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HOMEMÚSICA

Fragmento

Michel Melamed
HOMEMÚSICA

Antes de tudo, a Música (...) E todo o resto é literatura.

Paul Verlaine – Arte Poética

PRÓLOGO DE COMO SE FORMOU A ‘ORQUESTRA DOS DESVALIDOS’

Podia ser em qualquer direção que o sentido seria um só. Balbuciando em uníssono mano a

mano a mano. Três ipods, uma só canção. [STEREO L/ R: Três chapas e uma moto untando
a madrugada: o pretume do asfalto úmido reluz azul.]

Insegurança, eis a questão. Tá todo mundo inseguro com o que tá fora. Mas todo mundo é

inseguro com o que é dentro. O cara [GAGO com a maior pose], o queixo apontando às

próprias melecas [PAULISTA e a carência maior que a do cão. Cego. Perneta].

Por isso é que, de algum modo, todo mundo é gente boa [OTIMISTA JÓIA QUEBRA
QUADRIL. Porque tá todo mundo procurando amor, catando carinho. Por isso é que nego
bebe, fuma, cheira,] se entope de comida, televisão, sono, qualquer coisa. [PUXADOR O
negócio é se entupir] e tapar o buraco, amansar o vão. Mesmo que temporariamente,
porque, afinal, [SOBEL qualquer alívio nessa vida é justificável. Somos todos viciados na
abstinência de carência]: sexo, dinheiro, trabalho, no fundo é tudo argamassa pro furo na
camada

[VENDEDOR]. A diferença é que ao contrário da de ozônio, por exemplo, [GAÚCHO os


nossos buracos não necessariamente a gente que fez]: a maioria já nasce com ele acoplado
ou cresce com a [CARIOCA instalação inteiramente grátis. Somos eternos autopedreiros,
automarceneiros][GOLA] remendando, quebrando um galho. É o proletariado do
abandono.

[FRANCIS ARMSTRONG Massa de manobra da existência. [GOLA] [BOQUETE]

[CHORA] É lógico que existem os self-‐made hole [GOLA], os auto-‐esburacadores, mas que

não deixa de ser uma tentativa de aplacar a dor também [GOLA]. Arreganhá-‐lo, o buraco, a

tal ponto, [GOLA] [MELODRAMA ao paroxismo], de forma que o vácuo interno [GOLA] e o

externo [GOLA], isto é, as gentes [GOLÃO] e seus buracos e o mundo, percam as fronteiras.
Mas aí é a morte. É a vitória do buraco. A caçapa entrando na bola. [SÃO FRANCISCO DE

ASSIS]

Por isso é compreensível essa rapaziada gritando pelas ruas, xingando, cantando alto,
junto, horrorizando [CARETA]... Ainda mais quando se quer fechar a cova, [PORTUNHOL
fazer a obturação interior com o rombo] alheio. Quer dizer, usando o outro de bucha.
[CALAFRIO]

Cruzando o túnel Alaor Prata, que liga Copacabana a Botafogo, os três [PORTUGUÊS caras, a

matilha cega perneta... [PARANÓIA]

O estardalhaço é completo. O estrondo é essa coisa honesta, [POLÍTICO: legítima

manifestação democrática. Todo mundo tem necessidade e pode xingar, deve berrar. É

direito do cidadão aumentar o tom de voz. Grito é cidadania] — e cada um tem o seu

momento: essa madrugada é a hora das [APRESENTADOR: estrelas negras. Essas que
sempre estiveram aqui apenas que mimetizadas, camuflando o breu, disfarçando as trevas.]
Essas que o olho nudista pode não ver, que o olho por detrás dos óculos ironicamente
escuros não quer ver, mas que o olho do cu sabe bem do que [TORCIDA + GIRA CAMISA E
‘PULA’: trata.] Eles tocando o horror e este instrumento, como todos, requer
[PERNAMBUCANO: prática, jeito, dom. Não é a baderna qualquer. É o esporro virtuose, a
bandalha tecnicamente impecável, vocacionada. E a rua vazia, oca, alma nenhuma
dependendo].

[MACARENA] Rua General Polidoro, Botafogo, Rio de Janeiro, SSSSHHHHHH!!!

