: mágico e poderoso (2012, dir. Sam Raimi), encontramos
características das obras literárias O Mágico de Oz e Dorothy e o Mágico em Oz (1908,
sendo este último o quarto livro da série de Baum, aquele que contribui para a narrativa
de origem do Mágico, com seu passado circense e sua primeira ida a Oz num balão), do
filme de 1939 (uma remissão principalmente visual, saindo das imagens branco-e-pretas
do Kansas para as coloridas de Oz343), de Wicked, tanto o romance quanto o musical (de
onde vem a ideia de dar à Bruxa Má do Oeste um interesse amoroso e o conflito interno
entre ser e/ou parecer boa ou má).
Exploremos este último aspecto, pois é vital à discussão sobre o amor romântico
como definidor do caráter da mulher e da bruxa. Elphaba parece-nos muito mais alinhada
ao eixo do bem — especialmente por lutar contra preconceitos limitadores e os efeitos
colaterais imprevistos de seus feitiços não serem, de fato, culpa sua — e em grande parte
isso encontra respaldo na validação de seu interesse amoroso Fiyero, com quem tem um
final feliz mesmo após abraçar a imagem pública da bruxa má. Em contrapartida,
Theodora — o nome da versão da Bruxa Má do Oeste em Oz: Mágico e Poderoso — é
uma moça emocionalmente frágil, jovem-bela-boa, irmã mais nova da então governante

342
Discorri sobre isso na seção a seu respeito de minha dissertação de mestrado (CHIOVATTO, 2017).
343
Discuti sobre isso em um artigo (CHIOVATTO, 2014).
256

da Cidade das Esmeraldas, Evanora, alguém que a todo momento questiona a bondade de
Theodora, referindo-se a uma suposta maldade interior que esta luta para manter oculta.
Isso de fato se concretiza ao final do filme, e o catalisador da mudança é justamente uma
frustração de ordem romântica.
Na narrativa, acompanhamos principalmente o percurso do mágico Oz,
encontrado por Theodora após sua acidental chegada à Terra de Oz num balão, ali trazido
por um furacão. Theodora e o Mágico encantam-se um pelo outro e chegam a manter
relações sexuais. Enquanto ela passa a falar em casamento, ele deixa claro (através de
expressões faciais vistas pelo espectador e não por ela) que a natureza desse encantamento
mútuo divergia em suas respectivas percepções: para ela, é de ordem romântico-afetiva;
para ele, meramente física.
Quando o Mágico conhece Glinda e apaixona-se por ela, deixando claro que não
tem intenções de manter um relacionamento duradouro com Theodora, esta passa do
papel de adjuvante ao de antissujeito. Glinda é exaltada, narrativa e discursivamente, por
se opor ao governo tirânico de Evanora, a Bruxa Má do Leste, e heroicizada também por
se apresentar como o interesse amoroso do (anti-)herói, tratado como um prêmio à
personagem feminina mais merecedora. Como Lisa Duffy comenta em relação às
animações do estúdio,
as protagonistas femininas dos filmes da Disney tendem a ser
“altamente arquetípicas”, exemplos de bondade e gentileza simples,
incorporando ideais dominantes de aceitabilidade e frequentemente
servindo como figuras passivas em suas próprias histórias. Embora
todas essas jovens inevitavelmente terminem seus filmes aconchegadas
num romance heterossexual, elas se abstêm do desejo sexual e são
sempre retratadas como castas e virginais. O desejo, em filmes
animados da Disney, configura uma força destrutiva, brandida apenas
por aquelas que existem fora das normas sociais344 (2019, pp. 1-2).

Observa-se a mesma lógica em Oz: mágico e poderoso, no qual mesmo Theodora


sendo jovem, o desejo a conduz à desilusão que a levará ao mal, enquanto Glinda,
representando a mulher virginal, não se deixa envolver fisicamente pelo Mágico, de forma
que seu relacionamento amoroso com ele se estabeleça durante todo o filme num plano

344
No original: “The female protagonists of Disney films tend to be ‘highly archetypal’ examples of simple
goodness and kindness, embodying dominant ideals of acceptability and often serving as passive figures in
their own story. While these young women will all inevitably end their films ensconced in a heterosexual
romance, they eschew sexual desire and are always portrayed as chaste and virginal. Desire in Disney
animated features is a destructive force, wielded only by those who exist outside social norms.”
257

de castidade, algo reforçado por suas vestes brancas (as quais, no livro de Baum, apenas
indicavam sua natureza de bruxa).
Theodora, rechaçada, escolhe ser má, encorajada pela irmã, como forma de
suplantar a dor da rejeição. Mesmo se o início de seu percurso suscita simpatia, a narrativa
logo a torna antipática ao espectador, à medida que ela se transforma na bruxa
estereotípica — e de maneira bem literal. Ela fica verde; seu nariz e queixo, anormalmente
protuberantes; suas vestes, pretas; e o chapéu vinho é ativamente transformado naquele
pontiagudo preto das ilustrações mais estereotípicas. Além disso, suas ações passam a
servir apenas a propósitos ruins, em parte destinados à vingança, mas não se resumindo a
isso. Reaviva-se o adágio setecentista adaptado de William Congreve, “Hell hath no fury
like a woman scorned” [não há fúria no Inferno como (a de) uma mulher rejeitada].
Desse modo, o aprofundamento da paisagem interior da personagem esvazia-se,
visto sua afiliação a um motivo tão recorrente345.

345
Percurso semelhante de reabilitação da imagem da bruxa vilanesca foi feito com a personagem Malévola,
de A Bela Adormecida (1959, dir. Clyde Geronimi, Eric Larson, Wolfgang Reitherman e Les Clark). Na
releitura da história, agora contada no filme homônimo de sua tradicional vilã (2014, dir. Robert
Stromberg), somos apresentados à fada Malévola (curiosamente assim batizada) e à sua trajetória até o
momento no qual aparece no batismo da princesa Aurora e a amaldiçoa com o sono eterno a menos que o
beijo de um amor verdadeiro a desperte. Essa trajetória perpassa, como outras, uma desilusão amorosa: o
rei, pai de Aurora, tinha um relacionamento com Malévola e traiu-a pela oportunidade de se casar com a
então princesa do reino. Ele corta as asas de Malévola, fonte de boa parte de seu poder — numa possível
alusão ao Sansão bíblico e seus cabelos cortados por Dalila — e lança-a ao caminho de amargura que a
tornará algo mais próximo à Malévola da animação. No caso do filme Malévola, há uma inversão no eixo
do maniqueísmo, pois o rei perde a nuance para encarnar o mal absoluto, enquanto a própria Malévola
acorda Aurora com um beijo na testa. Aqui, o amor verdadeiro é o maternal, aquele resultante do
conhecimento e não de uma atração à primeira vista, e a forma como ele se constrói merece uma análise
detida, talvez num futuro artigo.
258

Capítulo 5
Releituras dos estereótipos clássicos da bruxa na atualidade

A bruxa ainda pode resgatar a ideia do feminino não-conforme de maneira


disforizada, como demonstrado no capítulo anterior, embora as produções atuais tenham
se voltado para sua euforização, deslocando o eixo da alteridade da bruxa para o sistema
que a enxerga como transgressora. Dentre os muitos romances sobre bruxas que li
ultimamente, todos trabalhavam esse aspecto de alguma maneira, e discutirei alguns deles
em artigos futuros.
Por exemplo, a alta fantasia346 Uprooted (2015), de Naomi Novik (1973), traz uma
jovem escolhida para servir o Dragão, mago e senhor feudal que protege suas terras e o
povo que nela habita dos perigos da floresta, uma entidade viva que cresce, disposta a
engolir os assentamentos humanos. A protagonista, Agnieshka, revela-se uma bruxa com
incríveis habilidades de cura, capaz de entender e empregar as confusas anotações de Jaga
(referência à bruxa Baba Yaga, figura folclórica presente na Rússia e países vizinhos da
Europa oriental), incompreensíveis para o Dragão, cuja forma de manipular magia o
inscreve no estereótipo do mago erudito, academicista. Embora resgate a ideia de bruxa
no feminino enquanto sinônimo de curandeira da floresta guiada pela intuição e
conhecimentos transgeracionais, enquanto o bruxo no masculino apresenta-se
inicialmente como mentor culto, o percurso narrativo do sujeito atorializado por
Agnieshka alça-a a uma esfera de igualdade à medida que ela transforma seus palpites e
desventuras em conhecimento sistematizado, e vence o “mal” da floresta de forma
definitiva ao compreender sua origem. Ela primeiro entra no sistema e age em
conformidade antes de percebê-lo insuficiente e subvertê-lo.
Seguindo outro caminho, a obra A Discovery of Witches (2011), de Deborah
Harkness (1965), uma fantasia centrada num mistério que envolve o romance entre uma
bruxa e um vampiro milenar, apresenta a protagonista Diana Bishop, descendente de uma
das bruxas condenadas em Salém, como uma acadêmica, professora universitária,

346
O pesquisador Bruno Anselmi Matangrano faz excelentes considerações sob gêneros literários insólitos
em diversos artigos. Aqui, uso sua definição de alta fantasia, na qual “é comum a criação de um imaginário
próprio, com seu conjunto de mitos, lendas, religiões, bem como um passado histórico, artístico e cultural.
Esse imaginário se constrói a partir de algum contexto real, mas ao mesmo tempo delineado através de uma
ruptura e de uma emulação, no intuito de criar algo novo” (2019, p. 2). A alta fantasia é também chamada
de “fantasia imersiva”, que “diz respeito à substituição do mundo primário [o mundo natural] pelo
secundário [o inteiramente fictício], permitindo ao leitor mergulhar, diretamente e sem aviso prévio, em
uma realidade diferente sem que essa cause qualquer tipo de estranheza (NOGUEIRA FILHO, 2013, p.
67).
259

historiadora especializada em textos sobre alquimia da virada da Idade Média para o


início da Idade Moderna. Embora o amor romântico reduza bastante o potencial de Diana,
por causa da forma como é conduzido, o livro é interessante pela maneira como reúne
referências históricas à alquimia e à bruxaria, medicina moderna, mitologia grega (afinal,
a protagonista é batizada a partir da deusa romana da caça que, no senso comum,
sobrepõe-se à divindade feminina supostamente louvada por bruxas desde a Antiguidade)
e tradições diversas acerca da figura do vampiro e de demônios. A dedicação de Diana ao
protagonista Matthew, que por vezes se exprime na forma de submissão, pode não ser
exatamente uma representação idealizada do feminino independente e contraventor —
mas decerto interessa para uma análise dedicada no que tange à figura da bruxa, pois não
é costumeiro vê-la no papel de esposa tendo de equilibrar discussões de âmbito
doméstico, insistindo em sua perspectiva em algumas e simplesmente cedendo naquelas
que não julga valer a pena. Sob alguns aspectos, ela se sobrepõe ao papel temático da
dona de casa ao conjugar dificuldades de relacionamento e uma carreira profissional, além
de problemas de outras instâncias que, numa obra de viés fantástico, se manifestam em
aventuras de natureza mágica.
Outro romance com uma representação interessante da bruxa é a fantasia histórica
The Factory Witches of Lowell (2020), de C.S. Malerich: passa-se durante a Revolução
Industrial e apresenta trabalhadoras de uma fábrica de tecidos que, para certificar-se de
que nenhuma furará a greve por direitos básicos e aumento de salários, lançam um feitiço,
fiando fios de seus cabelos juntos. Quando os donos das fábricas tentam trazer
trabalhadoras mais baratas para não ceder às exigências do sindicato, elas enfeitiçam os
teares para só funcionarem com aquelas que passaram meses e até anos perdendo a saúde
para alimentá-los com seu trabalho, numa espécie de relação simbiótica entre as tecelãs e
seus teares. Esse romance talvez contenha uma das ilustrações mais claras sobre o que eu
vinha comentando: a bruxa transgressora de um sistema percebido como cruel/ corrupto/
explorador suscita a simpatia do enunciatário, não sendo por ele percebida como
alteridade, embora ela o seja dentro do sistema no qual se insere. Por causa da mudança
de perspectiva do contexto de produção e recepção das obras contemporâneas em relação
ao tempo histórico do narrado, o sistema é tomado por alteridade monstruosa, criando
identificação com a bruxa protagonista apesar de suas transgressões. Na verdade, por
causa de suas transgressões.
No audiovisual, houve um aumento considerável nas produções com bruxas como
protagonistas. Dentre estas, destaco a série da Netflix As Aventuras Sombrias de Sabrina
260

