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TO BY FÁ BER

cinco violinos, um violoncelo


e três séculos de perfeição
No ssa tecnologia jamais repro duziu
vio lino s com a qualidade daqueles
fabricados há quase quatrocentos anos
por A nto nio Strad ivari, em Cremo na,
na Itália. A acústica e a perfeição desses
instrumentos, copiados, roubados e
disputados por reis e aristocratas,
firmaram a carreira e a reputação de
virtuoses. Toby Fáber expõe nesta obra
os mitos e os fatos sobre aqueles
instrumentos conhecidos como
Strad ivarius, que se tornaram lendas
aplaudidas desde os salões de Viena
até as modernas salas de concerto de
N o v a Yo rk.
Co mbinand o história, biografia,
paixão e conhecimento musical com
investigação meticulosa, o autor compõe
uma aventura envolvente à med id a que
nos revela os mistérios sobre os mais
valo rizado s instrumentos musicais de
todos os tempos. Começa com o enigma
sobre Strad ivari. Co mo se tornou u m
artífice tão especial? Por que as técnicas
e os segredos desenvo lvido s em sua
oficina não fo ram mantido s por seus
sucessores? Por que dois séculos e meio
após a morte de A nto nio Strad ivari
ninguém conseguiu superar as sutilezas
do som de seus instrumentos em termos
de pureza e intensidade?
TO BY FÁ BER

Tradução de
CLÓVIS MARQUES

Revisão técnica de
RAFAEL SANDO

E D I T O R A R E C O R D
RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO
2006
ClP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
Fáber, Toby, 1965-
Fl 15s Stradivarius / Toby Fáber; tradução Clóvis Marques. - Rio
de Janeiro: Record, 2006.

Tradução de: Stradivarius


Apêndices
Inclui bibliografia
ISBN 85-01-07057-2

1. Stradivari, Antonio, 1644-1737. 2. Instrumentos de corda


e arco. 3. Violino. 4. Violoncelo. I. Título.

CDD - 927.87219
06-0200 CDU - 929.787

Título original em inglês:


STRADIVARIUS - ONE CELLO, FIVE VIOLINS AND A GENIUS

Copyright © Toby Fáber, 2004

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento


ou transmissão de partes deste livro através de quaisquer meios,
sem prévia autorização por escrito.
Proibida a venda desta edição em Portugal e resto da Europa.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil


adquiridos pela
EDITORA RECORD LTDA.
Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000
que se reserva a propriedade literária desta tradução
Impresso no Brasil

ISBN 85-01-07057-2
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Caixa Postal 23.052


Rio de Janeiro, RJ- 20922-970 EDITORA AFILIADA
A minha mãe, Penny,
minha mulher, Amanda,
e minha filha, Lucy
Os violinos são espíritos joviais, desenvoltos e impertinentes que se
distinguem pelos Floreios da Imaginação, a Rapidez das Réplicas, os
Lampejos de Sátiro, arrebatando a Parte aguda em todo Consorte. Mas
não posso deixar de observar que quando um Homem não está
inclinado a ouvir Música não existe na Harmonia um Som mais
desagradável que o de um Violino.

TheTatler, I o de abril de 1710

Tenho um violino que nasceu em 1713. Já estava vivo muito antes de


mim, e espero que continue vivendo muito depois de mim. Não o
considero como meu violino.Talvez eu é que seja o seu violinista; estou
passando pela sua vida.

Ivry Gitlis, The An oJViolin, 2000

Um grande violino é um ser vivo; sua própria forma encarna as in-


tenções do artesão, e sua madeira guarda a história, ou a alma, de seus
sucessivos donos.Toda vez que eu toco, tenho a sensação de ter libera-
do ou, desgraçadamente, violado espíritos.

Yehudi Menuhin, UnfinishedJourney, 1996


Sumário

Introdução
13

Capítulo U m
C I N C O V I O LI N O S E U M V I O LO N C E LO
O Messias, o Viotti, o Khevenhtiller, o Paganini,
o Lipinski e o Davidov
19

Capítulo Dois
"OS V I O LI N O S I N C O M P A R A V E LM E N T E
M E LH O R E S D E C R E M O N A "
A dinastia Amati
27

Capítulo Três
" E L E JÁ E R A U M G É N I O "
Origens e evolução de Antonio Stradivari
41

Capítulo Quatro
' E L E R A R A M E N T E SE V E ST I A D E O U T R A F O R M A '
A época de ouro de Stradivari, seu declínio e morte
57
STRADIVARIUS

Capítulo Cinco
"TÃO ÚNICO E TÃO BELO"
Os violinos de Giuseppe Tartini e Paolo Stradivari
73

Capítulo Seis
" M E U V I O LI N O D E V E R E N D E R U M B O M D I N H E I R O "
Viotti e o seu Strad
85

Capítulo Sete
"AOS VIRTUOSES DO VIOLINO"
O príncipe Khevenhiiller, o conde Cozio, Joseph Bõhm eTarisio
103

Capítulo Oito
"A G R A N D E V I R A D A N A H I ST Ó R I A D O V I R T U O SI SM O "
Paganini, showman e negociante
115

Capítulo Nove
" T E N H O A Q U I C O M I G O 8 0 M I L F R A N C O S"
Vuillaume e o Hotel das Delícias
131

Capítulo Dez
" R E V E L A D O E M T O D A A SU A G L Ó R I A I N T A C T A "
O Messias mostra a que veio
141
SU MÁ RIO

Capítulo Onze
" E N C O N T R E M O SO LI STA D E SU A M A JE ST A D E "
Charles Davidov e seu violoncelo
147

Capítulo Doze
" U M A I M EN SA R ESER V A D E F O R Ç A "
Marie Hall, os Hill e a época eduardiana
159

Capítulo Treze
" Q U A L Q U E R Q U E SEJA O P R E Ç O "
Quatro Strads a caminho dos Estados Unidos
173

Capítulo Quatorze
" C O M O P O D E R E M O S V E N D E R I ST O ?"

Os negociantes de violinos e o mundo do pós-guerra


193

Capítulo Quinze
" A Q U E L E SO M N Ã O P ARAVA D E J O R R A R "
O Davidov, o Paganini, o Khevenhiiller, o Viotti... e o Marie Hall
209

Capítulo Dezesseis
" U M ST R A D C O M O O U T R O Q U A LQ U E R "

Interpretando o Messias
221
12 STRAD IV ARIU S

Posfácio
231

Apêndice Um: Cronologia de luthiers clássicos


241

Apêndice Dois: Glossário


245

Apêndice Três: Tabela de conversão de preços


251

Bibliografia e Fontes
255

índice
265

Agradecimentos
273

Créditos das Fotos


277
Introdução

Q UANDO E U TI NH A cerca de dez anos, meus pais compraram um vio-


lino para mim. Para nós que ficávamos nas últimas estantes dos segundos
violinos, comparar os instrumentos era uma maneira de preencher os
inevitáveis tempos mortos dos ensaios na orquestra da escola. U m de-
les tinha um peixe esmeradamente esculpido na extremidade do braço,
no lugar da habitual voluta em forma de caracol. Outro parecia im -
pressionante, embora algo repelente, em sua coloração verde oliva. Mas
nós tínhamos três critérios mais gerais para fazer essas comparações: a
idade do violino, onde havia sido feito e o nome do fabricante. Na
maioria dos casos, podíamos identificar todos três nas etiquetas visíveis
através das aberturas acústicas de nossos violinos.
Meu violino saía-se razoavelmente bem no primeiro critério: o ano
de 1809 assinalado em sua etiqueta significava que era bastante velho,
embora, já então eu sabia, não o suficiente para remontar à verdadeira
era de ouro da fabricação de violinos. A idade significava mais para os
violinos do que a simples antiguidade; eles precisavam ser velhos para
soar bem. Por isto é que o meu instrumento danificado e de segunda
mão, feito por um fabricante anónimo, havia custado mais que um
novinho em folha. Tin h a uma bela sonoridade, apesar da pequena ra-
chadura no tampo.
No que diz respeito aos dois outros critérios, no entanto, meu
violino mostrava um desempenho medíocre. Ele havia sido feito em
Mittenwald, na Alemanha. Este nome nada significava para n ós, em-
bora muitos de nossos violinos na escola viessem de lá. Até onde sa-
bíamos, os bons violinos vinh am da Itália. Se fôssemos realmente
14 STRAD IVARIUS

sabidos, tenho certeza de que teríamos hierarquizado as cidades da


Itália numa pirâmide, com Cremona no ápice, mas não creio que
sequer tivéssemos ouvido falar desse lugar. Mas com toda certeza já
éramos íntimos de seu cidadão mais famoso. Stradivarius era o único
fabricante de violinos cujo nome significava alguma coisa para nós.
Er a este o terceiro critério: ou bem nosso violino trazia o nome sem
a menor importância de um fabricante morto há muito tempo, ou
então era um Stradivarius.
U m dos instrumentos da orquestra atendia gloriosamente a todas
as nossas exigências:"Antonius Stradivarius Cremonensis Faciebat Anno
1716" (aproximadamente), proclamava sua etiqueta com incrível segu-
rança. Claro que era uma falsificação. E nós sabíamos. Mas apesar disso
o violino exercia um certo fascínio; adquiria importância pelo simples
fato de portar aquele nome.

DESISTI DO VIOLINO quando saí da escola. Nos vinte anos desde então
transcorridos, acabei entendendo como ouvinte o que nunca havia
entendido como violinista medíocre — que os membros da família do
violino (principalmente o próprio violino, a viola e o violoncelo) são
indiscutivelmente os reis de todos os instrumentos. O violino, tão
enganosamente simples, é capaz ao mesmo tempo de reproduzir e ins-
pirar qualquer emoção imaginável, imitando o zurro de uma mula ou
emitindo uma melodia de tocante beleza. Lírico e expressivo ou estri-
dente e violento, é o rei da capacidade de adaptação; só a voz humana
pode comparar-se a ele. A seu lado, as oitenta e tantas notas do piano,
separadas por um semitom, podem torná-lo uma maravilha mecânica
da polifonia, mas onde fica a possibilidade de emocionar com oscila-
ções quase imperceptíveis de entonação ou volume? Quanto aos ou-
tros membros da orquestra—madeiras, metais, percussão —, os próprios
nomes já falam da modéstia de sua amplitude sonora.
I N TRO D U ÇÃ O 15

Não só o violino e seus instrumentos irmãos dominam a orquestra


como não resta a menor dúvida sobre a identidade de seu fabricante
mais famoso — talvez o mais festejado artesão da história. De Mel-
bourne a Milwaukee, se você entrar num ônibus com o seu estojo, o
motorista invariavelmente perguntará: "É um Stradivarius?" Sua fama
de excelência está em toda parte.
Essa fama deriva dos próprios violinistas. Para qualquer pessoa, mas
sobretudo para os que têm a sorte de tocar um deles, os Strads são muito
mais que simples instrumentos. São obras de arte, unindo utilidade e
estética de uma forma de que nenh um outro objeto é capaz. O
violoncelista britânico Steven Isserlis usa um Stradivarius emprestado
pela Fundação Musical Nipôn ica:"Meu coração salta todo dia quando
o tiro do estojo. Sua tonalidade deslumbrante parece reluzir."Em 1986,
um dos músicos de maior sucesso da nossa época, Itzhak Perlman, com-
prou o Strad favorito de um antecessor ainda mais célebre —Yeh u di
Menuhin: "Quando ele foi posto à venda, tornei-me o violinista mais
feliz do mundo... Ele tem aquele verniz inconfundível de Stradivari e
sua forma é simplesmente perfeita. Sinto-me muito feliz e verdadeira-
mente privilegiado por ser o proprietário do So//."*
A ligação entre Perlman e Menuhin estabelecida pelo Soil é típica;
todos os grandes Strads têm histórias que dificilmente deixam de ser
inspiradoras. Qualquer um deles pode ter sido admirado por Beethoven,
ouvido por Mozart. U m dos antecessores de Isserlis em seu violoncelo
foi Emanuel Feuermann, possivelmente o mais talentoso violoncelista
do século X X . Em termos práticos, isto significou que Isserlis promo-
veu ajustes em seu Strad até que a clareza de sua sonoridade se aproxi-
masse do que ele ouvia numa gravação de Feuermann. Mais curiosa
ainda é a maneira como ele descreve a aula magna que deu com Schelomo,
obra de Ernest Bloch hoje firmemente estabelecida no repertório:

Todos os Strads têm nomes, frequentemente, como neste caso, derivados de um dono
anterior.
16 STRAD IVARIU S

"Antes mesmo que eu me desse conta do instrumento em que estava


tocando, pensei: espera aí, o meu cello conhece esta música." E poderia
tocá-la de cor: Feuermann tantas vezes foi convidado a tocar o Schelomo
que passou a odiá-lo. Da mesma forma, quando o violinista russo Louis
Krasner comprou o Strad Dancla de Nathan Milstein, um dos maiores
virtuoses do século X X , deu-se conta de que "parecia que o toque e as
sonoridades" do antecessor "ainda estavam no violin o". Ele pôde ape-
nas racionalizar uma explicação: "U m violino Strad, como um animal
sensível, conhece o dono, e, sendo um ser vivo, tem memória e lealdade."
Milstein explicou a venda do seu Strad a Krasner — ele havia pas-
sado a usar outro instrumento — em termos explicitamente antro-
pomórficos: "Meu amor por esse violino não diminuiu. Aconteceu
simplesmente que, depois de tantos anos com uma loura chamativa e
ardente, fiquei achando que talvez devesse me voltar para uma morena
mais tranquila e quem sabe mais séria, discreta e serena." Esta explica-
ção é um exemplo da terceira maneira como os Strads transcendem
sua condição de meros objetos: a devoção que ao mesmo tempo inspi-
ram e exigem de seus instrumentistas. Certa vez, perguntei ingenua-
mente a um músico bem-sucedido se alguma vez tinha pensado em
adquirir um novo violino. Sua resposta deixou transparecer uma mis-
tura de choque e vaga nostalgia: "É o mesmo que perguntar a um h o-
mem se desejaria trocar de mulher." Maxim Vengerov, um russo que
provavelmente é o violinista mais admirado da nova geração, é ainda
mais direto sobre seu relacionamento com seu Strad: "É um casamen-
to." O violino é um instrumento tão feminino que a metáfora parece
quase inevitável, pelo menos para os homens. As mulheres mais prova-
velmente encararão seus violinos como uma extensão de si mesmas.
Uma amiga contou-me que é por este motivo que não usa apoio de
ombro. A virtuose alemã Anne-Sophie Mutter repousa seu Stradivarius
no ombro nu: até mesmo as roupas seriam uma barreira. As exceções
servem apenas para confirmar a regra. Quando a jovem violinista sovié-
ticaViktoria Mullova atravessou a fronteira da Finlândia para a Suécia
I N TRO D U ÇÃ O

num táxi, em 1983, deixou seu Strad, de propriedade do governo, na


cama do hotel. Com isto, os espiões do KG B que a vigiavam perderam
preciosas horas na suposição de que ela não podia ter fugido.
Finalmente, existe a maneira mais óbvia e concreta que os violinis-
tas têm de dar valor a seus instrumentos. O Strad de Vengerov — o
Kreutzer— foi comprado para ele num leilão, em 1998, por preço re-
corde: 947.500 libras. Mas até mesmo este valor é deixado para trás em
vendas acertadas em caráter privado. A escassez e a necessidade do en -
velhecimento juntaram-se para promover uma escalada aparentemen-
te infindável nos preços dos instrumentos de cordas. E m que outra
profissão os instrumentos de trabalho tornaram-se tão caros que prati-
camente não podem ser adquiridos? Todo fabricante faz seu preço —
o violino fala do status de seu instrumentista, antes mesmo que o arco
seja levado às cordas —, mas nenhum impõe mais respeito que An to-
nio Stradivari.

história, valor, a devoção muito especial que os Strads


F A M A , BE LE Z A ,
inspiram: o coquetel é vertiginoso. E a coisa toda resulta da caracterís-
tica mais notável desses instrumentos. Mais de 250 anos depois de sua
morte, os violinos e violoncelos de Stradivari continuam sendo os
melhores do mundo. Nas mãos certas, seu cantabile é magnífico, proje-
tando uma sonoridade gloriosa até as últimas fileiras das maiores salas
de concerto. U m violinista sintonizado com seu Strad, sabedor de que
ele fará tudo que lhe seja pedido, pode tocar com tranquilidade, na
certeza de que não precisará forçar o som para ser ouvido. Dos cinco
solistas que se apresentaram em recente temporada no Royai Festival
Hall de Londres, quatro tocavam Strads. Eles constituem a resposta
definitiva à arrogância dos tempos modernos: a ciência não tem todas
as respostas; a tecnologia do Renascimento ainda não foi superada.
Como é possível? A constante supremacia de Stradivari é um dos
grandes mistérios da nossa época. O que o tornava tão especial? Por
18 STRAD IVARIUS

que suas técnicas não foram preservadas pelos sucessores? Existe algu-
ma probabilidade de que um dia ele venha a ser suplantado? Se as res-
postas a essas perguntas estão em algum lugar, será certamente nos
próprios instrumentos de Stradivari. Ele fabricou mais de mil; tem-se
notícia da existência ainda hoje de 600.0 constante fascínio que exer-
cem é que faz a lenda Stradivarius. É um lugar-comum falar de artistas
que alcançam a imortalidade por meio de sua obra, mas haverá poucos
exemplos melhores do que este.
Seis Strads, então, serão os personagens centrais deste livro. Não
chegam a ser os instrumentos mais famosos de seu fabricante; nem estão
todos atualmente nas mãos de algum músico famoso. Mas ao longo
dos três últimos séculos foram ouvidos e admirados por milhões de
pessoas. Suas vidas, assim como as das pessoas por eles tocadas, ao mes-
mo tempo ilustram e contextualizam o enigma do caráter inimitável
de Stradivari. Este livro conta a história de cinco violinos, um violoncelo
e um génio.
Capí t ul o U m

C I N C O V I O LI N O S E U M V I O L O N C E L O

O Messias, o Viotti, o Khevenhiiller,


o Paganini, o Lipinski e o Davidov

O MESSIAS

FUNDADO E M 1683, o Ashmolean Museum de Oxford é a mais antiga


instituição do género na Grã-Bretanha. A partir da dotação inicial feita
por Elias Ashmole, veio a estabelecer invejável reputação de excelência
na pesquisa e no ensino, com um aspecto arquitetônico não menos im -
pressionante. Uma ampla escadaria de pedra conduz a uma fachada clás-
sica grandiosa, embora algo austera. O Ashmolean pode ser menor que o
Museu Britânico de Londres ou o Museu Metropolitano de Arte de Nova
York, mas o impacto que causa é semelhante. Ele inspira admiração e
respeito antes mesmo de atravessarmos o portão principal. Feito isto, se
tivermos sorte, o guarda de plantão na entrada pode nos dar a dica valio-
sa: em vez de subir pela escada principal, virar à esquerda, ir até o fim da
galeria, subir a escada à direita, e o Salão de Música H ill estará logo na
chegada ao primeiro andar. Ao chegarmos, é muito possível que o salão
esteja fechado, com um aviso na porta pondo a culpa na falta de pessoal
e dando a entender que, se quisermos muito ver o que há em seu inte-
rior, sempre é possível recorrer ao vigia na porta ao lado.
O começo não promete muito. Quando conseguimos entrar, o que
encontramos é uma sala de apenas talvez 4,5 por 9 metros. Nos dias
mais quentes, um ventilador num dos cantos compensa a ausência de
20 STRAD IVARIU S

um aparelho de ar-condicionado. O piso de cortiça está bem maltrata-


do; pontas de pregos arranham os pés dos mais distraídos. Estranhos
retratos de Velhos Mestres com muito pouco a ver com a música enfei-
tam as paredes acima dos cravos e virginais que constituem a parte menos
interessante da Coleção Hill. Adiante, vemos arcos numa vitrine, e em
outra um violão feito pelo próprio Stradivari. É um instrumento sim-
ples mas magnificamente concebido — prova viva da variedade de
interesses de seu fabricante, mas nem de longe a principal atração do
local. No meio da sala, oito violinos, uma viola e uma viola de gamba
estão expostos em outra vitrine. U m dos violinos foi fabricado por
Andrea Amati em 1564, por encomenda de Carlos I X da França. É o
mais antigo violino do mundo, um requintado trabalho de artesanato.
O Museu Cívico de Cremona tem um instrumento da mesma série,
apesar de datado de 1566, recentemente avaliado em dez milhões de
dólares. O exemplar que se encontra no Ashmolean Museum está com
a parte posterior oculta na vitrine, o que não nos permite ver os traços
restantes da rica pintura com que foi decorado.
Praticamente qualquer peça dessa exposição poderia ser conside-
rada a atração principal de qualquer outro museu, mas aqui elas não
passam de coadjuvantes da grande estrela, o único instrumento que tem
vitrine própria, aquele que parece nos estar esperando quando atraves-
samos a porta: o Messias. Lá está ele, suspenso em sua vitrine, visível de
qualquer ângulo, imaculado, num verniz tão impecável como no mo-
mento em que Stradivari aplicou as últimas gotas em 1716. Este que é
o violino mais famoso do mundo, modelo de incontáveis cópias, está
ainda como se fosse novo porque praticamente nunca foi tocado.

O VIOTTI

No dia 6 de maio de 1990, Thomas Bowes deu um recital na Sala


Purcell, pequena sala de concertos em Londres. Tocava um violino
CIN CO VIOLIN OS E UM V I O LO N CELO 21

por ele batizado de Viotti-Marie Hall, dos nomes de seus proprietários


anteriores. A simples visão do instrumento já era impressionante: o
imaculado bordo do fundo exibia listras horizontais naturais que se-
gundo Bowes exercem um efeito quase psicodélico. Mas o que ele
mais tem na lembrança é o som: "Tocar esse violin o era uma expe-
riência quase ensurdecedora, a gente chega a sentir uma leve dor ao
ferir um h armónico agudo na corda sol ou qualquer nota na corda
mi; ele tem uma nitidez comparável à de um raio laser... Er a incrível
a sensação de poder, sabendo que o mais leve toque projetaria o som
até as últimas cadeiras das maiores salas de concerto... Havia nele essa
espécie de perfeição que assusta."
O recital de Bowen foi divulgado como uma volta à "Er a de Ouro
do violin o": a época eduardiana, quando os músicos não enfrentavam
a concorrência da tecnologia moderna na disputa dos ouvidos de sua
próspera audiência. Uma das proprietárias que deram nome a esse Strad,
Marie Hall, fora uma das mais destacadas violinistas inglesas no início
do século X X . O recital consistia sobretudo em música que ela própria
teria tocado, peças de exibição virtuosística compostas por alguns dos
maiores violinistas-compositores do século X I X : Paganini, Spohr,
Vieuxtemps, Ernst e W ieniawski. Quanto à ligação do violino com
Viotti, o mais influente violinista europeu do início do século X I X ,
lia-se no programa: "Fabricado em 1709, o Stradivarius Viotti foi usado
por Viotti até morrer, sendo então vendido em Paris juntamente com
outros instrumentos que lhe pertenciam.Viotti terá sido talvez um dos
primeiros grandes intérpretes a apreciar plenamente as qualidades do
Stradivarius. O Stradivarius 'Marie Hall', ex-Viotti, teria sido o instru-
mento favorito de Viotti, sendo considerado aquele que usou ao fazer
sua primeira visita a Paris. É um esplêndido violino, com magnífica
sonoridade; um Stradivarius perfeito sob todos os aspectos." É o nosso
segundo violino.
22 STRAD IVARIUS

O KHEVENHÚLLER

De encantadora afabilidade, com seu gosto pelos charutos caros e seu


inesgotável manancial de histórias engraçadas, Peter Biddulph é exata-
mente o que esperamos de um especialista em violinos. Seu negócio
está estabelecido num excelente endereço do West En d londrino, e por
seus cofres já passaram violinos que a maioria dos músicos pode apenas
cobiçar. Ele é, em todo o mundo, um dos poucos negociantes capazes
de identificar sem hesitação um objeto autêntico e que adquiriram
reputação à altura de sua capacidade. Acostumado a fechar n egócio
depois de um voo em Concorde, Biddulph ganhou em tempos mais
faustos o apelido de "RabecaVoadora". Hoje em dia ele provavelmen-
te deplora o sentido duplo da expressão. Um a ação movida pelos her-
deiros de Gerald Segelman, cuja coleção de violinos Biddulph ajudou
a vender após sua morte, foi resolvida num acordo extrajudicial envol-
vendo três milhões de libras. Biddulph teve de vender o prédio onde
estava instalada sua loja londrina, embora continue atendendo no
subsolo, com uma recepção no térreo. Mas ainda hoje se diz inocente
de qualquer delito grave, à parte incompetência contábil; segundo ele,
só aceitou o acordo porque não seria capaz de sustentar um processo
judicial prolongado.
O caso Segelman focalizou de maneira desfavorável os negociantes
de violinos e seu papel de árbitros finais em matéria de autenticidade e
preço. Biddulph talvez não precisasse sentir-se obrigado a responder a
perguntas. Mas não se exime de falar, uma taça de chá de menta nas
mãos, sobre o Khevenhiiller, o terceiro dos nossos violinos, que vendeu
em 2000 a pedido de um dos mais antigos estabelecimentos espe-
cializados do Japão.
O Stradivarius Khevenhiiller foi fabricado em 1733, sendo portanto
uma das últimas obras-primas. Nas palavras de um de seus proprietários
anteriores, é um instrumento "grande e arredondado, de um profundo
e lustroso verniz vermelho, produzindo em suas amplas proporções um
CI N CO V IOLIN OS E UM V I O LO N CELO 23

som ao mesmo tempo vigoroso, harmonioso e suave". Nos últimos vinte


anos, ele mudou de mãos muitas vezes; era a segunda vez que Biddulph
agia como intermediário. Naquela oportunidade, o instrumento foi
avaliado em quatro milhões de dólares. Ele havia sido mostrado por
um outro negociante a MaximVengerov, que "o adorou", mas aparen-
temente não o bastante para que abrisse mão do Kreutzer, e devemos
dar-lhe crédito por não ter desfeito o seu "casamento" em troca de
uma amante. O violinista boliviano-americano Jaime Laredo também
experimentou o Khevenhuller.Tzmbém ele "teria adorado" tê-lo como
companheiro de seu outro grande Strad, o Gariel, fabricado em 1717.
Mas não conseguiu levantar fundos. Quem poderia pagar um preço
desses?

O PAGANINI

"Se o Quarteto de Cordas de Tóquio não é o maior conjunto de música


de câmara do mundo, fica difícil saber qual poderia sê-lo." Não surpre-
ende que essa citação do Washington Post seja constantemente repro-
duzida na publicidade do quarteto. E m resenhas nem tão categóricas
mas não menos elogiosas, costumamos ser lembrados tanto da sonori-
dade sumarenta do conjunto quanto de uma homogeneidade que per-
siste apesar das numerosas mudanças de instrumentistas desde a formação
do grupo em 1969. Seria agradável pensar que ambos esses atributos
podem decorrer em parte de um outro fato, igualmente lembrado com
insistência no material de imprensa: desde 1995, o Quarteto de T ó -
quio toca um conjunto de instrumentos fabricados por Stradivari, o
Quarteto Paganini.
Levando o nome do virtuose italiano novecentista que a certa al-
tura foi proprietário dos quatro instrumentos, o Quarteto Paganini
está cercado de uma aura lendária que quase tem equivalente na
qualidade de seus componentes. Stradivari fez apenas duas ou três
24 STRA D I V A RI U S

grandes violas, e uma delas, de 1731, é a do Quarteto. Na avaliação


de Paganini, o primeiro violino, quatro anos mais velho, tinha uma
sonoridade grande como a de um contrabaixo; também ele é consi-
derado uma obra-prima. A etiqueta do violoncelo atribui-lhe a data
de fabricação de 1736, ano anterior ao da morte do fabricante, mas
não falta quem considere que ela é na realidade anterior. O instru-
mento tem a fama de estar entre os melhores trabalhos dos últimos
anos de Stradivari, com suas proporções perfeitas que remetem a um
período anterior da vida do Mestre.
Em companhia tão elevada, o segundo violino, fabricado por volta
de 1680, destoa. Os trabalhos da primeira fase de Stradivari são geral-
mente considerados aquém de sua produção mais madura, e este vio-
lino — o Paganini de 1680 — é cinquenta anos mais velho que seus
companheiros do Quarteto. U m quarteto de cordas é uma parceria de
iguais. O segundo violino não deve nunca ser de qualidade inferior à
dos instrumentos com que terá de dialogar. A explicação para o fato de
o Paganini de 1680 ter-se tornado parte do Quarteto está em sua his-
tória. Ele é o nosso quarto violino.

O LIPINSKI

Ao longo de 200 anos, o Lipinski, fabricado em 1715, passou pelas


mãos de uma série de instrumentistas famosos. Trata-se de um dos
maiores violinos fabricados por Stradivari, quando ele estava no apo-
geu: sua fabricação reflete a autoconfiança do artesão, e a longevidade
de sua fama certamente dá testemunho do seu génio. H á mais de cin -
quenta anos, no entanto, ele não é ouvido. Desde a última venda
conhecida, em 1962, não temos mais notícia do Lipinski, nosso últi-
mo violino.
CIN CO VIOLIN OS E UM V I O LO N CELO 25

O DAVIDOV

Não é provável que mistérios semelhantes venham a envolver o violoncelo


Davidov, fabricado em 1712.Yo-Yo Ma, que há vinte anos toca este ins-
trumento, é talvez o mais famoso violoncelista do mundo, e não mede
palavras ao contar como entrou na intimidade do seu grande Stradivarius:
"Os pianíssimos flutuam com naturalidade. A resposta do instrumento é
instantânea. A sonoridade pode ser rica, sensual ou vibrante em toda a
tessitura, mas também pode ser clara, refinada e pura. Cada som estimula
a imaginação do intérprete. Mas não se pode cometer o menor erro, pois
o som não pode ser forçado, devendo antes ser liberado. Precisei me acos-
tumar a não me sentir mentalmente seduzido pela extraordinária beleza
do som antes de tentar concretamente extraí-la do instrumento."
Os fabricantes têm uma reação parecida ante as qualidades artesanais
do Davidov. Escreve um deles num artigo recente: "Antonio Stradivari
fez este violoncelo para dar a todos nós uma lição de humildade." O
instrumento é admirável em cada um de seus aspectos, mas o que cau-
sa a maior impressão é o verniz: "Por breves e preciosos momentos à
aproximação da noite, um raio de sol entrou no estúdio e o violoncelo
reluziu. Ele não só mudou de cor como mudou em transparência e
profundidade, apresentando uma imagem diferente a cada oscilação da
luz, como se fosse um fantástico holograma natural."

O MESSIAS, O Viotti, o Khevenhuller, o Paganini, o Lipinski e o Davidov:


estes são os nossos seis Strads. Cada um tem sua história. Eventualmente,
haverão de cruzar-se os caminhos de dois deles, na coleção de um mes-
mo proprietário ou numa apresentação, mas é de um único homem a
vida que abarca todos os seis: a do próprio Antonio Stradivari. E sua his-
tória começa pelo menos um século antes do seu nascimento, quando
vamos encontrar Cremona no centro da emergente indústria de violi-
nos européia e conhecer o mecenas real que contribuiu para isto.
Capí t u l o Dois

' O S V I O LI N O S I N C O M P A R A V E LM E N T E
M ELH O R ES D E C R E M O N A "

A dinastia Amat i

a família real francesa jamais teria


E M C I R C U N ST Â N C I A S N O R M A I S,
contemplado a hipótese de conspurcar sua linhagem com o sangue de
uma mulher cuja família, apenas duas ou três gerações antes, estivera
metida no comércio. Mas Catarina de Medici era prima do papa Cle-
mente V I I , com o qual o sempre beligerante Francisco I buscava uma
aliança, e seu noivo, Henrique, era apenas o segundo filho, com poucas
possibilidades de herdar o trono. De modo que o casamento foi rapi-
damente providenciado, em outubro de 1533, e a noite de núpcias foi
observada pelo rei, que mais tarde comentaria que "cada qual demons-
trou denodo no combate".
A morte do papa Clemente, em 1534, menos de um ano depois da
boda, foi portanto um duro golpe. Significava, segundo relato veneziano
contemporâneo, que "toda a França desaprovava o casamento". Mas o
pior estava por vir. O irmão mais velho de Henrique, o Delfim, mor-
reu em 1536, aparentemente por ter bebido água gelada imediatamente
depois de um jogo de ténis. Catarina, que ainda tinha 17 anos, estava
destinada a tornar-se rainha da França, com a missão sobretudo de dar
continuidade à linhagem masculina. Mas durante dez anos ela não teve
filhos, enquanto seu marido produzia fora do casamento uma prole
suficiente para deixar bem claro que o problema não era dele. Presa
numa corte medieval que acompanhava o monarca através do país,
28 STRA D I V A RI U S

sempre atrás das últimas informações sobre um cervo digno de ser ca-
çado pelo rei, não estranha que Catarina se cercasse de criados e artis-
tas de sua Florença natal. Antes mesmo que ela conquistasse alguma
influência política, suas ligações no terreno da cultura já se faziam sentir.
Nos vinte anos subsequentes, uma série de nascimentos e mortes
transformou Catarina, da esposa devotada mas negligenciada que era,
na governante da França. Em 1544, ela finalmente deu à luz seu pr i-
meiro filho — e, o que é mais importante, um menino. Eram afinal
arquivadas as idéias de mandá-la para um convento, para permitir que
Henrique se casasse com uma mulher mais fertil.Viriam posteriormente
vários outros filhos e filhas. A morte do sogro, em 1547, fez Catarina
rainha, embora seu marido preferisse passar a maior parte do tempo
com a amante. Até que, em 1559, Henrique morreu, em consequência
de um acidente numa justa. Viúva, Catarina tornou-se a Rain h a Mãe,
exercendo considerável influência sobre seu doentio filho Francisco I I ,
que aos 14 anos foi considerado capaz de governar sozinho. U m ano
depois, morre Francisco, subindo ao trono seu irmão mais moço. U m
hábil trabalho político de bastidores permitiu que Catarina fosse de-
signada regente de Carlos I X, e ela manteve seu poder mesmo depois
de ser declarada em 1563 a maioridade dele. Já haviam começado en -
tão as guerras religiosas na França. Catarina não foi capaz de impedi-
las, e não pode deixar de ser em parte responsabilizada pelo infame
massacre de huguenotes no dia de São Bartolomeu em 1572. Assim,
embora para ela seus esplêndidos festivais e balés fossem inocentes e
pacíficos momentos de diversão, o fato é que serviram para que passas-
se à posteridade na companhia de Nero, que tocava rabeca enquanto
Roma ardia. A analogia é das mais apropriadas: os divertimentos de corte
eram acompanhados pela música extraída de um instrumento que só
recentemente chegara da Itália: o violino.
Na época, o violino não tinha lá uma fama das melhores. A opinião
geral era que podia servir de bom acompanhamento para a dança, mas
não era capaz de despertar o interesse dos verdadeiros músicos. Em certas
OS V IOLIN OS IN COMPARAVELMEN TE MELH O RES. . . " 29

partes da Itália, havia inclusive decretos da Igreja determinando a des-


truição desse objeto licencioso. As violas, outra invenção recente, eram
consideradas muito mais apropriadas tanto para a música palaciana
quanto para a religiosa. Com espelhos trasteados como os do alaúde
ou do violão, apesar de serem tocados com arco, os vários membros da
família da viola tinham uma sonoridade mais suave que a dos violinos.
Com o tempo, esta característica é que seria sua perda, mas inicialmen-
te ela constituía uma vantagem. E m 1556, Philibert Jambe de Fer, es-
crevendo em Lyon, fazia o elogio da viola sem poupar críticas ao "som
mais estridente" do violino, que além do mais (supremo insulto) "pou-
cas pessoas utilizam, exceto aquelas que graças a ele ganham a vida com
seu trabalho".
Para que o violino vingasse, foi crucial o apoio de alguém tão i n -
fluente quanto Catarina de Medici. U m grupo de música de dança
com violinistas, liderados por um artista de nome inspirador, Balthasar
de Beaujoyeux, chegara à corte francesa por volta de 1555, antes da
morte de Henrique mas por iniciativa de Catarina. Os instrumentos
desse conjunto não chegaram até nós, mas alguns de seus sucessores
imediatos, sim. Logo depois de declarada sua maioridade, Carlos I X
partiu com a mãe para uma viagem pelo reino, que duraria dois anos.
Mais ou menos pela mesma época, Catarina encomendou na Itália um
conjunto de 38 instrumentos de cordas. Quaisquer que fossem seus
defeitos como governante, ela sabia comprar.Toda a partida foi fabricada
na cidade de Cremona, no norte italiano. Dela fazia parte o pequeno
violin o de 1564 que hoje se encontra exposto em seu estojo no
Ashmolean Museum, o mais antigo violino que chegou até nós. E to-
dos os instrumentos foram feitos por Andrea Amati. Ele e sua família
haveriam de dominar a fabricação de violinos nos próximos cem anos.

O VIOLINO é uma das grandes contribuições do alto Renascimento,


resultado de um processo evolutivo, mais que um momento de inspi-
30 STRA D I V A RI U S

ração. No fim do século XV, havia apenas instrumentos primitivos,


adequados para a música de dança ou para o acompanhamento de
vozes, mas não para desfiar suas próprias melodias. Por volta de 1535,
Gaudenzio Ferrari pintava no teto da catedral de Saronno não só vio-
linos (ou talvez um tipo de instrumento que hoje consideraríamos
como violas) como também um violoncelo, embora em ambos os
casos houvesse apenas três cordas. Os grandes passos inovadores h a-
viam sido dados provavelmente por uma oficina que atendia às cor-
tes de Mân tua e Ferrara, no norte da Itália, combinando o cravelhal
da rebec, instrumento de origem moura aparentado ao alaúde, com a
caixa de ressonância da lira da braccio, ela própria um desdobramento
da rabeca renascentista. Embora não possa ter sido o inventor do vio-
lino, foi com sua delicadeza e seu cuidado com os princípios geo-
métricos que Andrea Amati abriu caminho para os que viriam depois;
todos os elementos da forma e da função do instrumento são encon-
trados naquele violino de 1564.
Antes mesmo de ouvir um violino, precisamos nos conscientizar
de sua beleza. A comparação com uma silhueta feminina idealizada — de
cintura fina e voluptuosa — parece inevitável. A famosa fotografia as-
sinada em 1924 por Man Ray, superpondo um par de aberturas acús-
ticas em forma de f nas costas de um modelo feminino n u ressalta a
semelhança com erótica simplicidade. E o violino sempre foi descrito
em termos antropomórficos. O seu "corpo" oco, ou caixa de ressonân-
cia, tem um fundo ("costas", em inglês), um tampo, sustidos por ilhar-
gas laterais em toda a extensão; um braço ("pescoço", em inglês) se
ergue numa das extremidades em direção à "cabeça" do instrumento.
Já nos instrumentos originais de Amati a cabeça assumia a forma mo-
derna de uma voluta espiralada, cuja única função é servir de gancho
quando o violino é pendurado, mas cuja beleza não passa despercebi-
da. Recentemente, o luthier Roger Hargrave considerou que a voluta
do violino Amati de 1564 foi "enfraquecida mas não devastada pelo
tempo"; segundo ele, sua "con cepção é tão perfeita sob os aspectos
OS V IOLIN OS IN COMPA RA V ELMEN TE MELH O RES. . . " 31

matemático e ótico que ao longo dos séculos só poderia haver mesmo


uma constante degeneração".
Talvez o aspecto mais notável deste que é o violino mais velho hoje
existente seja o fato de não ser de modo algum um protótipo. A ma-
neira como o instrumento funciona não mudou desde 1564. Quatro
cordas, mantidas sob tensão, estendem-se do estandarte ao espelho e à
cabeça, passando por um cavalete que as sustenta acima da caixa de
ressonância. Elas são postas para vibrar, geralmente com a fricção da
crin a de cavalo presa a um arco, mas t ambém com os dedos ou
percutindo-as com a madeira do próprio arco. O cavalete transmite
essas vibrações para a caixa de ressonância, que funciona como ampli-
ficador, de modo que podemos ouvir as notas. O braço tem em sua
extremidade o cravelhal, cujas cravelhas ajustam a tensão das cordas,
esticando-as e relaxando-as, com isso afinando o violino. Preso à su-
perfície plana superior do braço, entre ele e as cordas, está o espelho,
contra o qual o violinista pressiona as cordas com os dedos da mão
esquerda, encurtando-as e com isto mudando as notas por elas emitidas.
Esta descrição sumária talvez seja o suficiente para indicar o que tor-
na tão singular a família do violino: a variedade dos golpes de arco pos-
síveis e a infinidade de posições dos dedos conferem a esses instrumentos
uma versatilidade de uma ordem diferente da de qualquer outro. Além
disso, é evidente que o uso do arco permite ao violinista estar constante-
mente transmitindo energia ao instrumento: as notas emitidas serão por
isso mesmo mais fortes e sustentadas que as produzidas pinçando as cor-
das com os dedos. Apesar disso, nenhuma explicação chega sequer perto
de dar conta da riqueza da sonoridade de um violino, ou do fato, por
exemplo, de determinado instrumento ser apropriado para a sala de con-
certos, ao passo que outro serve apenas para a o estudo. O segredo de
tudo isso, assim como a origem da força e da mística do violino, está na
caixa de ressonância. É nela que vamos encontrar a verdadeira comple-
xidade do instrumento, é nela que a forma e a função chegaram a um
casamento perfeito desde a época de Andrea Amati.
32 STRAD IVARIU S

A configuração do corpo do instrumento não é apenas bela; sua


combinação de curvas convexas e côncavas equaliza tanto quanto pos-
sível as ressonâncias do violino em todas as frequências; uma forma mais
simplificada favoreceria determinada nota em detrimento de outras.
As entradas laterais, ou CCs, também dão ao arco maior facilidade de
acesso às cordas graves e agudas. O tampo deve ser capaz de vibrar em
sintonia com as cordas, sendo portanto feito de madeira macia, geral-
mente abeto europeu de veios estreitos. O fundo, basicamente uma
prancha reflexiva, é de madeira mais resistente; Andrea Amati usava
bordo, e nisto tem sido imitado desde então. O tampo e o fundo fazem
um movimento convexo das bordas para o centro da caixa de resso-
nância, onde atingem a altura máxima em forma de plataforma. Sua
espessura e seu arqueamento devem ser perfeitamente graduados para
alcançar um equilíbrio entre flexibilidade e força. A caixa de ressonân-
cia é completada, nas laterais, pelas ilhargas:finastiras de bordo recurvadas
no calor para formar as quatro principais curvas que conferem ao cor-
po sua forma de ampulheta. À beira da borda do tampo e do fundo,
acentuando o contorno, numa sublime demonstração da habilidade do
artesão, mas também servindo para proteger das rachaduras, temos o
"filete". Mais uma vez, o violino Amati de 1564 estabeleceu o padrão
que seria seguido por quase todos os outros: três finas tiras incrustadas,
as duas de fora de pereira pintada de negro e a de dentro, de choupo.
Só no interior do corpo a simetria foi sacrificada, a bem da função.
Por baixo do pé esquerdo do cavalete, presa à parte interna do tampo
em quase toda a sua extensão, temos uma longa e estreita viga de ma-
deira, cuja altura decresce nas extremidades, chamada barra h armóni-
ca. Por baixo do outro pé e ligeiramente recuado em relação a ele,
inserido como um esteio entre o tampo e o fundo, há um pequeno
cilindro de madeira, a alma. Esses dois detalhes são cruciais para o vo-
lume e a sonoridade: a alma representa um eixo em torno do qual o
tampo pode vibrar; e a barra harmónica dá maior força a essas vibra-
ções. Eles constituem a única parte do violino que não foi concebida
"OS VIOLIN OS IN COMPARAV ELMEN TE MELH ORES. . . " 33

de maneira intuitiva: uma indicação do processo de tentativa e erro


que os antecessores anónimos de Amati devem ter atravessado no aper-
feiçoamento do formato do violino.
E que dizer das aberturas acústicas? São duas letras f simétricas em
forma cursiva, com acabamentos circulares nas extremidades, que cons-
tituem talvez as partes mais reconhecíveis do violino. E tal o seu en -
canto e beleza que é fácil concluir que pouco devem à funcionalidade.
E no entanto, basta analisá-las com atenção para concluir que seriam
poucas as outras formas capazes de funcionar tão bem. Alguma abertu-
ra efetivamente é necessária para permitir que o som saia, mas a parte
central do tampo precisa manter-se intacta para dar apoio ao cavalete,
donde o posicionamento dessas fendas mais perto das laterais. Elas são
estreitas para que seja removida a menor quantidade possível de veios
do abeto — outro elemento importante para o volume —, e as curvas
circulares em suas extremidades impedem o surgimento de rachadu-
ras. Finalmente, a curva voltada para fora na parte de baixo situa o aca-
bamento circular inferior em madeira surda, para não desperdiçar
qualquer fonte possível de amplificação, ao passo que as entradas es-
treitas do violino, sua "cin tura", forçam as fendas a se voltarem para o
interior nas extremidades superiores. Resumindo, ninguém foi capaz
de conceber para as aberturas acústicas um desenho mais apropriado
que o dos modelos originais, registrado à perfeição no trabalho de Amati.
Finalmente, temos o verniz. Nenh um outro elemento da fabrica-
ção dos violinos provoca mais debates que este último componente,
aparentemente simples. Não resta dúvida de que se trata de uma parte
crucial da aparência de um bom violino, ressaltando a beleza natural
dos materiais de uma forma que só vai melhorando com o passar do
tempo. Todos também concordam que a utilização de um verniz ina-
dequado pode comprometer irremediavelmente a sonoridade, neutra-
lizando as qualidades de vibração da madeira. Mas será que é apenas
isso? Qualidades lendárias têm sido atribuídas ao verniz de Cremona
que aparentemente foi utilizado pela primeira vez por Andrea Amati.
34 STRA D I V A RI U S

Mas até hoje uma das questões centrais na fabricação de violinos está
em saber se as melhores receitas de verniz efetivamente contribuem
para enriquecer a sonoridade, talvez funcionando como uma espécie
de filtro, ou são simplesmente neutras.

EXISTE UM outro aspecto relevante do legado de Andrea Amati. Ele


não só foi o fabricante do violino mais antigo que chegou até nossa
época como também de exemplares dos dois instrumentos irmãos, a
viola e o violoncelo.*Todos seguem os mesmos princípios de cons-
trução, sendo a única diferença real entre eles as notas em que são afi-
nadas as cordas. As quatro cordas do violino começam no sol abaixo do
dó central e vão até a corda do mi agudo quase duas oitavas acima,
passando pelo ré e o lá (a nota que serve para afinar a orquestra). São
nove os violinos de Andrea Amati que chegaram até nós: quatro "pe-
quenos" e cinco "grandes". As violas são afinadas num tom um pouco
mais grave, começando com o dó uma oitava abaixo do dó central e
continuando com as três cordas superiores — sol, ré e lá — que
correspondem às três cordas inferiores do violino. Ainda existem hoje
quatro grandes violas de Andrea Amati. Finalmente, temos o violoncelo,
que apresenta hoje quatro cordas repetindo as notas da viola, só que
uma oitava abaixo. Ainda estão entre nós seis violoncelos de Andrea
Amati, entre eles o mais antigo do mundo. Datado de 1572, ele tam-
bém ostenta as armas de Carlos I X, tendo-lhe sido provavelmente pre-
senteado pelo papa Pio V.
Amati fabricava seus violoncelos com apenas três cordas e caixas
de ressonância com extensão de 31 polegadas, em comparação com as
29 polegadas dos instrumentos modernos. Todos os instrumentos re-
manescentes foram reduzidos e acrescidos de um quarto conjunto de

• Embora seja semelhante, o contrabaixo parece ter derivado mais diretamente da viola.
OS VIOLIN OS IN COMPARAVELMEN TE MELH ORES. . . " 35

furos em seus cravelhais. O violoncelo Amati de 1572 adaptou-se às


mudanças com extraordinário êxito. No fim do século XV I I I , foi o
instrumento favorito — até a posterior aquisição de um Stradivarius
— de Jean-Louis Duport, um dos violoncelistas mais influentes da época.
Recentemente, ao ouvir um dos violoncelos de Amati numa grande
sala de concertos, Roger Hargrave considerou que o instrumento "pa-
recia abrir caminho poderosamente até os últimos recantos do auditó-
rio. Simplesmente pulverizou os concorrentes mais jovens mas ainda
assim altamente recomendáveis."

ANDREA AMATI morreu em 1577, legando seu n egócio a dois filhos,


Antonio (nascido em 1540) e Girolamo (nascido em 1561). Antonio
parece ter deixado a sociedade em 1588, mas os instrumentos fabrica-
dos na oficina até a década de 1620 ainda hoje são etiquetados como
obra dos "Irmãos Amati". São mais robustos que os de Andrea, mas não
pode haver dúvida quanto a sua influência, que já então não se limitava
à própria família. À medida que os fabricantes de alaúdes, ou luthiers*
voltavam sua atenção para o novo instrumento, imitadores do estilo
Amati iam surgindo em todo o norte da Itália.
Os mais importantes estavam em Brescia, cerca de cinquenta qui-
lómetros ao norte de Cremona. Lá, Gasparo Bertolotti, conhecido como
"gasparo da Salò" por ter nascido nesta cidade, fabricava violinos de
sonoridade poderosa, mas de um estilo tão primitivo que chegou em
dado momento a ser considerado o inventor do instrumento. A honra
foi devolvida ao ser estabelecido em 1540 o ano de seu nascimento;
ele era simplesmente jovem demais. Os violinos fabricados por Giovanni
Paolo Maggini, aluno de da Salò, mantinham globalmente a forma por
ele adotada, com tampos mais planos. Para muitos ouvintes, as violas
desses fabricantes, em particular, nunca foram superadas.

• Do francês luth (alaúde). (N. do T.)


36 STRA D I V A RI U S

Pelo fim do século XV I , a potência e a versatilidade do violino eram


inegáveis. Em 1581, Balthasar de Beaujoyeux escreveu a primeira m ú -
sica especificamente composta para o novo instrumento, um balé des-
tinado a comemorar o casamento da filha de Catarina de Medici. A
partir de aproximadamente 1600, pinturas de Caravaggio e outros re-
produzem em sua plenitude a beleza do violino: ele finalmente tinha
saído do limbo, tornando-se uma verdadeira obra de arte, mas também
a representação da mais avançada tecnologia da época.
A dinastia Amati prosseguiu por uma terceira geração, com o nas-
cimento de Nicolò em 1596. Ele era um dos vários filhos de Girolamo,
nascido 12 anos depois de seu segundo casamento, com Laura de Medici
de Lazzarini. Como indica seu nome, Laura pode ter sido uma prima
distante da rainhafrancesa.Parece improvável que Catarina, morta em
1589, tenha tomado conhecimento desse vínculo com seu antigo for-
necedor. Sempre preocupada em esquecer as origens dos Medici no
comércio, ela provavelmente não apreciaria se tivesse sido lembrada do
fato. Aparentado à realeza, herdeiro da maior família de luthiers da Eu -
ropa, Nicolò tinha um brilhante futuro pela frente ao juntar-se a
Girolamo no ateliê.
Com o fim da década de 1620, contudo, chegaria também a cala-
midade. A morte em 1627 do duque de Mântua, que não deixava fi-
lhos, desencadeou uma disputa pelo controle dos seus domín ios
envolvendo Veneza, a França, a Espanha e o Sacro Império Romano.
Como parte do ducado de Milão, Cremona caiu sob influência espa-
nhola e se viu mergulhada na refrega. As consequências foram desas-
trosas, como se pode ler num registro paroquial feito em Cremona em
1630: "As pessoas ricas viram-se já agora reduzidas a tal estado de po-
breza, causado em parte pelo aquartelamento de soldados em suas ca-
sas e em parte pelos pesados impostos que são cobrados (...) que se não
fosse pela vergonha estariam mendigando."
No mesmo ano, a peste varreu toda a Lombardia a partir da arruinada
cidade de Mântua. Pela altura de agosto, Cremona estava deserta. Os
"OS VIOLIN OS IN COMPARAVELMEN TE MELHORES. . . " 37

cidadãos voltariam para suas casas mais tarde naquele mesmo ano, mas
dois terços da população haviam desaparecido, por morte ou exílio em
aldeias próximas. Toda a riqueza da cidade praticamente tinha evapo-
rado. Entre as vítimas fatais estavam Girolamo e Laura Amati, assim como
duas de suas filhas. Em Brescia, Giovanni Maggini morreria em 1632.
Dentre os grandes mestres luthiers das duas cidades, sobrevivia apenas o
jovem Nicolò Amati.
A demanda de violinos não diminuíra. Uma indicação disso é a cria-
ção dos famosos "Vingt-QuatreViolons du R o i "* de Luís XI I I ; o ins-
trumento começava a assumir a posição de sustentáculo orquestral que
ocupa ainda hoje. Os violinos tornavam-se necessários em quantida-
des cada vez maiores. Nicolò mostrou-se à altura do desafio. Solteiro e
sem filhos, tomou uma decisão que teria consequências de grande al-
cance: contratar aprendizes fora da família. Pela altura de 1632, estavam
entre eles Francesco Ruger i e Andrea Guarneri; mais tarde, Giovanni
Battista Rogeri integrou-se ao ateliê .Violinos fabricados por qualquer
um deles são hoje em dia altamente valorizados. Amati chegou a em-
pregar aprendizes de fora da Itália. U m deles foi Leopoldo "diTedesco"
("o Alemão"). Outro pode ter sido Jacob Stainer, de Absam, no Tir ol,
cujos violinos seriam os principais concorrentes dos Amati por boa parte
do século XV I I .
Seja como for, em 1637 Nicolò Amati ainda não podia ter qual-
quer rival em Cremona quando o padre Fulgentius Micanzio, do
Mosteiro Servita de Veneza, escreveu o seguinte no dia 20 de dezembro:

A respeito do violino que o seu sobrinho de passagem por aqui deseja


comprar, conversei com o maestro di concerti de São Marcos, segundo quem
posso encontrar com facilidade violinos de Brescia, sendo no entanto
os de Cremona incomparavelmente melhores — na realidade, eles re-
presentam o nonplus ultra; e através do signor Monteverdi, um cremonês

Orquestra palaciana com vinte e quatro instrumentos de cordas.


38 STRA D I V A RI U S

que é mestre de capela em São Marcos e tem um sobrinho vivendo em


Cremona, encomendei que um violino fosse enviado para cá. A dife-
rença de preço servirá para mostrar-lhe a superioridade, pois os de
Cremona custam cada um no mínimo doze ducados [300 libras],* ao
passo que os outros podem ser adquiridos por menos de quatro ducados.
Como o seu sobrinho está a serviço de Sua Alteza da Baviera, acho que
ele haverá de longe de preferir que seja enviado paraVeneza o mais cedo
possível aquele que foi encomendado...

