Você está na página 1de 15

1

A
Última Gravação
de

Krapp
de Samuel Beckett
Tradução: Maria Adelaide Amaral
2

Tarde da noite, no futuro.

Estúdio decrépito de Krapp.

No centro do proscênio, uma mesa pequena, com duas


gavetas que se abrem para a platéia.

Sentado à mesa, de frente para o público, do lado oposto


ao das gavetas, um homem velho de aspecto relaxado:
Krapp.

Calças pretas surradas, apertadas, muito curtas para ele.


Um colete preto, também surrado, com quatro bolsos
grandes. Pesado relógio de prata, de bolso, com corrente.
Camisa branca, sem colarinho, encardida, desabotoada
no pescoço. Surpreendente par de botas, de um branco
sujo e de bico fino.

Rosto branco. Nariz avermelhado1. Cabelo grisalho,


revolto. Barba por fazer, muito míope (mas não usa
óculos). Um pouco surdo. Voz de taquara rachada.
Entonação muito característica Caminha com esforço.

Mesa vazia. No chão, ao lado da mesa, caixas


espalhadas que contêm rolos de fitas gravadas.

A mesa e área adjacente estão iluminadas. Luz branca,


intensa. O resto da cena encontra-se imerso na escuridão.

Krapp fica um momento imóvel. Solta um grande suspiro,


consulta o relógio, remexe nos bolsos, tira para fora um
envelope, coloca-o novamente no bolso; remexe outra
vez, retira um molho de chaves, eleva-o à altura dos
olhos, separa uma, levanta-se e caminha para a frente da
mesa. Abaixa-se, destranca e abre a primeira gaveta,
observa o conteúdo de perto, enfia a mão, tateia lá dentro
retira um rolo de fita, aproxima-o dos olhos; devolve-o à
gaveta, tranca-a, enfia a chave na segunda gaveta,
1
Indicação suprimida nas versões posteriores.
3

destranca-a, tateia e espia lá dentro; retira uma banana


grande, examina-a de perto, fecha à chave, enfia o molho
de chaves no bolso. Volta-se avança até o início do
proscênio, para , acaricia a banana; remove a casca
deixando-a cair a seus pés, enfia a ponta da banana na
boca e fica imóvel, contemplando o vazio à sua frente.
Então começa a mastigar a banana, vira-se e inicia a
caminhada para lá e para cá. Na parte iluminada da cena,
ou seja, quatro ou cinco passos de um lado para o outro,
enquanto, pensativamente, mastiga a banana. Ele pisa na
casca, escorrega, quase cai, recupera-se, inclina-se,
observa a casca e então, ainda inclinado, a empurra com
o pé para fora do palco *. Ele retoma o vai e vem, acaba
de comer a banana, retorna a mesa, senta-se, fica por um
momento imóvel, solta um grande suspiro, tira o molho de
chaves do bolso, eleva até a altura dos olhos; escolhe
uma chave, levanta, vai até a frente da mesa, enfia a
chave na fechadura da segunda gaveta, coloca o molho
de chaves no bolso, volta-se, avança até o início do
proscênio, pára, acaricia a banana, descasca-a, joga a
casca no mesmo lugar onde jogou a anterior, coloca a
ponta da banana na boca e fica imóvel contemplando o
vazio à sua frente. Finalmente lhe ocorre uma idéia;
coloca a banana no bolso do colete com a ponta para
fora, e caminha com toda rapidez de que é capaz para a
escuridão no fundo da cena. Dez segundos. Ruído de
rolha sendo removida de uma garrafa. Quinze segundos.
Ele retorna à parte iluminada do palco, carregando um
velho livro-caixa e senta-se à mesa. Coloca o livro-caixa
sobre a mesa, limpa a boca e as mãos no colete, junta e
esfrega as mãos.

Krapp - (animado) Ah! (debruça-se sobre o livro-caixa, vira as


páginas, encontra a anotação que deseja e lê) Caixa
trrrêes...rolo... cinco...(levanta a cabeça e olha fixamente
à sua frente, deliciado) Rolo; (pausa) rooolo! (sorri feliz.
(Pausa.) Inclina-se sobre a mesa e começa a remexer e a
examinar as caixas de perto) Caixa... trrrêes...
trrrêees...quatro, dois...(com surpresa) Nove!... Pelo
4

amor de Deus! ... Sete... Ah! Safadinha ! (pega uma


caixa e a aproxima dos olhos).

