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Fragmento
Michel Melamed
HOMEMÚSICA
Podia ser em qualquer direção que o sentido seria um só. Balbuciando em uníssono mano a
mano a mano. Três ipods, uma só canção. [STEREO L/ R: Três chapas e uma moto untando
a madrugada: o pretume do asfalto úmido reluz azul.]
Insegurança, eis a questão. Tá todo mundo inseguro com o que tá fora. Mas todo mundo é
inseguro com o que é dentro. O cara [GAGO com a maior pose], o queixo apontando às
Por isso é que, de algum modo, todo mundo é gente boa [OTIMISTA JÓIA QUEBRA
QUADRIL. Porque tá todo mundo procurando amor, catando carinho. Por isso é que nego
bebe, fuma, cheira,] se entope de comida, televisão, sono, qualquer coisa. [PUXADOR O
negócio é se entupir] e tapar o buraco, amansar o vão. Mesmo que temporariamente,
porque, afinal, [SOBEL qualquer alívio nessa vida é justificável. Somos todos viciados na
abstinência de carência]: sexo, dinheiro, trabalho, no fundo é tudo argamassa pro furo na
camada
[CHORA] É lógico que existem os self-‐made hole [GOLA], os auto-‐esburacadores, mas que
não deixa de ser uma tentativa de aplacar a dor também [GOLA]. Arreganhá-‐lo, o buraco, a
tal ponto, [GOLA] [MELODRAMA ao paroxismo], de forma que o vácuo interno [GOLA] e o
externo [GOLA], isto é, as gentes [GOLÃO] e seus buracos e o mundo, percam as fronteiras.
Mas aí é a morte. É a vitória do buraco. A caçapa entrando na bola. [SÃO FRANCISCO DE
ASSIS]
Por isso é compreensível essa rapaziada gritando pelas ruas, xingando, cantando alto,
junto, horrorizando [CARETA]... Ainda mais quando se quer fechar a cova, [PORTUNHOL
fazer a obturação interior com o rombo] alheio. Quer dizer, usando o outro de bucha.
[CALAFRIO]
Cruzando o túnel Alaor Prata, que liga Copacabana a Botafogo, os três [PORTUGUÊS caras, a
manifestação democrática. Todo mundo tem necessidade e pode xingar, deve berrar. É
direito do cidadão aumentar o tom de voz. Grito é cidadania] — e cada um tem o seu
momento: essa madrugada é a hora das [APRESENTADOR: estrelas negras. Essas que
sempre estiveram aqui apenas que mimetizadas, camuflando o breu, disfarçando as trevas.]
Essas que o olho nudista pode não ver, que o olho por detrás dos óculos ironicamente
escuros não quer ver, mas que o olho do cu sabe bem do que [TORCIDA + GIRA CAMISA E
‘PULA’: trata.] Eles tocando o horror e este instrumento, como todos, requer
[PERNAMBUCANO: prática, jeito, dom. Não é a baderna qualquer. É o esporro virtuose, a
bandalha tecnicamente impecável, vocacionada. E a rua vazia, oca, alma nenhuma
dependendo].
[SUSURRO + TRAMANDO + FISSURA] Se tem um cara por aqui, um otário, um alvo, ainda
não deu pra ver, [ARTICULANDO mas esse tipo de gente] capta as coisas com o corpo, usa
do pescoço como antena, como se não tivesse — ou perdesse fácil — a cabeça. [DJ STEVIE
A galera trava a paisagem prum cara num beco. [ROUCO + ESPANTALHO EXPLODINDO
Interceptam com a moto]. O cara preço no beco. [ROUCO Algumas palavras de maus-‐tratos
ao relento], qualé otário vai se foder porra. Armamento pesado suspenso nas costas,
ombros, cinturas, [FUNK + MOTINHA pistolas, fuzis, granadas]... [SITCOM + ZORRA TOTAL
O encurralado é branco e, atônito, tem a coloração ainda mais fustigada [CLAQUE + MIC NA
MÃO].: É magro e parece um cara com quem eu trabalhei [CLAQUE]. O cara foi legal comigo
[CLAQUE]. Ele era muito devagar [CLAQUE]]. Pinta de alemão, mas alemão assim, alemão
brasileiro: pequeno, magrelo, barba por fazer, cabelo aloirado e olho azul. [SEU JORJANA
CAROLINA E tinha um sorriso bom e bobo, que é aquele meio falso, mas a pessoa é tão
[OFF S/ DUBLAGEM Umas porradinhas nele. Tudo de leve, nego tá doidão, só isso. Relax... É
tudo rapaziada]. Tão fazendo um ganho e têm o armamento pesado, mas não rola maldade,
não rola essa de querer foder o outro de qualquer jeito, de ser mal, que tudo se exploda
foda-‐se.* [No, no... What’s this? [TRADUTOR: Não, não... Que isso?] Just three buddies
O branquelo apavorado. Mas foi o personagem que pegou, fazer o quê? Só que não tem
essa de papel pequeno, hein? Se tá em cena, tem que brilhar. Suor na testa é pouco. Você
[CENA ILUSTRATIVA Então numa daquelas das armas cavucando o branquelo, [BICHA o
cano de uma das pistolas raspa nas suas ventas e ele espirra. Espirrou? Vai ter que gripar!
repassa o cano exatamente nas mesmas fuças d’antes. [ITALIANO Só que desta vez] o
espirro percorre a arma cravada na boca, até sair pela frincha do gatilho... Em forma de
som!?! [PASSAGEM DE SÃO JOÃO + REVERBE Alôu, som... De uma nota musical?!? Uma nota
de]... [FALSETERÊ Saxofone, trombone ou... Clarineta! Isso!] Pronto. Pode dar o terceiro
sinal. O show tem que continuar.