A importância desta carta está no preço fornecido, pois assinala o pon-


to de partida de um gráfico cuja tendência desde então tem sido de
elevação quase ininterrupta. Também é difícil resistir à referência a
Cláudio Monteverdi. Não pode haver dúvidas quanto a suas credenciais
como assessor nessa matéria: sua ópera UOrfeo, composta em 1607,
continha música para violino das mais complexas até então concebi-
das. Mas a grande novidade dessa correspondência é que a carta se
destinava a ninguém menos que Galileu Galilei. O grande astrónomo
e matemático tinha então 73 anos e estava cego. Por ordem da Inquisição,
passaria o resto da vida em prisão domiciliar em Arcetri, perto de Flo-
rença. Não deixa de ser maravilhoso que os violinos de Nicolò Amati
servissem de ligação entre o fundador da astronomia e o primeiro com-
positor da ópera moderna.
A carreira de Nicolò Amati foi concomitante com o surgimento
dos virtuoses do violino. Foi provavelmente em resposta à necessidade
por eles manifestada de maior volume sonoro que Nicolò desenvolveu
seu modelo grande, maior que os violinos de seus antecessores e com
bicos mais pronunciados. Esses instrumentos chegavam perto da per-
feição. Ainda hoje são capazes de inspirar amor aos que os tocam:"[O
seu som] me envolve suavemente, de uma maneira profunda e multi-

* Ao longo do livro, o valor entre colchetes fornecerá aproximativamente o atual equivalente


em libras esterlinas do valor mencionado, exclusivamente a título in dicativo. Sobre a
metodologia e as fontes, ver o Apên dice Três.
"OS VIOLIN OS IN COMPARAVELMEN TE MELHORES. . . " 39

dimensional que é ao mesmo tempo generosa e sedutora", diz Thomas


Bowes referindo-se ao Amati tamanho grande pelo qual renovou a
hipoteca de sua casa. Só a curvatura do tampo e do fundo mereceriam
uma crítica: cheia no meio, com um canal ao longo das bordas, o que
limita a flexibilidade e inibe a amplificação.
Nicolò tinha quase 50 anos ao se casar com Lucrezia Pagliari. Um
dos filhos, Girolamo, nascido em 1649, daria continuidade à tradição
Amati na quarta geração. Os poucos violinos por ele fabricados que
chegaram a nossa época dão testemunho do seu talento. Quis o desti-
no, no entanto, que Girolamo chegasse à idade adulta ao mesmo tem-
po que um outro artesão cremonês, que haveria de superar todos os
demais luthiers, tornando-se o maior de todos eles: Antonio Stradivari.
Capí t u l o Trê s

" E L E JÁ E R A U M G É N I O "

Origen s e evolução de An t on io Stradivari

" E u P EN SEI Q U E seria como um Amati, com aquele sonzinho suave e


pequeno, mas nem de longe: era como um raio laser. Er a um Strad. O
que estou querendo dizer é que ele já era um génio, já sabia como
fazer." Primeiro violino do Quarteto Aberni e professor de violino da
Real Academia de Música de Londres, Howard Davis já teve nas mãos
muitos Strads; a coleção da própria Academia é uma das maiores do
mundo. Ainda assim, ele até hoje lembra como se sentiu maravilhado
ao tocar o Stradivari mais antigo que chegou até nós, confeccionado
em 1666."Era realmente impressionante, ele tinha clareza e ao mesmo
tempo suavidade, mas também uma projeção sonora que me permitia
ouvi-lo alcançar o fundo da sala."
Esse mesmo violino constitui a prova mais antiga da existência de
Antonio Stradivari. A cidade de Cremona não tem um registro do seu
nascimento, embora possamos encontrar sobrenomes semelhantes a
Stradivari em histórias cremonesas que remontam ao século XI I . O
mais provável é que os pais de Antonio estivessem entre os muitos que
fugiram da cidade durante as catástrofes do período de 1628 a 1630, de
tal maneira que o grande luthier teria nascido em alguma paróquia das
proximidades. Embora possamos deduzir de violinos fabricados poste-
riormente que Stradivari nasceu em 1644, temos de aceitar que ele
chega à história da fabricação de violinos aos 22 anos de idadejá como
um talento que não pode ser ignorado.
42 STRA D I V A RI U S

A questão de saber quem ensinou a Stradivari a sua arte aumenta


ainda mais o mistério. Mais uma vez, é naquele mais antigo violino
que vamos encontrar uma informação crucial. E m sua etiqueta, consta
a inscrição: "Antonius Stradivarius Cremonensis Alumnus Nicolaii
Amati, Faciebat Anno 1666" ["Feito por Antonio Stradivari de Cr e-
mona, aluno de Nicolò ^\mati, em 1666"]. A prova parece irrefutável:
Stradivari havia aprendido com Nicolò Amati e agora se estabelecia
por conta própria. Se ainda não fosse suficiente como prova, o estilo
desse violino e de seus sucessores bastaria para convencer da influência
de Amati sobre o trabalho de Stradivari: temos o mesmo verniz de um
castanho dourado, uma série de semelhanças de concepção e também
as diferenças que indicam a presença de um mestre começando a de-
senvolver seu jeito próprio de fazer as coisas.
Ainda assim, alguma coisa não confere. A etiqueta de 1666 certa-
mente fazia parte de uma série: além do fato de o "6 " ser manuscrito,
ela foi impressa a partir de uma matriz especial. E no entanto, o vio-
lino seguinte de Stradivari que chegou até nós já apresenta uma iden-
tificação completamente diferente:"Antonius Stradivarius Cremonensis
Faciebat An n o 1667". Por que teria o jovem luthier trocado tão rapi-
damente a matriz de sua etiqueta? Por que será que os primeiros vio-
linos de Stradivari assemelham-se menos aos de Amati, na realidade,
que os que ele faria uma década depois? Se ele realmente foi apren-
diz de Amati, por que nunca aparece no censo anual como morador
da residência do mestre? Encontramos vestígios do trabalho de Andrea
Guarn eri, Giovanni Battista Roger i e Francesco Ruger i na produ-
ção do ateliê de Amati; mas por que não da presença de Antonio
Stradivari?
Muitas respostas têm sido sugeridas, mas a mais simples é que
Stradivari nunca foi aluno de Amati. Os registros do censo de Cremona
mostram que de 1667 a 1680 ele viveu na Casa Nuziale, de proprieda-
de do entalhador e marcheteiro Francesco Pescaroli. O jovem luthier
não teria sido capaz nessa época de viver exclusivamente de sua artesania.
"ELE JÁ ERA UM GÉN I O " 43

O que se deduz é que continuou a trabalhar para algum outro mestre,


e o candidato mais provável seria o homem em cuja casa residia. An to-
nio Stradivari, que não tem rival como maior fabricante de violinos de
todos os tempos, pode ter começado como carpinteiro.
A teoria poderia parecer absurda, se não fosse confirmada pelos
próprios violinos de Stradivari. Mesmo os primeiros instrumentos são
extraordinariamente bem entalhados. O filete, em especial, é inserido
com tal arte que parece improvável que o artesão responsável não fosse
particularmente habilidoso. Mas há uma indicação ainda mais curiosa.
Pelo fim da década de 1670, Stradivari começou a produzir instrumentos
decorados de esplêndida maestria. Magnificamente marchetados, esses
violinos ostentam filetes primorosamente lavrados e graciosos ornatos
nas laterais e nas volutas. De toda a produção de Nicolò Amati, só se
comparam com eles um ou dois violinos do meado da década de 1650;
seu traçado, com efeito, parece muito semelhante.
E se a ornamentação desses violinos Amati fosse obra do jovem
Antonio Stradivari? Então com apenas 13 anos, ele teria sido aprendiz
naquele ateliê por apenas um ano ou no máximo dois, mas o suficiente
para que o mestre se desse conta da habilidade do pupilo com a goiva
e a faca. Pescaroli pode muito bem ter sugerido a Amati, que era quase
seu vizinho, que empregasse aquele jovem talentoso para decorar al-
guns de seus famosos violinos. Nesse caso, as poucas semanas que
Stradivari terá passado no ateliê de Amati explicariam sua familiarida-
de com o estilo do antecessor depois de tanto tempo. Pode ter sido o
suficiente para mostrar-lhe que a fabricação de violinos era ao mesmo
tempo mais interessante e mais lucrativa que a profissão que havia es-
colhido. Posteriormente, é claro, Stradivari deve ter aprendido mais sobre
a fabricação de violinos propriamente dita, mas nem mesmo então terá
necessariamente tido Amati como mestre. É mais provável que seu
mestre tenha sido Francesco Rugeri: há pelo menos uma técnica de
graduação da espessura que ele tem em comum com Stradivari, mas
que nenhum dos dois terá encontrado em Amati.
44 STRA D I V A RI U S

Voltamos então àquele primeiro violino que chegou até nós, o de


1666.Teria sido natural, ainda que algo atrevido, que o jovem Stradivari
afixasse em suas primeiras experiências uma etiqueta exagerando sua
filiação em relação ao grande Amati, assim como não seria de estranhar
que o mestre luthier exigisse que a removesse ao descobri-la. Começa-
mos então a ver Stradivari não como o zeloso aprendiz que acabou
superando o mestre, mas como um génio de espírito independente e
empreendedor. Também começaremos a entender então o contexto e
o temperamento que com o tempo o levariam a repensar cada aspecto
da caixa de ressonância do violino. Ele conhecia e respeitava a tradição
cremonesa representada por Amati, mas não se sentia tolhido por ela.
Por sumários que sejam, os poucos detalhes de que dispomos a res-
peito da vida privada de Stradivari também parecem falar de um h o-
mem disposto a assumir riscos. No dia 4 de julh o de 1667, ele se casou
com a signora Francesca Feraboschi. A primeira filha do casal, Giulia,
nasceria no seguinte mês de outubro, menos de quatro meses depois.
O que não era propriamente inusitado; e a paróquia local não se fizera
de rogada quando solicitada a apressar os proclamas. Mas algo mais
tornava digno de nota aquele casamento. Francesca era viúva de um
habitante relativamente rico de Cremona, Giacomo Capra, e o breve
casamento certamente não havia sido feliz. Deu-lhe duas filhas e se
escorava num substancioso dote de 3.500 liras [15 mil libras],mas menos
de dois anos depois, a 28 de abril de 1664, Capra foi assassinado pelo
irmão de Francesca, Giovanni Feraboschi — alvejado com um arcabuz
na Piazza Santa Ágata, em frente a uma das muitas igrejas de Cremona.
Os motivos por trás desta crua enumeração de fatos só podem ser
imaginados. Feraboschi deve ter agido no mínimo em nome do bem-
estar de sua irmã, e talvez sob instruções suas. E não parece ter sido
grandemente censurado, e muito menos punido, por seu crime. In icial-
mente expulso de Cremona, mereceria o perdão geral menos de três
anos depois. Enquanto isso, o pai de Capra, um importante arquiteto,
havia assumido a guarda dos netos, sendo obrigado pela justiça, por
ELE JÁ ERA UM GÉN I O " 45

iniciativa de Francesca, a devolver o dote à viúva (restavam 1.437 liras


em dinheiro e objetos pessoais). Francesca podia estar livre para casar,
mas não entrava sem passado na vida de Antonio Stradivari.
Pouco depois do casamento, o jovem casal mudou-se para a Casa
Nuziale. Durante 13 anos, seria não só a residência de Stradivari, mas
também o seu ateliê. Era uma clássica residência de artesão cremonês,
longa e estreita, com um pequeno pátio, uma loja e a oficina no térreo,
e a parte residencial nos dois andares de cima. No segundo andar, um
alçapão levava ao terraço coberto. Conhecido no dialeto cremonês
como seccadour, o terraço era geralmente utilizado para secar roupas e
alimentos para estocagem durante o inverno. Provavelmente lá é que
os violinos recém-envernizados eram pendurados para secar. Nos dois
andares abaixo, crescia a família de Antonio e Francesca. Giulia foi a
primeira de seis filhos. O primeiro filho, Francesco, morreu em 1670,
apenas 12 dias depois do nascimento. Menos de um ano depois, no
entanto, chegou outro Francesco, ganhando ao longo dos oito anos
subsequentes a companhia de outra irmã, Caterina, e de dois irmãos,
Alessandro e Omobono.
Como pai, Stradivari pode ser considerado quase prolífico, mas o
mesmo não poderia ser dito de sua produção inicial de violinos. De
seus 14 anos como luthier independente, até 1680, quando havia com-
pletado 36 anos, sabe-se da existência de apenas 18 violinos, além de
uma viola, um violão e um violoncelo originalmente concebido como
uma viola da gamba. É possível encontrar em alguns a centelha do génio,
mas de maneira geral não lhes é lisonjeira a comparação com os apu-
rados instrumentos à mesma época produzidos no ateliê de Nicolò
Amati. Stradivari ainda não havia encontrado a mão, não passando de
uma figura secundária na luteria cremonesa, que por sua vez enfrenta-
va novos desafios dos fabricantes alemães. Correspondendo apenas às
encomendas que Amati não podia atender, o pequeno número de ins-
trumentos fabricados por Stradivari reflete simplesmente a pequena
demanda então existente.
46 STRAD IVARIU S

Parece portanto certo que a produção de Stradivari não poderia


sozinha ter sustentado sua família. Os preços não poderiam ter aumen-
tado tanto desde a época de Galileu. Seria difícil imaginar Stradivari
recebendo mais que 15 ducados [400 libras] por um violino; mais pro-
vável seria a metade desse valor. Ainda que ele vendesse quatro violi-
nos por ano (presumindo-se que tantos tenham sido perdidos), a renda
obtida com a fabricação dos instrumentos não teria sido suficiente para
explicar a prosperidade cada vez maior de que ele veio a desfrutar. Deve
ter havido outra fonte de renda. Um a possível explicação é que ele
fosse rico, com a possibilidade de fazer experiências com novos traça-
dos até se aproximar gradualmente da perfeição em seus violinos. Mas
o fato é que muito pouca coisa na vida de Stradivari aponta para o
diletantismo. É mais provável que ele tivesse continuado a trabalhar para
seu mestre, Pescaroli.
Seja como for, pelo fim da década de 1670 encontramos indícios
de que a situação de Stradivari decisivamente estava melhorando. Seus
primeiros instrumentos ornamentados datam dessa época. O segundo
dentre eles que chegou até nós não se distingue apenas pela ornamen-
tação. Embora Stradivari o tenha fabricado em 1679, só viria a vendê-
lo ao primeiro proprietário, o britânico Edward Hellier, muitos anos
depois. É difícil resistir à dedução de que não foi feito para um com-
prador específico, e sim para afirmar excelência. A maestria é evidente,
seu impacto, mais imediato que o das qualidades mais discretas de um
violino apenas bom. Stradivari estava dizendo a que vinha, da melhor
maneira que podia: por meio da qualidade da sua marchetaria.
O empenho de Stradivari evidente no Hc///ernão é o único indício
de que ele começava a se destacar do padrão de um simples artífice.
Em 1680, ele comprou sua primeira casa, pagando inicialmente, pelo
preço fixado de 7 mil liras imperiais [40 mil libras], um adiantamento
de 2 mil liras, com o resto a ser amortizado em quatro anos. A casa, no
número 1 da Piazza San Domênico, tinha planta semelhante à da Casa
Nuziale, sendo no entanto maior, com amplos porões e um sótão entre
"ELE JÁ ERA UM GÉN I O " 47

a parte residencial e o seccadour. Diz a tradição que foi nesse sótão que
Stradivari fez seus violinos mais famosos.
Mais ou menos pela mesma época da mudança, Stradivari fabricou
o violino que viria a ser conhecido como o Paganini, o mais antigo de
nossos seis instrumentos. Ele é bem típico desse período sob todos os
aspectos: influenciado por Amati na concepção geral e no verniz de
um laranja dourado, mas com o estilo original de Stradivari perceptí-
vel nas curvas menos arredondadas e nas aberturas acústicas mais an-
gulosas. O violino levava provavelmente cerca de duas semanas para
ser feito, pois Stradivari seguia técnicas cremonesas tradicionais que já
tinham então mais de um século.

A CONSTRUÇÃO começava com um molde interno. A esta altura de


sua carreira, Stradivari provavelmente tinha dois, que identificava como
"M B" e "S". Podemos deduzir que M B significava"Modello Buon o",
a primeira tentativa bem-sucedida do luthier independente de criar seu
próprio molde, e "S","Secon do". Os moldes propriamente ditos pou-
co mais são que pranchas planas de madeira, com a forma do contorno
de um violino, mas sem seus blocos internos. Stradivari os desenhava
com poucos instrumentos além de régua e compasso, mas apesar disso
eles ostentam fascinantes relações matemáticas. A mais impressionante
é a recorrência da "proporção áu r ea"— o número usado pelos gregos
antigos para conferir perfeitas proporções clássicas — como proporção
entre várias medidas decisivas de largura e altura.
As primeiras partes acrescidas ao molde, levemente coladas para
serem posteriormente removidas, eram os blocos internos. E m segui-
da, Stradivari usava um ferro aquecido para flexionar as ilhargas em
torno do molde, fixando-as aos blocos com cola e encaixando-as no
lugar, de tal maneira que as quatro finas tiras de bordo formassem o
contorno ininterrupto do corpo do Paganini. Este contorno, por sua
vez, era usado por Stradivari para imprimir a forma do violino às pran-
48 STRAD IVARIU S

chas de abeto e bordo que formariam, respectivamente, o tampo e o


fiindo do instrumento. Em ambos os casos, pelo menos tratando-se do
Paganini, 2L prancha consistia na realidade de duas cunhas de madeira
cortadas radialmente. Basta visualizar duas fatias verticais de "bolo" t i-
radas do tronco da árvore e coladas pela extremidade espessa. A partir
de 1670, Stradivari usava esta técnica quase invariavelmente para fazer
o tampo de seus violinos, com isto assegurando que o lado dos agudos
e o dos graves ficassem equilibrados. No que diz respeito ao fundo,
Stradivari trabalhava de acordo com a madeira disponível. Muitos de
seus primeiros violinos têm fundos feitos de bordo extraído "em pran-
cha", cortando-se fatias tangencialmente aos anéis de crescimento da
árvore. Com isto, perde-se o clássico "desenho" do bordo de corte r a-
dial — com listras horizontais visíveis provocadas por ondulações nos
veios da madeira —, obtendo-se do violino uma sonoridade diferente,
talvez mais capitosa, porém menos nítida. Posteriormente, ele passaria
a usar em geral a madeira cortada radialmente: duas peças no caso do
Paganini, frequentemente apenas uma, quando dispunha de uma peça
de bordo suficientemente grande.
Os contornos recortados por Stradivari no bordo e no abeto podiam
agora ser trabalhados para a criação do tampo e do fundo do violino.
Inicialmente, o arqueamento externo: Stradivari provavelmente utili-
zava guias, cortando sulcos para em seguida emparelhá-los com uma
grande goiva arredondada. A jun ção desses sulcos formava a parte ex-
terior em sua primeira versão. O sucessivo emprego de ferramentas mais
delicadas, culminando com uma raspadeira de aço, levava às curvas
perfeitamente suaves das superfícies finalizadas. Vin h a então a parte
interna, à medida que Stradivari ia gradualmente reduzindo cada pran-
cha a sua espessura ideal, adelgaçando-a de dentro para fora com ex-
tremo cuidado para tornar o tampo e o fundo o mais finos possíveis,
sem comprometer a resistência do violino.
Para entalhar as duas aberturas acústicas no tampo do Paganini,
Stradivari começava com os orifícios redondos das extremidades, mar-
ELE JÁ ERA UM GÉN I O " 49

cando-os com um compasso e perfiirando-os com um cilindro dotado


de palhetas cortantes. U m gabarito específico do molde do Paganini
servia então para estabelecer o contorno em forma de f que ligava os
orifícios. A simplicidade das aberturas acústicas de Stradivari é engano-
sa: basta tentar desenhá-las à mão livre. A elegância de seu movimento
e a perfeição de suas proporçõesjun tamen te com o impecável entalhe,
são alguns dos elementos em que qualquer especialista presta atenção
para distinguir um Strad de uma cópia.
O tampo também precisou de uma barra harmónica presa a sua
superfície interna. Ela se estendia por cerca de três quartos do compri-
mento do instrumento, sendo mais alta no meio e rebaixando-se em
direção às extremidades. A esta altura, Stradivari pode ter testado com
uma pancadinha a frequência de ressonância do tampo e do fundo. Se
assim foi, parece ter visado em ambos os casos algo em torno do fá
abaixo do dó central. Pode também, alternativa ou cumulativamente,
ter testado nas próprias mãos a sensibilidade e a flexibilidade de cada
prancha. Em qualquer dos casos, subsequentes ajustes na espessura te-
riam levado àquilo que sua experiência lhe dizia ser o ideal. É nesse
tipo de detalhe decisivo que se manifesta o génio inato de Stradivari.
Ele não fazia seus violinos de acordo com determinada fórmula, mas
levando em consideração as propriedades específicas da madeira que
utilizava. Nem mesmo ele pode ter entendido plenamente o que esta-
va fazendo. O Paganini é um dos primeiros exemplos; à medida que
aumentava a experiência de Stradivari, só podia melhorar a qualidade
de seus violinos.
Agora Stradivari podia começar a montar a caixa de ressonância.
Os contra-ilhargas — tiras de salgueiro coladas ao longo do alto e da
base das ilhargas — proporcionavam, juntamente com os blocos, uma
superfície à qual os tampos podiam ser colados. Primeiro era a vez do
fundo, utilizando um adesivo bem forte, feito recentemente com cou-
ro animal. Chegara o momento de extrair o molde interno, cujo papel
fora cumprido. Restava providenciar dois outros acessórios internos
50 STRA D I V A RI U S

antes de fechar o corpo: o braço do Paganini, utilizando cola e três pre-


gos feitos à mão que atravessam o bloco superior; e a etiqueta, com
data e uma marca a fogo, perfeitamente visível através da abertura acús-
tica esquerda do violino. Finalmente, então, ele colava o tampo, utili-
zando um adesivo mais fraco para permitir futuros consertos.
Muitas horas haviam sido necessárias para esculpir o braço jun ta-
mente com o cravelhal e a voluta numa peça única de bordo. Stradivari
provavelmente fez uma série deles antes. Também aqui vamos encon-
trar a matemática por trás da voluta. No século XV I , o arquiteto italia-
no Giacomo Vignola havia estabelecido os princípios para o traçado
de espirais, partindo dos trabalhos feitos por Arquimedes quase dois
milénios antes. As volutas de Stradivari mostram que ele conhecia o
trabalho de ambos, pois a parte central da voluta é traçada numa espiral
arquimediana, com relativamente poucas voltas, para em seguida evo-
luir para uma espiral mais expansiva à maneira de Vignola na curva
externa. E m alguns violoncelos esta transição não é perfeita, mas nos
violinos temos um único e glorioso movimento de dois sulcos parale-
los, estreito no alto da voluta e se expandindo graciosamente em ambas
as direções à medida que dele se afasta. O movimento aparentemente
inevitável das linhas da voluta, a maneira como, de qualquer direção,
elas atraem o olhar, assim como a segurança e a maestria da entalhadura
mais uma vez deixam claro o que diferencia Stradivari de um simples
artesão. O génio é inconfundível.
Mas o instrumento nem de longe estava concluído. Stradivari h a-
via recortado o fundo e o tampo harmónico de maneira a se sobrepo-
rem às ilhargas. Isto lhe permitia agora compensar leves irregularidades
na forma das ilhargas, nos pontos, por exemplo, em que se mostra-
vam mais grossas que o normal, ou em que não haviam acompanha-
do perfeitamente o contorno do molde. O resultado é um instrumento
cujos delineamentos se mostram de entrada impecáveis; só u m exa-
me mais atento revela as imperfeições inevitáveis em qualquer obje-
to feito à mão.
ELE JÁ ERA UM GÉN I O " 51

Estabelecida a forma final do violino, Stradivari aplicava o último


detalhe de sua arte: o filete. Depois de traçar e entalhar os sulcos que
circundam a beira do instrumento, no tampo e no fundo, ele inseria a
incrustação em tiras anteriormente coladas umas às outras. É provavel-
mente nos cantos que mais se revela a habilidade de Stradivari; no
Paganini, vemos os característicos "ferrões de abelha" nos bicos, deta-
lhes minúsculos mas entalhados com beleza e precisão. O resultado
demonstra ao mesmo tempo delicadeza e segurança, um tipo de orna-
mentação que confere elegância sem cair na afetação.
Agora o Paganini estava pronto para ser envernizado. Este é o único
processo em que a simples dedução não basta; nem podemos encon-
trar nos registros restantes qualquer indicação direta da receita do ver-
niz de qualquer dos artesãos cremoneses.Temos apenas, na caligrafia
de Stradivari, um pedido de desculpas pela demora de um conserto
para o qual fora necessário esperar que o verniz secasse. O caminho
está portanto livre para infindáveis especulações, tanto a respeito da
fórmula utilizada por Stradivari quanto sobre seus efeitos na sonori-
dade. Mas o verniz do Paganini não pode ter sido grande segredo:
todos os luthiers de Cremona usavam algo parecido. Sua tonalidade
amarelo dourado e a leve maciez do toque têm tudo a dever à tradi-
ção cremonesa.

STRADIVARI fez o Paganini num dos períodos mais importantes de sua


vida. A mudança para a Piazza San Domên ico tinha um significado
que não se limitava ao tamanho maior da casa. Ela ficava a poucos pas-
sos dos ateliês de Amati e Guarneri, patente indicação de que já agora
Stradivari se considerava à altura dos melhores de Cremona. Mais ain-
da, ele estava rompendo seus vínculos com Pescaroli. A partir de agora,
Stradivari haveria de se concentrar em seus instrumentos. São tantos os
Strads do período entre 1680 e 1685 que ainda estão entre nós quanto
os dos anteriores quatorze anos. Não são apenas violinos. Um a harpa
52 STRAD IVARIU S

datada de 1681 parece ser autêntica. Suas sofisticadas entalhaduras re-


presentando crianças, sátiros e mulheres constituem mais uma prova da
habilidade de Stradivari como entalhador, para não falar de um gosto
do aparato que não podia cultivar em seus violinos. U m ano depois,
Stradivari fez um segundo violão. Mais importante ainda é que foi por
esta época que fabricou seus primeiros autênticos violoncelos. Têm as
mesmas dimensões avantajadas daqueles que mais de cem anos antes
saíam do ateliê de Andrea Amati, e a maioria teve o mesmo destino,
sendo reduzidos às dimensões modernas.
Desse período, não dispomos de um instrumento, e poucos mais
viria Stradivari a fabricar: a viola. Por toda a vida, exatamente como
seus contemporâneos cremoneses, Stradivari não parece ter dedicado
especial atenção a este terceiro membro da família dos violinos. O
motivo provavelmente estará nas modas que sempre mudavam entre os
músicos. Considerando-se o papel inicial da família do violino no acom-
panhamento do canto, assim como a predominância dos registros vo-
cais masculinos e mais graves no século XV I , é provável que a viola
tenha sido o primeiro membro da família a ser desenvolvido. Mas ela
acabaria sendo deixada para trás com a popularização dos registros mais
agudos e da tessitura também mais aguda e mais claramente audível do
violino. Quando Stradivari estava em seu auge, muito pouco se tocava
a viola. Sua procura só voltaria a aumentar com o advento do quarteto
de cordas, depois de 1780.
Nicolò Amati morreu em 1684, aos 88 anos. Os violinos que saí-
ram de seu ateliê nos últimos anos de vida não parecem feitos por um
velho, devendo em grande parte ter saído das mãos de seu filho
Girolamo. Foi no entanto sua morte — logo depois da morte de seu
grande rival alemão,Jacob Stainer, em 1683 — que derrubou a última
barreira entre Stradivari e o reconhecimento internacional. Não terá
sido por mera coincidência que foi também a esta altura que Stradivari
chegou ao auge de sua capacidade como artesão. O aperfeiçoamento
de sua arte é tão acentuado que mais tarde os historiadores não pode-
"ELE JÁ ERA UM GÉN I O "

riam deixar de deduzir que Stradivari desbancou o próprio filho de


Nicolò como herdeiro das ferramentas do grande luthier falecido. Mas
isso parece improvável. Seja como for, a beleza dos instrumentos pro-
duzidos por Stradivari no fim da década de 1680 não tem igual; nem
ele mesmo voltaria jamais a entalhar aberturas acústicas, embutir filetes
ou esculpir volutas com maior maestria. Simultaneamente, alterava o
desenho de seus violinos, aumentando suas dimensões de tal maneira
que se aproximou do modelo grande de Amati. Logo chegariam as
encomendas reais. Há indicações de que Jaime I I da Inglaterra enco-
mendou um conjunto de instrumentos em 1685. Cin co anos depois,
Cósimo de Medici, grão-duque da Toscana, comprou outro. Sua famí-
lia já não tinha o poder de que havia desfrutado na época da rainha
Catarina, mas com toda evidência continuava apreciando plenamente
os talentos de Cremona.
Em 1688, a filha mais velha de Stradivari, Giulia, casou-se com
Giovanni Farina, tabelião cremonês que frequentemente haveria de
representar o luthier em negócios futuros. Stradivari pudera dar a Giulia
um generoso dote, e certamente apoiava o casamento. Parece, aliás, ter
desempenhado o papel patriarcal na vida de todos os filhos. Francesco,
o mais velho, provavelmente juntou-se a ele como aprendiz aos 11 anos,
talvez um pouco mais tarde. Exaustivamente treinado, Francesco deve
ter contribuído para o aumento da produção do ateliê do pai. O se-
gundo filho, Alessandro, estava destinado ao sacerdócio; sua educação
haveria de prosseguir. Dos dois outros filhos, Caterina ainda tinha ape-
nas 16 anos em 1690; havia tempo mais que suficiente para escolher
um marido; e para Omobono, de 11, teria de ser encontrada uma pro-
fissão. Enquanto isso, também ele poderia prosseguir sua educação.
Stradivari deveria estar satisfeito. Só os seus violinos dão idéia de
inquietação, no momento em que ele dava início a toda uma década
de experimentação quase incessante. O ponto de partida deve ter sido
o que Stradivari ouvia dos próprios violinistas.Talvez aquele que era o
maior da época, Arcângelo Corelli, tivesse deixado claras suas necessi-
54 STRAD IVARIU S

dades.Violinistas compositores como ele atraíam seguidores em todos


os centros culturais da Itália. Seus concertos e sonatas apresentavam
dificuldades técnicas que teriam sido inconcebíveis para os antecessores,
acostumados a acompanhar a voz ou a dança, ou ainda a tocar em con -
juntos. Para causar a melhor impressão como solistas diante de grandes
plateias, no entanto, eles precisavam de violinos com uma sonoridade
mais fortemente projetada.
Stradivari tratou de buscar os meios para atender a essa exigência.
Àquela alt ur ajá havia fabricado violinos cujas formas baseavam-se em
pelo menos cinco moldes internos diferentes, três para instrumentos
de tamanho normal e dois para exemplares menores, provavelmente
para crianças. Em 1689, ele produziu um sexto molde, o maior até então,
a que deu o nome de "P G ", provavelmente "Piú Grande" ("Maior ").
Suas dimensões são muito semelhantes às do modelo grande de Amati.
Dois anos depois, o sétimo molde teria quase o mesmo comprimento
que o "P G ", mas uma largura significativamente menor. Mais seis me-
ses, e ainda um novo molde mantinha as lombadas estreitas, mas amplian-
do o comprimento e a largura na cintura. Finalmente, no fim de 1692,
um nono molde mantinha essas larguras mas diminuía o comprimento
de volta às dimensões dos violinos anteriores de Stradivari.
Seu ritmo de experimentação é impressionante. O verniz prova-
velmente mal tinha tempo de secar num novo modelo de violino e
Stradivari já começava a pensar em alterá-lo. Ele nunca se fixava numa
determinada forma; as caixas de ressonância dos violinos que fabricou
até 1697 têm comprimento de até 14 5/ 16 polegadas, contra as habituais
14 polegadas, e largura de apenas 8 polegadas, menor que o "padr ão"
de 8K polegadas. E m nenhum dos casos a variação é muito grande,
mas nos instrumentos mais estreitos, em especial, o comprimento fica-
va assim parecendo exagerado. Isto não quer dizer que esses "Strads
Longos" pareçam de alguma forma desproporcionais; podem ser con -
siderados tão elegantes quanto qualquer outro feito por Stradivari. E
apresentam uma outra característica importante. À medida que desen-
ELE JÁ ERA UM GÉN I O "

volvia seu modelo mais longo, Stradivari começou a reduzir o ar-


queamento do tampo e do fundo de seus violinos, o que eliminou a
necessidade de reduzir a altura numa súbita concavidade perto das
bordas. Os instrumentos que resultaram dessa experiência não são con-
sideravelmente mais finos quando vistos de perfil, mas efetivamente são
mais planos que quaisquer outros até então produzidos em Cremona.
O antecedente mais óbvio a ser lembrado é o trabalho de Maggini em
Brescia quase um século antes. Stradivari pode ter-se inspirado nele,
mas parece mais provável que a gradual diminuição do arqueamento
simplesmente fizesse parte de sua busca da sonoridade perfeita, testan-
do o que era possível conseguir com mudanças gradativas.
Os Strads mais longos ainda hoje parecem belos instrumentos. Seu
verniz é mais vermelho e firme que nos violinos anteriores, com uma
transparência quase absoluta da cor. Ao fazê-los, Stradivari estava no
auge como artesão; e o seu modelo alongado contribuiu mais que
qualquer outra iniciativa até então para fazer evoluir a concepção do
violino. Mas não foi, em última instância, um modelo bem-sucedido.
A maior força de projeção sonora correspondia à perda de certa suavi-
dade; e é possível que os violinistas tenham considerado difícil o ma-
nejo do instrumento. Diz-se que Corelli teria sido proprietário de um
Strad longo particularmente apurado produzido em 1693; mas prefe-
ria tocar o seu Albani, fabricado no Tir ol a partir de um modelo de
Jacob Stainer.
Entre 1695 e 1697, a produção de Stradivari diminuiu considera-
velmente, quase como se estivesse lutando com a forma. Até que, em
1698, ele voltou ao antigo traçado Amati, fabricando violinos de for-
ma semelhante aos que eram produzidos cinquenta anos antes por
Nicolò Amati. O modelo alongado havia sido um beco sem saída.
Naquele mesmo ano, no dia 20 de maio, Francesca Stradivari mor-
reu. Quaisquer que tenham sido as circunstâncias que os uniram, o fato
é que ela e Antonio haviam estado casados durante trinta anos, por
toda a carreira de Stradivari como luthier independente. A lista de des-
56 STRAD IVARIU S

pesas para o funeral é um dos raros documentos pessoais de que dispo-


mos sobre a vida de Stradivari. Provavelmente fala mais dos ritos
cremoneses do que dos sentimentos de Stradivari por sua mulher, mas
parece evidente que ele se preocupou em lhe dar uma despedida à al-
tura. Três itens da nota de despesas somando 182 liras [700 libras] são
bastante eloquentes: quatorze padres e um menino corista: sete liras; 36
padres dominicanos: 18 liras; 16 padres franciscanos: 15 liras, dez soldi.
Stradivari tinha agora 54 anos. Francesco já estaria trabalhando com
ele, a esta altura, há 15 anos. Andrea Guarneri e Francesco Ruger i já
haviam entregado seus ateliês aos filhos. Estaria na hora de Stradivari
fazer o mesmo?
Capí t u l o Quatro

" E L E R A R A M E N T E SE V E S T I A
DE O UTRA FO RMA

A época de ouro de Stradivari,


seu declín io e morte

O ANO DE 1698 foi efetivamente crítico para Stradivari, mas não por-
que houvesse qualquer indício de que ele poderia estar diminuindo a
produção ou se aposentando para confiar os trabalhos a Francesco. E
no entanto praticamente certo que seus filhos tenham desempenhado
um papel no que haveria de se seguir. São muito poucos os fatos que
podem ser determinados a essa distância de 300 anos, e todos reque-
rem interpretação. Efetivamente dispomos, no entanto, de dois outros
fatos decisivos que podem ser datados daquele mesmo ano.
O primeiro é a volta a Cremona do filho mais novo de Stradivari,
Omobono. Sóficamossabendo que ele se fora para Nápoles pelo testa-
mento do pai, redigido trinta anos depois. E só podemos identificar 1698
como o ano em que lá se encontrava porque se trata do único ano de sua
vida adulta em que ele não aparece nos registros de censo relativos à casa
do pai. A primeira redação do testamento deixa claro que Stradivari não
aprovava a aventura napolitana do filho: "Se ele fizer questão de alguma
coisa, que se responsabilize pela dívida das três mil liras que gastei com
ele quando estava em Nápoles e desde o seu retorno." As redações pos-
teriores reduzem a "dívida" a duas mil liras e esclarecem que Omobono
ficou ausente durante dois anos e meio, ao passo que os registros censitários
de 1699 já indicam novamente sua presença em Cremona. A discrepân-
58 STRAD IVARIU S

cia quanto ao período de ausência só pode ser explicada mediante falha


do pároco que funcionava como coletor de dados para o censo ou da
própria memória de Stradivari, trinta anos depois. Parece provável, no
entanto, que Omobono só tenha viajado para Nápoles por iniciativa de
sua mãe, preocupada em que o filho mais novo tivesse oportunidade de
abrir caminho por si mesmo na vida. À morte dela, ele foi chamado de
volta a Cremona para tornar-se o mais novo aprendiz do pai.
A outra mudança que podemos detectar a partir de 1698 é sutil, mas
não menos importante. Dessa época em diante, as volutas de Stradivari,
um dos mais sublimes exemplos de sua maestria e habilidade, parecem
tornar-se obra de outras mãos. O que se pode deduzir é que, com a che-
gada de um assistente mais jovem, Francesco, já agora com 27 anos, final-
mente tenha assumido maiores responsabilidades. O entalhe das volutas
é uma tarefa facilmente separável, o tipo do trabalho que pode ser dele-
gado: pode ser ensinado, tem um caráter intrinsecamente satisfatório e
não apresenta consequências na sonoridade do violino. Surge então, na-
turalmente, a incomoda questão de saber como um elemento tão carac-
terístico de Stradivari podia ser confiado a um assistente. Duas respostas
são possíveis. A primeira é que o génio de Stradivari não se limitava à
goiva, estendendo-se à maneira como padronizava e supervisionava, com
isto garantindo que seusfilh osfizessem um trabalho da mais alta quali-
dade. Ele não terá sido propriamente um supervisor complacente. A par-
tir de 1698, com efeito, provavelmente devemos encarar os violinos de
Stradivari como produtos de um ateliê, e não de um único homem. A
segunda resposta é que, aos olhos de um purista, as volutas de Francesco
não são tão boas quanto as do pai. Há nelas algo de hesitante e anguloso,
em comparação com as de Strads anteriores.Trata-se no entanto de uma
crítica de somenos importância, se pensarmos no surto de genialidade
evidenciado nesses violinos.
Pois o fato é que a presença de dois ajudantes parece ter liberado
Stradivari. Na década de 1690, ele se havia aventurado em todas as
possíveis experiências com o tamanho e a forma do violino tradicio-
"ELE RA RA MEN TE SE VESTIA DE O U TRA FO RMA " 59

nal, e agora podia fazê-las convergir em grandes resultados. Ele voltou


ao molde " P G " criado em 1689, o que no entanto não constituiu real-
mente uma forma de regressão. Os anos passados trabalhando no mo-
delo alongado haviam permitido perceber um detalhe importante: o
corpo mais plano propicia maior força de projeção sonora sem tornar
o violino excessivamentefrágil.A eliminação da concavidade nas bor-
das, contraproducente para a sonoridade — o único verdadeiro defeito
na concepção de Amati —, haveria de revelar-se crucial. Pelo início da
década de 1700, o ateliê produzia violinos cujas caixas de ressonância
servem ainda hoje de modelo. Stradivari continuaria fazendo experiên-
cias pelo resto da vida, mas sempre a partir dessa forma básica; devia
saber que não podia fazer melhor.
O aumento da mão-de-obra também teve um efeito imediato na
produtividade do ateliê. Chegaram até nós pelo menos 25 violinos e
quatro violoncelos dos anos de 1698 e 1699. É possível que Stradivari
buscasse, no trabalho, consolar-se da morte da mulher. Se assim foi, o
tratamento parece ter dado resultado: no dia 24 de agosto de 1699, ele
se casou com Antónia Zambelli, de Cremona, então com 35 anos. Pa-
receria tentador envolver esse casamento numa aura sentimental: viú-
vo enlutado mas ainda vigoroso aos 55 anos encontra reconforto e amor
ao lado de mulher mais jovem, porém madura. Mas os violinos de
Stradivari dão conta de uma busca obsessiva da excelência que dificil-
mente poderia ser conciliada com a idéia de que o luthier podia dar
muita atenção à mulher. Provavelmente havia na decisão mais bom senso
do que romance. Para Stradivari, muito ainda precisava ser realizado, e
neste sentido a regularidade da vida doméstica seria de grande vanta-
gem. Para Antónia, que não trazia um dote para o casamento, o famoso
artesão e a segurança que ele representava devem ter parecido infinita-
mente preferíveis à condição de solteirona que seria o destino da maioria
das mulheres de 35 anos em sua situação.
Assim é que começou o "período de ouro", quando a busca da
perfeição por parte de Stradivari levou aos violinos e posteriormente
60 STRA D I V A RI U S

aos violoncelos que ainda hoje são os mais valorizados do mundo. A


partir de 1700, aproximadamente, o ateliê passou a produzi-los em
quantidades cada vez maiores. Em termos acústicos, naturalmente, aquela
alteração final na concepção da caixa de ressonância constitui seu atri-
buto mais importante, mas há muito mais. Ao lado do vermelho pro-
fundo do verniz — outra inovação surgida nos anos dos Strads longos
—, o amarelo dourado dos Amati e dos instrumentos anteriores do
próprio Stradivari parece sem graça. As volutas são ressaltadas com uma
orla negra que, quando nova, certamente servia para proclamar a habi-
lidade do entalhador, mas já hoje mal pode ser distinguida em quase
todos os exemplares. As bordas espessas e os bicos mais largos conferem
a esses violinos um aspecto quase masculino. Tudo neles fala de auto-
confiança, do desejo do luthier de chamar a atenção para seu próprio
desempenho.
A expressão "período de ouro" pode ser usada habitualmente em
relação aos instrumentos de Stradivari, mas também faria sentido se
aplicada às circunstâncias da sua vida pessoal: riqueza e abundância muito
distantes das lutas e incertezas de sua vida anterior. Fosse ou não aque-
le um casamento de amor, Stradivari haveria de registrar em seu testa-
mento "o afeto que [Antónia havia] sempre demonstrado por ele", e
sua segunda família seria tão numerosa quanto a primeira. Francesca
nasceu pouco mais de um ano depois do casamento. Deve ter sido as-
sim batizada em memória da primeira mulher do pai, um gesto tocan-
te e de forma alguma inusitado, mas também um definitivo lembrete
da antecessora para sua mãe. Seguiram-se quatro filhos, três dos quais
sobreviveram à primeira infância: Giovanni Battista, Giuseppe e Paolo,
o último nascido em janeiro de 1708, quando o pai tinha 63 anos e a
mãe, 43.
O maior luthier de Cremona ia de vento em popa, mas o mesmo
não se podia dizer de seus concorrentes. Enquanto o ateliê de Stradivari
ia chegando ao apogeu, pouco trabalho restava para os demais. O se-
gundo filho de Stradivari, Alessandro, tornou-se padre da igreja de San
"ELE RA RA MEN TE SE VESTIA DE O U TRA FORMA " 61

Raffaele em Cremona em 1705. O benefício eclesiástico foi parcial-


mente financiado com a hipoteca de três mil liras [dez mil libras] que
seu antecessor detinha sobre o ateliê Amati. Após a morte do pai, os
filhos de Nicolò haviam afundado em dívidas; e nunca seriam capazes
de pagar a Alessandro os juros de cinco por cento que lhe deviam anual-
mente, de modo que ele acabou tomando posse também de uma parte
da própria residência dos Amati.Temos aqui uma contundente ilustra-
ção da maneira como a fortuna da família Stradivari aumentou, en-
quanto declinava a dos outros luthiers.
O ano de 1705 foi também aquele em que Stradivari adotou um
novo molde interno batizado d e "P " ("Prima"?), para complementar o
formato " P G " inaugurado em 1689. Os dois têm dimensões muito
semelhantes, e o ateliê haveria de utilizá-los paralelamente até a morte
de seu mestre. Cabe assim especular quanto ao objetivo do novo mol-
de. Ele certamente teria contribuído para o bom andamento da produ-
ção numa época de maior demanda, mas a maneira como os modernos
luthiers trabalham também indica uma outra possibilidade: agora
Francesco era autorizado a fazer seus próprios violinos. Faz todo sen-
tido, num ateliê, que cada artesão tenha o seu próprio molde; desse
modo, cada um pode trabalhar em seu próprio ritmo. Seguir-se-ia um
terceiro molde " G " ("Grande"?), provavelmente em 1708. Er a ligeira-
mente maior que os dois outros, mas tampouco veio a desbancá-los.
Talvez Omobono também estivesse recebendo maiores responsabili-
dades. Se a teoria estiver correta, deveríamos ser capazes de estabelecer
quem utilizava qual forma. O fato de isto não se ter revelado possível
até agora não deixa de ser um tributo à padronização do ateliê, mas
também revela que Stradivari, tendo delegado a Francesco as volutas,
continuou guardando para si as outras partes delicadas do trabalho.
Outra característica dos instrumentos do período de ouro de
Stradivari é o fato de serem feitos com magníficas madeiras. É possível
que isso se explique porque Stradivari tinha meios agora para comprar
os melhores materiais, ou talvez tenha sido simplesmente sorte. Seja
62 STRA D I V A RI U S

como for, por volta de 1709 ele comprou um bloco de bordo de qua-
lidade particularmente boa, suficientemente grande para a extração de
fundos de uma peça única, mesmo no corte radial. Seu aspecto visual é
particularmente belo, e pode ser encontrado constantemente nos vio-
linos produzidos pelo ateliê nos seis ou sete anos subsequentes. O Viotti
foi um dos primeiros. Feito em 1709 a partir do molde "P G ", ainda
hoje atrai irresistivelmente o olhar com seu fundo do tipo "pele de
tigre". Qual não seria então o efeito logo depois de sair das mãos do
artesão, com o verniz ainda iridescente, em seu vermelho insondável?
É o segundo de nossos cinco violinos.
A esta altura, o ateliê de Stradivari voltara a produzir violoncelos,
depois de um intervalo de seis anos. Este hiato é fácil de explicar.
Stradivari deve ter ficado tão entusiasmado com as possibilidades dos
violinos feitos de acordo com esse novo modelo que durante um certo
tempo concentrou todas as suas energias em sua fabricação. Passados
alguns anos, no entanto, começou a ponderar quais os princípios que
poderia aplicar também à fabricação dos irmãos maiores.
O resultado foi uma reavaliação radical da concepção dos vio-
loncelos: caixas de ressonância que em seu abaulado mais plano re-
fletem o que Stradivari havia aprendido com seus violinos, e cujo
comprimento, de 29 polegadas, é hoje considerado o ideal. Esses
violoncelos não apenas enfrentam com sucesso o desafio da projeção
sonora, comum a todos os instrumentos de cordas, como também al-
cançam um equilíbrio ideal entre a presença dos baixos e a vibração
dos agudos, que vem a ser um problema mais específico destes ins-
trumentos. Eles haveriam de tornar-se um modelo para sucessivas ge-
rações de fabricantes.
Stradivari continuou a usar por mais de vinte anos o molde " B "
("Buono"?) que serviu para a construção desses violoncelos. Em 1712,
utilizou-o para fabricar o terceiro dos nossos seis instrumentos, o
violoncelo Davidov. Adquirido por um dos últimos Medici a governar
Florença, o incompetente e intolerante Cósimo I I I , este glorioso ins-
ELE R A R A M E N T E SE V E S T I A D E O U T R A F O R M A 63

trumento laranja avermelhado provavelmente representa o último ca-


pítulo da longa história comum dessa família com a cidade de Cremona.

EM 1714, Stradivari completou 70 anos. H á trinta anos era ele o


maior luthier da Europa. Nin gu ém poderia prever a quase-idolatria
que lhe seria conferida pela posteridade, mas ele certamente se havia
tornado um dos cidadãos mais prósperos de Cremon a. Somente no
ano de 1714, ele fez dois investimentos no total de 12 m il liras [50
mil libras]. U m deles foi numa loja de massas que logo veio a falir,
embora Stradivari não perdesse totalmente a sua parte no n egócio.
O outro foi um empréstimo que deu a Stradivari a hipoteca sobre
um vasto jardim fora das muralhas de Cremon a. Não é difícil ima-
ginar que o dito popular "r ico como Stradivari" realmente torn ou-
se comum nas ruas de sua cidade, como sustentavam autores do
século X I X .
O aspecto mais interessante do investimento na loja de massas é o
homem que apôs sua assinatura na ata de fundação da sociedade como
testemunha. Gasparo Visconti nasceu em Cremona e durante cinco anos,
pelo fim do século XV I I , estudaria violino com Corelli. Faria posterior-
mente bem-sucedida carreira como solista em paragens tão distantes
quanto Londres. A presença de sua assinatura nesse documento é a pr i-
meira prova de que Stradivari tinha relações amistosas com alguns dos
grandes músicos de sua época. Outra prova dessa natureza surge em
1731,17 anos mais tarde, quando Omobono Stradivari ajudou a pro-
videnciar o casamento entre um vizinho e a filha de outro virtuose,
Tommaso Vitali. Para isto, viajou até a casa de Vitali em Modena, a cer-
ca de 160 quilómetros. Além disso, em 1715 o diretor-geral de música
de Dresden, Jean-Baptiste Volumier, chegou a Cremona. Igualmente
um bom violinista, amigo de Johann Sebastian Bach , esperou três me-
ses até que ficassem prontos os 12 violinos que havia encomendado a
Stradivari. Já dá para imaginar o ateliê da Piazza San Domên ico como
64 STRA D I V A RI U S

ponto de encontro de músicos, discutindo ideias e fazendo sugestões


ao grande mestre.
Parece portanto compreensível que não só a produção chegasse ao
auge ao longo da década que começou em 1710, mas também que os
anos intermediários desse período assistissem a maior concentração de
obras-primas de Stradivari que em qualquer outro período. Acompa-
nharemos duas delas. O Lipinski foi fabricado em 1715. Feito a partir
do molde " G " , era um dos maiores violinos até então produzidos pelo
ateliê. Para o fundo, foram necessárias quatro peças de bordo: as duas
fatias habituais cortadas radialmente precisaram ser ampliadas com duas
inserções nas "ancas", na parte inferior mais larga do instrumento. A
maneira como Stradivari se virava com os materiais disponíveis é bem
típica. Ele só era perfeccionista nas áreas que importavam realmente, e
deve ter sabido que este não era o caso: o Lipinski prestaria constantes
serviços durante mais de 200 anos.
Os principais biógrafos de Stradivari, os irmãos H ill, podiam ter
em mente o Lipinski quando escreveram: "Stradivari deve ter-se dado
conta de que seu trabalho havia adquirido uma amplitude e solidez
que, em mãos menos hábilidosas, poderia beirar o canhestro. Decidiu-
se então a percorrer novamente seus próprios passos, dando-nos ime-
diatamente, entre outros, um exemplar que na leveza de sua concepção
nos conduz a uma época dez anos anterior." Eles se referem à decisão
de Stradivari, tomada em 1716, de fazer o Messias, o quarto dos nossos
violinos. Feito a partir do molde "P G ", com um fundo em duas peças
e recoberto com o clássico verniz vermelho de Stradivari, o Messias
parece destacar-se do resto da produção do ateliê por seu desenho pla-
no, especialmente no tampo, pelas bordas vivas e as "aberturas acústicas
vigorosamente oblíquas". Haveria de tornar-se o mais célebre de to-
dos os Strads, exercendo sobre sucessivos donos um poder de sedução
que parece quase místico.Talvez o primeiro deles tenha sido o próprio
Stradivari. Em 1715, ele precisara de três meses para atender à enco-
ELE RA RA MEN TE SE VESTIA DE O U TRA FO RMA " 65

menda de Volumier; mas o Messias, feito um ano depois, nunca seria


vendido. Ainda se encontrava na posse do luthier no dia em que ele
morreu.

POR VOLTA DE 1720, Stradivari já estava com setenta e tantos anos e o


período de ouro chegava ao fim. Os violinos começam a dar sinais de
idade em sua confecção: as pontas dos bicos são mais curtas, a en -
talhadura, menos hábil, e as aberturas acústicas, posicionadas com me-
nos exatidão. Além disso, eles são feitos com materiais de menor
qualidade. A partir de 1722, o ateliê voltou a utilizar bordo nativo, ou
oppio, cujas ondulações, menores, não conferem o mesmo destaque ao
verniz. Tratava-se possivelmente de uma tentativa de cortar os custos.
Todo o norte da Itália sofreu uma recessão económica na década de
1720, e o negócio dos luthiers foi tão afetado quanto qualquer outro. A
demanda caiu abaixo da produção. A partir de então, considerável par-
te da produção do ateliê ia para o estoque.
Se as condições fossem melhores, Stradivari talvez tivesse estudado
a possibilidade de confiar a gestão a um dos filhos. É mais provável que
nem Francesco nem Omobono tivessem demonstrado capacidade ou
ambição para assumir o controle. O primeiro era no mínimo conscien-
cioso em seu trabalho. Em seu testamento, Stradivari refere-se a ele como
"o principal apoio profissional do mencionado Testador, tendo-se
mostrado sempre obediente e obsequioso às ordens do Testador".
Omobono, por sua vez, tinha uma educação mais completa que o pai,
sendo um homem de muitas relações e frequentador de pelo menos
cinco irmandades religiosas, as únicas verdadeiras organizações sociais
da época.Volta e meia ele prestava algum serviço ao pai, cobrando uma
dívida ou ajudando a providenciar o casamento com o filho de Vitali.
Mas parece evidente que era poupado no ateliê, podendo-se concluir
que sua contribuição era secundária.
66 STRA D I V A RI U S

Cabe perguntar se algum dos irmãos, se tivesse a oportunidade de


bater asas, teria ido longe, ou se ambos na realidade se sentiam mais à
vontade trabalhando sob estrita supervisão do pai. E terá cada um deles
realmente optado por ficar solteiro, vivendo a vida inteira na casa do
pai? Deve ter sido muito conveniente para Stradivari dispor de dois
artesãos dignos de confiança, livres de problemas externos. Ainda as-
sim, ele deve ter-se perguntado eventualmente o que aconteceria com
seu negócio e sua arte depois que morresse. Um a possibilidade é que
estivesse de olho num terceiro ajudante no ateliê. Pois o fato é que há
algo extremamente curioso nos violinos feitos a partir da década de
1720: o aparente estreitamento das aberturas acústicas. Ele resultaria
possivelmente da mudança do ângulo de incisão do instrumento usa-
do para talhar as fendas. Stradivarifinalmenteconfiava a alguém mais a
responsabilidade por suas aberturas acústicas.
Este alguém não pode ter sido Francesco ou Omobono; as abertu-
ras acústicas eventualmente feitas por eles não se assemelham a essas. A
possibilidade mais provável é Giovanni Battista, o filho mais velho do
segundo casamento de Stradivari, que nascera em 1703 e agora chega-
va à maturidade. Teria sido bem típico do velho patriarca determinar
que os filhos do segundo casamento seguissem carreiras semelhantes às
dos filhos do primeiro. A filha mais velha, Francesca, haveria de tornar-
se noiva, não de um habitante de Cremona, como sua antecessora, mas de
Cristo. E m 1719, ela entrou para o Convento da Sagrada Anunciação
de San Giorgio, num subúrbio de Mântua, passando a chamar-se Irmã
Rosa. O segundo filho a sobreviver à primeira infância, Giuseppe, tor-
nar-se-ia padre, como Alessandro. Seria ordenado em 1728. Restavam
assim o filho mais velho e o mais novo do segundo casamento, Giovanni
Battista e Paolo. Para este seria em dado momento encontrada uma
profissão — Stradivari provavelmente tivera outrora os mesmos planos
para Omobono. Giovanni Battista, por outro lado, quase certamente
esteve sempre destinado ao ateliê, onde pode ter começado como apren-
diz em algum momento entre os 11 e os 13 anos de idade, entre 1714
"ELE RA RA MEN TE SE VESTIA DE O U TRA FO RMA " 67

e 1716. Se assim foi, e se apenas poucos anos depois seu pai efetiva-
mente lhe havia confiado a entalhadura das aberturas acústicas, tarefa
que muito raramente havia jamais delegado, parece perfeitamente pos-
sível a idéia de que visse nele um sucessor em potencial.
Em questão de poucos anos, no entanto, antes mesmo de com-
pletar 24 anos, Giovanni Battista estaria morto. As pretensões que
Stradivari acaso alimentasse a respeito do filho seriam enterradas com
ele no recém-comprado túmulo da família, na Capela do Rosár io da
Igreja de San Domên ico. Golpe devastador para qualquer pai, a per-
da deve ter evocado para o octogenário luthier prenúncios de sua
própria morte. Foi por esta época que ele finalmente transferiu a
Francesco a responsabilidade pelos violoncelos. Os instrumentos
maiores simplesmente exigiam mais esforço do que ele era capaz agora.
Dentro de dois anos ele estava preparado para morrer. O ano de 1729
está entalhado em sua pedra mortuária, juntamente com seu nome,
numa inscrição que só parcialmente recobre o nome dos anteriores
ocupantes do túmulo.
Se a prematura lápide funerária não fosse suficiente como indica-
ção do estado de espírito de Stradivari, 1729 é também o ano em que
ele redigiu seu testamento.Trata-se de um documento notável, consis-
tindo num rascunho manuscrito, o mais longo texto autógrafo que nos
foi deixado por qualquer dos grandes luthiers clássicos, acompanhado
de três versões legais cada vez mais complexas. O que realmente cha-
ma a atenção é aquele primeiro esboço. A caligrafia é vigorosa; quais-
quer que sejam os indícios deixados pelos violinos nessa época, é
evidente que o autor ainda é capaz de empunhar uma pena. Já o con-
teúdo fala de outra coisa. Stradivari designa Francesco como o mestre
ou dono (pairo) do ateliê, do depósito (logo, de seu conteúdo) e, de
maneira tocante, do "quarto onde durmo e onde agora me encontro".
Pela primeira vez, ele efetivamente designava um sucessor.
Nessa primeira redação do testamento, só encontramos azedume
no que diz respeito a Omobono, o outro filho luthier de Stradivari; a
68 STRAD IVARIU S

viagem a Nápoles não havia sido esquecida. Já na última versão oficia-


lizada pelo tabelião ele efetivamente recebe algo, assim como todos os
outros filhos: rendimentos modestos, suficientes para levar uma vida
acanhada, mas não para a independência. Não se concretizou na versão
final a indicação, numa das versões intermediárias, de que Omobono
poderia ter o direito de escolher algumas das ferramentas. Francesco
seria, para todos os efeitos, o herdeiro escolhido pelo pai, sendo exor-
tado acima de tudo, e muitas vezes, a manter a família unida.
A versão final do testamento foi concluída no convento dos padres
agostinianos ligado à Igreja de Santo Agostinho em Cremona, no dia 6
de abril de 1729. Stradivari o assinou na presença de um tabelião e de
dois assistentes, além de sete padres agostinianos. Foi a única ocasião
em que recorreu a essa firma de tabeliães; e a própria decisão de for-
malizar o testamento num convento era inusitada: normalmente, a coisa
teria sido feita no escritório do tabelião. Parece claro que Stradivari
queria manter a existência do testamento desconhecida de seus
beneficiários. O desejo de controlar, de promover surpresas de além-
túmulo vai ao encontro do tom ditatorial do texto propriamente dito.
Nenh um outro documento lança tanta luz sobre o temperamento e a
vida do maior luthier do mundo. Serve até para nos dar acesso à melhor
avaliação contemporânea de seus próprios instrumentos: uma parte dos
legados em dinheiro é feita em forma de violinos; e Stradivari avalia
seis deles em mil liras cremonesas. Para o próprio Mestre, portanto, um
de seus violinos valia 166 liras [700 libras].Todo este conjunto de do-
cumentos só seria descoberto em 1995 por pesquisadores que investi-
gavam outro luthier cremonês. Ainda se encontravam no arquivo dos
tabeliães que os haviam guardado.
Preparado para a morte, livre de muitas responsabilidades, Stradivari
continuava a trabalhar. A rotina era tudo que conhecia. Terá jamais
pensado, ao começar um violino, que talvez não pudesse concluí-lo?
Se pensou, deve ter-se sentido estimulado pela idéia, e não inibido. Pois
os violinos que fabricou depois de 1730 estão entre os mais extraordi-
"ELE RA RA MEN TE SE VESTIA DE O U TRA FORMA " 69

nários. Houve uma época, na primeira metade do século X X , em que,


sempre que um grande solista tocava um Strad, era necessariamente da
década de 1730. É possível, como houve quem sugerisse, que a cres-
cente surdez tenha levado Stradivari a buscar uma sonoridade cada vez
mais vibrante; mas é mais provável que ele fosse galvanizado por uma
motivação muito maior — a concorrência.
No início do século XV I I I , o ateliê de Stradivari tinha praticamente
eclipsado seus rivais de Cremona. Ainda assim, algumas famílias conseguiam
ir em frente,entre elas os Guarneri. O primeiro deles,Andrea, fora discípulo
de Nicolò Amati. Dois de seusfilhoso seguiram no metiê; um deles, Pietro,
foi para Mântua, enquanto o outro, Giuseppe, permaneceu em Cremona;
nascido em 1666, ele passaria toda a vida à sombra do famoso vizinho.
Giuseppe também transmitiu seus conhecimentos a doisfilhos;o mais velho,
também chamado Pietro, igualmente partiria em demanda de horizontes
mais brilhantes, em seu caso, Veneza. O outro, Giuseppe Guarneri "dei
Gesú" (em suas etiquetas encontramos sob uma cruz o monograma"IHS",
abreviatura grega de Jesus), permaneceria em Cremona.
Comparada aos setenta anos de Stradivari, a década e meia de es-
plendor de Del Gesú foi breve, mas começou por volta de 1730. Com
toda evidência, ele foi influenciado tanto por Stradivari quanto pelo
pai (cujo toque, numa pungente inversão da prática adotada por
Stradivari, pode ser constatado nas volutas de muitos dos instrumentos
feitos pelo filho), mas foi mais longe que ambos. Para qualquer solista
virtuose, os violinos Del Gesú são as únicas alternativas sérias aos Strads:
profundos, poderosos e sensíveis. Talhados algo toscamente, às vezes
mesmo descuidados, há poucos indícios de que tenham sido muito
valorizados em vida de seu realizador, pelo menos no que diz respeito
à maioria dos compradores. Stradivari, todavia, sabia o que estava acon-
tecendo. Consciente da presença de seu jovem rival, decidiu-se a man-
ter seus próprios padrões.
O Khevenhiiller, quinto e último de nossos violinos, demonstra a
longevidade do génio de Stradivari. Construído em 1733, a partir do
70 STRA D I V A RI U S

molde " G " , o maior de todos, com um fundo em peça única e um


verniz marrom avermelhado, ele tem uma sonoridade esplêndida.
Dentre os violinos da última fase do ateliê de Stradivari, parece ser
um dos que foram inteiramente feitos pelo próprio Mestre. Talvez
isto esteja ligado a sua outra característica notável, embora não sem
paralelo: a inscrição manuscrita em sua etiqueta,"Anni 90" ("90 anos
de idade" ou "n o 90° an o"). E m cerca de dez outros violinos encon-
tramos inscrições semelhantes nas etiquetas, sendo o mais antigo de-
les de 1727, com seu "fatto de An n i 83". O mais provável é que as
inscrições tenham sido feitas por um posterior proprietário dos ins-
trumentos, embora nesse caso ele deva ter sido o dono de todos eles.
Ain da assim, permanece a inquietante possibilidade de que seja o
próprio velho /wríz/erdirigindo-se anos através dos séculos:"Sim,posso
não ser mais tão jovem assim, sim, posso ter sido obrigado a transferir
meu n egócio a filhos não tão talentosos, mas ainda sou capaz de fazer
meus violinos." Tenham sido inscritos posteriormente ou n ão, e na
ausência de qualquer registro oficial da idade de Stradivari, são esses
rabiscos orgulhosos mas trémulos que nos fornecem a primeira in di-
cação de sua data de nascimento.
Deve ter sido por volta da época em que Stradivari fez o Khevenhiiller
que foi colhido o único depoimento vagamente autêntico de uma tes-
temunha ocular sobre o mestre luthier. Escreve François Fétis, o pr i-
meiro biógrafo de Stradivari, no meado do século X I X :

Poliedro, antigo primeiro violino na Capela Real de Turim, e que


morreu há poucos anos, em idade muito avançada, declarou que seu
mestre conhecera Stradivari, e que gostava de falar dele. Era, dizia, alto
e magro. Tendo geralmente na cabeça um gorro de lã branca, no in -
verno, e de algodão no verão, ele trazia sobre as roupas um avental de
couro branco quando estava trabalhando; e como estava sempre traba-
lhando, raramente se vestia de outra forma.
"ELE RA RA MEN TE SE VESTIA DE O U TRA FO RMA " 71

Aqui temos uma forte imagem do génio viciado em trabalho. Só mes-


mo um estraga-prazeres reclamaria do fato de o mestre de Poliedro,
Gaetano Pugnani, parecer lembrar-se de coisas demais, para alguém que
não passava dos dez anos de idade quando Stradivari morreu.
Enquanto isso, Stradivari continuava a dirigir os negócios da famí-
lia. No mesmo ano em que fez o Khevenhiiller, ele desembolsou 20 mil
liras [80 m il libras] para fazer de Paolo, seu filho mais novo, sócio
minoritário de um comerciante de tecidos cremonês. Quatro anos
depois, em setembro de 1737, encontrou uma mulher para Paolo, ou
pelo menos aprovou a união, supervisionando a transferência formal
para ele do dote de ElenaTemplari. Finalmente ele podia esperar futu-
ras gerações de Stradivari, prósperas graças ao dinheiro que havia
ganhado com seus violinos.
A transferência desse dote seria o último ato formal do velho luthier.
Em março daquele ano, já havia enterrado sua segunda mulher, Antónia;
e agora também ele se aproximava da morte. Desde 1734, o ritmo de
trabalho de Stradivari finalmente havia diminuído. Mas não chegara a
ser interrompido. Sabe-se da existência de pelo menos três violinos
daquele último ano. A posteridade atribuiu a um deles a condição de
sua última obra, dando-lhe apropriadamente o título de "Ch an t du
Cygn e" (canto do cisne). Antonio Stradivari morreu no dia 19 de de-
zembro de 1737. Foi enterrado ao lado da mulher na Igreja de San
Domên ico, em frente à casa onde haviam vivido juntos durante quase
quarenta anos.
Capí t u l o Ci n co

' TÃO ÚNI CO E TÃO B E L O "

O s violin os de Giuseppe Tartin i


e Paolo Stradivari

Sonhei certa noite, em 1713, que havia vendido minha alma ao diabo.
Tudo obedecia a minhas ordens; meu novo criado se antecipava a cada
um dos meus desejos e os superava todos. Finalmente, tive a idéia de
entregar-lhe meu violino, para ver o que faria com ele. Foi grande o
meu espanto ao ouvir uma sonata tão bela e original, tocada com tan-
ta superioridade e inteligência, que eu nunca tinha ouvido algo pare-
cido, nem mesmo imaginado que uma coisa tão encantadora fosse
possível. Senti tanto prazer — arrebatamento, surpresa — que perdi o
fôlego: a violência daquela sensação me acordou. Imediatamente lan-
cei mão do violino, tentando reproduzir os sons que ouvira, mas em
vão. A peça que compus então é verdadeiramente a melhor que jamais
escrevi, e dei-lhe o nome de "Sonata do Diabo", mas ela é tão inferior
ao que eu havia ouvido que se eu pudesse me sustentar de outra ma-
neira teria quebrado o meu violino e abandonado a música para sempre.