(Com um certo entusiasmo vai buscar o gravador , ao


fundo e coloca-o sobre a mesa ao lado do livro de
registros).

Caixa três... ( abre-a e examina os rolos de fita que ela


contém) Rolo... (confere o livro-caixa) Cinco...cinco...
Ah! Sua sacana! (retira o rolo e o examina). Rolo
cinco...(coloca-o na mesa, fecha a caixa três, coloca-a
de volta junto com as outras que estavam em cima da
mesa, e pega o rolo) Caixa três, rolo cinco (inclina-se
sobre a máquina e examina-a cuidadosamente) Rooolo!.
(sorri feliz. Inclina-se, coloca o rolo no gravador e esfrega
as mãos) Ah! (debruça-se sobre o livro-caixa e lê a
anotação na extremidade inferior da página) Mamãe
descansou finalmente... Huummm...a bola preta...
(ergue a cabeça olha fixamente o vazio à sua frente,
intrigado) Bola preta? (debruça-se de novamente sobre o
livro-caixa e lê) A enfermeira morena...(ergue a cabeça e
reflete, examina outra vez o livro-caixa e lê) Ligeira
melhora do problema intestinal... hummm...
memorável... o que? (Examina mais de perto)
Equinócio, memorável equinócio. (ergue a cabeça, olha
o vazio à sua frente, intrigado) Memorável equinócio ?
(Pausa. Dá de ombros, debruça-se outra vez sobre o livro
caixa e lê) Adeus ao... (vira a página)
amor... ( Fecha o livro caixa com ruído , ergue a cabeça,
com atitude vacilante dirige pela primeira vez o olhar para
o fundo [ morte]2. Curva-se sobre o gravador, liga-o e
coloca-se em posição de escuta, ou seja, tronco inclinado
para a frente, cotovelos na mesa, a mão em concha em
direção ao aparelho, rosto voltado para a platéia).

Fita - (Voz vigorosa, um tanto solene, obviamente a voz


de Krapp, muitos anos atrás) Trinta e nove anos esta
noite, sólido como —(com o objetivo de se instalar mais
confortavelmente , ele derruba uma das caixas, pragueja,
2
Este olhar para a morte tem sempre um caráter ambíguo : aterrorizante e, ao mesmo tempo, convidativo.
5

desliga o gravador, joga violentamente as caixas e o livro


de registros ao chão, faz voltar a fita no gravador ao
ponto de partida, liga o aparelho e reinstala-se para
escutar na posição anterior) Trinta e nove anos esta
noite, sólido como uma rocha, a não ser meu velho
ponto fraco. E intelectualmente, agora tenho razões
prá suspeitar que...(hesita) estou na crista da onda –
ou quase. A grande data foi solenemente celebrada
na cantina como nos últimos anos. Nem uma alma
viva. Fiquei sentado diante da lareira, de olhos
fechados, tentando separar o joio do trigo. Rabisquei
umas notas no verso de um envelope. É bom estar de
volta ao meu canto, enfiar os velhos trapos. Acabei de
comer, lamento confessar, três bananas, e só com
muito esforço deixei de comer uma quarta (riso ao
vivo). São um veneno para um homem com o meu
problema. (veemente) Chega, nunca mais ! (Pausa)
Com a nova luminária a luz sobre minha mesa
melhorou muito. Com toda essa escuridão ao meu
redor, não me sinto tão só...(Pausa) Num certo
sentido. (Pausa) De vez em quando adoro levantar e
passear na escuridão, e depois voltar prá cá, voltar
para... (hesita) mim. (Pausa) Krapp.

Pausa

O joio e o trigo... trigo, vejamos,.. o que é trigo prá


mim...prá mim...(hesita) suponho que para mim o trigo
é como todas as coisas que ainda vão valer a pena
depois que toda a poeira tiver... depois que toda a
minha poeira tiver assentado. Fecho os olhos e tento
imaginar essas coisas.

Pausa. Krapp cerra os olhos por um momento , tempo


suficiente para erguer os olhos fechados em direção à
platéia.

Extraordinário o silêncio desta noite: Aguço os


ouvidos e não escuto nem um pio. A velha Srta.
Mcglome canta sempre a esta hora. Mas esta noite,
6

não. Cantigas da minha juventude, ela diz. Difícil


imagina-la jovem. Mas é uma velha maravilhosa. Da
cidade de Connaugt, eu acho. (Pausa) Será que vou
cantar quando tiver a idade dela, se é que vou chegar
até lá? Não. (Pausa) Eu cantava quando era garoto?
Não. (Pausa) Será que cantei alguma vez na vida?
Não.