(2018-2020). Após ser uma popular bruxa adolescente numa série televisiva de comédia,
a personagem foi realocada para tornar-se a protagonista de outra produção destinada ao
público jovem, porém agora numa toada mais sombria, mesmo se por vezes cômica em
seu exagero e roupagem satanista.
Nela, os estereótipos merecem muita reflexão por não constituírem um tipo óbvio
de representação. Por um lado, a série apresenta uma clara afiliação ao discurso feminista,
inclusive pelo fato de a maioria das personagens serem mulheres, havendo diversidade
entre elas, seja de raça, seja de faixa etária, seja de orientação sexual. Por outro lado, há
alguns reforços de ordem moral nas cargas fóricas, o que torna difícil determinar em qual
eixo está a personagem da tia Zelda ou as chamadas Weird Sisters — referenciando
Macbeth. Na primeira e segunda temporadas, principalmente, estas últimas oscilam entre
os papéis actanciais do adjuvante e do antagonista (átono no primeiro caso, tônico no
segundo). A referência à peça de Shakespeare também aparece em forma de textual: a
protagonista usa um dos feitiços das Weird Sisters originais do dramaturgo como forma
de invocar o trio de bruxas que atende por esse nome na série. E estas, mesmo ao fazerem
um mal, podem ajudar a alcançar um bem — e vice-versa.
A representação das religiosidades também é ambígua e difícil de enquadrar num
estereótipo, embora os utilize reiteradamente. A Igreja da Noite [Church of Night],
frequentada pelas bruxas, é uma paródia do catolicismo, construindo-se sobre o extremo
contrário observado nos estudos de Stuart Clarke sobre o imaginário religioso do início
da Idade Moderna: uma forma atual de representar a visão de mundo baseada em
inversões. Alguns preconceitos do cristianismo ficam bem delineados nessa versão
paródica de satanismo, na verdade mais um catolicismo às avessas. O exemplo mais
marcante disso é o episódio da possessão de Jesse Putnam, tio de personagem amiga de
Sabrina. O demônio em determinado momento diz que o corpo de Jesse é conveniente
porque ele é um pecador, por ser um “sodomita”. Ou seja, a série, mesmo procurando
representar positivamente populações LGBTIA+, reaproveita dentro da perspectiva
satanista um discurso religioso cristão extremamente agressivo a essas pessoas.
A personagem de Sabrina constrói-se como a figura do herói. Dentro desse
contexto, sua vida de adolescente comum numa escola regular entra em choque com a de
bruxa, aluna da Academia da Noite na idade de assinar no livro seu pacto com o Diabo
para completar seu poder. Numa exibição rara entre personagens femininas, deseja obter
mais poder, mas não quer se sujeitar ao Diabo para isso. A relação entre poder e liberdade,
postos em oposição na narrativa, pode ser contrastada com a forma como se entende as
261

bruxas confessas no discurso inquisitorial ou nos processos contra elas na justiça secular
inglesa.
A figura do Diabo em si merece uma análise própria. Em alguns momentos e para
algumas personagens, tem valor euforizado, enquanto em outros, disforizado. Às vezes,
aparece como a perfeita contraparte de Deus, ao mesmo tempo que também pode atuar
da mesma maneira que ele.
Todas as redes de relações entre as bruxas são humanizadas, permeadas de
dualidades. Por exemplo, entre as tias de Sabrina, Zelda e Hilda, há um claro
relacionamento abusivo da primeira em relação à segunda.
O discurso do “empoderamento feminino” está mais no plano discursivo do que
no narrativo, pois sua principal agente é a personagem da professora Wardwell, possuída
pelo espírito de Lilith. Esta se coloca como antagonista durante a primeira e quase toda a
segunda temporadas, até mesmo por forçar situações para Sabrina assinar o “livro da
Besta”, algo disforizado no contexto. A ambiguidade dessa personagem torna a leitura
dos eixos fóricos do texto bastante dificultosa. Por exemplo, em um episódio, ela é alvo
de uma insinuação sexual do diretor da escola humana de Sabrina, e sua reação é devorá-
lo, adotando para isso sua forma demoníaca. Se por um lado a agressão do diretor da
escola é disforizante em si mesma, por outro, dentro do texto, por causa do eixo ao qual
Wardwell/ Lilith se alinha, as ideias feministas veiculadas por suas falas podem não ser
interpretadas como a mensagem positiva de empoderamento que a obra aparentemente
pretendia347.
A bruxa, dessa maneira, pode assumir diversas facetas de seu estereótipo mais
conhecido, até tornar-se irreconhecível senão pelo termo designatório. Esses foram alguns
exemplos recentes, embora haja tantos mais, num crescente de representações possíveis
ao longo do século XX e começo do XXI. A Feiticeira (1964-1972), dona de casa que
usa seus poderes escondida do marido para realizar atividades domésticas básicas por não
saber fazê-las como as demais mulheres, é uma personagem na superfície inovadora, mas

347
No caso das séries televisivas, é importante ressaltar que há inúmeros intertextos necessários para uma
análise abrangente da obra, pois o conteúdo das temporadas seguintes à primeira pode ser afetado pela
resposta do público (em redes sociais, principalmente), de forma que se criam incongruências internas nas
personagens. Além disso, os atores que interpretam cada papel também precisam ser levados em
consideração, visto que trabalhos anteriores podem alterar a forma como a personagem é vista,
independentemente do enredo. A área dos Estudos de Fãs, que me foi apresentada pela professora Adriana
Amaral (UNISINOS) trabalha com esses aspectos, dentre inúmeros outros, fundamentais para uma melhor
compreensão de obras destinadas a um público amplo, circunscritas no contexto da cultura pop.
262

de certo modo reacionária, remetendo à dona de casa dos anos 1950 numa época em que
a liberação sexual feminina está causando furor.
O livro As Bruxas de Eastwick, de John Updike (1984),

muda o cenário frequente dos contextos da bruxaria, tirando-o dos


locais sombrios e colocando-o em uma cidade moderna: Eastwick. Ali
descobrimos três mulheres, viúvas-separadas-abandonadas e bruxas,
que poderiam passar despercebidas em meio à multidão, mas se veem
no centro de uma situação considerada um escândalo pela comunidade
(OLIVEIRA, 2021, p. 22).

Essa obra traz bruxas livres da autoridade marital (portanto, patriarcal), exercendo
certa liberdade sexual, para desgosto da comunidade na qual se inserem, transgredindo
normas ditadas pela moralidade religiosa mesmo num contexto laico (idem, p. 100).
Trata-se de uma via de representação do feminino transgressor, encarnado na figura da
bruxa, que aparecerá em obras posteriores, sejam literárias, sejam audiovisuais.
Teria sido interessante fazer uma análise abrangente de todas essas obras, porém
pouco factível numa pesquisa de doutorado, de forma que fui obrigada a escolher algumas
dentre as que julguei ressignificarem os estereótipos da bruxa de maneira a usá-los como
ponto de partida para uma nova construção de sentido semântico para essa figura.
A representação da bruxa é uma escolha ideológica desde sua fixação no
imaginário enquanto monstro, mas esse fato vai se tornando mais claro à medida em que
mais possibilidades se delineiam na contemporaneidade.
Uma das obras que mobiliza o imaginário relacionado à bruxaria, desconstruindo
para reconstruí-lo, é a série literária Harry Potter (1997-2007), de J.K. Rowling (1965).
Não é a primeira a trazer crianças protagonistas aprendendo magia sob tutela de magos
mais velhos; Diana Wynne Jones (1934-2011) já o fizera antes em inúmeras obras. A
série Os Mundos de Crestomanci (1977-2006), por exemplo, traz um mago cuja figura
física, com longas vestes cheias de estrelinhas, em muito lembra o mentor de Harry, Albus
Dumbledore. Ainda assim, Harry Potter alcançou tamanha notoriedade que se tornou
incontornável para discutir as transformações da figura da bruxa.
263

5.1. Harry Potter e as múltiplas possibilidades de uma sociedade bruxa


A série literária Harry Potter, adaptada ao audiovisual mesmo antes de estar
completa com seus sete livros, requer uma análise sob uma ótica ligeiramente diferente
da adotada até aqui, por trazer um universo fantástico com uma sociedade inteira de
bruxas. Desse modo, o viés dessa figura enquanto pária social e ameaça interna (ou
estrangeira) à comunidade não pode ser aplicado à obra. Ao menos, não sem algumas
ressalvas e modalizações.
Uma das características mais interessantes a se ressaltar é a forma como se
misturam os estereótipos da magia erudita e da bruxaria popular. Assim, as poções
ingeríveis confeccionadas com ingredientes abjetos e o voo na vassoura têm o mesmo
peso de feitiços e conjurações ensinados a partir de livros didáticos e/ ou acadêmicos, não
de grimórios místicos, embora estes também existam. A religião perde espaço, relegada
às férias de Natal, e menções ao Diabo são inexistentes. Aqui, a capacidade para magia/
bruxaria é uma característica genética, legalmente regulamentada, a ser estudada e
aprimorada em ambiente escolar.
Das crenças populares anteriores à concepção teológica da bruxaria satânica vem
a ideia da capacidade mágica como intrínseca à pessoa da bruxa, sem a necessidade da
realização de pactos com quaisquer tipos de entidade sobrenatural. Da mesma maneira,
figuram elementos estereotípicos, como o chapéu pontudo, o caldeirão, a varinha, a já
mencionada vassoura, plantas de suposta potência mágica, como a mandrágora e o
acônito, animais historicamente associados à bruxa, em especial os noturnos e/ ou abjetos,
como o sapo, o gato, a coruja, o rato. Porém, nesse universo, tais imagens são despidas
de sua carga monstruosa de composição e marca da alteridade, sendo em vez disso
retratadas como itens presentes no cotidiano. O efeito de sentido obtido é o de
maravilhamento e, ao mesmo tempo, familiaridade, no lugar do estranhamento e horror
de outrora, ou de obras atuais que se utilizam da visão de mundo de então. Como aponta
Harrison, “as histórias de Harry Potter estão enraizadas em séculos de tradição popular”348
(2017, p. 10), pois “dos amuletos antigos às mandrágoras medievais e dos unicórnios aos
caldeirões borbulhantes, há frequentemente antecedentes históricos e mitológicos para as
personagens e cenas”349 (idem, 2017, p. 8).

348
No original: “The Harry Potter stories are rooted in centuries of popular tradition.”
349
No original: “From ancient amulets to medieval mandrakes, from unicorns […] to bubbling cauldrons,
there are often historical and mythological antecedents for the characters and scenes […].”
264

Por se tratar de uma obra juvenil, não há nenhuma alusão às costumeiras relações
entre bruxaria e fertilidade humana, seja para a estimular, seja para a obstruir. A
sexualidade não é um tema da obra, e a bruxaria não aparece a ela ligada de nenhum
modo.
Também não existe a idílica ligação com a natureza, a terra e as sabedorias orais
populares que Jules Michelet propôs, e românticos, neopagãos e até mesmo algumas veias
feministas adotaram e retrabalharam segundo suas diferentes concepções. O que há de
mais idealizado na composição de lugar da obra é certa estética passadista, transposta,
por exemplo, no uso de penas e tinteiro para a escrita, a comunicação de longa distância
através de aves mensageiras, a ausência de eletricidade e outros itens da modernidade.
Da magia enquanto campo de estudo de homens letrados do início da Idade
Moderna, Harry Potter aproveita o viés academicista de roupagem histórica, essa ideia
da possibilidade de se ensinar e aprender magia num campo teórico, em ambiente
controlado para contenção de danos, sob forte regulação legal. A Escola de Magia e
Bruxaria de Hogwarts, onde o protagonista estuda, cenário principal da ação em seis dos
sete livros da série, possui uma série de regras internas, mas também está sujeita à
regulação externa do Ministério da Magia e do Conselho dos Bruxos [Wizengamot]. Além
do mais, a forma latinesca de magia empregada é a erudita, reforçando o ar academicista.
A bruxaria popular era, historicamente, realizada na língua vernacular. Faça-se a
concessão de que as línguas desconhecidas eram vistas como mais mágicas. Por exemplo,
havia amuletos com inscrições em hebraico, cuja escrita em outro alfabeto e palavras
soavam fantásticas (cf. ROSS, 2013).
Ou seja, observa-se no texto de Harry Potter as mesmas imagens associadas ao
estereótipo da bruxa, mas, despidas da carga disfórica, figurativizam outros temas, de
forma a compor outra representação da bruxa mesmo enquanto aproveita e ressignifica a
representação clássica. A mudança se dá mais no nível do efeito de sentido alcançado do
que no plano imagético.
Nesse contexto, escolhi quatro bruxas da série para analisar detidamente, por
serem diferentes entre si e trazerem novos e antigos estereótipos da bruxa amalgamados,
além de serem imbuídas de transgressões do feminino, embora em contextos diversos, e
euforizados ou disforizados de acordo com cada um, dentro da narrativa. São elas:
Hermione Granger, Minerva McGonagall, Narcisa Malfoy e Bellatrix Lestrange.
265

5.1.1. Minerva McGonagall: a mentora


A personagem Minerva McGonagall, vice-diretora da Escola de Magia e Bruxaria
de Hogwarts e professora de Transfiguração, é a primeira bruxa que o protagonista Harry
Potter conhece propriamente, e a primeira apresentada ao leitor.
O nome Minerva alude à deusa romana da sabedoria, que, como os demais deuses
desse panteão, tem uma contraparte grega. Athena, no entanto, junta à sabedoria o
domínio sobre a estratégia de guerra (sendo protetora, por exemplo, de Ulisses com seu
cavalo de Troia), aspecto bélico que Minerva não tem, sendo esta mais próxima da figura
da juíza e conselheira, enquanto aquela atua em batalhas350.
O nome da personagem sinaliza como ela lidará com enfrentamentos nos últimos
livros da saga, quando Hogwarts e o Ministério da Magia são tomados pelo bruxo das
trevas Voldemort (de forte viés nazifascista) e seus seguidores (discursiva e
figurativamente alinhados à Ku Klux Klan351). Antes de discutir esse assunto, porém, é
preciso analisar como a personagem se coloca no percurso narrativo do sujeito — quase
sempre desempenhando o papel de destinadora.
O primeiro capítulo de Harry Potter e a Pedra Filosofal (1997), “O menino que
sobreviveu”, o único não narrado sob o ponto de vista do protagonista, parte primeiro da
perspectiva do Sr. Dursley, tio não-mágico do protagonista, aos poucos convertido num
destoante narrador-observador em terceira pessoa, possivelmente não-mágico, a julgar
pelo emprego de termos destinados a interpretar os eventos relatados, sem demonstrar
conhecimento de causa. Dessa maneira, somos apresentados a um gato de comportamento
incomum, designado por “it” mesmo quando o Sr. Dursley não o está observando.