[SUSURRO + TRAMANDO + FISSURA] Se tem um cara por aqui, um otário, um alvo, ainda
não deu pra ver, [ARTICULANDO mas esse tipo de gente] capta as coisas com o corpo, usa
do pescoço como antena, como se não tivesse — ou perdesse fácil — a cabeça. [DJ STEVIE

WONDER + OLHO CEGO]

A galera trava a paisagem prum cara num beco. [ROUCO + ESPANTALHO EXPLODINDO

Interceptam com a moto]. O cara preço no beco. [ROUCO Algumas palavras de maus-‐tratos

ao relento], qualé otário vai se foder porra. Armamento pesado suspenso nas costas,

ombros, cinturas, [FUNK + MOTINHA pistolas, fuzis, granadas]... [SITCOM + ZORRA TOTAL
O encurralado é branco e, atônito, tem a coloração ainda mais fustigada [CLAQUE + MIC NA

MÃO].: É magro e parece um cara com quem eu trabalhei [CLAQUE]. O cara foi legal comigo
[CLAQUE]. Ele era muito devagar [CLAQUE]]. Pinta de alemão, mas alemão assim, alemão

brasileiro: pequeno, magrelo, barba por fazer, cabelo aloirado e olho azul. [SEU JORJANA

CAROLINA E tinha um sorriso bom e bobo, que é aquele meio falso, mas a pessoa é tão

frágil] [MIC AO PEITO + [STRESSADO + DEDINHO PROFESSORAL — não confundir


fragilidade com fraqueza; fragilidade é o quão rápido se chega ao âmago e não o quanto ele
agüenta—], [NOIR AO TELEFONE mas a pessoa é tão frágil, é tão boa mesmo, que o sorriso
é falso, mas é verdadeiro, quer dizer, acaba sendo verdadeiro, a gente aceita. Porque]
[FALA-‐RINDO riso falso, com esforço, é verdadeiro. [MANTÉM RISO]

[OFF S/ DUBLAGEM Umas porradinhas nele. Tudo de leve, nego tá doidão, só isso. Relax... É

tudo rapaziada]. Tão fazendo um ganho e têm o armamento pesado, mas não rola maldade,

não rola essa de querer foder o outro de qualquer jeito, de ser mal, que tudo se exploda

foda-‐se.* [No, no... What’s this? [TRADUTOR: Não, não... Que isso?] Just three buddies

[TRADUTOR: São três caras] together [TRADUTOR: juntos], * TRADUTOR: stoned


[doidões],

TRADUTOR: armed [armados], TRADUTOR: feeling lonely [carentes]... [LÍNGUA PRESA

Acabam sendo um pouco sacanas. Nada de mais.] Sem covardia. [PLAYBOY-‐MARGINAL


Filho duma puta eu vou te foder otário quer que te meta uma bala na testa seu merda?
Cutucam com as armas, fazem mira, baixam armas, sobem, voltam a pontaria... Tudo cena.
Ceninha.

O branquelo apavorado. Mas foi o personagem que pegou, fazer o quê? Só que não tem

essa de papel pequeno, hein? Se tá em cena, tem que brilhar. Suor na testa é pouco. Você

pode mais.] [ATENÇÃO DEDO]

[CENA ILUSTRATIVA Então numa daquelas das armas cavucando o branquelo, [BICHA o
cano de uma das pistolas raspa nas suas ventas e ele espirra. Espirrou? Vai ter que gripar!

Rararará!] Um nego encalacra a arma na boca, um outro esfarela na testa e um último

repassa o cano exatamente nas mesmas fuças d’antes. [ITALIANO Só que desta vez] o

espirro percorre a arma cravada na boca, até sair pela frincha do gatilho... Em forma de

som!?! [PASSAGEM DE SÃO JOÃO + REVERBE Alôu, som... De uma nota musical?!? Uma nota

de]... [FALSETERÊ Saxofone, trombone ou... Clarineta! Isso!] Pronto. Pode dar o terceiro
sinal. O show tem que continuar.

[KING-‐KONG][A E I O U] O branquelo arruma a camisa, o cabelo e reanima o pigarro da

garganta [PIGARRO]. Os cara ali inertes [CÃO]. Aquele ainda sustentando a arma na boca

alheia... [FAREJANDO] [BRAÇOS ABERTOS LINFÁTICOS E então o sopro: forte e consciente


do branquelo [TROMBONE]. Desta vez, porém, [JULIETTE BINOCHE ao contrrárriô dá notá

prrimeirrá fabrrícadá ao acasô]], seus dedos tamborilam [HENDRIX] sobre o cano da arma

cravada na boca como se ali houvesse teclas e, então, [LAPELA aquelas notas todas

serelepes, empinando o cerol da melodia que esquadrinha o ar [REMIX]... A canção

efervescendo calibra beco acima,] [APONTANDO] sua matéria quase visível, [TROMBONE