OBS: Estes “nãos” devem ser quase inaudíveis e cada


vez mais “brochantes”.

Pausa

Acabei de ouvir uma fita de anos atrás, trechos ao


acaso. Não verifiquei no livro, mas deve ter pelo
menos uns dez ou doze anos. Acho que naquele
tempo ainda estava morando com Bianca na rua
Keddar , de maneira...intermitente. Ainda bem que me
livrei de tudo aquilo, graças a Deus! Era um caso sem
esperança. (Pausa). Não tenho muito o que dizer sobre
ela, a não ser uma referência elogiosa a seus olhos.
( olha para frente)3. Candentes. É como se estivesse
vendo agora. (Pausa). Extraordinários. Enfim, ...
(Pausa) Estas exumações são sinistras... mas as
vezes acho que ajudam... (Krapp desliga o gravador, faz
menção de se levantar, reflete e liga-o outra vez) ajudam
bastante antes de fazer um novo (hesita) retrospecto.
É inacreditável que eu tenha sido tão cretino. Que voz!
Meu Deus! E as aspirações! (pequena gargalhada na fita
somente, Krapp ouve o riso e olha para o gravador) E as
resoluções! (pequena gargalhada à qual a de Krapp se
junta) Beber menos, principalmente. (risada breve de
Krapp sozinho, depois olha para o gravador).
Estatísticas. Mil e setecentas horas sem contar as
outras oito mil e tantas anteriores desperdiçadas
sozinho em botequins. Mais de 20%, digamos 40% do
tempo que passou acordado. (pausa) Planos para uma
vida sexual menos... (hesita) absorvente (reação de
3
O olhar para frente que ocorre toda a vez em que se refere a mulheres deve ser o mesmo , ou indicar
algum tipo de identidade entre eles. Devem, portanto, ser gestos recorrentes.
7

ironia ao vivo). A última doença do pai. Empenho


cada vez menor na busca da felicidade. Os laxantes já
não funcionam mais. É sarcástico em relação à sua
juventude e dá graças a Deus que ela tenha acabado.
(Pausa) Soa falso neste trecho .(Pausa) Vislumbres de
obra... prima ( reação de ironia ao vivo). E no fim um
viva à Providência Divina. (Gargalhada prolongada à
qual se junta a de Krapp que deixa a cabeça cair para
trás) E o que resta de toda esta miséria? ( volta à
posição de escuta) Uma garota num velho mantô verde
na plataforma de uma estação de trem? ( pausa breve)
Não é? ( pausa, olha para frente, sonhador)

Pausa

Quando eu olho...

OPÇÃO 1 Krapp desliga o gravador, consulta o relógio, levanta-se e


vai ao fundo da cena imersa na escuridão. Ruído de rolha,
líquido sendo bebido. Garrafa batendo em copo.
Ruído de sifão .

OPÇÃO 2 Ruído de rolha sendo removida. Dez segundos. Segunda


rolha. Dez segundos Terceira rolha. Inesperado som de
cantiga em voz trêmula:

As sombras descem da montanha


O azul do céu vai se tingir
A paz (tossindo, e então quase inaudível) da noite o rio
banha
A terra inteira vai dormir”

Acesso de tosse. Ele retorna à parte iluminada do palco,


senta-se, enxuga a boca. Liga o aparelho e retoma a
posição de escuta.

Fita - prá trás, para o ano passado, com o que – eu


espero – seja um resto do velho olhar que eu tinha
para o futuro, há naturalmente a casa do canal onde,
no outono passado, mamãe terminou seus dias
8

depois de uma longa vidualidade. (Krapp se


sobressalta, olha para o gravador, desliga-o, olha para
frente ) e o...
(Krapp, faz voltar a fita manualmente um pouco para trás,
aproxima o ouvido do aparelho e liga-o novamente)
terminou seus dias depois de uma longa vidualidade,
e o ...

Krapp desliga o gravador, ergue a cabeça. Olha para o


vazio à sua frente. Seus lábios se movem nas sílabas de
“vidualidade”. Sem som. Ele levanta-se, vai para o fundo
do palco na escuridão, volta com um dicionário enorme;
com muito barulho coloca-o sobre a mesa, senta-se e
procura a palavra murmurando as mesmas palavras de
antes.

Krapp - (Lendo no dicionário) Vidual – relativo à viuvez.


