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A NOITE DOS ASSASSINOS

de Jose Triana

tradução de Hugo Villavicenzio

I ATO

ÉPOCA : Anos 50.

CENÁRIO : Um sótão, um porão ou uma água furtada. Uma mesa, três cadeiras, tapetes gastos, cortinas floridas
sujas e remendadas. Vasos, um sininho de mesa, uma faca, um cinzeiro e uns objetos de uso amontoados num canto
com uma vassoura e um espanador.

LALO : (Batendo no peito, exaltado, com os olhos arregalados) Fecha a porta. (Fecha-se a porta) Um assassino. Um
assassino. (Cai de joelhos).

CUCA : (à Beba) O que é isso ?

BEBA : (Observando Lalo com indiferença). A representação começou.

CUCA : Outra vez ?

BEBA : (Irritada) Vamos... Como se isso fosse alguma novidade.

CUCA : Fica quieta.

BEBA : Você continua na lua.

CUCA : Papai e mamãe ainda não foram embora.

BEBA : E daí ?

LALO : Eu matei os dois. (Ri. Depois estende os braços para o público num gesto solene). Não tá vendo os dois
caixões? Olha: as velas, as flores... Enchemos a sala de palmas. As flores preferidas de mamãe. Não podem se
queixar. Depois de mortos fizemos a vontade deles. Eu mesmo vesti aqueles corpos rígidos, viscosos... E cavei com
estas mãos um buraco profundo. Terra e mais terra! (Se levanta rápido) Mas o crime ainda não foi descoberto! (Sorri
para Cuca) O que você acha? (Acaricia o queixo dela com um gesto pueril) Você está assustada, eu compreendo.
(Afasta-se) Com você não dá.

CUCA : (Espanando os móveis) Não estou a fim dessas bobagens.

LALO : O que? Você considera um crime uma bobagem? Que sangue frio o seu, irmãzinha! É isso mesmo que você
pensa?

CUCA : (Firme) É.

LALO : Então, o que é sério pra você?

CUCA : Você devia me ajudar. Temos que arrumar esta casa. Este quarto dá nojo. Baratas, ratos, traças... O cálice
sagrado! (Tira um cinzeiro da cadeira e põe sobre a mesa).

LALO : E você acredita que limpando vai resolver alguma coisa?

CUCA : Melhor do que nada.

LALO : (autoritário)Põe o cinzeiro no seu lugar.

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CUCA : O cinzeiro fica na mesa e não na cadeira.

LALO: Faz o que eu tô mandando.

CUCA : Lalo, não começa.

LALO : (Volta a colocar o cinzeiro na cadeira) Sei o que estou fazendo (Põe o vaso de flores no chão). Nesta casa o
cinzeiro fica em cima da cadeira e o vaso no chão.

CUCA : E as cadeiras?

LALO : Em cima da mesa.

CUCA : E nós?

LALO : Flutuando de ponta cabeça.

CUCA : (Incomodada) Isso me parece fantástico. Por que a gente não faz? Você inventou uma coisa maravilhosa!
Imagina se alguém te ouve, o que não vai pensar? (Muda de tom. Dura.) Olha, Lalo, se você continuar me enchendo
vamos ter problemas...Vai embora. Me deixa em paz. Vou fazer o que eu puder e pronto!

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LALO : (Com intenção) Você não quer ajuda?

CUCA : Para de me provocar.

LALO : Então não me enche. Quero o cinzeiro aqui e o vaso aqui. Pronto. É você que tá querendo se impor.

CUCA : Ah, sim! Que lindo! Então sou eu que to querendo me impor? Essa não. É inacreditável, quer dizer que eu...
Pára com isso Lalo, por favor. Ordem é ordem.

LALO : O pior surdo é aquele que não quer ouvir.

CUCA : O quê?

LALO : É isso mesmo que você ouviu.

CUCA : Olha cara, eu não entendo. Pode acreditar. Não sei o que você está querendo. Isso não tem pé nem cabeça.
Só sei que no final faço uma confusão tremenda e não sou mais capaz de fazer nem dizer nada. Além do mais, se for
o que eu tô pensando, isso tudo vai acabar mal.

LALO : Com medo? Põe isso na sua cabecinha, que se você quiser fazer alguma coisa neste mundo vai ter que
esquecer que existe o medo.

CUCA : Ah, sim! Falar é fácil; difícil é fazer.

LALO : Então tenta fazer o que você fala.

CUCA : Não enche. Chega de papo furado. Fazer sermões não é do seu feitio. (Espanando a cadeira) Olha esta
cadeira, Lalo. Imagina há quanto tempo não é limpa. Tem até teias de aranha. Que horror!

LALO : Que vergonha! (Aproximando-se com cautela). Outro dia eu pensei: "Precisa limpar"; mas depois começamos
a fazer não sei o que e... Agora olha, olha ali... (Pausa. Fica sério) Por quê você não experimenta?

CUCA : (Cai de joelhos, limpa a cadeira) Não me mete nisso.

LALO : Tenta.

CUCA : Não insista.

LALO : Só um pouquinho.

CUCA :Eu não posso. (Beba, que estava limpando móveis velhos e utensílios de cozinha, avança para o proscênio
com um sorriso hermético. Seus gestos, em certos momentos, lembram Lalo).

BEBA : Vejo esses cadáveres e parece mentira. É um espetáculo que merece ser visto. Estou arrepiada. Não quero
nem pensar. Nunca me senti tão feliz. Olha, voam, se dissolvem.

LALO : (Como um gentleman) Chegaram os convidados?

BEBA : Estão subindo as escadas.

LALO : Quem?

BEBA : Margarida e o velho Pantaleão. (Cuca continua limpando a cadeira e às vezes contempla-os abstraída)

LALO : (Com ar de desprezo) Não gosto desta gente. (Violento) Quem avisou eles?

BEBA : Eu não sei. Não me olha assim. Juro que não fui eu.

LALO : Então foi ela. (Aponta Cuca) Ela.

CUCA : Eu? (Limpando a cadeira).

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LALO : Você, sim, mosca morta.

BEBA : Talvez eles mesmos decidiram vir.

LALO : (Para Beba) Não tente defendê-la. (Para Cuca que se levanta enxugando o suor da

testa com o braço direito) Você, sempre espionando a gente. (Gira em volta dela) Vigiando nossos passos, tudo que
a gente diz e pensa. Espionando por trás das portas e das janelas...(Com um sorriso irônico) A menina mimada, a
queridinha da mamãe quer fazer suas investigações. (Rindo histericamente) Dois mais dois são quatro. Sherlock
Holmes acende seu cachimbo lógico. (Mudando bruscamente) Que nojo... (Suave como um gato à espreita) você
nunca está de acordo. O que quer saber?

CUCA : (Cheia de medo, não sabe como entrar no jogo) Eu, Lalo... eu,... realmente (Bruscamente) Não fica irritado
comigo.

LALO : Então por que você provoca? Por que se mistura com essa gentinha?

CUCA : (Chorando) Juro que eu não tive a menor intenção...

LALO : É isto que eu não perdôo em você.

CUCA : (Tentando continuar no jogo com arrogância) São meus amigos.

LALO : (Furioso e com desprezo) Seus amigos! Tenho pena de você. (Com sorriso triunfal) Não pensa que me engana.
Isto é estúpido. Você é ridícula. Você é contra, mas atira a pedra e esconde a mão. Já sei que você não tem coragem
de dizer as coisas como são... Se for nosso inimigo mostra os dentes, morde. Ataca

CUCA : (Fora do jogo) Para.

LALO : Assume.

CUCA : você me tira do sério.

LALO : Coragem

CUCA : (Ofegante) Me perdoa, por favor.

LALO : (Imperativo) Levanta.

BEBA : Deixa ela em paz.

LALO : (Para Cuca) Olha para mim.

CUCA : Estou ficando tonta.

LALO : Me olha de frente.

CUCA : Não posso.

BEBA : (Para Lalo) Dá um tempo.

CUCA (Soluçando) Eu não tenho culpa. Eu sou assim, não posso mudar. Bem que gostaria.

LALO : (Irritado) Babaca!

BEBA : (Para Cuca) Vem cá. (Leva-a até outra cadeira) Pára de chorar. Você não tem vergonha? Ele tem razão.
Querendo ou não você tem culpa. (Pausa. Acaricia os cabelos dela) Não fica assim. (Num tom amável) Não faz essa
cara, sorria. (Maternal) Você não devia ter feito, mas agora que começou tem que ir até o fim. (Brincando) Esse
narizinho vermelhinho parece um tomatinho. (Dá-lhe um peteleco no nariz) Bobinha. (Ri)

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CUCA : (Abraçando Beba) Não quero ver ele.

BEBA : Calma.

CUCA : Não quero ouvir ele.

BEBA : Ele não morde.

CUCA : Meu coração... Escuta, parece que vai estourar.

BEBA : Não seja criança.

CUCA : Eu juro.

BEBA : Você tem que se acostumar.

CUCA : Eu queria sair correndo.

BEBA : No começo é sempre assim.

CUCA : Não suporto ele.

BEBA : Depois fica fácil.

CUCA : Tenho nojo.

LALO : (Com o calderãozinho na mão, fazendo uma invocação) Afrodite... ilumina essa noite maldita!

CUCA : (Para Beba, angustiada) Começou de novo!

BEBA : (Para Cuca, conciliando) Deixa; não liga pra ele.

CUCA : Tenho vontade de cuspir na cara dele.

BEBA : Não provoca...

LALO : (Como imperador romano) Oh, vejam, morro de tédio.

CUCA : (Incapaz de entrar no jogo, ri do irmão) Que façanha extraordinária! Igualzinho ao do Chicho. Você não acha
Beba? (Com nojo) Você é um monstro !

LALO : (Com ar importante) Enquanto os Deuses se calam o povo cacareja (Joga o calderãozinho).

CUCA : (Como a mãe, sarcástica) Quebra, não é você quem paga.

LALO : (Com um sorriso, olhando para a porta) Oh, que surpresa!

BEBA : (Para Cuca) Você tá melhor? (Cuca faz que sim com a cabeça)

LALO : (Cumprimentando personagens imaginários) Entrem, entrem...(Como se estivesse apertando a mão) Como
vai? ... Tudo bem?...Como está você?

BEBA : (Para Cuca) Então, decidiu? (Cuca faz que sim com a cabeça)

LALO : (A Beba) Estão aí.

BEBA : (A Lalo) Deixa que eles vão embora.

LALO : (A Beba) Vieram pra assustar a gente,

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CUCA : (Aos personagens) Boa noite, Margarida.

LALO : (A Cuca) Vieram para cheirar o sangue.

BEBA : (Aos personagens) Como vão os senhores?

CUCA : (A Lalo) Você, maldoso como sempre!

BEBA : (A Cuca, como mãe) Não provoca. (Aos personagens) A asma é uma doença pirotécnica. Certamente,
continua fazendo estragos.

LALO : (A Cuca) Você me paga!

CUCA : (Como se estivesse prestando atenção às falas dos personagens imaginários. Com um sorriso malvado, para
Lalo, falando entre dentes) Olho por olho, dente por dente.

BEBA : (Como mãe, a Lalo. Cochichando) Disfarça rapaz.

LALO : (Para Beba) É um insulto. (Outro tom. Sorri, hipócrita, para os personagens) E o Sr. Pantaleão? Faz tempo que
eu não via. Estava sumido?

BEBA : (Acuando os personagens) Como vai sua urina? Me disseram que outro dia...

CUCA : (Acuando os personagens) A bexiga, tá funcionando bem?

BEBA : (Espantada) Como? Ainda não operou as hemorróidas?

CUCA : (Escandalizada) Então é assim? E a hérnia?

LALO : (Com um sorriso hipócrita) Sua aparência está ótima, dona Margarida. Seu fibroma continua crescendo? (A
Beba) Fala com eles.

BEBA : (A Lalo) Não sei mais o que dizer. Meu repertório esgotou.

LALO : (Em voz baixa, empurrando Beba) Fala qualquer coisa. De qualquer jeito você vai falar bobagem.

BEBA : (Olha Lalo angustiada, vai para o fundo, depois se entrega à comédia dos fingimentos) Como você está linda.
Parece que a primavera te dá... não sei... um ar todo especial, uma força, que sei lá... Está quente, não é? Me sinto
inchada. (Ri) Ai, Pantaleão, que atrevidinho você é. Um verdadeiro moleque. Sim, sim. Não se faça de desentendido.
Sua verruga ficou lindíssima.

LALO: (Como Pantaleão) Você exagera. Eu não posso acreditar. Os anos, minha querida, nos consomem e acabam
por reduzir as pessoas a trapos, que é a coisa pior. (Sorri malicioso) Se você tivesse me conhecido nos bons tempos,
nos tempos das vacas gordas... Ah, se aquela época voltasse... Mas isso é impossível. Estou com uma dorzinha bem
aqui (aponta o abdômen), é como uma alfinetada... Estou velho feito um traste. (Mudando de tom) E vou piorando a
cada dia. Os filhos não perdoam, nem respeitam mais.