350
Enquanto Athena chega a lutar em famosas batalhas, ajudando Ulisses a matar os pretendentes de
Penélope na Odisseia e puxando Aquiles pelos cabelos para impedi-lo de atacar num momento inoportuno,
na Ilíada, Minerva é apresentada como juíza; seu nome inclusive consta na expressão “voto de Minerva”
(para ler mais a respeito, ver FERREIRA, 2020). Segundo a pesquisadora Susan Deacy, “culturas politeístas
antigas estavam prontamente dispostas a estabelecer elos entre seus deuses e aqueles de outros povos.
Deidades não precisavam ser idênticas em cada aspecto, apenas ter elementos suficientes em comum para
conduzir a essa identificação. […] Minerva […] foi cedo associada a Athena como parte da tradição
helenizante no início de Roma, que identificava deidades romanas com seus equivalentes mais próximos
no panteão grego.” Devo essas observações ao amigo Felipe Leonardo Ferreira, mestre em Arqueologia
pelo MAE-USP, em comunicação pessoal. No original: “Ancient polytheistic cultures were readily willing
to make links between their gods and those of other peoples. Deities did not need to be identical in every
respect, just to have enough elements in common to lead to an identification being made. […] Minerva […]
was associated early on with Athena as part of the hellenising tradition in early Rome which identified
Roman deities with their closest equivalents in the Greek pantheon”.
351
Os chamados “comensais da Morte” vestem mantos e usam máscaras em suas reuniões, unidos pelo
preconceito, alinhado ao racismo, contra bruxos nascidos de famílias não-mágicas, chamados por “sangue
ruim” [mudblood], em oposição àqueles nascidos de famílias inteiramente bruxas, tidos por “sangue puro”.
266

Em sua primeira aparição, o felino ajuda a compor a atmosfera de estranheza a


partir do olhar de alguém que, embora não seja criado como personagem simpática ao
leitor, vem do mesmo mundo que este: “Foi na esquina da rua que ele notou o primeiro
indício de que algo estranho ocorria — um gato lia um mapa”352 (ROWLING, 2000b, p.
8). Ele olha duas vezes e então o animal malhado [tabby] está simplesmente ali, sem sinais
do mapa à vista. Intrigado, o Sr. Dursley continua a observá-lo por algum tempo pelo
espelho retrovisor: “agora estava lendo a placa que dizia rua dos Alfeneiros — não, não
estava olhando a placa: gatos não podiam ler mapas nem placas”353 (idem, destaques da
autora). O fato de o discurso indireto livre da personagem ter de atestar o óbvio é uma
pista de que o Sr. Dursley sabe que seu mundo contém elementos sobrenaturais, por mais
que o negue. Ele revê o gato ao chegar em casa: “tinha certeza de que era o mesmo; as
marcas em volta dos olhos eram as mesmas”354 (idem, p. 10). Com a saída do Sr. Dursley
de cena, o foco narrativo volta-se ao felino, embora não assuma sua perspectiva; observa-
o, apenas:
O gato no muro lá fora não mostrava sinais de sono. Continuava sentado
imóvel como uma estátua, os olhos fixos na esquina mais adiante da rua
dos Alfeneiros. E nem sequer estremeceu quando uma porta de carro
bateu na rua seguinte, nem mesmo quando duas corujas mergulharam
do alto. Na verdade, era quase meia-noite quando o gato se mexeu355
(ROWLING, 2000b, pp. 12-3).

Segue-se a chegada de bruxos em cena, um deles — o maior destinador de Harry


Potter ao longo da saga, Albus Dumbledore — reconhece de imediato naquele animal a
professora McGonagall, que então retoma o corpo humano para conversar com ele:

— Imagine encontrar a senhora aqui, Profa. Minerva McGonagall.


E virou-se para sorrir para o gato, mas este desaparecera. Ao invés
dele, viu-se sorrindo para uma mulher de aspecto severo que usava
óculos de lentes quadradas exatamente do formato das marcas que o
gato tinha em volta dos olhos. Ela, também, usava uma capa esmeralda.

352
No original: “It was on the corner of the street that he noticed the first sign of something peculiar — a
cat reading a map” (ROWLING, 1997). Como utilizei uma edição digital para a obra original, não há
paginação.
353
No original: “It was now reading the sign that said Privet Drive — no, looking at the sign; cats couldn’t
read maps or signs.”
354
No original: “he was sure it was the same one; it had the same markings around its eyes.”
355
No original: “the cat on the wall outside was showing no sign of sleepiness. It was sitting as still as a
statue, its eyes fixed unblinkingly on the far corner of Privet Drive. It didn’t so much as quiver when a car
door slammed in the next street, nor when two owls swooped overhead. In fact, it was nearly midnight
before the cat moved at all.”
267

Trazia os cabelos negros presos num coque apertado. E parecia


decididamente irritada356 (ROWLING, 2000b, pp. 13-4).

O fato de seus óculos resultarem no contorno dos olhos de sua forma felina talvez
fale da importância do objeto no cotidiano, porém também versa sobre a conveniência de,
numa obra infantil, a metamorfose de um animal desnudo resultar numa pessoa vestida.
Aqui, há alusão à histórica capacidade bruxa de se transformar em animal, e um gato
ainda, um dos mais próximos a ela no imaginário. No universo de Harry Potter,
entretanto, esta é uma habilidade rara, de difícil aprendizado, e regulamentada pelo
Ministério da Magia. Todos os bruxos que a têm, chamados “animagos”, devem registrar-
se357 (ROWLING, 2000a).
Portanto, o que nas rés pelo crime de bruxaria ajudou a cimentar sua condenação,
ao provar sua não-conformidade e sobre(anti)naturalidade, em Harry Potter torna-se uma
capacidade celebrada pela raridade, digna de uma regulamentação legal, à qual
McGonagall se submete. Ela não é transgressora das instituições, mas uma firme
respeitadora.
No contexto escolar, em que é professora, vice-diretora e diretora da Grifinória,
ela não só se sujeita ao sistema como ajuda a estabelecê-lo e fazê-lo cumprir. Por
exemplo, à semelhança dos demais docentes, pune os alunos com subtração de pontos e
atribuição de detenções quando quebram alguma regra, e tem uma conduta rígida e
ilibada, sem privilegiar os alunos de sua casa358.

356
No original: “‘Fancy seeing you here, Professor McGonagall.’ § He turned to smile at the tabby, but it
was gone. Instead he was smiling at a rather severe-looking woman who was wearing square glasses exactly
the shape of the markings the cat had had around its eyes. She, too, was wearing a cloak, an emerald one.
Her black hair was drawn into a tight bun. She looked distinctly ruffled.”
357
Isso, aliás, gera toda uma subtrama no quarto livro da série, Harry Potter e o cálice de fogo (2000a), em
que Rita Skeeter, uma jornalista sensacionalista, figura nada estranha à audiência inglesa acostumada aos
tabloides, publica informações às quais não deveria ter acesso. Ao fim, descobre-se que ela é um animago
não registrado e explora sua forma animal de besouro para infiltrar-se em lugares onde não é bem-vinda e
escutar conversas privadas. O inseto, de tamanho muito conveniente para seus propósitos, evoca o baixo e
o vil, emprestando tal julgamento a suas ações anti-éticas.
358
Os alunos são divididos em quatro casas — Grifinória [Griffindor], Sonserina [Slytherin], Corvinal
[Ravenclaw] e Lufa-Lufa [Hufflepuff] —, cada uma dirigida por um professor que foi da respectiva casa
em sua época de estudante. Como o sistema de conceder pontos para incentivar bons comportamentos e
debitá-los para desencorajar os ruins culmina numa competição pela taça das casas, dada àquela que ao
final do ano letivo houver acumulado mais pontos, existe uma subjacente competição entre os professores
que dirigem essas casas. A severidade honesta de McGonagall para com os alunos da Grifinória contrapõe-
se a Severus Snape, professor de Poções e diretor da Sonserina, extremamente abusivo, mas complacente
com os estudantes sob sua direção, chegando à trapaça para favorecer sua casa. Dado que o objeto do meu
presente trabalho são figuras femininas, não me detive nele, mas sua construção merece estudo detalhado.
Ambíguo do primeiro ao último livro, transita entre os eixos do bem e do mal sem se deixar apreender por
nenhum integralmente, e recicla muito do estereótipo feminino da bruxa numa personagem masculina,
desde sua aparência (enorme nariz adunco, cabelo oleoso, vestes pretas, sob alguns aspectos retomando
268

Há que se notar, todavia, que tanto o Ministério da Magia quanto Hogwarts são
euforizados: o primeiro é um espaço político democrático (mas não republicano), às vezes
atravancado por burocracias incompetentes, mas em geral percebido como benévolo; a
segunda não é um espaço democrático porque a natureza dos sistemas tradicionais de
educação prevê uma autoridade verticalizada na qual professores ensinam e alunos
aprendem. Por ser amplamente tido por eficaz, buscando o melhor aproveitamento
discente, esse sistema é lido positivamente dentro da narrativa (embora seus aspectos
mágicos possam nos levar a questionar se o bem-estar das crianças é um fator observado
em suas diretivas359).
A austeridade de McGonagall traduz-se de diversas maneiras ao longo do texto, o
que perpassa sua aparência física e seu modo de falar. Em termos de apresentação, ela
parece uma bruxa como se convencionou sua imagem, embora não haja nenhuma menção
à estereotípica velhice desfigurante: “apareceu uma bruxa alta de cabelos negros e vestes
verde-esmeralda. Tinha o rosto muito severo e o primeiro pensamento de Harry foi que
era uma pessoa a quem não se devia aborrecer”360 (ROWLING, 2000b, p. 101). Seus
óculos são mencionados mais adiante, em momentos quando ela olha por cima deles
“severamente” [sternly] para o protagonista. Estes indicam uma erudição mais associada
à figura do mago estudioso do que à da bruxa do saber oral, transmitido de geração em
geração. Com isso, sua seriedade, a expressão quase sempre grave, à beira da irritação
(fora exceções que o protagonista observa com certo espanto), passam a significar sua
autoridade e senso de responsabilidade e justiça, ganhando contornos eufóricos, em vez
de remeter à rabugice das “bruxas más” e “velhas loucas” de outrora. Como seu uso do
discurso é preciso e suas palavras, medidas e pouco emotivas, nem quando está de fato
contrariada se confunde com a imagem daquela viúva vista com pena ou rancor como

representações preconceituosas de judeus) ao temperamento (irascível, desdenhoso, antagônico, ofensivo,


mal-humorado).
359
No primeiro livro, quatro alunos do 1º ano, portanto de onze anos de idade, recebem detenção por
circularem pela escola à noite sem autorização. A punição é realizada às 23h num dia de semana, no local
motivadamente chamado Floresta Proibida [Forbidden Forest], aonde os alunos não devem ir sozinhos de
modo algum. Sob supervisão de Hagrid, guardião das terras da escola, eles têm a missão de procurar um
unicórnio ferido, cujo sangue prateado vê-se em rastros pela mata. Tanto a penalidade quanto seu horário,
inadequados sob qualquer princípio psicopedagógico da contemporaneidade, não entram em questão sob
um ponto de vista educacional, como não poderia deixar de ser, considerando o público-alvo da obra, e
fazem parte do maravilhamento suscitado pelas aventuras do protagonista e seus amigos. No entanto,
pareceu-me importante fazer apontamentos sobre esse assunto, visto que meu objeto de pesquisa é a bruxa
enquanto estereótipo do feminino transgressor, e as transgressões (simbólicas ou de fato) dependem da
ordem e de como essa ordem é percebida dentro do texto, independentemente de como pode parecer ao
enunciatário.
360
No original: “a tall, black-haired witch in emerald-green robes stood there. She had a very stern face and
Harry’s first thought was that this was not someone to cross.”
269