O RELATO DE GIUSEPPE TARTINI sobre a composição de sua obra mais


famosa evoca a familiar imagem de violinistas de pacto com Satã, ainda
hoje em vigência. Ela provavelmente é responsável por boa parte da
fama de Tartini ainda hoje, embora não faltem razões melhores que
esta. Mas o que o traz a esta narrativa é o fato de ter sido proprietário
de um de nossos cinco violinos — o imponente Lipinski, confecciona-
74 STRA D I V A RI U S

do por Stradivari em 1715. Ele pode inclusive ter sido seu primeiro
comprador.
Tartini nasceu em Pirano em 1692, filho de um nobre muito cató-
lico. Recebeu seus primeiros ensinamentos musicais numa escola reli-
giosa, até que abandonou a idéia de envergar a batina e foi estudar direito
na Universidade de Pádua. Lá, continuou a tocar violino e começou a
ensinar o instrumento, mas parece ter-se dedicado sobretudo à esgri-
ma — disciplina em que se mostrava capaz de derrotar qualquer
contendor. Chegou inclusive a considerar a possibilidade de uma futu-
ra carreira de ensino dessa arte marcial em Nápoles.
Todas esses interesses, contudo, foram postos de lado quando Tartini
casou-se secretamente com uma aluna. Ambos tinham menos de vinte
anos de idade. Além disso, Elisabetta era filha de um subordinado do
arcebispo de Pádua, o cardeal Giorgio Cornaro, que não se encantou
propriamente com aquele casamento. Deserdado pelos pais e submeti-
do a medidas disciplinares pelo vingativo cardeal,Tartini fugiu ao mes-
mo tempo de Pádua e da noiva, acabando por encontrar refugio num
mosteiro em Assis, onde um parente havia feito os votos.
Segundo a tradição, a serenidade da vida monástica provocou uma
mudança completa no temperamento de Tartini. Esquivando-se já agora
de atividades marciais e inteiramente dedicado ao violino, sua contri-
buição musical aos serviços religiosos na capela do mosteiro foi bem
recebida. No entanto, continuando a temer uma vingança do cardeal,
Tartini tocava oculto por uma cortina, e assim os sons de seu violino
pareciam adquirir um caráter sobrenatural. Passaram-se dois anos até
que ele fosse desmascarado, quando uma lufada de vento abriu as cor-
tinas durante um serviço muito concorrido. U m habitante de Pádua
reconheceu o objeto da ira de Cornaro e transmitiu devidamente a
informação. Mas o tempo havia aplacado Sua Eminência, que consen-
tiu retrospectivamente com o casamento secreto. Marido e mulher
voltaram a se unir e a carreira do mais influente violinista do século
XV I I I novamente deslanchou.
TÃO Ú N I CO E TÃ O BELO " 75

U m ano mais tarde,Tartini partiu paraVeneza, onde havia sido con -


vidado a competir com o grande Francesco Veracini, famoso pela frase
"Existe apenas um Deus, e um Veracini". Mas não era simples bravata.
Ouvindo Veracini,Tartini deu-se conta do quanto ainda tinha de apren-
der, particularmente no que dizia respeito ao controle do arco, e reti-
rou-se mortificado. Elisabetta mais uma vez perdia o marido. Ela foi
mandada para a casa do irmão de Tartini em Pirano, e o violinista en -
caminhou-se para mais um período de estudo em Ancona, no litoral
adriático da Itália.
Foi por esta época, provavelmente em 1716, que Tartini fez uma
peregrinação a Cremona para ouvir um amigo de Stradivari, o violi-
nista Gasparo Visconti. O virtuose causou profunda impressão emTartini,
que diria mais tarde que o estilo incomparável de Visconti, inspirado
por Deus, nascera e morrera com ele. Um a vez em Cremona, o ambi-
cioso jovem violinista deve ter procurado também o próprio Stradivari.
Posso vê-lo participando da conversa no ateliê, experimentando vários
violinos e finalmente escolhendo o Lipinski. Os indícios de que foi o
seu proprietário são de terceira mão, mas Tartini não poderia ter acer-
tado mais na escolha do violino, pois veio a desenvolver as técnicas que
se mostrariam capazes de extrair o melhor desse modelo Stradivari.
Ao retornar de Ancona a Pádua, munido do Lipinski, Tartini era
um dos mais completos violinistas da época. E m 1721, foi nomeado
para o cargo de primeiro violino na Capella dei Santo de Pádua. A
carta de nomeação refere-se a ele como um extraordinário violinista,
declarando que não precisava fornecer qualquer comprovação de ex-
celência em sua profissão. Er a uma rara concessão, uma indicação da
reputação de que já desfrutava Tartini. O mesmo quanto a um outro
privilégio inusitado, o direito de tocar fora da cidade. Em 1723,Tartini
valeu-se dele, indo a Praga para tocar na coroação do imperador Carlos
V I . Mas seu principal motivo para fazer esta viagem era provavelmente
evitar um escândalo: uma estalajadeira veneziana o acusara de ser o pai
de seu filho recém-nascido.
76 STRA D I V A RI U S

O sucesso de Tartini em Praga era prova mais que suficiente de suas


habilidades de virtuose. Ele permaneceria na cidade durante três l u -
crativos anos, mas em 1726, verificando, como escreveu ao irmão, que
"a coisa está ficando feia", retornou a Pádua. Nun ca mais voltaria a
deixar a Itália. A posteridade tem atribuído aos problemas nervosos de
sua mulher essa relutância em viajar. Se assim é, não haveria por que
criticá-la.* Seja como for,Tartini teria influência em toda a Europa,
não como instrumentista, mas como professor, pois em 1728 criou um
dos primeiros cursos sérios para jovens violinistas, numa academia que
ficaria conhecida como "Escola das Nações".
Sem filhos,Tartini prodigalizava-se em atenções quase paternas com
seus alunos. Pelo menos setenta foram identificados em toda a Europa,
e retribuíam com a mesma devoção. O mais famoso deles, Pietro
Nardini, de cuja arte dizia-se que enchia de lágrimas os olhos de cor-
tesãos empedernidos, voltou a Pádua em 1770 para assistir o mestre na
doença final; um ataque de "paralisia convulsiva" em 1768 seria poste-
riormente agravado por um tumor canceroso no pé de Tartini. Outra
aluna era Maddalena Lombardini, uma das primeiras mulheres virtuoses.
A cartilha para ela preparada por Tartini em 1760 ainda era utilizada
no século X X .
Gaetano Pugnani, que na infância viu Stradivari trabalhar, não foi
oficialmente aluno de Tartini, mas a certa altura procurou-o para receber
orientação. Conta a lenda que ele começou a tocar, e quase imedia-
tamente foi interrompido com um grito de: "N ã o , alto demais!"
Pugnani recomeçou, e imediatamente ouviu nova exclamação: "Não,
baixo demais!" Cabe supor que as lições foram além disso. Pugnani t i-
nha um ego à altura do de Veracini — "com um violino nas mãos, eu
sou César" —, mas aparentemente considerava que se fez realmente
durante esse período com Tartini. Finalmente, há um outro aluno cujo

• Poucos biógrafos, entretanto, têm algo de simpático a dizer a seu respeito. Anos mais tarde,
supostamente amargurada por não ter tido filhos, ela ganharia fama de megera.
TÃO Ú N I CO E TÃO BELO " 77

nome ficou registrado simplesmente como "Signor Salvin i". Ele não
deixou qualquer marca especial na história, a menos que seja o Salvini
que em 1785 mandou imprimir em Florença seis duos para violino e
viola. Aparentemente um dos "mais promissores alunos" de Tartini, foi
a ele que o "Mestre das Nações" transmitiu seu Stradivarius, o Lipinski,
e é em suas mãos que vamos novamente encontrar o violino em 1818.

O RELATO DE TARTINI sobre a maneira como compôs a Sonata do


Diabo foi publicado inicialmente por um viajante francês, Hubert
Lalande, em 1769. Seu livro, Voyage dfun François en Italie, é um apanhado
por impressões sobre todas as grandes cidades italianas. Lalande estava
em busca de Tartini; com toda evidência, interessava-se por violinos; é
natural portanto que passemos às páginas por ele dedicadas a Cremona,
para ver o que encontrou de importante na principal das cidades do
circuito de fabricação de violinos. A resposta é...Torazzo, a mais alta
torre medieval da Itália. Não encontramos nessas páginas uma única
palavra sobre a indústria que há mais de 200 anos tornara a cidade fa-
mosa. Suas tradições haviam praticamente morrido.
Os sinais de declínio certamente já estavam visíveis quando a famí-
lia de Stradivari reuniu-se à cabeceira de seu leito de morte naquele
sombrio dia de dezembro de 1737. Os parentes podem ter ficado sur-
presos com a existência do testamento, redigido tão secretamente qua-
se uma década antes, mas dificilmente poderiam ficar chocados com
seu conteúdo. Omobono há muito já devia saber do descontentamen-
to do pai com sua aventura napolitana; quase podemos ver seu sorriso
amarelo de arrependimento ao ouvir que sua herança de cinco mil l i -
ras seria descontada da dívida de duas mil liras relativa ao período em
que se ausentou. Alessandro morrera cinco anos antes, e Caterina, Irmã
Rosa e Giuseppe presumivelmente já estavam a essa altura plenamente
conformados com suas vidas de solteirona, freira e padre, respectiva-
mente. O pequeno legado que receberam deu-lhes um pouco mais de
78 STRA D I V A RI U S

independência, mas não o suficiente para mudar suas vidas. Irmã Rosa
voltou para o convento, os outros continuaram a viver na casa do pai.
Pode-se presumir que Paolo recebeu com gratidão a sua parte; recém-
casado, ele certamente contava com um aumento de suas despesas. Por
enquanto, o negociante de tecidos e sua mulher também permanece-
ram na Piazza San Domênico.
E quanto a Francesco, o filho sempre fiel? Recebendo como h e-
rança todo o resto — a casa, os valores em dinheiro, os instrumentos e
as ferramentas — e designado testamenteiro do pai, ele era agora um
homem rico.Terá provavelmente assegurado que fossem rezadas as seis
missas de corpo presente encomendadas pelo pai. Nessa questão, An -
tonio havia-se confiado "inteiramente à devoção e ao amor de Francesco,
em quem confia particularmente", e o pedido era perfeitamente ra-
zoável; os testadores cremoneses da época costumavam deixar instru-
ções muito mais complexas. Como sempre obediente, ele parece ter
levado a sério a advertência do pai no sentido de evitar a dispersão da
família "se for possível": a casa que acabava de herdar não seria afinal
exclusivamente sua. Mas e daí?
Francesco trabalhara como assistente do pai durante mais de cin -
quenta anos: "o principal apoio profissional do mencionado Testador,
tendo-se mostrado sempre obediente e obsequioso às ordens do Testa-
dor". Quem haveria de criticá-lo por se aposentar? Tendo completado
66 anos e sem a energia nem a obstinação do pai, ele já havia passado,
realisticamente, da idade de se casar ou de reativar o ateliê com a
contratação de aprendizes. Parece ter então optado por um merecido
repouso. Francesco sobreviveu ao pai por menos de seis anos, morren-
do em maio de 1743; a esta altura, Omobono também havia morrido.
Desde a morte do pai, cada um deles havia feito apenas um punhado
de violinos.
A carreira de Antonio Stradivari projetara-se por mais de setenta
anos. Estima-se que produziu pelo menos mil e duzentos instrumen-
tos, das minúsculas "pochettes" usadas por mestres de dança aos enor-
TÃO Ú N I CO E TÃ O BELO " 79

mes violoncelos "baixos de igreja" dos primeiros anos. Teve onze fi-
lhos, nove dos quais sobreviveram à primeira infância; cinco ainda
moravam em sua casa um ano depois de sua morte, e dois haviam tra-
balhado com ele por mais de cinquenta anos. Elevara a arte da fabrica-
ção de violinos a culminâncias que nenhum antecessor teria sido capaz
de imaginar, e com isso obtivera o reconhecimento de arcebispos, du-
ques e reis em toda a Europa. Mas não havia criado uma dinastia de
construtores de violino.Vivendo até uma idade tão avançada e contro-
lando tudo com rédea curta por tanto tempo, o velho patriarca, iron i-
camente, fizera com que seu compromisso com a qualidade morresse
com ele.
À morte de Francesco, a casa e tudo que nela havia, inclusive cerca
de cem instrumentos ainda sem compradores, foi herdada pelo sortudo
Paolo. Três anos depois, ele já havia transferido a família e os irmãos
sobreviventes da Piazza San Domênico. Os novos ocupantes, o luthier
Carlo Bergonzi e seus filhos, devem ter sido empregados de Paolo, além
de seus inquilinos. Os violinos restantes eram impraticáveis; cada um
deles ainda precisava no mínimo do estandarte, das cordas, do cavalete,
da alma, das cravelhas. Paolo precisava dos Bergonzi simplesmente para
ajudá-lo a deixar sua herança em condições de ser vendida. Sua família
verdadeiramente não dominava mais a arte de fazer violinos.
Pode parecer difícil entender hoje por que Stradivari não tentou
com maior afinco deixar para as gerações posteriores um registro de
seus métodos — "segredos" talvez seja uma palavra forte demais. A
consequência disso pode ter sido sua própria imortalidade, pelo fato
de ter produzido instrumentos que nunca teriam equivalentes, mas custa
crer que ele tivesse planejado algo nesse sentido. Na realidade, ele se
mostrava meticuloso no registro de suas experiências, guardando cada
molde com os respectivos desenhos, contendo detalhes como a posi-
ção das aberturas acústicas. Eram indicações suficientemente boas para
serem seguidas por qualquer assistente treinado por ele. Os instrumen-
tos produzidos por Francesco e Omobono certamente apresentam uma
80 STRAD IVARIU S

excelente sonoridade. O verdadeiro problema foi o rompimento do


elo mestre-aprendiz após a morte de Stradivari. Nicolò Amati fora real-
mente uma exceção ao tomar aprendizes fora da família, tendo sido
forçado a fazê-lo pela peste e a demanda. Antonio Stradivari tinha os
filhos para assisti-lo. Solteiro, o mesmo não acontecia com Francesco.
O ateliê que herdou não tinha aprendizes.
Mais intrigante, talvez, é o fato de algumas das técnicas mais gen é-
ricas conhecidas de todos os luthiers cremoneses — sobretudo a famosa
fórmula do verniz — terem sido perdidas tão rapidamente após a morte
de Stradivari. A resposta mais simples encontra-se no progresso tecno-
lógico. O verniz cremonês é tão macio que chega a ser frágil: basta
segurar um Strad com grande firmeza que a marca da mão fica clara-
mente visível na superfície; tratado sem cuidados, o instrumento deixa
ver a madeira nua. Além disso, a questão do tempo de secagem neces-
sário vinha incomodando os cremoneses desde a época de Galileu, cujo
sobrinho acabou ficando com um violino velho porque padre Micanzio
não esperou que "o calor forte do sol" deixasse um novo instrumento
em "estado de perfeição".Tais desvantagens foram sentidas por outros
marceneiros, que ao longo do século XV I I I evoluíram para um verniz
de base alcoólica, mais resistente e de mais rápida secagem. Nada mais
natural que os luthiers seguissem seu exemplo. O que se pode depreender
é que Stradivari, com seu conhecimento inato da acústica, provavel-
mente não recobriria seus violinos com uma substância tão rígida. Mas
ele e seus contemporâneos já estavam mortos.
Por trás de tudo isso está o motivo final pelo qual se verificou uma
queda tão rápida na qualidade dos instrumentos cremoneses após a
morte de Stradivari. O recuo da demanda iniciado na década de 1720
prosseguiu. Nos quase 200 anos que se haviam passado desde o aper-
feiçoamento da forma do violino, as cidades do norte da Itália e suas
concorrentes além dos Alpes haviam produzido milhares de instrumen-
tos da mais alta qualidade. Há pelo menos cinquenta anos se sabia que
os instrumentos de madeira produziam melhor sonoridade depois de
TÃO Ú N I CO E TÃO BELO " 81

um período de envelhecimento. Por que jogar dinheiro fora com uma


obra-prima moderna, quando um equivalente plenamente amadure-
cido podia ser comprado pelo mesmo preço? Dentro de poucas déca-
das, como se sabe, esta equação seria espetacularmente alterada, mas
durante a maior parte do século XV I I I os violinos mais antigos per-
maneceriam relativamente baratos.
Além disso, os Strads sequer eram então os violinos antigos mais pro-
curados ou caros. A necessidade de sonoridade mais ampla que Stradivari
vinha prevendo desde a época de seu Strad alongado ainda não se havia
imposto realmente. Determinado virtuose podia eventualmente apre-
sentar-se em público, provavelmente atuando também como seu pró-
prio empresário, mas de maneira geral continuava dependendo do
patrocínio de uma corte ou de uma grande família da nobreza. Em tais
circunstâncias, tocados para plateias seletas em pequenos salões privados,
os Strads, relativamente jovens, provavelmente apresentavam um desem-
penho aquém dos Amati, de sonoridade reconhecidamente suave. Mes-
mo estes, no entanto, eram em geral considerados inferiores aos violinos
fabricados por Jacob Stainer noTirol. Com arqueamento elevado e peque-
nas aberturas acústicas elegantemente entalhadas, os Stainer eram consi-
derados pela altura de 1770 a essência dessa arte.

ERA UMA época favorável para que entrassem em cena os primeiros


grandes acumuladores de Strads, inspiradores de muitos que haveriam
de seguir-se. O conde Cozio di Salabue nasceu em Casale, no Piemonte,
em 1755. Formado na Academia Militar, tornou-se alferes na cavalaria
de Saluzzo. Como Tartini, no entanto, seu interesse não demorou a
desviar-se da carreira convencional, com o desenvolvimento de uma
paixão pelos violinos. A centelha parece ter sido ativada ao herdar em
1666 um violino de Nicolò Amati. Cozio era rico e bem relacionado,
e as subsequentes gerações de colecionadores haveriam de invejá-lo
por ter estado no lugar certo no momento certo.
82 STRA D I V A RI U S

O conde tinh a apenas 18 anos ao travar conhecimento com


Giovanni Battista Guadagnini, um luthier quase itinerante de 63 anos
de idade que fora parar emTurim.Teve início então um relacionamen-
to dos mais estranhos. Por um lado, Cozio considerava seu dever deter
o declínio da arte da construção de violinos, e não se eximia de ensinar
ao velho luthier como fazer seu trabalho; por outro, dependia de
Guadagnini no que dizia respeito a boa parte do conhecimento que
tentava preservar. Talvez não surpreenda, assim, que os dois se tenham
separado depois de apenas quatro anos, mas foi um período em que o
luthier produziu algumas de suas melhores peças, e seu mecenas apren-
deu a valorizar os Strads com um tirocínio que estava décadas à frente
de seus contemporâneos. Como escreveria mais tarde, Cozio desde logo
se deu conta: "Em Cremona, ainda hoje se diz, sobre Antonio Stradivari,
que 'enquanto os outros fabricantes faziam o que podiam, Stradivari
fazia com os violinos o que queria'."
Não demorou para que Cozio entrasse em contato com o filho
mais novo de Stradivari. Paolo levava uma vida regular com sua heran-
ça. Dos violinos a ele legados por Francesco, restavam apenas treze à
época em que pela primeira vez teve notícia do conde, em 1775.Todos
acabariam na coleção de Cozio. Entre eles estava pelo menos um dos
nossos violinos, o Messias. Confeccionado no ateliê de Stradivari em
1716, havia passado inicialmente às mãos de Francesco, e depois às de
Paolo. E m tão bom estado que parecia recém-fabricado, deve ter sido
um dos violinos que levaram o conde a exigir de Paolo uma declara-
ção juramentada de que eram todos obra de Stradivari e filhos. Cozio
soube identificar em seu "maior e mais belo violino de 1716"uma obra-
prima, vindo posteriormente a escrever sobre seu refinado acabamen-
to, a perfeita qualidade da madeira e a sonoridade h omogénea e bem
projetada.
Paolo vendera todos os violinos, mas o conde ainda queria mais.
Estava constantemente querendo extrair de Paolo mais informações
sobre o pai, para crescente exasperação do negociante de tecidos; numa
"TÃ O Ú N I CO E TÃO BELO " 83

das respostas, ele sugere que o conde vá fazer suas perguntas ao pé do


túmulo de Stradivari. Um a informação que o conde conseguiu extrair
foi que Antonio tinha 93 anos ao morrer: há quem considere que pode
ser de Cozio a caligrafia em que lemos a idade do Mestre nas etiquetas
dos últimos instrumentos.
Finalmente, em maio de 1776, Paolo ofereceu a Cozio todos os
desenhos e ferramentas do pai,pedindo por eles 28 gigliati [mil libras].
Em resposta, o conde contrapropôs cinco; Paolo acabou aceitando seis,
a serem imediatamente entregues nas mãos de um fabricante de meias
de seda, "para demonstrar meu desejo de agradar-lhe, e para que ne-
nhum objeto que tenha pertencido a meu pai permaneça em Cr e-
mona". É sem dúvida a expressão de um estranho sentimento por parte
de um filho que tanto devia ao pai. Seria talvez um derradeiro laivo de
ressentimento pela maneira como Stradivari havia controlado a vida
de todos os filhos. O u talvez Paolo simplesmente quisesse encerrar a
correspondência. O u quem sabe, ainda, se desse conta de que, para que
as relíquias deixadas pelo pai fossem devidamente valorizadas, era pre-
ciso que estivessem nas mãos de um verdadeiro conhecedor; Cremona
deixara de ser o lugar ideal para elas.
Paolo não desfrutou por muito tempo do produto da liquidação
final do legado de seu pai.Viria a morrer em outubro daquele mesmo
ano, antes até que as ferramentas chegassem a ser despachadas. Seu fi-
lho Antonio tentou arrancar mais dinheiro do conde, alegando que mais
um baú, recém-encontrado, não havia sido incluído na venda. Tenha
tido êxito ou não, o fato é que tudo que ainda continuava de posse da
família Stradivari logo passaria às mãos de Cozio.
Não dispomos de registro da quantia que Cozio pagou a Paolo pelos
violinos propriamente ditos. Sabemos entretanto, por outra correspon-
dência trocada entre eles, que um Strad podia ser comprado em 1775
por dez gigliati [400 libras]. Os preços haviam caído desde a avaliação
efetuada pelo próprio Stradivari em 1729; o fato de Paolo se ter desfei-
84 STRAD IVARIU S

to gradativamente da herança ao longo dos anos contribuiu ainda mais


para isso. A título de comparação, um Amati foi vendido no mesmo
ano por 40 gigliati. Dentro de vinte anos, no entanto, tudo mudaria.
Estava surgindo na música para violino uma nova era, prenunciada pelo
talento inovador de um homem extraordinário.
Capí t ul o Seis

" M E U V I O LI N O D EV E R E N D E R
U M BO M D I N H E I R O "

Viot t i e o seu Strad

N o DIA 13 DE MARÇO de 1782, Mémoires Serreis, um jorn al parisiense,


publicava uma notícia intrigante: "Monsieur Viotti, um violinista es-
trangeiro, que ainda não se apresentou em público aqui (...) fará sua
estreia no Concert Spirituel na próxima quinzena." O redator não t i-
nha como saber, mas estava anunciando aos leitores uma série de con-
certos que mudariam para sempre a arte do violino, não apenas em
Paris, mas em toda a Europa. Esses concertos também serviriam, quase
acidentalmente, para que os violinos Stradivarius finalmente des-
bancassem seus rivais de sonoridade mais débil como instrumentos
preferidos tanto dos músicos quanto do público.
Naturalmente, o público de Giovanni Battista Viotti tampouco po-
deria sabê-lo. O que efetivamente sabia era que o Concert Spirituel era
o lugar onde se podia ver e ser visto em Paris, além da principal sala de
concertos da Europa. Londres eViena podiam rivalizar com a capital fran-
cesa como centros cosmopolitas, mas não dispunham da mesma indús-
tria de edição musical nem tinham a mesma influência pan-européia. O
artista que tivesse êxito no Concert Spirituel podia esperar sucesso em
qualquer lugar. Por outro lado, convencido de sua própria influência, o
público parisiense também sabia muito bem o que queria; e o que que-
ria provavelmente não era Viotti. Os franceses tinham uma profunda
desconfiança dos músicos italianos, e estendiam essa aversão ao emprego
86 STRAD IVARIUS

do próprio violino como instrumento solista. A tradição da arte violinística


na França fiindara-se nos Vingt-Quatre Violons du Ro i , um conjunto
musical na própria acepção do termo, e a própria antítese da virtuosidade
individual. Em data tão avançada quanto 1740, o escritor francês Hubert
Le Blanc publicara sua defesa e ilustração da viola de gamba "contre les
entreprises du violon et les prétentions du violoncelle".* Em sua opi-
nião, o "Sultão Violin o" era "pequeno demais, um pigmeu", e,"não satis-
feito com a Itália, que é sua herança, pretendia invadir os estados vizinhos".
Le Blanc pode ter sido um anacronismo no exato momento em
que escrevia, mas não estava sozinho em suas opiniões. Alguns anos
depois, o violinista francês André-Noél Pagin, um aluno de Tartini que
tocou no Concert Spirituel de 1747 a 1750, era vaiado pelo público
por "ousar tocar no estilo italiano". Não resta dúvida de que ao longo
do século anterior o amor-próprio gálico fizera os violinistas e o pú -
blico franceses perder o trem dos enormes avanços técnicos iniciados
por Corelli, Tartini e seus seguidores.
Chegara o momento de sacudir a autocomplacência do público
parisiense, e Viotti era o homem indicado. Desde sua fundação em 1725,
o Concert Spirituel tinha sua sede no Palácio dasTulherias, construído
por Catarina de Medici para servir como sua residência parisiense. A
Salle des Suisses, nos salões de aparato do primeiro andar, certamente
podia ser considerada imponente, mas não terá sido construída com
preocupações acústicas. Seus 900 metros quadrados podiam acolher um
público de várias centenas de pessoas, de pé, em bancos enfileirados e
em camarotes ao redor do perímetro do salão. Estes costumavam aco-
lher damas da sociedade, que compareciam para ver e ser vistas. Subin-
do no palco ao fim de um programa carregado, o jovem virtuose devia
parecer uma figura desamparada, dificilmente visível numa atmosfera
já esfumaçada pelas emanações dos nove candelabros do salão, cada um
ostentando até dezesseis velas. Apesar disso, não devia faltar uma certa

• "contra as empreitadas do violino e as pretensões do violoncelo".


"MEU V IOLIN O D EVE REN D ER UM BOM D I N H EI RO " 87

expectativa, o mesmo tipo de burburinho que costuma tomar conta


das salas de concerto modernas. A crónica da única apresentação pr i-
vada que Viotti havia feito desde que chegara a Paris semanas antes dava
conta de que ele "arrancou o arco das mãos de todos os nossos grandes
mestres". Dificilmente ele teria sido programado para tocar na Sexta-
feira Santa — a principal data da temporada anual do Concert Spirituel
— se não se esperasse muito dele.
Podemos imaginar que o zunzum começou nas primeiras fileiras
enquanto o maestro se preparava para tocar. Os que estavam mais bem
posicionados podem ter notado seu violino, com pouco mais de se-
tenta anos de idade, o verniz quase intacto, mal entrando na maturida-
de. Os olhares podem ter sido atraídos pelo fundo, peça única de bordo
com um deslumbrante motivo semelhante a pele de tigre. Só os mais
conhecedores terão notado a forma: o arqueamento mais plano do tam-
po, em comparação com os Stainer e os Amati, mais arredondados que
costumavam ser tocados no Concert Spirituel. U m ou dois membros
do público poderão ter notado que se tratava de um Stradivarius.
O programa daquela primeira apresentação, em 17 de março de 1782,
informa-nos simplesmente que Viotti tocou um concerto de sua própria
autoria. Ao ouvi-lo, o público deve ter-se dado conta de que estava diante
de algo muito diferente de qualquer coisa que jamais ouvira antes. Não
terá faltado quem percebesse que nunca mais os violinos voltariam a soar
da mesma maneira; outros terãoficadosimplesmente perplexos. Nos rela-
tos posteriormente publicados na imprensa, havia unanimidade quanto à
técnica de Viotti; sua virtuosidade era um dom, mas ele não estava real-
mente preocupado em forçar seus limites. A verdadeira controvérsia deu-
se em torno de sua sonoridade. Desorientado com a novidade da sonoridade
de Viotti, pelo menos um ouvinte considerou sua arte "desordenada e
hesitante, sacrificando o sentimento e o espírito de seu tema ao desejo de
extrair sonoridades extraordinárias do instrumento".
Esse tipo de crítica não persistiu. Com as subsequentes apresenta-
ções, o público seria constantemente impressionado pela riqueza ex-
88 STRAD IVARIU S

pressiva da sonoridade de Viotti, pela maneira como fazia o violino


assemelhar-se a uma voz cantante, por seu talento especial para explo-
rar tanto as qualidades sonoras da corda mais grave quanto os elevados
anseios da mais aguda. Em abril de 1783, Le Mercure escrevia: "Tudo
indica que os outros artistas já começam a perdoá-lo por não ter nas-
cido na Fr an ça"— um elogio e tanto. A influência de Viotti entre os
violinistasfrancesesestava garantida.Todos queriam imitar sua sonori-
dade, o que significava tocar num Stradivarius.

O VIOLINO DE VIOTTI era vital para a beleza de sua sonoridade. E n -


contramos o Viotti pela última vez no ateliê de Stradivari, construído
em 1709 para um cliente desconhecido, usando a peça única de bordo
cujos anéis podem ser vistos nos fundos de tantos dos grandes instru-
mentos do Mestre. Não há registro da identidade das mãos pelas quais
passou a caminho de sua apoteose em Paris, nem sabemos como o
próprio Viotti veio a adquiri-lo. A teoria mais romântica diria que foi
um presente da imperatriz Catarina, a Grande, da Rússia.
Viotti chegara a Paris depois de uma série de concertos com seu
mestre Pugnani nas principais cidades da Europa. Sua passagem por
São Petersburgo havia sido particularmente triunfal, e foi lá que Viotti
chamou a atenção da imperatriz, apresentada por seu ex-amante, e às
vezes também seu alcoviteiro, o príncipe Potemkin.Viotti era charmoso,
atraente e elegante — atributos potencializados por sua virtuosidade
no violino. Catarina devia ter 50 anos na época, mas sua preferência
por homens jovens estava reconhecidamente de pé. Embora ela esti-
vesse então em pleno relacionamento com Alexander Laskwi, de 25
anos, as fofocas da corte na época não hesitavam em atribuir-lhe múl-
tiplos amantes. Além disso, ela já tinha fama de ser dada a aventuras
com violinistas italianos. Sua predileção por Antonio Lolli durante os
dez anos que ele havia passado na corte provocara muitos comentários
na época. O relacionamento quase terminou em desastre para o violi-
"MEU V IOLIN O D EVE REN D ER. UM BOM D I N H EI RO " 89

nista, quando o chefe de polícia de Catarina interpretou mal o desejo


de sua monarca absoluta de que o seu cachorrinho spaniel, também
chamado Lolli, fosse empalhado e exibido numa vitrine. Não surpreen-
de, assim, que Lolli tenha deixado a Rússia logo depois, de modo que
a estada de Viotti não coincidiu com a sua.
Depois do sucesso inicial com Pugnani em São Petersburgo,Viotti
partiu para uma breve turnê pelo interior da Rússia. Ao retornar, foi
aparentemente obrigado por alguma doença a permanecer 12 meses
na capital, convalescendo. Parece um período longo demais; mas ainda
assim a imperatriz o cobriu de presentes, para tentar convencê-lo a
permanecer ainda mais tempo. Não resta dúvida quanto à generosidade
de Catarina: um amante recebia pelo menos cem mil rublos [dois m i-
lhões de libras] e cinco mil servos ao longo de um relacionamento de
dois anos.Viotti, entretanto, conseguiu afinal deixar o país e dar prosse-
guimento à turnê, sempre com Pugnani, em Berlim e, possivelmente,
Londres. Àquela altura, os instrumentos de Stradivari já haviam chega-
do à corte russa, e é perfeitamente possível que um dos presentes de
Catarina fosse o magnífico violino com que Viotti fez seu nome — e
o do fabricante.
O encontro com a imperatriz russa não era o primeiro de Viotti
com alguma celebridade ou membro da realeza. Numa ocasião anterior,
em Genebra, ele e Pugnani haviam tocado para Voltaire nos últimos
dias da vida do filósofo. Er a tal a habilidade de Viotti que o público de
uma pessoa só confundiu o mestre com o pupilo, insistindo em cha-
mar Viotti de "le célèbre Pugnani" o tempo todo durante a conversa.
O verdadeiro Pugnani limitava-se a resmungar, num patois ffanco-ita-
liano:"CetteVoltaire, il est oune bete, il ne sait faire que des traxedies."
("Esse Voltaire é um animal, só sabe fazer tragédias") Em Varsóvia, foi
tal o sucesso de Viotti que ele veio a ser foi convidado para caçar pelo
próprio rei Stanislaus-Augustus. Só em Berlim a recepção não chegou
a ser triunfal. Nu m confronto com Jarnowick (que até a chegada de
Viotti era o mais festejado violinista da Europa, e o grande favorito do
90 STRA D I V A RI U S

Concert Spirituel), este último foi considerado a sua altura;Viotti deve


ter ficado passado.
Viotti poderia ter comprado o Strad em qualquer parte de sua turnê
européia, mas também é possível que o tenha encontrado em sua Itália
natal. Ele nasceu em Fontaneto, no Piemonte, em 1753. Seu pai, um
ferreiro com talento para tocar trompa, comprou seu primeiro violino
quando ele tinha oito anos, na feira de Crescentino. Cabe presumir que
ainda não fosse este o Viotti. Mas de qualquer maneira era suficiente-
mente bom para o jovem Giovanni, que, à parte as aulas tomadas du-
rante um ano com um músico itinerante, aprendeu por conta própria
até os 13 anos. Foi então que se apresentou na presença de um bispo
de Turim, participando de uma orquestra improvisada em que também
tocava o seu pai. O bispo sabia que o marquês de Voghera estava pro-
curando um violinista para acompanhar seu filho Alphonse, de 18 anos,
e o jovem Viotti despertou seu interesse, recebendo uma carta de reco-
mendação a ser levada ao marquês em Turim.
Sabemos o que aconteceu em seguida pelo testemunho do próprio
Alphonse, que se lembraria de tudo mais de sessenta anos depois, em
1830. O pequeno Viotti, então com 13 anos, chegou a Turim mas foi
quase imediatamente mandado de volta pelo marquês, provavelmente
mais sensível à diferença de cinco anos entre os dois do que o desligado
bispo. Por sorte, no entanto, um músico da capela real, Colognetti, en-
trou na sala durante a audiência de Giovanni com o marquês e insistiu
em que ele fosse pelo menos ouvido.Viotti prontamente leu à primeira
vista, e à perfeição, uma sonata relativamente fácil de Besozzi. Cumpri-
mentado por seu extraordinário feito, o adolescente limitou-se a responder
no dialeto local (e podemos até imaginá-lo dando de ombros):"Não foi
nada". Assim, para colocá-lo no devido lugar, o marquês exigiu que
Colognetti o testasse com algo muito mais difícil. Um a sonata de
Domênico Ferrari, um dos mais festejados alunos de Tartini, foi disposta
na estante em frenteao menino, que mais uma vez se saiu triunfalmente.
Percebendo que havia ali algo, Colognetti levou-o para conhecer a or-
"MEU V IOLIN O D EVE REN D ER UM BOM D I N H EI RO " 91

questra, com a qual Viotti leu à primeira vista uma ópera inteira.
Retornando ao palácio, perguntaram-lhe de que havia gostado mais em
seu passeio, e ele voltou a tocar de memória a abertura e vários temas.
Estava garantido seu lugar como músico da corte. Além disso, o marquês
e o filho assumiram a responsabilidade pela formação musical de Viotti,
de modo que ele acabaria tendo como professor nada menos que o
virtuose Pugnani em pessoa. Ao ouvi-lo, até mesmo o fleumático Viotti
ficou impressionado — "E l e é um Júpit er "—, e uma relação extrema-
mente próxima haveria de desenvolver-se entre o mestre e o pupilo.
Alphonse calculava, sem qualquer sombra de remorso, que a edu-
cação musical de Viotti havia custado a sua família 20 mil francos [70
mil libras]. Um a pequena parte desse valor terá sido provavelmente
relativa à compra do Stradivarius Viotti. Pugnani pode perfeitamente
ter ajudado a escolhê-lo. Pode parecer prosaico, mas é muito provável
que aproximadamente nos sessenta anos anteriores a sua aquisição por
Viotti o grande instrumento nunca tenha deixado o norte da Itália.
Existe uma outra história sobre a compra de um violino por Viotti,
que vale a pena ser repetida porque ajuda a entender sua personalidade.
Com ela, estamos de volta à Paris da década de 1780, o período dos maiores
triunfos de Viotti. Caminhando pelos Champs-Elysées com um amigo,
chegaram a seus ouvidos os terríveis ruídos que um músico cego de rua
extraía de algo que logo se verificou ser uma rabeca de lata. Intrigado
com aquele instrumento, que emitia um som mais parecido com o da
clarineta do que com o do violino,Viotti ofereceu por ele 20francos[70
libras]. Antes que a transação fosse efetivada, no entanto, tomou o violi-
no das mãos do velho e começou a tocá-lo, extraindo uma sonoridade
extraordinariamente bela. Homem de reações rápidas, enquanto isso, seu
amigo passava o chapéu pelo público que logo se havia formado, entre-
gando o fruto de sua coleta ao músico de rua. Quando Viotti lançou
mão de sua bolsa para pagar os 20 francos, o velho pensou melhor —
"Eu não sabia que o violino era tão bom. Devia ter cobrado pelo menos
o dobro." Feliz com aquele cumprimento indireto,Viotti entregou-lhe o
92 STRA D I V A RI U S

valor em dobro e se foi com sua nova conquista, mas sentiu um puxão
na manga: era o sobrinho funileiro do músico, oferecendo-se para fazer
quantas rabecas quisesse por seis francos cada.

VIOTTI ERA a sensação de Paris. Os jovens violinistas tentavam imitar


seu estilo; os mais velhos simplesmente reconheciam sua grandeza. Suas
apresentações noturnas no Con cert Spirituel estavam sempre com
entradas esgotadas, e ele se sentia suficientemente seguro de sua posi-
ção para retirar-se do palco emVersailles, na presença de Maria Antonieta,
quando um recém-ch egado membro do público de aristocratas se
mostrava por demais barulhento. Até que, de uma hora para outra, e
apenas 18 meses depois de sua espetacular estréia,Viotti desistiu de se
apresentar em público. Seus contemporâneos tinham numerosas teorias
a este respeito, sendo a mais razoável a de que ele simplesmente não
gostava de tocar e o dinheiro não era suficiente: uma temporada intei-
ra podia render-lhe não mais que 1.200 francos líquidos [4 mil libras].
O tempo mostraria, no entanto, que a ausência de Viotti dos palcos
serviria apenas para aumentar sua influência. Foi o que lhe deu mais
tempo para compor e aceitar alunos. Estavam entre eles Alday, Cartier
e Rode, ao passo que tanto Kreutzer quanto Baillot também eram
discípulos, o que fica parecendo um recital conjunto dos grandes vio-
linistas franceses do fim do século XV I I I e do início do século X I X .
Todos começaram a tocar em instrumentos cremoneses, para eles com-
prados, em sua maioria, pelo próprio Viotti. Ainda hoje, muitos Strads
trazem o nome de Viotti em algum momento da formação de seu
pedigree; é um motivo de orgulho.

VIOTTI INFLUENCIOU ainda de outra maneira a arte do violino, mais


uma vez em benefício do modelo Stradivarius de sonoridade mais cheia:
seu estilo de tocar e suas composições exigiam a utilização de um arco
MEU V IOLIN O DEVE REN D ER UM BOM D I N H EI RO " 93

moderno. E foi mais ou menos pela época em que Viotti chegou pela
primeira vez a Paris que François Tourte — "o Stradivarius do arco"
— desenvolveu os elementos finais do formato que ainda hoje é usado.
Nascido numa família de fabricantes de arcos, Tourte tinha uma loja
em Paris. Diz a lenda que foi a ela que Viotti se dirigiu para falar de sua
necessidade de um novo tipo de arco. Seu estilo cantabile exigia mais con-
trole e força do que era capaz de oferecer o antigo modelo. A solução apre-
sentada por Tourte contemplava certos aperfeiçoamentos, desenvolvendo
propostas que haviam começado com Tartini. Na vareta, ele usava uma
madeira brasileira, o pau-brasil; a curvatura para dentro, em contraste com
a anterior convexidade, conferia ao arco maior força e elasticidade, permi-
tindo que a crina de cavalo fosse mais tensionada. A tensão podia ser ajus-
tada por um parafuso na base do arco, ao qual a crina de cavalo era presa
por uma cunha com cinta metálica, ou"ferrule". O peso desse dispositivo,
contrabalançado por uma cabeça maior, contribuía para a força de impul-
so do arco. Em consequência, o violinista exercia maior controle, e o maior
retesamento facultava um leque mais amplo de estilos, do legato impecável
ao repentino sfoYzando.Mêm disso, com esse acréscimo de peso e tensão,
paralelamente a outra modificação introduzida por Tourte — o aumento
da largura, de 1/4 para 7/16 de polegada —, o violinista dispunha no arco
de maior reserva de força. Somente com esse novo arco, com efeito, podia
realizar-se plenamente o potencial de um Strad.
É possível que esses avanços tivessem sido alcançados sem a inspi-
ração de Viotti. A título de exemplo, nessa mesma época Joh n Dodd
produzia em Londres um arco semelhante, embora excessivamente
curto. Já parece difícil duvidar, contudo, de que o Viotti tenha sido um
dos primeiros violinos a cantar ao contato do novo arco.

O FATO DE VIOTTI ter-se retirado da vida pública não significa que


tenha parado de tocar para os amigos. Ele veio morar com seu amigo,
o compositor Cherubini, e continuou a dar aulas magnas em sua casa
94 STRA D I V A RI U S

todo domingo. Como era o único lugar onde ainda era possível ouvir
o grande homem, os convites eram muito disputados. Mas precisavam
ser limitados, pois o apartamento não era muito grande, e sua escassez
só contribuía para aumentar a fama de Viotti. À parte sua arte, todos
que dele se aproximavam ficavam impressionados com seu idealismo,
sua sensibilidade e sua integridade artística. U m elegíaco livrinho es-
crito por A. M . d'Eymar, Anecdotes sur Viotti, que veio a público após a
Revolução Francesa (ele traz a data de "An V I U " pelo novo calendá-
rio), traça o melhor retrato de que podemos dispor de Viotti nessa época.
O tom é dado já na afirmação inicial, lamentando tanto a sua ausência
no exílio —"Fr an ça, acaso o terás perdido para sempre?"— quanto a
morte na guilhotina de muitos que o haviam ouvido. A maior parte do
livro, contudo, é dedicada a um único dia que o autor passou com Viotti
na residência da pianista Hélène de Montgeraut: a tarde no jardim, com
os transportes de entusiasmo do maestro à visão de uma simples viole-
ta; e a noite passada na companhia da mais bela música. Posteriores
cronistas considerariam que Eymar dava a entender que o violinista
era "u m pouco mais que um admirador" da pianista.
Por volta de 1788, a carreira de Viotti efetivamente começou a to-
mar um rumo diferente quando ele fundou uma companhia de ópera
em parceria com Leonard, o empreendedor cabeleireiro de Maria
Antonieta. Inicialmente, a companhia teve sucesso. Sob a proteção do
conde de Provença, fez suas primeiras apresentações nas Tulherias.
Dotado para tantas coisas,Viotti mostrou-se administrador e empresá-
rio de talento; chegou inclusive a tentar assumir o controle da própria
Ópera de Paris.
Viotti estava se tornando uma personalidade pública, mas não era o
momento adequado. Inicialmente, as consequências da revolução para
o mundo musical pareceram quase marginais. O efeito mais imediato
foi a transferência da família real de Versalhes para as Tulherias, com o
consequente deslocamento da companhia de ópera. Sem se deixarem
abalar,Viotti e seus patrocinadores decidiram construir uma sede pr ó-
MEU V IOLIN O D EVE REN D ER UM BOM D I N H EI RO " 95

pria. Assim foi que oTh éâtre Feydeau abriu para o público na noite de
6 de janeiro de 1791. Da orquestra faziam parte alguns dos maiores
músicos de Paris, e os cantores foram trazidos de toda a Europa. Tam-
bém aqui foi grande o sucesso inicial, mas ele não poderia durar. A
crescente instabilidade política fazia diminuir cada vez mais o público,
e em agosto de 1792 o teatro foi fechado. Mais importante, do ponto
de vista pessoal, era a presença do nome de Viotti no infame "livro ver-
melh o". A certa altura de sua carreira, ele havia sido investido do título
de "Acompanhador da Rain h a", recebendo um estipêndio anual de
seis mil livres [20 mil libras]. Era portanto um homem marcado, e no
fim de 1792 teve de fugir para Londres, com o Viotti, para escapar da
guilhotina. Enterrada toda a sua fortuna na malsucedida aventura do
teatro, ele estava sem um tostão.

OS ACONTECIMENTOS haviam conspirado para que Viotti viesse a ser


ouvido por um público completamente diferente. Sem dinheiro, ele
foi obrigado a voltar a se apresentar em público, participando de con-
certos organizados na Hanover Square pelo violinista alemão Johann
Salomon, que se mudara para Londres em 1782.A chegada de Salomon
já havia revitalizado o mundo musical londrino, atraindo Joseph Haydn
para a capital britânica em 1791 e levando à solicitação de aulas de
violino para o próprio rei Jorge I I I . *
Salomon sabia o que estava fazendo ao contratar seu rival italiano,
e a imprensa britânica apressou-se a endossar sua decisão. Nas palavras
do The Oracle, em fevereiro de 1793,Viotti era "original e sublime —
ele é capaz de grandeza sem esforço". Segundo The Morning Chronicle,

• Quando o rei perguntou a seu professor como estava se saindo, Salomon teria respondido:
"Existem três níveis de habilidade na arte do violino: incapacidade de tocar, capacidade de
tocar mal e capacidade de tocar bem. Sua Majestade, folgo em anunciar, já chegou ao segun-
do nível."
96 STRA D I V A RI U S

"Viot t i efetivamente (...) causa espanto no ouvinte; mas faz algo ainda
infinitamente melhor: desperta emoções, dá alma ao som e mantém
cativas as paixões". Em suma, e quase mesmo sem querer,Viotti fez
com que os londrinos se conscientizassem tanto da necessidade de ter
um Stradivarius quanto os parisienses dez anos antes. Nos cem anos
subsequentes, a Grã-Bretanha, como a mais próspera economia do
mundo, funcionaria como um verdadeiro ímã para Strads de toda a
Europa.
De volta aos palcos públicos e com um círculo crescente de amigos
ingleses,Viotti finalmente parecia estar conquistando alguma estabili-
dade na vida. A partir de 1795, foi contratado como regente no King's
Theatre, tornando-se o primeiro violino da orquestra por 300 libras
[20 m il libras] anuais quando o titular se aposentou. Sua vida pessoal
girava em torno de sua amizade com W illiam e Caroline Chinnery,
um casal rico que o adotou como membro da família e o apresentou à
sociedade elegante. Mas nada disso duraria. Em março de 1798, numa
reviravolta do destino que parece particularmente cruel, ele foi detido
enquanto jantava com os amigos, acusado de ser simpatizante dos
jacobinos e recebeu ordens de deixar o país. As acusações provavel-
mente não tinham fundamento, mas Viotti havia sido imprudente em
certos relacionamentos. A Grã-Bretanha estava em guerra com a Fran -
ça, e enfrentava a ameaça de uma rebelião na Irlanda. A Realpolitik
tinha primazia sobre a arte.
Protestando inocência,Viotti exilou-se perto de Hamburgo, hos-
pedando-se com um admirador em Schõnfeld. A única contrapartida
exigida ao célebre convidado por esse benfeitor, um certo Sr. Smith,
foi que jantassem juntos aos domingos. Talvez os amantes da música
devessem ser gratos às autoridades britânicas; a ausência forçada de
Londres deu tempo aViotti para se concentrar em suas composições,
escrevendo a respeito delas: "Este trabalho é fruto do lazer que a desdi-
ta me proporcionou. Algumas peças foram ditadas pela Dor; outras, pela
Esperança." Em suas cartas de Schõnfeld aos Chinnery, ele se mostra
"MEU V IOLIN O DEVE REN D ER UM BOM D I N H EI RO " 97

franco e afetuoso, ralhando com a filha do casal, para que não deixasse
de praticar o instrumento, e invariavelmente mandando recomenda-
ções à governanta.
Só em 1801 chegaria ao fim o exílio de Viotti. Durante a Paz de
Amiens, em 1802, ele pôde inclusive viajar a Paris, onde seus discípu-
los constataram que sua arte continuava magnífica. Baillot recordaria
mais tarde a visita:"Sua sonoridade havia-se tornado tão suave, tão doce,
sendo ao mesmo tempo tão cheia e enérgica, que ficávamos imagi-
nando um arco de algodão controlado pelo braço de Hércules." U m
ano depois, em 1803, Rode, Kreutzer e Baillot escreveram juntos um
manual de violino — Méthode de violou — que constituía na realidade
uma codificação do estilo de Viotti. De enorme influência, este volu-
me justifica por si só que Viotti seja considerado o pai da moderna arte
do violino. Ele próprio já se encontrava então de volta à Inglaterra,
mais uma vez impossibilitado de retornar a Paris pelo reinício da guerra.
Livre para se apresentar em Londres,Viotti mais uma vez decidiu não
fazê-lo, mas pelo menos voltou a dar aulas. A prática do ensino levou a
uma curiosa história inicialmente publicada no jornal The Musical World
em 1839, quando já se podia estar certo de que todos os protagonistas
haviam morrido. Dizia-se que certo dia chegou um novo aluno, mem-
bro da aristocracia, trazendo um violino adquirido em viagens pelo con-
tinente europeu. Era um magnífico Strad, embora seu proprietário, músico
perfeitamente medíocre, disso não tivesse idéia.Viotti não teve êxito em
nenhuma de suas tentativas de comprar o violino, mas pelo menos pôde
tomar emprestado o magnífico instrumento, considerando-o superior até
mesmo ao Strad de que era então proprietário. As coisas seguiram seu
curso, até que o nobre foi levado a permanecer um longo período no
campo por causa da morte do pai, deixando seu violino entregue aos
cuidados do professor. Por essa mesma época,Viotti aceitara um outro
aluno, dono de uma brilhante réplica de Strad confeccionada no ateliê
de seu próprio pai,John Betts.Viotti teve então uma idéia que não deve-
mos necessariamente aprovar, tratando logo de solicitar a Betts uma có-
98 STRA D I V A RI U S

pia do Strad do aristocrata ausente. Betts entendeu do que se tratava e


pediu a seu artífice, Fendt, quefizesseduas. No devido momento,"milord"
(como se referia a ele o Musical World) foi reintegrado à posse de uma
falsificação, sem nem de longe desconfiar.Viotti, no entanto, achou seu
suposto original tristemente decepcionante, deu-se conta do que Betts
havia feito, mas não pôde confrontá-lo.Viotti e Betts passaram então a se
evitar, até que, segundo se diz, Viotti foi obrigado a fugir de Londres,
morrendo logo depois. Pelo menos esta parte deve estar errada; e a his-
tória como um todo traça de Viotti um perfil inteiramente diferente do
que foi transmitido por seus contemporâneos. The Musical World, contu-
do, jura que o relato é verdadeiro, sustentando que era bastante conheci-
do em Londres na época.
Existe um outro aspecto interessante nessa história.Viotti tinha um
membro da família Betts como aluno — Arthur, na realidade um ir -
mão de Joh n . Arth ur Betts é lembrado ainda hoje porque em 1820
comprou um Strad por 1 libra [50 libras] de alguém que chegou à loja
para vendê-lo e não tinha a menor noção do que estava fazendo. É
uma história famosa, tanto pelo que revela sobre a moral de certos
negociantes de violinos quanto pelo fato de que o Stradivarius Betts,
fabricado em 1704, é um dos maiores e mais famosos de todos. Pode-
se no mínimo imaginar que Viotti o tivesse preferido a seu próprio
Stradivarius, de 1709, levantando a possibilidade de que Betts tenha
adquirido o Strad que leva seu nome de forma ainda mais condenável
que a relatada na versão autorizada.
Viotti não levava uma vida tão suspeita quanto dá a entender essa
história. Ele foi um dos fundadores da Sociedade Filarmónica, em 1813,
e sempre se movimentou em círculos aristocráticos. As cartas que re-
cebia do duque de Cambridge, décimo filho de Jorge I I I , num francês
detestável, dão testemunho de sua intimidade. Um a delas, de 1817, tra-
ta das providências para que Viotti enviasse um violino a Hanôver, onde
o duque era vice-rei. O instrumento custou 50 guinéus [2.500 libras].
A este preço, era provavelmente um Strad; os preços estavam subindo,
"MEU V IOLIN O D EVE REN D ER UM BOM D I N H EI RO " 99

embora não radicalmente. A essa altura,Viotti já se podia considerar há


trinta e cinco anos o mais influente propagandista das peças do grande
luthier, inicialmente em Paris e logo também em Londres.
Apesar disso, para espanto dos amigos parisienses que restabele-
ceram contato com ele após a abdicação de Napoleão, em 1814, a
principal ocupação de Viotti depois de seu retorno a Londres era como
negociante de vinhos. O que parece surpreendente, mesmo para al-
guém, como Viotti, capaz de tantas coisas e aparentemente tão pouco
deslumbrado com seu sublime talento. Na realidade, ele vinh a de-
senvolvendo esse n egócio desde antes do exílio na Alemanha. A coisa
lhe havia sido recomendada pela sra. Chinnery, que chegou a finan-
ciar a empreitada. Do ponto de vista dos franceses, era simplesmente
uma comprovação da corrupção do violinista por aquele país de
comerciantes
Seja como for,Viotti fez uma breve viagem a Paris naquele mesmo
ano, e rapidamente se tratou de providenciar uma noite no Conser-
vatoire. Mais uma vez seus discípulos puderam ouvi-lo tocar, e mais
uma vez ele se saiu triunfalmente; sua arte só parecia ter-se engrande-
cido naqueles doze anos. Por outro lado, a ausência de Paris havia tor-
nado lendária a figura do virtuose. Ele era endeusado por alunos que
até então só o conheciam por meio de suas composições, que por sua
vez se haviam tornado objeto de um concurso anual. Mas ele não pôde
ser convencido aficar,e não demoraria a retornar ao comércio de v i -
nhos em Londres.
Somente em 1818, quando seu negócio entrou em falência,Viotti,
profundamente endividado, foi mais uma vez forçado a contemplar uma
carreira musical e um retorno a Paris. Deveria ser um retorno triunfal.
O velho benfeitor de Viotti, o conde de Provença, subira ao trono como
Luís XV I I I , e graças a seu apoio Viotti foi, em novembro de 1819,
nomeado diretor da Opera, a mesma posição que tentara ocupar trinta
anos antes. Só podemos especular sobre sua constante relutância em
tocar. Ele certamente poderia cobrar cachês astronómicos para se apre-
100 STRA D I V A RI U S

sentar a um público que crescera ouvindo histórias sobre seu br i-


lhantismo. É provável que, aos 66 anos de idade, sua destreza já não
fosse a mesma. O u talvez achasse realmente que tocar violino fosse algo
aquém de sua capacidade, uma maneira indigna de usar seu talento.
Prefiro acreditar que Viotti adorou a idéia de um último desafio, uma
oportunidade de demonstrar que foi o clima da Paris revolucionária o
motivo de seu primeiro fracasso como empresário.
Infelizmente,Viotti nunca mais voltaria a ter a oportunidade de de-
monstrar seu talento como empresário. Exatamente como da outra vez,
a política foi sua perda. O assassinato do duque de Berry na Ópera no
início de 1820 fez com que a instituição perdesse o financiamento pú-
blico e real.Viotti tentou inverter a situação, transferindo-se por algum
tempo para o Théâtre des Italiens, mas acabou se retirando da vida pro-
fissional em novembro de 1821. Passou seus últimos anos sobretudo na
França, vivendo confortavelmente com uma pensão anual de seis mil
francos [15 mil libras], mas profundamente contrariado com o fato de
que não poderia nunca mais reembolsar seus amigos ingleses. Foi duran-
te uma última visita aos Chinnery, em 1824, que ele morreu. Em seu
testamento,ficapatente a dor que sentia pelo fato de sua vida ter tomado
o rumo que tomou. Ele declara que sua alma está dilacerada pela angús-
tia de saber que morrerá devendo 24 milfrancosà sra. Chinnery: "Se eu
morrer antes de poder pagar essa dívida, peço que tudo que tenho no
mundo seja vendido, e o produto da venda, enviado a Madame Chinnery
ou seus herdeiros, pedindo apenas que eles possam pagar a meu irmão,
André Viotti, a soma de 800 francos que eu lhe devia."
Entre seus pertences, ele menciona seu Stradivarius, o Viotti de 1709,
na triste esperança de que ele "deve render um bom dinheiro". Pelos
padrões da época, ele estava certo. Leiloado no Hotel Bouillon em Paris,
o violino foi arrematado por 3.816 francos [dez mil libras]. Provavel-
mente era então um recorde, uma indicação do impacto que, sozinho,
aquele homem havia tido no valor dos violinos Stradivarius, mas não o
suficiente para pagar suas dívidas.
"M E U V I O LI N O D E V E R E N D E R U M BO M D I N H EI RO " 101

O violino foi deslizando para a obscuridade. Tendo permanecido


na França, pelo meado do século estava na posse de um tal Monsieur
Brochant de Villiers, o qual, podemos presumir, não era exatamente
capaz de extrair dele a melhor sonoridade. Ainda assim, o violino de
Viotti não foi esquecido. Mais ou menos por essa época, François Fétis
designou-o, com absurda convicção, o "terceiro melhor" Strad então
existente. Deveriam passar-se mais cinquenta anos, no entanto, até que
o Viotti voltasse a atrair a atenção dos amantes da música em todo o
mundo. Enquanto isso, e graças a ele, todos os outros instrumentos que
vimos acompanhando alcançariam algum destaque.
Capí t u l o Sete

"AOS V I R T U O SE S D O V I O L I N O "

O príncipe Kh even h iiller, o conde Cozio,


Joseph Bõ h m e Tarisio

NO DIA 4 DE NOVEMBRO DE 1800, o príncipe Johann Sigismund


Friedrich de Khevenhúller-Metsch casou-se pela segunda vez na alta
aristocracia. Tendo já completado 66 anos, ele deve ter encarado sua
união com Maria Giuseppina, condessa de Strassoldo, com menos da
metade de sua idade, como um novo começo. O presente que lhe ofe-
receu, um violino, um ano mais moço que ele próprio, mas apenas no
início da maturidade, parece quase simbólico. Além disso, ele tinha gosto,
riqueza e relações suficientes para se assegurar de que teria comprado
o melhor: o grande violino feito por Stradivari em 1733, quando tinha
já quase 90 anos. Ele passaria a ser chamado o Khevenhuller.
Filho mais velho de uma das famílias mais influentes de Viena, o
príncipe Khevenhuller crescera acostumado à idéia de que faria parte
da elite governante da Áustria. U m primo seu, o general Ludw ig
Khevenhuller, havia salvado o trono de Maria Teresa bem no início de
seu reinado, em 1744.0 pai do príncipe,Johann-Joseph, era o camarista
da imperatriz, e um de seus conselheiros mais próximos. Seus diários
são ainda hoje a melhor fonte de informação sobre a vida na corte. O
próprio príncipe casou-se pela primeira vez quando tinha apenas 22
anos. Sua mulher, Marie-Amélie, princesa de Liechtenstein, 17 anos,
poderia ser considerada ainda mais aristocrática; e dois anos depois ele
deu início a sua carreira diplomática.
104 STRA D I V A RI U S

Os primeiros postos ocupados pelo príncipe foram como embai-


xador junto às cortes de Portugal, inicialmente, e logo de Turim. Cinco
anos depois de voltar à Áustria, ele tornou-se em 1775 o representante
do império na Itália, na verdade o governador do ducado de Milão,
onde se encontrava Cremona. Até que, em 1782, pôs fim a sua carreira
pública. Seus motivos já não parecem fáceis de deduzir, mas não deixa
de ser interessante que, mesmo como simples cidadão, o príncipe per-
manecesse em Milão e suas redondezas pela maior parte do que lhe
restava de vida. Parece ter sido um exílio auto-imposto; ele simples-
mente preferia a cultura e o estilo de vida da Itália aViena, que se en-
contrava então em seu apogeu imperial.
Marie-Amélie é uma figura ainda mais obscura que o marido.Teve
nove filhos, quatro dos quais sobreviveram à primeira infância, e veio a
morrer em 1787, sem ter completado 50 anos e apenas um mês depois
de seu filho mais velho, Johann-Joseph. Nem mesmo esta dupla perda
fez com que o príncipe voltasse aViena; ele permaneceu na Itália, onde
ganhou fama de homem de cultura e conhecimento. Assim é que, 13
anos depois, vamos encontrá-lo em Viena, casando-se com Giuseppina
Strassoldo, originária da cidade homónima do norte da Itália.
A corte e o que os atraiu um para o outro só podem hoje ser mo-
tivo de especulação. Mas parece razoável que a futura esposa tenha
chamado a atenção do príncipe inicialmente por sua habilidade no
violino. Há registros de que ela foi uma violinista de mérito, e é fácil
imaginá-lo encantado numa soirée milanesa. O u talvez terão ambos
fugido para Viena após a invasão de Napoleão, podendo então com-
partilhar lembranças de sua amada Itália. Na realidade, sabemos apenas
uma coisa: que o príncipe Khevenhuller deu aquele violino à mulher.
Naturalmente, o príncipe podia ter lido na etiqueta do violino a
inscrição "An n i 90", informando a idade de seu artífice. Na época
mais de 22 anos mais moço, podia com isto sentir-se reconfortado,
no momento em que dava início a uma nova vida com uma esposa
de 31 anos. E m questão de um ano, contudo, ele estava morto, final-
A O SV I RTU O SES D O V I O LI N O " 105

mente de volta à terra natal em Klagenfurt, na Caríntia, onde fica-


vam as propriedades de sua família. De modo que o príncipe esteve
na posse do violino por apenas um ano e nunca chegou a tocá-lo,
mas ainda assim o Khevenhuller leva seu nome. Afinal, ele efetivamen-
te deixou no instrumento um lembrete permanente de sua posse, um
selo negro perto do alto do fundo, representando os brasões sobre-
postos das famílias Khevenhuller-Metsch e Strassoldo. Por este moti-
vo, o nome do príncipe ainda é eventualmente lembrado, muito depois
de já terem desaparecido da memória seus outros motivos de fama.
O violino também constitui a única lembrança do breve casamento:
eles não tiveram filhos, nem pude encontrar qualquer sinal do que
aconteceu a Giuseppina depois de 1801, quando já era princesa de
Khevenhuller-Metsch.
Quanto ao local onde o príncipe Khevenhuller adquiriu o gran-
de Strad, o fato de ter tido tantas relações na Itália significa que eram
muitas as fontes possíveis. Destaca-se, no entanto, uma possibilidade:
o conde Cozio di Salabue. A situação do conde havia decaído nos 25
anos que transcorreram desde que comprara o Messias e outros vio-
linos, além das ferramentas e gabaritos, de Paolo Stradivari. Suas pro-
priedades estavam na trilha da invasão napoleônica da Itália. Com isso,
não haviam sido poupadas, embora pelo menos sua coleção de ins-
trumentos, sendo, naturalmente, transportável, tenha sido transferida
para Milão. A ausência desses tesouros, contudo, parece ter diminuí-
do a afeição a eles dedicada pelo conde. Assim é que o ano de 1800
— o do segundo casamento do príncipe Khevenhuller — é também
aquele em que o conde começou a contemplar a possibilidade de
vender instrumentos. A combin ação da data e do local é curiosa.
Caberia supor que um dos primeiros clientes do conde foi o prínci-
pe Khevenhiiller, habitante de Milão que então procurava um violi-
no adequado para a noiva?
Para os estudiosos de Stradivari, a possibilidade de que Cozio tenha
estado na posse do Khevenhuller é importante. Ela corrobora a tese da-
106 STRAD IVARIUS

queles que acreditam que foi ele, e não o próprio Antonio Stradivari,
que inscreveu a idade do artesão nas etiquetas dos últimos instrumen-
tos, com base na informação que recebera de Paolo Stradivari. Já o meu
interesse está focalizado numa perspectiva diferente. Cozio também foi,
como sabemos, o proprietário do Messias. De modo que dois de nossos
instrumentos podem ter cruzado seus caminhos em sua coleção. Pode-
riam, assim, ter sido mantidos juntos, intocados mas admirados, por até
25 anos. Até onde sei, no entanto, eles não voltariam a se encontrar
depois de 1801.