BEBA : (Como Margarida, irritada) Não fala assim. chando) Parece mentira.(Cochichando) Falar de corda em casa de
enforcado? (Com um sorriso amarelo) O que vão pensar esses jovens tão belos e tão simpáticos? (Para Cuca) Vem cá
minha bonequinha. Por que você tá se escondendo? Tá com medo medo do que? Você viu o bicho papão? (Cuca
não se mexe) Chega até aqui. Será que sou uma velha tão feia assim? Vem cá, não seja má. Me diz uma coisa: onde
estão seus pais? Onde está sua mãezinha?

LALO : (Pulando da cadeira violentamente, para o público) Vocês estão vendo? Eu não disse? Vieram para isso. Eu
conheço eles. Não me engano. (A Cuca, acusando-a) São seus amigos. Tira eles daqui. Vieram bisbilhotar, manda eles
embora. (Gritando) Vão pro inferno! Acabou.

(Cuca não sabe o que fazer. Mexe, gesticula, quer dizer alguma coisa, mas não consegue)

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BEBA : (Como Margarida, a Cuca) Não quero ir tão cedo. Viemos só fazer uma visita. Estamos devendo há dois
meses. Mas estou muito cansada. Com certeza tua mãe tem algum chazinho para me dar.

LALO : (Furioso) Manda eles embora, Cuca. Manda eles pro inferno. (Como se tivesse um chicote) Fora, fora daqui.
Rua.

CUCA : (A Lalo) Não seja grosseiro.

BEBA : (Como Margarida, dando gritos sufocados de indignação) É um desrespeito. Isto é uma infâmia. Filhos do
diabo.

CUCA : (Para Lalo, dona da situação) Você perde as estribeiras muito fácil.

BEBA : (Aos personagens) Eu peço que o desculpem.

CUCA : (A Lalo) Eles não te fizeram nada.

BEBA: (Aos personagens) Eles sofrem dos nervos.

CUCA : (A Lalo) Você é um irresponsável.

BEBA : (Aos personagens) O Dr. Mendonça recomendou muito repouso.

CUCA : (A Lalo) Que falta de tato, que falta de educação, que falta de tudo.

BEBA : (Aos personagens) É uma crise repentina.

CUCA : (Para Lalo que ri dissimulado) Deus castiga.

BEBA : (Aos personagens) Adeus, Margarida. Boa noite, Pantaleão. Não esqueça, mamãe e papai foram viajar e não
sabemos quando... Esperamos que voltem logo. Adeusinho. (Joga um beijo fingido para os personagens. Pausa. Para
Lalo) Você nos fez passar um mau pedaço. (Sentando-se no fundo começa a engraxar sapatos)

CUCA : (Sutilmente ameaçadora) Quando mamãe souber...

LALO : (Furioso) Vai contar. (Chama) Mamãe, papai. (Ri) Mãezinha, paizinho... (Desafiante) Que tá esperando. Vai, vai
cochichar nos seus ouvidos. Eles vão ficar agradecidos. Vai, corre. (Pega Cuca por um braço e a leva até a porta. Volta
para o primeiro plano) Você é um desastre. Nunca chega até o fim. Quer e não quer. É e não é. Você acha que isto
basta? É preciso arriscar. Não importa ganhar ou perder. (Sarcástico) Mas você sempre quer o caminho mais fácil.
(Pausa) Mas este é o perigo. Porque neste chove não molha você fica no ar, sem saber o que fazer, sem saber o que
você é, e o que é pior, sem saber o que você quer.

CUCA : (Segura) Não sofra tanto por mim.

LALO : Mesmo querendo não vai poder se salvar.

CUCA : Nem você.

LALO : Não é você quem vai me impedir.

CUCA : você vai ficar cada dia mais velho... vai ficar aqui fechado entre teias de aranha e pó. Eu sei, eu vejo, eu sinto
isso.

LALO : (Com um sorriso de maldade) Ah, é. E daí?

CUCA : Se afundando cada vez mais.

LALO : Isso é o que você quer.

CUCA : Não me faça rir.

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LALO : É a pura verdade.

CUCA : Eu faço o que eu bem entendo.

LALO : Até que enfim mostrou as garras.

CUCA : Falo o que penso.

LALO : você não percebe que o que eu to propondo é a única solução que temos. (Pega a cadeira e levanta) Esta
cadeira quero que fique aqui (coloca a cadeira em determinado lugar), e não aqui (coloca a mesma cadeira em outro
lugar), porque aqui (rapidamente volta a coloca-la no mesmo lugar) me serve melhor: posso me sentar mais rápido.
E aqui (coloca a cadeira na segunda posição) é só um capricho, uma bobagem, não funciona... (Coloca a cadeira na
primeira posição) Papai e mamãe não permitem essas coisas. Acham que aquilo que eu penso não tem lógica.
Querem que tudo fique como está e nada saia do seu lugar... E isso é impossível, porque você, Beba e eu...
(Gritando) Não agüento mais. (Em outro tom) Além disso, pensam que faço essas coisas pra ser do contra, para me
opor, para humilhar eles...

CUCA : Numa casa, os móveis...

LALO : (Rápido a enérgico) Isso é uma desculpa. Que importa esta casa,que importa esses móveis, se nós não somos
nada, se passamos entre eles como um cinzeiro, como um vaso ou uma faca flutuante. (A Cuca) Você por acaso é um
vaso? Você gostaria de descobrir algum dia que é apenas isso? Ou que durante boa parte de sua vida foi considerada
apenas isso? Eu sou uma faca? E você, Beba, você se conforma em ser um cinzeiro? Não, não. Isso não faz sentido.
(Mecanicamente) Fique aqui. Fique ali. Faça isso, faça aquilo e aquilo outro. (Novo tom) Eu quero a minha vida: meus
dias, minhas horas, meus minutos... Quero viver e fazer o que eu bem entendo. Mas tenho as mãos atadas, os olhos
vendados. Esta casa é o meu mundo. E ela está ficando velha, suja e fedorenta. Papai e mamãe são os culpados. É
uma pena, mas é assim. E o pior é que eles não param um minuto pra pensar se as coisas não poderiam ser de outro
jeito. Nem você. Beba muito menos... Se Beba entra no jogo é porque não sabe fazer outra coisa.

CUCA : Mas por que você cisma tanto com papai e mamãe? Por que você joga toda culpa neles?

LALO : Porque eles fizeram de mim um inútil.

CUCA : Isso não é verdade.

LALO : Por que iria mentir?

CUCA : você procura se justificar.

LALO : Procuro ser o mais sincero possível.

CUCA : Isso não te dá o direito de exigir tanto. Você também não presta. Lembra das suas brincadeiras? Quebrava
todas as nossas bonecas. E na sua loucura queria que nós duas fôssemos sua sombra ou, pior, iguais a você.

LALO : Era a única maneira de me livrar do peso que eles me jogavam nas costas.

CUCA : você não pode negar que cuidaram bem de você. E sempre te amaram.

LALO : Não quero que me amem desse jeito. Fui tudo pra eles, menos um ser humano. (Beba, no fundo, imita o pai)

BEBA : (Como pai) Lalo, a partir de hoje você vai limpar o chão e passar as minhas roupas. Tenha muito cuidado com
elas. Tua mãe está doente e alguém precisa fazer essas coisas. (Beba vai para o fundo e continua engraxando os
sapatos)

CUCA : Papai e mamãe sempre te deram de tudo.

LALO : Sim, mas a custo de quê?

CUCA : O que você quer? Não se esqueça, Lalo, de quanto ganha papai: 90 pesos. O que mais você queria?

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LALO : Por que me disseram desde o princípio : “Não vá para aula com fulano. Não saia com beltrano. Sicrano não
serve para você”? Por que me deixaram pensar que eu era melhor que os outros? Mamãe e papai acreditam que se
temos um quarto, uma cama, a comida, já é o suficiente e, por isso, devemos ficar eternamente agradecidos.
Repetiram mais de mil vezes que pouquíssimos pais fazem o mesmo, que somente as crianças ricas podem levar
uma vida como a nossa.

CUCA : Tenta compreender: Eles são assim... E você devia ter apreendido a se virar.

LALO : Eu não consegui. Confiei demais neles. (Pausa) E os meus sonhos? E minhas aspirações?

CUCA : Desde criança você só fez o que quis.

LALO : Desde pequeno, desde que eu era assim, me diziam: "Você tem que fazer isso!" E se não fazia : "O que
podemos esperar de você?" E eram surras e castigos:

CUCA : Todos os pais agem assim. Isso não te dá o direito de virar a casa de pernas pro ar.

LALO : Quero que as coisas tenham o seu verdadeiro sentido, que eu, você e Beba possamos fazer o que realmente
queremos. E se não der certo: "Tudo bem, faremos melhor da próxima vez". Se der certo: "Ótimo! Vamos em
frente". E fazer, e refazer. Não tendo que dar satisfações a ninguém. A vida é minha e não foi emprestada, eu tenho
direito a ela. Você já imaginou o que significa: pensar, decidir e fazer as coisas por conta própria?

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CUCA : Mas nós não podemos...

LALO : (Violento) Não podemos. Não podemos. Você vai repetir essa lenga-lenga que nos enfiaram goela abaixo
durante todos esses anos?

CUCA : Papai e mamãe sabem o que fazem.

LALO : Eu também sei. E minha opinião vale tanto quanto a deles.

CUCA : Tá se rebelando?

LALO : Sim.

CUCA : Contra eles?

LALO: Contra tudo. (Beba volta a representar o pai. Do ponto de vista plástico as aparições devem ser aproveitadas
ao máximo.)

BEBA : (Como pai) Lalo, lave e passe a roupa. É um acordo que eu e sua mãe fizemos. Ali estão os lençóis, as cortinas,
as toalhas e as calças... Limpe a privada. Você vai comer num canto da cozinha. Você vai aprender, juro que vai. Está
ouvindo? (Ela volta para o fundo).

CUCA : Por que não vai embora de casa?

LALO : Pra que merda de lugar eu posso ir?

CUCA : Procura.

LALO : Já tentei. Não lembra? Mas sempre tive que voltar com o rabo entre as pernas.

CUCA : Tenta outra vez.

LALO : Não dá. Reconheço que não sei andar pelas ruas; fico confuso, me perco... Não sei o que acontece comigo, é
como se eu não existisse. Eles não me ensinaram nada. Pelo contrário, só me confundiram...

CUCA: E como você quer decidir, mandar, se você mesmo admite que...?

LALO : Este é o mundo que eu conheço. O que posso fazer!?

CUCA : Você se acomoda...

LALO : Não, eu tento.

CUCA : Então está disposto a fazer de novo?

LALO : Quantas vezes for necessário.

CUCA : E levar até o fim?

LALO : Não tenho escolha.

CUCA : Você acha que a polícia não vai desconfiar de nada? Acredita que vai poder enganar a justiça sozinho?

LALO : Não sei, quem sabe...

CUCA : Como?

LALO : Espere e verá.

CUCA : Eu tô fora, entendeu? E se for necessário eu defendo eles até o fim. Isso tudo não me interessa. Aceito o que
mamãe e papai decidiram. Eles não mexem comigo. Sempre me dão o que eu peço... Tudo o que eu quero. Mas você

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é teimoso. Bem diz papai, que você é como os gatos: fecham os olhos para não ver a comida que ganham.
(Caminhando) Vai embora. Não vou entrar no teu jogo. (Para Beba) Você também não conta comigo. (Muda de tom)
Ai, meu Deus livrai-me dessa loucura. (Pausa) Eles são velhos, conhecem a vida melhor do que eu... É humilhante,
humilhante. Eles têm lutado, se sacrificado; merecem ao menos o nosso respeito. Se alguma coisa vai mal nessa casa
é porque tinha que ser assim... Não, não, eu não posso ir contra eles!

LALO : (Aplaudindo e rindo) Bravo. Cena maravilhosa.

BEBA : (Aplaudindo e rindo) Merece um prêmio.

LALO : Vamos criar um.

BEBA : A menina promete.

LALO : Pena que é imbecil.

BEBA : É sensacional.

LALO : É uma idiota.

BEBA : É uma santa.(Beba e Lalo aplaudem forte e sarcasticamente)

CUCA : Podem rir.Quando chegar minha vez vocês vão ver.

LALO : Ah, então é assim?

CUCA :, Vou fazer o que eu bem entender.

LALO: Experimenta.

CUCA : Você não manda em mim. (Afastando-se)

LALO : (Irônico) Tá com medo? (Ri)

CUCA : (Furiosa) Tenho mãos, unhas a dentes.

LALO : (Agressivo) Agora quem manda sou eu.

CUCA : Não chega perto.

LALO : Você vai fazer o que eu mandar (Pega-a pelo braço. Os dois lutam).

CUCA : (Furiosa) Me solta.

LALO : Vai me obedecer?