garganta [PIGARRO]. Os cara ali inertes [CÃO]. Aquele ainda sustentando a arma na boca
prrimeirrá fabrrícadá ao acasô]], seus dedos tamborilam [HENDRIX] sobre o cano da arma
cravada na boca como se ali houvesse teclas e, então, [LAPELA aquelas notas todas
efervescendo calibra beco acima,] [APONTANDO] sua matéria quase visível, [TROMBONE
* MURILO PERCUSSÃO
[REPENTE A melodia investe/ sobre a vulva sob a maçaneta/ adentrando pelo pequeno
menina dos dezesseis anos muito branca também. [MENININHA] [SILÊNCIO À partir de sua
pele mesmo é que o baby-‐doll se faz notar encardido. Bem magra com olheiras negras e
daí a certeza definitiva de todas as cores descritas] ou são trinta e dois os anos:
[APONTANDO + CANTO GREGORIANO gorda e bem branca como se fosse a outra menina,
as mesmas olheiras negras]... [PALHETA E uma gilete na sua mão. [TITANIC Entre seus
dedos]. [GILETE NO PULSO] O gume arrepiado cacarejando, [RAGGA o ar entre a lâmina e a
carne rarefeito SHABBA], a lasca se aproximando, farejando a pele. Porém, ai porém, numa
rápida golfada a melodia chega aos seus ouvidos e ela estanca]. [MÃOS AO ALTO] [AXL
ROSE]. [LOCUTOR DE RODEIO E então o esboço de um sorriso passa e, deste, outros tantos
borboleteiam...]
[VOLTA GESTO E FRICCIONA NO BRAÇO A gilete ainda à mão encontra nova razão e
* JOÃO BATERIA
E segue para o apartamento da rua em frente... Onde, por sob a madeira maciça, descortina-
‐se o novo ambiente]: [MAISOUMENOS classe-‐média], [TORCIDA NA FALTA classe-‐média-
‐alta]. [NOSSA SENHORA SE EXPANDINDO + LUZ AZUL NAS PALMAS] E no centro da sala
couro e a mesinha que lhe faz par: abarrotada de frascos dos diversos remédios em pílulas,
Não fosse a melodia vindo da frincha do gatilho da arma cravada na boca do branquelo,
num estampido surpreendê-‐lo, despertando-‐o assim, e, então, a mão marcial cede
lânguida deixando escorrer o objeto disforme, inacabado... [PIN-‐UP] Sua outra mão ainda
de posse de um dos frascos começa a mover-‐se [HEADBANGER ritmadamente] juntando-
‐se à estranha Orquestra qual um chocalho ou ganzá, e, sobre [PULP FICTION improvisados
passos de rumba, o senhor de meia-‐idade de posse do seu instrumento] [PADRE explode
em renovada alegria, conquanto a música guinando [AQUELE CARINHA DO AEROPORTO]
atropela a rua... [SINAL DA CRUZ] [ÁUDIO AMÉM OFF]
[ARGUIÇÃO + MIC ROBERTO CARLOS A Orquestra dos Desvalidos entoa seu hino pela
Mas à divina música de nossa Orquestra toda expressão aderna! [HERBERT RICHARD’S
Parabéns meu filho! Parabéns sobrinho meu! Congratulações meu netinho, boiola mais
* EDSON CONTRABAIXO...
O agora Grêmio Recreativo Escola de Samba dos Desgraçados reúne seus componentes
para defender seu enredo. [MÃO LULU NÃO NA BALADA Venham! Venham todos!] * Entra
Baixo
Mulher que está para atear fogo às vestes! [PAU NO GATO Percussão nunca é demais]!
Traga sua caixinha de fósforos e junte-‐se a nós! [SALÓ] Menino de rua com a cara na lata!
dos hospitais, [AIR GUITAR que maravilhosos instrumentos serão forjados de vossas
sondas?
[BBB] E de vossas caixas de papelão, mendigos?] [GOSPEL] Vejam os viciados com suas
fumo empunhando suas armas como naipes de metais!] [TEMPORA] Mulheres frígidas!
[HINO + MÃO NO PEITO] Mais alto o coral do orgasmo múltiplo]! [VÁCUO] Homens
brochas!
Rio-‐Niterói para Oiapoque-‐Chuí! [ABÓBODA] E este jovem sobre a mureta da ponte! [HIP-
‐HOP Serenamente acompanhando, com meneios de cabeça, o ritmo louco da nossa
canção...] [CISNE] Este jovem... [COENTRO] Sobre a mureta... [BENJAMIN BUTTON] O que
você está fazendo aí? [MAPA] Não está ouvindo a música, rapaz? [VODCA] Não está
entendendo o que está acontecendo? [VAPOR] Sai daí... [NÁUFRAGO] É perigoso... [PÁRA A
BANDA] [SAMBA] Quem é esse cara? [CAMA] Alguém pode me explicar quem é esse cara?!?
[CARTOLA] O que é que ele pensa que tá fazendo ali?!? [LEITE] Sai daí!!! [LENTE] Desce da
mureeeeeeeeee [ÓTIMO]
Ele pula. [FERMENTO] [FOLHA] [OBAMA] [LUA] [ROSA] [ZEBRA] [FAROL] [HIATO]
[CÁGADO]
[Arranjo começa enquanto michel pega guitarra e ASSIM QUE MÚSICA TERMINA ENTRA
CARTELA:]