“resmungona”, de quem se criticava a unruly tongue. A erudição confere-lhe


respeitabilidade e, alinhada ao sistema que encabeça, coloca-se pouco como figura
feminina (quero dizer, a estereotipada, dentro dos parâmetros que boa parte da literatura
ocidental está acostumada a e confortável em empregar). Justa e equilibrada, é uma
mentora admirada, algo temida, que inspira confiança por ser presente numa esfera
profissional e distante na pessoal. Ao modo dos demais membros do corpo docente de
Hogwarts, pouco se fala de sua vida pregressa e externa à sua função361. Levando-se em
conta todos esses fatores, ela parece mais próxima do estereótipo do mago362.
Tal conformidade, mesmo se não dentro dos parâmetros mais rotineiramente
atribuídos ao feminino (afinal, não é mãe nem esposa), vai na contramão das
representações costumeiras de bruxas, tornando McGonagall uma personagem curiosa,
no sentido de que sua maior transgressão é aquela em relação às figuras estereotípicas da
bruxa. Ela só se volta contra o sistema com a ascensão de Voldemort ao poder, após o
que é, na prática, um golpe de Estado (ROWLING, 2005), porque então o sistema em si
passa a constituir uma alteridade que precisa ser combatida.
Antes dessa mudança, contudo, no quinto livro, Harry Potter e a Ordem da Fênix
(2003), ocorre uma alteração inicialmente sutil no ambiente institucional de Hogwarts,
com a chegada de uma nova professora, Dolores Umbridge, funcionária do Ministério da
Magia. Com essa adição, o Ministério passa a intervir no conteúdo didático e procura
dominar cada aspecto curricular, desaguando na tentativa (frustrada) da prisão de
Dumbledore e na nomeação de Umbridge como nova diretora de Hogwarts.
Nesse cenário, McGonagall mostra-se contrária a diversas medidas adotadas —
algumas das quais hediondas, como a punição física, através de magia, de alunos em
detenção. O sistema, a essa altura, já está ganhando um aspecto monstruoso, mas, sob a
aparente legitimidade, não suscita reações extra-burocráticas. É como os passos
imediatamente anteriores à instauração de um governo autoritário, quando a fé no sistema
democrático e a esperança de que ele volte a funcionar ainda impede respostas
verdadeiramente transgressoras, que questionem sua validade (cf. RUNCIMAN, 2018).
O papel temático do revolucionário é incarnado pelas personagens adolescentes,
que ajudam a comprovar o retorno de Voldemort, levando a notícia a público, e, em

361
As notáveis exceções a essa regra entre os professores são Snape e Dumbledore, cujo passado entrecruza
a história de vida do protagonista, bem como seu desfecho.
362
Fiz alguns apontamentos sobre essa figura em meu artigo “O mago anti-herói de Eric Novello”
(CHIOVATTO, 2018), mas ainda pretendo aprofundar-me no tema no futuro. A figura do mago contrapõe-
se à da bruxa sob inúmeros aspectos, embora à primeira vista pareçam análogas.
270

consequência, a reinstaurar o sistema anterior, ainda que temporariamente, com


Dumbledore de volta à diretoria de Hogwarts.
Em todas essas situações, McGonagall desempenha um papel de apoio muito
secundário. Mesmo após a queda do Ministério, com a morte de Dumbledore e a ascensão
de Voldemort ao poder, num regime análogo ao nazifascismo, ela parece conformar-se
ao papel de professora. É difícil precisar sua exata participação, pois o sétimo e último
livro da série, Harry Potter e as relíquias da morte (ROWLING, 2007), não é centrado
em Hogwarts, visto que a jornada do protagonista não o conduz até lá antes do final.
Entretanto, pode-se presumir que a sujeição aparente de McGonagall destinava-se a
oferecer alguma medida de proteção aos alunos sob seus cuidados — pois, quando o
protagonista é ameaçado, ela se ergue para defendê-lo e, com isso, defender a escola
inteira, então às vésperas de um ataque:

[McGonagall] parou, ergueu a varinha, preparando-se para duelar e


perguntou:
— Quem está aí?
— Sou eu — disse uma voz baixa.
De trás de uma armadura, saiu Severo Snape.
O ódio ferveu no peito de Harry ao vê-lo: tinha esquecido os detalhes
da aparência de Snape diante da magnitude dos seus crimes, esquecido
como seus cabelos negros e oleosos caíam como cortinas dos lados de
seu rosto magro, como seus olhos negros tinham uma expressão fria e
sem vida. Não estava de roupas de dormir, vestia a capa preta de sempre
e também empunhava a varinha, pronto para lutar.
— Onde estão os Carrow? — perguntou, em voz baixa.
— Onde você os mandou ir, imagino, Severo — respondeu a
professora McGonagall.
Snape se aproximou e seus olhos passaram rapidamente por ela e o
ar ao seu redor, como se soubesse que Harry estava ali. O garoto
também erguera a varinha, pronto para lutar.
— Tive a impressão — disse Snape — de que Aleto prendeu um
intruso.
— Sério? E o que lhe deu essa impressão?
Snape ergueu levemente o braço esquerdo onde a Marca Negra
estava gravada em sua pele.
— Ah, sim, naturalmente. Esqueci que vocês Comensais da Morte
têm um meio particular de comunicação.
Snape fingiu não tê-la ouvido. Seus olhos continuavam a sondar o
ar ao seu redor e ele foi gradualmente se aproximando com uma
expressão de quem não tem consciência do que está fazendo.
— Eu não sabia que era sua noite de patrulhar os corredores,
Minerva.
— Alguma objeção?
271

— Não imagino o que teria tirado você da cama tão tarde da noite.
— Pensei ter ouvido um barulho — respondeu a professora.
— Verdade? Mas tudo me parece calmo.
Snape encarou-a nos olhos.
— Você viu Harry Potter, Minerva? Porque se viu, devo insistir…
A professora McGonagall se mexeu mais rápido do que o garoto
teria acreditado: sua mão cortou o ar e, por uma fração de segundo,
Harry pensou que Snape fosse desmontar inconsciente, mas a rapidez
do Feitiço Escudo que o professor lançou foi de tal ordem que
McGonagall se desequilibrou. Ela brandiu a varinha para um archote e
o objeto saiu voando do suporte na parede: […] labaredas […] desceram
e formaram um círculo de fogo que encheu o corredor e deslizou pelo
ar como um laço contra Snape…
No momento seguinte não era mais fogo, mas uma grande cobra
preta que McGonagall explodiu em fumaça, e tornou a se juntar e
solidificar em segundos, transformando-se em um enxame de adagas
que perseguiram Snape; ele só conseguiu evitá-las empurrando uma
armadura à sua frente e, retinindo sonoramente, as adagas afundaram
uma a uma no peito de metal… […]363 (ROWLING, 2007b, pp. 464-5).

No contexto da cena, Snape desempenha o papel de antissujeito. Ele, ao final,


revela-se um espião infiltrado, favorecendo o eixo dos heróis, mas até então tanto Harry,
que está invisível, quanto McGonagall, julgam-no um traidor, após ter matado

363
No original: “She halted, raised her wand ready to duel, and said, ‘Who’s there?’ § ‘It is I,’ said a low
voice. § From behind a suit of armour stepped Severus Snape. § Hatred boiled up in Harry at the sight of
him: he had forgotten the details of Snape’s appearance in the magnitude of his crimes, forgotten how his
greasy, black hair hung in curtains around his thin face, how his black eyes had a dead, cold look. He was
not wearing nightclothes, but was dressed in his usual black cloak and he, too, was holding his wand ready
for a fight. § ‘Where are the Carrows?’ he asked quietly. § ‘Wherever you told them to be, I expect,
Severus,’ said Professor McGonagall. § Snape stepped nearer, and his eyes flitted over Professor
McGonagall into the air around her, as if he knew that Harry was there. Harry held his wand up too, ready
to attack. § ‘I was under the impression,’ said Snape, ‘that Alecto had apprehended an intruder.’ § ‘Really?’
said Professor McGonagall. ‘And what gave you that impression?’ § Snape made a slight flexing movement
of his left arm, where the Dark Mark was branded into his skin. § ‘Oh, but naturally,’ said Professor
McGonagall. ‘You Death Eaters have your own private means of communication, I forgot.’ § Snape
pretended not to have heard her. His eyes were still probing the air all about her and he was moving
gradually closer, with an air of hardly noticing what he was doing. § ‘I did not know that it was your night
to patrol the corridors, Minerva.’ § ‘You have some objection?’ § ‘I wonder what could have brought you
out of your bed at this late hour?’ § ‘I thought I heard a disturbance,’ said Professor McGonagall. § ‘Really?
But all seems calm.’ § Snape looked into her eyes. § ‘Have you seen Harry Potter, Minerva? Because if
you have, I must insist–’ § Professor McGonagall moved faster than Harry could have believed: her wand
slashed through the air and for a split second Harry thought that Snape must crumple, unconscious, but the
swiftness of his Shield Charm was such that McGonagall was thrown off balance. She brandished her wand
at a torch on the wall and it flew out of its bracket:[…] the descending flames […] became a ring of fire
that filled the corridor and flew like a lasso at Snape– § Then it was no longer fire, but a great, black serpent
that McGonagall blasted to smoke, which reformed and solidified in seconds to become a swarm of
pursuing daggers: Snape avoided them only by forcing the suit of armour in front of him, and with echoing
clangs the daggers sank, one after another, into its breast” (ROWLING, 2007a). Usei uma edição digital,
portanto sem paginação.
272

Dumbledore e se tornado diretor de Hogwarts por imposição de Voldemort. Os irmãos


Cawdor são dois comensais da morte que estão como professores.
Nessa versão extremada de autoritarismo, McGonagall finge-se conformada a
esse sistema que procura parecer o anterior sem o ser. Percebe-se o aumento de tensão
pela dilatação temporal, com um diálogo cortês desenrolando-se no plano discursivo
enquanto uma série de urgências comunicam-se pela narração. A intimidade anterior entre
os dois professores manifesta-se pelo uso do primeiro nome de cada um nos vocativos,
embora ambos estejam conscientes de não serem mais amigos ou aliados.
Até esse ponto, McGonagall usou magia pouquíssimas vezes, nunca dentro de
uma situação combativa. Antes, o enunciatário era levado a admirá-la através da
admiração do protagonista, cuja perspectiva sempre a lança numa luz de respeito e
autoridade. Nessa passagem, contudo, somos convidados a ver do que ela é capaz. Mais
tarde, viremos a saber que Snape apenas se defendeu em vez de contra-atacar porque
estava ao lado dela, embora a professora não o soubesse. No trecho, entretanto,
McGonagall é a primeira a insurgir-se abertamente contra ele e, por extensão, contra o
domínio de Voldemort sobre Hogwarts.
A partir daí, é ela quem ordena a evacuação dos alunos e prepara a escola para
sofrer um cerco:
— E agora: Piertotum locomotor! — exclamou ela.
E por todo o corredor, as estátuas e armaduras saltaram dos seus
pedestais, e, pelo eco fragoroso nos andares abaixo e acima, Harry
percebeu que as suas companheiras em todo o castelo tinham feito o
mesmo.
— Hogwarts está ameaçada! — bradou a professora McGonagall.
— Guarneçam os muros, nos protejam, cumpram o seu dever para com
a nossa escola!
Com estrépitos e berros, a horda de estátuas em movimento passou
por Harry como um estouro de boiada; algumas pequenas, outras
enormes. Havia animais também, e as armaduras chocalhando
brandiam espadas e manguais364 (ROWLING, 2007b, p. 468).