CUCA : Estúpido.

LALO :Vai fazer o que eu quero ?

CUCA : Tá me machucando.

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LALO : Vai ou não?

CUCA : você se aproveita ... (Rendida) Sim, vou fazer o que você quiser.

LALO : Levanta.

CUCA : Socorro! (Beba se aproxima de Cuca, Lalo a detém com um gesto. Cuca não consegue levantar).

LALO : Que se levante sozinha.

BEBA : (A Lalo) Perdoa.

LALO : (Com um grito) Não se meta.

BEBA : Ai, gritos e mais gritos. Não agüento mais. Vim aqui para ajudar ou me divertir?

Não sei o que fazer... Voltas e mais voltas.To girando como um pião. E essa maldita gritaria a troco de nada : um
copo d'água, um sabonete caído, um cinzeiro, uma toalha suja, porque vai faltar água, porque não tem tomate... Não
sei como podem viver assim... Será que não existem coisas mais importantes, eu me pergunto pra que existem as
nuvens, as árvores, a chuva, os animais? Será que não devíamos parar um pouco pra pensar nisso? Então corro e vou
para janela... Mas mamãe e papai continuam a gritar: “Essa janela, a poeira, a fuligem. Onde está com a cabeça essa
menina? Entre logo, senão você vai ficar resfriada”. Se vou para a sala e ligo o rádio : “Está gastando muita energia,
eu não sou sócio da Light. Desliga isso, este barulho me atormenta”. Se começo a cantar a última música que você
inventou: “A sala não é a sala...” então a casa pega fogo, é um formigueiro em revolução. E gritam. Gritam mamãe e
papai com Lalo. Então, Lalo com papai, papai com Lalo e eu no meio. Aí venho pra cá e fico quieta... Mas vocês nem
ligam e continuam discutindo, como se pudéssemos arrumar está casa com palavras e no fim acabam brigando. Eu
não agüento mais. Vou embora. (Lalo a segura) Me deixa. Não quero saber de nada. Surda e cega. Morta, morta.

LALO : (Terno, mas firme) Não diga isso.

BEBA : É o que eu quero.

LALO : Se você ajudasse poderíamos nos salvar.

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BEBA : (Olha-o alucinada) O que? (Agarra seus braços) Sim, hoje podemos. (Lalo pega duas facas e observa, depois
começa a esfregá-las. A Lalo) Vai repetir a história?

CUCA : (A Beba) Por favor, parem. (Beba se movimenta em vários pontos do palco. Cada personagem tem uma
posição diferente).

BEBA : (Como vizinha mexeriqueira) Sabe de uma coisa, Cácia? A notícia apareceu no jornal. Sim, minha filha, sim.
Mas a velha Margarida, aquela da esquina, a Pantaleão, o caolho, viram tudo, com todos os detalhes, a me
contaram...

LALO : (Esfregando as facas com firmeza) Zic-zac; zic-zac; zic-zac...

BEBA : (Como um comerciante espanhol, bêbado) O velho Pantaleão e Margarida sabem de tudo... "Joder". Que
espécie de filhos nasce hoje. Contam que ficaram ali como se nada tivesse acontecido... É o fim do mundo. Isso eu
garanto. Como diz o ditado : "Cria cuervos..." (Ri, com tom de burla) Você viu a foto na primeira página?

LALO : (Esfregando as facas violentamente) Zic-zac; zic-zac; zic-zac...

BEBA : (Como Margarida, falando com as amigas) Chegamos lá por volta das nove, nove e pouco... Nem queira saber
filha. Logo que entrei, pensei: "Aqui tem alguma coisa errada". Você bem sabe como eu sou. Tenho um faro... E
realmente... que espetáculo, menina. (Horrorizada) Sangue por todos os lados. Era pavoroso. Estou arrepiada até
agora... Eu não sei, amiga, se a gente pudesse... Imagina que situação... Porque a gente não pode, você sabe... É
terrível, comadre... E aquele rastro de sangue, olha, era inacreditável... Acho que tinha umas seringas... Não é
Pantaleão? E comprimidos e injeções... Aqueles moços têm sangue ruim e isso vem de longe. Ah, Conceição,
pergunta pra Angelina as coisas que ela viu outro dia... Que barbaridade. Eram uns pais tão bons, tão dedicados. Mas
ele, esse Lalo, é o cabeça. Não tenha a menor dúvida. Foi ele, ele e mais ninguém... Se você tivesse visto a faca. Que
faca! Uma faca de açougueiro, meu deus do céu.

LALO : (Concentrado no seu jogo) Zic-zac; ziz-zac; zic-zac...

BEBA : (Como Pantaleão) Eu disse para Margarida: "Controla essa língua". Ela logo começou a falar mal dos filhos,
dos tempos atuais. Você bem sabe como ele é. Fala sem parar. Eles... não, não foram eles. Isso é falso. Ele, Lalo...
Mesmo se às vezes penso que... bom... sabe lá quem foi... Mas eu... meu filho, sou capaz de jurar... Porque as
moças... acho que não... Se você tivesse visto, rapaz, a cara do Lalo... Assustadora. Uma fera... Sim, sim, o próprio
diabo... Faltou pouco pra que batesse em nós E eu com a minha artrite... Mas que diabo, isto é que não... Pode fazer
o que quiser, afinal o problema é dele... Mas se irritar com a gente... que Deus o perdoe. O sem-vergonha... o
cafajeste! Ah, se você tivesse visto a poça de sangue... o cheiro... Como tudo é estranho, não é? (Risadinha histérica)
Se você visse... Horrível, sim horrível e a palavra exata... Temos que fazer alguma coisa. É preciso protestar contra
esse filho desnaturado. O que você acha?

LALO : (Continua com sua estranha atividade) Zic-zac; zic-zac; zic-zac...

(Essa ação aparentemente simples deve ir criando um clima delirante)

CUCA : (Cuca se transforma em jornaleiro a vai para o fundo do palco.Gritando) Últimas notícias. O assassinato da
rua Apodaca. Compre, senhora, não perca senhorita. Um filho de 30 anos mata os próprios pais. Vejam... Vejam
como foi o crime!... Suplemento com as fotos. (Apregoando) Meteu 40 facadas nos velhos. Comprem. Vejam as fotos
dos pais inocentes. Não deixe de ler senhora. É espantoso cavalheiro. Últimas notícias. (Indo para o fundo) Tremenda
carnificina.

LALO : (Continua na sua ação) Zic-zac; zic-zac; zic-zac... (Pausa. Beba vem do fundo e avança para o primeiro plano)

BEBA : (Como pai) Lalo, o que você está fazendo? Que cara é essa? Por que me olha assim? Com quem você estava?
E estas facas? O que vai fazer com elas? Responda! Comeu a língua? Por que chegou tão tarde?

LALO : (Como adolescente) Papai, estava com uns amigos...

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BEBA : (Como pai) Me dá isso. (Pega as facas violentamente) Sempre com porcarias. (Experimenta o corte) Corta,
hein? Vai matar alguém? Fala, responde. Não fique aí como um imbecil. Você pensou que podia mandar? Pensa que
vou deixar você mandar? Pensa que não precisa mais pedir licença pra nada? Já não falei mais de mil vezes que isso
não é hora de ficar na rua? Quando vai apreder a obedecer? Quando? Nenhum tipo de ameaça te faz parar mais?
Vai entrar na linha ou não? Você não percebe que sua mãe está sofrendo? Quer matar a gente? É essa a sua
intenção? Você não tem nenhuma consideração por mim... Não faz caretas. (Empurra Lalo na cadeira) Senta aí. Você
quer que eu te feche no quarto escuro de novo? (Lalo tenta falar) Não responda. Que falta de respeito. Eu te dei
tudo. Mau filho. Degenerado. Eu me sacrificando... E sua mãe ainda briga comigo porque saio com os amigos e as
colegas do escritório. Perdi mais de um negócio por sua causa, por causa de vocês... Não vê meus sacrifícios? Trinta
anos atrás de uma mesa, no Ministério, com o chefe me comendo o fígado, passando mil necessidades... Não tenho
um par de sapatos decentes... E você me paga desse jeito. Trinta anos não é brincadeira. Trinta anos sonhando, para
no final me sair um filho vagabundo... que não quer estudar, que não quer trabalhar...Mas me diga uma coisa, o que
você quer? O que você estava fazendo?

LALO : (Trêmulo) Estávamos lendo...

BEBA : (Como pai) Lendo o quê?... Lendo, como lendo?...

LALO : (Submisso) Uma revista, papai...

CUCA : (Avança do fundo para o primeiro plano, segura. Com intenção maligna.Como mãe) Revistas, revistas,
revistas. É mentira. Inventa outra. Fala a verdade. (Beba se aproxima como pai. Agressiva) Não Alberto, não bate
nele. (Num outro tom. A Lalo) Estou satisfeita que isso tenha acontecido. Estou realmente satisfeita. (Outro tom)
Onde está o dinheiro que tinha escondido no armário? (Lalo cala-se) Você Pegou? Gastou? Perdeu? (Com ódio)
Ladrão, você é um canalha, um sem-vergonha. (Chorando) Vou contar pro seu pai. Não, cala a boca. (Reação de Lalo)
É uma desgraça. (Muda de tom) Vai te matar se souber. (Outro tom) Ah, Virgem Santíssima. O que fiz para ser
castigada assim? (Furiosa) Vamos, me da o dinheiro. (Reação de Lalo) Solta o dinheiro ou chamo a polícia. (Revista o
bolso de Lalo que está aturdido, gritando) Ladrão, mil vezes ladrão. Vou contar para seu pai. Deveria te dar uma
surra a te mandar para um Reformatório. (Lalo fica de costas para o público).

BEBA : (No fundo, como uma criança) Mãe, mãezinha, isto é um elefante?

LALO : (como pai) Beba, vem cá, mostra as mãos. (Beba avança para o primeiro plano a mostra as mãos) É preciso
cortar as unhas... Quando vai ser assim? (A Cuca) Me dê a tesoura, mulher. (Cuca fala no ouvido de Lalo) Como? O
quê? É verdade? E Lalo onde se meteu? (Os dois olham Beba com maldade) É verdade o que sua mãe me disse.
Confessa, anda. Fala ou... Quer dizer que você levantou a saia e mostrou a calcinha para um bando de moleques.
Será possível? (Reação de Beba) Você é suja. (Cuca como mãe sorri) Vou te... (Cuca a Lalo encurralam Beba) Você vai
virar uma mulher à toa, mas não enquanto eu viver. Escuta aqui (sacode-a pelos ombros), vou te matar, sua puta.
(Pausa) Onde está seu irmão? Lalo, Lalo... cadê você? (A Cuca) Você disse que ele roubou?

BEBA : (Saindo do jogo) Não posso. Minha cabeça vai estourar.

LALO : (Imperativo) Continua, não para.

CUCA : (Sarcástica) Obedeça ao chefão.

BEBA : (Angustiada) Ar, um pouco de ar.

LALO : (A Beba) Neste momento tocava a campainha. (Beba se deixa cair numa cadeira)

CUCA : (Como mãe) Você ouviu, Alberto?

BEBA : Por favor, estou com vontade de vomitar.

LALO : (Irritado) Está estragando tudo.

CUCA : (Como mãe) Pssiu! Um momento, meninos. A campainha tocou de novo.

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LALO : (Como pai; saudando personagens imaginários que entram pela porta) Entre, Angelina. Que bom te ver.

CUCA : (Como mãe - A beba) Fala meu anjinho. Vamos, meu tesouro, conta, o que é que você tem? (faz gesto de
carinho).

LALO : (Como pai, para personagens imaginários) Não faça cerimônia, Angelina. (Cordial e espontaneamente) A casa
é sua, pode sentar.

CUCA : (Como mãe, para Beba) Fica à vontade querida. Quer uma almofada? (Sincera) Você está confortável? Fica à
vontade.

LALO : (Como pai, para personagens imaginários) E Lalo, onde terá se escondido? Ah, Angelina, a senhora não sabe
como são essas crianças. São 3, mas dão trabalho como 30.

CUCA : (Como mãe; a Lalo) Alberto, eu acho que... (ao personagem) Desculpa, Angelina, se ainda não te
cumprimentei, mas acho que a menina não está passando bem do estômago.

LALO : (Como pai) Você pôs o termômetro? (Cuca faz que sim).

CUCA : (Como mãe) Preocupante.

LALO : (Como pai; aos personagens imaginários) Eu não dizia há pouco? São piores que o diabo, mas comigo é
diferente. Tenho uma mão de ferro e um chicote. Bom, a gente fala por falar.

CUCA : (Como mãe - angustiada) Que podemos fazer?

LALO : (Como pai) Tem febre? (Cuca faz que não) Ela tomou o chá de camomila?

CUCA : (Como mãe) Não quer nada.

LALO : (Pai) Obrigue-a.

CUCA : (Mãe) Vomita tudo.

LALO : (Pai) Faz um chá preto.