REFRÃO DA MÚSICA ‘CHEGA DE SAMBA], azul-‐esverdeada [TROMBONE REFRÃO DA


MÚSICA ‘CHEGA DE SAMBA], se disseminando no beco [TROMBONE REFRÃO DA MÚSICA
‘CHEGA DE SAMBA] como gázea fumaça aveludada [TRINCADO adentrando pelas frestas da
janela do prédio do alto do beco, [LSD na parede creme amarelada respingos de tinta
cristalizados no movimento de descida,] [LIBRA e a música subindo subindo a residência de
classe-‐média, classe-‐média-‐baixa]. * Entra JOÃO No teto alterna-‐se luz fria luz quente
[TURISTA] fria quente fria fria quente [FREE SKATE BLITZ] e no fim do corredor uma
[CAIPIRA porta] trancada e o voluptuoso buraco da fechadura lubrificando... [ESCURINHO
DO CINEMA]

* MURILO PERCUSSÃO

[REPENTE A melodia investe/ sobre a vulva sob a maçaneta/ adentrando pelo pequeno

banheiro/ onde se encontra sentada] [APONTA] sobre a banheira, de branco baby-‐doll, a

menina dos dezesseis anos muito branca também. [MENININHA] [SILÊNCIO À partir de sua

pele mesmo é que o baby-‐doll se faz notar encardido. Bem magra com olheiras negras e
daí a certeza definitiva de todas as cores descritas] ou são trinta e dois os anos:
[APONTANDO + CANTO GREGORIANO gorda e bem branca como se fosse a outra menina,
as mesmas olheiras negras]... [PALHETA E uma gilete na sua mão. [TITANIC Entre seus
dedos]. [GILETE NO PULSO] O gume arrepiado cacarejando, [RAGGA o ar entre a lâmina e a
carne rarefeito SHABBA], a lasca se aproximando, farejando a pele. Porém, ai porém, numa
rápida golfada a melodia chega aos seus ouvidos e ela estanca]. [MÃOS AO ALTO] [AXL
ROSE]. [LOCUTOR DE RODEIO E então o esboço de um sorriso passa e, deste, outros tantos
borboleteiam...]
[VOLTA GESTO E FRICCIONA NO BRAÇO A gilete ainda à mão encontra nova razão e

friccionada contra o mármore da banheira responde como um... Reco-‐reco! [CAZUZA E a

música em composição arriba ante o basculante...

* JOÃO BATERIA

E segue para o apartamento da rua em frente... Onde, por sob a madeira maciça, descortina-
‐se o novo ambiente]: [MAISOUMENOS classe-‐média], [TORCIDA NA FALTA classe-‐média-
‐alta]. [NOSSA SENHORA SE EXPANDINDO + LUZ AZUL NAS PALMAS] E no centro da sala

[JAPONÊS a grande caixa de madeira — o aparelho de Tv —], e à sua frente a poltrona de

couro e a mesinha que lhe faz par: abarrotada de frascos dos diversos remédios em pílulas,

drágeas... Sentado, o homem de meia-‐idade trajando chambre vinho, um frasco de

comprimidos em uma das mãos e na outra os comprimidos já depostos: os mais variados

tamanhos e cores às dezenas na mão tesa esmigalhando-‐os, fazendo-‐os a todos um só


corpo e destino, o comprimido gigante, monstruoso, fundido à palma de mão, remédios pra

dormir depressão epilepsia Parkinson Alzheimer, todos ali na palma em macabra


fornicação farmacológica, [DE FECHA AS MÃOS E SACODE O CARA PELO GOLA PARA MÃO
BOBA], a mão impressionante em seu conteúdo de ferro e fogo como se ali não houvesse
carne, cartilagem, ossos, apenas roldanas, correntes, engrenagens fatigando o recheio: a
pílula do demo, da destruição em massa do indivíduo... [MATA MÃO BOBA]

Não fosse a melodia vindo da frincha do gatilho da arma cravada na boca do branquelo,
num estampido surpreendê-‐lo, despertando-‐o assim, e, então, a mão marcial cede
lânguida deixando escorrer o objeto disforme, inacabado... [PIN-‐UP] Sua outra mão ainda
de posse de um dos frascos começa a mover-‐se [HEADBANGER ritmadamente] juntando-
‐se à estranha Orquestra qual um chocalho ou ganzá, e, sobre [PULP FICTION improvisados
passos de rumba, o senhor de meia-‐idade de posse do seu instrumento] [PADRE explode
em renovada alegria, conquanto a música guinando [AQUELE CARINHA DO AEROPORTO]
atropela a rua... [SINAL DA CRUZ] [ÁUDIO AMÉM OFF]

[ARGUIÇÃO + MIC ROBERTO CARLOS A Orquestra dos Desvalidos entoa seu hino pela

madrugada. [CABOCLO DO SOL E DA LUA Fora de quatro paredes vale-‐tudo.]