364
No original: “‘And now – piertotum locomotor!’ cried Professor McGonagall. § And all along the
corridor the statues and suits of armour jumped down from their plinths, and from the echoing crashes from
the floors above and below, Harry knew that their fellows throughout the castle had done the same. §
‘Hogwarts is threatened!’ shouted Professor McGonagall. ‘Man the boundaries, protect us, do your duty to
our school!’ § Clattering and yelling, the horde of moving statues stampeded past Harry: some of them
smaller, others larger than life. There were animals too, and the clanking suits of armour brandished swords
and spiked balls on chains” (ROWLING, 2007a).
273

McGonagall, nesse ponto, abandona a aparência de conformidade para tornar-se


a primeira linha de defesa da escola, e o faz através do uso de magia, animando partes
inanimadas do próprio castelo.
Embora sua participação nos acontecimentos definitivos seja reduzida em outros
momentos ao longo dos livros, ainda é possível demarcar seu espaço enquanto
destinadora, às vezes adjuvante. Num plano discursivo, pode-se dizer que encarna a
mentora sábia do herói. Sua temperança, aliada à autoridade obtida sem grandes asserções
de poder, através de seu posto, de sua postura séria e da conduta irretocável nas obrigações
institucionais dentro do sistema funcional, tornam-na uma encarnação diferente da figura
da bruxa, mais comumente associada ao mago homem. Embora tenha momentos de
sensibilidade que o senso comum gostaria de dizer “feminina”, e até mesmo “maternal”,
ela não conjuga o papel de esposa ao de mãe, situando-se firmemente no de professora.
Ao contrário do que acontece com outras figuras femininas, é respeitada por causa de seu
poder, e não apesar dele, sem, no entanto, colocar-se como ameaça. Não perde o controle
de seus feitiços, não é dominada pela magia das trevas, não precisa abrir mão de quem é
ao final. Trata-se e uma representação incomum na mídia, e talvez isso se relacione ao
fato de que não é o sujeito do percurso narrativo. Seja como for, é uma das muitas opções
contemporâneas de representação da mulher, em geral, e bruxa, em particular.

5.1.2. Bellatrix Lestrange: a devota


Dentre os comensais da morte, como se autodenominam os seguidores de
Voldemort, quase não são citadas mulheres, mas uma delas, Bellatrix Lestrange, é uma
das mais notórias pelo ardor feroz de sua lealdade, beirando a devoção. A estranheza
insinuada no sobrenome (de casada) é ilustrada por seu comportamento instável: ora
debochando e imitando “vozinha de bebê” ao se dirigir a Harry (ROWLING, 2005, 2007),
ora muito servil e dedicada, na presença de Voldemort365, ora torturadora orgulhosa da
própria crueldade. As adaptações fílmicas exacerbaram traços dessa instabilidade
emocional, associando-a à figura da histérica oitocentista, com suas gargalhadas
convertendo-se em arroubos de ódio e vice-versa.

365
A devoção de Bellatrix à causa do “puro sangue” confunde-se com sua devoção a Voldemort
(ironicamente, dado que ele é mestiço de bruxo com uma humana não-mágica). Em diversos momentos,
tem-se a impressão de que ela nutre sentimentos amorosos por ele. Por exemplo, quando julga que ele pode
ter se ferido, em Harry Potter e as relíquias da morte, chama-o “my lord” repetidamente, “como se falasse
a um amante” (ROWLING, 2007b, p. 563).
274

Parte desse desequilíbrio resulta do dano permanente de ter passado dezesseis


anos detida em Azkaban (ROWLING, 2005), uma remota prisão bruxa cuja mera
presença dos carcereiros (dementadores, uma espécie que funciona como um sanguessuga
emocional) é capaz de levar os presos à loucura. Não é um centro de detenção sujeito às
entidades reguladoras dos direitos humanos.
A narrativa não se volta muito ao passado de Bellatrix, mas, a partir de
informações esparsas ao longo dos livros, sabemos que foi condenada por inúmeros
crimes de assassinato e tortura, esta última modalidade incluindo entre suas vítimas os
pais de Neville Longbottom, colega do protagonista, desde então residentes permanentes
da ala psiquiátrica do hospital bruxo de St. Mungus. Ou seja, trata-se de uma criminosa
de fato, carreira que levará adiante até o fim: no último livro, Harry Potter e as relíquias
da morte, mata Dobby, um elfo doméstico, e tortura Hermione Granger, melhor amiga do
protagonista.
Voldemort considera-a sua seguidora mais fiel (ROWLING, 2005), visto ela não
ter tentado renegá-lo para mitigar a pena, como quase todos fizeram após sua primeira
queda (a que tornou Harry célebre no mundo bruxo). Por isso, é ela uma das primeiras a
ser libertada de Azkaban quando ele recupera as forças, ao conseguir um novo corpo, ao
final do quarto livro, Harry Potter e o cálice de fogo.
Nas obras subsequentes, Bellatrix aparece em poucas cenas — e, em todas, suas
ações de algum modo direcionam o enredo. No quinto livro, por exemplo, ela mata Sirius
Black, padrinho de Harry e o mais próximo que este chega a ter de uma figura paterna.
Sádica, mais do que se satisfazer por ter vencido um inimigo e causado um dano
emocional ao protagonista, ela demonstra triunfo pelo próprio ato de violência,
resumindo-o ao explicar ao menino como se lança o feitiço da tortura:

— Nunca usou uma Maldição imperdoável antes, não é menino


[sic]? — gritou ela. Abandonara a vozinha de bebê. — É preciso querer
usá-las, Potter! É preciso realmente querer causar dor, ter prazer nisso,
raiva justificada não faz doer por muito tempo. Vou lhe mostrar como
se faz, está bem? Vou lhe dar uma aula…366 (ROWLING, 2003, p. 655)

Seu viés transgressor, portanto, reside nesse prazer da violência, sempre para
ajudar a pavimentar o caminho de Voldemort ao poder e sedimentá-lo na posição de

366
No original: ““Never used an Unforgivable Curse before, have you, boy?” she yelled. She had abandoned
her baby voice now. “You need to mean them, Potter! You need to really want to cause pain — to enjoy it
— righteous anger won’t hurt me for long — I’ll show you how it is done, shall I? I’ll give you a lesson—
”.
275

ditador mágico. Embora ela se sinta justificada em suas ações, em decorrência de sua
crença na superioridade dos bruxos de “sangue puro”, não há meio de interpretá-la
positivamente sob nenhum viés sem filiar-se a uma retórica neonazista. Seu
posicionamento ideológico é o de uma fanática religiosa de comportamento terrorista.
Seu dever para com Voldemort é autoimposto e, mesmo o temendo como os demais
comensais, esforça-se para manter-se em suas boas graças.
Assim, no último livro, quando o protagonista e seus amigos são capturados e
presos na mansão Malfoy, onde Bellatrix está junto com outros comensais da morte, ela
se encarrega de interrogar e torturar Hermione, cuja mera existência em tudo desafia seus
ideais de que bruxos “puro sangue” são superiores. Marca a menina no braço com o
insulto mudblood.
Ao fim dessa sequência, o elfo doméstico Dobby tira-os do cativeiro, após render
os bruxos, e ela o mata. Trata-se de uma passagem repleta de significações simbólicas.
Dobby, criatura de uma espécie escravizada por bruxos, fora liberto por um truque de
Harry no segundo livro. Ele servia justamente à família Malfoy. Os elfos domésticos, sob
vários aspectos mais poderosos do que os bruxos, submetem-se porque querem, portanto
a insurgência de um deles ao invadir a antiga casa onde era escravo para resgatar
prisioneiros é uma afronta ao establishment defendido e desejado por Bellatrix.
Enquanto figura da bruxa, é interessante por representar um mal absoluto, sem
características redentoras ou passado sombrio capaz de justificar seu ódio pelas
populações não-mágicas, algo que até mesmo a construção maquiavélica de Voldemort
deu a ele. Ela tem algo em comum com a bruxa satânica descrita por tratadistas, na medida
em que nada em suas ações é justificável, a menos que se esteja disposto a ceder alguma
parcela de razão ao Diabo. Ao mesmo tempo, a forma como Bellatrix “cultua” Voldemort
e aquilo que, para ela, ele representa, pode ser lida como uma religiosidade às avessas, na
qual a crença em certos dogmas direciona suas ações e apaga qualquer evidência
contrária. Por exemplo, em sua firme concepção de que bruxos nascidos de famílias
inteiramente bruxas são “superiores”, alguém como Hermione Granger, nascida de pais
não-mágicos, é uma aberração, uma impossibilidade que deve ser exterminada por
desafiar sua visão de mundo.
Um último detalhe a respeito da personagem a ser comentado é sua aparência:
“Tão morena quanto a irmã era clara, as pálpebras pesadas e o maxilar pronunciado […]”
(ROWLING, 2007b, p. 23). Sua irmã é Narcisa Malfoy, descrita como loura. O contraste
chama a atenção porque acaba recorrendo a um lugar-comum. Narcisa, com sua aparência
276

de mulher conforme e maternidade redentora, é loira, enquanto Bellatrix, casada, mas


apaixonadamente devota por outro homem, sem filhos, é morena. Um detalhe corriqueiro
como esse, na representação das bruxas, é parte essencial para entender como o emprego
do estereótipo funciona na personagem, e Bellatrix é uma das que mais se adequa à bruxa
satânica dentro do universo de Harry Potter.

5.1.3. Narcisa Malfoy: a mãe


Mãe de Draco Malfoy, rival escolar do protagonista, Narcisa aparece pela primeira
vez no livro Harry Potter e o cálice de fogo (2000), descrita da seguinte maneira: “era
loura; alta e magra, e até seria bonita se não carregasse no rosto uma expressão que sugeria
que estava sentindo um mau cheiro bem debaixo do nariz”367 (ROWLING, 2001, p. 84).
Esnobe, de família rica, elitista e racista, tem todas as marcas de antagonista a Harry
Potter compartilhadas pelo filho e pelo marido, este um dos principais antissujeitos de
Harry Potter e a câmara secreta (1998). Quase nunca é mencionada e aparece em
pouquíssimas cenas, mas em duas delas atua como destinadora ao determinar, na
primeira, um redirecionamento importante para o enredo, e, na segunda, permitir ao
protagonista vencer no desfecho. Em ambas, um fator proeminente é sua única qualidade
redentora: ser mãe, uma remissão euforizante ao mito do amor materno.
Narcisa conjuga dois estereótipos femininos: a esposa e mãe respeitável da alta
sociedade, observadora da moral e dos bons costumes, e apoiadora da causa de
superioridade racial defendida — e imposta — por Voldemort. Esses dois não são, é claro,
contrários: discursos autoritários frequentemente remetem-se à família nuclear e à
imagem da mulher conforme como modo de estabelecer uma sujeição feminina a esse
modelo. A transgressão de Narcisa coloca-se, então, como uma não-transgressão: quando
a causa de Voldemort põe sua família e, principalmente, seu filho em risco, ela lhe dá as
costas, embora não o faça às claras.
A princípio, age à revelia de suas ordens; ao saber que Draco foi encarregado de
matar Dumbledore durante o ano letivo em Hogwarts — missão fadada ao fracasso,
considerando a desproporção entre as forças e as habilidades mágicas de cada um —,
procura Snape para que este o proteja. A maternidade, ameaçada da perda, despe-a de
orgulho, fazendo-a implorar ajuda, aos prantos e de joelhos, até ele concordar. Nesse

367
No original: “His mother was blonde too; tall and slim, she would have been nice-looking if she hadn’t
been wearing a look that suggested there was a nasty smell under her nose.”
277

momento, age como uma donzela em perigo: como seu marido está preso e as ordens de
Draco vêm de Voldemort, ela recorre a um homem próximo à família, capaz de intervir.
Seu único recurso, no papel de mulher conforme, é agir por baixo dos panos, manipulando
aqueles que consegue:
— Severo — sussurrou ela, as lágrimas deslizando pelo rosto pálido.
— Meu filho… meu único filho… […]
Narcisa começou a chorar com vontade, sem tirar os olhos
suplicantes de Snape.
— […] ele tem apenas dezesseis anos e não faz idéia [sic] do que o
espera! Por que, Severo? Por que o meu filho? É perigoso demais! É
vingança pelo erro de Lúcio, eu sei que é!
Snape não respondeu. Desviou o olhar das lágrimas da mulher como
se fossem indecentes, mas não pôde fingir que não a ouvia. […] Não
ouvindo resposta de Snape, Narcisa pareceu perder o pouco controle
que lhe restava. Levantando-se, cambaleou até Snape e agarrou-o pelas
vestes. Com o rosto muito próximo ao dele, as lágrimas caindo no peito
do bruxo, ela exclamou:
— Você poderia fazer isso. Você em vez de Draco, Severo. Você
teria sucesso, e ele o recompensaria mais do que a qualquer um…
Snape segurou-a pelos pulsos e afastou as mãos que agarravam suas
vestes. Baixando os olhos para o rosto manchado de lágrimas, disse
lentamente:
— Acho que a intenção dele é me mandar tentar depois […].
— Em outras palavras, não faz diferença para ele se Draco morrer!
[…]
Ela desmoronou aos pés dele, soluçando e gemendo.
— Meu único filho… meu único filho…
— Você devia se orgulhar! — exclamou Belatriz sem se apiedar. —
Se eu tivesse filhos, eu os daria para servir o Lorde das Trevas!
Narcisa soltou um grito de desespero e agarrou os próprios cabelos
com força. Snape se curvou, segurou a mulher pelos braços, levantou-a
e sentou-a no sofá. Serviu mais um pouco de vinho e empurrou o copo
na mão dela. […]
— Talvez seja possível… ajudar o Draco368 (ROWLING, 2005, pp.
31-3).