CUCA : (Ao personagem) Ah, Angelina, você não imagina as preocupações, os sofrimentos. Para que temos filhos?

LALO : (Como pai. Segurando a xícara e obrigando-a) Toma. (Beba recusa o chá) Querendo ou não, vai ter que tomar.

BEBA : Me deixa em paz.(Se levanta furiosa e vai para o primeiro plano) Vocês são uns monstros.(Saindo do jogo -
grita) Os dois são iguais. (Gritando para o fundo) Eu quero ir embora, me deixa ir. (Cuca e Lalo tentam detê-la mas
ela chega até a porta gritando) Mamãe, papai, me tirem daqui. (Chorando ao lado da porta) Me tirem daqui.

LALO : (Como pai) O que está acontecendo aqui?

CUCA : Um belo espetáculo. (Aproximando-se de Beba) Você, logo você que sempre me forçou: "Faz. Não seja boba.
Vai ser divertido". É incrível. Estou vendo e custo a acreditar. Vamos, levanta. (Como mãe) Lembre-se que temos
visitas. (Aos personagens) São tão malcriados, tão insuportáveis... (A Beba - arrastando-a até a cadeira) Seja uma
menina boazinha, uma menina educada.

BEBA : (Como criança) Quero ir embora.

CUCA : (Como mãe) Pra onde, queridinha?

LALO : (Fora do jogo - violento) Não, não é desse jeito. Assim não dá.

CUCA : (Como mãe) Não se irrite, Alberto.

LALO : (Fora do jogo) Tenho vontade de esganar ela.

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CUCA : (Como mãe) É preciso ter paciência.

BEBA : (Chorando) Estou com medo.

LALO : (Fora do jogo) Medo de quê? Por que chora?

CUCA : (Como mãe) Não ligue. É melhor, Alberto.

LALO :(Como pai, desajeitado) É que às vezes... (Bate no joelho direito) Procure compreender, mulher.

CUCA : (Como mãe) Claro que compreendo. (Suspirando) Ah, Alberto, você também parece uma criança. Não é
verdade, Angelina?

BEBA : (Levanta-se furiosa) Quero fazer alguma coisa. Quero estourar. Quero ir embora, não suporto mais está
prisão. Me sinto sufocada. Vou sair, não quero me sentir esmagada, enterrada neste quarto. Prefiro qualquer coisa,
não agüento mais. Não me interessa essa história. Por favor, eu te suplico, me deixa ir embora.(Cuca se aproxima de
Beba e a abraça. Seus gestos denotam uma ternura dissimulada).

CUCA : (Como mãe) Pode ir, meu amor.Você está um pouco nervosa. (Beba no fundo escuro. Cuca volta com um
sorriso que se converte numa gargalhada) Você já viu coisa igual? Como se estivéssemos torturando. Que coisa estes
filhos... (senta-se e arruma os cabelos) Olhe meu estado. Devo parecer uma macaca de circo. Não tive tempo nem de
respirar. Que luta, Angelina, que luta! Desculpe se não te dei atenção antes... (Escuta o personagem) Sim, você é
como da família. (Sorri hipócrita) Mas mesmo assim eu gosto das coisas bem feitas... não é, Alberto? Não se agite
inutilmente, meu velho. É preciso ficar calmo.(Lalo se levanta) Aonde você vai? O que você vai fazer? (Lalo olha-a
com intenção) Ah, sim, compreendo. (Lalo vai para o escuro do palco) Foi ver aqueles pestinhas que me deixam
louca. É preciso vigiá-los com 4 olhos. Mais que com 4, com 5, 8, 10... É preciso vigiá-los e estarmos atentos porque
são capazes das maiores porcarias. (Nesse momento Lalo entra com um véu de noiva um pouco sujo e rasgado. Ele
imita a mãe quando jovem, no dia do casamento. Beba no fundo cantarola a marcha nupcial. Os gestos de Lalo não
podem ser exagerados. Prefere-se neste caso um aceno de ambigüidade geral).

LALO : (Como a mãe) Ah, Alberto, tenho medo. O cheiro das flores. A música. Tem muita gente, não é? Sua irmã Rosa
não veio, nem sua prima Lola... Elas não gostam de mim. Eu sei, Alberto, eu sei. Fizeram muita fofoca com o meu
nome e o de mamãe... Eu não sei...! Você me ama, Alberto? Você me acha bonita?... Ai, como dói a barriga. Sorri,
Alberto. Olha aí o sem-vergonha do Dr. Nunes com a esposa... Você acha que dá para perceber que estou grávida?
Se essa gente percebesse eu morreria de vergonha. Olha as filhas do Spinoza, estão sorrindo para você... Aquelas
duas pu... Ah, Alberto, estou com enjôo e a barriga me dói, me ajuda. Cuidado para não pisar na minha cauda se não
eu caio... Quero tirar esse filho... Eu sei que você resolveu casar comigo por causa dele, mas eu não quero... Cuidado
que eu caio... Alberto, Alberto, devo parecer ridícula ... Não deveríamos ter casado hoje, melhor qualquer outro dia...
Ah, essa música e o cheiro dessas flores, que nojo. Olha, ali vem sua mãe, aquela hipó... Ah, não sei... Alberto, estou
sem ar... Esta maldita barriga!... Queria tirar este...

CUCA : (Como mãe. Com ódio, quase mordendo as palavras) Tenho nojo de você. (Arranca-lhe o véu) Não sei como
pude parir tal monstro. Eu me envergonho de você, de sua vida. É assim que você quer se salvar? Não, meu querido,
pare com esta história de salvação. Dane-se. Morra. Você acha que vou deixar que você se dê ao luxo de me criticar
na frente das visitas? Será que você não se enxerga? Mal sabe onde tem o nariz! (Para personagens imaginários)
Desculpa, Angelina. Não vá embora, por favor.(Tom duro e firme) Quantas vezes te pedi ajuda. Tem uma porção de
coisas pra limpar nesta casa: os pratos, as travessas, a poeira e a mancha de água nos espelhos. E muito o que fazer:
remendar, bordar, costurar... (Lalo se aproxima de Cuca) Fora daqui. Você quer virar a casa de pernas pro ar e isto eu
não vou deixar, nem depois de morta. 0 cinzeiro na mesa (põe o cinzeiro na mesa), o vaso na mesa (põe o vaso na
mesa). O que você está pensando? Eu vou falar agora mesmo com seu pai. (Com nojo e rancor) Miserável. O que vai
ser de você sem nós? Tá reclamando de quê? Você acha que somos uns idiotas? Se pensa assim saiba que não somos
nem melhores nem piores que os outros. Mas se acha que vai se aproveitar de nós, fique sabendo que está
redondamente enganado. Sabe o quanto me sacrifiquei, sabe quantas coisas deixei de fazer para manter esta casa?
Você acha que vamos abrir mão de nossos direitos com tanta facilidade? Se quiser ir, vai. Eu mesma preparo suas
malas. Ali está a porta.(Cuca permanece de costas para o público. Lalo pega a faca. Acaricia-a. Crava no centro da
mesa.)

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LALO : Até quando?

BEBA : Não perca a paciência.

LALO : Se isso fosse possível hoje.

BEBA : Como você é bobo.

LALO : Agora mesmo. (Se levanta, tira a faca da mesa, olha as irmãs e corre o fundo do palco).

BEBA : Não faz isso.

CUCA : Você vai se arrepender.

BEBA : Toma cuidado.

CUCA : (Canta baixo) A sala não é a sala. A sala é a cozinha. (As duas irmãs estão assim: Cuca do lado esquerdo a
Beba do lado direito do palco. Ambas de costa para o público, emitem um grito apavorante. Entra Lalo. As irmãs
caem de joelhos).

LALO : (Com a faca entre as mãos) Silêncio. (As duas irmãs cantam, num murmúrio quase apagado: "A sala não é a
sala. A sala é a cozinha. O quarto não é o quarto. O quarto é o banheiro."). Agora estou mais tranqüilo. Gostaria de
dormir, dormir, dormir sempre. Mas vou deixar isso para amanhã. Hoje tenho muito que fazer. (A faca escapa de
suas mãos e cai no chão) Afinal, como é simples. Entro no quarto, devagar, na ponta dos pés. O menor ruído pode
ser fatal. Avanço suspenso no ar. A faca não treme, nem a mão. Estou confiante. Os armários, o vaso, a cama, as
cortinas, os tapetes, os cinzeiros, as cadeiras me empurram para os corpos nus que exalam sabe Deus que
imundices. (Pausa. Decidido) Agora preciso limpar o sangue. Lavá-los. Vesti-los. E encher a casa de flores. Depois
cavar um buraco bem fundo e esperar que amanhã... (Pensativo) Como é simples e terrível. (As irmãs terminam de
cantar. Cuca apanha a faca e limpa-a com o avental. Longa pausa).

CUCA : (A Beba) Como se sente?

BEBA : Mais ou menos.

CUCA : É cansativo.

BEBA : O pior é que a gente se acostuma.

CUCA : Mas algum dia...

BEBA : É como tudo na vida.

LALO : Abre essa porta. (Bate no peito, exaltado com os olhos arregalados) Um assassino. Um assassino (Cai de
joelhos).

CUCA : (A Beba) O que é isso?

BEBA : A primeira parte terminou.

II ATO

(Quando o pano abre Lalo está de joelhos, de costas para o público, com a cabeça abaixada. Cuca, de pé, olhando-o
e rindo, Beba, impassível, pega a faca que está sobre a mesa.)

CUCA: (a Beba.) Olha para ele. (Para Lalo.) Desse jeito é que eu gostaria de te ver. (Gargalhando.) Agora é a minha
vez.

LALO: (Firme.) Fecha essa porta.

CUCA: (Fechando a porta. Para Lalo.) Não agüento mais! Você é insuportável!

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BEBA: (Para Cuca.) Isto é ridículo. (Olha para Lalo com desprezo.)

CUCA: (Para Lalo.) Mas o que é que você tem? Escuta aqui rapazinho: temos que continuar. Não pense que vamos
parar por aqui como das outras vezes. Estou cansada de deixar as coisas pela metade.

LALO: (De cabeça baixa.) É preciso recomeçar sempre.

CUCA: Está bem, eu aceito, mas te garanto que hoje...

LALO: (Incomodado) Tudo bem, do jeito que você quiser...

CUCA: Que eu quiser, não. Como tem de ser. Por acaso fui eu quem inventou tudo isso? Engraçado...

BEBA: (Incomodada. Para Cuca.) Bem que você gosta...

CUCA: (Ofendida.) O que a menininha quer que eu faça?

BEBA: Qualquer coisa, menos isso.

CUCA: Não, minha querida. Chegou a minha vez. E eu vou até o fim.

BEBA: Eu não disse? Tenho ou não tenho razão?

CUCA: Estou pouco ligando para isso.

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BEBA: Então eu vou embora.

CUCA: Você fica.

BEBA: Não me faça perder a paciência.

CUCA: Não vem com ameaças.

BEBA: Posso acabar com você.

LALO: Chega de discutir.

CUCA: (Para Beba.) Você vai ficar quietinha.

BEBA: Ah, é? Não me diga! ... Pois pode crer que não. O que você acha disso? Eu não vou ficar aqui apodrecendo
entre estas paredes que detesto. Se vocês gostam de mexer na merda, problema de vocês. Eu tenho vinte anos e um
dia desses desapareço e não volto mais, então vou poder fazer o que bem quiser. O que você acha? (Pausa.) No
começo você não queria, agora é capaz de matar para conseguir o que deseja. É como se a salvação de sua alma
dependesse disso. Sim, a sua... Não me olhe assim... Salvar o que então? A pele? (Com intenção.) Por isso chamou a
polícia. Por isso, também, daqui a pouco vai começar o interrogatório e a perícia. Foi você quem fez isso? Não,
senhor. Não foi você? Eh, sargento... como é possível, se nós encontramos uma pista: as impressões digitais. O crime
foi cometido por vocês. Acha que nós somos otários? Pensam que podem nos enganar? (Muda de tom.) Não quero
me meter nisso.

CUCA: Você tem que ir até o fim.

BEBA: Isso nunca acaba.

CUCA: Fica calma.

BEBA: É sempre a mesma coisa. Estou cansada. Por que nunca saímos deste círculo vicioso? (Em tom íntimo.) Além
disso, não quero ser envolvida... (Muda de tom.) Não acho graça nenhuma.

CUCA: Isso tudo é conversa fiada. Se eu não te conhecesse bem, quem acreditaria nesse papo furado. (Como mãe.)
Mas bela coisa você me saiu. (Muda de tom.) Pensa que vou ficar de braços cruzados vendo o que ele fez? Vou
defender a memória de Papai e mamãe, custe o que custar.

BEBA: Não me toque.

CUCA: (Autoritária como a mãe.) Ponha a faca no seu devido lugar. (Beba deixa cair a faca em algum ponto do
cenário.) Assim não.

BEBA: (Furiosa.) Põe você mesma.