Estado ... ou condição... de ser ou ficar viúva ou
viúvo. (Ergue a cabeça intrigado) Ser...ou ficar? (pausa)
(Curva-se novamente sobre o dicionário e verifica lendo)
Viúva...viúvo...viuvez...(lendo) Os véus espessos da
viuvez... também se diz de um pássaro... viuvinha ou
lavandeira... plumagem negra nos machos... (ergue a
cabeça deliciado) O pássaro viúvo !

Pausa. Fecha o dicionário, liga o gravador e retoma sua


posição de escuta.

Fita - ...banco perto do canal de onde eu podia ver sua


janela. Eu ficava lá, sentado, o vento cortante,
desejando que ela se fosse. (pausa) Quase ninguém, a
não ser alguns freqüentadores habituais, enfermeiras,
crianças, velhos, cães. Acabei conhecendo todos
muito bem... de vista ,é claro!...eu me lembro
particularmente (olhar característico relativo às
mulheres) de uma jovem muito bonita, morena, de
uniforme branco engomado, seios magníficos,
empurrando um enorme carrinho de bebê de capota
preta; que coisa fúnebre! Cada vez que eu olhava em
sua direção, ela estava olhando prá mim. E então,
9

quando me atrevi a lhe dirigir a palavra... sem ter


sido apresentado...ela ameaçou chamar a policia.
Como se eu fosse comprometer sua virtude. (Ri) Que
rosto o seu! Os olhos! Como dois...(hesita) Crisólitos!
(pausa, levanta a cabeça e olha para frente –olhar para as
mulheres - )... Enfim...(pausa) Eu estava lá quando...
(Krapp desliga o aparelho, fica inquieto , reflete, liga outra
vez)...a cortina desceu, uma dessas cortinas de rolo
encardidas; eu ia jogar a bola ao cachorrinho branco,
e então por acaso... de repente olhei e estava lá.
Tudo acabado finalmente. Fiquei ainda algum tempo,
sentado no banco, com a bola na mão, o cachorrinho
pulando e latindo prá mim. (pausa) Momentos. O
momento dela, o meu momento. (pausa) O momento
do cão. (pausa) Então joguei a bola, o cachorro trouxe
de volta na boca delicadamente, delicadamente. Uma
bola pequena, velha, preta, dura, uma sólida bola de
borracha. (Pausa)
Até o dia da minha morte vou sentir na mão. (pausa)
Podia ter guardado. (pausa) Mas acabei dando pro
cachorro.

Pausa

Enfim...

Pausa

Do ponto de vista espiritual, o ano não podia ter sido


mais pobre e melancólico até aquela inesquecível
noite de março no fim do ancoradouro, o vento
assobiando, não vou esquecer jamais; quando tudo
ficou muito claro prá mim!...( começa a se irritar,
tamborila na mesa, etc.) não vou esquecer nunca
mais... finalmente a revelação. É isso, eu acho, que
devo registrar (reação violenta) sobretudo esta noite,
prevendo o dia em que minha produção tiver...(hesita)
cessado; e não reste mais nada em minha memória,
nenhuma lembrança, boa ou má, do milagre...( bate na
10

mesa), da energia que tem impulsionado meu trabalho.


O que de repente vi, então, foi que a crença que tinha
guiado toda minha vida, a ...

(Krapp desliga o gravador impacientemente, faz avançar a


fita: são três avanços que aumentam gradativamente ,
assim como a impaciência – na primeira vez avança 2
segundos, na segunda 3 e na terceira 6 segundos ... Liga
outra vez)

Grandes rochedos de granito e a espuma fulgurando à


luz do farol, o anemômetro girando como uma hélice;
finalmente descobria que o lado escuro que sempre
rejeitei, era na verdade meu melhor—

(Krapp pragueja, desliga, faz avançar a fita. Liga outra


vez)—

Indestrutível associação até minha dissolução na


tempestade a na noite, à luz da revelação e o fogo...

(Krapp pragueja alto, desliga, avança a fita para frente,


liga outra vez, abaixa a cabeça)

Meu rosto em seus seios, minha mão sobre ela. E ali


ficamos deitados, imóveis. Mas debaixo de nós tudo
se movia, e nos movia, delicadamente, prá cima e prá
baixo, prá lá e prá cá.
(Levanta a cabeça, o olhar das mulheres novamente.)

Pausa

Mais de meia-noite. Nunca ouvi tamanho silêncio. A


terra parece desabitada.