A NOVA PRINCESA de Khevenhuller-Metsch certamente terá guar-


dado consigo o seu violino depois da morte do marido. O mais pro-
vável é que tenha permanecido em Viena. Pois é lá que o Khevenhuller
volta a aparecer, por volta de 1820. Joseph Bõh m era um violinista
húngaro, inspirado por Pierre Rode, um dos mais destacados pupilos
de Viotti, e por breve tempo seu aluno. Com eçou sua carreira com
uma turnê européia, acompanhado pelo pianista Johann Pixis. Seu
sucesso foi imediato e universal, mas foi em Vien a, onde tocou pela
primeira vez em 1815., com apenas 20 anos de idade, que Bõh m teve
a recepção mais calorosa. Decidiu então estabelecer-se na capital
austríaca, tornando-se professor de violino no recém-criado conser-
vatório em 1819. E m apenas dois anos, como membro da orquestra
da capela imperial, ele havia dado vida nova a uma instituição vienense:
os concertos matinais de quarteto de cordas, às 8 horas da manhã, na
Primeira Cafeteria, na Prater-allée.Ali é que o Khevenhuller foi ouvi-
do em público pela primeira vez. O instrumento provavelmente não
precisara viajar muito para ser transferido de uma residência vienense
a outra.
Bõh m iniciou sua carreira em Viena numa época em que chegava
ao fim a de seu principal génio musical. Ludwig van Beethoven já es-
tava a esta altura quase totalmente surdo, mas voltava seu sublime ta-
AOSVIRTUOSES DO VIOLINO" 107

lento para as composições que para muitos constituem as obras-primas


de toda a sua trajetória: os últimos quartetos de cordas. B õ h m e o
Khevenhuller estavam no lugar certo no momento exato. O primeiro
dos derradeiros quartetos de Beethoven, o opus 127 em m i bemol, teve
sua estreia no dia 6 de março de 1825 a cargo do quarteto liderado por
Ignaz Schuppanzigh. N ã o foi uma experiência realmente satisfatória.
Beethoven havia subvertido a forma clássica com uma série de inova-
ções, introduzindo texturas e sonoridades inéditas. O público n ã o sa-
bia o que pensar a respeito, e os próprios instrumentistas provavelmente
não estavam completamente preparados para uma música tão difícil,
tendo recebido a partitura apenas duas semanas antes.
Beethoven culpou a excessiva robustez sonora de Schuppanzigh pelo
fracasso, e insistiu em que a execução seguinte ficasse a cargo do mes-
mo quarteto, mas sob a liderança de B õ h m . O violinista relembraria
posteriormente:

Beethoven não sossegava enquanto a desonra não era lavada. Mandou


chamar-me logo ao amanhecer — à sua maneira habitualmente seca,
disse-me: "Você tem que tocar o meu quarteto"— e a coisa foi deci-
dida. Não havia espaço para objeções nem dúvidas, o que Beethoven
queria tinha de ser feito, de modo que eu abracei a difícil tarefa.

Os ensaios foram para B õ h m uma experiência perturbadora:

O quarteto foi conscienciosamente estudado e ensaiado com fre-


quência diante dos olhos do próprio Beethoven. E digo "olhos"
intencionalmente, pois o infeliz estava tão surdo que não podia mais
ouvir o som celestial de suas próprias composições. Ainda assim,
ensaiar em sua presença não era fácil. C o m a mais apurada atenção,
seus olhos acompanhavam o movimento dos arcos, e ele podia as-
sim avaliar as menores variações de andamento ou ritmo, corri-
gindo-as imediatamente.
108 STRADIVARIUS

Ainda assim, B õ h m conseguiu exercer alguma influência:

No fim do último movimento desse quarteto, havia um meno vivace*


que me parecia contraproducente para o efeito global. No ensaio, as-
sim, sugeri que o andamento original fosse mantido, para se obter um
melhor efeito. Beethoven, agachado num canto, nada ouviu, mas ob-
servava intensamente. Após o último movimento dos arcos, disse laco-
nicamente:"Que fique assim". Aproximou-se das estantes e eliminou
o meno vivace das quatro partes.

N u m outro episódio, numa das primeiras leituras de u m quarteto (quase


certamente este mesmo), B õ h m teve a coragem de declarar que certa
passagem era impossível de tocar. " B õ h m ! Ele é u m animal!", reagiu
imediatamente Beethoven. Mas nem por isso o compositor deixou de
promover certas modificações, voltando no ensaio seguinte com o
comentário: " N a , Bõhmerl,** está satisfeito agora?"
Pode ter sido por causa do tempo mais prolongado de ensaios, ou
pela natural afinidade de B õ h m com a música, e certamente o "vigo-
roso, macio e doce" Khevenhuller desempenhou u m papel, mas o fato é
que a segunda execução do quarteto e as subsequentes foram enormes
sucessos. B õ h m esteve à frente de quatro delas: uma vez para u m públi-
co pequeno, duas vezes num mesmo concerto público noturno e o u -
tra vez num merecido recital beneficente para ele próprio. Estimulado
com a experiência, Beethoven dedicaria o resto de sua vida a compor
os quatro novos quartetos que concluem esse grupo. Dificilmente a
posteridade poderia ter maior dívida com u m violinista ou u m violino.

MAIS O U MENOS por essa mesma época, o conde Cozio finalmente se


decidia a vender o Messias. Desde o início da década de 1800, ele conti-

* "Menos rápido" em italiano, uma instrução do compositor para que os m ú s i c o s retardas-


sem o andamento.
**Forma de tratamento informal que poderia ser traduzida como "Meu camaradinha B õ h m " .
AOS V I R T U O S E S DO VIOLINO 109

nuara à procura de compradores para sua coleção, chegando a publicar


anúncios, primeiro em francês e posteriormente em inglês, nos seguintes
termos:

AOSVIRTUOSES DO VIOLINO

U m Virtuose que reuniu uma grande e seleta coleção de Violinos


dos mais famosos Autores antigos de Cremona, a saber,A'NTHONY,
JEROM E NICOLAS AMATI, A'NTHONY STRADIVARIUS,
F R A N C I S R U G E R , chamado P E R , A N D R E A S e J O S E P H
GUARNERIUS, CHARLES BERGONZI e JOHN BAPTIST
G U A D A G N I N I , estando agora disposto a vender essa coleção aqui
em Milão, seja em seu todo, seja separadamente, a um preço conve-
niente, convida todos os virtuoses eventualmente interessados a se
dirigirem nesta cidade ao Negociante A'nthony Clerici na casa
Cavanago, na rua de mesmo nome, n° 2.334, do meio-dia às duas
horas e das quatro às seis.

O anúncio não parece ter atraído muitos interessados. O conde certa-


mente estava certo ao supor que os ingleses é que poderiam pagar
p r e ç o s mais elevados; mas provavelmente havia muito poucos
"Virtuoses" ingleses em Milão durante as guerras napoleónicas. A ver-
são francesa do anúncio é mais detalhada e gramaticalmente mais cor-
reia, mas tampouco parece ter atraído maior interesse imediato.
C o m o passar do tempo, contudo, a fama da coleção do conde es-
palhou-se; muitos músicos vinham conhecê-la. U m deles foi o grande
compositor e violinista alemão Ludwig Spohr, inventor da queixeira. A
entrada de 22 de setembro de 1816 em seu diário faz referência a uma
visita ao Conservatório em Milão, onde se encontrou com o "Conde
Gozio [sic] de Solence". E l e tinha
110 STRADIVARIUS

quatro Stradivarius que nunca haviam sido tocados, e que, apesar de


muito antigos, parece que acabaram de ser feitos. Dois desses violinos
são obra do último ano de vida desse artista, 1773 [sic], quando já era
um homem de idade, com 93 anos. Mas imediatamente se pode per-
ceber no violino que foi entalhado pelas mãos tremulas de um ancião
doente; os outros dois, contudo, são dos melhores dias do artista, entre
1743 e 1744, e de grande beleza. A sonoridade é cheia e bem projeta-
da, mas ainda assim fresca e lenhosa, e para que se tornem devidamen-
te apurados, eles precisam ser tocados por pelo menos dez anos.

Sabendo que Stradivari morreu em 1737, não podemos evidentemen-


te confiar nas datas atribuídas por Spohr à coleção de Cozio. Entretan-
to, u m dos violinos dos "melhores dias do artista" certamente deve ser
o Messias, que havia completado então exatamente u m século e ainda
hoje parece que acabou de ser feito. Até mesmo os comentários de
Spohr sobre sua sonoridade seriam repetidos por outras testemunhas
mais pelo fim do século. Pela altura da morte do conde em 1840, toda-
via, o Messias j á havia sido vendido. Seu comprador n ã o poderia ser
mais improvável: o filho de u m camponês de Fontaneto,* LuigiTarisio.
É espantoso que um homem de origem tão humilde acabasse dono
de uma coleção que deixava para trás até mesmo a de Cozio.Tarisio pro-
vavelmente teve uma formação de carpinteiro. Paralelamente a isso, o
hobby de tocar violino acabaria levando a uma obsessão com as obras-
primas cremonesas.É difícil imaginar como ele começou a traduzir con-
cretamente esse gosto em aquisições.Tarisio não gastava dinheiro consigo
mesmo, e na época os violinos certamente eram baratos, em comparação
com os valores que viriam a suscitar, mas ainda que lhes fossem atribuí-
dos preços adequados, estariam completamente fora de suas posses. Po-
demos deduzir que a sorte o ajudou em certos casos, o que, juntamente
com seu faro para obras-primas e uma provável ausência de remorsos
por pagar abaixo do preço, foi suficiente para abrir-lhe os caminhos.

* Q u e t a m b é m é, por uma dessas curiosas coincidências, a cidade natal de Viotti.


"AOS V I R T U O S E S D O V I O L I N O " 111

Seja como for, pela altura da década de 1820Tarisio estava percor-


rendo a Itália, tocando violino para se sustentar e farejando tesouros
onde podia.Valia-se dos truques de qualquer negociante moderno de
antiguidades. Chegando a determinada aldeia, fazia amizade com os
habitantes para descobrir se alguém tinha u m violino, ou então visitava
mosteiros e outros locais igualmente promissores, oferecendo-se para
consertar os instrumentos. Munido das necessárias informações, toma-
va p é na situação, talvez simplesmente comprando a preço barato, ou,
de maneira mais sutil, oferecendo violinos novos em troca de velhos.
Ainda que não chegasse a efetivar nenhuma aquisição, o conhecimen-
to e as informações eram sempre preciosos para ele; e aos poucosTarisio
foi-se tornando ao mesmo tempo u m conhecedor e u m colecionador.
T i n h a a grande vantagem, como observariam queixosamente futuros
negociantes, de encontrar esses violinos quando ainda ostentavam suas
etiquetas originais, sendo por isso capaz de fazer uma avaliação do tra-
balho de diferentes luthiers sem ser atrapalhado por informações i m -
procedentes. J á aqueles que compravam violinos dele n ã o tinham
necessariamente a mesma sorte: ele n ã o parece ter sido avesso a au-
mentar o valor de u m instrumento com uma ou outra bem aplicada
falsificação. Apesar disso, até mesmo contemporâneos que se davam conta
do que ele fazia não chegavam a considerá-lo u m vigarista. Se estivesse
em busca de lucros pessoais, certamente teria levado uma vida mais
luxuosa.
Provavelmente devemos a melhor percepção do caráter de Tarisio
ao romancista e especialista em violinos Charles Reade, que fez vários
negócios com ele: " O sujeito dedicava-se com toda a alma aos violi-
nos, era u m grande negociante, mas u m amador ainda maior." E r a esta
com certeza a opinião que prevalecia em vida do próprio Tarisio. N ã o
é muito provável que o conde Cozio tenha tido muito a ver com ele.
O que é certo é que, em dado momento depois de 1823,Tarisio conven-
ceu o conde a separar-se da j ó i a de sua coleção, o Strad de 1716 que
ainda se encontrava em estado impecável, o Messias.
112 STRADIVARIUS

Tarisio c o m e ç o u a ser notado fora da Itália em 1827, quando fez a


primeira de suas hoje famosas viagens a Paris para vender parte de seu
tesouro. Deixando seus melhores instrumentos em casa, como sempre,
Tarisio fez a primeira incursão a pé, escolhendo u m luthier parisiense,
Aldric, como seu primeiro possível cliente. Este deve ter pensado que
estava feito na vida ao ver chegar aquele desmazelado camponês italia-
no com suas obras-primas. Alto e magro, de aparência perfeitamente
comum, Tarisio falava francês sofrivelmente e se vestia mal. A longa
caminhada havia deixado seu rosto sujo, suas roupas, em frangalhos, e
os pesados calçados, sem solados. Farejando ali uma oportunidade, Aldric
ofereceu uma fração do real valor dos violinos, e ficou desconcertado
ao tomar conhecimento de que aquele andarilho sabia perfeitamente
o que estava vendendo.Tarisio provavelmente sabia mais sobre violinos
que qualquer outra pessoa na época; seu destino, por sinal, seria acabar
educando os próprios clientes.Todavia, a transação havia começado de
u m jeito que Tarisio se v i u obrigado a aceitar u m preço mais baixo do
que esperava, ainda que muitas vezes superior à oferta original. Ele n ã o
voltaria a cometer o mesmo erro.
A o retornar a Paris dois meses depois, Tarisio vinha muito bem
arrumado e vestido na última moda. Contratou uma carruagem e, tra-
tando de evitar Aldric, fez a ronda de toda a jovem geração de luthiers
parisienses, homens como Georges Chanot e seu amigo Jean-Baptiste
Vuillaume. N ã o se limitando a pagar os preços que Tarisio pedia, mas
fazendo cada u m ofertas mais elevadas que o outro, eles fizeram o pos-
sível para convencê-lo a levar a Paris mais itens de sua coleção. C o m o
qualquer bom vendedor, ele por sua vez tratava de fazê-los salivar,
espicaçando-os com a revelação da existência, em Milão, de seu perfei-
to Stradivarius de 1716. Foi numa dessas ocasiões que Delphin Alard,
genro de Vuillaume e por sua vez u m grande violinista, reagiu com
compreensível exasperação: " A h , ça, votre violon est donc comme le
Messie; on 1'attend toujours, et il ne paraít jamais." ("Quer dizer então
que o seu violino é como o Messias, que está sempre sendo esperado,
AOS V I R T U O S E S D O V I O L I N O " 113

mas nunca aparece") O Messias j á n ã o era apenas famoso: Alard acaba-


va de lhe dar u m nome.

C O M O INSTRUMENTO, contudo, o Messias rapidamente se ia tornan-


do u m anacronismo. Mais cobiçado pelos colecionadores do que pelos
músicos, foi u m dos poucos Strads que escapou de adaptações nos p r i -
meiros anos do século X I X . Pois o fato é que a mudança de tendência
que seu fabricante começara a prever u m século antes finalmente esta-
va ocorrendo; seguindo o exemplo da ópera, a música instrumental
t a m b é m se transferia dos aposentos e salões de baile privados da aristo-
cracia para os espaços públicos. Dependendo do público pagante para
auferir sua renda, os solistas tinham de produzir uma sonoridade capaz
de atingir até as últimas fileiras de assentos das maiores salas de concerto.
O arco desenvolvido por Tourte ajudava, mas havia ainda uma ou-
tra maneira de aumentar a projeção e o brilho de u m instrumento: elevar
seu diapasão. A partir de 1800 aproximadamente, a frequência do lá
central, a segunda corda do violino, em função da qual toda a orquestra
é afinada, aumentou de cerca de 420 vibrações por segundo (Hertz)
para cerca de 435 Hertz pelo meado do século X I X , e até 460 Hertz
atualmente.Aquilo que para Stradivari era u m lá, hoje soaria mais como
o sol u m tom abaixo dele. O consequente aumento da tensão nas cor-
das aumentou a pressão sobre o cavalete, acarretando o risco de que o
tampo viesse a ceder. Para evitá-lo, a antiga barra harmónica precisou
ser substituída por uma outra, mais longa e forte. Frequentemente a
alma t a m b é m seria espessada.
Outro avanço suscitado para acompanhar os progressos técnicos
feitos pelos virtuoses foi a adaptação dos braços de todos os antigos
violinos. Os violinistas buscavam maior abrangência e versatilidade no
dedilhado, precisando movimentar a m ã o esquerda com facilidade para
cima e para baixo no braço, do cravelhal ao cavalete. O que n ã o era
permitido pelo braço à maneira antiga, no mesmo plano que a caixa
114 STRADIVARIUS

harmónica e com u m espelho em forma de cunha. Ele ia se tornando


mais grosso e mais difícil de segurar à medida que a m ã o esquerda o
percorria. A solução foi inclinar o braço para trás recorrendo a u m
enxerto, para que ele ficasse paralelo às cordas, e substituir o espelho
em cunha por outro mais fino e longo. Geralmente as alterações na
barra harmónica e no braço eram feitas simultaneamente. E m certo
sentido, o violino havia sido transformado, mas o elemento central de
sua concepção — o tamanho e a forma da caixa harmónica — mante-
ve-se intacto.
Todos os violinos de concerto passaram por esse tipo de alteração.
Temos aí uma evidente indicação de que os violinos e violoncelos clás-
sicos, que j á eram então verdadeiras antiguidades, não eram valoriza-
dos por sua idade, mas por suas qualidades musicais. Os instrumentos
da última fase de Stradivari, concebidos com a idéia da forte projeção
sonora em mente, mostraram-se magnificamente à altura do desafio. O
mesmo n ã o aconteceu com os violinos de sonoridade suave e arquea-
mento pronunciado feitos por Amati e Stainer, como aliás com os dos
luthiers setecentistas que haviam seguido seu exemplo. A superioridade
do modelo de Stradivari j á não podia ser questionada, e a velha ordem
nunca mais seria restabelecida. Seria difícil imaginar mais categórica
justificação das experiências empreendidas durante tantos anos pelo
Mestre. Tudo isso nos defronta, contudo, com uma suprema ironia: a
sonoridade brilhante e poderosa que tornou famosos os Strads, e que é
basicamente a responsável por sua valorização, é muito diferente da-
quilo que seu próprio fabricante deve ter ouvido.
Capítulo Oito

' A G R A N D E VIRADA NA HISTÓRIA


DO VIRTUOSISMO"

Paganini, showman e negociante

E M QUALQUER LIVRO de história da música no século X I X , os nomes


de violinistas e violoncelistas saltam das páginas; hoje, só é possível dis-
tinguir uns dos outros pela qualidade de suas composições e o entusias-
mo dos relatos contemporâneos sobre sua arte. Antes do advento das
gravações, a apreciação da arte de u m instrumentista só podia ser
efémera.Tanto mais notável, por isto mesmo, é que o nome de N i c o l ò
Paganini continue a ressoar tão poderosamente. As associações que ele
evoca — talento cheio de exaltação, brilhantismo técnico e excessos
dramáticos — ainda hoje são tão fortes quanto na época em que o
público acreditava que ele havia feito u m pacto com o diabo.
Paganini não foi o primeiro virtuose itinerante, mas mostrou que a
arte do violino podia ser lucrativa. E m sua época, n i n g u é m podia os-
tentar a mesma combinação de habilidade e insolência, e nenhum dos
sucessores tem escapado da comparação com o grande maestro. N a
memorável formulação de Robert Schumann, ele foi "a grande virada
na história do virtuosismo". A história de Paganini está portanto inti-
mamente ligada à de Stradivari. Ele esteve na posse de u m de nossos
cinco violinos, e seus caminhos cruzaram com o de outro; e ao criar e
atender a demanda de um público grande por solistas de violino, con-
tribuiu tanto quanto Viotti para a supremacia do modelo Stradivari.
N ã o deixa de ser paradoxal, portanto, que o instrumento com o qual
116 STRADIVARIUS

seu nome esteve mais associado não fosse u m Strad, mas u m violino
fabricado pelo outro grande mestre cremonês, Guarneri dei Gesú. A
história de sua aquisição por Paganini constitui u m dos mitos centrais
de sua lenda.
Paganini foi iniciado na música ao cinco anos de idade, quando
c o m e ç o u a aprender a tocar bandolim com o pai, que trabalhava numa
empresa de navegação em Génova. Dois anos depois, aprendeu os r u -
dimentos do violino e, como diria mais tarde, "em questão de poucos
meses eu j á era capaz de tocar qualquer música à primeira leitura".
Passou então a tomar aulas, e em 1793, aos 11 anos, Paganini apresen-
tou-se pela primeira vez em público. O sucesso então obtido fez o pai
pensar melhor na questão. Nos seis anos subsequentes ele acompanha-
ria de perto o filho, insistindo em dez horas diárias de estudo como
base de uma programação de lucrativos concertos, inicialmente em
Génova e logo t a m b é m fora da cidade. Só aos 18 anos o jovem virtuose
conseguiria finalmente escapar, transferindo-se com o irmão mais ve-
lho para a cidade toscana de Lucca.
Livre do controle paterno, Paganini deu início a sua conhecida vida
de excessos. C o m o diria mais tarde, "quando finalmente me v i dono
de m i m mesmo, tratei de sorver os prazeres da vida em grandes tra-
gos". Ele passaria os próximos 27 anos na Itália, enchendo sua vida de
música, paixões amorosas e jogo, com longos intervalos de total exaustão.
Os quatro primeiros anos fora de Génova serviram para se estabelecer
na vida, dando concertos em Lucca e em cidades vizinhas. Pelo fim da
vida, Paganini negava indignado as acusações de que passou aqueles
anos na prisão, pelo assassinato de u m rival no amor, aperfeiçoando sua
arte num violino contrabandeado. N ã o menos exótica, mas infelizmente
não menos inverídica, é a história segundo a qual encontrava-se então
num castelo toscano, aprendendo a tocar violão e se valendo dessa nova
habilidade em serenatas para uma amante aristocrática.
Foi nesse período, contudo, que Paganini adquiriu o seu D e l Gesú,
que viria a cruzar o seu caminho em Leghorn, no início da década de
A G R A N D E VIRADA NA HISTÓRIA D O VIRTUOSISMO" 117

1800. O homem que o cedeu, u m comerciante francês chamado C o -


ronel Livron, era o proprietário nessa cidade de u m teatro no qual
Paganini havia sido contratado para tocar. N ã o se sabe ao certo por
que acabou dando ao virtuose o seu D e l Gesú fabricado em 1742, mas
a versão mais conhecida é de que se tratou inicialmente de u m em-
préstimo. Paganini havia chegado a Leghorn sem u m violino, tendo
empenhado seu instrumento anterior para pagar uma dívida de jogo.
Depois de ouvir Paganini tocar, o Coronel deu-se conta de que seu
violino havia encontrado seu verdadeiro mestre, e insistiu em que ele
ficasse com o músico: " E u jamais seria capaz de profanar cordas que
foram tocadas por seus dedos; este instrumento é seu." A sonoridade
vibrante e potente do D e l Gesú era perfeita para o estilo de Paganini.
Ele logo viria a ganhar u m nome dos mais evocativos — o Ca
tornando-se inseparável de seu virtuose.

ENTRE 1805 E 1813,Paganini esteve ligado à corte da irmã de Napoleão,


Elise, inicialmente em Lucca e logo em Florença. N ã o faltaram rumo-
res de que teria então conquistado uma amante real. Madame Laplace,
dama de companhia de Elise, certamente foi uma conquista amorosa.
E l a aparentemente tinha preferência — bastante eclética, por sinal —
por génios. O marido que assim traía era u m dos mais destacados m a -
temáticos e astrónomos da França; ainda hoje a utilização das "trans-
formadas de Laplace" é ensinada nos cursos superiores de matemática.
Madame Laplace pode ter sido a inspiradora da "Scène amoureuse"
composta por Paganini, e por ele tocada pela primeira vez — em apenas
duas cordas—na corte de Lucca.A corda grave sol devia representar Adônis,
e a corda aguda mi,Vênus. À amorosa melodia inicial da deusa no registro
agudo responde a paixão romântica de Adônis na corda sol, juntando-se
as duas vozes no jubiloso clímax final. O sucesso foi tamanho que a princesa
Elise, nas palavras de Paganini, "botou-me nas nuvens, e depois disse, da
maneira mais encantadora:'O senhor acaba de tocar coisas impossíveis em
118 STRADIVARIUS

duas cordas; não bastaria uma única corda para o seu talento?' E u prometi
tentar. A idéia me encantou, e algumas semanas depois compus minha
Sonata militar para a corda sol, intitulada 'Napoleão', que executei diante
de numeroso e brilhante público palaciano."
A execução, para não dizer a composição da Sonata Napoleão, abar-
cando mais de três oitavas numa única corda, é uma proeza técnica
extraordinária. Corrobora o que os contemporâneos diziam de seu
compositor — que a exibição de virtuosismo levava a melhor sobre a
musicalidade. Pirotecnias de arrebentar as cordas, scordatura* e elevação
do diapasão do violino em u m semi tom para obter mais brilho: tudo
isso fazia parte dos dramáticos recursos de algibeira cultivados por
Paganini. Ainda hoje o Canhão traz as cicatrizes.
A partir de 1812, Paganini passou a viajar pela Itália, ganhando fama
ao mesmo tempo de maior violinista do país e de D o n Juan. U m a dessas
aventuras levou a u m processo por descumprimento de promessa que
lhe custou 3.000 francos [7.000 libras]. Essa fama é que provavelmente
levou u m médico, em 1823, a considerar o aspecto cadavérico de
Paganini e sua persistente tosse como sintomas de uma sífilis "oculta".
O que se prescrevia na época para esses casos era mercúrio, administra-
do tanto em forma de unguento como por via oral, em doses a que o
próprio Paganini se referia como "homicidas". Os efeitos colaterais
clássicos do tratamento são tremor das mãos e deterioração da visão, e
foram precisamente esses os sintomas que ele c o m e ç o u a evidenciar
depois de cinco anos. Apesar disso, foi este o momento que escolheu
para dar início a sua turnê européia.

PAGANINI ATENDIA a um convite antigo. Já em 1817 o conde M e t -


ternich, chanceler da Áustria, o havia convidado a ir aViena. Foi a amante
do violinista, a dançarina e cantora Antónia Bianchi, que finalmente o

* Modificação deliberada da afinação das cordas.


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convenceu a aceitar. Levando o filho de dois anos, Achillo, ela acompa-


nhou o virtuose e seu Canhão em sua primeira viagem fora da Itália,
no início da primavera de 1828.
Seria difícil exagerar a impressão causada por Paganini na capital
austríaca. O momento era perfeito. Nos vinte anos anteriores, haviam
sido suficientes os comentários sobre seu génio provindos da Itália para
fazer com que todos quisessem ouvi-lo; e ele ainda estava p r ó x i m o do
auge de sua capacidade ao adentrar o cenário internacional. As entra-
das para seu primeiro concerto no Salão de Baile Imperial custavam
cinco vezes mais que o preço habitual, de tal modo que a nota de c i n -
co gulden [40 libras] logo passou a ser chamada de "Paganiner". Ainda
assim, o enorme salão ficou lotado.
Paganini entrou depois de uma breve introdução orquestral da qual
fazia parte a abertura de Fidélio. Magro e mortalmente pálido, ele po-
deria perfeitamente representar o prisioneiro voltando a ver a luz do
sol na mais famosa cena da ópera de Beethoven. Quando se curvava
para cumprimentar, era como se seu corpo se estivesse separando das
pernas; mas ele não era uma figura que inspirasse riso. N o momento
em que começava a tocar, o público era arrebatado. Ele c o m e ç o u com
seu próprio Concerto para violino em si menor, composto dois anos
antes. O primeiro movimento é de enorme dificuldade, tanto para o
instrumento quanto para o instrumentista, alternando passagens de
intenso lirismo e arrebatadoras exibições da bravura do virtuose; staccato
volante, cordas dobradas* de impressionante rapidez, trinados em es-
cala ou sustentados numa corda, enquanto em outra é conduzida a
melodia. Paganini havia retomado a forma concertante tal como de-
senvolvida por Viotti, acrescentando u m grau de dificuldade técnica
que só poderia estar ao alcance de u m violinista perfeito na entonação
e no controle do arco, e de poderes aparentemente sobre-humanos em
matéria de destreza.

* Tocar simultaneamente em duas ou mais cordas.


120 STRADIVARIUS

E m contraste, o segundo movimento, u m Adagio, é de melodiosa


simplicidade, impressionando mais pela pureza da sonoridade e do sen-
timento. Franz Schubert, frequente integrante do público vienense de
Paganini, dizia ouvir aqui u m anjo cantar. O Rondo final muda nova-
mente de clima. Conhecido como La Campanella, incorpora uma
melodia popular, tendo-se tornado uma das peças mais emblemáticas
do virtuosismo violinístico. A o ser ouvido o último acorde, o público
estava em delírio. Paganini teve sua típica reação de perfeito controle.
"Lá estava ele diante de nós, como uma aparição miraculosa no terre-
no da arte", escreveu u m crítico. O resto do concerto teve impacto
semelhante. Os aplausos finais foram puxados pelos próprios músicos
da orquestra, num frenesi de entusiasmo. N i n g u é m jamais vira até en-
tão virtuosismo daquela natureza.
A pobre Antónia Bianchi, apresentando-se entre duas intervenções
do amante, havia sido perfeitamente ignorada. N ã o surpreende, assim,
que dentro de seis meses j á o tivesse deixado. Por dois m i l escudos
milaneses [30 m i l libras], ela abriu m ã o dos direitos sobre Achillo, que
haveria de tornar-se o centro da vida do pai. Q u e m o visitava no ca-
marim ficava impressionado com a maneira como o violinista, apesar
da fama de sujeito avaro e diabólico, tornava-se terno e brincalhão na
presença do filho.
A estréia vienense de Paganini dera-se no dia 29 de março de 1828.
À sua segunda apresentação, a 11 de abril, compareceram todos os
membros da família imperial que se encontravam em Viena. O salão
de baile j á estava cheio três horas antes do início do concerto, e milha-
res de pessoas foram impedidas de entrar. Pelo meado de agosto, Paganini
j á se havia apresentado vinte vezes. Sua efígie podia ser vista em caixas
de rapé, guardanapos, gravatas, cachimbos, tacos de bilhar e caixinhas
de pó-de-arroz. N u m a das vezes, ele atraíra mais público que a girafa
presenteada à corte vienense pelo paxá do Egito.
O efeito causado por Paganini nos músicos austríacos t a m b é m foi
decisivo. E m meio ao público em Viena encontrava-se Joseph B õ h m ,
"A G R A N D E V I R A D A N A H I S T Ó R I A D O V I R T U O S I S M O " 121

para quem n ã o restava a menor dúvida de que o italiano era o maior


virtuose de todos os tempos. Mas o encontro n ã o serviu para estimulá-
lo em sua própria carreira. D e temperamento pouco afeito a apresen-
tações em público, B õ h m possivelmente sofria de medo do palco, e se
retirou da atividade. E m suas mãos, o Khevenhuller n ã o voltaria a ser
ouvido em público.

O FATO de B õ h m se ter retirado com seu Strad ante o advento de


Paganini com seu D e l Gesú foi u m entre muitos outros exemplos. D a n -
do o maestro prosseguimento a sua turnê, depois de Viena, os violinis-
tas começaram a se mostrar obcecados com seu suposto "segredo".
Muitos queriam convencer-se de que estaria no violino. Já h á u m s é -
culo D e l Gesú vinha sendo subestimado em relação a Stradivari; para o
conde Cozio, ele n ã o passava de u m imitador mal-sucedido do con-
temporâneo cremonês. O sucesso de Paganini mudaria tudo isso. Pela
primeira vez desde a estréia parisiense de Viotti, meio século antes, fi-
nalmente surgia u m rival para Stradivari.
Naturalmente, nem todos os músicos eram tão modestos quanto
B õ h m . D e modo que a rivalidade entre Stradivari e D e l Gesú viria
muitas vezes a manifestar-se no próprio palco, dispondo-se os violinis-
tas a desafiar a preeminência de Paganini. U m deles era o virtuose
polonês Karol Lipinski, que se encontrava emVarsóvia quando Paganini
visitou a cidade em 1829. E m princípio, n ã o deveria ter havido qual-
quer manifestação de antagonismo. Os dois violinistas se conheciam e
se admiravam há mais de dez anos; em 1827, Lipinski chegara a dedicar
seus "Três caprichos para violino" ao maestro italiano. Mas os aconte-
cimentos de 1829 poriam a amizade a dura prova.
Os dois virtuoses estavam emVarsóvia para a coroação do czar
Nicolau I como rei da Polónia. Lipinski viera da cidade onde residia,
Dresden, na expectativa de que seria convidado a liderar a orquestra,
como o mais destacado violinista de seu país. Mas n ã o havia contado
122 STRADIVARIUS

com a presença de Paganini. N a Missa em dó maior, especialmente


composta para a ocasião por Ksawery Elsner, quem assumiu a lideran-
ça foi o italiano, sendo o polonês relegado a um papel coadjuvante. Os
sentimentos patrióticos se inflamaram, e o próprio Lipinski ficou visi-
velmente contrariado. Quando Paganini programou concertos para os
dias 3 e 6 de junho, Lipinski anunciou u m outro para o dia 5, rechaçando
todas as tentativas de convencê-lo a mudar de data.
Estava montada a cena para um confronto, uma comparação dos
estilos e talentos dos dois violinistas. Era também uma competição entre
luthiers. Paganini tocaria no seu Canhão, ao passo que o violino de
Lipinski era u m Strad. Além disso, Paganini j á havia ouvido o rival to-
car seu violino. N a realidade, o último encontro dos dois havia ocorri-
do logo depois que Lipinski adquirira o seu violino em 1818, como
ele mesmo relataria no fim da vida.

Muitos anos se passaram desde que fui desafiado a tocar com Paganini
na Itália, e numerosas foram as cartas de apresentação a mim impingidas
por amigos queridos. Havia, entre outras, uma carta de Spohr a um
velho cavalheiro que morava em Milão, e que na juventude havia sido
um dos alunos mais promissores do grande mestre do violino Tartini,
que morreu em 1770. Depois de passar a primeira noite em Milão,
refazendo-me do cansaço da viagem, dirigi-me, munido de minha carta
de apresentação e do meu violino, à residência do Signor Salvini; ele
me recebeu da maneira mais amável, e como eu não falava italiano,
entrou comigo em animada conversação em francês. Em cada gesto o
Signor Salvini evidenciava a tranquila dignidade da idade avançada,
mas quando ouvia música seus olhos brilhavam com a intensidade do
sentimento, e nem pareciam ser os olhos daquele velho tão frágil, e
todo o seu ser parecia rejuvenescer, como animado da centelha da vida
de outras eras.
Depois de ser informado de que até então eu me havia dedicado
sobretudo à música de Beethoven, Mozart e Weber, ele pediu-me
que tocasse, e sentou-se para ouvir. Escolhi alguns trechos do
"A G R A N D E V I R A D A N A H I S T Ó R I A D O V I R T U O S I S M O " 123

Freischiitz [de Weber], mas o velho cavalheiro deteve-me, dizendo:


"Toque algo de Beethoven." Depois de me ouvir por cerca de um
quarto de hora, ele levantou-se, olhou fixamente para mim, depois
para o violino, e disse " Vasta9. Este "basta" deixou-me tremulo, pois
levou-me à conclusão de que não havia apreciado minha arte. Mas
senti-me de certa forma tranquilizado quando o Signor Salvini me
disse com a maior afabilidade: "Volte amanhã de manhã às dez ho-
ras." A caminho do meu hotel, eu era assaltado por todos os tipos de
temores e dúvidas.
Assim abatido, quase me arrependia de ter concordado em tocar
com Paganini, pois sabia que em certa medida seria uma competição
entre nós dois. No dia seguinte, com muito medo e hesitação, dirigi-
me na hora aprazada à casa do Signor Salvini. Ele me recebeu com
grande cordialidade, e antes que eu pudesse apanhar minhas partitu-
ras, disse: "Dê-me seu violino, por favor." Entreguei-o, e quase não
acreditei ao vê-lo agarrá-lo firmemente pelo braço e batê-lo com toda
força na quina da mesa, sobre a qual caiu, reduzido a pedaços. Com a
maior frieza e tranquilidade, então, o velho cavalheiro abriu um estojo
de violino que estava na mesma mesa e, dele tirando cuidadosamente
um violino, disse-me: "Experimente este instrumento!"
Tomei-o então, e, tendo tocado uma sonata de Beethoven, Salvini
estendeu a mão para mim e disse, com certa emoção: " O senhor cer-
tamente sabe que eu fui aluno de Giuseppe Tartini, meu famoso com-
patriota e um dos maiores violinistas da época. U m belo dia, ele me
deu este grande e autêntico violino Stradivari, que desde então trato
carinhosamente como lembrança dele. O senhor, Herr Lipinski, sabe
como fazer uso de um instrumento como este, dando expressão à sua
força oculta. — Mas há Paganini, famoso no mundo inteiro — pon-
derei. — Não me fale dele — cortou o velho, agitado. — E u o ouvi,
aquele feiticeiro de uma corda só, que não tem uma verdadeira pro-
fundidade musical, que só sabe impressionar com sua enorme destre-
za mecânica, incapaz de matizar a sonoridade de maneira nobre ou
sugestiva. Paganini é admirado, mas a sua arte, meu senhor, é capaz de
124 STRADIVARIUS

emocionar e transportar. Só o senhor pode ser considerado um her-


deiro digno de Tartini; aceite portanto este violino como presente meu,
e ao mesmo tempo como lembrança de Tartini."

N ã o seria o caso de dar muita atenção a esse relato. A m e m ó r i a de


Lipinski deve ter confundido os fatos com o passar dos anos, carregan-
do nas tintas de sua posterior antipatia por Paganini. É verdade que os
dois violinistas tocaram juntos pela primeira vez em 1818. N a ocasião,
contudo, Lipinski certamente era o músico menos experiente, grato
pela amizade de Paganini e vendo aumentar sua reputação pelo sim-
ples fato de compartilhar a cena com ele. Além disso, Weber só con-
cluiria Der Freischiitz em 1820, depois da data em que Lipinski alega
ter tocado trechos da ópera para Salvini. E o próprio Lipinski t a m b é m
contaria uma história completamente diferente sobre u m encontro na
Itália com outro aluno de Tartini, chamado Dr. Mazzurana. Nessa ver-
são, Mazzurana ficou insatisfeito com a interpretação de uma das sona-
tas de Tartini por Lipinski, n ã o conseguindo contudo, por sua idade
avançada (90 anos), fazer uma demonstração de como ela deveria ser
tocada. Assim foi que resolveu dar a Lipinski u m poema que escrevera
para explicar as intenções do mestre. A o declamar o poema por exor-
tação de Mazzurana, Lipinski teria ao mesmo tempo passado a domi-
nar a interpretação da sonata e infundido u m espírito poético a todas
as suas futuras performances.
Qualquer que seja a verdade, o fato é que o velho Strad de Tartini,
o imponente violino cuja fabricação acompanhamos em 1715, quan-
do o Mestre estava em seu auge, encontrava-se agora nas mãos de
Lipinski, e haveria de tomar o seu nome. Assim é que, em junho de
1829, emVarsóvia, deu-se u m confronto entre o Lipinski e o Canhão.
N o dia 13, os críticos poloneses n ã o podiam ser mais claros: "Suas [de
Lipinski] arcadas são muito superiores às de Paganini, que ele t a m b é m
supera na força e na plenitude da sonoridade." O veredicto inspirou
alguns a referir-se ao Lipinski como "o violino que derrotou Paganini".
Mas parece difícil ignorar que a reação dos poloneses provavelmente
A G R A N D E VIRADA NA HISTÓRIA DO VIRTUOSISMO" 125

era inspirada pelo patriotismo. Lipinski era u m dos mais destacados


violinistas compositores da época. E m suas turnês cobertas de sucesso,
ele podia mover-se na direção de Moscou ou de Londres, onde The
Musical World mostrou-se extremamente elogioso. Por seu estilo clássi-
co, conquistou a fama de intérprete de Bach por excelência em sua
época. Mas Lipinski não tinha a aura de estrela de que se beneficiava
Paganini; passou a segunda metade de sua carreira em Dresden, como
spalla da orquestra real. N ã o há muito, hoje, como diferenciá-lo de todo
u m exército de virtuoses novecentistas.Talvez devêssemos deixar a ú l -
tima palavra sobre esse confronto com o próprio Paganini, que, per-
guntado sobre quem seria o maior violinista da época, respondeu: " N ã o
sei quem pode ser o primeiro, mas com certeza o segundo é Lipinski."

PAGANINI prosseguiria em t u r n ê por mais cinco anos. F o i impedido


de ir à Rússia pelo agravamento de sua doença, mas a Alemanha, a França
e a Inglaterra caíram todas sob o seu feitiço. E m Londres, onde foi
contratado inicialmente para cinco concertos, a procura foi tanta que
ele teve de anunciar várias apresentações "finais", de tal modo que em
quatro meses deu quinze concertos, todos na Royai Opera House. Sua
renda foi monumental: seis mil libras [500 m i l libras]. Parte foi destina-
da à compra de uma das poucas grandes violas Stradivarius, feita em
1731 . A impressão por ela causada no maestro foi tamanha que ele quase
se decidiu a trocar o violino por sua irmã de voz mais grave, encomen-
dando ao compositor Hector Berlioz uma obra para viola.* A seguinte
visita de Paganini a Londres, em 1834, foi u m relativo fracasso, mas
produtiva sob outro aspecto. Então com 52 anos, ele foi impedido in
extremis de fugir com Charlotte, de 18 anos, filha de seu empresário,
em cuja casa se hospedava.

• Paganini acabaria rejeitando a obra encomendada, Haroldo na Itália, uma sinfonia c o m v u l -


tosos solos de viola: havia entre eles intervalos demais.
126 STRADIVARIUS

Naquele mesmo ano Paganini finalmente retornou à Itália. Amigo


de toda a vida, o tabelião Luigi Guglielmo Germi vinha investindo as
rendas auferidas em sua turnê européia, comprando em seu nome v á -
rias casas e propriedades. U m a delas era aVilla Gaiona, perto de Parma,
que passou a ser a residência favorita do virtuose. Lá ele pretendia p u -
blicar suas composições e fundar u m conservatório, no qual haveria de
incumbir-se pessoalmente da classe de violino.
Teria sido uma aposentadoria gratificante, mas Paganini parecia
congenitalmente incapaz de parar. Dezoito meses depois, ele estava de
volta à França, aparentemente a caminho da América, onde lhe eram
oferecidos cachês gigantescos. Essa idéia logo seria superada pela pro-
messa de se transformar na principal atração do "Cassino Paganini" em
Paris. Parecia inevitável que o contrato n ã o fosse devidamente c u m -
prido, e o violinista raramente tocava; o subsequente fracasso da e m -
preitada custou-lhe 50 mil francos [100 mil libras] e u m processo judicial
excepcionalmente vingativo. A verdade é que a esta altura pouco res-
tava do talento virtuosístico de Paganini, em virtude de seus problemas
de saúde. Retrospectivamente, parece notável inclusive que ele tenha
sido capaz de chegar aonde chegou.
Desde o primeiro diagnóstico de sífilis, Paganini continuara sofrendo
nas mãos dos médicos e com sua própria hipocondria. Informado em 1828
de que estava tuberculoso e morreria em um ano, ele infelizmente havia
ignorado o conselho do único médico que lhe disse que esquecesse os
médicos. E m vez disso, submeteu-se a sangrias e à recomendação de caval-
gar, supostamente para aliviar a constipação. C o m e ç o u também a tomar o
"Purgante Leroy", um laxante cuja eficiência derivava de seu poder tóxi-
co. N ã o surpreende, assim, que o violinista fosse em geral considerado ta-
citurno e desagradável. Quando Paganini retorna a Paris em 1836, também
j á acumula entre seus males cistite e orquite crónicas.* E m apenas um ano,
ele j á não podia falar, usando cartões para se comunicar.

• N u ma carta de Paganini a G e r m i , encontramos uma vívida descrição desta ú l t i m a : " O tes-


tículo esquerdo inchara tanto que parecia uma grande pêra, ou uma pequena abóbora."
"A G R A N D E V I R A D A N A H I S T Ó R I A D O V I R T U O S I S M O " 127

Paganini ainda viveria dois anos. Sua saúde podia tê-lo abandona-
do, mas não o seu desejo de ganhar dinheiro. Incapaz j á agora de tocar
os violinos com a antiga perícia, passou a negociá-los. Sabia que o sim-
ples fato de associar seu nome a um instrumento aumentaria seu valor,
o que seria uma vantagem quando viesse a vendê-lo, mas primeiro seria
necessário aumentar a coleção. Paganini c o m e ç o u a formar uma rede
de agentes por toda a Europa, para agir por meio deles de forma a n ó -
nima. Eles buscavam instrumentos de todos os mestres cremoneses, mas
sobretudo os de Stradivari. Apesar da preferência pessoal de Paganini
por D e l Gesú, simplesmente havia disponibilidade muito maior de
Strads. E m 1828, ele havia depositado dois num cofre em Milão; ao
morrer, j á havia adquirido mais nove.
U m dos agentes de Paganini era o violinista Vincenzo Merighi,
residente em Milão. N o dia 20 de m a r ç o de 1839, Paganini escreveu-
lhe de Marselha, aonde fora tratar da saúde: "Estou feliz por ter o
belo violoncelo, que trago comigo juntamente com o violino Stra-
divari, que completa o quarteto [itálico meu] (...) O tampo do violino
Stradivari cedeu na região do cavalete, mas n ã o é grave, e se trata de
u m belo instrumento."
O violoncelo a que se refere a carta deve ser certamente o Condes-
sa de Stanlein. Estava na posse de Paganini quando ele morreu, e havia
sido descoberto em 1822 por Alessandro Pezze, u m aluno de Merighi,
sendo transportado num carrinho de m ã o pelas ruas de Milão. E o v i o -
lino "que completa o quarteto"? Tudo indica que se trata do Paganini,
o mais antigo de nossos cinco violinos, confeccionado no ateliê do
Mestre por volta de 1680.* N ã o temos certeza da data porque, a certa
altura do século e meio que o violino passou no esquecimento, o ano
inscrito em sua etiqueta foi mudado para 1696. Esta tentativa de au-
mentar o valor do violino só poderia ter êxito com u m comprador

• E m b o ra seja habitualmente datado de 1680, ele pode ser do ano seguinte, no qual tem u m
g é m e o , o Fleming de 1681.
128 STRADIVARIUS

ignorante: o instrumento tão claramente sofre a influência de Amati


em seu estilo que n ã o poderia ter sido fabricado em pleno período dos
Strads alongados. H á algo de indecoroso nessa grosseira tentativa de
falsificação: o equivalente, no comércio de violinos, a uma cirurgia plás-
tica malsucedida. N e m por ser verdadeira, a afronta implícita na opera-
ção — que u m Strad de 1680 vale menos que seus irmãos mais jovens
— é menos mortificante.
Mas Paganini havia encontrado uma forma mais criativa de elevar
o preço do violino sem falsificar a etiqueta. Seu nome sem dúvida
contribuía para o prestígio do instrumento, mas a idéia verdadeiramente
genial foi pensar em comercializar o violino como parte de u m quar-
teto Stradivarius, reunindo o maior luthier do mundo e o mais famoso
violinista numa combinação quase inimaginável. Ele j á dispunha da peça
mais rara, a viola de 1731 adquirida na Inglaterra alguns anos antes; o
primeiro violino tocaria u m Strad de 1727 que ele havia comprado do
conde Cozio; o violoncelo seria presumivelmente o Condessa de Stanlein
(nome que ele n ã o teria usado: essa proprietária ainda estava por vir).
O segundo violino poderia ter escolhido entre quatro ou cinco Strads,
a julgar pela lista de violinos na posse de Paganini ao morrer. Pode-se
depreender que ele considerava o violino comprado de Merighi como
aquele que completava o quarteto, pois sabia que, para alcançar u m preço
razoável, o violino de 1680 n ã o podia contar apenas com o seu nome.
E r a u m bom plano, que certamente teria funcionado se Paganini
tivesse sido capaz de levá-lo até o fim. Mas a decrepitude não demorou
a se manifestar. Ele nunca voltaria a Paris, nem mesmo à Itália. M o r r e -
ria no dia 27 de maio de 1840 em Nice, para onde se deslocara ainda
na esperança de escrever u m manual de violino. Estava então com 58
anos. Seus contemporâneos atribuíram a morte a uma tuberculose da
laringe, mas parece mais provável que o excesso de dependência dos
médicos e de tratamentos charlatanescos tenha acabado com ele.
N e m mesmo na morte o virtuose se v i u livre das controvérsias.
O fato de n ã o ter recebido os últimos ritos significava que a Igreja se
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recusava a enterrá-lo em solo consagrado. D e nada adiantou uma pe-


tição endereçada ao papa; e seu êxito n ã o terá sido propriamente pro-
piciado pelos boatos populares de u m pacto com o diabo. Passaram-se
nove anos até que o corpo de Paganini fosse finalmente enterrado na
paróquia da aldeia vizinha àVilla Gaiona. Nos anos subsequentes, ele
ainda seria trasladado várias vezes, entre cemitérios que fechavam e
outros que disputavam a honra de servir de ú l t i m o descanso ao
virtuose. J á corria o ano de 1893, e ainda se ouvia falar da abertura
de seu t ú m u l o para ser inspecionado pelo violinista Frantisek O n -
dricek, então em t u r n ê pela Itália. Trata-se provavelmente de u m
embuste, mas se dizia que ainda era possível ver claramente os restos
de Paganini num cofre de vidro.
O legado material de Paganini era substancial. Seus bens foram
avaliados em 80 m i l libras [5 milhões de libras]. À parte doações às i r -
mãs e uma anuidade para Antónia Bianchi, Achillo Paganini foi decla-
rado herdeiro único. Já feito filho legítimo, ele tinha a vantagem adicional
de u m baronato hereditário, conferido a seu pai na Alemanha. U m a
parte considerável da herança de Achillo consistia nos violinos com-
prados pelo pai nos últimos anos de vida. Sem qualquer talento para o
instrumento, Achillo não precisava de nenhum deles para si. O Guar-
nerius Canhão foi legado ao Museu Municipal de Génova, onde se
encontra ainda hoje. O resto da coleção, inclusive o Paganini de 1680,
foi à venda aos cuidados de Jean-Baptiste Vuillaume em Paris.
Avaliar o legado musical de Paganini é mais problemático. Existem,
naturalmente, as composições, mas ao contrário de outros grandes
virtuoses italianos, como Corelli, Tartini ou Viotti, Paganini n ã o fun-
dou uma grande tradição. E m toda a vida, teve apenas u m aluno. Camillo
Sivori estudou com ele, ou pelo menos foi por ele orientado, entre os
7 e os 12 anos de idade, pouco antes de Paganini deixar a Itália para sua
turnê européia. Sivori confessaria mais tarde a David Laurie, negociante
de violinos escocês e memorialista talentoso, mas não digno de confiança,
que seu antigo mestre era provavelmente o pior professor de violino
130 STRADIVARIUS

que jamais existiu, lacónico com o aluno mas implacável se ele mos-
trava qualquer deficiência.
Existe, contudo, uma área em que a influência de Paganini é indis-
cutível. Ele pode ser o autor de uma das mais famosas citações sobre
Stradivari — que "só usava a madeira de árvores em que cantavam
rouxinóis" — , mas sua própria preferência pelo Canhão não podia ser
negada. Pela época em que Paganini morreu, dizia a voz popular que
os melhores D e l Gesú não podiam ser igualados. Eram os verdadeiros
violinos de concerto: os Strads prestavam-se mais aos salões. Os fabri-
cantes de violino de toda a Europa começaram a copiar Guarneri. A
supremacia de Stradivari estava ameaçada.
Capítulo Nove

" T E N H O AQUI COMIGO 80 M I L FRANCOS5

Vuillaume e o Hotel das Delícias

O SONHO DE UM quarteto Stradivarius que levasse o seu nome n ã o


morreu com Paganini. Seu herdeiro Achillo, então com 15 anos, sabia
como todo mundo das possibilidades comerciais criadas pela justapo-
sição dos dois nomes, passando a persegui-las com uma obstinação que
só mereceria o aplauso do pai. Para ajudá-lo, contratou os serviços do
luthier parisiense que passaria a ser u m emblema do valor cada vez maior
conferido pelo século X I X aos instrumentos cremonesesJean-Baptiste
Vuillaume.
H o m e m de contradições,Vuillaume é para alguns u m génio, cujos
violinos só perdiam por pouco para os dos grandes luthiers clássicos, e
para outros u m charlatão, feliz por ver que suas cópias de Strads passa-
vam por originais. Ele nasceu em Mirecourt, o centro da artesania fran-
cesa de violinos, em 1798. Mais tarde, conseguiria dar a pelo menos
u m musicólogo a impressão de que u m de seus antepassados, Jean
Vuillaume, havia sido treinado pelo próprio Stradivari. Pela evidente
falsidade da alegação, todos os antecedentes de Vuillaume viriam a ser
postos em dúvida após sua morte, mas hoje existe a convicção geral de
que pelo menos seu pai, Claude-FrançoisVuillaume, era u m luthier, tendo
transmitido seus conhecimentos aos filhos.
A o completar 19 anosJean-Baptiste j á devia ter feito algum nome,
pois em 1817 foi levado a Paris por outro filho de Mirecourt, François
Chanot, para ajudá-lo na manufatura do "violino violão". Esta novida-
132 STRADIVARIUS

de, patenteada por Chanot, esteve por breve período na moda, até que
seu inventor foi convocado para o serviço militar. Logo seria esqueci-
da, mas Vuillaume continuou em Paris, tendo adquirido u m gosto pela
inovação que o acompanharia até o fim da vida. O negócio de Chanot
foi transmitido a Nicolas-Antoine Lété, u m fabricante de órgãos inte-
ressado em expandir seus negócios para os instrumentos de cordas, e
Vuillaume passou a prestar-lhe serviços. Quatro anos depois, tornava-
se sócio. A firma de Lété e Vuillaume funcionou por mais três anos, até
que Vuillaume, munido do capital de sua nova mulher, herdeira de u m
ferrageiro, montou seu próprio negócio.
Os violinos de Vuillaume ganharam uma medalha de prata na E x -
posição de Paris de 1827, quando ele ainda não havia completado 30
anos, e em 1839 e 1844 viriam as de ouro.Vuillaume tinha em seu ate-
liê assistentes que produziam violinos de acordo com suas estritas
especificações. Ele enriqueceu com os lucros da especulação imobiliá-
ria, acabando por comprar uma mansão na rue des Ternes, em Paris.
U m visitante inglês desse período lembrar-se-ia dele mais tarde como
um "homem moreno, alto e bem vestido, com costeletas negras mas
escanhoado sobre os lábios e no queixo, parecendo-se mais u m inglês
do que u m francês, exceto na extrema polidez".
Este foi, então, o homem contratado formalmente por Achillo
Paganini, em novembro de 1846, para vender o quarteto Stradivarius
de seu pai.Vuillaume expôs as condições da transação numa carta do
mês seguinte. Achillo havia estabelecido o preço em 20 m i l francos [50
mil libras]; comentário de Vuillaume: "Este preço ainda está muito alto
(...) A viola e os violinos encontram-se (...) no melhor estado possível,
mas os dois violinos t ê m uma sonoridade que não tem sido tão admi-
rada quanto a do violoncelo. O que acontece sem dúvida porque n ã o
foram muito tocados." Vuillaume cobrou por seu trabalho de restaura-
ção 160 francos, dos quais 20 francos diziam respeito ao "violino ama-
relo", o Paganini de 1680. Ele havia consertado a rachadura no tampo,
reconstituído a barra harmónica, alongado e angulado o braço, con-
T E N H O A Q U I C O M I G O 80 M I L F R A N C O S

feccionado u m novo espelho e providenciado cravelhas, estandarte,


cavalete e cordas. E m outras palavras,Vuillaume remodelara o Paganini
(como aliás o resto do quarteto) de acordo com as exigências modernas.
Mas de nada adiantou todo o trabalho. Cinco anos e muitas cartas
depois, o quarteto ainda não havia sido vendido. Numa última tentativa
de conseguir u m bom preço,Vuillaume levou os instrumentos para L o n -
dres quando compareceu à Grande Exposição de 1851 no Palácio de
Cristal. Foi para ele u m triunfo.Vuillaume expunha dois dos seus quar-
tetos e u m instrumento que havia inventado, o "octobasso", u m bicho
gigantesco que produzia notas quatro tons abaixo do contrabaixo. Ele
não vingou, mas bastou, juntamente com os dois quartetos, para que
Vuillaume conquistasse na exposição a única Grande Medalha do C o n -
selho, em qualquer das categorias. N ã o houve, no entanto, interesse pe-
los quatro Strads, eVuillaume levou-os de volta para Paris. Aparentemente,
Paganini já não era u m nome com as mesmas ressonâncias mágicas. C o m
relutância, Achillo decidiu separar os instrumentos do quarteto, autori-
zando Vuillaume a aceitar 5 mil francos [15 mil libras] pelo violoncelo e
2.500 [7.500 libras] por cada u m dos demais instrumentos: uma consi-
derável redução em relação aos preços inicialmente propostos. Por volta
de 1852, o Paganini de 1680 foi vendido a u m certo Monsieur Desaint,
de Amiens, que seria o seu proprietário por meio século.Todos os outros
instrumentos encontraram compradores separadamente, desaparecendo
na história o sonho de um quarteto de Strads Paganini.