CUCA: (Com ar de deboche e um sorriso maldoso.) Controle-se. (Muda de tom.) Obedeça, cada coisa no seu lugar.
(Muda de tom.) Ainda falta o melhor. (Beba obedece e coloca a faca de modo satisfatório.) É preciso ter muito
cuidado.

BEBA: (Furiosa.) Não conte comigo.

CUCA: (Organiza mentalmente o ambiente.) As lâmpadas, as cortinas... É uma questão matemática.

BEBA: (Furiosa.) Vai encher o outro. Ou então faça você mesma.

CUCA: Você participou desde o começo. Não pode negar agora.

BEBA: Isso nós vamos ver.

CUCA: (Autoritária como a mãe.) Nada deve falhar.

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BEBA: Tomara que alguma coisa dê errado.

CUCA: Já pensei nisso também. (A Lalo.) Levanta. (Lalo não reage.).

BEBA: (Furiosa.) Deixa ele em paz. Não vê que está sofrendo? (Lalo geme baixinho.).

CUCA: Não se meta nisso.

BEBA: Espera um pouco. Dá um tempo.

CUCA: Eu sei o que estou fazendo.

BEBA: (Sutilmente debochada.) Sim, tudo bem, mas não se esqueça que eu estou em guarda e pronta para a
qualquer momento...

CUCA: (Rápida, furiosa.) O que?

BEBA: Pular em cima de você.

CUCA: É mesmo? Quer dizer então que você é contra...? Então presta atenção no que vou dizer: não pensa que vou
deixar você fazer as coisa do jeito que quiser. Você é apenas um instrumento, uma mola, uma porca. (Muda de
tom) Você devia estar alegre com isso. (Pausa. Muda de tom.) Não faz essa cara. (Levemente ameaçadora.) Bom,
então assuma as consequências. Tudo faz parte do jogo nesta casa. Me ajuda a dar os últimos retoques. (Mexe-se,
procurando pôr em ordem. Enumera.) O vaso, a faca, as cortinas, os copos... a água, os comprimidos. Daqui a pouco
chega a polícia,... a seringa e as ampolas... não temos que fazer mais nada senão desaparecer... evaporar. (Beba
tenta sair. Cuca a impede.) Não, queridinha. Não se faça de boba, você sabe o que eu estou falando. (Diante do tom
sarcástico de Cuca, Beba se retrai.) Concorda? Ta querendo se intrometer? ... Vamos ficar invisíveis. Tem alguma
coisa a acrescentar? Nós somos inocentes. Quer tomar o partido dele, é isso? (A Lalo.) Levanta, já é tarde. (A Beba.)
Quer defender o que não tem defesa? Por acaso ele não é um assassino? (A Lalo.) Se arruma um pouco. Tá
parecendo um cadáver. (Lalo levantando-se torpemente.) (Beba espalha um baralho sobre a mesa.) Beba, eu jamais
teria imaginado uma coisa dessas.

LALO: (Para Beba, ainda de costas para o público.) Me dá um pouco de água.

CUCA: (Imperiosa.) Não, não pode. (Aproximando-se de Lalo, arruma-lhe as roupas, com uma certa ternura.) Tem
que esperar. (Como a mãe.) Ai, esse colarinho, que horror. Você parece um mendigo.

LALO: Estou com a boca seca.

BEBA: (Como a mãe, com certa ternura.) Você dormiu muito mal.

LALO: Preciso sair um pouco.

CUCA: (Violenta.) Não, daqui você não sai.

LALO: Eu preciso.

CUCA: Não precisa nada. Está tudo pronto. O que acha? Quer bancar o esperto, mas não vou deixar. (Cuca tenta
segurar Lalo que quer fugir. Pega-o pela gola da camisa. Os dois lutam com violência. Beba fica perplexa. Depois a
luta torna-se diabolicamente interessante para ela e começa a dar voltas em torno dos dois.).

LALO: Me solta.

CUCA: Nem morta.

LALO: Ficou valente.

CUCA: Quer experimentar?

LALO: Está me unhando.


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CUCA: O jogo é esse. Vida ou morte. E você não pode escapar. Sou capaz de tudo para que você seja julgado. (Beba
corre para o fundo na direção da porta.).

BEBA: (Gritando.) A polícia. A polícia! ... (Cuca e Lalo param de lutar. Este cai derrotado numa cadeira. Beba fica do
lado da porta fechada e do lado oposto fica Cuca furiosa.).

CUCA: (Com fúria.) Nunca vou te perdoar. Você é culpado. Culpado. Se tiver que morrer que morra.

BEBA: Sssht ... Silêncio! ... (Longa pausa. Beba a Cuca começam a se movimentar quase que em câmera lenta. Elas
representam os dois policiais que descobriram o crime.).

CUCA: (Como policial.) Está muito escuro aqui!

BEBA: (Como policial.) Isto está me cheirando mal!

CUCA: (Como policial.) Manchas de sangue em todos os cantos.

BEBA: (Como policial.) Parece que mataram dois porcos em vez de gente.

CUCA: Nojento, você não acha?

BEBA: Gente sem coração. (As duas avançam como se estivessem andando num túnel escuro. Lalo continua sentado
na cadeira. As duas irmãs param diante dele e fingem jogar luz no rosto de Lalo com uma lanterna. Como policial,
triunfante.) Fisgamos o peixe.

CUCA: (Idem.) Deu trabalho! (A Lalo, com violência.) De pé, vamos, rápido. (Lalo incomodado pela luz, esconde o
rosto entre as mãos.).

BEBA: (Vulgar.) Aí garotinho, fica quieto se não quiser virar presunto.

CUCA: (Agressiva.) Vamos, levanta.

BEBA: (Idem.) Dançou, maninho. (Lalo levanta-se de mãos na cabeça.) Temos que agir rápido.

CUCA: (como policial.) Pode revistar.

BEBA: O cara é perigoso. (Apalpa o corpo de Lalo.) Documentos... carteira de identidade, cadê? (Tira um documento
imaginário.) Seu nome? (Lalo não responde.) Não sabe que está preso? Responda a justiça. De quem eram os gritos?

CUCA: Você matou alguém?

BEBA: Então por que tem tanto sangue aí?

CUCA: Você mora com seus pais?

BEBA: Tem irmãos ou irmãs? Responde.

CUCA: Você degolou os velhos, não é? Fala, que é melhor.

LALO: (Vagamente.) Não sei.

BEBA: Como não sabe? Você vive sozinho?

CUCA: E toda esta roupa aí? ... (Muda de tom.) Deixa para lá, Cuco. (Sorri.) Vai ter tempo para falar.

BEBA: Esse já dançou, meu chapa. (Ri grosseira.) É um cafajeste de marca maior... com certeza primeiro roubou;
depois, não satisfeito com isso, ainda matou os velhos. (A Lalo.) Seus pais, não é? Já estou imaginando. Você
envenenou os dois? (Pega o tubo de comprimidos e volta a colocá-lo sobre a mesa.) Quantos comprimidos? (Lalo
não responde. Às vezes sorri.) Vamos, desembucha... Se confessar pode ser que o castigo seja menor. (A Cuca,
mostrando a seringa.) Você viu só? É bem possível que...

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CUCA: Não tenha dúvida que este é um crime daqueles. (A Lalo.) Cadê os corpos? (A Beba.) Não tem pista nenhuma.

BEBA: Onde você escondeu?

CUCA: Temos que vasculhar a casa de cima a baixo. Em algum canto...

BEBA: Por que matou eles? Responde. Eles te maltratavam?

LALO: (Seco.) Não.

CUCA: Até que enfim, rapaz. Por que você matou eles?

LALO: (Muito seguro.) Eu não fiz isso.

CUCA: Que descarado.

BEBA: Eles estavam dormindo?

CUCA: Nunca vi maior cinismo. Então não matou ninguém? Nem seus pais? Nem seus irmãos? Algum parente? (Lalo
encolhe os ombros.) Então fala, diz, o que fez!?

BEBA: você sufocou eles com travesseiros?

CUCA: Quantas facadas você deu?

BEBA: Cinco, dez, quinze?

CUCA: você não vai dizer que foi tudo uma brincadeira. Aqui tem manchas de sangue. Você mesmo está sujo da
cabeça até os pés. Você vai negar isso? Recusa o interrogatório? (Muda o tom.) Eu quase vi o crime... (Rapidamente.
Quase insólita.) Onde estão seus pais? Escondidos no baú?

(Pausa. Reconstruindo a cena.) Você foi andando no escuro devagarzinho, na ponta dos pés, para não fazer
barulho... Seus pais roncavam e você, prendendo a respiração, com a faca na mão firme..

LALO: (Orgulhoso.) Não, não foi assim. O senhor está mentindo...

CUCA: Então como foi? (Cansada.) Ah, esta casa é um labirinto...

BEBA: (Procurando pela casa.) Aqui está a prova. (Aponta a faca.) Estamos na pista. (Se abaixa para pegar a faca.).

CUCA: (Gritando.) Não toque nisso.

BEBA: Temos que tirar as impressões digitais. (Pega a faca com um lenço e coloca em cima da mesa.).

CUCA: Se ele continuar negando...

BEBA: (Furiosa.) Isso você pode deixar comigo. (A Lalo.) Vem cá. Ou você fala ou...Olha, eu não quero usar violência.
O que você pensa que somos? Pensa que viemos aqui para brincar? (Tom ameaçador e persuasivo.) Confessa que é
melhor. Acho que seu tempo está acabando. (Em tom mais amistoso.) Fala tudo, afinal é para o seu próprio bem.
(Olha para Cuca.) Nós vamos levar isso em consideração. Pode confiar. (Cuca sai em atitude de investigação.) Você
vai ver como vai se sentir melhor depois de ter contado tudo nos mínimos detalhes. É simples, muito simples. (Em
tom quase familiar.) Como você fez? Por que você fez? Eles gritavam com você ou... Teve por acaso um roubo ou
coisa parecida? O que aconteceu realmente? Você esqueceu por acaso? Tenta lembrar... Vamos, você tem todo o
tempo do mundo.

LALO: (Com soberba.) Nenhum de vocês pode entender...

BEBA: Não fala isso... (Mais íntima.) Vai, rapaz, confessa.

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CUCA: (Fora de cena. Gritando.) Não esquenta a cabeça, Cuco. Achei os defuntos. (Entra em cena limpando as mãos.)
Se você visse, um espetáculo horrível, mais do que isso, pavoroso. É de arrepiar qualquer um. (Reconstituindo a
cena.) Aqui está a pá, a enxada, ... Cavou um buraco enorme. Não sei como pode fazer tudo sozinho ... E lá no fundo
os dois corpos e um pouco de terra por cima. (Aproxima-se de Lalo. Dá-the um tapa nas costas.) Quer dizer então
que o garotinho aqui não fez nada! (Beba vai para o lugar de onde veio Cuca.) Claro, entendo. (Com um sorriso de
satisfação.) O garotinho é inocente. (Muda de tom.) Muito bem ... (Fitando-o fixamente com desprezo.) O garotinho
está com os dias contados. (Vulgar.) Assinou sua sentença, meu rapaz.

BEBA: (Entra em cena. Pára de agir como policial.) É pavoroso.

CUCA: (Como policial, em tom vulgar.) Não seja trágico.

BEBA: Fiquei arrepiada.

CUCA: O garotinho vai longe.

BEBA: Senti um calafrio ...

CUCA: (Para Beba.) Vamos, coragem. Não entregue os pontos. (Para Lalo com desprezo.) Você é um ... Me dá
vontade de ... (Para Beba.) Vamos fazer o relatório.

BEBA: Como assim? Mas ele não confessou.

CUCA: Não é preciso.

BEBA: Eu acho que é.

CUCA: Já temos provas suficientes.

BEBA: Temos que tentar ... (Para Lalo.) Lalo, é necessário que você fale, que você confesse. Por que, Lalo?

CUCA: Não amoleça.

BEBA: (Para Lalo. Quase suplicando.) Você não entende que é necessário, que é preciso uma confissão? Pode falar o
que quiser, o que der na cabeça, mesmo não tendo lógica, mesmo sendo disparate; fale, por favor. (Lalo permanece
imperturbável.).

CUCA: Vamos para a delegacia. O relatório, o depoimento ... (Beba, séria, dirigi-se à mesa e senta-se. A cena agora
deve adquirir uma estranha dimensão. Os elementos utilizados serão: sons guturais, barulhos na mesa, passos
ritmados, primeiro de Beba, depois de Cuca, devem ser desfrutados ao máximo. Cuca ditando automaticamente.)
Nesta delegacia de polícia no dia ...

BEBA: (Movimentando as mãos sobre a mesa mecanicamente.) Toc-toc; Toc-toc; Toc-toc ...

CUCA: ... Diante do delegado de plantão, que subscreve o presente depoimento, se apresentam o investigador n°
421, Cuca de Tal, e o investigador n° 842, Beba de Tal, com o cidadão...