Pausa

Aqui eu termino...
11

Krapp desliga o gravador. Fica parado um momento. Faz


voltar a fita manualmente de maneira frenética. Baixa a
cabeça em posição de escuta. Liga o gravador outra vez.

... Lago acima, remando próximo à margem, e depois


deixando o bote à deriva. Ela deitada no fundo do
bote, a cabeça apoiada nas mãos, os olhos fechados.
Sol escaldante, um sopro de brisa, a água ondulando
suavemente, como eu gosto. Percebi um arranhão em
sua coxa e perguntei o que tinha acontecido Colhendo
groselhas, ela respondeu. E eu disse mais uma vez
que o nosso caso tinha acabado e não valia a pena
continuar, e ela concordou, sem abrir os olhos.
(Pausa) Depois de algum tempo pedi que olhasse prá
mim—(Pausa)—e depois de algum tempo ela olhou,
mal podendo entreabrir os olhos, por causa da
luminosidade do sol. Eu me inclinei sobre ela prá
fazer sombra e então eles se abriram. (Pausa). (Nos
momentos seguintes a cabeça vai baixando até encostar
na mesa. Mão direita na base do gravador, mão esquerda
no controle ).
E me acolheram. (Pausa) Ficamos à deriva entre os
caniços que se dobravam com um suspiro em frente à
proa; então o bote encalhou. (Pausa) Deitei sobre ela,
meu rosto em seus seios, minha mão sobre ela. E ali
ficamos deitados, imóveis. Mas debaixo de nós tudo
se movia e nos movia, delicadamente, prá cima e prá
baixo, prá lá e prá cá.

Pausa

Mais de meia-noite4. Nunca senti tamanho silêncio... A


terra...

Krapp desliga, reflete. Fica um tempo com a cabeça na


mesa. Com a mão se “ despede” do que estava ouvindo.
Finalmente remexe os bolsos; encontra a banana, pega-
a, examina-a, coloca-a de volta, remexe, retira um
4
A gravação começou por volta das 23:30 , hora do nascimento de S. Beckett.
12

envelope, remexe, coloca de volta o envelope, consulta o


relógio, levanta-se e vai até o fundo da cena na
escuridão). Dez segundos. Som de garrafa contra
copo, em seguida jorro de sifão. Dez segundos. Apenas
ruído da garrafa contra copo; dez segundos. Ele retorna,
um tanto cambaleante para a luz carregando um
microfone, coloca-o na mesa. Tira o rolo do gravador,
coloca-o sobre o dicionário, dirige-se à gaveta, pega o
molho de chaves, escolhe a chave correta elevando-o até
a altura dos olhos, coloca a chave na fechadura, abre a
gaveta, pega o rolo virgem da gaveta, examina-o, fecha
gaveta com força e tranca. Coloca as chaves de volta no
bolso. Coloca os rolos no gravador, conecta o microfone.
Caminha e senta-se; pega o envelope do bolso, examina-
o com um murmúrio, coloca –o sobre o dicionário.
Ajusta o microfone, concentra-se com as mãos sobre os
olhos, limpa a garganta. Liga o gravador e começa a
gravar.

Krapp - Acabei de escutar o idiota que eu era trinta


anos atrás; é inacreditável que eu tenha sido tão
cretino. Mas isto pelo menos acabou, graças a Deus.
(Pausa) Que olhos ela tinha ! (Reflete,) Que voz, meu
Deus !( se dá conta de que o gravador está gravando.
Silêncio, desliga, pára e reflete outra vez)
Estava tudo ali, tudo—(Percebe que não está gravando
e liga o aparelho) Estava tudo ali, toda a merda deste
planeta; a luz e as trevas, a escassez e a abundância
dos... (Hesita) séculos. (Pausa. Num grito) Sim, Senhor.
(Pausa)Deixar escapar uma coisa daquela, meu Deus!
Uma coisa que podia ter atrapalhado seus sagrados
estudos. (Pausa. Cansado) Enfim, talvez ele tivesse
razão. (Reflete. Se dá conta de que está gravando.
Desliga. Verifica o envelope) Bah! ( Reflete. Liga) Nada a
dizer, nem um pio ( joga fora o envelope) . Que significa
um ano a mais ou um ano a menos? Merda ruminada
e uma rolha no cu.