368
No original: “‘Severus,’ she whispered, tears sliding down her pale cheeks. ‘My son… my only son…’
[…] § Narcissa began to cry in earnest, gazing beseechingly all the while at Snape. § ‘[…] he is sixteen and
has no idea what lies in store! Why, Severus? Why my son? It is too dangerous! This is vengeance for
Lucius’s mistake, I know it!’ § Snape said nothing. He looked away from the sight of her tears as though
they were indecent, but he could not pretend not to hear her. […] When Snape said nothing, Narcissa
seemed to lose what little self-restraint she still possessed. Standing up, she staggered to Snape and seized
the front of his robes. Her face close to his, her tears falling onto his chest, she gasped, ‘You could do it.
You could do it instead of Draco, Severus. You would succeed, of course you would, and he would reward
you beyond all of us—’ § Snape caught hold of her wrists and removed her clutching hands. Looking down
into her tearstained face, he said slowly, ‘He intends me to do it in the end, I think […]’ § ‘In other words,
it doesn’t matter to him if Draco is killed!’[…] § She crumpled, falling at his feet, sobbing and moaning on
the floor. § ‘My only son… my only son…’ § ‘You should be proud!’ said Bellatrix ruthlessly. ‘If I had
sons, I would be glad to give them up to the service of the Dark Lord!’ § Narcissa gave a little scream of
278

Aqui, interessa observar que a estética da sociedade bruxa de Harry Potter é


arcaizante, em muito remetendo ao século XIX, o que auxilia na compreensão de Narcisa,
pois ela se coloca como uma distorção maligna do “anjo do lar”, a esposa burguesa cuja
fragilidade ajuda a ressaltar as características de força do homem que deve cuidar dela e
protegê-la (SIMIONATO, 2020, pp. 31-2). Como seu marido está preso e, com isso,
falhou em seu papel, deixando-a vulnerável e incapaz de salvar o filho de uma morte certa
(quase como a mãe de um soldado convocado à guerra), ela apela para outro, próximo o
suficiente para compadecer-se e, talvez, desacostumado o suficiente a estar nesse papel
para ceder ao apelo.
Já na batalha final, no último livro, a rebelião de Narcisa contra Voldemort é mais
direta, mas ainda secreta: ela mente para Voldemort ao lhe ser perguntado se o
protagonista está vivo. Já não se importa com o desfecho do conflito, apenas com o
destino do filho, como o protagonista vem a perceber:

— […] O garoto… está morto? […] Você — disse Voldemort, e


houve um estampido e um gritinho de dor. — Examine-o. Me diga se
está morto.
[…] Mãos, mais leves do que imaginava, tocaram o seu rosto,
ergueram uma pálpebra, se introduziram sob sua camisa e sentiram seu
coração. Ele ouvia a respiração rápida da mulher, seus longos cabelos
fizeram cócegas em seu rosto. Harry sabia que ela ouvia a pulsação
ritmada da vida contra suas costelas.
— Draco está vivo? Está no castelo?
O sussurro era apenas audível; os lábios dela estavam a meros
centímetros do seu ouvido, sua cabeça tão curvada que a cabeleira
protegia seu rosto dos espectadores.
— Está — sussurrou ele em resposta.
Harry sentiu a mão em seu peito se contrair; suas unhas o espetaram.
Então, ela retirou a mão. Sentara.
— Está morto! — anunciou Narcisa Malfoy para os Comensais.
E agora eles gritaram, agora deram berros de triunfo e bateram com
os pés no chão, e, entre as pálpebras, Harry viu clarões vermelhos e
prateados subirem ao ar, comemorando.
Ainda fingindo-se de morto, ele compreendeu. Narcisa sabia que a
única maneira de lhe permitirem entrar em Hogwarts e procurar o filho
era participar do exército conquistador. Ela já não se importava se
Voldemort venceria ou não369 (ROWLING, 2007, p. 564).

despair and clutched at her long blonde hair. Snape stooped, seized her by the arms, lifted her up, and
steered her back onto the sofa. He then poured her more wine and forced the glass into her hand. […] § ‘It
might be possible… for me to help Draco.’
369
No original: “‘The boy…is he dead?’ […] You,’ said Voldemort, and there was a bang and a small
shriek of pain. ‘Examine him. Tell me whether he is dead.’ § […] Hands, softer than he had been expecting,
279

Narcisa nesse ponto pode ser associada à personagem Cersei Lannister, na obra
Guerra dos Tronos, de George R.R. Martin: ambas são mulheres antagonistas cuja
maternidade, ainda que de filhos igualmente antagonistas, presta-se a reafirmar o velho
adágio de que o amor de uma mãe é o sentimento mais poderoso do mundo. No caso de
Harry Potter, é isso que permite ao lado do bem vencer a guerra. A maternidade
transformou-a de antissujeito átono em destinador, alinhando-a momentaneamente ao
eixo do protagonista, não porque ela de repente discorde dos ideais de Voldemort, mas
porque este ameaçou a vida de seu filho.
Enquanto Bellatrix coloca-se como uma anti-mãe, chegando a alegar que
sacrificaria seus filhos a Voldemort se os tivesse, num papel temático bem estereotípico
da bruxa, diga-se de passagem, Narcisa tem sua existência centrada e justificada
integralmente através de seu ser mãe, o que é atípico da representação da bruxa no geral,
mas não no universo literário de Harry Potter, no qual habita também a boa Sra. Weasley,
esta uma mulher conforme em todos os moldes possíveis.

5.1.4. Hermione Granger: coadjuvante hipercompetente


A melhor amiga de Harry Potter encarna o papel da aluna aplicada, inábil nas
relações sociais com os colegas, especialmente por, não vinda de uma família bruxa e sim
“trouxa” [muggle], configurar uma espécie de estrangeira naquela sociedade.
Existe aí uma tensão, latente num primeiro momento, originada de um preconceito
de classe que ela desafia já por sua própria existência, mas também por sua excelência
escolar cada vez mais retumbante (“a bruxa mais inteligente de sua idade”, segundo
Dumbledore, sempre no papel temático do velho sábio e narrativo do destinador, portanto
dotado do poder de validação).
Dentro do enredo, a personagem é transgressora apenas sob o ponto de vista dos
antagonistas, como parece ser a tendência das bruxas heroicizadas, afiliadas ao feminismo

touched Harry’s face, pulled back an eyelid, crept beneath his shirt, down to his chest and felt his heart. He
could hear the woman’s fast breathing, her long hair tickled his face. He knew that she could feel the steady
pounding of life against his ribs. § ‘Is Draco alive? Is he in the castle?’ § The whisper was barely audible;
her lips were an inch from his ear, her head bent so low that her long hair shielded his face from the
onlookers. § ‘Yes,’ he breathed back. § He felt the hand on his chest contract; her nails pierced him. Then
it was withdrawn. She had sat up. § ‘He is dead!’ Narcissa Malfoy called to the watchers. § And now they
shouted, now they yelled in triumph and stamped their feet, and through his eyelids Harry saw bursts of red
and silver light shoot into the air in celebration. § Still feigning death on the ground, he understood. Narcissa
knew that the only way she would be permitted to enter Hogwarts, and find her son, was as part of the
conquering army. She no longer cared whether Voldemort won.”
280

em maior ou menor grau. No mais das vezes, Hermione tem uma conduta exemplar de
acordo com as normas sociais vigentes e, quando contraria uma regra, o faz
altruisticamente para salvar os amigos ou lidar com algum outro perigo iminente e mortal.
A única característica condenável de Hermione Granger — dentro e fora do
universo interno da obra — é sua autossuficiência, traduzida como orgulho ou arrogância,
a depender da cena em ação. Essa característica em geral comum a heróis masculinos lhe
rende a indiferença e até mesmo o desprezo dos colegas, inclusive dos dois que virão a se
tornar seus amigos, Harry Potter e Ronald Weasley.
A narração trata-a muitas vezes como tagarela: ela solta torrentes de informações
que seus colegas não sabem, causando-lhes ansiedade; um mecanismo de defesa de
alguém numa posição vulnerável procurando provar sua capacidade de se ajustar ao novo
cenário. Seu sucesso frente às falhas dos amigos e constante esforço em mostrar-se
preparada a responder qualquer pergunta dos professores lhe rendem ora deboches, ora
inveja, traduzida em hostilidade.
Por exemplo, repete-se uma cena ao longo dos livros: durante as aulas de Poções,
Snape direciona perguntas a Harry Potter, sabendo que ele será incapaz de responder,
enquanto Hermione ergue a mão, ávida pela oportunidade de se provar. Nas melhores
ocasiões, o professor ignora-a; nas piores, chama-a de “Sabe-Tudo” [know-it-all],
frequentemente com algum adjetivo negativo, como insufferable, ou até mesmo de
“garota tola” [silly girl]. Este é um caso em que a ficção parece imitar situações
observadas no mundo natural. Como Aponta Susan Lehr,

pesquisas em sala de aula documentaram que muitas meninas são


ignoradas por professores por serem espertas ou agressivas demais, mas
são igualmente ignoradas por serem quietas ou passivas demais. […]
As percepções de professores de alguns meninos alegavam que, se os
meninos se esforçassem mais, alcançariam excelentes resultados. Esses
professores percebiam-nos como naturalmente espertos. Em contraste,
o trabalho duro de muitas estudantes do sexo feminino era
desvalorizado por não ser percebido como a inteligência inata
encontrada em meninos. Meninas […] foram caracterizadas como
encorajadas a serem cuidadoras e ajudantes em sala de aula. Esses
professores também usavam as meninas em salas de ensino infantil e
fundamental para domar e civilizar a agressiva desordem dos
meninos370 […]” (2001, pp. 2 e 5).

370
No original: “Classroom research has documented that many girls are ignored by teachers for being too
smart or too aggressive, but find themselves equally ignored for being too quiet or too passive. […]
teachers’ perceptions of some boys was characterized by their saying that if the boys only worked harder
they would be achieving at a high level. These teachers perceived them as being naturally smart. In contrast,
281

Por outro lado, mesmo quando Hermione recebe reconhecimento de seus


professores, é negativamente sancionada pelos colegas. Numa aula de Feitiços, o
professor Flitwick mostra a toda a classe que Hermione foi a única a conseguir lançar um
a contento e, ao final da lição, Rony mostra-se mal-humorado:

— Não admira que ninguém suporte ela — disse a Harry quando


procuravam chegar ao corredor. — Francamente, ela é um pesadelo.
Alguém deu um esbarrão em Harry ao passar. Era Hermione. Harry
viu seu rosto de relance — e ficou assustado ao ver que ela estava
chorando.
— Acho que ela ouviu o que você disse.
— E daí! — mas pareceu meio sem graça. — Ela já deve ter reparado
que não tem amigos.
Hermione não apareceu na aula seguinte e ninguém a viu a tarde
inteira.
Ao descerem ao salão principal para a festa das bruxas, Harry e Rony
ouviram Parvati contar à amiga Lilá que Hermione estava chorando no
banheiro das meninas e queria que a deixassem em paz371 (ROWLING,
2000b, p. 150).