A POSIÇÃO C E N T R A L ocupada por Vuillaume no negócio europeu de


violinos deu-lhe a oportunidade única de observar e copiar as obras-
primas cremonesas, em muitos casos quando ainda se encontravam em
seu estado original. A substituição da barra harmónica exigia, natural-
mente, que o violino fosse desmontado. A o fazê-lo,Vuillaume era ca-
paz de tomar todas as medidas possíveis e imagináveis, avaliando a
espessura do tampo e do fundo a intervalos milimétricos. C o m essas
134 STRADIVARIUS

mensurações a orientá-lo, ele tinha condições de fabricar uma cópia


exata do original. Quando u m violino j á não estava mais em condi-
ções de sofrer reparos, pelo menos suas partes podiam servir para uma
avaliação científica. Utilizando materiais de antigos violinos forneci-
dos por Vuillaume, o especialista em acústica Félix Savart concluiu ain-
da no século X I X que a tonalidade dominante obtida c o m uma
pancadinha no fundo de u m Strad estava sempre u m semitom ou u m
tom acima da tonalidade do tampo. Foi uma das primeiras investiga-
ções científicas sobre os métodos de Stradivari, constituindo u m exemplo
dos esforços empreendidos por Vuillaume para reproduzir o modelo
cremonês. Ele se valia dos mesmos métodos para a escolha da madeira
utilizada, supostamente percorrendo mercados de pulgas e brechós de
Paris em busca de móveis com idade suficiente para render madeirame
bem amadurecido.
Fora isto, contudo, Vuillaume parece ter-se preocupado mais com a
aparência do que com a sonoridade dos seus violinos. Exemplo disso é a
maneira como ele e outros luthiersfrancesesconstruíam seus violinos uti-
lizando um molde externo, em vez do molde interno preferido pelos
cremoneses. Esta técnica pode facilitar a reprodução da aparência de u m
violino, mas a maneira como as peças são apostas, em vez de serem mantidas
sob tensão com grampos e cola, tem na qualidade sonora consequências
que só hoje são compreendidas. U m a dicotomia semelhante manifesta-se
no tratamento dado por Vuillaume à questão do verniz. Aparentemente
por considerar que o produto cremonês era por demais delicado, ele deci-
diu aperfeiçoá-lo, criando sua própria fórmula, que utilizava âmbar. N ã o
parece ter-lhe ocorrido que afragilidadedo verniz dos luthiers clássicos era
precisamente uma de suas principais características.
Nada há de especial a objetar a tudo isso. Talvez Vuillaume n ã o es-
perasse mesmo que seus instrumentos fossem capazes, como apregoa-
vam seus anúncios, de se equiparar aos Stradivari "depois de u m certo
uso", mas não chega a ser u m crime. Infelizmente, sua obsessão com a
aparência levou-o ainda mais longe.Vuillaume constatou que poderia
T E N H O A Q U I C O M I G O 80 M I L F R A N C O S " 135

cobrar mais por seus violinos se os fizesse parecer tanto quanto possí-
vel com os o autênticos instrumentos cremoneses, tratando-os exata-
mente como faria hoje um fabricante de reproduções de antiguidades.
O verniz desses instrumentos novos era desgastado artisticamente, tal-
vez com ácido, para se assemelhar mais perfeitamente ao dos originais;
os violinos podiam ser cozidos para apressar o processo de envelheci-
mento; e, toque final, pespegava-se a clássica etiqueta: "Antonius
Stradivarius Cremonensis Faciebat Anno 1717". Vuillaume utilizava
sempre a mesma data, mas não estava tentando falsificar Strads; sabia
que isso seria impossível. C o m efeito, geralmente ele assinava o instru-
mento com seu próprio nome em algum outro ponto. T a m b é m n u -
merava todas as suas cópias no centro do fundo do violino.Todos esses
sinais, contudo, podem ser removidos, e hoje, com mais 150 anos de
desgaste, não surpreende que só especialistas possam distinguir uma
réplica Vuillaume de u m autêntico Strad.
Havia no século X I X uma história famosa, na qual Paganini deixa-
va o seu D e l Gesú Canhão com Vuillaume para conserto, n ã o sendo
capaz de distingui-lo da cópia que acabara de ser feita ao ir buscá-lo
dias depois. O fato de essa história ter merecido crédito é revelador ao
mesmo tempo da admiração despertada pela capacidade de Vuillaume
como copista e de seu talento para a autopromoção. A história verda-
deira é mais prosaica. Paganini efetivamente ficou impressionado com
a cópia, e pela rapidez com que Vuillaume a havia fabricado, além de
muito interessado em adquiri-la.Vuillaume t a m b é m estava ansioso por
ceder-lhe a cópia, que acabaria se tornando o instrumento de concer-
to de Camillo Sivori, o aluno de Paganini. O verniz da cópia tinha
uma coloração diferente do original, e tampouco sua sonoridade po-
dia competir com a de u m violino autêntico de Cremona. Nas mãos
de Sivori, contudo, ela se transformou, e a história de que Paganini
teria sido enganado tornou-se pelo menos u m pouco mais digna de
crédito. Ainda assim, a sonoridade de Sivori acabou sendo condenada
pela posteridade como "clara e argêntea, mas algo pequena".
136 STRADIVARIUS

H á outras histórias que podem, estas sim, dar margem a críticas mais
severas. Nos primeiros anos de sua carreira,Vuillaume tinha uma viola de
gamba fabricada por Gaspard Tieffenbrucker, u m bávaro que se natura-
lizou francês no século X V I . Mais ou menos por essa época, quando
começaram a circular violinos aparentemente feitos pelo franco-alemão,
certos observadores saudaram em Tieffenbrucker o verdadeiro inventor
do violino. Mas esses violinos eram imposturas do século X I X , modelos
maquinados para parecerem antigos. Mais tarde, alguns historiadores d i -
zer-se-iam convencidos de que tinham sido feitos por Vuillaume. Outra
história, contada por David Laurie, é a de que Vuillaume separava as
quintas-feiras para receber seus admiradores na rue des Ternes. Nessas
ocasiões, trabalhava em público, aplicando seu verniz a violinos recém-
fabricados e vendendo-o em garrafas aos interessados. N o fim do dia, na
privacidade da mansão, Laurie o via remover aquele verniz imprestável
antes que pudesse secar: "Você realmente achava que eu entregaria assim
de bandeja os meus valiosos segredos?"

VUILLAUME nunca esqueceu o que Tarisio dizia sobre o violino que


havia comprado do conde Cozio di Salabue, o Messias. Sem nunca ter
sido tocado nem alterado desde que saíra das mãos do mestre, u m ins-
trumento como este teria sido o modelo perfeito para o copista
Vuillaume, para n ã o falar de seu valor monetário para o negociante
Vuillaume. Muitas vezes ele deve ter exortado Tarisio a levá-lo a Paris,
até se dar conta de que o italiano nunca abriria m ã o desse tesouro. D a
mesma forma,Vuillaume deve ter entendido que nem de longe era o
único luthier informado da existência do Messias. Mesmo em Paris, sa-
bia que não era ele, mas Chanot, o negociante preferido de Tarisio. Além
disso, pela altura da década de 1850, as viagens de negócios de Tarisio
j á o levavam a Londres, onde pelo menos u m colecionador ficou pas-
mo com sua capacidade de identificar a data e o fabricante de todos os
seus violinos, sem sequer tocar neles. E r a menos u m talento mágico do
" T E N H O A Q U I C O M I G O 80 M I L F R A N C O S " 137

que uma extraordinária operação de reconhecimento: o próprio Tarisio


é que os havia fornecido originalmente. Todos os clientes de Tarisio
teriam cobiçado o Messias.Vuillaume podia apenas esperar que u m dia
chegasse a sua oportunidade.
A história da maneira como Vuillaume realizou seu sonho entrou
para o terreno da lenda. E l a começa com os vizinhos de Tarisio na casa
de cómodos onde morava em Milão, com o curioso nome de "Hotel
das Delícias". E m algum momento pelo fim do ano de 1854, eles per-
ceberam que há algum tempo o velho n ã o era visto, ou talvez se tenha
manifestado u m cheiro estranho. A polícia arrombou a porta, encon-
trando Tarisio morto na cama. E l e estava abraçado a dois violinos, e
havia muitos outros espalhados pelo quarto. Ainda mais interessante para
os policiais foi a quantidade de títulos de crédito, cédulas e ouro —
400 mil liras [1 milhão de libras] — encontrada num colchão. Eles iden-
tificaram os herdeiros, removeram o corpo e os bens de maior valor e
lacraram o apartamento. Foi por mero acaso que u m caixeiro-viajante
do ramo das sedas ficou sabendo da descoberta, estando a caminho de
Paris, onde sabia que a pessoa a ser informada seria Vuillaume.
Assim,Vuillaume teve a sorte de ser o primeiro luthier informado
da morte de Tarisio. Mesmo assim, fez bem em não perder tempo. Q u e m
poderia saber o que a família de Tarisio seria capaz de fazer com sua
coleção? Vuillaume juntou todo o dinheiro que podia e uma hora de-
pois de receber a notícia j á estava num trem rumo à Itália. A o chegar a
Novara, imediatamente alugou uma carruagem para ir até Fontaneto,
onde os sobrinhos de Tarisio ainda viviam numa pequena propriedade
comprada pelo tio dez anos antes. Chegando na hora do jantar, a apre-
ensão de Vuillaume aumentou ainda mais ao ver os parentes reunidos
"com todos os sinais da mais sórdida pobreza". E l e aceitou uma taça
de vinho, mas levou algum tempo para tentar informar-se sobre o pa-
radeiro dos violinos do falecido.
— E m Milão — respondeu u m dos sobrinhos, enquanto outro
acrescentava:
138 STRADIVARIUS

— Ainda nem encostamos naquela porcaria.


Tentar esconder o alívio e a excitação deve ter sido tudo que
Vuillaume conseguiu fazer para não se levantar naquele mesmo instante
para ir a Milão. Além disso, era melhor tirar tudo a limpo: " E nada foi
trazido para cá?"
— O h , sim, estão aqui seis violinos.
Orientado pela irmã de Tarisio, Vuillaume c o m e ç o u a abrir as ga-
vetas de uma vacilante cómoda. Nelas, encontrou requintados estojos
de violino, feitos com madeira de qualidade e ornados com arabescos.
Dos quatro primeiros a serem abertos saíram outras tantas obras-pri-
mas — u m Stradivarius, u m Bergonzi e dois Guadagnini — , até que
Vuillaume chegou à última gaveta. Estava em tão mau estado que ele
encontrou dificuldade para abri-la sem danificar o conteúdo. Quando
finalmente conseguiu, ficou algum tempo incapaz de fazer mais nada
senão olhar. Havia u m magnífico D e l Gesú, fabricado em 1742 e que
logo passaria a ser conhecido como o Alard, mas Vuillaume só tinha
olhos para o que estava a seu lado.Tarisio dissera a verdade: lá estava o
Messias, intacto, como no dia em que havia sido pendurado para secar.
Vuillaume teve de passar a noite na propriedade. N a manhã seguinte,
acompanhado pelos sobrinhos e com os seis violinos em perfeita segu-
rança, mas ainda não comprados, rumou para Milão. N o minúsculo
sótão de Tarisio, pilhas de violinos, violas e violoncelos ainda cercavam
a cama onde estivera seu corpo.Tratando de resistir à tentação,Vuillaume
não foi logo começando a examiná-los; estava na hora de fazer a gran-
de aquisição. Analisou detidamente os sobrinhos. Lançando m ã o da
carteira e desatando o pesado cinturão onde trazia mais dinheiro, ele
expôs tudo que tinha e contou, anunciando: "Tenho aqui comigo 80
mil francos [200 m i l libras]." C o m estas palavras,Vuillaume selou a
compra de 150 instrumentos, entre eles cerca de duas dúzias de Strads.
Estava feita a maior transação da história do violino.
Vuillaume n ã o era u m fanático da acumulação, como Tarisio. Nos
anos subsequentes, revendeu quase toda a sua aquisição, provavelmente
T E N H O A Q U I C O M I G O 80 M I L F R A N C O S "

auferindo lucros astronómicos. Inicialmente, deve ter pensado em dar


o mesmo destino ao Messias. Tratou de fazer os mesmos ajustes que
aplicava a cada violino antigo que vinha dar às suas mãos, as mesmas
alterações que havia aplicado ao Paganini uma década antes, deixando
o Messias pronto para uma carreira de concertos. F o i provavelmente
enquanto o violino estava desmontado para esta finalidade que ele t i -
rou as medidas para as cópias que sairiam de seu ateliê.
C o m isso,Vuillaume devia estar em condições de obter uma bela
recompensa pelo troféu. Afinal, era u m negociante. E m 1865, parece
ter chegado a estabelecer u m preço para o Messias, pedindo 10 m i l fran-
cos [25 m i l libras] a u m amador francês, Monsieur Fau. Mas no fim,
exatamente como Tarisio, não conseguiu desfazer-se da peça. Pelo fim
do século, corria a lenda de que o violino exercia u m tal poder sobre
seus donos que dele só conseguiam separar-se com a morte.*
Deve ter havido u m bom motivo financeiro para esta aparente
irracionalidade. Por sua perfeição e pelo relato de sua dramática desco-
berta feito por Vuillaume, o Messias se havia tornado o violino mais fa-
moso do mundo. O fato de tê-lo em sua posse aumentava o prestígio de
Vuillaume como luthier, seus próprios violinos ficavam aureolados por
esta glória. N ã o se limita a isso, no entanto, a influência do Messias; ao
que tudo indica, ele levou seu proprietário a questionar seus próprios
métodos. Logo depois de adquiri-lo, Vuillaume fechou a oficina onde
havia produzido mais de dois mil violinos com seus artesãos e recolheu-
se a sua mansão. Nela, continuou a exercer sozinho seu metiê.Todos os
violinos que desde então produziu evidenciam a influência do Messias.
Muitos seriam cópias dire tas .Vuillaume adorava p ô r lado a lado o origi-
nal e a réplica e propor aos visitantes que fizessem a identificação.
O Messias parecia destinado a permanecer num estojo de vidro na
rue desTernes até a morte de seu proprietário. O fato de que talvez não

• Provavelmente n ã o era do conhecimento geral que o conde C o z i o ainda viveu pelo menos
uma década depois de vender o Messias a Tarisio.
140 STRADIVARIUS

fosse aquele u m lugar seguro só ficou evidente em 1870, com o início da


guerra franco-prussiana. E m janeiro do ano seguinte, os prussianos, vito-
riosos, haviam bombardeado, cercado e afinal obtido a rendição da capi-
talfrancesa.Vuillaumeestava em perfeita segurança, tendo fugido da cidade.
Deve ter sido uma decisão difícil levar ou não seu bem mais precioso.
Acabando por decidir que era melhor deixá-lo quieto e escondido até o
fim da guerra,Vuillaume sofreu terríveis angustias até conseguir voltar a
Paris e certificar-se de que estava em perfeita segurança.
Vuillaume morreu em 1875, quando ainda não havia concluído seu
3.001° violino. Suas duas filhas, Jeanne-Émilie e Claire-Marie, herda-
ram tudo, inclusive o Messias. E ofereceram o violino por mil libras [60
mil libras] a seu tio Nicolas-François, outro luthier, que vivia em B r u -
xelas. Mas o preço era exorbitante, e por algum tempo o violino per-
maneceu no limbo testamentário. Até que Delphin Alard, o marido de
Jeanne-Émilie, comprou a parte de Claire-Marie, tornando-se o único
proprietário. O Messias passava então às mãos do homem que meio
século antes o havia batizado, naquela conversa com Tarisio.
As credenciais de Alard para ter sob sua custódia o mais imaculado
Strad do mundo eram algo dúbias. Por u m lado, ele era u m eminente
violinista e compositor, professor do Conservatório de Paris. Por o u -
tro, conhecemos a história relatada pelo próprio Vuillaume a David
Laurie. Muitos anos antes, ele havia presenteado ao genro u m outro
Strad, fabricado em 1715 e hoje conhecido como o Alard. N a época,
ainda n ã o tinha sido muito tocado, e apresentava uma sonoridade rela-
tivamente pobre. Alard propôs aVuillaume que ela fosse melhorada com
a remoção de u m pouco do verniz do tampo.Vuillaume não conseguia
conter-se: "Imagine como eu podia me sentir, meu caro Sr. Laurie! O
que foi que eu fiz aos céus para merecer u m genro capaz de propor
que se raspasse u m Stradivarius?" Alard certamente sabia como enrolar
o sogro, mas provavelmente foi muito bom que, como todos os proprie-
tários anteriores, ele tenha decidido não tocar seu tesouro. O Messias
continuou sem ser ouvido.
Capítulo Dez

" R E V E L A D O E M TODA A SUA


GLÓRIA INTACTA"

O Messias mostra a que veio

MESMO SILENCIOSO, O Messias fazia sentir sua influência. E l e atraiu a


atenção de todo o mundo num momento crucial da história do violi-
no. À medida que gravitavam em direção às cidades, as populações
europeias e americanas perdiam suas antigas formas de recreação. Os
cidadãos urbanos de certo refinamento tinham de encontrar novas
maneiras de preencher as horas de lazer. Os amantes da música podiam
ir a concertos, mas não diariamente. Tanto mais satisfatório seria se
pudessem aprender a tocar u m instrumento, possibilidade que passou a
centrar boa parte da vida social. Chegara a era da orquestra de amadores.
Os violinistas da época vitoriana podem ter ficado entusiasmados com
o exemplo de Paganini e seus sucessores, e até mesmo aprendido com os
descendentes artísticos de Viotti, mas muito poucos tinham a expectativa
de conquistar públicos como solistas. Mas até mesmo os violinistas me-
díocres tinham o seu lugar. As orquestras de amadores podiam provavel-
mente ter como elemento central até trinta violinos, abarcando uma ampla
gama de talentos. Aprenda a tocar violino, e sempre acabará aparecendo
uma oportunidade de se apresentar: ainda hoje, é o que se diz às crianças.
A demanda de violinos aumentou inexoravelmente.
Cidades como Mirecourt na França e Mittenwald na Alemanha
transformaram-se em centros de produção em massa. Os métodos eram
muito diferentes da tradição cremonesa de Stradivari: os artesãos se
142 STRADIVARIUS

especializavam separadamente nos tampos, nos fundos, nas volutas, na


montagem e no verniz. Mas sua contribuição era limitada, com o de-
senvolvimento de máquinas para o corte e mesmo a prensagem de tam-
pos e fundos arqueados a partir de peças planas de madeira.Tudo isso,
naturalmente, exigia que os artesãos seguissem o mesmo gabarito, e o
Messias, por meio das réplicas de Vuillaume, parecia a muitos a escolha
natural. Haveria de tornar-se o instrumento mais copiado do mundo.
Os violinos fabricados em Mirecourt ou Mittenwald eram vendi-
dos em toda a Europa. Sem qualquer identificação inicial, alguns seriam
apresentados pelos negociantes como obra sua. Outros seriam vendi-
dos como se fossem Strads. Talvez não houvesse intenção de enganar,
apenas excesso de entusiasmo com a identificação do modelo original.
N i n g u é m podia acreditar que poderia vender violinos novos como se
fossem autênticos de Cremona; mas a prática tem causado enormes
problemas para os negociantes modernos de violinos. Aquele violino
Stradivarius encontrado no sótão pode estar na família há gerações, de
modo que é particularmente decepcionante ser informado de que ele
não é nada disso. Qualquer negociante pode ter várias experiências dessas
em u m ano. D i z u m especialista: "Muitos proprietários de violinos
chegam aqui cheios de otimismo, e quando ficam sabendo que seu
'Stradivarius' [do século X X ] t a m b é m tem uma etiqueta 'Made i n
Czechoslovakia', perguntam:'Mas ele não pode tê-lo feito lá durante
as férias?'."

E M 1872, o Messias foi a principal atração de uma mostra de instru-


mentos antigos no Museu de South Kensington (hoje Victoria and
Albert) em Londres. U m comentarista inglês ficou deslumbrado: " R e -
velado em toda a sua glória intacta aos olhares de milhares de pessoas
para as quais há anos ele constitui um mito (...) lá está esse incompará-
vel novo violino em meio a seus equivalentes gastos pelo tempo,
manuseados e rachados." Estava em plena ação o culto do Messias.
R E V E L A D O E M TODA A SUA GLÓRIA INTACTA 143

A exposição em South Kensington serviu de pretexto para que


Charles Reade escrevesse sobre os mistérios dos violinos cremoneses,
numa série de artigos em forma de cartas para a Pall Mali Gazette. Eles
abordavam a questão que j á agora começava a intrigar um público mais
amplo: por que os violinos modernos não eram capazes de reproduzir
a sonoridade de u m Stradivarius?
Charles Reade é praticamente desconhecido hoje, mas em sua época
era u m dos autores de maior sucesso. Romances como Hard Cash e
The Cloister and the Hearth faziam dele uma espécie de sucessor natural
de Dickens, e os críticos da época consideravam-no superior a George
Eliot.Também tinha certa reputação como negociante amador de v i o -
linos. E m 1848, fez em Paris a compra de uma partida, e a operação —
de magnitude talvez só superada pela transação de Vuillaume com os
herdeiros de Tarisio — quase foi arruinada pela revolução que estou-
rou entre a entrega do dinheiro e a da mercadoria. E r a raro que u m
homem do talento literário de Reade se dedicasse à musicologia; e
cinquenta anos depois suas quatro cartas à Pall Mali Gazette ainda eram
citadas. A mais interessante das teorias nelas contidas era que os mestres
cremoneses usavam duas coberturas de verniz. A primeira, feita à base
de óleo e de secagem lenta, penetrava os poros da madeira, sendo res-
ponsável por boa parte da coloração dos violinos. A camada superior, à
base de álcool e mais rápida na secagem, aumentava o brilho e inten-
sificava a cor, mas t a m b é m podia lascar e desgastar-se. E r a uma das p r i -
meiras alusões públicas à importância do verniz de Stradivari, e Reade
estava na vanguarda dos que afirmavam ter descoberto o segredo. Muitos
haveriam de seguir-se.

O MESSIAS estava à vista de todos, estimulando o debate e inúteis ten-


tativas de imitá-lo, mas u m outro de nossos cinco violinos teve quase
igual influência. Joseph B õ h m havia encerrado sua carreira de concertista
depois de ouvir Paganini. Exigia tão pouco de seu violino, o Khevenhuller,
144 STRADIVARIUS

que nunca se deu ao trabalho de dotá-lo de acessórios modernos. Mas


B õ h m n ã o desistira de tocar. C o m o era professor no Conservatório de
Viena, ele e seu Khevenhuller continuaram a ser ouvidos, não pelo p ú -
blico austríaco, mas por futuros virtuoses. Pois o fato é que Joseph B õ h m
tinha credenciais para considerar-se o mais bem-sucedido professor de
violino do século X I X . Muitos de seus alunos tornar-se-iam execu-
tantes e professores em toda a Europa. Ernst, Singer, Hellmsberger,
Rappoldi e Hauser — todos foram influentes, mas o mais famoso alu-
no de B õ h m certamente foi Joseph Joachim. Nascido em 1831, ele viveu
três anos com B õ h m antes de completar 12, e por volta de 1860 era o
mais festejado violinista da época, posição em que haveria de manter-
se por quase cinquenta anos.
Joachim não se cansava de reiterar sua dívida com B õ h m : "Severo,
diligente e objetivo, ainda assim ele não podia ser mais amável e esti-
mulante." O violinista considerava dever ao mestre a liberdade com
que movimentava o arco e a exatidão clássica e sem afetação de seu
estilo. Considerado praticamente um membro da família B õ h m , Joachim
tanto assistia quanto participava dos concertos noturnos de quartetos
de cordas que seu professor, apesar da aversão às apresentações em p ú -
blico, continuava a promover em caráter privado em sua casa. E l e deve
ter sido uma das poucas pessoas da Europa do meado do século X I X a
ouvir os quartetos tardios de Beethoven, tão relegados desde a morte
do compositor. Décadas depois, o Quarteto Joachim seria em grande
medida responsável por sua volta ao reconhecimento do público.
Mas Joachim ainda aprendeu algo mais com B õ h m e o Khevenhuller
Tornou-se o principal adepto e defensor do Strad em sua geração.
Haveria, ao longo da vida, de possuir vários deles, quase todos presen-
teados por admiradores ou a ele legados. A escola supervisionada por
Joachim em Berlim daria continuidade ao trabalho de B õ h m , forman-
do uma geração de violinistas que compartilhavam a preferência do
mestre pelos Strads. E m 1899, realizou-se u m festival para comemorar
o jubileu de diamante da primeira apresentação pública de Joachim,
" R E V E L A D O EM TODA A SUA GLÓRIA I N T A C T A " 145

com a participação de seus ex-alunos: quarenta e quatro dos violinos


tocados no concerto eram Strads.
E m 1888, quando a Sociedade Cremona promoveu sua reunião
inaugural em Londres, seu presidente afirmava que, embora quarenta
anos antes Guarneri dei Gesú fosse considerado o verdadeiro mestre e
todos os fabricantes de violinos da Europa tentassem copiá-lo, agora
Stradivari estava de novo em primeiro lugar. Seu panegírico exaltava o
Mestre em termos que teriam ressonância em qualquer intérprete
moderno. Seus violinos apresentavam "reações rápidas" e "flexibilida-
de sob diferentes tipos de pressão para produzir sonoridades de todas
as intensidades". Eram modelos para todos os violinos.
Capítulo Onze

" E N C O N T R E M O SOLISTA
DE SUA MAJESTADE"

Charles Davidov e seu violoncelo

Os VIOLINOS DE STRADIVARI podem ter enfrentado u m desafio de


Guarneri dei Gesú, mas com os violoncelos era diferente. U m único
desses instrumentos chegou a ser atribuído ao próprio D e l Gesú, e os
dos outros artesãos cremoneses eram originalmente, como os primei-
ros Strads, grandes demais. À parte os que foram feitos por Stradivari
em seu período de ouro, os melhores violoncelos italianos são de Veneza.
Os da lavra de D o m ê n i c o Montagnana (1687-1750), o "Grande
Veneziano", em particular, são mais largos que os de Stradivari, mas de
uma altura a que se adaptam bem os músicos modernos. Constituem
os únicos concorrentes sérios dos violoncelos do Mestre.
Para a maioria dos instrumentistas, contudo, os violoncelos em for-
ma de B que Stradivari confeccionou de 1707 a 1727 ainda hoje são o
ne plus ultra do metiê. Apenas 21 deles chegaram até nós, e o valor a
eles acrescido pela raridade os destaca até mesmo em relação aos v i o -
linos do período de ouro de Stradivari. Praticamente todos passaram
pelas mãos de uma série de grandes intérpretes. A l é m disso, o debate
sobre qual seria o melhor de todos é pelo menos possível, o que seria
inconcebível no caso dos violinos de Stradivari. Quero crer que na
primeira metade do século X I X a maioria teria conferido este título a
um violoncelo feito por Stradivari em 1711, o Duport. O proprietário
que acabou dando-lhe o nome viria a ser considerado o Viotti dos
148 STRADIVARIUS

violoncelistas; Jean-Louis Duport estreou triunfalmente no Concert


Spirituel em 1768 e formou alunos que viriam a se espalhar pela maioria
das capitais europeias.
O título de violoncelista favorito de Napoleão ostentado por Duport
quase redundou em desastre para o seu Stradivarius quando o imperador
apareceu, de botas e esporas, num recital privado nas Tulherias. Recorda-
ria mais tarde o historiador francês AntoineVidal:"Ele ouviu com prazer
e, assim que a peça foi concluída, aproximou-se de Duport, cumprimen-
tou-o e, lançando m ã o do violoncelo com seu habitual vigor, pergun-
tou^Como diabos se segura isto, Monsieur Duport?', enquanto se sentava
e espremia o desgraçado instrumento entre as botas." H á quem diga que
as marcas das esporas ainda podem ser vistas nitidamente nas ilhargas do
violoncelo. A lenda aumentaria ainda mais sua fama, à medida que ele ia
passando por mãos quase tão prestigiosas após a morte de Duport. C h e -
gado o ano de 1843, o Duport estava na posse de outro grande violoncelista,
Auguste Franchomme, que por ele pagou 22 mil francos [60 mil libras].
Este valor parecia até então inédito, e justificado apenas pela cele-
bridade do instrumento. Segundo a filha de Franchomme, seu pai teve
de fazer "tenazes esforços" para levantar dinheiro. Deve portanto ter
ficado contrariado ao saber que u m violoncelista amador russo, o con-
de Mateusz Wielhorski, considerava o seu violoncelo Stradivarius su-
perior até mesmo ao Duport. N o dia 2 de outubro de 1843, Franchomme
escreveu ao conde para informar-se a respeito; infelizmente, a resposta
não chegou até nós. Seja como for, esta carta de Franchomme é a p r i -
meira vez em que voltamos a nos deparar com u m registro histórico
do Davidov, o esplêndido violoncelo que encontramos pela última vez
em 1712, quando estava sendo feito por Stradivari para os Medici.
A história do Davidov até 1843 é obscura. Ele provavelmente desa-
pareceu da coleção Medici no Palácio Pitti, em Florença, durante a
ocupação austríaca em 1737. A confusão deve ter criado muitas opor-
tunidades para os inescrupulosos. Pouco sabemos sobre o que se pas-
sou nos cem anos subsequentes. E m seu livro The Violoncello and its History,
" E N C O N T R E M O SOLISTA D E SUA MAJESTADE" 149

publicado em 1888,Wilhelm Josef vonWasielewski dá a entender que


o Davidov pertencia a "Korczmiet, ou Kaltschmidt na versão correta,
de origem alemã, u m requintado virtuose, [que] viveu e trabalhou de
1 8 1 1 a l 8 1 7 e m V i l n i u s " . À parte isso, sabemos que Wielhorski adqui-
r i u o Davidov, presumivelmente entre 1817 e 1843, de u m outro nobre
russo, o conde Apraxin. O preço foi o violoncelo Guarneri de W i e -
lhorski (provavelmente feito pelo avô de D e l Gesú, Andrea), 40 m i l
francos [100 m i l libras] em dinheiro, além de u m cavalo com pedigree
de seu haras. Comparativamente, Franchomme n ã o havia afinal pago
u m preço assim tão absurdo pelo Duport.
Wielhorski era evidentemente u m homem rico, podendo cultivar
suas paixões. Dizia-se que para ter aulas com Bernhard Romberg, fun-
dador da escola alemã de violoncelo, o conde acomodou-o durante
dois anos em seu palácio em São Petersburgo. Parece uma indicação
clara de sua determinação de tocar como u m artista; a estrepitosa com-
pra do Davidov n ã o havia sido u m capricho de aristocrata. Os compo-
sitores da época certamente respeitavam Wielhorski. Felix Mendelssohn
compôs para ele, em 1843, a sua segunda Sonata para violoncelo e pia-
no; u m ano depois, Robert Schumann declarava numa carta que ele
era o diletante mais talentoso que havia conhecido. O violinista belga
H e n r i Vieuxtemps compôs seu " D u o Brilliant" para tocá-lo em com-
panhia de Wielhorski.
E m 1838, o conde chegou a subir ao palco com outro de nossos
personagens, Karol Lipinski, quando ambos se apresentaram como so-
listas num concerto beneficente em São Petersburgo. Eles n ã o devem
ter tocado juntos, de modo que não podemos imaginar como se mis-
turaram as sonoridades do Davidov e do Lipinski, mas nem por isso a
possibilidade deixa de ser atraente.
O conde t a m b é m era u m dos principais promotores de concer-
tos da Rússia. Ele e seu irmão Michal introduziram o público de São
Petersburgo na música de muitos compositores ocidentais. As i m -
pressões de Schumann a respeito dos talentos do conde Mateusz fo-
150 STRADIVARIUS

ram colhidas quando se hospedou com a mulher na casa dos dois i r -


mãos. Outro convidado foi Franz Liszt, observado pelo crítico de arte
russo Vladimir Stasov a passear com o conde Michal numa recepção
matinal: " O conde, que se movia muito, muito lentamente, fulminando
a todos com seus olhos esbugalhados, usava uma peruca encaracolada
à VApollo Belvedere* e uma enorme gravata branca."
U m a descrição MAIS benevolente dos Wielhorski nos chega pela
pena de Hector Berlioz, outrora beneficiário da generosidade de
Paganini, que esteve em São Petersburgo em 1847: "Eles são irmãos,
cada u m mais inteligente e dedicado à música que o outro, e moram
juntos. O prestígio de seu gosto justificadamente famoso, a influência
de sua grande riqueza e de suas numerosas relações e a posição oficial
que ocupam na corte, próximos do imperador e da imperatriz, combi-
nam-se para transformar sua casa num pequeno Ministério das Belas-
Artes em São Petersburgo."
C o m tudo isso, pode parecer surpreendente que o violoncelo
Stradivarius do conde não tenha vindo a ser chamado de " Wielhorski".
Isto se deve a u m derradeiro gesto de generosidade.
Antes de completar 25 anos, Carl Davidov j á era considerado o
maior virtuose do violoncelo na Europa, mas n ã o havia chegado a
este ponto por caminhos convencionais. Nascido na Letónia em 1838,
Davidov só c o m e ç o u a aprender a tocar o instrumento aos 12 anos.
O início tardio foi ainda agravado pela insistência dos pais em que
concluísse seus estudos formais antes de contemplar uma carreira
musical. D e modo que ele j á tinha 20 anos, tendo-se formado em
matemática em São Petersburgo, quando chegou a Leipzig para estu-
dar composição.
Ainda a essa altura, Davidov poderia ter acabado como composi-
tor. O grau de seu talento para o violoncelo só ficou evidente quando

* Presumivelmente, uma referência à estátua do Vaticano que influenciou profundamente a


escultura neoclássica.
"ENCONTREM O SOLISTA D E SUA MAJESTADE" 151

foi convocado à última hora para uma substituição num concerto pri-
vado do Trio Mendelssohn. O sucesso nessa ocasião, seguido de u m
triunfo em circunstâncias mais públicas com seu próprio Concerto para
violoncelo n° 1, convenceu Davidov de que seu futuro estava na m ú -
sica. E m 1862, depois de u m brilhante período em Leipzig e de con-
certos por toda a Europa, ele retornou a São Petersburgo para assumir
a posição de primeiro violoncelo da Ópera. U m ano d e p o i s j á era pro-
fessor no recém-criado conservatório, pronto para tornar-se uma figu-
ra-chave na grande tradição violoncelística de seu país. Para isto, Davidov
precisava de u m instrumento à altura de seu talento.

E X I S T E M MUITAS histórias sobre a maneira como Wielhorski deu seu


Stradivarius a Davidov. Minha preferida é a versão contada porYo-Yo
Ma, o atual detentor do Davidov: "Certa noite, no inverno de 1885-
1886, Davidov foi visitar o conde Wielhorski na corte do czar Alexan-
dre I I . ' Q u e bicho o mordeu?', perguntou Davidov a Wielhorski.'Você
está tão excitado!'Wielhorski respondeu: ' T e m razão. Esta noite eu
comemoro meus setenta anos, e vou fazê-lo presenteando-o com meu
violoncelo.' Davidov não estava acreditando, até que no dia seguinte
um criado do conde levou o instrumento a sua casa." Outra versão —
uma carta escrita para acompanhar o Davidov anos mais tarde — sus-
tenta que a entrega teve lugar num concerto destinado a comemorar o
octogésimo aniversário de Wielhorski e oferecido, com a autorização
do czar, na corte de São Petersburgo. U m a terceira versão afirma ape-
nas que a entrega ocorreu em 1870.
Wielhorski nasceu em 1793 e morreu em 1866, de modo que ne-
nhuma dessas histórias pode estar muito certa. O que parece claro,
contudo, é que Wielhorski via Davidov como u m protegido — estive-
ra envolvido na criação do Conservatório de São Petersburgo, e pro-
vavelmente teve alguma influência na designação de Davidov — e sabia
que seus próprios dias como intérprete estavam chegando ao fim. E l e
152 STRADIVARIUS

considerava o seu Strad o melhor violoncelo do mundo; naturalmente,


gostaria de vê-lo nas mãos de seu brilhante jovem compatriota.
O mais provável é que a entrega tenha sido feita no dia do septua-
gésimo aniversário de Wielhorski, segundo a versão de M a , mas isto
teria sido em 1863, mais ou menos na época em que Davidov assumiu
sua cadeira de professor. Seria simpático acreditar no resto da história
de Ma, à parte as datas, mas em minha opinião isto iria de encontro ao
que sabemos sobre as inclinações de Wielhorski como empresário. É
improvável que ele tivesse desperdiçado a oportunidade por ele mes-
mo criada de um ato solene de entrega em público. A carta deve estar
basicamente correta, exceto por acrescentar dez anos à idade do con-
de. Organizou-se u m concerto, e sua principal atração foi sem dúvida
o próprio violoncelo, possivelmente tocado primeiro por Wielhorski e
em seguida por Davidov, num reconhecimento simbólico, por parte da
geração mais velha, de que sua época havia passado.

Q U A N D O AFINAL Davidov recebeu o violoncelo que passaria a levar


seu nome, o instrumento j á devia ter sido em grande medida atualiza-
do para atender às modernas exigências da arte de tocar. Wielhorski
dificilmente poderia ter tocado as peças dedicadas a ele num violoncelo
barroco. Assim, exatamente como no caso dos violinos, seu braço teria
sido inclinado para trás em relação à caixa de ressonância, para acabar
com o espelho em cunha.Também a barra harmónica teria sido subs-
tituída por uma versão maior, fortalecendo o tampo, que j á agora era
submetido a uma tensão maior do que jamais planejara Stradivari.
Wielhorski certamente t a m b é m teria usado um arco moderno da l i -
nha Tourte. E m todos esses avanços, o violino e o violoncelo caminha-
vam no mesmo ritmo. N u m outro caso, o instrumento maior abriu
caminho: até 1863, as duas cordas mais graves do Davidov seriam de
tripa com enrolamento de prata. O resultado da mistura podia ser uma
sonoridade mais penetrante, e uma diminuição da tendência a desafi-
"ENCONTREM O SOLISTA D E SUA MAJESTADE" 153

nar durante a apresentação, mas ao preço da perda de uma certa suavi-


dade. Os violinos continuariam usando cordas de tripa nua até bem
entrado o século X X .
Davidov provavelmente foi responsável pela última mudança que o
seu violoncelo deve ter sofrido antes de ficar em condições de ser toca-
do por u m violoncelista moderno: a instalação do espigão, permitindo-
lhe repousar o instrumento no chão. A popularização dessa inovação,
como de tantas outras, pode ser creditada a u m instrumentista, embora
cem anos antes j á fosse recomendada para os iniciantes. O virtuose belga
Adrien-François Servais ganhou fama em toda a Europa na primeira
metade do século como "o Paganini do violoncelo", provavelmente mais
em referência a sua técnica do que ao seu aspecto. Pelo fim da vida (ele
morreu em 1866, aos 59 anos), Servais engordou tanto que j á não era
capaz de sustentar o instrumento entre os joelhos. O espigão era então
uma solução. A invenção causou uma revolução na técnica do violoncelo:
as pernas podiam relaxar, o arco, mover-se com mais facilidade, e a m ã o
esquerda, percorrer livremente o espelho para cima e para baixo. Somente
com o espigão podiam as mulheres pensar na possibilidade de se tornar
violoncelistas: até então, a idéia de firmar o instrumento entre as pernas
parecera muito pouco feminina para ser contemplada.
A instalação do espigão implica simplesmente a substituição de um
botão de apoio — o ponto onde é fixado o estandarte — por outro dota-
do de uma extensão ajustável; as consequências diretas para a sonoridade
são nulas. Há, contudo, um resultado indireto. Desde a época de Servais, os
violoncelos são tocados em contato direto com o solo, outro corpo com
suas ressonâncias próprias. Repouse-se o espigão num palco ribombante,
por exemplo, e a sonoridade do violoncelo mudará significativamente.

SERIA AGRADÁVEL registrar que Davidov dava grande valor ao pre-


sente de Wielhorski, tratando-o com o cuidado que merecia. N a reali-
dade, ele parecia encarar a própria carreira com certa indiferença, atitude
154 STRADIVARIUS

que se aplicava t a m b é m a seu violoncelo. Seu genial temperamento


artístico era do tipo que quase parece brotar com excessiva facilidade.
A única vez em que jamais estudou seriamente foi em 1859, para aqueles
primeiros e decisivos concertos. Leopold Aúer, primeiro violino no
Quarteto de São Petersburgo ao lado de Davidov, afirmava que o
violoncelista era capaz de tocar depois de passar meses afastado do ins-
trumento. Os ensaios deixaram-lhe uma lembrança de "alegria, risos e
anedotas sem fim" à "mesa hospitaleira" de Davidov e sua "encantado-
ra mulher", e não de trabalho duro. Os alunos contavam que Davidov
levava seu Strad à sala de aula antes de u m concerto para que pudessem
amaciar as novas cordas, pois "não tenho tempo para o meu violoncelo".
O violoncelista tornou-se u m dos frequentadores favoritos da cor-
te do czar, com o título de "Solista de Sua Majestade". E n ã o se tratava
de u m título honorífico sem real significado. A função implicava deve-
res e expectativas que em 1875 quase levaram a u m desastre, quando a
corte russa decidiu oferecer uma noitada musical durante a visita do
rei e da rainha da Suécia. O pianista e compositor Anton Rubinstein
foi convidado a organizar o concerto. Tratou então de estabelecer u m
programa, incluindo Davidov como solista e como parte de u m trio, e
o apresentou ao ministro da Casa Imperial, o conde Alderberg. Só en-
tão se constatou que o violoncelista n ã o estava em São Petersburgo,
tendo partido espontaneamente para uma turnê pela Finlândia. E r a uma
questão da maior gravidade; o fato de se ter ausentado sem autorização
podia ter custado a Davidov sua posição na corte, com todas as conse-
quências de cair em desgraça. Foi em vão que Rubinstein telegrafou a
todas as principais cidades do território, que era então possessão impe-
rial russa. N ã o conseguiu encontrar Davidov e voltou a Alderberg com
uma nova proposta de programa para o concerto. O ministro pergun-
tou qual era o motivo da alteração, e ao ser informado respondeu que
se Davidov efetivamente estivesse na Finlândia, n ã o havia motivo para
mudar o programa; ele estaria de volta a São Petersburgo na noite se-
guinte.
" E N C O N T R E M O SOLISTA D E SUA MAJESTADE" 155

N a m a n h ã do dia do concerto, Davidov foi acordado às 5 horas


pelo porteiro de seu pequeno hotel emVibors, uma fortaleza finlan-
desa n ã o distante da fronteira. Mais alarmante ainda foi dar com os
olhos no acompanhante do porteiro: o chefe de polícia, uniformiza-
do dos pés à cabeça, que disse a Davidov que se vestisse imediata-
mente e fosse diretamente com o seu Stradivarius para a estação
ferroviária. O violoncelista obedeceu nervosamente mas sem hesitar:
não se contrariava uma autoridade russa. U m a vez na estação, ele
recebeu o pedaço de papel que explicava a maneira intempestiva como
havia sido acordado:

Ordem telegráfica do Ministro do Interior de Sua Majestade o Czar:


A todos os chefes de polícia da Finlândia:
Busquem imediatamente e encontrem o solista de Sua Majestade
Charles Davidov, e enviem-no de volta imediatamente para Peterhof
por trem especial.

O trem estava lá esperando. À medida que percorriam as estações a


caminho do Palácio Imperial, Davidov via divertido, em cada platafor-
ma, o chefe da estação e os empregados enfileirados em formação
militar, saudando alguém que presumiam ser u m importante membro
da família real. Ele chegou a tempo para o concerto.
U m ano depois, em 1876, Davidov foi nomeado diretor do C o n -
servatório de São Petersburgo. C o m a p r o m o ç ã o , tal como antes dele
havia acontecido com os irmãos Rubinstein, Davidov tornava-se
membro da Ordem de São Vladimir, na quarta classe. E r a uma i m -
portante distinção, tornando-o nobre e a seus descendentes, privilé-
gio nada desprezível n u m país feudal em que os músicos em geral
não tinham direitos e podiam ter problemas com o passaporte e m
todas as fronteiras. O mandato de Davidov como diretor seria l e m -
brado por sua benevolência: o n ú m e r o de bolsas de estudo aumen-
tou muito e os estudantes mais pobres tiveram direito a alojamento
156 STRADIVARIUS

grátis. Só como regente da Orquestra de São Petersburgo ele amar-


gou u m relativo fracasso."Tranquilo e tímido por natureza", escreve-
ria Atier, Davidov "carecia da energia, do pulso e do temperamento
para impor sua autoridade e inspirar os músicos". Permaneceu na
função apenas uma temporada.

O A N O E M Q U E Davidov tornou-se diretor do Conservatório de São


Petersburgo foi t a m b é m o ano da morte de Joseph B õ h m . E l e n ã o t i -
nha filhos, e seu sobrinho Louis herdou o Khevenhuller. Violinista, ele
fora aluno e hóspede do tio na mesma época em que Joachim. E m
1876, era professor no Conservatório de São Petersburgo, onde deve
ter buscado a inspiração de Davidov. É muito provável que em algum
momento dos dez anos subsequentes o professor e seu diretor tenham
tocado juntos, cada u m com o seu Strad: provavelmente a primeira vez
em que dois de nossos instrumentos se conjugaram numa mesma obra
musical.
Pelo fim da vida, Louis vendeu seu violino aViktor Popov, profes-
sor do Conservatório de Moscou, o grande rival de São Petersburgo.
O novo proprietário finalmente providenciou acessórios modernos para
o Khevenhuller, nada menos que u m século depois das primeiras adap-
tações desse tipo. O braço original do violino provavelmente estava
quase se desfazendo, de modo que não foi apenas reclinado para trás
com u m calço, mas substituído por uma nova peça de bordo, enxertada
na voluta original de Stradivari.
E m 1906, u m colega de Popov em Moscou, Pierre de Ellisseiff,
adquiriu outro dos nossos Strads, o Paganini de 1680. Monsieur
Desaint, que o havia comprado de Vuillaume, acabara por v e n d ê - l o a
um certo Monsieur Levers, de Poitiers, que por sua vez o vendia agora
a Ellisseiff. Assim, o Khevenhuller e o Paganini estavam na mesma c i -
dade. Parece sedutor imaginar noites de música de quarteto, com os
E N C O N T R E M O SOLISTA D E SUA MAJESTADE" 157

dois Strads superando a diferença de cinquenta anos de idade em


maviosa fusão sonora.

A ESSA A L T U R A , Davidov h á muito j á havia morrido. Sua desgraça


sobreveio por ter levado o cuidado com os alunos além dos limites
estritamente paternais. E m 1887, descobriu-se que ele tinha u m caso
com uma jovem aluna de piano. Forçado a se demitir de todas as suas
funções, ele t a m b é m foi por algum tempo obrigado a deixar a Rússia.
Logo voltaria, mas em janeiro de 1889, quando ainda tinha apenas 50
anos, adoeceu em pleno palco durante u m recital com cinco sonatas
de Beethoven. Morreria duas semanas depois, legando à família o
Stradivarius Davidov. U m negociante inglês tentou comprar o instru-
mento, "mas o p r e ç o pedido era considerado na é p o c a u m valor
exorbitante, 60 m i l francos" [165 m i l libras]. O mesmo negociante
observaria mais tarde: "Este belo exemplar sofreu consideravelmente
nas mãos de Davidov, apresentando sinais n ã o só de desgaste, mas de
utilização descuidada." O instrumento acabaria sendo vendido em P a -
ris na virada do século. Raramente u m comprador britânico se dava
por vencido. O epicentro do comércio de Strads j á se transferira deci-
didamente para Londres por esta época.
Capítulo Doze

55
" U M A IMENSA RESERVA D E F O R Ç A

Marie Hall, os Hill e a época eduardiana

EM JUNHO DE 1890, uma nova publicação mensal dedicada ao violino


e seus instrumentos irmãos foi oferecida ao público britânico. Apre-
sentando notícias, resenhas e conselhos para os leitores, tinha uma seção
de cartas e afirmava que seria uma publicação totalmente independen-
te, não se sabe bem de quê. O nome da revista — The Strad — trazia a
marca da qualidade. C o m o explicava o editorial do primeiro n ú m e r o ,
desde a morte do inspirador de seu título "em 1736 [sic], a fabricação
de violinos praticamente estagnou".
Os temas cobertos por The Strad — concertos, dicas sobre a arte do
violino, histórias sobre o desenvolvimento dos instrumentos de cordas
— eram de grande interesse para as classes médias emergentes. E a r i -
queza da Grã-Bretanha era uma garantia de que tão cedo o influxo de
Strads não diminuiria. Assim, uma das primeiras notícias veiculadas pela
revista, três meses depois do lançamento, era a informação de que o
mais famoso deles, o próprio Messias, havia chegado a terras britânicas.
Alard morrera, e seu valioso violino havia sido comprado de seu genro
por duas m i l libras [140 m i l libras], então u m recorde. O comprador
era u m certo sr. Robert Crawford de Edimburgo, que teve como i n -
termediária na transação a firma W. E . H i l l & Sons, de Londres.
São raros na fabricação de violinos os nomes antigos como o de
H i l l . E m 1660, Samuel Pepys consultou u m sr. H i l l , em sua "loja de
música" em Minories, sobre a possibilidade de "reformar o meu alaúde
160 STRADIVARIUS

e a minha viola". Infelizmente, é difícil encontrar uma ligação entre o


H i l l mencionado por Pepys e o Joseph H i l l do século X V I I I , estabele-
cido em Haymarket, que fazia (segundo seus descendentes) "cópias meio
fracas" de violinos, violas e violoncelos italianos. Seu neto, W i l l i a m
Ebsworth H i l l , à frente da empresa familiar a partir do meado do sécu-
lo X I X , também começara fabricando violinos. Mas a lucratividade desta
atividade foi prejudicada pelo livre comércio, que permitia a entrada
de importações baratas do resto da Europa. E assim ele passou gradual-
mente a se dedicar ao comércio e ao conserto de violinos antigos. O
tempo mostraria que foi uma decisão acertada.
À medida que os preços aumentavam e os atos de falsificação ou
erro de autoria tornavam-se lugar-comum, a necessidade de autenti-
car os instrumentos ganhava premência. Mesmo antes de Tarisio as eti-
quetas j á haviam deixado de ser dignas de crédito. E m seu lugar, toda
uma série de indicações diferentes servia para determinar a identidade
do fabricante de u m violino: o brilho do verniz, a forma das marcas
das ferramentas, a inclinação das aberturas acústicas, a qualidade da
madeira, o contorno das curvas. Nesse mister, a especialização exigia
uma m e m ó r i a visual desenvolvida no manuseio de milhares de instru-
mentos. Só os negociantes reuniam essas condições, e W. E . H i l l era o
mais respeitado de todos. Relatava um contemporâneo: "Quando lhe
mostravam u m violino, ele dava uma rápida olhada e imediatamente
declarava o nome do fabricante. Q u e m se arriscasse a duvidar era ins-
tantaneamente derrubado por uma avalanche de provas, talvez mistu-
radas a sarcásticos comentários de espanto por não ser capaz de se dar
conta de algo tão óbvio."
U m certificado de autenticidade conferido por Hill & Sons a um vio-
lino valia muito mais que qualquer etiqueta em seu interior, e o peso téc-
nico de um depoimento de W E . Hill podia decidir um caso judicial. Sua
intervenção mais famosa foi provavelmente o depoimento como teste-
munha de James Johnstone no processo que moveu contra o negociante
escocês David Laurie. Este havia, em 1883, reconstituído um Strad a partir
de peças avulsas, diminuindo o fundo para adaptá-lo ao tampo, e vendera
UMA IMENSA RESERVA DE FORÇA 161

o instrumento ajohnstone com a seguinte garantia: "Feito por Antonius


Stradivarius, de Cremona, data 1701, e garanto que todas as partes são au-
tênticas e produzidas por este célebre artesão." A o descobrir a verdadeira
proveniência do violino, Johnstone, atacadista de peixes, muito justi-
ficadamente pedira de volta o dinheiro. Como Laurie recusasse,Johnstone
recorreu à justiça e, com W. E . Hill a seu lado, obteve ganho de causa. A
decisão judicial baseou-se não tanto no fato de que o violino tivesse sido
montado com peças de três diferentes antecessores, mas no exagero da
garantia oferecida por Laurie. C o m efeito, uma das ilhargas do violino não
era autêntica, e Laurie não podia dar garantias da data de 1701. Parece es-
pantoso que tivesse pensado que poderia sair-se bem com isso, embora
tenha rido por último, acabando por vender o já então famoso Strad Tribu-
nal pelo dobro do preço originalmente pago por Johnstone.
Enquanto isso, outros negociantes tomavam as dores de Laurie:juízes
e vendedores de peixe não tinham nada que se meter em coisas que
não entendiam, devendo deixá-las para os conhecedores. A verdade é
que Laurie comportava-se como seus colegas sempre haviam feito.
Apenas, tivera o azar de ter sido apanhado e contestado. U m pouco
abaixo na escala de excelência, Edward Goodwin negociava com v i o -
linos muito menos caros, do tipo que ainda podia ser encontrado em
mercados de aldeias na Europa continental. E m suas reminiscências, ele
admite tranquilamente que forjava etiquetas e certificados de leilão, além
de (um dos expedientes favoritos) comprar instrumentos de viúvas fran-
cesas por uma fiação do real valor. A atitude geral da maioria dos ne-
gociantes parece ter sido a de lavar as mãos ante compradores e
vendedores. Desde a época de Tarisio, eles eram os únicos capazes de
identificar tanto as falsificações quanto os verdadeiros tesouros; como
abririam m ã o de desfrutar de tão privilegiado monopólio?

U M A DAS M A N E I R A S pelas quais os H i l l começaram a se distinguir dos


concorrentes foi com a produção de elegantes monografias sobre v i o -
linos e luthiers. O Stradivarius Toscano, da série feita para os Medici em
162 STRADIVARIUS

1690, j á havia merecido uma delas, e haveriam de seguir-se livros sobre


Maggini e o próprio Stradivari. E m 1891, o mesmo foi feito com o
Messias* E r a uma estranha escolha. O livro sobre o Toscano pode ser
considerado uma discreta forma de publicidade. O Messias j á pertencia
a Robert Crawford quando o livro foi escrito. Estivera por breve período
apenas aos cuidados dos H i l l , que nunca chegaram a ser seus proprie-
tários. Seja como for, eles tinham começado a sentir-se tão atraídos pelo
violino quanto Tarisio,Vuillaume e os outros donos anteriores. Os des-
tinos dos H i l l e do Messias estariam intimamente associados ao longo
dos cinquenta anos seguintes.
O livro permitia aos H i l l detalhar a história do Messias, derraman-
do-se na exaltação da excelência artesanal que presidira sua fabrica-
ção. Muitas de suas características eram únicas: a finura da aresta entre
o filete e a borda do instrumento, a angulosidade dos cantos, o perfil
plano do violino e o maravilhoso estado de conservação de seu ver-
niz. Eles t a m b é m podiam opinar sobre a sonoridade do Messias. E m
1864, Fétis afirmara que "neste novo instrumento, encontramos as-
sociadas todas as qualidades de força, suavidade, homogeneidade, de-
licadeza e liberdade, com uma sonoridade nobre e penetrante". Os
H i l l reproduzem o c o m e n t á r i o e acrescentam secamente: "Todavia,
somos de opinião, depois de u m cuidadoso exame, que a sonoridade
do instrumento seria muito enriquecida com maior utilização." P a -
rece que pouco havia mudado desde que Spohr encontrara o violino
setenta e cinco anos antes.
Durante o período em que esteve na posse de Crawford, o Messias
provavelmente foi mais tocado que em qualquer outro momento de
sua vida. O episódio mais famoso é aquele em que Joseph Joachim foi
autorizado a experimentá-lo em 1891. A carta que posteriormente
escreveu a Robert Crawford ainda hoje é citada sempre que vem à

• P or eles chamado de "Salabue", do nome de seu primeiro proprietário famoso, o conde


C o z i o di Salabue.
UMA IMENSA RESERVA DE FORÇA" 163

baila a questão da sonoridade do Messias: "Naturalmente, o som do


Strad, esse incomparável 'Messie', está constantemente voltando à m i -
nha memória, com sua mistura de suavidade e imponência, que tanto
me impressionou ao ouvi-lo."
O Messias n ã o permaneceu muito tempo na Escócia. E m 1904,
Crawford vendeu-o de volta aos H i l l . William Ebsworth morrera em
1895, mas o negócio continuara a prosperar sob a direção de seus três
filhos. E m 1902, os irmãos haviam lançado a primeira edição de sua
principal obra, Antonio Stradivari. Nos dez anos que se seguiram ao lan-
çamento da monografia, a admiração da família pelo Messias só havia
aumentado: "Ele n ã o tem equivalente em suas qualidades. E se tivesse
apenas oito dias, em vez de cento e oitenta e seis anos de idade, n ã o
pareceria mais novo." Os H i l l não voltariam a se separar novamente do
violino até 1913.