BEBA: Toc-toc; Toc-toc; Toc-toc ... (Cuca move os lábios como se continuasse ditando.)

CUCA: Os dois investigadores declaram que encontrando-se na zona a eles destinada ...

BEBA: (Batendo na mesa com as mãos, com ritmo.) Toc-toc; Toc-toc; Toc-toc ... (Cuca move os lábios como se
estivesse ditando.)

CUCA: ... Ouviram vozes e gritos ...

BEBA: Toc-toc; Toc-toc; Toc-toc ...

CUCA: ... que brigavam, discutiam, se lamentavam ...

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BEBA: (Batendo com ritmo.) Toc-toc; Toc-toc; Toc-toc ...

CUCA: ... a tendo escutado o pedido de socorro ...

BEBA: Toc, toc, toc, toc ...

CUCA: ... ao entrar na referida habitação ...

BEBA: Toc, toc, toc, toc, toc ...

CUCA: ... dois corpos que apresentavam ...

BEBA: Toc, toc, toc, toc ...

CUCA: ... contusões e profundos ferimentos de primeiro grau ...

BEBA: ... Toc, toc, toc, toc (Cuca começa a sapatear sobre a mesa, chegando a um momento de delírio. Pausa. Beba e
Cuca voltam a uma atitude aparentemente normal. Cuca apresenta um pedaço de papel a Lalo.).

CUCA: (Autoritária) Assina aqui.

LALO: (Furioso, firme a desafiante.) Não assino. Vocês não entendem? Isto é uma merda. Tudo isso é uma infâmia.
(Pausa. Quase brincando.) Acho engraçado, engraçado mesmo, que assim, de repente, vocês procurem os meios
mais nojentos para me interrogar. Mas é lógico. É quase ... eu diria, natural. Vocês acham que eu vou assinar essa
merda de relatório? Essa é a lei? Essa é a justiça? Não entendem nada disso. (Grita, rasgando o papel.) Lixo, lixo, lixo.
Isto é o digno, é o exemplar, o respeitável. (Pisa o papel com raiva. Pausa. Muda o tom. Com um sorriso amargo,
quase com lágrimas nos olhos.) É muito engraçado, muito digno e muito exemplar que vocês agora digam: culpado.
Pronto, chega. Fazer o que vocês então fazendo ... (Para Cuca.) Não está satisfeita com o que aconteceu? Por que
vocês pretendem me atribuir uma série de invencionices sem sentido? Por acaso você imagina que eu sou um
idiota? O que você está pretendendo? (Fazendo macaquice.) Pensa que estou morrendo de medo? Então escuta
aqui: Não, não tenho medo. (Beba tocando um sino.) Sou culpado. Sim, sou culpado. Julguem-me. Façam o que
vocês quiserem. Estou em suas mãos. (Beba agita o sino novamente, como se fosse um juiz. Lalo muda de tom.
Menos violento, mas sempre arrogante.) Se o senhor juiz me permitir ...

BEBA: (Como juiz.) Peço ao público que mantenha a devida compostura e que faça silêncio ou do contrário terei que
esvaziar a sala a continuar a sessão de portas fechadas. (Para Cuca.) Tem a palavra o senhor promotor.

CUCA: (Para Beba.) Obrigado senhor juiz. (Para Lalo.) O réu conhece as dificuldades que enfrentamos desde o
começo para esclarecer os fatos acontecidos nesta nefasta madrugada do ... (Beba toca o sino.)

BEBA: Peço ao senhor promotor que seja mais explicito e mais concreto ao formular sua explanação.

CUCA: Desculpe, senhor juiz, mas ... (Beba toca o sino.)

BEBA: Peço ao senhor promotor que se atenha exclusivamente ao interrogatório.

CUCA: (Para Beba.) Senhor juiz, o réu durante o precedente interrogatório usou uma quantidade surpreendente de
evasivas. O que torna impossível qualquer tentativa de esclarecer ...

BEBA: (Batendo sobre a mesa com força.) Atenha-se à questão em pauta.

CUCA: (Solene.) Repito ao senhor juiz que o réu dificulta sistematicamente todas as tentativas de esclarecer a
verdade. Por esse motivo quero formular à corte as seguintes perguntas: a justiça pode e deve ser burlada? A justiça
não é a justiça? Se podemos enganar a justiça, a justiça deixa de ser a justiça? Se devemos enganar a justiça, a justiça
é outra coisa que não a justiça? Na verdade, senhores, devemos ser adivinhos?

BEBA: (Implacável, batendo na mesa.) Exijo que o promotor não extrapole os limites de suas funções.

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CUCA: (Exibindo suas qualidades histriônicas.) Senhoras e senhores, o réu como todos os culpados, teme que o peso
da justiça ...

LALO: (Furioso mas controlando-se.) Você está trapaceando. Eu o conheço. Você quer me destruir, mas não
conseguirá.

CUCA: (Solene a furiosa. Para Beba.) Senhor juiz, o réu está se comportando de modo irreverente. Em nome da
justiça exijo um comportamento adequado. O que pretende o réu? Criar confusão? Se for esse o seu propósito,
devemos declarar abertamente que sua atitude é intolerável. Os ritos da lei a da justiça devem manter atitude
condigna. Ninguém pode se queixar de seus métodos. Foram feitos sob medida para os homens. Mas o réu, ao que
parece, não entende, ou não quer entender ou talvez em seu âmago existam zonas turvas... Ou ainda, quem sabe,
prefere esconder-se, camuflar-se, recorrendo aos subterfúgios da estupidez e da agressividade. Conclamo que cada
membro deste júri e a corte em geral tenha total consciência de suas atitudes e na hora de emitir o veredicto sejam
objetivos e, ao mesmo tempo, implacáveis. Senhoras e senhores: de um lado o réu declara abertamente sua culpa
isto é, admite ter matado. Este fato lamentável ultrapassa os limites da natureza adquirindo uma dimensão
espirante para qualquer cidadão normal que transite pelas ruas de nossa cidade. Por outro lado, o réu nega e desvia,
claro que de forma indireta, a sequencia dos fatos, usando as artimanhas mais disparatadas: contradições,
banalidades e expressões absurdas como: não sei, talvez, pode ser, sim e não. Isto são respostas? Ou mesmo o
recurso barato de: se eu tivesse consciência das coisas ... Isto é inadmissível, senhores jurados. (Avança para o
primeiro plano com grande efeito teatral.) A justiça não pode ficar passiva diante de semelhante caso, onde se
reúnem o abjeto, o malévolo e a crueldade. Aqui está, senhores jurados, o mais repugnante assassino da história.
Olhem para ele. Não é repugnante para qualquer criatura deparar-se frente a este rato nojento, esse ser imundo,
este detritus humanus. Não dá vontade de vomitar e blasfemar? A justiça deve ficar de braços cruzados? Senhoras e
senhores, membros do júri, devemos permitir que um indivíduo dessa índole compartilhe de nossas ilusões e de
nossas esperanças? Será que a humanidade, vale dizer, a nossa sociedade não caminha rumo a um progresso
luminoso, a uma alvorada radiante? (Lalo tenta balbuciar algumas palavras, mas a torrente oratória de Cuca impede
qualquer ato ou palavra.) Olhem para ele: indiferente, imperturbável, alheio a qualquer sentimento de ternura,
compreensão ou piedade. Olhem para este rosto. (Num grito.) O rosto impassível do assassino. O réu nega ter
cometido o crime por dinheiro, isto é, para roubar ou para tornar-se beneficiário da pequena aposentadoria de seus
pais. Por que matou então? Já que em realidade não existe nenhum motivo conclusivo. Deveremos, então, concluir
que foi por ódio? Por vingança? Por puro sadismo? (Pausa. Lalo movimenta-se impaciente na cadeira. Cuca em tom
comedido.) A justiça pode admitir que um filho mate seus pais?

LALO: (Para Beba.) Senhor juiz... eu gostaria ... eu queria ...

CUCA: (Como promotor.) Não, senhores jurados. Não, membros desta corte. Mil vezes não. A justiça não pode
admitir tamanho desacato. A justiça preserva a família. A justiça cria a ordem. A justiça vigia. A justiça exige bons
costumes. A justiça salvaguarda os homens dos seus instintos primitivos e corruptores. Podemos ter piedade de uma
criatura que violenta os princípios naturais da justiça? Eu pergunto, Senhores do júri. Eu pergunto, Senhores da
corte: existe por um acaso a piedade? (Pausa.) Nossa cidade se levanta, uma cidade de homens silenciosos e severos
avança decidida a reclamar da justiça o corpo deste ser monstruoso ... que será entregue à fúria dos verdadeiros
homens que querem a paz e o sossego. (Grandiloqüente.) Exijo, portanto, que o réu forneça detalhes do fato. (Para
Lalo.) Por que matou seus pais?

LALO: Eu queria viver ...

CUCA: (Violenta.) Isto não é resposta. (Rápida.) Como o fez? Deu-lhes alguma droga antes do crime? Ou sufocou-os
com os travesseiros, sabendo que estavam indefesos e depois os matou? Como usou os travesseiros? Que papel
desempenharam esta seringa e estes comprimidos? São pistas falsas, por acaso? Explique-se, o senhor, senhor réu.
(Pausa.) Matou-os a sangue frio? Planejando passo a passo cada detalhe do crime, ou foi através de um ímpeto de
violência? Fale senhor réu. Usou apenas esta faca? (Exausta.) Em suma, senhor réu, por que os matou?

LALO: Eu me sentia perseguido, acuado ...

CUCA: Perseguido? Por que? Acuado? Por que?

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LALO: Não me deixavam em paz um minuto ...

CUCA: Apesar disso, as testemunhas presentes afirmam ...

LALO: (Interrompendo.) As testemunhas mentem ...

CUCA: (Cortando-o.) O senhor nega as declarações das testemunhas?

LALO: (Firme.) Ninguém estava presente naquela noite!...

BEBA: (Como juiz.) O réu deve ser mais preciso nas suas respostas. É imprescindível. É verdade isto que acaba de
declarar?... O tribunal exige a verdade. O tribunal exige verdade e clareza. O tribunal espera que o réu acate as
exigências... Tem a palavra o senhor promotor.

CUCA: E seus parentes mais próximos? Sua avó, por exemplo, suas tias ... Em suma, os seus parentes. O senhor os via
frequentemente. Que tipo de relação mantinha com eles?

LALO: Não mantínhamos nenhum relacionamento.

CUCA: Por que?

LALO: Mamãe odiava a família de papai e papai não se dava com a família de mamãe.

CUCA: O réu não está exagerando?

LALO: Nenhum parente nos visitava... Mamãe nunca quis que eles viessem em nossa casa. Preferia morrer a ter de
conviver com eles. Dizia que eram hipócritas e invejosos. Papai pensava o mesmo dos irmãos, primos e cunhados de
mamãe... Também não deixavam que nós os visitássemos...

CUCA: Isto parece não ter muito fundamento. Por que?

LALO: Viviam repetindo que nós valíamos mais, que toda essa gente era inferior, que não tinha condição ...

CUCA: E o senhor nunca procurou estabelecer um relacionamento, um contato ?...

LALO: Uma vez tentei. Mas não deu certo.

CUCA: O senhor conhece a testemunha Dona Angelina? (Para o público.) Seu nome, por favor. Obrigado. Conhece a
testemunha Senhora Angelina ...Angela Martins?

LALO: Sim.

CUCA: Ela esteve em sua casa antes ou depois dos acontecimentos?

LALO: Antes. (Pausa.) Seriam mais ou menos seis horas da tarde.

CUCA: Ela insiste em seu depoimento que vocês brincavam de um modo muito estranho ... Que espécie de
brincadeira era aquela? (Pausa.) Não era algo assim ... doentio? (Pausa.) Responda: Não era uma brincadeira
perversa?

LALO: (Firme.) Não sei.

CUCA: Pelo que entendo, seus pais se queixavam ...

LALO: A vida toda, desde que me entendo por gente escutei as mesmas cantilenas, os mesmos sermões, as mesmas
queixas.

CUCA: Certamente havia alguma razão.

LALO: Às vezes sim, às vezes não... Uma razão repetida até o infinito perde a sua razão.

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CUCA: Seus pais eram tão exigentes assim?

LALO: Não estou entendendo.

CUCA: A pergunta é a seguinte: Que tipo de relacionamento mantinha com seus pais?

LALO: Acho que já disse. Pediam, exigiam, vigiavam ...

CUCA: O que pediam? O que exigiam? O que vigiavam?

LALO: (Desesperado.) Não sei, não sei. (Repete automaticamente.) Lave os pratos, lave as toalhas, lave as camisas.
Limpe os vasos, limpe a privada, limpe o chão. Não durma, não sonhe, não leia. Você não serve para nada.

CUCA: Acreditam senhores jurados e os senhores da corte que estes motivos sejam suficientes para provocar num
indivíduo uma tal alienação a ponto de levá-lo ao assassinato?