A frustração daqueles incapazes de obter os mesmos resultados de Hermione


converte-se em sentimentos negativos por ela. Na passagem que se segue a esse trecho,
aparece um trasgo [troll] nas masmorras da escola, uma criatura agressiva e carnívora. É
o piso do banheiro onde Hermione está chorando. De posse dessa informação, Harry e
Rony, culpados, partem em busca dela e acabam salvando-a, a partir de quando eles se
tornam amigos. Esse tipo de mudança de relacionamento existe em situações bastante
corriqueiras na infância, então não surpreende no universo mágico de Harry Potter. A
razão de Hermione não se enquadrar torna-se o maior trunfo do trio, pois ela tem
conhecimentos que os outros não têm, e sabe onde buscar aqueles que lhe faltam. Ainda
assim, Harry e Ronald gostam que Hermione não seja a melhor em tudo: “Xadrez era a

the hard work of many female students was devalued because it was not perceived as being innate
intelligence as found in boys. Girls […] were also characterized as being encouraged to be classroom
nurturers and helpers. These teachers also used girls in elementary and secondary classrooms to tame and
civilize the aggressive rowdiness of boys […].”
371
No original: “‘It’s no wonder no one can stand her,’ he said to Harry as they pushed their way into the
crowded corridor. ‘She’s a nightmare, honestly.’ § Someone knocked into Harry as they hurried past him.
It was Hermione. Harry caught a glimpse of her face — and was startled to see that she was in tears. § ‘I
think she heard you.’ § ‘So?’ said Ron, but he looked a bit uncomfortable. ‘She must’ve noticed she’s got
no friends.’ § Hermione didn’t turn up for the next class and wasn’t seen all afternoon. On their way down
to the Great Hall for the Hallowe’en feast, Harry and Ron overheard Parvati telling her friend Lavender
that Hermione was crying in the girl’s toilets and wanted to be left alone.”
282

única coisa em que Hermione perdia, uma experiência que Rony e Harry achavam que
lhe fazia muito bem”372 (ROWLING, 2000b, p. 187).
Ela conquista amigos em troca de seu constante esforço pela excelência escolar.
Por sua causa, as aventuras do trio ano após ano também são acompanhadas de aprovação
no período letivo, o que lhes permitirá um futuro, mesmo que em sua adolescência estes
não enxerguem isso, taxando-a de overachiever.
Ou seja, ela é retratada como mais madura do que os meninos de sua idade, algo
vigente no senso comum ao se comparar os dois gêneros numa perspectiva
heterocisnormativa. Além disso, ela acumula uma jornada dupla: vive as aventuras em
grupo e cuida de seus estudos e dos de seus amigos. Entre eles, Harry também tem uma
jornada dupla, mas, além de salvador do mundo mirim, é um jogador de quadribol, esporte
bruxo envolvendo voo em vassouras.
Pensando nos estereótipos da infância373, nota-se um reforço da socialmente
desejável imagem da menina fechada entre quatro paredes estudando, enquanto o menino
se dedica a atividades físicas374 (LEHR, 2001). Ainda assim, isso também reflete o
pensamento da sociedade pós-moderna invertendo os estereótipos das figuras mágicas
históricas: o mago erudito, por vezes alquimista, debruçado sobre pesados tomos antigos
e pergaminhos ilegíveis e experimentos, por oposição à bruxa desgrenhada de
conhecimento oral e experiência prática, habitando barracas e ambientes externos. O voo
noturno para o sabá se converte num jogo como outros esportes, regrado, mantido sobre
controle. Embora neste não haja, em tese, divisão por gêneros, as meninas das equipes
são relegadas a papéis muito secundários na narrativa.
Temperada, a arrogância latente de Hermione é posta a serviço do protagonista
reiteradamente, o que concede a ela um papel por alguns definido como o de uma
personagem sofrendo de “síndrome da coadjuvante hipercompetente”375.

372
No original: “Chess was the only thing Hermione ever lost at, something Harry and Ron thought was
very good for her.”
373
Discorri a esse respeito na seção “A representação de modelos e a infância”, do Capítulo 1:
Representação e estereotipagem do feminino, em minha dissertação de mestrado (CHIOVATTO, 2017).
374
Isso não deixa de ser uma maneira de aprisionar a sexualidade feminina; a partir do momento em que as
mulheres podem aprender a ler e a escrever, isso vira mais uma forma de as aprisionar na esfera doméstica.
375
Esta não foi uma expressão cunhada no ambiente da crítica acadêmica. Os autores Constance Grady e
Javier Zarracina dizem, num artigo jornalístico originalmente publicado na Vox: “A cultura pop é cheia de
personagens femininas brilhantes que sabem tudo e podem fazer qualquer coisa — exceto salvar o dia. Elas
precisam dos seus amigos homens menos competentes para fazer isso. […] Essa abordagem é meio que
uma resposta ao feminismo. Todos sabemos que é ruim relegar a sua personagem feminina ao papel de
donzela em apuros, então vamos fazer com que ela seja competente! Na verdade, vamos fazer melhor:
vamos fazer com que ela seja mais competente do que o herói. Girl power! Os caras são sempre uns idiotas
trapalhões, não é mesmo garotas? Exceto, sabe, quando é importante. Quando é importante, somente um
283

Estrangeira e solitária num ambiente de maravilhamento, mas também repleto de


hostilidade, Hermione num primeiro momento guarda certa semelhança com a viúva
isolada, mal-humorada, rechaçada pelos vizinhos, situada no passado não-ficcional. Por
outro lado, ela tem algo que os outros não têm, sem depender de ninguém senão pela
perspectiva do contato social. Nesse sentido, seu êxito em todas as áreas do universo
mágico, sobre o qual nada sabia até ser convocada a integrar o corpo discente de
Hogwarts, é quase uma afronta aos antagonistas e seu tradicionalismo de retórica hitlerista
pela “superioridade ariana”, que preza pelo “puro sangue” bruxo.
No último livro da série, As Relíquias da Morte, o trio se evade do derradeiro ano
letivo, porque o antagonista máximo da obra, Voldemort, junto com seu séquito, tomou
o poder sobre o Ministério da Magia — e, com isso, sobre Hogwarts. A própria vida de
Hermione, não percebida por esse grupo como uma bruxa de verdade, está em risco.
Assim, eles viajam juntos e acampam durante a busca desenfreada pelos elementos que
os ajudarão a triunfar no final. Nesse novo contexto, Hermione continua num papel
temático maternal, ainda mais pronunciado do que anteriormente: carrega em sua bolsa
mágica os suprimentos dos quais o trio precisa em sua empreitada, incluindo a tenda;
responsabiliza-se pelos feitiços de proteção que os ocultam e protegem de ameaças
externas ao acampamento, sejam de ordem natural ou mágica, e chega a atuar como
mediadora quando as condições extremas nas quais se encontram começam a criar
conflitos.

5.2. A bruxa estereotípica subvertida na animação Over the Garden Wall


Over the garden wall (2014, dir. Robert Alvarez, Larry Leichliter, Eddy Houchins,
Ken Bruce), produzida e veiculada pela Cartoon Network, é uma minissérie animada de
dez episódios com aproximadamente dez minutos de duração cada um. Narra o percurso
de dois irmãos, Wirt e Greg, na terra fantástica onde estão perdidos. Trata-se de uma obra
infantil de horror, com uma narrativa episódica de aventuras envolvendo a superação de
obstáculos no caminho de volta para casa, este marcado pela autodescoberta — aos
moldes da jornada de Dorothy em O Mágico de Oz, de L. Frank Baum.
Aqui interessa analisar apenas o sétimo episódio, “O toque do sino” [The Ringing
of the Bell], cuja narrativa brinca com o estereótipo das bruxas, reforçando-o para ao final

cara pode fazer o serviço” (2017, tradução VASCOUTO, 2017). Hermione é um dos primeiros exemplos
em qualquer discussão sob esse viés.
284

subvertê-lo. O enredo é simples: a dupla de irmãos, em suas andanças, chega a uma casa
onde é recebida por uma bonita jovem, Lorna, que parece regular idade com o irmão mais
velho, Wirt. Ela receia a chegada de Tia Sussurros [Auntie Whispers], com quem vive,
alegando que esta odeia visitas. Ao ouvi-la, apressa-se a esconder os dois, temendo sua
reação se encontrá-los.
Todo esse preâmbulo basta para pôr tanto os irmãos quanto o espectador de
sobreaviso. Como Tia Sussurros desperta temor na boa-jovem-bela sobrinha, obviamente
atuará como antissujeito desta etapa do percurso narrativo. Seu surgimento em cena
parece confirmar tal impressão: é disforme, com uma cabeça enorme em relação ao corpo,
além de corcunda, e veste uma túnica preta sobre o corpanzil gordo; seus olhos são
grandes demais e amarelados; o nariz, vermelho; a boca, larga e banguela, com apenas a
sombra de alguns dentes negros; é muito maior do que Lorna, tanto em altura quanto em
volume, e de maneira desproporcional. Mesmo dentro do estilo cartunesco do desenho,
tem, em suma, uma imagem monstruosa que a configuraria como uma alteridade ainda se
a personagem não houvesse sido previamente introduzida como alguém a temer.

Figura 28: A Tia Sussurros, da animação Over the Garden Wall. À esquerda, Lorna e ela. À direita, ela
com o sino mágico.

Sua desconfiança é imediata: fareja estranhos na casa. Para distraí-la, Lorna traz-
lhe tartarugas vivas, seu prato preferido. Cansada de ter feito todas as tarefas domésticas,
parte de sua rotina, a jovem senta-se para ler com a tia. O enquadramento mostra a cena
do ponto de vista de Greg através das frestas de uma porta.
Quando Lorna se mostra desinclinada a atender a um pedido da tia, esta sacode
um sino diante de seu rosto, dizendo “o poder do sino a compele” [the power of the bell
commands you], frase repetida ao longo do episódio. Lorna, claramente hipnotizada,
obedece. Ou seja, Tia Sussurros cada vez mais se enquadra no papel da bruxa feia-velha-
285

má, lançando mão de um feitiço para submeter Lorna e mantê-la presa a seu papel de gata
borralheira.
Wirt, romanticamente interessado em Lorna, quer enfrentar Tia Sussurros e leva
a jovem a se rebelar. Ante nova tentativa da tia de usar o sino para controlá-la, tiram-no
dela. Com isso, uma vez que Lorna se agita, livre do feitiço, revela-se algo que inverte
completamente o que os protagonistas — e o espectador — julgavam saber, pois a jovem
adquire uma aparência fantasmagórica e cadavérica. Segundo Tia Sussurros, ela foi
amaldiçoada e essa nova forma torna-a uma ameaça, somente possível de ser contida com
o poder do sino. Lorna não tem consciência da maldição; esta sua nova versão é seu duplo,
à la Dr. Jeckyll e Mr. Hyde. Assim, Tia Sussurros fazia-a responsabilizar-se pelos
serviços domésticos a fim de mantê-la cansada, e obrigava-a a ler com ela a fim de mantê-
la calma, tudo para não ativar a transformação engendrada pela maldição. O controle
através do feitiço do sino era uma forma de proteger Lorna de si mesma e os outros.

Figura 29: Lorna, transformada pela maldição

Uma vez quebrada a maldição, Tia Sussurros imagina que Lorna partirá e lamenta
ser só uma velha sozinha. Essa frase conjuga o lado mais conhecido da figura da bruxa
com aquele aspecto histórico que ajudava a compor seu papel de alteridade: a mulher
idosa, socialmente vulnerável, desamparada e sem perspectivas. Lorna decide continuar
morando com ela, reconciliação que resulta no equilíbrio desse núcleo familiar composto
286

de duas mulheres vivendo isoladas no meio da floresta, a jovem solteira e a idosa viúva
ou solteira (não se diz).
A conclusão feliz dá-se de maneira inesperada, e a reviravolta no enredo só foi
possível porque, num primeiro momento, a narrativa adota o discurso que emprega
estereótipos bem estabelecidos nos imaginários dos contos de fadas e das obras infantis
deles derivadas. De um lado, a jovem doce e servil, à mercê dos caprichos da figura
materna má. Do outro, a velha feia, vestida de preto, que a enfeitiça e a explora. Aqui, no
entanto, ambas as personagens extrapolam as amarras do estereótipo e ganham dimensões
inesperadas. A figura dócil esconde um duplo monstruoso; a bruxa má não é nem bruxa,
nem má.
Por isso, a subversão não é integral.
Tia Sussurros, afinal de contas, desvela sua bondade em sua incapacidade mágica.
Sua vulnerabilidade integra os fatores pelos quais passa a ser querida. Seria mais difícil
empatizar com ela caso fosse uma feiticeira poderosa e autossuficiente, mesmo se
provando benévola, por causa da frequência com que figuras femininas de poder são
vilanizadas ou, se heroicizadas, perdem o controle e precisam ser ajudadas, contidas,
drenadas.
Por outro lado, Lorna apela ao estereótipo da boa moça que abriga dentro de si
uma potência destrutiva a ser controlada. É uma espécie de anjo do lar tornada histérica
quando o dispositivo contentor dessa potência sai de cena. Para marcar a mudança, ela
não pode manter o semblante anterior; tem de assumir uma face monstruosa e ganhar
poderes — estes associados à figura da bruxa, como a própria metamorfose e o voo. A
quebra da maldição é marcada também pela perda desses poderes.
287

Conclusão

Eu era pré-adolescente na primeira vez em que vi uma reprodução da obra de René


Magritte que trazia o desenho de um cachimbo com a ultrajante legenda: “Isto não é um
cachimbo” [Ceci n’est pas une pipe]. Fiquei perplexa, pois o que mais aquilo seria, senão
um cachimbo? Depois de adulta, quando a vi ao vivo, acompanhada de um audioguia,
recebi a informação de que Magritte era publicitário e, com aquele cartaz, queria chamar
atenção para o fato de que uma representação de um objeto não é o objeto em si. Ora, é
impossível fumar o desenho de um cachimbo, um fato tão evidente que a necessidade de
o afirmar soa até pueril.
Entretanto, estudando a figura estereotípica da bruxa, confrontando alguns
dilemas das redes sociais e relendo algumas citações de Susan Hopkins que havia
separado durante o mestrado, voltou à tona a questão de que, embora a representação não
seja a coisa em si, tendemos a considerar que sim. Apenas acessamos as experiências de
terceiros através de relatos, ou testemunhando um fato a partir de nossos próprios filtros.
A imagem que uma pessoa projeta de si ao redigir um texto, tirar uma selfie ou relatar
uma discussão pode conter parcelas do “ser” dessa pessoa, porém não é a pessoa.
E isso me traz de volta à bruxa ao longo dos séculos, sempre encarnando os
interesses de um grupo ou de outro, ainda que não de modo inteiramente consciente e/ ou
deliberado. Por vezes, enquanto lia livros, artigos, documentos históricos, obras de ficção,
eu sempre voltava à questão inicial de que não tinha acesso às mulheres representadas em
uns e em outras. E, no entanto, mesmo se eu tivesse acesso a essas mulheres e conversasse
com elas, o que eu poderia saber da “grande verdade”, esse conceito fugidio e
incontornável? Cada uma relataria sua história de acordo com uma percepção de si e uma
percepção de mim, talvez esperando me chocar, angariar minha simpatia ou provocar
alguma reação. Toda pessoa, no ato de uma enunciação, projeta-se enquanto enunciador
e, assim, fragmenta-se para conseguir se comunicar. E essa comunicação tem um objetivo
persuasivo, deliberado ou não, anunciando o ethos temporário do sujeito.
As bruxas são o que a história fez delas, o que a contemporaneidade faz delas. Em
suma, a todo momento durante minhas análises, precisava ter claro: ceci n’est pas une
sorcière. Entretanto, o quadro de Magritte referia-se à representação de um objeto cujo
referente existe no mundo natural. E qual o referente da bruxa? São as rés condenadas por
bruxaria? São as mulheres que se diziam bruxas antes de serem presas? São as curandeiras
e parteiras que a pós-modernidade começou a chamar de “bruxa” indiscriminadamente?
288