POR ESTA ÉPOCA, outro dos nossos Strads passou pelas mãos dos H i l l .
Karol Lipinski morrera em 1861, e seu violino havia sido vendido por
negociantes de Dresden ao professor Engelbert R õ n t g e n , do Conserva-
tório de Leipzig. Era u m bom violinista, ao qual posteriores gerações de
amantes da música devem eruditas edições dos quartetos de Beethoven,
mas não u m virtuose. E m suas mãos, o Lipinski n ã o conquistou novos
públicos. Até que, em 1899, dois anos depois da morte de Rõntgen, Joseph
Joachim ouviu o violino; era provavelmente u m dos quarenta e quatro
Strads tocados no concerto de seu jubileu de diamante em Berlim. Q u a -
renta anos antes, u m abraço recebido em público de Lipinski constituíra
um dos marcos no caminho de Joachim para a fama mundial. D e modo
que o reencontro com seu velho violino deve ter suscitado lembranças
felizes. Nessa oportunidade, contudo, havia algo de errado com ele, e
Joachim recomendou que fossem encomendados reparos a W. E . H i l l &
Sons. D e Londres, o Lipinski voltaria para o continente europeu, passan-
do a u m amador holandês que posteriormente o venderia de volta aos
164 STRADIVARIUS

Hill.Toda esta rotatividade representava água no moinho dos negocian-


tes; juntamente com o aumento aparentemente inexorável dos preços
de violinos antigos, ela deve ter feito os irmãos abençoarem a decisão do
pai de deixar a fabricação.

HAVIA, N O ENTANTO, quem achasse que os preços haviam chegado ao


limite. N ã o era possível que eles passassem de duas m i l libras [140 m i l
libras]! Já se polemizava para saber se algum violino valia os preços então
cobrados. Fabricantes como Gemúnder, de Nova York, vendiam cópias
de Stradivari e D e l Gesú por algo em torno de 200 dólares [2.700 l i -
bras]. Os anúncios alardeavam os nomes dos violinistas que os haviam
tocado, reproduzindo depoimentos sensacionais. Foram feitas tentati-
vas de comparar instrumentos em condições mais ou menos científi-
cas. N u m a das primeiras experiências, em 1909, o público foi convidado
a votar em seu violino favorito, depois que cada u m deles havia sido
tocado pelo mesmo solista num salão mantido no escuro. U m violino
francês relativamente moderno, fabricado no século X I X , deixou u m
Strad em segundo lugar, mas a seriedade do resultado pareceu com-
prometida quando se revelou que o instrumento vencedor pertencia
ao solista. D a mesma forma, parecia difícil levar a sério extravagantes
elogios dos produtos de fabricantes da época feitos por virtuoses que
continuavam a tocar instrumentos cremoneses em seus concertos.
Para a maioria dos observadores, portanto, a constante demanda de
Strads e outros instrumentos cremoneses por parte dos violinistas era
prova suficiente de sua superioridade. A t é as cópias aparentemente
perfeitas de Vuillaume deixavam a desejar em matéria de sonoridade.
Devia existir algum segredo de fabricação usado por Stradivari e ainda
não descoberto. Q u e m quer que o descobrisse poderia cobrar o preço
que quisesse. C o m o sempre, as atenções concentravam-se sobretudo
no verniz. O caminho aberto na investigação por Vuillaume e Reade
era agora seguido por muitos. Intensos debates se davam em torno da
"UMA IMENSA RESERVA D E FORÇA" 165

perfeita metodologia para derreter o âmbar; as receitas eram cada vez


mais complicadas; e os ingredientes mais exóticos eram sugeridos. E m
tudo isso, os irmãos H i l l representavam a voz da razão, lembrando que
o verniz de Stradivari não era exclusivo de Cremona — até Stainer o
usava — , e sua receita não podia ser nenhum grande segredo. Mas até
mesmo eles ficaram altamente excitados quando u m descendente de
Stradivari afirmou ter encontrado a receita do verniz do antepassado
numa Bíblia de família. Segundo a versão divulgada, os H i l l deviam
acreditar que o referido descendente havia sido o primeiro a encontrar
a Bíblia em u m século, para em seguida destruí-la. Obviamente absur-
da, a história logo se revelaria uma invenção. A ingenuidade dos irmãos
nesse episódio n ã o combina com sua experiência e erudição, podendo
ser o reflexo de uma certa avidez.
Se não era o verniz, devia haver alguma outra resposta. Alguns segui-
ram uma outra linha de investigação aberta porVuillaume: a diferença so-
nora entre o tampo e o fundo do violino antes da montagem da caixa de
ressonância. O trabalho deVuillaume foi levado adiante, cada componente
do violino foi pesado, livros foram escritos com as proporções e toda a
pseudociência que estava por trás delas. U m a outra teoria creditava a
Stradivari e seus contemporâneos pura e simples sorte. Por mero acaso eles
utilizavam madeiras previamente embebidas em água. As toras à venda em
Cremona haviam sido derrubadas nos Alpes e conduzidas ao mercado flu-
tuando no rio Pò. Os luthiers do século X I X perderam esta vantagem por
causa de Napoleão, que mandou abrir estradas no caminho do rio. Bastava
usar madeira embebida em água e os violinos passariam a ter uma sonori-
dade como a de Stradivari. A vantagem de cada uma dessas teorias era que
havia sempre uma desculpa perfeita para a sonoridade decepcionante dos
violinos: eles simplesmente "precisavam amadurecer mais".

NO DIA 16 DE FEVEREIRO DE 1903, aos 18 anos, Marie Hall estreou


em Londres no St James Hall. Sua história j á era então u m prato feito
166 STRADIVARIUS

para qualquer romancista. Nascida em 1884 numa família pobre mas


musical, Marie trazia de sua casa em Newcastle a lembrança dos passos
e dos guinchos dos ratos ouvidos através das paredes. E l a precisou apren-
der secretamente a Cavatina de Joachim R a f f para convencer o pai, u m
harpista, a permitir que estudasse violino. A evidência de seu talento
fez com que se apresentasse em concerto público ainda aos nove anos,
o que levou u m empresário local a se oferecer para patrocinar seus es-
tudos. O pai recusou; Marie era necessária em casa, e quando a família
mudou-se para Malvern ela se v i u obrigada a tocar nas esquinas. E as-
sim é que foi ouvida por Edward Elgar. Embora fosse j á muito famoso,
ele ainda sabia identificar u m talento. Elgar coletou dinheiro com amigos,
comprou o primeiro violino italiano de Marie e enviou-a a Londres
para mostrar seu talento. Lá, uma apresentação do Concerto para v i o -
lino de Mendelssohn bastou para convencer August Wilhelmj, chefe
do departamento de violino da Escola de Música Guildhall. Marie foi
hospedada em sua casa.
O futuro de Marie parecia assegurado, mas, ainda com apenas dez
anos, ela estava infeliz e com saudades de casa. E m apenas três meses
voltava ao convívio da família, j á agora em Birmingham. Pelo menos
p ô d e continuar a estudar violino, e aos 13 anos ganhou uma bolsa de
estudos para a R e a l Academia de Música. Mais uma vez, contudo, teve
de desistir; o pai era pobre demais para dispensar sua ajuda na assistên-
cia aos três irmãos menores. Quando a família mudou-se para Bristol,
Marie estava novamente tocando nas ruas com o pai. Eventualmente
eles eram ouvidos através das janelas de alguma mansão e convidados
a tocar em seu salão.
Gradualmente, Marie foi formando uma clientela. Demonstrando
notável iniciativa — ainda não havia completado 15 anos — , ela deci-
diu dar u m concerto, vendendo entradas de casa em casa e alugando
u m salão. Foi ficando claro, todavia, que as despesas seriam maiores que
a renda auferida; Marie teve de cancelar o concerto e devolver o d i -
nheiro das entradas. T a m b é m para isso deve ter sido necessária cora-
UMA IMENSA RESERVA D E FORÇA 167

gem, mas afinal o esforço não foi em vão. U m dos desapontados m e m -


bros em potencial do concerto anulado era uma compositora, Jane
Jackson Roeckel, que promoveu u m encontro da jovem violinista com
Philip Napier Miles, não apenas compositor, como u m homem muito
rico. O círculo vicioso de ofertas e recusas finalmente podia ser rompi-
do. Marie iria para Londres e seu pai receberia 1 libra [65 libras] por
semana pela ausência da filha e o poder aquisitivo que ela representava.
É uma história digna de Dickens, embora Marie se inclinasse mais a se
comparar com Cinderela, acreditando que seu histórico de pobreza e
autoritarismo paterno ligava-a espiritualmente ao próprio Paganini.
Marie passou três anos em Londres, estudando n ã o apenas violino
mas t a m b é m literatura inglesa, francesa e alemã sob os cuidados de
tutoras. Até que, ao completar 17 anos, sobreveio u m encontro crucial
com Jan Kubelik, quatro anos mais velho que ela e j á considerado u m
novo Paganini por platéias em delírio. Kubelik fora aluno de Otokar
Sevcík, cujo " m é t o d o " produziria nos anos subsequentes uma série de
jovens prodígios. E l e aconselhou Marie a seguir seus passos, e ela foi
então para Praga, onde passaria dezoito meses com o homem que mais
tarde chamaria de "o maior professor da nossa época". O cumprimen-
to foi retribuído; designando em Marie a melhor aluna que jamais t i -
vera, Sevcík levou-a para tocar para o mais famoso compositor da
Boémia, Antonin Dvorák, que concordou que ela estava pronta para
estrear em concerto. Assim é que o público de Praga foi o primeiro a
ouvi-la; e foi em consequência de seu sucesso triunfal na capital tcheca
que Marie foi contratada para tocar no St James Hall em Londres.
Foi uma enorme e imediata sensação. O programa escolhido por
Marie teria exaurido até mesmo u m solista experiente, mas n ã o parece
ter-lhe causado problemas. C o m e ç a n d o com o Concerto em m i be-
mol maior de Paganini, ela encantou a platéia da mesma maneira que
seu antecessor espiritual havia feito ao estrear em Viena quase oitenta
anos antes. Sua interpretação do Concerto para violino deTchaikovsky
obrigou-a a dar seis bis, proeza logo superada, quando a Fantasia Fausto
168 STRADIVARIUS

de Wieniawski foi coroada de nove bis. A simpatia gerada pelo fato de


Marie ser jovem e mulher era ainda favorecida por ser ela britânica;
n i n g u é m se lembrava de algum virtuose que antes dela tivesse causado
tanta sensação ou provocado tão justificado interesse j á na estréia. Mais
tarde ela confessaria que, estimulada pelo apoio do regente Henry Wood
e sentindo como se Sevcík estivesse na platéia, ela nunca havia em toda
a carreira "tido tanto prazer num concerto".
The Strad estava sempre a postos para oferecer aos leitores o que que-
riam, e deu destaque para Marie na edição seguinte. U m a bela e frágil
morena de 18 anos, com lábios que hoje seriam considerados sensuais,
nos contempla nas páginas da publicação, sendo fácil demais fazer com-
parações com intérpretes modernos. Mas existe nela uma aura de deter-
minação — algo da mulher sensata que discorreria para as leitoras do
Jornal Feminino sobre a importância da disciplina — que parece indicar
que trabalhou duro para chegar aqui e não vai deixar que toda a adula-
ção lhe suba à cabeça. Além disso, provavelmente terá lido os comentá-
rios do resenhista de The Strad,66Gamba",segundo quem"ela tem a mais
admirável fluência técnica, uma sonoridade pequena e algo acanhada,
mas muito ardor e arrebatamento, que provavelmente a levarão longe".
É difícil saber se a crítica à sonoridade de Marie deve ser atribuída a
sua imaturidade, à necessidade do resenhista de encontrar algum defeito
(havia quem considerasse sua sonoridade pura e doce) ou à força de pro-
jeção relativamente pequena do Amati que ela havia tomado de emprés-
timo a Sevcík, em comparação com os Strads e D e l Gesus tocados pela
maioria dos outros solistas. A resposta pode ser encontrada em parte no
fato de que em seu concerto seguinte ela tocou u m Stradivarius em-
prestado pelos Hill. Dessa vez,"Gamba" reconheceu que a arte de Marie
evidenciava "sinais manifestos das qualidades mais profundas e amplas",
embora ele continuasse inclinado a"ir mais devagar"que certos adoradores
aparentemente menos críticos da violinista (numa resenha posterior, ele
haveria de mostrar-se positivamente maldoso: "Algo está faltando. Seria
charme?"). Nisto foi acompanhado pelo Daily Telegraph, que comentou
"UMA IMENSA RESERVA D E FORÇA" 169

uma de suas apresentações afirmando que seus "esforços foram recebi-


dos com aplausos tão ostensivos [que o público] pode tornar-se desagra-
davelmente consciente de que no início exagerou u m bocado a coisa".
N o fim das contas, as atenções gerais foram monopolizadas por algo muito
mais perigoso que a volubilidade das platéias. N o verão de 1904, Marie
Hall quase morreu de febre tifóide. Levaria oito meses para se recuperar
completamente. Quando voltou a se apresentar em público, ostentava
uma maturidade que impressionou todos os observadores.
U m outro fator pode ter desempenhado u m papel no avanço de Marie
Hall da adulação do público para a aceitação da crítica. Quaisquer que
tenham sido os erros e acertos do frenesi que percorreu a imprensa nos
primeiros anos de sua carreira, para uma coisa serviu: deu-lhe segurança
financeira. Logo ela seria capaz de comprar seu violino de Cremona, que
tocou pela primeira vez em público no concerto de volta aos palcos, em
fevereiro de 1905. Cinco anos mais tarde, Marie contaria a história a The
Strad. " O senhor sabe provavelmente que eu tenho o Stradivarius Viotti.
Trata-se de u m enorme tesouro, e parece incrível pensar que ele com-
pletou duzentos anos no ano passado, e continua belo como sempre foi."
Finalmente o Stradivarius de 1709 que estivera na posse de Viotti saía
dos oitenta anos de obscuridade que se haviam seguido a sua morte. The
Strad lembrava a seus leitores a importância das apresentações de Viotti
ao violino no Concert Spirituel. Sobre a história do instrumento desde
a morte do artista que lhe dera nome, a revista podia afirmar apenas que
a certa altura o Viotti estivera na posse de "uma das casas reais da Europa",
e que em 1860 havia sido vendido por 220 libras [14.000 libras].
Marie comprara o Viotti do negociante londrino George Hart, pa-
gando-lhe 1.600 libras [100 m i l libras]. O preço ao mesmo tempo dá
uma indicação da valorização dos Strads nos quarenta anos anteriores
e confirma a avaliação dos H i l l , segundo a qual o Viotti de 1709 era
" u m exemplar magnífico sob todos os aspectos". Nas palavras do cor-
respondente de The Strad em Blackpool, "Lancastrian" (pseudónimo
do Dr. William Hardman), a sonoridade do violino era "tão perfeita,
170 STRADIVARIUS

globalmente, quanto eu jamais pude ouvir". Além disso, sua nova pro-
prietária sabia extrair o melhor dele."Lancastrian" mal podia acreditar
que aquela jovem "frágil e emagrecida" fosse capaz de produzir aquele
som.Tratar-se-ia de uma "imensa reserva de força" ou de uma atitude
mental que lhe permitia trabalhar adequadamente com o seu Strad,
acreditando, nas palavras de outro crítico, "em seus poderes extraordi-
nários"? Este casamento entre a musicista e o instrumento tornar-se-ia
um dos mais bem-sucedidos da época.
A vida de uma violinista de concerto na década de 1900 era muito
diferente da que poderia ter na de 1 7 8 0 . 0 Viotti logo estaria acompa-
nhando Marie Hall em sua primeira turnê americana, num total de
sessenta concertos. E l a considerou o público de Nova York o mais crí-
tico do mundo, e muito cioso de suas preferências e aversões, mas aca-
bou por conquistá-lo. Escreveu u m crítico: "Dois minutos depois que
a jovem começara a tocar, todos estavam em atitude de respeito e o u -
vindo atentamente. O que tinham à sua frente n ã o era uma qualquer
favorita da realeza, nenhum prodígio indevidamente explorado." As
recompensas da fama nos Estados Unidos eram imensas; em 1903, o
virtuose belga Eugène Ysaye havia recebido 75 m i l dólares [1 milhão
de libras] por cinquenta concertos. Mais penosas, numa época anterior
às viagens aéreas, foram as turnês pela África do Sul, a Austrália, a índia
e a Nova Zelândia. Marie reagia mal ao mar, o que, em suas próprias
palavras,"para m i m estraga muito o prazer". Sua impressão dos austra-
lianos foi que mostravam seus sentimentos com facilidade, n ã o se can-
sando de alguma coisa de que gostavam. Depois de cada concerto, via-se
coberta de flores em forma de harpas e liras, coroas e buques. A neces-
sidade de aproveitar ao máximo a viagem longa e de atender à procura
do público fez com que os dois concertos previstos em Melbourne
fossem ampliados para uma série de sete em dez dias, de tal maneira
que Marie teve de tocar nada menos de setenta diferentes peças. E m
Vancouver, por outro lado, o navio parou apenas algumas horas, e dez
minutos depois de desembarcar ela j á estava no palco.
UMA IMENSA RESERVA D E FORÇA" 171

Cabe presumir que uma das vantagens das viagens lentas era que o
Viotti podia assim adaptar-se gradualmente às mudanças de tempera-
tura e umidade. Por outro lado, o violino certamente não p ô d e contar
com as duas semanas de que os Strads precisavam depois de cada via-
gem marítima, na opinião de David Laurie, para se recuperar do mal de
mer. O problema era mais agudo nos trópicos, onde o calor e a umida-
de podiam até provocar a dissolução da cola, reduzindo u m violino a
suas partes constituintes. A solução de Marie Hall consistia em recor-
rer a invólucros especiais e a u m estojo de madeira especialmente en-
comendado. O resultado era de tal natureza que na t u r n ê sul-afficana
houve quem achasse que ela estava transportando u m caixão.
Tanto o violino quanto a artista devem ter achado as condições em
Suva, capital de Fiji, um verdadeiro desafio. O concerto não havia sido
programado, e foi providenciado às pressas quando o navio atracou para
receber carregamento. Todas as roupas de Marie estavam inacessíveis, e
ela deu uma rápida passada na única loja de roupas da cidade para com-
prar u m vestido de algodão. D e início, eles não queriam vender, pois todo
mundo estava indo a um concerto naquela noite, e não entendiam que
a cliente também não fosse. Suva não tinha nada parecido com uma sala
de concertos, e a apresentação se deu sob uma grande tenda, com u m
público de cerca de mil pessoas, todos os brancos da cidade (Marie não
seria capaz de se lembrar o que pensaram dela os fijianos nativos). O pia-
no havia sido afinado por um velho marinheiro muito surdo, que pouco
antes do início da apresentação confiou a Marie a opinião de que —
como ela logo poderia constatar — um piano sempre soa mais brilhante
quando as notas agudas são afinadas u m pouco acima. O calor era tão
terrível que alguém teve de ficar segurando u m ventilador elétrico sobre
as mãos da violinista durante toda a apresentação. A presença do gover-
nador requeria uma execução de "God Save the K i n g " . O hino foi toca-
do por uma menina da cidade, que infelizmente decidiu incluir cerca de
vinte variações, enquanto Marie e o público esperavam de pé. Seja como
for, a noite foi u m grande sucesso, culminando num jantar na residência
172 STRADIVARIUS

do governador. Esta turnê durou oito meses. U m dia depois de retornar


à Grã-Bretanha, Marie deu u m concerto em N e w Brighton: tinha mes-
mo uma enorme reserva de forças.
Havia um outro obstáculo a ser vencido pela carreira de Marie Hall
para que ela pudesse ter efetivamente longevidade como intérprete: o ca-
samento. As opiniões de "Lancastrian" provavelmente são bem típicas da
época. N u m artigo de 1908, ele contava que havia sido interpelado por
uma pianista casada por afirmar que a senhorita Annie Kirkman, n ã o
obstante toda a sua capacidade técnica, carecia de fervor:"Como é que ele
podia esperar fervor numa jovem solteira?" Como? Mas a resenha publicada
em 1909 sobre uma apresentação dejan Kubelik mostrava que "Lancastrian"
não aplicava os mesmos critérios à já consagrada Marie Hall:"Kubelik está
completamente mudado em seu estilo de tocar. Sua condessa* fez por ele
o que Sevcík, com toda a sua habilidade, não fez. Será que alguém poderá
ensinar a mesma lição a Marie Hall? Tremo na bases ao fazer a pergunta,
pois o matrimonio, que completa o homem, sempre interrompe e
frequentemente apõe a palavra F I N I S à carreira artística da mulher" Ele
não demoraria a receber uma resposta. N o dia 27 de janeiro de 1911,Marie
casou-se com seu agente, Edward Baring, o que significava que poderia
continuar fazendo turnês. N o início da temporada seguinte,"Lancastrian"
voltou a ouvi-la. Mesmo criticando sua escolha de repertório, ele também
julgou ter detectado "muito maior intensidade de sentimentos e também
muito maior liberdade de expressão". Sua carreira efetivamente teria pros-
seguimento, e o Viotti continuaria a ser ouvido, mas poucos teriam sido
capazes de imaginar as mudanças que sobreviriam nos anos subsequentes
para todos os violinistas.

• K u b e l ik havia-se casado com uma aristocrata húngara.


Capítulo Treze

" Q U A L Q U E R Q U E SEJA O P R E Ç O "

Quatro Strads a caminho dos Estados Unidos

Ela alça voo e começa a rodear,


Derrama o fio prateado de som,
De muitos elos sem interrupção,
E m gorjeios, assobios, linhas e trilos...

OS VERSOS DE G E O R G E M E R E D I T H em "The Lark Ascending" [ O voo


da cotovia] podiam servir como descrição de u m dos mais líricos Capri-
chos de Paganini, ou quem sabe uma tentativa de evocar a versatilidade
e clareza da sonoridade que pode ser extraída de u m Strad. O poema
inspirou ao compositor inglês Ralph Vaughan Williams u m Romance
para violino e orquestra com o mesmo título, estreado no Queen's Hall
em Londres no dia 14 de junho de 1921 . A solista foi Marie Hall, a quem
a peça é dedicada. N o ano anterior, ela havia ajudado o compositor em
suas revisões finais; eles eram velhos amigos, e parece evidente que The
Lark Ascending, u m dos grandes favoritos da música clássica inglesa no
século X X , foi composto tendo ela e o seu Strad em mente. O velho
violino de Viotti continuava inspirando grande música.
Tanto a violinista quanto o compositor pareciam em ascensão. A
Primeira Guerra Mundial, como se sabe, havia posto fim às turnês no
exterior, e muitos festivais no interior do país foram cancelados en-
quanto ela durou, mas as temporadas londrinas de concertos tiveram
174 STRADIVARIUS

prosseguimento. Precisando desesperadamente de alguma forma de


entretenimento, o público não se deixava dissuadir nem mesmo pelas
ameaças de ataques aéreos; por u m breve período, os famosos Concer-
tos Promenade, ou Proms, foram antecipados para o período da tarde,
mas acabariam voltando a ser realizados à noite. O furor patriótico
provocado pela guerra só podia beneficiar compositores nacionais como
Vaughan Williams. Quando tiveram início as hostilidades, os orga-
nizadores de concertos adotaram uma atitude prudente: Brahms e
Beethoven eram considerados aceitáveis, ao passo que Strauss e Wagner,
muito obviamente germânicos, foram excluídos. Por volta de 1917,
contudo, os jornais j á estavam perguntando por que "a música alemã
ainda tem tantos depravados defensores entre nós". O renascimento da
música inglesa que j á havia começado foi então ao encontro de u m
público ávido; e Vaughan Williams foi u m dos maiores beneficiários.
Enquanto isso, Marie Hall via seus colegas do sexo masculino serem
convocados. As atitudes em relação às instrumentistas do sexo femini-
no tiveram de mudar. Os casamentos de suas sucessoras ainda podiam
provocar u m comentário ou outro, mas n i n g u é m mais seria capaz de
imaginar que a cerimónia significasse o fim de uma carreira.
Ainda assim, Marie deve ter-se dado conta pela altura da estréia de
The Lark Ascending de que as certezas de sua vida até então se haviam
dissipado para sempre. Os violinistas v i r i a m a lembrar-se da era
eduardiana como uma Época de Ouro. A ruína económica provocada
pela Grande Guerra e os avanços tecnológicos que a ela se seguiram
causariam mudanças fundamentais na estrutura da indústria da música.
A música era gravada desde a invenção do fonógrafo por Thomas
Edison em 1877 e o desenvolvimento do gramofone por Emile Berliner
dez anos depois. Os primeiros cilindros pré-gravados para uso d o m é s -
tico foram produzidos j á em 1892. Os primeiros discos eram particu-
larmente bem-sucedidos na reprodução da voz humana, mas entre os
instrumentos era o violino, com sua sonoridade cantabile e sua afinida-
de com a voz, que melhor se adaptava ao novo meio de reprodução.
Q U A L Q U E R Q U E SEJA O P R E Ç O " 175

Existem gravações de quase todos os virtuoses do violino do início do


século X X , e Marie Hall não é uma exceção. Já em 1907 seus fas po-
diam continuar a ouvi-la, enquanto ela fazia uma turnê pela Alema-
nha, comparecendo a u m "concerto de gramofone" no Albert Hall.
Mas as gravações que chegaram até nós não lhe parecem fazer justiça.
Nas palavras de u m crítico moderno, seu estilo é "anacrónico", sua
interpretação de uma peça de Paganini,"distraída", certas peças breves
evidenciam uma "sonoridade fria" e, pior que tudo, "uma terrível gra-
vação do Concerto de Elgar feita em 1916 (com o compositor na re-
gência) (...) serve apenas para comprometer sua m e m ó r i a " .
É uma pena que a ligação de Marie com o homem que a descobriu
quase trinta anos antes só possa ser lembrada hoje por meio de uma gra-
vação que fica aquém das melhores. O insucesso torna-se ainda mais difícil
de entender à luz da crítica que The Strad publicou em 1912 sobre uma
interpretação do mesmo concerto por Marie, segundo a qual havia sido
esta a performance "mais impressionante" de qualquer violinista naquela
temporada. "Foi a pura e simples beleza de sua interpretação que pren-
deu tão fortemente a atenção de todos." A explicação encontra-se pro-
vavelmente nos problemas criados pelas gravações feitas segundo a técnica
acústica direta. O intérprete tinha de tocar ou cantar junto a u m pavi-
lhão que precisava ser rigorosamente posicionado para que não houves-
se perda sonora, e mesmo assim certos registros eram mais bem
reproduzidos que outros. Provavelmente havia na arte de Marie algo que
a tecnologia da época simplesmente não era capaz de capturar. O fato de
ter sido a dedicatária de The Lark Ascending continua sendo seu principal
título de glória para a posteridade, e tudo indica que o poema de George
Meredith descreve melhor sua sonoridade, tocando o seu Strad, do que
quaisquer daquelas gravações incipientes.

A MÚSICA GRAVADA continuaria sendo uma possibilidade marginal


enquanto fosse capaz de capturar apenas uma parte do repertório. O
176 STRADIVARIUS

verdadeiro salto qualitativo sobreveio com o desenvolvimento na d é -


cada de 1920 das técnicas elétricas de gravação.Já agora, o instrumentista
e a orquestra podiam tocar em condições normais, sendo o som capta-
do por u m microfone. Além disso, o processo elétrico, pelo qual o sinal
do microfone era convertido em sulcos no disco, resultava em menos
distorções que o processo acústico. Os gramofones domésticos — i n i -
cialmente movidos a manivela, e logo elétricos — começaram a se dis-
seminar, e uma indústria havia nascido.
As consequências do gramofone para o violino estão ligadas ao
avanço de uma outra invenção revolucionária, as transmissões radiofó-
nicas. T a m b é m neste caso a tecnologia básica remontava ao fim do s é -
culo X I X e às experiências pioneiras de Marconi. Mas as transmissões
sem fio só se tornaram realmente viáveis com a invenção da válvula
elétrica durante a Primeira Guerra Mundial. Pelo início da década de
1920,a(Radio Corporation of America ( R C Ã ^ p a^ritish BroadcasHng
^Corporation (BÍ3C?) faziam suas primeiras transmissões. Nenhuma das
duas organizações podia dedicar muito tempo à música clássica. A p r i -
meira transmissão da R C A foi de um campeonato de lutadores de boxe
peso-pesado, enquanto na Inglaterra as queixas sobre "as porcarias leva-
das ao ar pela B B C " começaram quase simultaneamente a suas trans-
missões. A influência do novo meio de comunicação, todavia, foi imensa,
especialmente quando associada à existência de gravações razoavelmente
fiéis. Pela primeira vez os músicos tinham a possibilidade de atingir
públicos de todo o mundo sem precisar subir num palco.
Os músicos ingleses começaram a entender a possível influência
do gramofone em 1921. Foi o ano em que o jovem violinistadascha.
He3et|>veio pela primeira vez à Grã-Bretanha. A expectativa era m u i -
to grande, não por causa das notícias sobre sua arte, mas porque ele j á
tinha u m enorme público britânico: no ano anterior, havia vendido
80.000 discos. Nascido na Rússia, Heifetz estudou em São Petersburgo
com u m dos antigos companheiros de quarteto de Davidov, Leopold
Aiier, e havia firmado sua reputação na Europa continental j á aos 11
" Q U A L Q U E R Q U E SEJA O P R E Ç O 177

anos de idade. Cinco anos depois, em 1917, fugira da Revolução R u s -


sa para Nova York, através da Sibéria, do Japão e da Califórnia, cami-
nho que viria a ser seguido por muitos outros. O próprio Aiier fugiu
de Petrogrado (como São Petersburgo passara a ser chamada) no ano
seguinte, e ao longo dos anos fariam o mesmo quase todos os seus outros
alunos famosos, entre eles Mischa Elman e Éfrem Zimbalist. Todos
adotaram os Estados Unidos como nova pátria. O que era perfeitamente
natural; a Europa estava exaurida e empobrecida pela guerra, ao passo
que a terra das oportunidades ainda tinha u m histórico de acolhida a
refugiados. Os Estados Unidos t a m b é m eram o centro da nova indús-
tria das gravações: haviam inventado a tecnologia; tinham o maior
mercado; e abrigavam u m n ú m e r o cada vez maior dos maiores artistas
e orquestras. Antes da guerra, o mais comum era ver solistas europeus
atravessando o Atlântico para tocar nos Estados Unidos; depois dela, o
fluxo se dava cada vez mais na direção oposta.
D a mesma forma, começava a parecer que todo Strad estava desti-
nado ao Novo Mundo. N ã o só viviam lá, agora, quase todos os solistas
de primeira linha, como somente os colecionadores americanos podiam
pagar os preços que agora eram alcançados pelos grandes instrumen-
tos. Os negociantes vinham à Europa em expedições de busca; u m deles,
Nathan Posner, chegou a ser apelidado de "Tarisio da nossa época" por
The Strad. Enquanto isso, os europeus protestavam contra o saque de
seus tesouros a título de pagamento das dívidas de guerra e pressiona-
vam pela adoção de pesadas taxas de exportação. Mas os britânicos, pelo
menos, dificilmente tinham por que se queixar: os colecionadores
americanos estavam apenas seguindo o exemplo que eles mesmos ha-
viam estabelecido no século anterior.

PARA OS NEGOCIANTES europeus, a maneira mais simples de tirar


vantagem do novo domínio dos Estados Unidos era mudar-se para lá,
de preferência com alguns seletos violinos prontos para venda. E m i l
178 STRADIVARIUS

Herrmann simboliza bem essa tendência, embora sua rota fosse ainda
mais tortuosa que a de Heifetz. Filho de u m negociante de violinos de
Berlim, Herrmann passara a infância sendo treinado, escrevendo diaria-
mente uma página de análise de algum novo violino e sempre discu-
tindo instrumentos ao jantar. A o completar 18 anos, em 1906, estava
pronto para entrar em ação, e quase imediatamente vendeu u m belo
Amati por 21 m i l marcos [65 m i l libras]; ele não só era capaz de iden-
tificar grandes violinos, como podia t a m b é m vendê-los. Mas nem toda
a especialização de Herrmann foi suficiente para eximi-lo do serviço
militar na guerra, oito anos depois. Enviado para a frente oriental ale-
mã, foi feito prisioneiro pelos russos. Felizmente para o jovem E m i l ,
um comandante local, o aristocrático general Yurkevitch, precisava de
parceiros para a música de câmara. Mais uma vez o violino serviria de
ponte para o romance. Os olhares se encontravam por cima das estan-
tes das partituras, uma coisa deve ter levado a outra, e Herrmann aca-
bou se casando com a filha de seu carcereiro. Vindo a revolução, tudo
virou de cabeça para baixo.Yurkevitch tornou-se u m fugitivo e foi seu
genro que conseguiu tirar a família inteira do país, chegando aos E U A
através de Vladivostok. Herrmann voltaria então a Berlim, completan-
do a circunavegação do globo.
Para sobreviver à guerra e à revolução e prosperar, Herrmann pre-
cisava de fibra, iniciativa e poder de sedução. N ã o surpreende, assim,
que pela década de 1920 estivesse de volta a Nova York, estabelecido
como u m dos maiores negociantes de violinos da América.
A experiência russa de Herrmann rendeu-lhe mais que u m casa-
mento. Tudo indica que ele deveu boa parte de seus primeiros êxitos
ao resgate de instrumentos das mãos dos bolcheviques, inclusive dois
dos nossos violinos. Louis B õ h m havia levado o Khevenhuller para a
Rússia, onde o instrumento permaneceu ao ser por ele vendido aViktor
Popov, professor do Conservatório de Moscou, que finalmente o havia
dotado de acessórios modernos. E m algum momento após a revolução
de 1917, contudo, o Khevenhuller foi parar nas mãos de E m i l Herrmann.
" Q U A L Q U E R Q U E SEJA O PREÇO" 179

O mesmo aconteceu com u m violoncelo Guadagnini que t a m b é m


havia sido do professor Popov, o qual, mais ou menos pela mesma é p o -
ca, parece ter comprado de Herrmann u m violino Guadagnini de 1752.
De modo que, no fim das contas, o professor havia trocado o Khevenhuller
e o violoncelo por u m violino dos mais baratos. A diferença de valor
pode perfeitamente ter sido a recompensa de Herrmann por retirar os
instrumentos da Rússia. Se ele era capaz de conduzir seres humanos
para fora através de Vladivostok, provavelmente n ã o seria nada difícil
fazer o mesmo com violinos.
Os caminhos que levaram Herrmann a adquirir o Paganini, outro
dos nossos violinos, são apenas u m pouco menos obscuros. O instru-
mento havia sido comprado em 1906 pelo moscovita Pierre de
Ellisseiff, que talvez t a m b é m tenha sido obrigado a v e n d ê - l o durante
a revolução. Nesta hipótese, terá sido para u m outro russo, Bóris
Kitchin, de quem E m i l Herrmann comprou o Paganini em 1925, para
em seguida vendê-lo a u m dos grandes colecionadores americanos,
David Walton.
O Khevenhuller, contudo, permaneceu mais tempo nas mãos de
Herrmann: é possível que desde o início ele tivesse melhores planos a
seu respeito; mais provável é que estivesse esperando que o preço che-
gasse ao ponto desejável. Enquanto isso, encontrou uma maneira de
fazer sua publicidade ao publicar em caráter privado, numa edição l i -
mitada de 200 exemplares em inglês e 200 em alemão, uma pequena
mas elegante brochura: Dois famosos violinos Stradivarius: o "Rei Ma-
ximiliano" e o "Príncipe Khevenhuller". Magníficas ilustrações em cores
reproduzem ambos os violinos de todos os ângulos imagináveis; sua
respeitável história é comprovada pela reprodução de documentos his-
tóricos; e o altruísmo de Herrmann ao divulgar para todo o mundo a
existência desses violinos é lembrado ao leitor em prosa grandiloqúente.
U m breve extrato da introdução pode dar o tom:
180 STRADIVARIUS

Como esses dois violinos de Stradivarius (...) estão entre os mais pro-
eminentes trabalhos do mestre e até recentemente sequer eram co-
nhecidos do meio musical, sinto-me no dever de descrevê-los aqui
em palavras e imagens (...)
Espero que ao publicar este pequeno estudo esteja prestando um ver-
dadeiro serviço a todos os amigos da música, amantes e conhecedores dos
grandes violinos, vividamente interessados em Stradivarius e suas criações.

A PARTE HISTÓRICA DA B R O C H U R A de Herrmann mantém discreto si-


lêncio sobre a maneira como ele adquiriu o Khevenhuller do professor Popov.
Sempre que a proveniência de um instrumento era inquestionavelmente
autêntica, os negociantes se apressavam a aproveitar a oportunidade para se
promover e aos seus produtos. Assim, no dia 29 de novembro de 1928, os
nova-iorquinos podiam ler nos jornais a seguinte história:

V I O L O N C E L O "DAVIDOFF" C H E G A
A B O R D O D O PARIS

Instrumento Stradivarius de 1712 passa a integrar a coleção


Wurlitzer de instrumentos de cordas

P R E Ç O É A V A L I A D O E M $ 85.000

Comandante do navio cuidou dele durante a viagem...

O navio de carreira francês Paris chegou na manhã de ontem trazen-


do sua carga mais preciosa não nos porões, mas na cabine do capitão
Yves Thomas, seu comandante. Tratava-se do famoso violoncelo
Davidoff, confeccionado por Stradivarius, de Cremona, e avaliado em
aproximadamente 85 mil dólares.
Fabricado, ao que se diz, em 1712, para o grão-duque da Toscana,
e tendo mais tarde sido transferido à propriedade de Davidoff, músico
" Q U A L Q U E R Q U E SEJA O PREÇO" 181

da corte na Rússia. Foi recentemente adquirido para a Coleção


Wurlitzer, que passa assim a ostentar dois dos dez violoncelos Strad
existentes no país.

U m a coleção de obras de arte que era transportada no mesmo navio


mereceu muito menos espaço, e na última linha o autor do artigo
observa que o Sr. Jascha Heifetz estava na mesma embarcação. H á
uma história famosa sobre Heifetz, na qual uma velha dama o aborda
depois de u m concerto com o c o m e n t á r i o : "Seu violino soou mara-
vilhosamente esta noite." Segurando o instrumento à altura do o u v i -
do, Heifetz responde: " N ã o estou ouvindo nada." N ã o é difícil
imaginar que ele n ã o adorou propriamente merecer menos espaço
que u m violoncelo.
Praticamente todos os grandes jornais americanos reproduziriam a
história da chegada do Davidov (em Boston, a estimativa de preço
mencionada foi de cem m i l dólares). A fonte terá sido certamente sua
nova proprietária, a Companhia Rudolph Wurlitzer, que nos últimos
dez anos havia conquistado a reputação de principal negociante de
instrumentos de cordas dos Estados Unidos.
C o m o E m i l Herrmann, os Wurlitzer eram originários da Alema-
nha. Rudolph se havia estabelecido em Cincinnati em 1853, abrindo
uma firma que se tornou a principal fornecedora de instrumentos de
percussão e sopros para uso militar durante a Guerra C i v i l . Seu p r i -
meiro filho tomaria a frente da divisão de instrumentos automáticos
aos quais hoje em dia associamos a marca; foi dela que saíram o órgão
de cinema "Poderoso Wurlitzer" e, mais tarde, as fantásticas jukeboxes, as
vitrolas automáticas que tanto caracterizam o estilo de vida dos anos
1950 nos E U A . Já o segundo filho, t a m b é m chamado Rudolph, criou
o departamento de violinos com a ajuda de u m outro especialista, Jay
C . Freeman. Por volta de 1918, a Coleção Wurlitzer, nome pomposo
para o que provavelmente não passava do estoque do negociante, j á
comportava mais de 200 instrumentos.
182 STRADIVARIUS

O Davidov pode ter chegado aos Estados Unidos no "navio de car-


reira francês Paris", mas seus últimos proprietários haviam sido ingle-
ses. Os H i l l — quem mais, senão eles? — o haviam vendido àWurlitzer
logo depois de o terem por sua vez comprado do irmão de Monsieur
Gabriel Goupillat, u m amador que o havia adquirido dos herdeiros de
Carl Davidov em 1900. Os H i l l haviam sido frustrados na primeira
tentativa de compra, desistindo ante o preço "exorbitante" de 60 m i l
francos [165 mil libras] pedido quando Davidov morreu em 1889. Este
valor era deixado muito para trás pelo preço mencionado nos jornais
em 1928,85 m i l dólares [600 m i l libras], mas, naturalmente, os loucos
anos 1920 estavam então no auge. A enorme expansão do mercado de
ações havia valorizado muito todos os ativos, e nesse ambiente os Strads
representavam mais uma possibilidade de investimento. Parece claro que
o Davidov n ã o estava destinado a u m instrumentista. É possível que a
publicidade de que foi cercada sua chegada tenha apressado a venda,
mas o fato é que n ã o demorou para que a Wurlitzer vendesse o
violoncelo a u m colecionador, Herbert N . Straus.

Q U A T R O DOS NOSSOS instrumentos chegaram à América nos anos


posteriores à Primeira Guerra Mundial. J á pudemos traçar a rota de
três deles: o Davidov, o Khevenhuller e o Paganini. O quarto — provavel-
mente o primeiro a ter chegado — era o imponente Lipinski. E n c o n -
tramos este violino da última vez em posse dos H i l l , nos primeiros anos
do século passado. Alguns anos depois, ele pode ter transitado por uma
firma de Stuttgart, Hamma & Cia., que t a m b é m j á poderia tê-lo ne-
gociado quando ele estava na Alemanha, após a morte de Lipinski. Seja
como for, Fridolin Hamma incluiu imagens do Lipinski em seu monu-
mental livro, numa das primeiras tentativas de reunir fotos dos grandes
instrumentos italianos de cordas: Meistenverke Italienischer Geigenbaukunst.
O livro aumentou extraordinariamente o prestígio da firma Hamma.
Os contemporâneos diziam que a melhor maneira de autenticar u m
Q U A L Q U E R Q U E SEJA O PREÇO" 183

Strad seria provavelmente u m certificado H i l l no século X I X acompa-


nhado de outro fornecido por Hamma no século X X , juntamente com
uma fotografia para confirmar a identidade.
Quando o livro de Hamma veio a ser publicado em 1930, contudo,
há muito o Lipinski havia sido transferido da Europa para os Estados
Unidos, tendo sido comprado pela Wurlitzer, mais uma vez dos H i l l ,
em 1922. Nos 15 anos subsequentes, aproximadamente, passaria pelas
mãos de negociantes em Chicago, no Panamá e em Nova York, aca-
bando por ser levado para Cuba. Poucos dos violinistas que o tocaram
t ê m nomes com alguma ressonância aos ouvidos modernos. O único
que parece familiar é Louis Persinger, menos lembrado por sua arte do
que por ter sido o primeiro verdadeiro professor de u m dos violinistas
mais influentes do século X X : Y e h u d i Menuhin.
" O supremo menino prodígio" (para usar a expressão de Itzhak
Perlman) estreou com orquestra em Nova York no dia 25 de novem-
bro de 1927.Tinha 11 anos mas declarava ter 10, expediente comum
entre crianças prodígio, e subiu ao palco de knickerbockers de veludo e
camisa branca. Rechonchudo, precisando da ajuda do spalla para afinar
seu violino Grancino, Menuhin costumava ganhar uma taça de sorvete
de morango como recompensa pelo sucesso de uma apresentação. E a
taça assim merecida tinha de ser mesmo muito grande. N ã o se limitan-
do a tocar o Concerto para violino de Beethoven com técnica impe-
cável, ele ainda conferia notável maturidade a sua interpretação.
Menuhin j á era uma celebridade quando tocou este concerto; ao con-
cluir sua apresentação, ele havia, nas palavras do crítico do New York
Times, O l i n Downes, "demonstrado definitivamente seu direito de ser
incluído entre os principais intérpretes desta música".
Três semanas depois Menuhin estava de volta ao Carnegie H a l l
para novo recital. Foi outro triunfo, e dessa vez, embora t a m b é m m a -
nifestasse certas reservas, Downes maravilhava-se com a sonoridade
que o violinista era capaz de extrair daquele "instrumento dos mais
modestos".
184 STRADIVARIUS

Menuhin não continuaria enfrentando este problema por muito


tempo. Cerca de u m ano depois, foi convidado a fazer uma visita a
Henry Goldman, um banqueiro cuja riqueza pode ser avaliada pelo
fato de que até hoje seu nome está presente no mundo das finanças,
juntamente com o de Sachs. Goldman começara a vida como vende-
dor de violinos baratos de porta em porta, instrumentos que eram apre-
sentados como Strads mas que não tinham a menor chance de ser
confundidos com os originais. Agora ele era u m amante da música e
um mecenas das artes, e assistira a um outro concerto de Menuhin no
qual o menino prodígio parecia estar pelejando com u m D e l Gesú em-
prestado. Certas resenhas haviam sido implacáveis, mas certamente
ainda havia na performance o suficiente para impressionar o financista. A
visita de Menuhin a seu apartamento em Nova York c o m e ç o u com
um passeio pela coleção de obras de arte. Embora àquela altura j á esti-
vesse completamente cego, Goldman ainda se lembrava dos detalhes
de cada peça: o tinteiro de bronze de Cellini, o retrato de van D y c k , a
escultura de Donatello e as miniaturas de Holbein. Foi então que a
conversa chegou ao motivo do convite, fazendo o banqueiro uma oferta
impressionante: "Quero agora que você escolha o violino que quiser,
qualquer que seja o preço. Escolha-o, e será seu."
Menuhin tinha a seu alcance todos os instrumentos à venda em
todo o mundo. E não se apressou, visitando cada negociante de Nova
York e pedindo conselhos a violinistas mais velhos, antes de acabar se
decidindo pelo Khevenhuller de E m i l Herrmann. Quase cinquenta anos
depois, Menuhin faria em suas memórias uma descrição do violino,
que ainda estava consigo: "Grande e arredondado, de u m profundo e
reluzente vermelho no verniz, suas grandes proporções combinavam
com uma sonoridade ao mesmo tempo potente, suave e doce." O v i o -
lino seria apresentado ao mundo como presente de aniversário de 12
anos do jovem violinista, que na realidade j á tinha quase 13 anos. Pare-
ce difícil ignorar no caso os contrastes de idade avançada e juventude.
O violino estava para completar duzentos anos, tendo sido fabricado
Q U A L Q U E R Q U E SEJA O PREÇO"

por u m luthier que completara noventa. A Menuhin, o mais espi-


ritualizado dos violinistas, n ã o passavam despercebidas as inferências:
" U m grande violino é u m ser vivo; sua própria forma encarna as i n -
tenções do artesão, e sua madeira guarda a história, ou a alma, de seus
sucessivos donos.Toda vez que eu toco, tenho a sensação de ter libera-
do ou, desgraçadamente, violado espíritos."
Herrmann fez acompanhar o violino de u m arco Tourte. Ele podia
se dar ao luxo de ser generoso. O preço de 60 m i l dólares [400 m i l
libras] então pago segundo se noticiou, quando Strads equivalentes
estavam sendo vendidos pela metade, bem fala de seu talento de ven-
dedor. A brochura tinha cumprido sua missão.
Entre os violinos rejeitados por Menuhin em favor do Khevenhuller
estava o Betts, o violino cujo dono de mesmo nome alegava tê-lo com-
prado em 1820 por 1 libra. Feito em 1704, mais ou menos no início do
período de ouro de Stradivari, e considerado pelos H i l l u m dos gran-
des feitos de sua vida, ele foi avaliado em 110 m i l dólares [700 m i l l i -
bras]. O violinista, pelo menos, n ã o tinha abusado da generosidade de
seu benfeitor. N ã o é certo que se possa dizer o mesmo do pai de Yehudi.
Sempre correram boatos de que ele tinha recebido uma comissão pela
venda, e n ã o deixa de ser curioso que o recibo de Herrmann — "Para
Yehudi Menuhin — A o s cuidados de seu pai, Moshe Menuhin (...)
um violino (...) conhecido como o 'Príncipe K h e v e n h u l l e r " ' — seja
de apenas 48 m i l dólares [320 m i l libras]. A dedução de que Moshe
embolsou 12 m i l dólares [80 m i l libras] pode ser difícil de engolir; tal-
vez ele tenha achado simplesmente que 60 m i l dólares [400 m i l libras]
fosse u m valor mais interessante para fins publicitários, ou talvez con-
siderasse que o Sr. Goldman n ã o notaria a diferença. Se assim foi, pro-
vavelmente estava certo. Pelo resto de seus dias, o " T i o H e n r y " , como
passou a ser conhecido na família Menuhin o velho cavalheiro cego,
sentaria na primeira fila nos concertos de seu protegido. Deve ter fica-
do muito feliz com a compra de uma obra de arte que n ã o só podia ser
vista, mas t a m b é m ouvida.
186 STRADIVARIUS

A o longo dos dez anos seguintes, a parceria entre o menino e o


violino haveria de revelar-se imbatível. F o i com o Khevenhuller que
Menuhin deu em Berlim, em abril de 1929, seu famoso concerto com
concertos para violino dos três grandes mestres alemães: Bach, Beethoven
e Brahms. E m qualquer lugar u m tal programa exigiria incríveis reser-
vas de energia e musicalidade. O fato de ter resolvido dar o concerto
na própria Berlim, referência espiritual dos três compositores, deixa claro
o grau de autoconfiança de Menuhin. E o concerto haveria de justificá-
lo. Albert Einstein, que estava na platéia, cumprimentaria o j o v e m
maestro depois da apresentação com a frase que ficou célebre: "Agora
eu sei que h á u m Deus no céu."
N a década de 1930, os cachês de Menuhin — 5 m i l dólares nos
E U A e 1 m i l guinéus [40 m i l libras] na Grã-Bretanha — n ã o tinham
equivalente. Para muitos, foi a maior fase do virtuose, antes que ele
começasse a analisar e a reaprender sua técnica. E m contraste com o
que aconteceu com Marie Hall e o seu Strad Viotti uma geração antes,
as gravações fazem alguma justiça a Menuhin e seu Khevenhuller. A mais
famosa delas envolve outra justaposição de juventude e velhice.Yehudi
tinha apenas 15 anos, em 1932, ao registrar o concerto de Elgar para
His Master's Voice no estúdio de gravações elétricas que a firma havia
construído especialmente (era o primeiro do mundo) em Abbey R o a d ,
Londres. Tal como acontecera com Marie Hall ao gravar o mesmo
concerto, o regente era o próprio compositor, Edward Elgar, então com
75 anos. A o contrário de sua versão, contudo, a de Menuhin é conside-
rada uma das grandes gravações do século. Nunca deixou de estar à
venda desde que foi lançada pela primeira vez.
E m 1936, Menuhin recebeu uma oferta interessante: uma réplica
exata do Khevenhuller, feita pelo luthier parisiense Emile Français. Para
confeccioná-la, Français, tal como em outros tempos Vuillaume, havia
desmontado o Khevenhuller, para certificar-se da precisão de todas as
medidas. Seu toque final foi o verniz, aplicado em dezoito camadas,
cada uma delas levando duas semanas para secar. Tocando a cópia pela
Q U A L Q U E R Q U E SEJA O PREÇO" 187

primeira vez ao completar 19 anos de idade, Menuhin declarou que


ela ostentava todas as qualidades do seu Strad, "exceto o amadureci-
mento que o tempo proporciona". Eventualmente, ele haveria de tocá-
la em concerto. Seu público n ã o parece ter notado qualquer diferença
em relação ao original.

H E R R M A N N HAVIA vendido o Khevenhiiller no momento certo. Nove


meses depois, o crash da Bolsa de NovaYork interrompeu abruptamen-
te o boom do mercado de ações. Os Strads preservaram melhor o seu
valor do que outros investimentos mais especulativos. Seja como for, a
década de 1930 foi u m período de penúria. Ilustração disto é o destino
do Lipinski. E m 1927, ele havia sido vendido por 21.500 dólares [150
mil libras]; dez anos depois, o Dr. Martinez Canas, u m cubano, pagou
por ele apenas 16 m i l dólares [120 mil libras]. Mas, se porventura outra
razão, o bicentenário da morte de Stradivari em 1937 representava uma
bela oportunidade publicitária. NovaYork competiria com Cremona
para ver quem promovia as comemorações mais esplêndidas.
O interesse pelo aniversário demonstrado pela cidade onde Stradivari
viveu e morreu não deveria surpreender, exceto pelo fato de que nos
200 anos anteriores Cremona havia solenemente ignorado seu filho
mais famoso. E m 1868, a pretexto de que a estrutura apresentava sinais
de perigo, a prefeitura havia vendido a Igreja de San D o m ê n i c o a u m
construtor local por 42 m i l liras [100 m i l libras] — sem valor como
sucata. Logo seguiu-se a demolição. A Capela do Rosário, na qual se
encontrava o túmulo de Stradivari, teve o mesmo destino que o resto
da igreja; escaparam apenas o túmulo propriamente dito e alguns res-
tos humanos. Três crânios foram levados para a residência do constru-
tor, onde ficaram por alguns anos, até que, cansada de vê-los "sempre
pelo caminho", a família levou-os para o cemitério, onde foram atira-
dos sem a menor cerimonia numa vala comum. A casa onde Stradivari
e sua família haviam vivido desde 1680 tampouco teve sorte. E m 1888,
188 STRADIVARIUS

foi completamente reformada para abrigar u m salão de bilhar anexo


ao café instalado ao lado. U m turista britânico que ousou protestar contra
a obra foi encaminhado para a polícia. Quarenta anos mais tarde, o
prédio, na praça j á agora batizada de Piazza R o m a , foi posto abaixo.
D a mesma forma, o declínio do artesanato cremonês iniciado após
a morte de Stradivari prosseguiu ao longo do século X I X . Lorenzo
Storioni (1751-99) é geralmente considerado o último dos artesãos
clássicos de Cremona, e j á apenas uma sombra de seus antecessores.
Seu aluno Giovanni Battista Ceruti iniciou sua própria dinastia. David
Laurie conheceu o último de seus membros, Enrico, e ficou decepcio-
nado com sua tentativa de vender u m violino alemão barato como se
fosse obra sua.
O ano de 1893 assistiria às primeiras indicações de que pelo menos
alguns dos habitantes tinham consciência da história de sua cidade,
quando Cremona aceitou várias "relíquias" stradivarianas de origem
duvidosa. Mas foi a doação à cidade das ferramentas e moldes de
Stradivari que efetivamente assinalou o início do redespertar de
Cremona. C o m o seria de se esperar, as doações foram feitas por u m
luthier, Giuseppe Fiorini. Ele as havia comprado do último descenden-
te do conde Cozio, o marquês dallaValle, por 100 m i l liras [37 m i l l i -
bras], em 1920. Antes mesmo da morte de Cozio os violinos de sua
coleção haviam sido dispersados. F o i quase u m milagre que a família
do conde tenha conseguido preservar esta que havia sido a última aqui-
sição de seu antepassado junto a Paolo Stradivari.
Cremona recebeu a coleção em 1930, e o Museu Stradivariano foi
inaugurado no mesmo ano. Os especialistas começaram a vasculhar os
arquivos da cidade para tentar enriquecer a escassa documentação so-
bre a vida de Stradivari. Aproximando-se o ano de 1937, ficou claro
que Cremona finalmente estava honrando devidamente seu mais i m -
portante cidadão. N a realidade, o interesse da Itália por Stradivari foi
muito além de sua cidade natal, pois o governo fascista de Mussolini
percebeu as possibilidades propagandísticas da coisa. U m dos mais des-
Q U A L Q U E R Q U E SEJA O PREÇO" 189

tacados membros do governo era originário de Cremona, e a combi-


nação de orgulho cívico e nacional parecia particularmente poderosa.
Duzentos anos depois da morte de seu mais famoso fabricante, os
violinos e violoncelos de Cremona eram mais cobiçados que nunca.
Que melhor maneira poderia haver de mostrar ao mundo a superiori-
dade da cultura e do artesanato italianos, senão promovendo uma ex-
posição de instrumentos cremoneses?
UEsposizione di liuteria antica a Cremona foi inaugurada no dia 15
de maio de 1937. E r a m oferecidas 70 m i l liras [25 m i l libras] em p r é -
mios para os melhores exemplares modernos de violinos, mas a princi-
pal atração eram 134 instrumentos antigos, assegurados no valor total
de 80 milhões de francos [23 milhões de libras].Trinta e nove Strads
estavam entre as peças exibidas: violinos, violoncelos, violas e até mes-
mo aquela solitária harpa entalhada por Stradivari em 1681,mas j á agora
esquecida e sem as cordas. Entre os D e l Gesús estava o próprio Canhão
de Paganini, cortesia da cidade de Génova. Durante u m mês, a exposi-
ção e os concertos a ela associados atraíram 100 m i l pessoas, muitas
transportadas de trem pela metade da tarifa, cortesia do Ministério das
C o m u n i c a ç õ e s italiano. F o i uma magnífica demonstração da antiga
supremacia de Cremona, que o próprio Tarisio n ã o teria podido igua-
lar, mas nenhum dos instrumentos expostos pertencia a u m cidadão
cremonês.Talvez não surpreenda— considerando-se o clima político
da época — que nenhum deles proviesse da Grã-Bretanha, ao passo
que trinta haviam sido emprestados por proprietários alemães. Talvez
mais interessante ainda tenha sido o fato de que vinte e cinco estavam
nos E U A , para onde retornaram devidamente munidos de seus certifi-
cados de participação.
Foi E m i l Herrmann quem organizou a participação americana na
exposição de Cremona, e parece bem de acordo com seu talento para
a autopromoção que seis meses depois ele t a m b é m estivesse por trás
das c o m e m o r a ç õ e s em N o v a Y o r k . O Concerto em M e m ó r i a de
Stradivarius foi realizado no Carnegie Hall na segunda-feira, 20 de
190 STRADIVARIUS

dezembro de 1937, u m dia depois da data que efetivamente assinalava


o bicentenário. O programa começava com o Concerto para violino
em m i maior de Bach e terminava com seu Concerto duplo para v i o -
lino em ré menor. Éfrem Zimbalist foi o solista no primeiro, e no se-
gundo juntou-se a ele Sascha Jacobsen. Entre as duas peças, o público
p ô d e ouvir o Quarteto em ré maior de César Frank e o Octeto em m i
bemol maior de Felix Mendelssohn. Todos os violinos, violas e v i o -
loncelos ali tocados eram Stradivarius, vinte e três instrumentos no total.
Caberia questionar se a orquestra realmente precisava de meia dúzia
de Strads na sessão dos segundos violinos, mas n ã o resta dúvida de que
deve ter sido inesquecível tanto de ouvir quanto de ver.
Herrmann teve muito mais facilidade para organizar o evento do
que os responsáveis em Cremona. Quase todos os instrumentos tinham
proprietários americanos, e se tratava apenas de uma parte dos Strads
tocados por músicos americanos na época: pelo menos cinquenta, se-
gundo o programa do concerto. N e m mesmo este total dá conta se-
quer de longe da quantidade então encontrada nos Estados Unidos.
Dos quatro instrumentos cuja rota para território americano acompa-
nhamos, só u m — o Khevenhuller de Menuhin — consta da lista. O
Lipinski havia deixado os E U A , encontrando-se na posse do Dr. Martinez
Canas, em Cuba. O violino Paganini e o violoncelo Davidov, por outro
lado, continuavam no Estados Unidos, mas em poder de colecionado-
res, e n ã o de músicos. As deduções n ã o deixaram de ser feitas pelos
promotores de concertos. A renda daquela noite foi destinada ao re-
cém-criado Fundo Memorial Stradivarius. Seu objetivo era tornar bons
violinos disponíveis para os "estudantes de talento cuja carreira pareça
comprometida pela falta de u m instrumento adequado". E r a u m obje-
tivo louvável, mas aparentemente o fundo não sobreviveu à Segunda
Guerra Mundial.* As comemorações em Cremona, por outro lado,

• C r i a da mais recentemente, uma outra fundação — a Sociedade Stradivari — tem objetivos


semelhantes.
" Q U A L Q U E R Q U E SEJA O PREÇO"

levaram a uma iniciativa de caráter mais permanente e decisivo: a cria-


ção de uma escola de fabricação de violinos, destinada a incorporar e
desenvolver as conquistas dos antigos mestres da cidade. N ã o deixa de
ser irónico que a principal iniciativa tomada pela Itália no bicentenário
se baseasse na convicção de que Stradivari podia ser aperfeiçoado, ao
passo que a iniciativa americana pressupunha que isso n ã o era possível.