[FERNANDONA: Veja esta tradicionalíssima família] da mais sincera extrema-‐direita
reunida: [NARRADOR pai mãe tios tias vovôs e vovós e todos os filhos irmãos e irmãs com
suas esposas e maridos todos reunidos chocados indignados... Porque]

― É a mais pura verdade! É isso mesmo! Eu-‐sou-‐gay! Gay! Eu amo um homem!


[CRESCENDO-‐NOVELA-‐DESCOBRINDO]

Os punhos cerrados e a patriarca endedando o gatilho... [DIGRESSÃO PEDRO CARDOSO]

Mas à divina música de nossa Orquestra toda expressão aderna! [HERBERT RICHARD’S

Parabéns meu filho! Parabéns sobrinho meu! Congratulações meu netinho, boiola mais

querido...] [BREAK DANCE]

* EDSON CONTRABAIXO...

[À PARTIR DAQUI LAPELA][MESSIÂNICO E assim, de forma definitiva, irremediável, o


panteão dos fodidos, a Orquestra se expande... [MICHAEL]

O agora Grêmio Recreativo Escola de Samba dos Desgraçados reúne seus componentes
para defender seu enredo. [MÃO LULU NÃO NA BALADA Venham! Venham todos!] * Entra
Baixo

Mulher que está para atear fogo às vestes! [PAU NO GATO Percussão nunca é demais]!

Traga sua caixinha de fósforos e junte-‐se a nós! [SALÓ] Menino de rua com a cara na lata!

[CHACRINHA Tac-‐tac-‐tac bate a lata]! [TARNATION] Venham velhos prostrados nas


camas

dos hospitais, [AIR GUITAR que maravilhosos instrumentos serão forjados de vossas
sondas?

[BBB] E de vossas caixas de papelão, mendigos?] [GOSPEL] Vejam os viciados com suas

seringas, quantas campanas de agogô! [GOSPEL] [OLODUM E os moleques nas bocas-‐de-‐

fumo empunhando suas armas como naipes de metais!] [TEMPORA] Mulheres frígidas!

[HINO + MÃO NO PEITO] Mais alto o coral do orgasmo múltiplo]! [VÁCUO] Homens
brochas!

[PORTA-‐BANDEIRA São nossos estandartes vossas ereções! [UIVO/ SEXO Balancem


solitárias e ritmadas as forcas!] [CONTINÊNCIA É o dia raiando! Azulll! ][RONCÃO] Tilintem
os frascos de veneno! [HEAVY-‐METAL] Não há viva nuvem no céu! [HANG-‐LOOSE]
Vasculhem somente o ar, [PAZ E AMOR] como mastros sem panos, [OK] [JAMES BROWN]
[PÊNIS] as espadas do haraquiri! [ELLA + ESTALOS] A carta de despedida será nosso
refrão! [KADDISH] [ROCKY-‐FLASHDANCE Pular da janela [INSETICIDA], saltar na frente
do carro [SÉSAMO], deitar no
trilho do trem [ÁLAMO]: maravilhosas coreografias!] [SUSTO] Vejam a ponte! [LÚCIFER] Da

Rio-‐Niterói para Oiapoque-‐Chuí! [ABÓBODA] E este jovem sobre a mureta da ponte! [HIP-
‐HOP Serenamente acompanhando, com meneios de cabeça, o ritmo louco da nossa

canção...] [CISNE] Este jovem... [COENTRO] Sobre a mureta... [BENJAMIN BUTTON] O que

você está fazendo aí? [MAPA] Não está ouvindo a música, rapaz? [VODCA] Não está

entendendo o que está acontecendo? [VAPOR] Sai daí... [NÁUFRAGO] É perigoso... [PÁRA A

BANDA] [SAMBA] Quem é esse cara? [CAMA] Alguém pode me explicar quem é esse cara?!?

[CARTOLA] O que é que ele pensa que tá fazendo ali?!? [LEITE] Sai daí!!! [LENTE] Desce da

mureeeeeeeeee [ÓTIMO]

Ele pula. [FERMENTO] [FOLHA] [OBAMA] [LUA] [ROSA] [ZEBRA] [FAROL] [HIATO]
[CÁGADO]

[CRÉU] [LÓGICA] [SAPO] [CIMENTO] [MANTRA] [ÚLTIMO HÍMEN] [PELÉ] [OSTRA]


[LINCOLN]

* MÚSICA: CHEGA DE SAMBA

[Arranjo começa enquanto michel pega guitarra e ASSIM QUE MÚSICA TERMINA ENTRA

CARTELA:]

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