LALO: (Balbuciando.) Eu queria ...

CUCA: O que? (Pausa.) Responda!

LALO: (Sincero.) A vida.

CUCA: (Com sarcasmo.) Seus pais lhe negavam a vida? (Para o Público.) Não será isso uma evasiva do réu?

LALO: (Efusivo.) Eu queria, eu sonhava, eu desejava desesperadamente ... fazer as coisa por mim mesmo.

CUCA: Seus pais se opunham?

LALO: (Seguro.) Sim.

CUCA: Por quê?

LALO: Diziam que eu não tinha cabeça para nada, que era um vagabundo, que jamais poderia fazer alguma coisa que
prestasse.

CUCA: (Com parcimônia.) Que tipo de coisas o réu desejava realizar? Pode explicar?

LALO: (Atormentado, esforçando-se, um pouco confuso.) É muito difícil ... não sei. Era alguma coisa. Sabe? Alguma
coisa ... Como posso dizer? É algo que eu sei que existe, que está ali, mas agora não posso ... (Cuca sorri maldosa.)
Escute ... sei que não é isso, mas é que ... (Seguro.) Eu procurava agradá-los por todos os meios ... Uma vez apanhei
uma pneumonia ... Não, não devo dizer isso ... é que ... as coisas sempre me saiam erradas. Eu não queria que fosse
assim, mais não podia fazer outra coisa e então ...

CUCA: Então o que?

LALO: Me xingavam, me batiam, me castigavam, horas inteiras num quarto escuro. Repetiam milhares de vezes que
eu devia morrer, esperavam que eu saísse de casa para me verem morrer de fome, para verem o que eu seria capaz
de fazer.

CUCA: (Com sorriso cínico.) O senhor tem certeza do que está dizendo?

LALO: Sim.

CUCA: (Mudando de tom.) Fale, fale, prossiga.

LALO: Eu era muito infeliz.

CUCA: Por quê?

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LALO: A casa desabava em cima de mim. Eu sentia que estava desabando, apesar de meus pais, minhas irmãs a meus
vizinhos não perceberem.

CUCA: Não compreendo. O que quer dizer exatamente?

LALO: Aquelas paredes, aqueles tapetes, aquelas cortinas, as lâmpadas, a poltrona onde papai fazia a sesta, a cama,
os armários, os lençóis ... Odiava tudo aquilo. Queria que desaparecessem.

CUCA: O senhor odiava tudo aquilo. Naturalmente odiava também seus pais, não é assim?

LALO: (Abstraído.) Talvez tivesse sido melhor fugir. Sim, ir para qualquer lugar: para o inferno, para a Cochinchina.

CUCA: (Exageradamente declamatória.) Senhores jurados, senhores da corte...

LALO: (Como hipnotizado, continua.) Um dia, de repente, brincava com minhas irmãs, descobri então ...

CUCA: (Interessada pela divagação de Lalo.) Descobriu o que?

LALO: (Ainda hipnotizado.) Estávamos na sala ... não, minto ... estávamos no quarto do fundo brincando ... isto é,
representando ... (Sorri como um idiota.) O senhor vai achar bobagem, mas ... eu era o pai. Não, minto, acho que
nesse momento eu era a mãe. Era tudo um jogo ... (Muda o tom.) Ali, naquele instante, tive uma idéia ... (Volta a
sorrir como um idiota.)

CUCA: (Com interesse maior.) Que idéia?

LALO: (Com o mesmo sorriso.) É muito fácil, mas acaba sendo complicado. A gente não sabe se diz o que sente
realmente. Eu ... (Movimenta as mãos tentando se explicar.) Eu sabia que aquilo que os velhos me ofereciam não
era, não podia ser a vida. Então eu disse a mim mesmo: "Se quiser viver tem que ..." (Faz o gesto de apunhalar ou
apertar os punhos como se estivesse triturando alguma coisa.)

CUCA: O que sentiu naquele momento?

LALO: (Como um bobo.) Imagine o senhor ... Não sei.

CUCA: Não sentiu medo?

LALO: Na hora acho que sim.

CUCA: E depois?

LALO: Depois não.

CUCA: (Um pouco irônica.) Aceitou a idéia?...

LALO: Aceitei.

CUCA: (Violenta.) Como? (Bate na mesa.) É inadmissível senhores da corte.

LALO: Sim, é verdade. Aceitei. (A medida em que avança o monólogo, Lalo se transforma.) Parece terrível e, no
entanto ... Eu não queria que fosse assim, mais a idéia continuava na cabeça, ia e vinha, e voltava de novo. No
começo quis apagá-la... O senhor compreende? Mas ela insistia: “Mate seus pais. Mate seus pais." Pensava que ia
enlouquecer, acredite. Corria a me jogava na cama. Às vezes sentia calor ... sim, tive até febre. Eu pensava que
murcharia como um balão, que explodiria, que o diabo estava me instigando, tremia debaixo das cobertas... se o
senhor soubesse... não dormia. Passava em claro noite após noite. Sempre acordado. Tinha calafrios... era pavoroso,
via a morte que se aproximava devagar, pouco a pouco, por detrás da cama, e entre as cortinas e as roupas do
armário, convertendo-se em minha sombra, murmurando entre os travesseiros: "Assassino"; e depois desaparecia
como que por encanto. Ia para diante do espelho e contemplava minha mãe morta no fundo de um caixão e meu pai
enforcado, que ria e me xingava. Durante a noite sentia as mãos de minha mãe sobre os travesseiros, mãos que me
unhavam. (Pausa.) Todas as manhãs sofria ao acordar: era como se me levantasse da morte abraçado a dois

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cadáveres que me perseguiam em sonho. Às vezes ficava pensando... mas não... não. Sair de casa? Nem pensar. Já
sabia o que me esperava ... Sempre tive que voltar e toda vez repetia que não voltaria a fazê-lo. Agora estava
decidido a não repetir aquela louca aventura ... Tudo, menos aquilo. Então pensei que deveria arrumar a casa a
minha maneira... A sala não é a sala, eu pensava... A sala é a cozinha. O quarto não é o quarto. O quarto é o
banheiro. (Pausa breve.) Que mais poderia fazer? Se não era isso, tinha que destruir tudo, tudo, porque todos eram
cúmplices e conspiravam contra mim e conheciam meus pensamentos. Se me sentava numa cadeira a cadeira não
era a cadeira, mas o cadáver de meu pai. Se pegava um copo de água o que sentia entre as mãos era o pescoço
úmido de minha mãe morta. Se brincava com o vaso, de repente caía uma faca enorme no chão. Se limpava os
tapetes não conseguia parar porque tudo era um enorme coágulo de sangue. (Pausa.) O senhor já experimentou
alguma vez algo parecido? Sufocava, sufocava, sufocava. Não sabia onde me encontrava e o que era tudo aquilo. A
quem podia contar tudo isso? Podia confiar em alguém? Estava preso num buraco e escapar era impossível ...
(Pausa.) Mas tinha a vaga ideia de que poderia me salvar... não sei de que... quer dizer... A gente quer sempre
explicar tudo e quase sempre... se atrapalha. Talvez quisesse me salvar daquele sufoco, daquela prisão ... Pouco
depois sem saber como, tudo se transformou. Um dia ouvi uma voz, não sei de onde. Se isso estava acontecendo era
algo grave, esquisito, desconhecido para mim e tinha que contar para alguém, porque talvez, de repente, poderia
acontecer uma catástrofe e não dava para confiar nas minhas forças, mas... não... Ninguém entenderia. Teriam rido,
teriam debochado de mim. Então ouvia as gargalhadas e as piadas de minhas irmãs nos quartos, nos corredores e no
quintal da casa... E assim, junto com as risadas e piadas ouvi milhares de vozes repetindo em coro: "Mate-os.
Mate-os." Não. Não pense que isto seja conversa. Juro que é verdade. Sim, a pura verdade. (Como iluminado.) Desde
aquele momento compreendi que esse era o meu destino e descobri que tudo, os tapetes, a cama, o armário, o
espelho, os vasos, os copos, as colheres e a minha sombra pediam num murmúrio: "Mate seus pais." (Diz isso num
êxtase musical.) "Mate seus pais." A casa inteira, tudo, tudo me exigia esse ato heroico. (Pausa.)

CUCA: (Violenta.) Vou embora. Você está trapaceando.

LALO: Temos que ir até o fim.

CUCA: Eu não posso deixar que você ...

LALO: Você também tentou se aproveitar da situação.

CUCA: O que você fez é imperdoável. Cada um no seu papel. Foi o combinado.

LALO: Não me diga? ... Então você?...

BEBA: (Tocando o sino.) Ordem. Silêncio. Peço aos senhores que mantenham a devida compostura...

CUCA: (Como a mãe, para Beba.) Senhor delegado, perdoe meu atrevimento... é que eu desejo que seja realizada
uma investigação mais profunda. Exijo uma revisão de todo o processo. Por isso vim até aqui. Desejo fazer uma
declaração. Meu filho se apresenta como vítima, mas é exatamente o contrário. Peço que seja feita justiça no nosso
caso. (Beba repete o toc-toc exagerado.) Se o senhor soubesse os sofrimentos que passamos por causa desta
criatura. É tão terrível tão...

BEBA: (Como delegado.) Fale, por favor.

LALO: (Fora do jogo.) Mamãe, eu ... (Sente-se encurralado.) eu ... eu juro...

CUCA: (Como mãe.) Não jure em vão. Você quer se fazer de bobo, mas eu conheço suas artimanhas, suas astúcias,
suas sujeiras. Não foi à toa que eu te pari. Nove meses de tonturas, vômitos e sustos. Esses foram os sinais da sua
chegada. Quer me engambelar? Para que tanto juramento? Acha que vai comover o público e assim poderá se
salvar? Mas se salvar de que? (Ri descaradamente.) Em que mundo você vive, meu filhinho? (Debochando.) Ah, meu
anjinho, tenho tanta peninha de você. No fundo até que você é bom... mas para que ficar falando disso ... (Para
Beba.) Sabe, senhor delegado? Um dia enfiou na cabeça que deveríamos arrumar a casa de acordo com seus
caprichos... Eu, ouvindo tal disparate me opus terminantemente. Seu pai pôs a boca no mundo: "Mas o que é isso?"
O senhor nem imagina. O cinzeiro sobre a cadeira. O vaso de flores no chão. Que horror! E depois ficava cantando
alto, correndo por toda a casa: "A sala não é a sala, a sala é a cozinha". Eu, nessas horas me fazia de surda como se
estivesse ouvindo o barulho de chuva. (Muda de tom. Dura. Seca.) Contou apenas a parte que lhe interessa ... Por

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que não contou também o resto? (Debochando.) Você já contou seu martírio, agora conta o nosso, do seu pai e o
meu. Procure refrescar a sua memória. (Transformando-se.) Senhor juiz, se o senhor soubesse as lágrimas que tenho
derramado, as humilhações que tenho sofrido, as hora de angústia, os sacrifícios... Olhe o senhor as minhas mãos...
dão nojo. (Quase com lágrimas nos olhos.) Minhas mãos... Se o senhor as tivesse visto antes de me casar... tudo foi
perdido: minha juventude, minha alegria, minhas ilusões. Sacrifiquei tudo por este monstro. (Para Lalo.) Você não
tem vergonha? Continua pensando que realizou um ato heróico? (Com asco.) Não sei como pude te carregar tanto
tempo nas minhas entranhas. Não sei porque não te afoguei quando nasceu. (Beba toca o sino.).

LALO: Mamãe, eu...

CUCA: (Como mãe) Nada, nada. Você não é digno do pão que lhe damos. Não merece um único sofrimento meu.
Porque você, você é culpado. O único culpado.

LALO: (Violento) Me deixa em paz, me deixa em paz.

CUCA: (Como mãe. Violenta) Estou ficando velha. Você devia pensar nisso e se sacrificar um pouco. Você acha que
eu não tenho o direito de viver? Pensa que vou ficar o resto da minha vida nessa eterna agonia? Seu pai não se
preocupa comigo e nem você. Onde vou parar? Sim, eu sei que estão esperando que eu morra, mas não vou dar
este gosto a vocês, Vou gritar bem alto para os vizinhos saberem, para todo mundo saber. Você vai ver. Está será
minha vingança. (Gritando.) Socorro! Socorro! Estão me matando! (Começa a chorar.) Sou uma pobre velha
morrendo de solidão. (Beba toca o sino.) Sim, senhor juiz, vivo trancada entre quatro paredes sujas. Não vejo a luz
do sol. Meus filhos não têm a menor consideração comigo. Estou acabada, murcha... (Como se estivesse diante do
espelho. Começa acariciando o rosto e termina por esbofetear-se.) Olhe estas rugas. (Indica as rugas com rancor e
nojo.) Olhe estas pelancas. (Para Lalo.) Um dia você vai ficar assim. A única coisa que desejo é que lhe aconteça o
mesmo que aconteceu comigo. (Arrogante.) Eu, senhor juiz, sempre fui uma mulher justa.