A P E S A R DA G R A N D E quantidade de violinos que deixaram a Europa rumo


aos Estados Unidos na primeira metade do século, o mais famoso de todos
os Strads, o Messias, não estava entre eles. O fato de que não tenha feito
a viagem—dizem que Henry Ford teria oferecido u m cheque em branco
— deve-se inteiramente ao fascínio que o violino exercia sobre os i r -
mãos H i l l . Como acontecera anteriormente com Tarisio e Vuillaume,
William, Alfred e Arthur H i l l parecem ter sido enfeitiçados pela perfei-
ção (ou quase) do Messias. Tendo adquirido o violino de Robert Crawford
em 1904, os irmãos só viriam a revendê-lo em 1913,para Richard Bennett.
Proprietário de nada menos que dezessete Strads, todos eles obras-pri-
mas, Bennett representava duas certezas: o violino não seria tocado i?em
deixaria a Grã-Bretanha. E m 1928, todavia, enfrentando problemas de
saúde, ele confiou toda a sua coleção aos H i l l , para que a vendessem.
William havia morrido no ano anterior, e os dois outros irmãos decidi-
ram readquirir o Messias para si mesmos.
A esta altura, a W. E . H i l l & Sons era muito mais que u m negócio
de violinos. O ateliê H i l l era particularmente famoso por seus arcos,
por alguns considerados os melhores desde a época de Tourte. Os i r -
mãos se completavam em seus talentos: Arthur cuidava dos negócios,
enquanto Alfred, o especialista em violinos, se encarregava do ateliê.
Nesta função, parece ter-se mostrado paternalista, resquício da era
vitoriana. Cinquenta anos depois, o fabricante de arcos Arthur Bultitude
ainda se lembrava das duas perguntas que lhe haviam sido feitas na
entrevista para conseguir o emprego: " M e u pai era honesto, sóbrio e
192 STRADIVARIUS

trabalhador? N ó s éramos da Igreja Anglicana? , , Também como conhe-


cedor de instrumentos, Alfred estava esplendidamente à altura do lega-
do de W. E . H i l l ; ele era o especialista dos especialistas, aquele ao qual
recorriam os outros quando não chegavam a uma conclusão. Os H i l l
podiam vangloriar-se de ter negociado e registrado cerca de 700 Strads
desde a criação da firma: uma quantidade considerável, maior que o
n ú m e r o de Strads de cuja existência a maioria dos outros negociantes
sequer tinha conhecimento. Certa vez, num tribunal, o juiz advertiu
Alfred pelo desprezo que manifestava em relação aos diletantes do ramo:
— O senhor não respeita os amadores.
— São tão respeitáveis quanto os advogados amadores — veio a
compreensível resposta.
E m cinquenta anos de negócios bem-sucedidos, os irmãos haviam
enriquecido. N ã o precisavam do dinheiro representado pelo Messias, e
decidiram que ele e outros tesouros da coleção H i l l ficariam expostos
no Ashmolean Museum de Oxford.
A doação teve de esperar a construção de uma sala específica no
museu, e só em 1939 a transferência seria feita. Coincidentemente, em
ressonância com a história pregressa do Messias, foi o ano da morte de
Arthur, aos 79 anos. Alfred, dois anos mais m o ç o , viveria apenas mais
um ano. A firmaTòi vendida a seu cunhado, Albert Phillips, que não se
eximiu de mudar o próprio nome para Albert Phillips H i l l . Enquanto
isso, outra guerra mundial havia começado. E r a perfeitamente possível
que sobreviessem ataques aéreos a Oxford. U m a residência no campo
foi alugada para fins de armazenamento, e foi lá que o Messias, junta-
mente com outros tesouros do Ashmoliano, passou a guerra.
Capítulo Quatorze

' C O M O P O D E R E M O S V E N D E R ISTO?'
^ oh: - ' . -O-YJ Y
; • '

Os negociantes de violinos e o mundo do pós-guerra

NO D I A 30 D E N O V E M B R O D E 1942, o Lipinski teve aquela que parece


ter sido sua última participação num concerto. O Concerto para v i o -
lino de Glazunov era acompanhado pela Orquestra Filarmónica de
Havana. Segundo o Havana Post, o jovem solista cubano Angel Reyes,
a quem o Dr. Canas havia emprestado o Lipinski,"extraiu sonoridades
de requintada beleza do Stradivarius de 40 m i l dólares com que se
apresentou na noite de segunda-feira". C o m o bis, Reyes tocou a So-
nata para violino n° 6 de Bach. Quantas vezes o Lipinski não teria tocado
aquela peça? N ã o parece difícil imaginar os fantasmas de Tartini e ain-
da mais Lipinski — o intérprete de Bach por excelência em sua época
— aprovando a escolha de Reyes.
A mesma edição do Havana Post estava cheia de notícias da guerra.
Após a vitória dos aliados em E l Alamein no início daquele mês, os
combates no norte da África se haviam transferido para a Tunísia, en-
quanto os russos estavam a ponto de assediar os alemães em Stalingrado.
A destruição é evidente até na distante Cuba, então u m paraíso dos
ricos. Apesar disso, é difícil encontrar u m único caso de u m Strad que
se tenha perdido durante as hostilidades. Existem boatos sobre o roubo
de violinos de judeus do continente europeu, e ainda hoje podem ser
encontradas na Internet queixas sobre bens de família confiscados em
postos alfandegários na fuga da Europa oriental após a guerra. Cada
uma das histórias contribui para a mística de Stradivari — para a pos-
194 STRADIVARIUS

sibilidade de que u m violino encontrado com sua etiqueta possa mes-


mo ser autêntico. Nenhum desses relatos, contudo, pode ser comprovado,
e nenhum Strad famoso tem sua história abruptamente interrompida
durante a guerra. Isto se deve em parte ao negociante Fridolin Hamma,
de Stuttgart, e à maneira como se comportou quando recebeu de G õ r i n g
a ordem de buscar violinos preciosos. Chegando a Paris, Hamma apro-
veitou a oportunidade para visitar todos os negociantes franceses que
eram seus velhos amigos, oferecendo-lhes uma refeição reminiscente
do fausto do pré-guerra. E m momento algum ele chegou sequer a l e -
vantar a questão dos violinos escondidos, e depois de algum tempo
voltou a Berlim com a informação de que nada havia sido encontrado.
N a realidade, a perda mais irreparável podia ter sido sentida pelo
p r ó p r i o Fridolin Hamma. E m julho de 1944, o escritório de sua firma
foi destruído, assim como boa parte de Stuttgart, num bombardeio aéreo
dos aliados. O porão n ã o foi atingido, mas ao ser aberto verificou-se
que continha apenas cinzas; só algumas volutas carbonizadas puderam
ser recuperadas como lembrança. Mas os grandes instrumentos de
Hamma, inclusive os Strads, estavam em segurança fora da cidade d u -
rante toda a guerra.
N e n h u m dos instrumentos que vimos acompanhando parece ter
corrido grande perigo. Yehudi Menuhin foi o primeiro músico a se
apresentar na Ó p e r a de Paris depois da liberação da cidade, numa t u r n ê
européia de boa vontade, mas deixou em casa o Khevenhuller. E r a valioso
demais para ser arriscado em concertos que em certos lugares ainda
podiam estar expostos a bombardeios alemães. Menuhin levou a répli-
ca feita por Emile Français, mas em Paris alugou o Stradivarius de u m
velho amigo, o violinista JacquesThibaud.*
N ã o demoraria para que o Khevenhuller deixasse de ser o violino
favorito de Menuhin. O sucesso de sua t u r n ê japonesa de 1951 permi-

*Este grande violinista francês morreu tragicamente n u m acidente aéreo e m 1953, quando
t a m b é m foi destruído o seu Strad.
C O M O P O D E R E M O S V E N D E R ISTO?" 195

tiu que ele comprasse u m Strad do auge do p e r í o d o de ouro de


Stradivari, o Soil, de 1714. Mais uma vez, a venda esteve a cargo de
E m i l Herrmann.Vinte e cinco anos mais tarde, Menuhin descreveria o
Khevenhuller como " u m violino com virtudes de generosidade, cordia-
lidade, força e flexibilidade (...) idealmente adequado ao meu estilo
romântico de jovem"; o Soil, em contrapartida, "tem uma enorme for-
ça de projeção, grande brilho, uma pureza e clareza de sonoridade e
uma nobreza de textura (...) É a própria perfeição, e deve ser tocado
com perfeição." N ã o restava dúvida sobre qual era a sua preferência.
A l é m disso, a devoção de Menuhin a Stradivari não era total. C o m o
tantos de seus contemporâneos, ele t a m b é m era sensível aos encantos
dos instrumentos D e l Gesú, considerando-os mais tolerantes que os
sensíveis Strads. Ele gostava de dizer que estava casado com seus Strads,
ao passo que suas "aventuras ilícitas" se davam com os D e l Gesús, v i o -
linos "selvagens e telúricos". C o m o se quisesse deixá-lo bem claro,
Menuhin comprou seu segundo Strad, o Soil, poucos anos depois de se
casar pela segunda vez: o Khevenhuller pertencia a uma fase anterior de
sua vida. Sua devoção ao primeiro D e l Gesú, presente da primeira m u -
lher, durou bem mais. Curiosamente, este violino viria a ser denuncia-
do como uma cópia do século X I X : u m tipo de "aventura ilícita" muito
diferente da que Menuhin tinha em mente.

0 A N O DA LIBERAÇÃO de Paris, 1944, t a m b é m foi o tricentenário do


suposto ano de nascimento de Stradivari. A Europa não estava propria-
mente em clima de comemorações, mas do outro lado do Atlântico as
coisas eram muito diferentes. Filadélfia tomou a frente das festividades,
de uma forma que j á se ia tornando tradicional: exposição e concerto.
Vinte instrumentos foram expostos, mas a principal atração foi a apre-
sentação do Quarteto Curtis com u m conjunto de Strads que, como
frisava insistentemente a publicidade, haviam todos pertencido u m dia
ao próprio Paganini. O sonho compartilhado por ele, seu filho Achillo
196 STRADIVARIUS

e Vuillaume afinal n ã o havia morrido; simplesmente demorou mais


um século para se concretizar.
Os quatro instrumentos haviam sido reunidos por E m i l Herrmann.
Trinta anos antes, seu pai, August, escrevera em Das Ideale Streichquartett
que n ã o seria possível organizar mais que onze quartetos só de instru-
mentos Stradivari, em virtude do n ú m e r o de violas cuja existência era
conhecida. N a realidade, escrevia August, reunir até mesmo u m único
quarteto Stradivari j á era u m feito notável. E m i l Herrmann n ã o era
em absoluto o primeiro a reunir quatro Strads; mas deve ter exultado
ante o sucesso com que enfrentou o desafio lançado por seu pai, ainda
por cima com instrumentos que haviam pertencido a Paganini.
Herrmann vinha reunindo essas peças desde 1935, quando adqui-
riu a viola Paganini de 1731. Logo haveria de seguir-se o violoncelo
Landenburg/Paganini de 1736. C o m a sua aquisição, Herrmann parecia
ter ao alcance a sua meta. Dois violinos Stradivarius Paganini ji haviam
passado por suas mãos na década de 1920; Herrmann sabia onde se
encontravam; precisava apenas observar e esperar. Assim, em 1944, ele
voltara a adquirir inicialmente o Paganini de 1727, e logo, com a morte
de David Walton, o Paganini de 1680, o instrumento amarelo a cuja
confecção assistimos no ano em que Stradivari mudou-se para a Piazza
San D o m ê n i c o .
A exposição de Filadélfia revelou-se a perfeita oportunidade para
mostrar o novo quarteto ao mundo, embora ainda estivesse em guer-
ra. Naturalmente, H e r r m a n n esperava poder assim encontrar c o m -
prador, mas verificou que n ã o seria mais fácil do que havia sido para
Vuillaume u m século antes. Dois anos depois, ele j á estava aceitando
com relutância a possibilidade de que o quarteto tivesse de ser des-
feito mais uma vez.
A salvação chegou na forma de u m conjunto que acabara de ser
formado sob a liderança de H e n r i Temianka. Embora todos os seus
membros j á tivessem sido reunidos, o quarteto ainda estava à procura
de instrumentos adequados. O violoncelista do grupo, Robert Maas,
C O M O P O D E R E M O S V E N D E R ISTO?" 197

que antes da guerra integrara o Quarteto Pro Arte, foi quem sugeriu que
experimentassem o Quarteto Paganini de Herrmann. Os músicos de-
vem ter considerado convincente o teste, mas precisavam de u m pa-
trocinador. Sempre seria mais provável que tivessem mais êxito nessa
empreitada do que u m negociante; Maas e seus colegas logo encontra-
riam a necessária combinação de riqueza e senso artístico na senhora
Anna E . Clark, viúva do senador americano W i l l i a m Clark, o rei do
cobre, que prontamente enviou a Herrmann u m cheque de 155 m i l
dólares [800 m i l libras]. A sra. Clark era a proprietária dos instrumen-
tos, que eram emprestados ao Quarteto Temianka. N ã o surpreende que,
apesar da ligeira confusão que isto induzia, eles imediatamente se pas-
sassem a chamar de "Quarteto Paganini". E assim foi que o nosso
Paganini de 1680 encontrou o seu destino, estabelecido desde o m o -
mento em que Paganini o comprou.

EMIL HERRMANN j á estava nos E U A h á quase trinta anos. N o início


dos anos 1950, deixou NovaYork, vendendo o negócio e entrando numa
espécie de semi-aposentadoria em sua casa de campo, "Fiddledale", em
Connecticut. Lá, deu continuidade a u m hábito da vida inteira: toda
manhã, descia ao porão, escolhia alguns instrumentos e os tocava para se
lembrar das características dos diferentes fabricantes, u m ritual a que dava
o nome de "tocar algumas escalas". Ele morreu em 1968. Os vários gol-
pes de mestre com que Herrmann fez nome como negociante, conse-
guindo contrabandear instrumentos para fora da Rússia, n ã o tiveram
grande significado a longo prazo; e de qualquer maneira seu talento para
as relações públicas sempre foi considerado mais relevante que seu co-
nhecimento dos violinos. Mas ele não deixou de exercer uma influência
duradoura no mundo da fabricação de violinos, pois foi ele quem con-
venceu Simone Sacconi a se transferir para os Estados Unidos.
Sacconi nasceu em R o m a em 1895. Filho de u m músico profissio-
nal, logo se tornaria obcecado com violinos, e assim foi que aos 8 anos,
198 STRADIVARIUS

encontrando u m buraco num dos instrumentos do pai, não hesitou em


descobrir mais, desmontando-o. C o m o tinha u m pai esclarecido, n ã o
foi punido, passando por iniciativa paterna a visitar diariamente u m
ateliê de luthier depois das aulas. Quando completou 21 anos, j á havia
um mercado para suas cópias de obras-primas cremonesas. Até que, em
1931, E m i l Herrmann levou-o para NovaYork, onde ao longo dos vinte
anos subsequentes ganharia reputação como o maior restaurador de
obras-primas cremonesas do mundo.
Pelo fim da década de 1950, no entanto, Sacconi c o m e ç o u a voltar
para seu primeiro amor, a imitação. Para seguir tão de perto quanto
possível os métodos de Stradivari, ele retomou os princípios originais
de uma forma que poucos ou talvez nenhum de seus antecessores ha-
via tentado nos 200 anos desde a morte do artesão. Sacconi tinha duas
fontes de informação cruciais: primeiro, os Strads que haviam passado
por suas mãos quando trabalhava em NovaYork; depois, a coleção de
ferramentas e desenhos de Stradivari recuperada pelo conde Cozio e
exposta em Cremona desde 1930. Aí estava uma impressionante massa
de informações; causa espécie que Sacconi tenha sido o primeiro a se
dar conta de sua possível importância.Talvez n ã o o tenha sido, na rea-
lidade, mas efetivamente foi o primeiro a compartilhar suas descober-
tas. Hoje ele é lembrado como u m professor de enorme generosidade,
sempre disposto a transmitir seus ensinamentos. Pelo fim da vida, con-
seguiu fazê-lo pelo menos em parte, ao publicar em 1972 u m livro
que teria enorme influência, The Secrets of Stradivari.
A escrita foi encomendada a outra pessoa, e o livro é muito
desordenado. Extensos trechos vieram a ser desautorizados, especial-
mente a seção sobre as idéias matemáticas por trás das formas dos v i o -
linos de Stradivari. As receitas de verniz que Sacconi menciona são
simplesmente aquelas em que trabalhava na época. Mas certos capítu-
los são reveladores. As percepções que constituem contribuição origi-
nal sua vão desde os métodos usados por Stradivari para posicionar as
aberturas acústicas até o fato de que tanto ele quanto D e l Gesú gradua-
" C O M O P O D E R E M O S V E N D E R ISTO?" 199

vam a espessura do fundo dos violinos de maneira diferente dos outros


artesãos cremoneses.
Mesmo nos capítulos questionáveis o senso comum de Sacconi surte
bom efeito: naturalmente, o verniz era feito com ingredientes facil-
mente encontráveis na Cremona do alto Renascimento, e parece i n -
contestável que o m é t o d o de sua aplicação era tão importante quanto
qualquer receita "secreta". N a realidade, o título do livro provavelmente
tinha intenção irónica; a tese de Sacconi era que Stradivari n ã o tinha
segredos, não pelo menos diante de seus contemporâneos, e que os que
haviam surgido desde sua morte podiam com u m pouco de esforço
ser desvendados. É uma filosofia que pode dar margem a zombaria —
"Quantos luthiers são necessários para trocar uma lâmpada? Três: u m
para trocar e dois para discutir como Stradivari o teria feito" — , mas
seu resultado seria u m enorme aperfeiçoamento nas técnicas de fabri-
cação de violinos.
i an C:wU s r ) ->brb->ilí3o?q tuStu £*? o:hm::J uo

A PARTIR DE 1951, quando Herrmann deixou NovaYork, Sacconi pas-


sara na verdade a trabalhar para seu principal rival americano, a Compa-
nhia Rudolph Wurlitzer. Sua transferência fazia parte de u m processo
pelo qual RembertWurlitzer, neto do fundador, Rudolph, foi construindo
uma firma que veio a ser a principal depositária da expertise em violino
nos E U A . Rembert tinha voltado para os E U A em 1930, depois de pas-
sar u m período de aprendizado na Europa. Havia-se firmado na decisão
de que a Wurlitzer devia finalmente tornar-se uma verdadeira rival e
equivalente da H i l l de Londres, onde ele havia passado seis meses. C o m
isso em mente, Rembert transferira o departamento de violino de
Cincinnati para NovaYork em 1937. E m 1949, todavia, deu u m passo
ainda mais radical que uma simples mudança de sede, ao comprar o con-
trole do departamento e separá-lo do resto da firma. Estava efetivamente
começando de novo, senão da estaca zero, pelo menos com recursos
muito reduzidos. Aprofundando sua especialização, Rembert pudera dar-
200 STRADIVARIUS

se conta de como eram deficientes muitas das avaliações feitas por seus
antecessores na Wurlitzer. Era no mínimo embaraçoso, mas também sig-
nificava u m sério problema, decorrente das garantias em vigor conferidas
a instrumentos desacreditados. Ele se separou do resto da firma porque,
em suas próprias palavras, "não queria passar o resto da vida pagando
indenizações pelos erros de Jay C . Freeman".
Mais ou menos pela mesma época,Walter Hamma, filho de Fridolin,
tomava uma decisão semelhante. Desde antes da guerra, as garantias
fornecidas pelo velho Hamma haviam-se tornado cada vez mais incon-
sistentes. Talvez em memória de sua generosidade durante a guerra em
Paris, os mais caridosos t ê m atribuído suas avaliações mais questionáveis
ao desejo de dotar amigos judeus de algum objeto de valor no momento
em que fugiam dos nazistas. Se assim foi, sua filantropia estava equivoca-
da. Depois de pagarem o valor integral dos impostos de exportação so-
bre seus supostos Strads, os refugiados descobriam ao chegar a NovaYork
ou Londres que sua valiosa propriedade era algo na realidade muito d i -
ferente, e de muito menos valor. Seja como for, Fridolin continuou a
emitir certificados suspeitos depois da guerra. Hoje, é lembrado como
um negociante que, ao examinar um violino, não perguntava a si mesmo
"Que é isto?", mas "Como poderemos vender isto?"
E r a portanto de se esperar que os envolvidos na compra e venda de
violinos tentassem encontrar maneiras de superar a necessidade de u m
certificado de garantia fornecido por negociantes com medidas mais
científicas e supostamente objetivas. A coisa chegou ao auge na Suíça,
na década de 1950, quando se ficou sabendo que muitos dos Strads
que haviam sido expostos em Cremona em 1937 na realidade não eram
nada disso. Seguiu-se então algo que passou a ser conhecido como
liutomachia, ou a guerra do violino.
Os primeiros tiros foram dados com o estabelecimento de u m "con-
selho consultivo" de dois luthiers suíços, u m historiador da música e
um professor de violino. A equipe ofereceu-se para avaliar qualquer
instrumento que lhe fosse enviado, sustentando em seguida que 90 por
" C O M O P O D E R E M O S V E N D E R ISTO?" 201

cento deles eram falsamente atribuídos a artesãos importantes: cópias


pura e simplesmente ou trabalho de algum outro profissional. C o m o
agravamento do escândalo, a polícia de Zurique interferiu. Acaso as
técnicas que haviam sido tão valiosas no combate a outros falsários n ã o
podiam ser aplicadas no caso dos violinos? O s instrumentos foram
passados nos raios X , expostos a lâmpadas ultravioleta, examinados em
microscópios e até submetidos a análises químicas.
N ã o ficou claro a que resultados tudo isso levou. U m a lâmpada
ultravioleta, por exemplo, pode denunciar retoques no verniz, mas nada
é capaz de dizer sobre a autenticidade do violino que está por baixo
dele. Seja como for, o investigador-chefe da polícia de Zurique p ô d e
anunciar que em certos casos "verificou-se que violinos supostamente
valiosos eram na realidade cópias" e que haviam sido encontradas "eti-
quetas falsas com os nomes de Stradivari, Amati e Guarneri dei Gesú".
U m conhecido negociante suíço foi processado por fraude e falsifica-
ção de etiquetas, sendo considerado culpado em duas das vinte acusa-
ções. As etiquetas de violinos adquiriram status de documentos legais.
Para os observadores contemporâneos, as consequências pareciam as-
sustadoras.
O tempo, contudo, pôs tudo isto em perspectiva. Apesar da celeuma
toda, nada veio a suplantar os especialistas consagrados, os negociantes.
N i n g u é m mais tinha seu conhecimento, muito menos aquele auto-
designado "conselho consultivo". Ainda hoje, os negociantes continuam
a ocupar a posição privilegiada que assumiram desde a época de W . E .
H i l l . Seus certificados continuam sendo o elemento mais importante
no estabelecimento do valor de u m violino, e a comissão de dez por
cento que cobram quase poderia ser considerada barata.

A TENTATIVA D E R E M B E R T WURLITZER de criar nos Estados U n i -


dos uma firma de reputação equivalente à dos irmãos H i l l foi inteira-
mente bem-sucedida. Infelizmente, ele n ã o p ô d e desfrutar por muito
202 STRADIVARIUS

tempo dos resultados de seu esforço, morrendo antes de completar 60


anos, em 1963. Sua viúva, Anna Lee, assumiu a direção da firma, tor-
nando-se uma das poucas mulheres num ramo dominado por homens.
Talvez por isso, quando uma outra viúva, a Sra. Hermann Straus, deci-
diu p ô r à venda o violoncelo Stradivarius de seu falecido marido, n i n -
g u é m duvidou que ela se voltaria para a empresa que o havia vendido
a ele.
Pela maior parte dos 35 anos transcorridos desde que Straus c o m -
prara o Davidov da Wurlitzer, o violoncelo integrara seu quarteto par-
ticular de Strads. O s quatro instrumentos haviam sido expostos em
NovaYork em 1943, e eventualmente eram oferecidos concertos de
música de câmara na residência do Sr. Straus, mas o instrumento fora
desfrutado essencialmente em caráter privado. E l e estivera empresta-
do por certo tempo a R a y a Garbousova, aluna russa de u m aluno do
p r ó p r i o Davidov, mas pelo início da década de 1960 o Davidov estava
guardado na Wurlitzer, onde foi visto por Charles Beare. E n t ã o na
casa dos 20, ele era aprendiz na Wurlitzer, aprendendo a profissão com
u m amistoso rival estrangeiro da empresa de sua família, J . & A . Beare.
Mais ou menos u m ano depois, em 1964, Beare ficou sabendo que a
Sra. Straus finalmente havia encomendado à Wurlitzer a venda do
grande violoncelo.
E m Londres, Beare vinha fazendo nome no n e g ó c i o fundado pelo
avô de seu sogro.* F o i para ele que Jaqueline du P r é voltou-se quan-
do precisou de u m novo violoncelo. E l a j á tinha u m Strad, u m m o -
delo das primeiras fases que havia custado pouco mais de 5 m i l libras
[60 m i l libras] ao ser oferecido a ela pelo Courtauld Trust e por sua
madrinha, Isména Holland. Isto havia acontecido pouco antes da es-
tréia profissional de Jaqueline no Wigmore Hall londrino, quando tinha

• C u jo primeiro s ó c i o havia sido E d w a r d G o o d w i n , o alegre defraudador de v i ú v a s fran-


cesas: a r e p u t a ç ã o e a clientela da firma certamente haviam melhorado muito ao longo
dos anos.
" C O M O P O D E R E M O S V E N D E R ISTO?" 203

apenas 16 anos. O sucesso daquele concerto deu início a uma carreira


que haveria de tornar-se lendária. Três anos depois, o talento de
Jaqueline começava a chegar à maturidade — n u m momento em que
ela j á tornara seu o Concerto para violoncelo de E l g a r — , e ela pre-
cisava de u m segundo instrumento para diminuir a pressão sobre seu
Strad. Beare mostrou-lhe vários violoncelos na faixa de 2 m i l a 3 m i l
libras, mas nada serviu.
Enquanto isso, as limitações do velho Strad de Jacqueline torna-
vam-se mais evidentes. Encurtado e com grandes remendos internos,
ele n ã o oferecia uma sonoridade capaz de projetar-se nas maiores salas
de concerto. Mais uma vez foi Isména Holland, que j á havia sido a
principal responsável pela compra do primeiro Strad, que forneceu a
solução. N o fim de 1964, Jacqueline informou a Beare que sua madri-
nha queria comprar-lhe u m violoncelo realmente fantástico, pergun-
tando se ele sabia de algum que estivesse disponível. O Davidov estava
destinado a chegar a Londres.
Tal destino n ã o poderia ser realizado, no entanto, sem o consenti-
mento da Sra. Straus, proprietária do violoncelo. N ã o querendo e x p ô -
lo ao risco de u m voo transatlântico, ela só concordou que o instrumento
fizesse a viagem na companhia da Sra. Wurlitzer. Assim foi que o
violoncelo e a negociante viajaram lado a lado, na primeira classe, para
Londres. Convidada pelos outros passageiros a tocar " A u l d Lang Syne"
quando eram servidos os drinques, sua guardiã p ô d e apenas responder
que havia esquecido o arco em casa.
N ã o se tinha qualquer garantia de que haveria compatibilidade entre
Jacqueline e o Davidov. Quando o instrumento chegou, ela e seu pro-
fessor, W i l l i a m Pleeth, foram e x p e r i m e n t á - l o na residência da Sra.
Holland. A opinião de Pleeth era clara: " É u m magnífico violoncelo,
u m dos instrumentos verdadeiramente grandes do mundo. A única coisa
que importa é se ele serve para você, e isto você terá de decidir por si
mesma." Rememora Beare: "Jacqueline tocou-o durante alguns dias,
apaixonou-se e decidiu ficar com ele." A Sra. Wurlitzer telegrafou en-
204 STRADIVARIUS

tão à Sra. Straus: "Volto sem bagagem", sem dúvida u m alívio para to-
dos os envolvidos.
A generosidade da Sra. Holland custou-lhe 90 m i l dólares [430 m i l
libras], e seu presente vinha acompanhado de conselhos maternais dos
mais proféticos: "Você sabe, minha querida, que este instrumento é
extremamente valioso, muito caro.Terá de agarrar-se a ele como se fosse
a única coisa que tem. Se alguma coisa lhe acontecer, poderá v e n d ê -
lo."Jacqueline tocaria quase exclusivamente o Davidov durante três anos,
o que corresponderia a uma pequena parte da carreira da maioria dos
violoncelistas. N o caso de Jacqueline du Pré, representa quase u m terço.
A l é m disso, é o terço central, quando sua arte amadureceu e chegou ao
auge. As gravações feitas por Jacqueline com o Davidov provavelmente
são as mais bem-sucedidas. A mais famosa de todas — do Concerto de
Elgar sob a regência de John Barbirolli — foi feita poucos meses de-
pois do encontro do instrumento com a instrumentista. C o m e n t á r i o
da biógrafa de Jacqueline, Elizabeth Wilson: "Ouvimos como se fosse
uma cintilação luminosa excepcional na sonoridade do violoncelo,
resultado da combinação de uma artista ímpar com u m instrumento
incomparável."

E M 1928, o Davidov havia sido avaliado em 85 m i l dólares [600 m i l


libras], e quase quarenta anos depois foi vendido por muito pouco mais.
O investimento do Sr. Straus sequer havia acompanhado a inflação. As
previsões de que os preços do violino haviam chegado ao ponto m á x i -
mo feitas no início do século X X parecem não ter errado muito o alvo.
Se u m Strad sofria algum dano, era muito provável que seu preço
diminuísse. U m exemplo é o Lipinski. E m 1927, ele foi vendido por
21.500 dólares [150 m i l libras]; dez anos depois, Martinez Canas pa-
gou apenas 16 mil dólares [120 mil libras] por ele. Esta redução do preço
provavelmente pode ser atribuída ao crash da Bolsa de NovaYork e à
recessão que se seguiu. Todavia, o preço alcançado na última venda
" C O M O P O D E R E M O S V E N D E R ISTO?" 205

registrada, em 1962, de 18 m i l dólares [77 m i l libras], causa espécie. A


deterioração do violino provavelmente explica em parte o declínio no
valor. E m 1945, ele ainda era considerado "em bom estado físico (...)
recoberto de u m verniz de magnífica cor avermelhada". Mas as anota-
ções que acompanharam a venda de 1962 afirmam que os 80 por cen-
to superiores do seu interior haviam sido reforçados com madeira, e a
metade inferior fora submetida a nova camada de verniz. É possível
que José Canas, que herdou o violino do pai por volta de 1950, n ã o
fosse muito cuidadoso. Mais provavelmente, o violino teria em algum
momento caído nas mãos de restauradores inescrupulosos. A renova-
ção das camadas de verniz e o afinamento dos tampos do Lipinski teriam
imediato efeito benéfico na aparência e na sonoridade, mas com as
consequências de longo prazo fáceis de prever.
As perdas na condição física e no valor do Lipinski verificadas ao
longo do século X X fazem parte de algo que, retrospectivamente, fica
parecendo u m longo declínio. Seu primeiro proprietário foi t a m b é m
o maior deles: poucos músicos poderiam ter chegado à altura de Tartini,
u m dos verdadeiros inovadores da arte e do ensino do violino. Lipinski
era u m grande violinista, embora hoje em dia seja pouco lembrado,
mas a cada nova mudança de dono o instrumento ia entrando em zo-
nas mais obscuras. O último comprador, em 1962, foi Richard Anschutz,
que adquiriu o Lipinski para sua mulher, E l y Livak. Talvez ela fosse, ou
ainda seja, uma boa instrumentista, mas n ã o pude encontrar registros
de qualquer apresentação pública, e o fato é que, depois de comprado
por seu marido, o Lipinski desaparece. É possível que ainda volte às esferas
da fama, mas por enquanto sua história está encerrada.

A CAPACIDADE Q U E os violinos t ê m de ressurgir da semi-obscuridade


é demonstrada pelo Viotti de 1709. A carreira de Marie Hall nunca ha-
veria de voltar às alturas de seu apogeu anterior à Grande Guerra. C o m o
tantos outros violinistas, ela n ã o foi capaz de manter o mesmo brilho
206 STRADIVARIUS

na nova era descortinada pelo esplendor de Jascha Heifetz. Manteve o


seu público, mas ele havia encolhido, e j á n ã o era internacional. N a
década de 1930, excursionou pela Inglaterra formando o duo " T h e
Sonata Players" com Mary Ramsay. O próprio nome do duo parece
refletir uma despretensiosa distinção que provavelmente n ã o está lon-
ge da verdade. A edição do Grove's Dictionary of Music publicada no
pós-guerra lançou-lhe em rosto o supremo ultraje, informando equi-
vocadamente sua morte em outubro de 1947. A publicação que lhe
abrira os caminhos, The Strad, remexeu ainda mais na ferida, publican-
do em julho de 1955 a carta de u m leitor que assinalava o erro come-
tido pelo Grove e, com toda razão, se perguntava por que n ã o haviam
sido publicados obituários. Só na edição seguinte a revista publicaria,
muito encabuladamente, a correção: "Temos o prazer de informar que
a srta. Marie Hall (...) passa bem, ativamente empenhada em sua car-
reira. Limitou o n ú m e r o de suas apresentações em público, tendo-se
especializado, nos últimos anos, em recitais de sonatas e obras de câma-
ra para violino e piano ao lado de sua filha, a Srta. Pauline Baring."
Pouco mais de u m ano depois, contudo, as notícias estariam certas. Aos
72 anos, Marie Hall morreu no dia 11 de dezembro de 1956.
Pauline Baring, filha única, herdou o violino da mãe. Esperaria tre-
ze anos até decidir-se a vendê-lo, e ainda assim optou por u m m é t o d o
incomum. E m vez de deixar o violino em consignação na H i l l ou na
Beare, a forma tradicional de transação com os melhores violinos, de-
cidiu vendê-lo na casa de leilões Sotheby's. O fato de ter optado pelo
leilão t a m b é m era estranho: na época, a Sotheby's n ã o tinha u m depar-
tamento exclusivo para instrumentos; há 120 anos, Puttick and Simpson,
na época uma divisão da Phillips, era o principal leiloeiro de violinos.
Seja como for, o catálogo da Sotheby's para a venda de 7 de novembro
de 1968 ostentava orgulhosamente, como seu lote 2 1 , " U m Stradivari
ex-Viotti", u m "violino italiano da maior importância, com a etiqueta
original Antonius Stradivarius Cremonensis Faciebat Anno 1709". Os
lances começaram em 5 mil libras e foram subindo em saltos de 1 m i l
COMO PODEREMOS V E N D E R ISTO?" 207

libras. N o momento em que foi batido o martelo ao preço de 22 m i l


libras [214 mil libras], pagas pelo industrial inglês Jack Morrison, o re-
corde anterior de venda de u m violino em leilão — 13 mil libras — j á
havia sido superado em muito. Certos observadores n ã o pareceram
surpresos; nas palavras de u m deles, "quem se lembra da época dos
concertos de Marie Hall n ã o terá esquecido sua linda sonoridade". A
verdadeira lição a ser tirada, todavia, era que os preços dos Stradivari
haviam voltado a subir. Esse violino, famoso há 150 anos, é que vinha
dar a notícia.
Capítulo Quinze

" A Q U E L E SOM N Ã O PARAVA D E J O R R A R "

O Davidov, o Paganini, o Khevenhuller,


o Viotti... e o Marie Hall

NO DIA 11 DE DEZEMBRO DE 1971, Jacqueline du Pré concluía nos


estúdios da E M I , em Abbey R o a d , dois dias de gravações que haviam
sido organizados à última hora. Jacqueline n ã o estava bem de saúde h á
alguns meses, e assim, quando teve uma súbita melhora, a sessão de
gravação foi rapidamente organizada. E l a e o pianista e regente Daniel
Barenboim, seu marido desde 1967, usaram os dois dias para gravar
sonatas de Chopin e César Franck, mas sobrou algum tempo. Suvi
Grubb, o produtor da E M I , rememoraria:"Quando acabamos, ela disse
que gostaria de começar as sonatas de Beethoven. Barenboim e eu fi-
camos preocupados, pois ela parecia cansada, mas gravamos o primeiro
movimento da Sonata opus 5 n° 1 .Ao terminar, ela guardou o violoncelo
no estojo, dizendo 'Paramos por aqui', e nem quis ouvir o que havía-
mos registrado."
Foi a última passagem de Jacqueline por u m estúdio de gravação. N o
ano seguinte, ela daria alguns recitais, e começou em 1973 sua planejada
volta aos palcos. Concertos em Washington e NovaYork foram seguidos
por duas apresentações com o Concerto para violoncelo de Elgar em
Londres. A resenha então publicada por Neville Cardus no Guardian
entrou para o folclore como u m epitáfio premonitório da carreira de du
Pré: "Jacqueline foi ao coração da música com uma devoção admirável
numa artista tão jovem (...) falando da maneira como Elgar aceitou o
210 STRADIVARIUS

fim. A luz do dia terminou e ele caminha para a escuridão." Imediata-


mente depois do segundo concerto, Jacqueline voou de volta a Nova
York para, primeiro, ser regida pelo marido no Concerto de Lalo e, de-
pois, para uma série de quatro apresentações do Concerto duplo de
Brahms, com Pinchas Zuckerman no violino. N o terceiro concerto, ela
j á não conseguia sentir as cordas nos dedos. O último teve de ser cance-
lado. Jacqueline nunca mais voltaria a ser ouvida em público. Nove me-
ses depois, foi diagnosticada a esclerose múltipla.
Tanto mais evidente se torna o caráter profético do conselho de
Isména Holland a sua afilhada: a jovem virtuose teria de deixar de lado o
Davidov mais cedo do que se poderia suspeitar. Mas não se trata apenas
disso. Jacqueline perdeu o amor inicial pelo grande violoncelo muito
antes de ter diagnosticada a sua esclerose múltipla, ou antes mesmo que
ela tivesse algum efeito audível em sua arte. E m junho de 1968, cinco
anos antes de afastar-se dos palcos, Jacqueline chamou Charles Beare
para dizer-lhe que o Davidov não podia mais ser tocado. A causa imedia-
ta terá sido provavelmente a mudança de grau de umidade no momento
em que o instrumento retornou à Inglaterra de mais uma de suas muitas
viagens ao exterior. As providências que Marie Hall tomava em relação
a seu Strad talvez surtissem efeito na época das viagens marítimas, mas as
viagens aéreas são outra história. Hoje os instrumentistas de cordas estão
familiarizados com o problema; não é incomum que durante uma viagem
ao exterior mantenham seu violino no banheiro do hotel, com o chu-
veiro aberto. N o fim da década de 1960, contudo, os aviões a jato (e tal-
vez mesmo os banheiros de hotel) ainda eram uma novidade, e esses
expedientes ainda não haviam sido descobertos. Ainda hoje Charles Beare
lembra-se de que as cordas do Davidov estavam "grudadas no espelho", e
u m outro instrumento teve de ter encontrado para o concerto que seria
dado no L a Scala no dia seguinte.
Beare tinha guardado u m violoncelo veneziano de Francesco
Goffiller; Jacqueline tomou-o emprestado e acabou por comprá-lo.
N o fim das contas, o Gofriller revelou-se apenas uma solução tempo-
A Q U E L E SOM N Ã O PARAVA D E J O R R A R " 211

rária, mas acabou se transformando em seu instrumento favorito —


tanto em casa quanto no exterior — durante u m ano e meio. Suas d i -
ficuldades com o Davidov n ã o se limitavam aos problemas surgidos
quando o instrumento viajava. Os românticos diriam que só havia l u -
gar para u m amor em sua vida. Esta posição era ocupada por Daniel
Barenboim, que n ã o tolerava concorrência. Ele, no entanto, sempre o
negou, sustentando que sua eventual antipatia pelo instrumento devia-
se exclusivamente aos problemas encontrados por sua mulher ao tocá-
lo. Quais eram e n t ã o esses problemas? A resposta, ao que parece,
encontra-se no estilo de Jacqueline. " A questão com qualquer Strad é
que o som tem de ser extraído", diz Beare. A sonoridade quente e sen-
sível do Davidov é ideal para u m instrumentista que se limita a fazer o
instrumento falar."Pensando bem, era o violoncelo errado para ela." Como
a emoção e a expressividade eram as principais marcas do estilo de du
Pré, a última coisa de que ela precisava era u m violoncelo que a impe-
disse de alçar voo. Hoje, Beare considera que u m violoncelo feito por
D o m ê n i c o Montagnana, contemporâneo de Goff iller, teria sido perfei-
to para ela; nesses instrumentos, "quanto mais você dá, mais o b t é m " .
Nos dois últimos anos em que tocou em público, com numerosas
interrupções, Jacqueline teve como violoncelo principal esta verdadei-
ra raridade entre solistas de cordas profissionais, u m instrumento m o -
derno. Foi-lhe dado pelo fabricante, o luthier Sergio Peresson, de
Filadélfia, quando ela começava a ensaiar mais uma apresentação com
o Concerto de Elgar, nessa cidade. Considerando que o violoncelo pro-
porcionava exatamente a sonoridade que ela buscava, sendo mais fácil
de tocar que os instrumentos italianos antigos, Jacqueline decidiu impul-
sivamente usá-lo no concerto daquela noite. O novo instrumento per-
mitiu-lhe reviver seu entusiasmo, num momento em que a doença, ainda
não diagnosticada, começava efetivamente a se fazer sentir. O Goffiller
foi quase totalmente posto de lado, e o Davidov manteve-se calado, e x -
ceto por u m período em que Jacqueline o emprestou a uma amiga,
Anna Shuttleworth. Pouco depois de ser finalmente diagnosticada a
212 STRADIVARIUS

doença de Jacqueline, o instrumento foi mandado para Paris. U m go-


verno trabalhista acabava de assumir na Grã-Bretanha, e parecia p r u -
dente mandar u m bem valioso como u m Strad para fora do país, longe
de socialistas inclinados a adotar algum imposto sobre a riqueza.
Durante quase uma década, o Davidov manteve-se intocado no
depósito do luthier parisiense Etienne Vatelot. A t é que, no início da
década de 1980, o marido de Jacqueline, Daniel Barenboim, conheceu
Yo-Yo Ma. Apenas dez anos mais m o ç o que Jacqueline, ele estava ain-
da começando sua carreira profissional, muito depois que a dela havia
chegado ao fim. M a havia recebido sua primeira aula de violoncelo,
aos quatro anos de idade, na loja de Etienne Vatelot, sentado numa p i -
lha de catálogos telefónicos. Faz sentido que se tenha apaixonado pelo
Davidov sob a inspiração do luthier francês. Naquela ocasião, haviam
sido apenas "quinze gloriosos minutos", mas em 1983 Jacqueline e o
marido decidiram emprestar o grande instrumento a M a . Mais tarde,
ele haveria de comparar o processo de redespertar daquele instrumen-
to adormecido à abertura da garrafa de u m vinho realmente extraor-
dinário. Foi necessário tocá-lo durante dois meses, mas a partir de então
"aquele som n ã o parava de jorrar".
N a grande maioria de pacientes de esclerose múltipla, a doença apre-
senta períodos de remissão, quando a pessoa pode desfrutar de algo mais
parecido com uma vida normal. N o caso de Jacqueline, a doença mos-
trou-se particularmente virulenta. E l a morreria em 1987, com apenas
42 anos. O Davidov mais uma vez foi posto à venda. Naturalmente, o
instrumento foi inicialmente oferecido aYo-Yo Ma, a u m preço relativa-
mente acessível. Ainda assim, mesmo relutantemente, ele não p ô d e apro-
veitar a oportunidade. C o m dois filhos pequenos, M a não podia aceitar
o considerável encargo extra representado por u m n ú m e r o maior de
concertos ao longo, talvez, de dez anos, para pagar pelo Davidov. O Strad
não podia competir com sua família; e o instrumento foi devolvido a
Vatelot. M a acostumou-se novamente a tocar em sua outra obra-prima,
um Montagnana de 1733, que vinha mantendo em dupla com o Davidov.
A Q U E L E SOM N Ã O PARAVA DE J O R R A R " 213

Até que, pela terceira vez em sua carreira, um ato de filantropia permi-
tiu que o violoncelo viesse afinal a ser tocado por um grande instrumentista.
U m admirador anónimo, interessado no futuro do Davidov, foi informado
porVatelot da decisão de Ma. A compra foi feita, e o instrumento, encami-
nhado a Ma, com direito a usá-lo em caráter vitalício. Ainda assim, conta
ele, nunca se sentiu capaz de tocar o Concerto de Elgar no Davidov sem
sentir a presença de Jacqueline no instrumento. H á inclusive uma outra
ligação oblíqua entre M a e o outro proprietário famoso do seu Strad, Carl
Davidov, o ensaiador contrariado que não tinha tempo para o seu violoncelo.
Explica o próprio Ma: "Como não gosto de trabalhar duro, tive de apren-
der a extrair o máximo das horas de estudo."
N o fim da década de 1990, M a usou o Davidov para explorar as
possibilidades da música seiscentista, gravando arranjos de B a c h e
Boccherini com a Orquestra Barroca de Amsterdã. Para isso, restabele-
ceu ao m á x i m o a configuração original do seu Stradivarius: cordas de
tripa sobre u m cavalete barroco, tocadas com arco barroco. Mais i m -
portante ainda, a remoção do espigão obrigou M a a sustentar o Davidov
entre as pernas: " N o fim do ensaio, eu podia imaginar alguém me per-
guntando:'Desculpe, mas você é u m caubói ou u m violoncelista bar-
roco?'" Mas a experiência foi uma verdadeira revelação: "Depois da
modificação (...) o instrumento passou a produzir uma sonoridade muito
mais íntima. C o m a remoção das inovações que com o tempo foram
sendo acumuladas no violoncelo, chegamos a u m tipo diferente de
expressividade." Hoje, M a parece convencido da maior adequação do
Davidov para a música mais antiga. Ultimamente, tem-se dedicado mais
a compositores modernos, e neste caso prefere o Montagnana. Nos
últimos anos, o Davidov tem ficado em silêncio quase o tempo todo.

P O U C O DEPOIS da cessão do Davidov a Ma, ele e o Quarteto de Cleveland


gravaram o Quinteto para cordas em dó maior, D956, de Schubert. N ã o
seria nada tão digno assim de nota — esse tipo de colaboração é corri-
214 STRADIVARIUS

queira na vida de qualquer virtuose — , exceto pelo fato de se tratar da


única gravação que, em meu conhecimento, reúne dois dos nossos qua-
tro Strads. Pois a esta altura o Quarteto de Cleveland era o feliz detentor
do Quarteto Paganini, inclusive o violino Paganini de 1680.
O quarteto nunca foi desfeito desde que Anna Clark o comprou de
E m i l Herrmann em 1946. Quando ela morreu, em 1965, a propriedade
passou à Galeria de Arte Corcoran de Washington, cuja eclética coleção
j á havia sido ampliada com doações de seu marido, o rei do cobre. E n -
quanto isso, os quatro instrumentos do quarteto foram sucessivamente
tocados pelo Quarteto da Sinfónica Nacional de Washington, o Quarte-
to de Cordas de Iowa e, em 1982, o Quarteto de Cleveland. Por insistên-
cia deste grupo, todos os quatro instrumentos foram profundamente
restaurados. Feito este trabalho, Peter Salaff, o segundo violino do quar-
teto, comentou a respeito do seu novo Strad, nosso Paganini de 1680:

A sonoridade de um Guadagnini [seu instrumento anterior] combi-


nava excepcionalmente bem com o quarteto, propiciando um apoio
incrível à parte do segundo violino. Considero o Strad um instrumento
maravilhoso, mas suas qualidades são diferentes. Ele tem um lustre
belíssimo na sonoridade, e também incrível acuidade. Funcionará bem
como segundo violino, e essa acuidade conferirá maior equilíbrio in-
terno ao quarteto.

O Quarteto de Cleveland tocaria o Quarteto Paganini por quase quin-


ze anos, numa ligação que sobreviveu a várias mudanças entre seus
integrantes.
Quando o Quarteto de Cleveland finalmente se dissolveu no mea-
do da década de 1990, a Corcoran decidiu vender seus instrumentos,
que n ã o combinavam com o resto da coleção da galeria. O Quarteto
Paganini acabaria sendo comprado, por 15 milhões de dólares, pela
Fundação Musical Nipônica, que imediatamente cedeu os instrumen-
tos ao Quarteto de T ó q u i o . C o m o estariam divididos aqueles 15 m i -
A Q U E L E SOM N Ã O PARAVA D E J O R R A R " 215

lhões de dólares? Provavelmente mais de metade diz respeito à viola.


São tão poucas as boas violas feitas por Stradivari que os raros exem-
plares adquirem u m valor provavelmente imune ao fato de que ele nunca
chegou a dominar totalmente esta forma. A menor proporção certa-
mente se aplica ao Paganini de 1680. É o menos ilustre dos quatro ins-
trumentos. Pior ainda, corre no meio musical o boato de que o Quarteto
de T ó q u i o não está completamente satisfeito com ele. C o m e n t á r i o de
Peter Biddulph:"Que se poderia esperar? É u m Strad da primeira fase."
Harmonizar-se com u m segundo violino que não está à altura dos
outros instrumentos deve criar certas dificuldades. O mais importante,
no dizer de Siegmund Nissel, do Quarteto Amadeus, é que o segundo
violino tenha em suas cordas graves uma sonoridade vigorosa, capaz de
estabelecer a ponte entre a viola e o primeiro violino. Esta qualidade é
muito mais característica dos violinos mais tardios de Stradivari, entre
eles o do próprio Nissel, feito em 1731. Os Strads da primeira fase, como
o Paganini de 1680, podem ter uma sonoridade suave, mas esta é uma
outra história. É difícil evitar a conclusão de que a posição atualmente
ocupada por este violino deriva antes de seu passado e de sua fama do
que de sua adequação ao papel que no momento desempenha.

YEHUDI MENUHIN finalmente se separou do Khevenhuller no início


da década de 1980. O motivo era dos mais prosaicos: precisava do d i -
nheiro. Menuhin e sua segunda mulher, Diana, haviam decidido m u -
dar-se da casa que era de sua propriedade desde 1959, no bairro de
Highgate, norte de Londres, para o centro da cidade. Haviam compra-
do uma imponente residência clássica em Chester Square, Belgravia,
segundo se informou ao preço de 425 mil libras [850 mil libras].* Mas

• A p ós a morte de Diana Menuhin, a casa foi posta à venda em 2003 por cinco m i l h õ e s de
libras. Nos últimos vinte anos, as casas em Londres provavelmente se t ê m revelado investi-
mentos mais interessantes que os violinos.
216 STRADIVARIUS

foi mais demorado que o esperado encontrar u m comprador para a


casa antiga:* o Khevenhuller precisava cobrir o buraco, e foi confiado
em consignação a Charles Beare. T a m b é m a sua venda, contudo, reve-
lou-se difícil; u m ano depois, o violino ainda estava na Beare. Até que
um dia Michael Scheinin entrou na loja. Egípcio residente em Milão,
Scheinin foi por breve período, na década de 1980, u m dos mais i n -
fluentes colecionadores de violinos do mundo. Ele acabara de comprar
dois violinos na Sotheby's e estava precisando de u m estojo duplo para
eles. A pergunta " O senhor tem algum Strad?" saiu apenas por sair; e ao
responder "Só o Khevenhuller" Charles Beare não podia prever a reação
que suscitaria. Scheinin n ã o era apenas u m fa de Yehudi Menuhin,
considerando suas primeiras gravações algo muito p r ó x i m o do m á x i -
mo alcançável na arte do violino. Dentre todos os Strads, era o
Khevenhuller que ele mais cobiçava. O negócio logo foi fechado, e pela
primeira vez em mais de cinquenta anos Menuhin se separava final-
mente de seu primeiro Stradivarius. Scheinin manteve o Khevenhuller
consigo por alguns anos, mas o instrumento havia na realidade come-
çado toda uma série de perambulações que no ano 2000 haveriam de
trazê-lo de volta a Londres e às mãos do negociante Peter Biddulph,
depois de passagens pelo Japão e os E U A . Seu atual proprietário, que
"recebeu troco para três milhões de dólares", é u m colecionador par-
ticular suíço. Sua filha toca violino, mas parece improvável que a "so-
noridade potente, doce e suave" do Khevenhuller tão cedo volte a ser
ouvida em público.

E M 1974, JACK MORRISON revendeu por meio da H i l l o Stradivarius


"ex-Viotti" de 1709 que havia pertencido a Marie Hall. Ele voltaria a
aparecer na Sotheby's em 1988, enviado do Oriente M é d i o para a venda

• E la acabaria sendo comprada pelo cantor pop Sting.


" A Q U E L E SOM N Ã O PARAVA DE J O R R A R "

de março. Mais uma vez, estabeleceu u m recorde: 473 m i l libras [720


mil libras]. C o m e n t á r i o de The Strad na ocasião:"Existem Strads mais
famosos, mas este adorável exemplar tem sido considerado o violino
de mais bela sonoridade de que se tem lembrança." O comprador foi
Geraldo Modern, entusiástico participante de quartetos de cordas
amadores no Brasil. Ele manteve o violino em seu poder durante a l -
guns anos, para em seguida vendê-lo a novo comprador em Formosa.
O grande Strad tornou-se hoje uma peça de museu, principal atração
da Coleção C h i - M e i , eventualmente emprestado a músicos locais, mas
nunca mais voltará a pertencer a u m violinista.
Antes de vender o violino, todavia, Modern emprestou-o durante
seis semanas a Thomas Bowes, que o usou em várias transmissões
radiofónicas e em u m recital público, no dia 6 de maio de 1990, na
Purcell R o o m de Londres. O programa do concerto, citado no C a p í -
tulo U m , mencionava naturalmente a importância histórica do "Viotti-
Marie Hall", especialmente seu papel nas decisivas apresentações de Viotti
no Concert Spirituel na década de 1 7 8 0 . 0 texto do programa limita-
va-se a repetir o que a própria Marie Hall dissera a respeito de seu
violino, o mesmo que constava de muitas das obras de referência sobre
Stradivari.
Mas o fato é que todas essas autoridades estavam equivocadas. O
concerto na Purcell R o o m não foi apenas a última vez em que o "Viotti-
Marie Hall" apareceu em público em Londres, mas t a m b é m a última
vez em que assim foi chamado. O fato é que Viotti provavelmente se-
quer chegou u m dia a tocar este violino. Sabe-se hoje que ele esteve
em sua posse apenas por breve período, tendo sido vendido logo em
seguida ao duque de Cambridge.* Entre os proprietários seguintes
estavam o ajudante de campo do duque e u m aluno de Wilhelmj, até
que em 1905 George Hart vendesse o instrumento a Marie Hall, que

• Desse modo, pode ter sido o violino que o duque de Cambridge comprou de Viotti por 50
guinéus em 1817.
218 STRADIVARIUS

vem a ser na realidade sua única dona famosa. N a Coleção C h i Mei, o


Strad de 1709 é chamado de "Marie Hall".
Este livro pretendia acompanhar a trajetória de cinco violinos, mas
verificamos que está acompanhando seis. N o resgate da história do Viotti,
o Marie Hall foi uma pista falsa, que durou por quase u m século. E l a
veio a ser denunciada quando tomei conhecimento de sua verdadeira
história. O que bastou para me fazer duvidar de tudo mais. Cabe até
perguntar se existe mesmo u m Viotti "real" de 1709.
Existe; e sua história permite entender por que veio a ser confun-
dido com o Marie Hall. Durante quase dois séculos, desde que foi ven-
dido para reembolsar a Sra. Chinnery, o Viotti havia sido mantido longe
dos olhos do público. E m 1855, François Fétis declarou ser ele, com
incrível precisão, o "terceiro melhor" Strad do mundo; cinco anos mais
tarde, ele trocaria de mãos por 5.500 francos [14 m i l libras]. E m maio
de 1897, chegou de Paris às instalações de W. E . H i l l & Co., que o ven-
deu ao barão Knoop, colecionador cujo nome aparece nas histórias de
muitos instrumentos. Ele vendeu novamente o violino aos H i l l no i n í -
cio da década de 1900, e só em 1906 eles voltariam a vendê-lo a u m
outro colecionador, Richard Baker.
De modo que o verdadeiro Viotti estava em Londres em 1905 quan-
do Marie Hall comprou o seu Strad de George Hart nessa cidade. N a
realidade, ambos os violinos estavam em certa medida sob o controle
dos H i l l , pois sua firma não só era proprietária do Viotti como detinha
igualmente a co-propriedade do Marie Hall.Tendo pelas proximidades
dois Strads de 1709, ambos com alguma ligação com Viotti, e ambos
ostentando u m fundo feito de peça única da mesma tora de bordo de
marcante ondulação, já não surpreende tanto que Marie tivesse dedu-
zido que o seu era o violino com o qualViotti havia impressionado os
públicos de toda a Europa. Ela pode ter sido estimulada a cometer o
erro por George Hart, que talvez tenha enfatizado excessivamente certa
parte da história do violino ao vendê-lo a ela. O u talvez Marie Hall
simplesmente quisesse acreditar que tinha em seu poder o violino de
A Q U E L E SOM N Ã O PARAVA D E J O R R A R " 219

Viotti. Existem paralelos inevitáveis entre as carreiras de ambos: a po-


breza na infância, o fato de terem sido descobertos e educados por
mecenas e o sucesso avassalador desencadeado por u m único concerto.
Marie pode ter achado a idéia de que tinha o Viotti em seu poder
irresistível demais.
Já parece mais difícil, talvez, entender por que os H i l l n ã o trataram
de esclarecer a confusão, que devem ter constatado;* eles sempre tive-
ram em seus arquivos as histórias verdadeiras de ambos os instrumen-
tos. F o i provavelmente durante a breve passagem do Marie Hall pela
firma, em 1974, que pela primeira vez foi estabelecida a proveniência
correta do instrumento, embora levasse ainda algum tempo para que
isso se tornasse amplamente conhecido; logo se vê como era atraente a
história falsa. Enquanto isso, a própria existência do Viotti continuava
praticamente ignorada. E m 1992, contudo, aW. E . H i l l & Sons cessou
suas atividades. Pensou-se inicialmente que seu acervo de histórias e
informações sobre os instrumentos estava destinado à fogueira. N o fim
das contas, os registros da firma pelo menos foram salvos. Comprados
inicialmente por Peter Biddulph, parece efetivamente indicado que
tenham acabado na posse de Charles Beare, o homem que passou a
envergar a coroa dos H i l l .
Biddulph pagou 67 m i l libras pelos registros. Parece uma bagatela.
O conhecimento de causa era o que mais havia contribuído para que
os H i l l se destacassem da concorrência.Terá sido talvez por isso mesmo
que tão zelosamente guardaram a verdadeira história do Viotti: n ã o t i -
nham a menor vontade de divulgar sua existência para os rivais. E cer-
tamente R i c h a r d Baker, que o comprou em 1906, n ã o parece ter
buscado novos compradores ao decidir vendê-lo novamente em 1924.
D e modo que os H i l l mais uma vez se tornaram proprietários do v i o -

* N a verdade, eles agravaram a situação, alardeando e m seu livro sobre Stradivari as virtudes
de ainda outro Strad Viotti, fabricado em 1712; n ã o existe qualquer prova da existência desse
violino, e a referência a ele no livro parece ser u m erro de impressão.
220 STRADIVARIUS

lino, vendendo-o em 1928 por 8 m i l libras [270 m i l libras]. Mesmo


então, anotaram em seus registros que poderiam ter obtido muito mais
pelo Viotti nos Estados Unidos, mas queriam que ele permanecesse na
Grã-Bretanha.
E foi o que aconteceu. O último proprietário do Viotti, filho do
comprador de 1928, morreu no fim de 2002. Esperava legar o seu Strad
ao Ashmolean Museum, para que fosse exibido ao lado do Messias. E u
n ã o esperava por isso ao c o m e ç a r a escrever este livro, mas fico
estranhamente satisfeito de saber que dois dos nossos violinos podem
acabar juntos num futuro previsível.
Capítulo Dezesseis

' U M STRAD COMO OUTRO QUALQUER'

Interpretando o Messias

A HISTÓRIA D O Messias parecia ter chegado ao fim logo depois da Se-


gunda Guerra Mundial, quando passou a residir no Ashmolean Museum
de Oxford. Durante cinquenta anos ele ficou exposto ali em semi-es-
plendor, o verniz intocado, os cantos intactos, o filete com toda a sua
precisão, constituindo o exemplar mais perfeitamente preservado da arte
de Stradivari no apogeu de seu período de ouro. Certamente não havia
sido esquecido; já o seu simples estado de preservação fazia dele o ponto
de partida para qualquer debate sobre o que torna tão especial u m
Stradivarius. Mas não havia muita emoção naquela vida de museu.
N o fim do século . X X , no entanto, o Messias voltou ao noticiário.
O mais famoso violino do mundo seria uma falsificação?
Este violino sempre teve seus detratores. O problema estava, em
parte, na boa conservação do Messias, exatamente a característica que o
tornava tão único. A pátina do tempo é u m elemento inerente na be-
leza de u m instrumento. O processo de "envelhecimento" de violinos
é tão cultivado hoje em dia quanto o era por Vuillaume; não existe a
intenção de defraudar, mas é que assim o violino fica mais fácil de ven-
der e mais agradável de olhar. C o m sua aparência de violino novinho
em folha, o Messias parece muito bem feito, mas incongruente. Logo
que passou a ser exibido, surgiram comentários de que simplesmente
não podia ser uma antiguidade do século X V I I I ; devia ser mais recen-
te, produto de u m dos grandes copistas de Stradivari no século X I X .
222 STRADIVARIUS

Os defensores dessa teoria n ã o precisavam buscar muito longe o c u l -


pado: Vuillaume é que havia feito o Messias; 2L história que contava
sobre o encontro do instrumento na fazenda de Tarisio em Fontaneto
não passava exatamente disso: uma história.
Mas n ã o faltavam argumentos à defesa do Messias. Os defensores
frisavam o fato de que, embora cada detalhe — a curvatura das abertu-
ras acústicas, os ferrões de abelha dos filetes nos cantos, a ousadia da
voluta — parecesse estar gritando "Stradivari, 1716", a concepção ge-
ral do Messias era única; ele n ã o tinha u m irmão gémeo. Vuillaume
certamente teria preferido copiar outro Stradivarius a traçar ele mes-
mo u m desenho original. Seja como for, o Messias tinha o melhor pedigree
possível anterior a Vuillaume; as cópias que dele foram feitas por
Giuseppe R o c c a em Turim, a partir de 1843, são anteriores ao apare-
cimento do Messias no ateliê de Vuillaume em 1855. Parece evidente
que R o c c a entrou em contato com o violino quando estava na posse
de Tarisio, e, como Vuillaume, identificou nele o magnífico gabarito
que efetivamente é."Mas e se os violinos de R o c c a forem os originais,
copiados por Vuillaume?", insistiram os céticos.
O debate poderia ter parado por aí, com o equilíbrio da argumen-
tação favorecendo sempre os defensores do Messias — que era sim-
plesmente bom demais para ser obra de Vuillaume — , se n ã o tivessem
ocorrido novas pesquisas. Primeiro, a tradução e decifração das anota-
ções de Cozio revelou certas discrepâncias entre seu "mais belo e maior
violino de 1716" e aquele a que se referia como o Messias. Entre 1803
e 1816, foram três referências. Das duas últimas entradas, uma era m u i -
to vaga e a outra utilizava u m sistema de mensuração que ainda não foi
decifrado. Somente a mais antiga das três oferecia efetivamente deta-
lhes sobre o instrumento. Decisivo foi o fato de que se referisse a dois
remendos no tampo do violino, u m feito pelo p r ó p r i o Stradivari e o
outro por Guadagnini, presumivelmente sob instruções do p r ó p r i o
Cozio. O Messias tinha apenas u m remendo, que parecia estar em po-
sição diferente de qualquer dos dois mencionados por Cozio.
UM S T R A D C O M O O U T R O Q U A L Q U E R " 223

U m problema ainda mais sério surgiu quando os pesquisadores


começaram a investigar qual poderia ser o significado da letra " G " ins-
crita na base do cravelhal do Messias. São poucos os Strads que apre-
sentam iniciais como esta. Elas são com toda evidência antigas, e são
raras porque a substituição do braço do violino, quando necessária, tam-
b é m implica a remoção da referida parte do cravelhal. A maioria das
iniciais que sobreviveram podiam ser lidas como " P S " , levando os H i l l
e outros a deduzir que Paolo Stradivari assim tratava de identificar dis-
cretamente os seus violinos. Pelo fim do século X X , contudo, perce-
beu-se que todos esses violinos com a inscrição " P S " tinham as mesmas
medidas do molde " P G " do ateliê Stradivari. As incisões provavelmen-
te haviam sido feitas antes que os violinos fossem envernizados, para
facilitar a identificação do molde em torno do qual haviam sido
construídos. Os H i l l , no entanto, haviam lido a segunda letra,"G", como
se fosse " S " .
Mas o fato é que o Messias sempre foi uma anomalia. Sabemos,
naturalmente, que ele esteve a certa altura na posse de Paolo, e seu
cravelhal original mantinha-se intacto. Os H i l l haviam portanto pro-
curado as iniciais " P S " , mas julgaram de bom alvitre anotar em seu
livro sobre Stradivari que ele " n ã o parece ter sido identificado com
esta marca". Já isto parece por si só estranho: por que n ã o menciona-
ram os H i l l a letra " G " que lá se encontrava? E no entanto, parece evi-
dente a dedução de que o Messias foi feito a partir do molde " G " . A
grande revelação veio na realidade quando Stewart Pollens, conserva-
dor adjunto do Museu Metropolitano de Arte de NovaYork e autor
do mais respeitado livro sobre os moldes internos de Stradivari, proce-
deu a mensurações que o convenceram de que o Messias havia sido
fabricado de acordo com o molde " P G " .
Pollens deduziu que, nos anos que se seguiram à redação do livro
dos H i l l , alguém havia tirado as devidas conclusões sobre o significado
verdadeiro das letras inscritas nos cravelhais de outros Strads. Dando-se
conta de que o Messias devia ter inscrição semelhante, essa pessoa ha-
224 STRADIVARIUS

via decidido acrescentá-la a uma cópia feita depois da morte de


Stradivari para valorizá-la. A utilização da letra errada — " G " — sim-
plesmente aumentava a confusão em meio a uma tentativa de logro.
Chegara a hora de mostrar que o Stradivarius mais famoso do mundo
era uma fraude.
Pollens recorreu a u m expediente que tem sua origem na arqueo-
logia mas t a m b é m pode ser aplicado aos violinos. A dendrocronologia
baseia-se no fato de que a largura do anel de crescimento de qual-
quer árvore em determinado ano depende das condições climáticas
que nele prevaleceram. A mensuração de uma sequência desses anéis
manifestados em forma de veios numa peça de madeira forma uma
cronologia de diferentes larguras. Se puder ser estabelecida uma cor-
relação com uma "cronologia de referência", baseada em árvores de
idades conhecidas da mesma região, o pesquisador pode identificar a idade
da madeira. Particularmente útil é o fato de que o anel mais recente
corresponde à data mais recuada possível em que terá sido derrubada
a árvore que forneceu a madeira. A aplicação dessa técnica ao abeto
do tampo do violino pode, assim, desacreditar sua atribuição a uma
determinada data, caso a madeira se revele mais recente que a suposta
idade do instrumento.
Pollens tivera a oportunidade de examinar o Messias em 1997, quan-
do foi autorizado a tirar fotografias de alta definição do instrumento.
As fotos pareciam suficientemente boas para serem usadas como base
de uma investigação dendrocronológica, e Pollens enviou uma foto do
tampo do violino ao Dr. Peter Klein da Universidade de Hamburgo,
u m dos mais respeitados dendrocronologistas do mundo. Podemos
imaginar o estado de excitação em que Pollens ficou ao receber o re-
latório inicial de Klein: o mais recente anel datável no Messias havia
crescido em 1738, u m ano depois da morte de Stradivari; a "obra-pri-
ma" de Stradivari n ã o podia portanto ter sido feita por ele.
A notícia c o m e ç o u a se espalhar, provocando consternação entre
os especialistas. Se o Messias era uma fraude, como seria possível con-
UM S T R A D C O M O O U T R O Q U A L Q U E R " 225

siderar autêntica qualquer outra atribuição de autoria num Stradivarius?