É alguém que de fato opera os poderes sobrenaturais a elas atribuídos naquela época? Ou,
pelo menos, são aquelas que realizam rituais específicos, acreditando estarem
manipulando forças ocultas ao resto da humanidade?
E no campo da ficção, quem é a bruxa? Como reconhecê-la? Através da
aparência? Dos poderes? De uma relação privilegiada com algum ser sobrenatural, de
ordem demoníaca ou não? Nessa área em especial, ela pode representar qualquer coisa.
A palavra “bruxa” tornou-se polissêmica, embora pareça se referir a tipos
específicos de pessoas/ personagens. O entendimento do termo depende muito de um
pacto prévio, compartilhado entre enunciador e enunciatário, acerca de sua significação.
Pode-se empregá-lo tanto para elogiar quanto para ofender, dependendo de quem fala e
do sistema de crenças e ideologias no qual o enunciador se inscreve.
As bruxas não vinham de uma tradição ou de um antigo culto perdido, conforme
as fontes históricas utilizadas na presente pesquisa defendem. Mas por que deveriam? A
maioria das tradições dos tempos passados, ao menos no Ocidente, celebra coisas hoje
consideradas horríveis. Na literatura atual, bem como no neopaganismo, onde as bruxas
em si têm voz, cria-se uma nova tradição, de viés mais feminista e menos excludente,
celebrando as individualidades femininas e euforizando características e relações antes
disforizadas.
Muitas dessas tentativas de estabelecer novas tradições ou reformar as antigas
bebem na fonte das ideias escritas por homens misóginos ao longo dos séculos, como nos
exemplos de Sabrina, ou do hoje clássico filme Jovens Bruxas [The craft] (dir. Andrew
Fleming, 1996) etc. Nesses casos, o empoderamento que se atribui à figura da bruxa ainda
tem consequências negativas, disforizando seu poder mesmo enquanto aparentemente a
euforiza enquanto ator, imagem e papel temático. O feminino transgressor dotado do
poder-querer continua sancionado negativamente. O discurso da perda de controle
quando a personagem manifesta “poder demais” permanece, bem como há reiteradas
punições para o egoísmo que nem sempre a figura do anti-herói masculino recebe. A anti-
heroína ainda é uma construção difícil.
A bruxa enquanto estereótipo do feminino transgressor posta de maneira
euforizada é fruto de construção da contemporaneidade ao reinterpretar o passado. Ela
vem se espalhando pelo senso comum, tal qual a bruxa satânica à sua época, porque ela
advém da estrutura folclórica do mito (cf. WILLUMSEN) que compactua com a visão de
mundo dominante nos meios culturais da atualidade, tanto sobre o feminino quanto sobre
o mundo pré-Iluminista.
289

Objeto de horror e fascínio, a bruxa atravessou eras e culturas, vestindo diversas


roupagens e, por vezes, sobrepondo-se a outras figuras femininas eminentes numa
comunidade. No Ocidente, as mais frequentes dentre estas são parteiras, curandeiras,
benzedeiras, costumeiramente viúvas. Quer o senso comum fantasiar que todas as
mulheres de algum destaque tenham sido perseguidas pela Inquisição, o tribunal da
Contra-Reforma católica, mas basta uma leitura um pouco mais cuidadosa do material
disponível para descobrir que: 1) parteiras e curandeiras nem mesmo são as rés mais
frequentes do crime de bruxaria, salvo em locais e épocas específicos; 2) a Inquisição não
perseguia bruxas com a mesma ferocidade destinada a outros hereges376, tendo sido mais
brutal com cristãos-novos, especialmente na Península Ibérica; 3) nos lugares onde o
Santo Ofício estava ausente e, em decorrência disso, não tinha jurisdição, também havia
perseguição a bruxas, como em territórios protestantes (sejam luteranos, sejam
anglicanos, sejam calvinistas); 4) o tribunal secular era o responsável pela maioria das
condenações e execuções de bruxas mesmo em reinos católicos.
Outra importante observação nem sempre lembrada pelo senso comum é que
todos os sistemas de caça às bruxas contavam com a participação ativa de membros das
comunidades onde elas se inseriam (cf. GASKILL, 2006; BRIGGS, 1998). Vizinhos,
parentes, amigos e/ ou rivais: todos poderiam vir a ser denunciantes e/ ou testemunhas
voluntárias contra a ré. Na Inglaterra, mulheres de “boa reputação” eram chamadas a
examinar o corpo da acusada em busca da marca do Diabo (HUTTON, 2017; GASKILL,
2006).
No contexto histórico do início da Idade Moderna (uma época entre 1500 e 1700),
a bruxaria poderia ser praticada por pessoas de qualquer gênero e estrato social. No
entanto, o principal estereótipo associa-a ao feminino em geral, e particularmente a
mulheres viúvas ou nunca casadas, idosas e em situação de penúria, quando não de
mendicância. Por um lado, a extrema vulnerabilidade desse grupo social coloca-o à mercê
da boa vontade de outros membros da comunidade, gerando uma dependência que, se não
atendida, engendra rancor. Tal sentimento pode manifestar-se na forma de ameaças
veladas ou explícitas que uma senhora em suas condições jamais teria meios de cumprir.
Ao menos, não sem recorrer ao sobrenatural.
O mundo até o início da Idade Moderna, contudo, é povoado pelo sobrenatural.

376
Ronald Hutton (2017) discorreu a respeito desse assunto, apontando que a última bruxa condenada na
Espanha, por exemplo, foi executada em 1608, enquanto a famosa Inquisição espanhola não deixaria de
atuar por ainda dois séculos.
290

Trata-se de uma sociedade sujeita às intervenções do Diabo e seus servos. Sua


existência não está em dúvida para grande parte das pessoas, sejam pobres camponeses
ou médicos e juristas da elite letrada. Os debates são acerca da esfera de atuação do Diabo
e do alcance de seu poder e dos limites de sua interferência entre os seres humanos. Boa
parte deles é orientado pelas guerras de religião do período; membros de uma religião
cristã mostram-se muito dispostos a ver os seguidores da(s) religião(ões) rival(ais) como
inimigos de Deus e servos do Inimigo.
Nesse contexto, a senhora amargurada pela pobreza, velhice e doença aparece
como dotada do potencial sobrenatural de realizar feitos mágicos, através do poder
concedido pelo Diabo. Às vezes, é um poder a ela atribuído por terceiros, mas não raro
ela mesma alardeia suas capacidades mágicas. O motivo não é difícil de deduzir, e
diversos depoimentos de bruxas em juízo o confirmam: se não lhe dão de comer por
caridade, fazem-no por medo. A morte ou a doença prolongada de animais ou membros
da família do denunciante, em geral, confirmava o poder perante os envolvidos, a
comunidade e os tribunais encarregados do processo.
Isso coloca nossa bruxa estereotípica numa situação de insolúvel dicotomia:
integra as parcelas mais vulneráveis da população, vivendo no limite da inanição e da
solidão, cercada do desprezo e da condescendência — quando muito — de vizinhos e
mesmo da família. Por outro lado, pode ter uma oculta habilidade para o mal através de
seus poderes sobrenaturais. Esses poderes nunca de fato melhoram sua vida num sentido
prático; ela continua a depender da boa vontade ou do medo da comunidade para se
alimentar, ter o que vestir e lenha para aquecê-la, além de outras necessidades básicas. E
continuará assim até morrer, executada ou por causas naturais, em casa, na forca, na
fogueira ou nas péssimas condições da prisão; seus poderes também não podem salvá-la.
Só têm capacidade de causar mal a terceiros e, ocasionalmente, o bem de desfazer um
feitiço malicioso causado por outra bruxa.
A dicotomia nasce e desenvolve-se a partir de processos reais, envolvendo pessoas
que de fato existiram. Contudo, ela se fortalece e continua ressoando através das artes
mesmo após séculos de a maioria das populações — ao menos, as responsáveis pela
crença dominante — terem aberto mão de sua crença em bruxas e até nas habilidades do
Diabo de se manifestar e interferir fisicamente no plano material.
Isso deve em muito ao fato de a bruxa suscitar, desde sempre, horror e fascínio
(em doses variadas, a depender da cultura na qual se insere) e estas serem duas
importantes ferramentas nas artes, em especialmente naquelas destinadas ao
291

entretenimento. É o que se depreende das obras de séculos que sobreviveram até nossos
dias e das que estão sendo produzidas hoje, na contemporaneidade.
A bruxa ganhou inúmeras possibilidades: monstro vilanesco, monstro
incompreendido, vítima inocente de uma sociedade que a vilaniza, vítima da libido de
homens poderosos, médica não estudada dos pobres e aflitos, anti-heroína, heroína
contrária ao patriarcado, ícone feminista. Todas estas de alguma forma procuram alguma
característica daquelas mulheres reais para celebrar, exacerbando-a e minimizando
outras, descontextualizando-as ou ressignificando-as em nome de um propósito narrativo
que é também ideológico, projetando nelas e em seu tempo anseios, reflexões ou crenças
quase sempre anacrônicos.
Poucos artistas dedicam-se ao aspecto mais humano da figura, ou seja, ao fato de
que a dicotomia, a ambivalência, a dualidade, é insolúvel porque é indissolúvel da
humanidade. Percebe-se que a bruxa da ficção contemporânea, para ser reconhecida
enquanto tal, tem algumas das características estereotípicas, mas mesmo ao ser
ressignificada numa chave de leitura positiva acaba por incorrer em outros estereótipos.
Por exemplo, a bruxa heroica, justiceira social, costuma ser jovem e, mesmo se não
exatamente bela, ao menos atraente. Normalmente, é objeto de amor romântico idealizado
e, se há sexualização envolvida, tende a ser conforme a celebrada pela “moral e os bons
costumes”. A bruxa sábia, curandeira, pode até ser mal-humorada, mas como mecanismo
de defesa a hostilidades externas; é altruísta e isso se demonstra no fato de que, mesmo
se idosa, não é desfigurada. A bruxa vilã costuma ou ser idosa e feia ou, se bonita, tem
uma sexualidade exacerbada, talvez não normativa, incentivando adultério, incesto e
outros tabus. Normalmente, isso se mostra através de um protagonista masculino, que ou
será repelido por ela, ou atraído para a própria destruição.
Estou generalizando com base em centenas de filmes, séries e livros que dialogam
de alguma forma com a tradição da bruxa, a maioria dos quais não foi oportuno abordar
no presente trabalho, mas, é claro, cada objeto merece um estudo detalhado; cada obra
privilegia certos aspectos em sua construção da bruxa. O que parece constante é que ela
tende a transgredir o sistema, seja simbolicamente, seja de fato.
Por outro lado, existe, além disso, uma transposição de características dos
múltiplos estereótipos das bruxas para outras figuras femininas transgressoras, quer lidas
positiva quer negativamente. As acusações de “assassina de bebês” que condenaram
mulheres por bruxaria hoje são infligidas a militantes pelos direitos reprodutivos das
mulheres. Críticas a formas de sexualidade fora do eixo da heterocisnormatividade
292

monogâmica e patriarcal abundam como uma espécie de complô feminista para


desordenar a sociedade. A retórica das inversões continua sendo a base de argumentos
contra mulheres voluntária ou involuntariamente transgressoras do sistema, e por isso
tantas militâncias feministas apropriam-se da figura da bruxa. Os tempos são outros; as
acusações são parecidíssimas, exceto, talvez, pelo fato de a crença dominante não mais
admitir a existência do sobrenatural.
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ZRAICK, Karen; JACOBS, Julia. Black Security Guard Responding to Shooting Is Killed
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