LALO: (Um pouco brincalhão.) Tem certeza? Pensa bem, mamãe.

CUCA: (Como mãe.) O que você quer dizer com isso?

LALO: (Sarcástico) Quero dizer que você está mentindo. Que uma vez você me acusou...

CUCA: (Como mãe indignada, interrompendo com um grito) Lalo! (Pausa. Com ternura.) Lalo, você seria capaz de
afirmar... (Pausa. Dá alguns passos. Parece irritada novamente.) É o cúmulo, senhor juiz... (Quase soluçando.) Ah,
Lalo... (Enxuga as lágrimas.) Que eu, Lalo...? (Evidentemente incerta.) Você acredita que eu... Será possível isso?
(Com um sorriso fraco.) Oh, perdão, senhor juiz... É possível que se... mas convenhamos, foi uma bobagem. (Ri,
grosseiramente.) Estava apaixonada por um vestido de tafetá vermelho, maravilhoso... Um vestido que estava na
vitrine de uma loja. Meu marido ganhava noventa pesos. Imagine o senhor... tínhamos que fazer milagres todos os
meses para sobreviver. Eu tinha que me desdobrar. Noventa pesos do ministério, senhor juiz... e só. Então, como ia
dizendo... Estava desesperada, louca por aquele vestido. Sonhava com ele... Via-o até na sopa. Até que um dia, sem
perceber, comprei o vestido com o dinheiro da comida. E então inventei uma história.

BEBA: (Como juiz.) Que história?

CUCA: (Como mãe, com grande desenvoltura.) Quando Alberto chegou...chegou bêbado como de costume... Então
eu disse: "escute, velho, pergunte para seu filho... (Aproxima-se de Beba para cochichar.) Acredito que ele tenha nos
roubado".

BEBA: (Como juiz.) Por que o fez?

CUCA: (Como mãe, com certa grosseria.) Não sei... era mais cômodo... (Termina de contar com exagero.) Então
Alberto pegou uma corda e o senhor nem queira saber quanta pancada deu no pobrezinho do Lalo... Realmente ele
era inocente, mas... Eu gostava tanto daquele vestido vermelho! (Aproxima-se de Lalo.) Você me perdoa, meu filho?

LALO: (Duro. Hermético.) Não tenho que perdoar.

CUCA: (Com certo histerismo.) Mais respeito com sua mãe, Lalo. (Dramática.) Já não sou mais a mesma. Estou gorda,
feia... Ai, este corpo!
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LALO: Não pense mais nisso.

CUCA: (Autoritária.) Eu disse para me respeitar.

LALO: Só estava brincando.

CUCA: (Dura e imperiosa.) Não me venha com suas brincadeirinhas. Seu pai é um velho que corre como louco atrás
de alguma coisa que não existe. Como você. Se achando o máximo, que pode tudo, mas na realidade é um lixo...
uma porcaria que não serve para nada. Que te sirva de exemplo. Sempre foi um João-ninguém. Tem vivido de ilusões
e pretende continuar sonhando. Às vezes tenho vontade que ele morra. Por que fui me prender a um homem que
nunca me ofereceu uma vida digna? ... (Pausa. Mudando de tom.) Vamos... (Pausa.) Se não fosse por mim, senhor
juiz, esta casa teria desabado... Sim, Senhor juiz, por mim, por mim...

LALO: (Como pai, seguro, quase terrível.) Ela está mentindo senhor juiz.

CUCA: (Como mãe, para Lalo.) Como se atreve?

LALO: (Como pai, para Beba.) É verdade o que digo. Ela exagera, apresenta a situação negra demais. Só vê os
defeitos dos outros. Eu como pai, às vezes tive a culpa. Mas ela também teve. (Em tom mais seguro.) Como todos os
pais cometemos injustiças e alguns atos imperdoáveis.

CUCA: (Como a mãe, com ódio.) Você vinha para casa com manchas de batom e maquiagem nas camisas e nos
lenços.

LALO: (Como o pai, violento.) Cala a boca. Você não quer que eu diga a verdade.

CUCA: (Violenta.) Senhor juiz, suas bebedeiras, seus amigos, seus convidados inoportunos...

LALO: (Violento.) Quem usa calças nesta casa?

CUCA: (Como a mãe, violenta.) Em casa mando eu!

LALO: (Como o pai, violento.) Isso: "Em casa mando eu". Sim, você... a que manda... A isso se resume toda a sua vida.
Riu de mim. Me humilhou. Essa é a verdade: dominadora. (Pausa breve.) Fui um imbecil, um bosta. Desculpe a
palavra, senhores jurados.

CUCA: (Como a mãe, sarcástica.) Ótimo! Ainda bem que você reconhece.

LALO: (Como o pai, violento.) Sim... para que negar? (Pausa. Organizando seus pensamentos.) Cheguei ao casamento
com algumas ilusões. Se dissesse que havia colocado todas as ilusões no casamento estaria exagerando e mentindo
ao mesmo tempo. Fui como a maioria, pensando que assim poderia resolver alguns problemas: a roupa, a comida, a
estabilidade... um pouco de companhia e... enfim... certas liberdades. (Como se espancasse a si mesmo
interiormente.) Imbecil, imbecil. (Pausa. Em outro tom.) Não pensei em nenhum momento que seria como foi.

CUCA: (Como a mãe, violenta.) Não pensava. "Tudo para mim e nada para você", esse era o lema de todos. Mas
comigo tinha que ser diferente.

LALO: (Como o pai, com certa amargura.) Sim, realmente. É claro que foi bem diferente. Dias antes de nos casarmos
começaram as contrariedades: que a igreja era de bairro e não de primeira categoria; que o vestido de noiva não
tinha uma cauda longa; que suas irmãs falavam; que sua mãe; que sua prima; que sua tia; que suas amigas achavam;
que sua avó tinha dito; que os convidados deviam ser fulano, sicrano e beltrano; que o bolo não tinha dez andares;
que os seus amigos deviam se vestir a rigor...

CUCA: (Como a mãe, desafiante.) Fale. Diga, diga tudo. Vomite. Não guarde mais nada. Finalmente descubro que
você me odeia.

LALO: (Como o pai, firme e convicto.) Sim é verdade. Eu não sei por quê. Mas é assim mesmo. (Outro tom.) Quando
éramos noivos você se enfiou na minha cama porque sabia que era a única maneira de me prender. Esta é a
verdade.
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CUCA: (Como a mãe, desafiante.) Continue. Não pare.

LALO: (Como o pai, firme.) Você não queria ficar para tia. Você odiava as crianças... mas solteira, ficar solteirona?...
Não, não. Você tinha que ter um marido. Não importava quem. O importante era tê-lo.

CUCA: (Como a mãe, aproxima-se de Lalo, furiosa.) Eu te odeio! Te odeio! Te odeio!

LALO: (Como o pai, desafiante.) Um Marido te daria segurança. Um marido te faria respeitável. (Irônico.)
Respeitável... (Pausa.) Não sei como explicar... em todo caso, a vida é assim, se quisermos...

CUCA: (Como a mãe, desesperada.) Mentira, mentira, mentira!

LALO: (Como o pai, violento.) Vai me deixar falar?

CUCA: (Fora do jogo.) Está trapaceando de novo.

LALO: (Como o pai.) Você não quer que ninguém saiba a verdade.

CUCA: (Fora do jogo.) Estamos discutindo outra coisa.

LALO: (Como o pai.) Você tem medo de chegar ao final.

CUCA: (Fora do jogo.) Você quer me destruir.

LALO: (Como o pai, violento.) E o que você fez? Fale. O que fez comigo? E com eles? (Debochando.) "Estou ficando
feia, Alberto. Estou gorda. Com seu salário não podemos nos manter “. (Pausa.) Eu não sabia os motivos, as
verdadeiras razões. E hoje lhe pergunto, bote a mão no coração e responda: algum dia você gostou de mim? (Pausa.)
Mas isso não importa. Não diga nada. Agora vejo claro. Foi preciso que se passassem muitos anos para
compreender. "Alberto, as crianças... eu não as suporto. Cuide você delas". Quanto mais passava o tempo, maiores
eram as suas exigências, maior o seu egoísmo. (Pausa.) E eu lá no ministério, no escritório, entre números, fofocas e
amigos que vinham e falavam: "Até quando você vai continuar assim, rapaz?" (Beba começa a cantar: "A sala não é a
sala. A sala é a cozinha. O quarto não é o quarto. O quarto é o banheiro." Deve ser estabelecida uma forte relação
entre o canto e as palavras de Lalo e Cuca. O canto de Beba parece, primeiramente um grunhido e vai se
transformando até adquirir um tom doce, simples, quase ingênuo. Lalo debochado.) E você: "Hoje ligou tua irmã, a
futriqueira. Essas crianças... Olha como estão minhas mãos de tanto lavar. Eu não agüento mais, Alberto. Quero
morrer." Você começava a chorar e as crianças gritavam e eu achava que ia ficar louco girando sempre no mesmo
círculo... Aí, saia de casa, às vezes à meia-noite e tomava uns tragos e me sentia sufocado, sufocado... (Pausa. Sem
ar.) Havia outras mulheres, mas não me atrevia a pensar nelas... sentia uma vontade enorme de ir embora, de voar,
de acabar com tudo. (Pausa.) Mas tinha medo, o medo me paralisava, não conseguia me decidir e ficava no meio do
caminho. Pensava uma coisa e fazia outra. Isso é terrível: se dar conta no final. (Pausa.) Não pude. (Para o público.)
Lalo se você quiser você pode. (Pausa.) Agora eu me pergunto: por que você não viveu plenamente cada um dos
seus pensamentos, cada um dos seus desejos? E eu me respondo: por medo, por medo, por medo.

CUCA: (Como a mãe, sarcástica.) Eu não tenho culpa, meu filhinho. (Pausa. Desafiante.) E você, o que queria que eu
fizesse? Essas crianças são o diabo. Transformavam a casa num chiqueiro. Lalo rasgava as cortinas e quebrava as
xícaras. E Beba não se satisfazia em destruir os travesseiros... E você bem que gostava de chegar em casa e encontrar
tudo pronto. Você lembra quando Beba fez xixi na sala? Você ficou escandalizado e disse: "Na minha casa isso nunca
aconteceu!" Por acaso a culpa era minha, minha?... Colocava uma cadeira aqui. (Movimenta uma cadeira.) E a
encontrava lá (Movimenta a cadeira para outro lugar.) O que queria que eu fizesse?

LALO: (Como o pai, vencido.) Tinha que limpar a casa. (Beba pára de cantar.) Sim... tinha que mudar os móveis, sim...
(Pausa. Muito melancólico.) Na verdade tinha que se fazer outra. (Pausa. Lentamente.) Mas já estamos velhos e não
podemos. Estamos mortos. (Pausa longa. Violento.) Você sempre acreditou que era melhor do que eu.

CUCA: (Como a mãe.) Desperdicei minha vida com você.

LALO: (Como o pai. Vingativo.) Você não pode escapar. Tem que agüentar, agüentar, agüentar.

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CUCA: (Como a mãe. Entre soluços.) Escriturariozinho de uma figa! Tomara que morram os três.

BEBA: (Como Lalo. Gritando e movimentando-se em círculos pelo cenário.) Temos que tirar os tapetes. Arrancar as
cortinas. A sala não é a sala. A sala é a cozinha. O quarto não é o quarto. O quarto é o banheiro. (Beba está no
extremo oposto de Lalo. De costas para o público. Lalo também de costas vai se curvando lentamente. Com um grito
apavorante.) Aaaaaiiiii! (Entre soluços.) Vejo minha mãe morta. Vejo meu pai degolado. (Gritando.) Temos que
derrubar esta casa. (Pausa longa.).

LALO: Abre essa porta. (Cai de joelhos. Cuca levanta-se lentamente, vai até a porta do fundo a abre. Pausa. Dirige-se
à mesa a pega a faca.).

BEBA: (Em tom normal.) Como se sente?

CUCA: (Em tom normal.) Mais segura.

BEBA: Está satisfeita?

CUCA: Sim.

BEBA: De verdade?

CUCA: De verdade.

BEBA: Está disposta outra vez?

CUCA: Isso não é pergunta que se faça.

BEBA: Um dia vamos conseguir...

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CUCA: (Interrompendo.) Sem nenhuma falha.

BEBA: Não ficou surpresa que tenha conseguido?

CUCA: A gente sempre se surpreende.

LALO: (Entre soluços.) Ah, minhas irmãs, se o amor pudesse... só o amor... Porque apesar de tudo eu amo vocês.

CUCA: (Brincando com a faca.) Me parece ridículo.

BEBA: (Para Cuca.) Deixa ele. Coitado.

CUCA: (Para Beba entre risos a deboches.) Olha pra ele. (Para Lalo.) Era assim que eu queria te ver.

BEBA: (Novamente séria.) Muito bem. Agora é a minha vez.

FIM

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