(Pausa)
13

Saborear a palavra rolo. (Deliciado) Rooolo. O


momento mais feliz dos últimos quinhentos mil.
(Pausa) Dezessete exemplares vendidos, dos quais
onze, comercializados a preço de custo com
bibliotecas públicas de outros países. Correndo o
risco de me tornar famoso. (Pausa). Antes que o verão
começasse a esfriar, consegui me arrastar uma ou
duas vezes para a rua. Fiquei sentado no parque
tiritando de frio, afogado em sonhos, desejando
voltar prá casa. Nem uma alma viva. (Pausa) Últimas
quimeras. (diz a próxima frase extremamente baixo,
quase inaudível )5 É preciso sufocar todas ! (Pausa)
Ainda queimo os olhos para ler Effi , uma página por
dia, e ainda me comovo. Effi...(Pausa) Eu poderia ter
sido feliz com ela entre os pinheiros e dunas do
Báltico ? (Pausa)Será que eu teria sido ? (Pausa) E ela
? (Pausa) Bah ! (Pausa) Fanny veio uma ou duas
vezes. Velha sombra de puta esquelética. Não dá prá
fazer muita coisa, mas sem dúvida é melhor que ...
entre o polegar e o indicador. A última vez nem foi tão
mau. Como você consegue na sua idade ?, ela
perguntou. E eu disse que tinha me reservado prá ela
a vida inteira.
(Pausa Fui à igreja uma vez, quando ainda usava
calças curtas.

(Pausa. Canta)

“As sombras descem da montanha


O azul do céu vai se tingir
A paz ( Tossindo, e então quase inaudível) da noite o rio
banha
A terra inteira vai dormir”6

(Arfante) Adormeci e caí do banco. (Pausa) Às vezes,


durante a noite, me pergunto se um último esforço
não seria talvez necessário (Pausa) Ah, esvazie a
garrafa e se enfie na cama. E continue com essa
5
Beckett alterou completamente esta rubrica . Anteriormente constava a indicação “ veemente”.
6
Esta canção também foi suprimida em versões posteriores.
14

baboseira amanhã de manhã. Ou acabe por aqui


mesmo... de uma vez por todas. (Pausa) Recostar ali,
na escuridão – e sonhar. De novo no vale, na noite de
Natal, colhendo azevinhos, os de bagos vermelhos.
(Pausa) De novo em Croghan num domingo de manhã,
na bruma, com sua cachorrinha; parar e escutar os
sinos tocando. (Pausa) E assim pôr diante. (Pausa)
Outra vez, outra vez. (Pausa)Toda essa velha miséria.
(Pausa) Uma vez não foi suficiente prá você. (Pausa)
Deitar seu corpo sobre ela...

Longa pausa. Levanta-se de repente, curva-se sobre o


gravador. Desliga, arranca a fita, joga-a no chão, coloca a
anterior, rebobina-a manualmente avança-a para o trecho
que deseja escutar, faz menção de ligar, ( olhar para a
morte) , volta-se para a frente, liga o gravador. Fica
olhando para a frente enquanto ouve a fita até o fim.

Fita - Groselhas, ela respondeu. E eu disse mais uma vez


que o nosso caso tinha acabado e que não valia a
pena continuar. Ela concordou sem abrir os olhos.
(Pausa) Depois de algum tempo eu pedi que olhasse
prá mim...(Pausa) e depois de algum ela olhou, mal
podendo entreabrir os olhos, por causa da
luminosidade do sol. Eu me inclinei sobre ela prá
fazer sombra e então eles se abriram. (Pausa) E me
acolheram. (Pausa) Ficamos à deriva entre os caniços
que se dobravam com um suspiro em frente à proa;
então o bote encalhou. (Pausa) Deitei sobre ela, meu
rosto em seus seios, minha mão sobre ela. E ali
ficamos deitados, imóveis. Mas debaixo de nós tudo
se movia e nos movia, delicadamente, prá cima e prá
baixo, prá lá e prá cá.

Pausa. Os lábios de Krapp movem-se sem emitir qualquer


som.

Mais de meia-noite. Nunca senti tamanho silêncio. A


terra parece desabitada.
15

Pausa

Aqui eu termino esta fita. Caixa (Pausa)—três, fita


(Pausa) – cinco. (Pausa) Talvez os melhores anos da
minha vida já tenham se passado. Quando ainda
‘havia uma esperança de felicidade. Mas eu não
gostaria de vive-los novamente. Não com este fogo
dentro de mim. Não, eu não gostaria de vive-los outra
vez.

Krapp fica imóvel. Olhando o vazio à sua frente. A fita


continua a rodar em silêncio.
Fade-out das luzes, fica somente a luz do gravador.

FIM

Você também pode gostar