Toda a fundamentação do comércio de violinos antigos seria posta em
questão. A única esperança estava na possibilidade de que as conclusões
de Klein estivessem por algum motivo equivocadas. Convencidos dis-
so, Charles Beare, a atual geração dos H i l l (que continua na posse do
Messias) e o Ashmolean Museum formaram uma poderosa coalizão para
responder à ciência com ciência. Encomendaram novo estudo den-
drocronológico do Messias a uma dupla de britânicos que vinha ga-
nhando reputação nesse campo: o luthier John Topham e o cientista
Derek M c C o r m i c k . A o aceitarem a missão, os dois insistiram em ter
total acesso ao violino e no direito de divulgar suas conclusões numa
publicação científica.
Topham e M c C o r m i c k j á haviam desenvolvido o aparato necessá-
rio para proceder ao estudo. Ele consistia num microscópio montado
num trilho que media com precisão os seus movimentos. M o v i m e n -
tando o microscópio de maneira que as ranhuras de sua lente acompa-
nhassem os veios do tampo do Messias, eles eram capazes de registrar a
distância entre cada anel de crescimento. Logo haviam estabelecido uma
sequência de larguras que abarcavam quase cem anos do crescimento
de u m abeto alpino. N a realidade, dispunham de duas sequências, uma
de cada lado do tampo do Messias. Além disso, ambas demonstravam
acentuada compatibilidade com sequências semelhantes medidas em
dois outros Strads feitos em 1717. Os três violinos haviam sido fabrica-
dos com madeira de fontes semelhantes.
Esta era a parte fácil. A comparação com dois outros Strads devia
ter sido suficiente para convencer os céticos do fato de que o Messias
havia saído mesmo do ateliê de Stradivari, mas n ã o estabelecia uma
datação para a madeira. A o contrário de Klein, a dupla britânica não
foi capaz de estabelecer uma cronologia de referência que combinasse
com o Messias. Precisava poder certificar-se com mais segurança.
A resposta veio da facilidade com que Topham e M c C o r m i c k ha-
viam estabelecido a compatibilidade do Messias com os dois outros
226 STRADIVARIUS

Strads, o que os levou a introduzir medidas de outros instrumentos


cremoneses: violinos, violas e violoncelos, vinte e dois ao todo, uma
empreitada gigantesca. Cada cronologia podia ser comparada com outras
no mesmo grupo, de tal modo que o diagrama resultante combinava
todas as mensurações numa mesma cronologia específica dos instru-
mentos cremoneses.Também estabelecia uma média das variações dos
padrões de crescimento de cada árvore, podendo ser comparada a uma
cronologia de referência.* Finalmente,Topham e M c C o r m i c k podiam
estabelecer a datação da madeira do Messias. O abeto de seu lado agu-
do tinha anéis de crescimento correspondentes a 1581-1675, e no lado
grave, a 1590-1682 — datas perfeitamente viáveis para u m violino fa-
bricado em 1716.
Antes mesmo de chegar a esta datação final, Topham havia levado
suas mensurações do Messias e dos dois Strads de 1717 a Klein, em
Hamburgo, que c o m e ç o u a p ô r em dúvida a precisão de sua própria
curva. Caberia então duvidar que as fotografias de Pollens n ã o se pres-
tassem afinal aos exames da dendrocronologia? Irritado com essa apa-
rente reviravolta, Pollens contratou u m terceiro dendrocronologista, o
Dr. Peter Ian Kuniholm, na Universidade de Cornell, nos Estados
Unidos, que corroborou a datação de 1738 estabelecida por Klein, igual-
mente com base apenas nas fotografias. Seis meses depois, em novem-
bro de 1998, Klein e Topham encontraram-se no Ashmolean Museum
para trabalhar em mais uma série de mensurações. Klein foi obrigado
a usar o equipamento de Topham, pois a lupa de joalheiro que preten-
dia passar pela superfície do Messias poderia danificar seu verniz. O
trabalho em conjunto aparentemente não resultou num acordo a res-
peito do que fazer a seguir, e Klein teve de deixar o museu sem suas
mensurações.

• A madeira de u m celeiro perto de Innsbruck mostrou-se particularmente útil c o m o


referência.
UM STRAD COMO OUTRO QUALQUER" 227

Pollens e seus partidários começaram a suspeitar de que algo estava


sendo acobertado. Outros dendrocronologistas exigiram acesso ao
Messias; a metodologia de Topham e M c C o r m i c k passou a ser questio-
nada; insultos foram trocados. N e m mesmo quando u m relato de suas
investigações veio finalmente a ser publicado no Journal ofArchaeological
Science em março de 2000, depois de passar por todo o habitual proces-
so de escrutínio por parte da comunidade científica, os detratores da
dupla puderam ser calados. Farejando uma boa matéria, os jornalistas
entraram em campo. O Wall Street Journal mostrou-se interessado. U m
artigo no Times de Londres, em outubro de 2000, foi suficiente para
redespertar meu interesse de colegial pelos Stradivarius, acabando por
levar a este livro.
Só foi possível chegar a u m consenso transatlântico quando três
dendrocronologistas americanos efetivamente confirmaram as conclu-
sões de Topham e M c C o r m i c k . A madeira usada na fabricação do tam-
po do Messias cresceu até 1682; é positiva a compatibilidade estabelecida
entre ela e a madeira de outros Strads.Todos os parâmetros verificados
na madeira do Messias são compatíveis com sua etiqueta: "Antonius
Stradivarius Cremonensis Faciebat Anno 1716".

Q U E R DIZER ENTÃO que, descartadas as teses de Pollens e adeptos, o


Messias pode voltar a se instalar confortavelmente em seu papel de
Stradivarius mais famoso do mundo, prosseguindo o negócio de violinos
antigos exatamente como antes? Até certo ponto. A dendrocronologia
nunca será capaz de estabelecer em caráter absoluto a autenticação de
u m instrumento, mas quem haveria de pagar milhões hoje em dia por
u m Strad com base apenas em avaliações estilísticas? O estabelecimen-
to de 1716 como ano de fabricação do Messias foi reforçado, mas no
caso de alguns outros instrumentos é o contrário que se verifica. H o u -
ve violinos que foram retirados de venda por ter sido estabelecida para
a madeira com que foram fabricados datação posterior em décadas à
228 STRADIVARIUS

originalmente atribuída. Até mesmo a capacidade de grandes senhores


do negócio — homens como Alfred H i l l — foi posta em dúvida. Hoje
em dia, u m certificado dendrocronológico assinado por John Topham
é quase u m pré-requisito, toda vez que os instrumentos mais valiosos
são postos à venda.
E o Messias? Certamente deve ser u m Strad; seria superestimar os
talentos e capacidades de Vuillaume presumir que tenha sido capaz de
encontrar a madeira perfeita para fazer a sua cópia perfeita. Mas as ano-
malias que acabaram levando Pollens a recorrer à dendrocronologia não
se dissiparam. Naturalmente, podem ser explicadas. Seria o " G " no
cravelhal apenas u m erro? Teria u m dos remendos mencionados pelo
conde Cozio sido removido desde então? Talvez Cozio simplesmente
tenha cometido u m erro ao descrever seu "maior e mais belo violino
de 1716"? Mas muito pouca gente apostaria a própria vida no caráter
absolutamente inquestionável do pedigree do Messias. Charles Beare, por
exemplo, tem certeza de que se trata de u m Strad, certeza de que foi
fabricado em 1716 "ou talvez 1715", certeza de que foi comprado por
Vuillaume dos herdeiros de Tarisio; mas reconhece que sua história
anterior a isso repousa em bases muito menos sólidas.
Toda essa incerteza chama a atenção para u m outro problema. Se-
ria o Messias realmente bom como instrumento? Os H i l l gostavam de
pensar que o próprio Stradivari tinha em tão alta estima a sua maior
criação que nunca conseguiu vendê-la. São poucos, hoje, os que con-
firmariam essa interpretação. C o m e n t á r i o do luthier John Dilworth:
"Trata-se apenas de u m Strad como outro qualquer que envelheceu
melhor que os outros, mas u m Strad perfeitamente comum ainda seria
uma obra-prima para qualquer outro fabricante. E o único que nos
mostra como era a aparência do verniz de u m Strad quando novo, e é
algo extraordinário."
Pode haver quem se disponha a ir mais longe. E se, na realidade,
Stradivari tivesse mantido consigo o Messias simplesmente porque n i n -
g u é m queria comprá-lo? H á indícios de que ele jamais tenha sido ca-
"UM S T R A D C O M O O U T R O Q U A L Q U E R " 229

paz de produzir uma grande sonoridade. Os defensores do Messias i n -


vocam a carta que Joseph Joachim escreveu a Robert Crawford, o dono
do violino, em 1 8 9 1 , e sua referência à "mistura de suavidade e
imponência" da sonoridade do instrumento. As credenciais de Joachim
para uma tal avaliação são incontestáveis, mas ele podia estar sendo apenas
polido. Mais ou menos pela mesma época, tanto Crawford quanto os
H i l l reconheciam que na realidade o Messias precisava ser tocado para
realizar todo o seu potencial. Seja como for, continua sendo curioso
que o mais influente de todos os violinos de Stradivari, aquele que foi
mais imitado e mais contribuiu para o desenvolvimento da fabricação
de violinos nos séculos X I X e X X , seja até hoje, do ponto de vista da
sonoridade, uma incógnita.
Outra possibilidade é indicada por pequenas anomalias na fabrica-
ção do Messias. Muitas poderiam ser encontradas em outros Strads, mas
encobertas pelo desgaste e a sujeira. Outras j á não seriam tão facilmen-
te explicadas. E m artigo recente, John Dilworth chama a atenção para
a pouca espessura do fundo do Messias perto da borda na curva inferior,
em sua opinião "uma rara perda de controle da goiva por parte de
Stradivari". H á t a m b é m a assimetria da voluta do Messias, digo "que
encontramos em outros instrumentos de Stradivari, mas n ã o de m a -
neira tão acentuada". O remendo no tampo provavelmente serviu para
preencher uma cavidade na resina. N ã o é algo assim tão inabitual, mas
não deixa de ser uma imperfeição. Mais intrigante ainda é a j u n ç ã o no
centro da ilharga inferior do Messias. E m praticamente qualquer outro
Strad teríamos aqui uma única tira de borda de ponta a ponta.Tomada
isoladamente, nenhuma dessas incongruências deveria surpreender, mas
em seu conjunto elas não podem ser ignoradas. Caberia supor que parte
do trabalho no Messias tenha sido feita por u m aprendiz?
A idéia de que, no todo ou em parte, o Messias seja obra de u m
aprendiz provavelmente causará mais escarcéu do que sua atribuição a
Vuillaume, mas é uma idéia interessante demais para ser descartada. E m
1716, Giovanni Battista, o primeiro filho do segundo casamento de
STRADIVARIUS

Stradivari a sobreviver à primeira infância, tinha 13 anos, exatamente a


idade em que, depois talvez de dois anos no ateliê, u m aprendiz capaz
de aprender com rapidez podia ter esperança de trabalhar em seus p r ó -
prios instrumentos. Se o Messias vem a ser u m deles, n ã o importam as
consequências para o violino; prestemos atenção no que isto diz de
Giovanni Battista. Por gerações e gerações, o Messias tem sido exaltado
como uma obra-prima, e seu fabricante, como u m génio. Q u e m sabe
se, não tivesse Giovanni Battista morrido em 1727, com apenas 24 anos,
Antonio Stradivari teria tido afinal u m digno sucessor.
Posfácio

ESTAMOS E M PLENA Semana da Cultura, se é em toda a Itália, na


Lombardia ou apenas em Cremona, n ã o sei ao certo. M e u italiano
mal serve para distinguir entre andante e presto, e a mocinha no escri-
t ó r i o de turismo limita-se a reservar u m quarto para m i m à última
hora, antes de ser submergida numa onda de turistas. Seja como for,
a entrada em todos os museus da cidade é gratuita; posso economizar
os meus euros. Assim, tendo nas mãos minha entrada, subo a longa
escadaria que leva da Piazza dei Comune ao Palazzo Comunale, a
prefeitura de Cremona.
Descobrir Cremona, o prospecto que apanhei no escritório de turis-
mo, me informa que o Palazzo é u m típico broletto lombardo em forma
quadrangular ao redor de u m pátio. A descrição n ã o faz justiça ao
magnífico esplendor da estrutura de tijolos vermelhos em que vou
entrando. N a praça medieval em que se encontra, ela está em frente ao
Duomo, ao Batistério e ao Torazzo, conjunto que me deixou sem res-
piração quando dei com ele pela primeira vez ontem à noite, no fim
de uma rua estreita. Cada vez menos eu entendia a opinião emitida no
Rough Guide de que a cidade, tranquila e relativamente sem interesse,
"não parece o melhor lugar para passar a noite".
Mas eu não v i m para visitar os monumentos arquitetônicos. A sede
da prefeitura t a m b é m é u m museu. N ã o o Museo Stradivariano: este
será visitado mais tarde, para que eu possa ver a coleção de ferramentas
e moldes dos grandes luthiers. O Palazzo Comunale guarda a coleção
de grandes violinos de Cremona: apenas sete peças, e apenas u m Strad,
que no entanto abarcam todo o período de ouro de Cremona.
232 STRADIVARIUS

N o alto da escadaria, a atividade fervilha; uma exposição de foto-


grafias está sendo montada. Passando por ela, acompanho os outros até
uma espécie de ante-sala, j á cheia de turistas italianos de uma certa
idade: a Semana da Cultura com toda evidência tem suas desvantagens.
D o outro lado do salão está o meu objetivo, a Sala dos Violinos, apa-
rentemente aberta, mas eu sou barrado por u m guarda bronzeado e
bem-apessoado que me faz u m gesto para esperar ali sentado, como
todos os outros. Resigno-me então a esperar u m bocado.
Parece claro que o espaço aqui n ã o é apenas uma ante-sala. O
Salone dei Quadri ainda deve ser usado como sala de reunião do
conselho de Cremona. Os magotes de turistas esperam sentados em
bancos de mogno — algo entre a carteira escolar e o banco de igreja
— diante de u m conjunto mais imponente de cadeiras assemelhadas
a tronos, depois de u m cordão de isolamento na extremidade do sa-
lão. C o m o os turistas sentados parecem formar uma platéia, o guia de
u m dos grupos aproveita para informá-los sobre o que estão para ver;
as poucas palavras que posso entender — "Stradivari", " h a r m ó n i c a "
— pelo menos permitem-me deduzir que estamos esperando a mes-
ma coisa. Enquanto isso, tenho tempo suficiente para examinar as
imponentes pinturas em cada uma das longas paredes laterais. U m a
delas mostra Cristo e a "Multiplicação dos pães" e a outra, os israelitas
encontrando o m a n á no deserto, embora eu n ã o fosse capaz de de-
duzi-lo sem a ajuda das legendas. E m matéria de esplendor artístico,
parece evidente que as verdadeiras obras-primas de Cremona estão
atrás daquela porta.
U m a porta que agora está fechada. U m último grupo saiu por ela,
e a sala foi trancada, o que provocou sussurros de indignação do grupo
instruído pelo loquaz guia, que j á agora atrai a atenção de todo o salão.
Será que ainda podemos esperar algo mais que isso? N a outra extremi-
dade, sai por uma porta lateral u m homem grisalho de paletó de tweed
e gravata, trazendo nas mãos u m violino. Alguém tenta calar o guia;
inicialmente ele dá de ombros, mas finalmente percebe o que está acon-
POSFÁCIO 233

tecendo; volta-se, admite para si mesmo que há ali algo do interesse do


seu grupo e gentilmente se afasta. O homem grisalho começa a tocar.
N ã o tenho a menor idéia do que estamos ouvindo: algo simples mas
cheio de emoção, uma peça barroca, outra animada, trechos que pare-
cem escolhidos para testar e demonstrar toda a variedade dos sons e cli-
mas do violino, sem exigir demais do violinista. Até meus ouvidos pouco
educados entendem que não é ele o motivo pelo qual aqui estamos;
eventualmente se ouve uma nota errada, seu jeito algo pesado de tentar
extrair o máximo do violino. Não, estamos aqui realmente pelo próprio
instrumento. Existe efetivamente algo especial em sua sonoridade. Quente
e vibrante, parece encher todo o salão. Por perfeita casualidade — eu
poderia dar pulos de alegria — , cheguei no momento da exibição se-
manal de u m dos tesouros da cidade; a única dúvida é: qual deles?
O recital chega ao fim. O músico agradece os aplausos. A sala dos
violinos é aberta e eu dou u m jeito de me intrometer no primeiro grupo
autorizado a entrar. Sete violinos estão expostos, cada u m podendo ser
visto em passeios circulares ao redor de sua vitrine.Verifico que meus
companheiros são conduzidos pelo guia loquaz, que imediatamente os
leva até a vitrine na extremidade da sala, dando prosseguimento a sua
exposição, como se não tivesse sido interrompido. Posso, assim, exami-
nar calmamente os dois violinos mais próximos da porta. O primeiro
pertence ao conjunto feito por Andrea Amati para Catarina de Medici
na década de 1560. Dois anos mais jovem que seu irmão guardado no
Ashmolean Museum, este violino poderia ser tocado amanhã mesmo.
Está em perfeitas condições de uso, embora a folha de ouro em seu
tampo se tenha descamado, não se podendo mais ver o desenho das
armas reais francesas. É uma peça de beleza arrebatadora, mas meus
olhos são atraídos para a vitrine ao lado.
E m comparação com o Amati, seu vizinho parece novinho em fo-
lha, no arrogante brilho avermelhado de seu verniz. A incrustação de
madrepérola no espelho de ébano e os ornatos escuros nas laterais de
bordo dão conta das horas de trabalho dedicadas ao acabamento do
234 STRADIVARIUS

instrumento. E no entanto este violino n ã o tem u m encanto equiva-


lente ao do vizinho mais comum. As curvas e a simetria de u m violino
conferem-lhe uma elegância simples que só pode ser comprometida
por este tipo de ornamentação. Mais que isso, este violino n ã o parece
ter alma. Seria considerado impraticável pela maioria dos violinistas.
Por uma curiosa ironia, este que é de longe o violino de fabricação
mais recente da sala é o único concebido no velho estilo h á muito
descartado em todos os outros instrumentos. Seu braço atarracado e
seu espelho em cunha fazem dele u m temporão, dois séculos desloca-
do no tempo. Naturalmente, existe u m motivo para tudo isso: ele foi
feito na década de 1960, em Cremona, por Simone Sacconi, réplica
exata do Stradivarius Hellier. U m a obra de artesanato, e não de arte.
O magote de turistas começa a deixar a sala e o guarda bronzeado
me convida com u m gesto a fazer o mesmo. A fila do lado de fora j á dá
sinais de inquietação; a próxima leva de visitantes está para entrar —
não terei tempo de admirar os outros violinos, os que foram feitos por
sucessivas gerações de Amati e Guarneri. Posso perfeitamente conter
minha frustração. Naquela mesma tarde, voltarei à sede da prefeitura,
que estará vazia, e poderei contemplar calmamente os instrumentos.
Mas terei agora de fazer uma última pergunta ao guarda. N ã o temos
qualquer linguagem em comum, mas ainda assim somos capazes de nos
entender. Sim, o violino que ouvi há apenas dez minutos era o que
estava na extremidade da sala, aquele em torno do qual ficou girando
o magote, o que foi feito por Antonio Stradivari.
Terá sido a primeira vez em que ouvi u m Strad tão de perto? Pro-
vavelmente: minha m ã e e eu certa vez ficamos numa fila durante três
horas para conseguir lugares na primeira fila de u m concerto de Yehudi
Menuhin, mas àquela altura de sua carreira ele j á devia estar tocando
seu D e l Gesú. A sede da prefeitura de Cremona certamente era u m local
apropriado para a experiência. Além disso, aquele Strad, então conhe-
cido como o Cremonês, foi feito numa época de apogeu, 1715, e inclui
Joachim em seu pedigree. A combinação de elementos históricos com o
POSFÁCIO 235

local inegavelmente tem forte ressonância, mas o que realmente me


interessa a respeito do Cremonês é o que aconteceu a ele nos últimos
trinta anos. Particularmente em virtude do anúncio, feito em 1962,
quando Cremona o adquiriu, de que ele seria submetido a todos os
testes possíveis e imagináveis. O Cremonês é u m perfeito símbolo da
incapacidade da ciência de desvendar os segredos de Stradivari.

OS VIOLINOS E a arte de fabricá-los t ê m sido submetidos a métodos


científicos desde a época de Vuillaume, mas com poucos resultados. O
verniz foi analisado pela difração de raios X , o mesmo recurso usado
para decifrar a estrutura do A D N . Sua composição foi estudada por
meio de espectômetros, identificando os elementos e componentes i n -
dividuais que bloqueiam comprimentos de ondas específicos no es-
pectro da luz. Testes acústicos constituíram uma forma de abordar o
problema de outra direção. U m deles comparava o volume sonoro dos
instrumentos em frequências diferentes, parecendo ter demonstrado que
os violinos cremoneses estavam em ligeira desvantagem. U m outro, ob-
servando a maneira como o volume é atenuado com o tempo, mos-
trou que os Strads e equivalentes sustentam a sonoridade por mais tempo.
Outra série de investigações recorreu aos raios X tridimensionais,
mensurando todas as possíveis variações na densidade da madeira. R e -
centemente, a análise dendrocronológica da madeira dos Stradivarius
evidenciou a que ponto sua densidade foi afetada pela mini-Era do
Gelo que chegou ao auge na Europa entre 1645 e 1715.
Pouca coisa se conseguiu. N a maioria dos casos, revelou-se muito
difícil separar as intenções de Stradivari do trabalho posterior do tem-
po. Seriam as moléculas identificadas pelos espectômetros parte da re-
ceita original de Stradivari ou contaminações das ferramentas e crisóis,
ou mesmo consequência da posterior oxidação, à medida que o verniz
envelhecia? Quais os efeitos do amadurecimento da madeira em suas
medidas e em sua densidade? Que inferências podemos fazer da teoria
236 STRADIVARIUS

da E r a do Gelo, quando sabemos que todos os outros fabricantes euro-


peus usavam madeiras das mesmas fontes que Stradivari? N a realidade,
houve apenas dois possíveis momentos do tipo "Eureka", e até mesmo
os seus resultados são contestados.
A primeira revelação sobreveio com o uso de microscópios eletrôni-
cos. Eles mostraram uma camada de partículas — uma espécie de p ó —
entre a madeira e o verniz dos instrumentos cremoneses. Nos últimos anos,
ela tem sido analisada com a utilização de tecnologia E D A X (análise de
dispersão de elétrons por raios x), sendo provisoriamente identificada como
terra de Pozzolana, uma cinza vulcânica. São muitas as possíveis razões que
teriam levado Stradivari e seus contemporâneos a usá-la: a cinza é à prova
d'água; enrijece e homogeneiza a madeira, permitindo que seja polida; sua
coloração avermelhada pode de certa forma funcionar como corante da
camada superior de verniz. N ã o se sabe se ela também tem algum efeito
acústico. Certos luthiers consideram-na "a resposta", a grande meta dos
pesquisadores desde a época de Reade e Vuillaume. Outros descartam a
possibilidade:"A terra de Pozzolana representa apenas uma das interpreta-
ções possíveis dos resultados dos testes de E D A X , que na realidade apre-
sentam resultados bastante diferentes conforme o instrumento (...)Vejo-a
de certa maneira como uma pista falsa."
A outra descoberta putativa tem pedigree de maior peso. Algo muito
parecido chegou a ser trazido à baila há mais de cem anos, quando se
passou a considerar que as estradas construídas por Napoleão haviam
deixado para trás o rio P ò como meio de transporte para o abeto alpi-
no. A versão moderna dessa teoria tem pelo menos duas formas. U m a
delas afirma que as toras usadas por Stradivari podem ter sido aciden-
talmente embebidas em água do mar, porque ele estava usando restos
da marinha veneziana. É uma idéia interessante, mas difícil de sustentar
ante a comprovação, graças à dendrocronologia, de que os fabricantes
de violinos de toda a Europa usavam a mesma madeira. A outra versão
sustenta que os luthiers cremoneses deliberadamente impregnavam a
madeira em alguma solução salgada, na tentativa de preservá-la. B a -
POSFÁCIO 237

seia-se na observação de que os instrumentos cremoneses n ã o pare-


cem ter sofrido o mesmo grau de infestação de brocas que seus equiva-
lentes da mesma idade. Os defensores dessa teoria dizem-se convencidos
pelos resultados dos testes acústicos feitos em amostras de madeira
embebidas em diferentes soluções. São poucos entre eles, no entanto,
os luthiers. A maioria destes diria que os instrumentos cremoneses fo-
ram pouco infestados por brocas simplesmente porque, sendo tão valio-
sos, sempre foram mais bem tratados.
E m suma, não houve nenhuma descoberta definitiva. Se os artesãos
cremoneses tinham algum segredo, a ciência ainda está por descobri-
lo com algum grau de certeza. Pelo contrário, a maioria dos luthiers
modernos ainda procura orientação no trabalho de u m de seus pares,
Simone Sacconi. Por mais carente de verdadeira alma que seja, sua r é -
plica do Hellier constitui uma peça valiosa da exposição na sede m u n i -
cipal de Cremona. Sua filosofia levou a uma revivescência na produção
de violinos que ainda hoje vigora. Surgiram escolas em todo o mundo.
Sua produção é testada numa série de encontros internacionais. Os
negociantes que anteriormente se concentravam em instrumentos
novecentistas de fabricação francesa hoje se saem melhor com os pro-
dutos dos modernos fabricantes (embora ainda ajude quando t ê m u m
nome italiano ou trabalham em Cremona).Vinte e cinco anos atrás,
Charles Beare constatava que os luthiers pelejavam para se equiparar a
Vuillaume, para não falar dos grandes artesãos cremoneses. Hoje ele
considera que os padrões finalmente se aproximam do que Stradivari e
seus contemporâneos conseguiram. Tudo indica que tanta energia foi
empenhada durante tanto tempo na tentativa de descobrir a fórmula
"perdida" do verniz de Stradivari que enormes avanços foram obtidos
simplesmente no empenho de fazer os melhores instrumentos possíveis.

EXISTEM SUCESSORES DE Sacconi que acreditam que hoje em dia todas


as técnicas de Stradivari j á foram descobertas — que suas cópias m o -
238 STRADIVARIUS

dernas simplesmente precisam de u m período de maturação para que


finalmente tenhamos violinos cuja sonoridade se compare à das gran-
des criações clássicas de Cremona. Mas o fato é que j á passamos por
isto. Os melhores violinos de Vuillaume talvez valham u m centésimo
dos melhores Strads, e os de Gemiinder, talvez u m milésimo. Estes e
uma infinidade de outros n ã o se mostraram à altura das pretensões de
seus fabricantes. A época de ouro de Cremona chegou ao fim h á mais
de 250 anos. Por pelo menos metade desse período os sucessores v ê m
tentando descobrir seus segredos. Seria a atual geração diferente das
anteriores?
Os músicos que consideram que os instrumentos novos os ajudam
continuam a ser uma minúscula minoria. Anthony Marwood, do T r i o
Florestan, incluiu-se a certa altura nesse time seleto:"Lembro da época
em que eu me sentia orgulhoso tocando u m violino moderno durante
cerca de dois anos, pois achava que assim poderia mostrar a todo m u n -
do. Vou tocar u m instrumento moderno. Maravilha, n ã o preciso me
meter nessa corrida desenfreada. Até que depois de certo tempo dei-
me conta de que infelizmente talvez precisasse mesmo, e de que n ã o
havia realmente nenhuma outra maneira." N a melhor das hipóteses,
parece evidente que nenhum instrumento moderno p ô d e amadurecer
o suficiente para competir com u m Strad.
E m última análise, as tentativas de copiar Stradivari pareciam fada-
das ao fracasso. São muitas as variáveis. Se considerarmos duas apenas
entre as várias controvérsias — a utilidade ou ausência de utilidade da
terra de Pozzolana e a necessidade ou n ã o de impregnar a madeira com
soluções salgadas — , j á estaremos confrontados com quatro diferentes
alternativas, e ainda nem começamos a pensar no m é t o d o de aplicação
da terra ou nas concentrações exatas de sal nessa soluções, e muito menos
em seus ingredientes. Para testar cada uma das alternativas, seria neces-
sário construir os violinos, permitir que envelhecessem, talvez durante
cinquenta ou cem anos, e então conseguir que fossem tocados por tem-
po suficiente por u m instrumentista suficientemente bom para extrair
POSFÁCIO 239

deles a melhor sonoridade. O que seria u m absurdo. Nunca será possí-


vel equiparar-se a Stradivari por meio da imitação.
Só podemos copiar os métodos de Stradivari: uma obstinada dedi-
cação ao objetivo de produzir instrumentos melhores que os de qual-
quer antecessor. Muitos fatores contribuíram para sua supremacia: uma
tradição ininterrupta, que j á tinha mais de u m século quando ele co-
meçou; espírito metódico e disciplinado; uma facilidade na entalhadura
que lhe permitia traduzir suas idéias na prática; vida suficientemente
longa para fazer experiências e colher seus frutos; pelo menos dois as-
sistentes conscienciosos. Ele t a m b é m pode ter sido u m génio; n i n g u é m
pretende se equiparar a Bach ou Shakespeare. Mas os violinos que fez
não são perfeitos: podem mostrar-se caprichosos, ter lá seus maus dias.
Os luthiers modernos podem contar com toda uma série de outras van-
tagens, com o conhecimento proporcionado pela história e a ciência.
Talvez seja necessário outro génio, mas certamente podemos supor que
u m dia alguém produzirá instrumentos que n ã o só se equiparem aos
de Stradivari como os superem.
Devemos ter esta esperança. Pois uma lição pode ser extraída das
vidas dos instrumentos que acompanhamos neste livro. Quatro dos cinco
violinos com os quais começamos encontram-se hoje em coleções ou
museus particulares. O mesmo quanto à nossa pista falsa, o Marie Hall
Os dois instrumentos restantes — o violoncelo Davidov e o violino
Paganini — ainda são tocados, mas nenhum dos dois sustenta plena-
mente a carreira de u m solista virtuose. Talvez o dado mais eloquente
seja o declínio gradual do prestígio do Lipinski: até mesmo os Strads
podem perder a força.
Nos últimos vinte anos, David Fulton empatou uma fortuna ganha
com programas de computação na maior coleção privada de instru-
mentos de cordas. Ele se defende vigorosamente da acusação de estar
trancafiando grandes violinos: u m instrumento que ao longo da maior
parte de sua trajetória foi usado em concertos nunca poderá ser com-
parado favoravelmente com outro que permaneceu relativamente
240 STRADIVARIUS

intocado. Acaba "gasto e danificado (...) Considero que o século X X


foi muito duro com os Strads". Parece difícil deixar de concordar com
ele. Os Strads que hoje em dia enriquecem a vida de concertos ten-
dem a ser descobertas recentes, pouco tocados. Já podemos estar o u -
vindo instrumentos das levas menos brilhantes da produção do Mestre.
Basta conversar u m pouco com pessoas que atuam no mercado de
violinos para acabar ouvindo o comentário sombrio: "Sabe como é,
existem muitos maus Strads", instrumentos que podem ter sido gran-
des outrora, mas j á n ã o são admirados. Acumulam poeira em depósitos
em Nova York, Londres ou T ó q u i o , à venda, esperando u m instru-
mentista que por eles se apaixone, cuja técnica seja exatamente a que é
necessária para voltar a extrair deles o melhor, quando na realidade sim-
plesmente não são bons o bastante, instrumentos destruídos pelo tem-
po. U m dia, terão fim os estoques de grandes violinos clássicos.
Precisamos de u m novo Stradivari.
Apêndice U m

Cronologia de luthiers clássicos

Nascimento de Andrea Amati


Gaudenzio Ferrari pinta representações de violinos/vio-
las e violoncelo de três cordas
20 de maio, nascimento de Gasparo Bertolotti ("da Saio")
Nascimento de Antonio Amati
A orquestra de dança de Balthasar de Beaujoyeux chega à
corte francesa
Nascimento de Girolamo Amati
Registro de data de fabricação no violino mais antigo que
chegou até nós, feito por Andrea Amati em Cremona como
parte do conjunto encomendado para Carlos I X
Registro de data de fabricação no violoncelo mais antigo
que chegou até nós, também feito por Andrea Amati em
Cremona e igualmente encomendado para Carlos I X
26 de dezembro, morte de Andrea Amati
Nascimento de Giovanni Maggini
Balthasar de Beaujoyeux compõe a primeira peça especí-
fica para violino
3 de dezembro, nascimento de Nicolò Amati
Morte de Antonio Amati
Nascimento de Jacob Stainer
A mão de Nicolò Amati perceptível nos instrumentos dos
"Irmãos Amati"
Morte de Girolamo Amati
242 STRADIVARIUS

c. 1632 Morte de Giovanni Maggini


c. 1644 Nascimento de Antonio Stradivari
1666 Primeiro violino conhecido de Antonio Stradivari
1666-90 Período de Stradivari sob influência de Amati
1667 4 de julho, Antonio Stradivari casa-se com Francesca
Feraboschi
1671 I o de fevereiro, nascimento de Francesco Stradivari
1679 14 de novembro, nascimento de Omobono Stradivari
c. 1680 Primeiro violoncelo conhecido de Antonio Stradivari
Stradivari faz o violino Paganini
Stradivari muda-se para a Piazza San Domênico
1683 Morte de Jacob Stainer
1684 Morte de Nicolò Amati
1690-98 Stradivari faz violinos alongados
1698 20 de maio, morte de Francesca Stradivari (nascida
Feraboschi)
21 de agosto, nascimento de Giuseppe Guarneri "dei
Gesu"
1699 24 de agosto, Antonio Stradivari casa-se com Antónia
Zambelli
1700 Ano geralmente reconhecido como o do início do "pe-
ríodo de ouro" de Stradivari
1703 11 de novembro, nascimento de Giovanni Battista
Stradivari
1709 O violino Viotti é produzido no ateliê de Stradivari
1712 O violoncelo Davidov é produzido no ateliê de Stradivari
1715 O violino Lipinski é produzido no ateliê de Stradivari
1716 O violino Messias é produzido no ateliê de Stradivari
c. 1720 Fim do período de ouro de Stradivari
1727 I o de novembro, morte de Giovanni Battista Stradivari
1733 O Khevenhuller é produzido no ateliê de Stradivari
1737 3 de março, morte de Antónia Stradivari (nascida
Zambelli)
18 de dezembro, morte de Antonio Stradivari
APÊNDICE UM 243

1742 9 de junho, morte de Omobono Stradivari


1743 15 de janeiro, morte de Francesco Stradivari
1744 17 de outubro, morte de Giuseppe Guarneri "dei Gesú"
1746 Carlo Bergonzi torna-se inquilino de Paolo Stradivari na
Piazza San Domênico
1747 Morte de Carlo Bergonzi
Apêndice Dois

Glossário

Aberturas acústicas — As aberturas em forma de " f " entalhadas de ambos os


lados do cavalete, no tampo dos membros da família dos violinos, e que per-
mite que o som escape.

Abeto — Madeira macia com várias subespécies.

Alma — Bastão interno de madeira macia que funciona como apoio entre o
tampo e o fundo; é posicionado um pouco abaixo do pé direito do cavalete,
sendo sustido pela tensão das cordas.

Altura — Sinonimo de frequência; quanto maior a altura do som, mais aguda


a nota.

Andante — "Caminhando" em italiano: "em andamento moderado".

Anel — No arco, a tira de metal que, juntamente com a cunha, prende e


espalha a crina de cavalo no ponto em que é fixada ao talão.

Arcabuz — Arma de fogo de cano longo do século XV.

Arqueamento — A área abaulada do tampo e do fundo do violino.

Barra harmónica—Viga de madeira macia colada à superfície interior do tam-


po, em quase toda a extensão e passando sob o pé direito do cavalete.

Blocos — As seis peças de madeira coladas na parte interna das ilhargas, no


alto, embaixo e nos cantos, para manter sua forma e ajudar a sustentar o tam-
po; o bloco do alto também reforça a junção com o braço, e o bloco de baixo,
a junção com o estandarte.
246 STRADIVARIUS

Bordo (ou Acer) — Madeira de lei europeia, abrangendo uma variedade de


subespécies.

Braço — A peça de bordo entalhado que liga o corpo à cabeça.

Cabeça—A estrutura entalhada na extremidade do braço, abrangendo a voluta


e o cravelhal.

Caixa de ressonância — A parte de um instrumento de cordas que capta as


vibrações das cordas e as amplifica, para gerar as notas.

Cantabile — E m estilo cantante.

Cantos — Os quatro pontos do desenho externo do corpo em que as cur-


vaturas em forma de C encontram as curvaturas convexas superior e inferior.

Capricho — Uma peça musical, geralmente para um instrumento, composta


sem regras formais.

Cavalete—Afinapeça de madeira entalhada que sustenta as cordas acima do


tampo, sendo por sua vez sustentada pela tensão das cordas.

Col legno — "Com a madeira" em italiano, indicando que as cordas são feri-
das com a madeira do arco, e não com as crinas.

Concerto — Composição, geralmente em três movimentos, normalmente para


um solista com acompanhamento orquestral.

Corpo — A caixa de ressonância, composta de fundo, tampo e ilhargas.

Corte em prancha — Corte de madeira extraído do tronco de uma árvore,


tangencialmente aos anéis de crescimento.

Corte radial — Corte de madeira extraído do tronco de uma árvore em for-


ma de cunha ou fatia de bolo, perpendicularmente aos anéis de crescimento.

Contra-ilhargas ou reforços — A s tiras de madeira macia dispostas ao longo das par-


tes superior e inferior internas das ilhargas, reforçando a colagem dos tampos.

Cravelha — Pino de madeira torneada inserido através de dois buracos, um


de cada lado do cravelhal, e em torno do qual as cordas são enroladas; giran-
do-se a cravelha, é possível ajustar a tensão e, logo, a altura da corda.
APÊNDICE DOIS 247

Cravelhal ou caixa de cravelhas — A caixa aberta no alto que fica situada na


extremidade do braço e sustenta as cravelhas.

Cronologia de referência — Na dendrocronologia, sequência de larguras de anéis


de crescimento à qual são atribuídas datas, para serem comparadas com se-
quências sem datas.

Contorno — As quatro curvas que delineiam a forma da caixa de ressonância:


duas curvaturas convexas no alto e embaixo e duas côncavas em forma de C .

Dendrocronologia—Ciência da datação da madeira até o momento da derru-


bada, mediante a mensuração dos anéis de crescimento, tal como se manifes-
tam nos veios.

Ébano — Madeira de lei negra extraída de certas árvores tropicais e


subtropicais.

Espelho — A longa peça de ébano, plana mas ligeiramente recurvada no alto,


que é presa entre a parte superior do braço e as cordas, acompanhando-o des-
de o cravelhal e indo até um ponto, mais ou menos entre as partes superiores
das duas aberturas acústicas; os dedos do instrumentista pressionam as cordas
contra ele para alterar a altura das notas.

Estandarte — Peça de ébano presa por uma alça à base de um instrumento de


cordas e à qual as cordas são fixadas depois de passarem sobre o cavalete.

Ferrão de abelha — Extremidade pontiaguda do filete nos quatro cantos do


tampo e do fundo, que vemos em certos instrumentos.

Filete — Fina incrustação de madeira feita no sulco entalhado na borda do


fundo e do tampo; consiste geralmente em três finas tiras de madeira: duas es-
curas ladeando uma mais clara.

Frequência — O grau de oscilação de uma corda ou a onda sonora que ela


produz, geralmente expresso em pulsações por segundo, ou Hertz (Hz); quanto
maior a frequência, mais aguda a nota.

Fundo — A superfície inferior abaulada da caixa de ressonância, feita de madei-


ra de lei.
248 STRADIVARIUS

Harmónico — Uma frequência que é múltiplo da frequência fundamental de


uma corda; os harmónicos naturais — notas puras curiosamente — são pro-
duzidos repousando levemente o dedo na corda num ponto que seja de v i -
bração zero para um harmónico — na metade do caminho, à altura de dois
terços, e assim por diante.

Ilhargas (ou Costilhas) — A s quatro (ou cinco, ou seis) tiras de bordo que cons-
tituem as laterais recurvadas da caixa de ressonância, separando ofundo do tampo.

Legato — Execução fluida de uma sequência de notas, de tal maneira que


cada uma seja imperceptivelmente unida à seguinte.

Luthier — Originalmente, fabricante de alaúdes; hoje, de qualquer instru-


mento de cordas.

Meia esquadria — Os encaixes dos cantos, onde todas as junções se dão na


diagonal, em lugar da justaposição de uma peça contra outra (aqui referin-
do-se à junção dos filetes nos cantos).

Meno vivace — "Menos depressa" em italiano, instrução dada pelo composi-


tor para diminuir o andamento.

Ombreira ou espaleira — Peça presa ao fundo da caixa de ressonância, removida


quando o instrumento não está sendo tocado, que se opõe à queixeira e com
ela permite segurar o violino entre o queixo e o ombro; não é de uso uni-
versal.

Ondulação — Nuances alternadas de coloração escura e clara da madeira, ao


longo da granulação, que se manifestam no bordo em consequência da pressão
sofrida no processo de crescimento da árvore.

Pau-brasil — Madeira de lei brasileira de utilização muito comum nas varetas


dos arcos, por sua elasticidade, densidade e resistência.

Pizzicato — Forma de tanger as cordas com os dedos, geralmente da mão


direita.

Presto — "Muito rápido" em italiano.


APÊNDICE DOIS 249

Queixeira — Peça de madeira ou plástico rijo presa à parte traseira de um


violino ou de uma viola, geralmente do lado esquerdo, que se adapta ao queixo,
permitindo ao instrumentista segurar o instrumento entre o queixo e o
ombro.

Ressonância—A vibração ampliada em simpatia que ocorre quando um sis-


tema é excitado em sua frequência natural.

Scordatura—Afinação das cordas de um instrumento em notas diferentes de


suas habituais.

Sforzando — Súbito e enfático aumento do volume.

Sinfonia — Composição para orquestra comportando de três a seis movi-


mentos.

Sonata — Composição geralmente estruturada em vários movimentos (mais


comumente três ou quatro); as sonatas para violino e violoncelo destinam-se
em geral ao instrumento acompanhado de piano ou algum de seus precur-
sores, eventualmente ao instrumento desacompanhado ou ainda (especial-
mente na música do século X V I I ) a um maior número de instrumentos de
cordas com ou sem o acompanhamento de teclado.

Staccato — Execução de uma sucessão de notas de forma destacada, cada uma


nitidamente separada da anterior.

Talão — A base do arco, próxima do ponto em que é segurado, à qual a crina


é presa e que serve para ajustar sua tensão.

Tampo ou tampo harmónico — A superfície superior abaulada da caixa de res-


sonância, feita de madeira macia e perfurada com as aberturas acústicas.

Tampos — O fundo e o tampo da caixa de ressonância.

Trastear — Ação de pressionar as cordas contra as pequenas barras de metal


(trastes ou pontos) dispostas ao longo do braço; aplica-se apenas aos instru-
mentos da família do alaúde, do violão ou da viola antiga.
250 STRADIVARIUS

Veios — Disposição ou direção das fibras da madeira, em sentido longitudi-


nal no tronco da árvore, visível em muitas madeiras em virtude dos anéis de
crescimento que se manifestam nas árvores de onde foram extraídas.

Voluta — A espiral ornamental na extremidade da cabeça.


Apêndice Três

Tabela de conversão de preços

Q U A L Q U E R CONVERSÃO para as expressões do poder aquisitivo moderno


carece necessariamente de precisão. Os índices de preços no varejo baseiam-
se em cestas de produtos, cujos conteúdos naturalmente mudam significati-
vamente ao longo de 300 anos.
Na conversão de valores em libras esterlinas para suas equivalências atuais,
minha principal fonte foi Inflation: the Value of the Pound 1750-1998, House
of Commons Reasearch paper 99/20,23 de fevereiro de 1999.
Sobre os preços anteriores a 1750, existem pelo menos duas fontes, ambas
encontradas em British Historical Statistics, de B . R . Mitchell, 1988, Cambridge
University Press, Cambridge.
"The Schumpeter-Gilboy Price índices 1661-1823" reproduz as flutua-
ções, mas nenhuma tendência geral entre 1661 e 1750.
"índices of Prices and Real Wages of Building Craftsmen — Southern
England, 1264-1954" (Henry Phelps Brown e Sheila V. Hopkins) evidencia
que os salários mais ou menos dobraram entre 1630 e 1750, devendo-se res-
salvar no entanto que isto é antes indicativo da melhoria do padrão de vida
do que da inflação de modo geral.
A bem da simplicidade, portanto, parti do princípio de que não houve
um movimento inflacionário geral entre 1630 e 1750.
Para converter quantias expressas em outras moedas que não a libra es-
terlina no equivalente em libras esterlinas da mesma época, antes de proce-
der à multiplicação para chegar à equivalência atual em libras, utilizei as
seguintes fontes e as seguintes taxas de câmbio aproximadas.
252 STRADIVARIUS

Equivalência Data Fonte


al£

ITÁLIA 4,4 ducados 1637 Snelling


Parte do princípio de que a correspondência é exercício contâbil/
ducados de prata, e não ducados de ouro

23 liras imperiais 1680 Snelling


Na compra da residência de Stradivari está especificado este tipo
de lira

30 liras "atuais" 1688-1738 Snelling


Levadas em conta em todas as demais transações

2 gigliati 1776 Snelling


4,0 escudos 1828 GQ
75 liras 1920 Officer
100 liras 1937 Officer

RÚSSIA 5,6 rublos c. 1780 Snelling

FRANÇA 22 libras c. 1785 Snelling


25 francos 1800-1900 Mitchell
125 francos 1937 Mitchell

ÁUSTRIA 6,7 florins 1828 GQ

ALEMANHA 20,7 marcos 1906 Mitchell

ESTADOS 4,9 dólares Pré-1931 Mitchell


UNIDOS À exclusão de 1915-24

4 dólares 1946 Mitchell


2,8 dólares 1949-67 Mitchell
APÊNDICE TRÊS 253

FONTES

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Bibliografia e Fontes

PELA PRÓPRIA N A T U R E Z A deste livro, eu não quis atravancar o texto com


notas de rodapé. Espero, contudo, que as indicações a seguir possam remeter
o leitor às publicações relevantes e a minhas outras fontes. Nos casos indica-
dos, acrescento comentários sobre a utilidade de determinado título ou para
indicar conteúdos dele extraídos.

LIVROS

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cio, Yo-Vò Ma descreve o Davidov; a Introdução contém excelente resu-
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edição de um livro lançado em 1902, escrito pelos maiores especialistas
em Stradivari da época; foi superado em certas partes, mas continua sen-
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The Spectator, Londres, 21 de agosto de 1999,"On theTrail of a MasterViolin
Maker",Todes, Rafael.
The Strad, Orpheus, Londres. Edições específicas são citadas abaixo, mas des-
de 1890 a revista reproduz magnificamente o mundo do violino.
Novembro de 1891 e seg. Informe sobre estudo de 1888 por E . J . Payne,
presidente da Sociedade Cremona.
Junho de 1895. Obituário de W. E . Hill.
Dezembro de 1895, janeiro de 1896. Relato de Lipinski sobre a maneira como
adquiriu seu Stradivarius.
Setembro de 1898. Reminiscências de Vuillaume.
Agosto de 1900. História sobre Lolli na corte de Catarina a Grande.
Março de 1903, abril de 1903, maio de 1903, maio de 1906, maio de 1910,
agosto de 1910, setembro de 1911, setembro de 1912, janeiro de 1913,
março de 1926, julho de 1955, agosto de 1955. Marie Hall.
Fevereiro de 1925. Carta de leitor com história sobre Vuillaume e Alard.
Maio de 1927 e seg. Reminiscências de Edward Goodwin.
Maio de 1937. Exposição de Cremona.
Junho de 1940. Obituário de Alfred Hill.
Janeiro de 1952. Davidov.
Dezembro de 1968. Venda do violino de Marie Hall.
Agosto de 1971. Entrevista com Anna Lee Wurlitzer.
Outubro de 1982. Edição especial Paganini.
Janeiro, fevereiro e maio de 1988.Yo-Yo Ma sobre o Davidov.
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Junho de 1988. Venda do Marie Hall


Abril de 1989. E D A X .
Abril de 1991. Citação de Menuhin sobre "aventuras ilícitas" com os Del Gesú.
Julho de 1991. Curvas de resposta.
Dezembro de 1991, março de 1992. Os Amati.
Abril de 1992. Os Hill cessam atividades.
Novembro de 1994. Kikuei Ikeda sobre seu Strad de 1719.
Julho de 1996. Peter Salaff sobre o papel do segundo violino.
Maio de 1997.Tomografia computadorizada.
Agosto de 1998. História de Vuillaume.
Dezembro de 1998. Microscópio eletrônico de varredura.
Agosto de 2001. História relacionada ao Messias.
Dezembro de 2001,"A varnished triumph", por Roger Hargrave. Descrição
do Davidov.
Novembro de 2002. Entrevista com David Fulton.
The Times, Londres, 27 de outubro de 2000, " A Stradivarius riddle", Giles
Whittell. A controvérsia sobre o Messias.
The Violin Times, Londres, concorrente temporário do The Strad.
Março de 1905. Marie Hall.
Yo-Yo Ma, Simply Baroque, notas de Steven Ledbetter, Sony Music, 1999.
Yo-Yo Ma, Simply Baroque II, notas de Jackson Braider, Sony Music, 2000.

F O N T E S NÃO PUBLICADAS

Arquivo Heron-Allen, Royai College of Music, Londres. Documentos pes-


soais de Viotti, entre eles seu testamento, correspondência variada e a
declaração que fez quando foi exilado da Grã-Bretanha.
Carta de Alfred Hill à Rudolph Wurlitzer Company, com detalhes da histó-
ria do Lipinski, 26 de outubro de 1922.
Carta de Alfred Hill à Rudolph Wurlitzer Company, com detalhes da histó-
ria do Davidov, 15 de novembro de 1928.

Muitas citações e outras informações do livro provêm de entrevistas; ver nos


Agradecimentos a relação das pessoas com as quais conversei.
índice

Alard, Delphin 112,140,159 Ver também Strad Barbirolli, John 204

Messias Barenboim, Daniel 2 0 9 , 2 1 1 , 2 1 2

Alday, violinista 92 Baring, Edward 172

Aldric 112 Baring, Pauline 206

Amati, família de fabricantes de violinos 2 9 - B B C 176

36,51-52 Beare, Charles 2 0 2 , 2 1 0 , 2 1 6 , 2 2 5 , 2 2 8 , 2 3 7

Amati, Andrea (1505-77) Beaujoyeux, Balthasar de 29, 3 6 , 2 4 1

luthier 3 0 , 3 4 , 2 4 1 Beethoven, L u d w i g v a n , quartetos de cordas

mais velho violino do mundo 20,29,30, 106-109

32,233,241 Bennett, Richard, Strad Messias 191

violoncelos 34, 52 Bergonzi, Carlo (1683-1747) 79, 243

Amati, Antonio (1540-1608) Berliner, Emile 174

luthier 3 5 , 2 4 1 Berlioz, Hector 1 2 5 , 1 5 0

Amati, Girolamo (1561-1628) Bertolotti, Gasparo (n. 1540)

luthier 35-37, 241 luthier 3 5 - 3 6 , 2 4 1

Amati, Girolamo (1649-1740) Betts, Arthur 98

luthier 39, 53 B e t t s j o h n 97

Amati, N i c o l ò (1596-1684) Bianchi, A n t ó n i a 1 1 8 , 1 2 0 , 1 2 9

luthier36,37-38,45,53,60,114,241,242 Biddulph, Peter 2 2 , 2 1 5 , 2 1 6 , 2 1 9

alunos 4 2 , 6 9 , 8 0 B l o c h , Ernest, Schelomo 15

violinos de tamanho grande 38,47,53,54 Bõhmjoseph 106-108,120-121,144,156

Anschutz, Richard, Strad Lipinski 205 e Beethoven 108

arcos 3 4 , 9 2 - 9 3 , Ilustr 2 8 , 1 1 3 , 1 5 2 , 1 8 5 Strad Khevenhuller 106, 108, 1 2 1 , 143,

Arquimedes 50 144,156

Ashmolean M u s e u m , Oxford 19, 29, 192, B õ h m , Louis, Strad Khevenhuller 156,178

221,225 Bowes, Thomas

Auer, Leopold 154,177 violino Amati de tamanho grande 39


Strad Viotti 2 1 , 2 1 7

Baillot, Pierre, violinista 9 2 , 9 7 Brochant de Villiers, Monsieur 101

Baker, Richard, Strad Viotti 218,219 Bultitude, Athur, fabricante de arcos 191
266 STRADIVARIUS

Cambridge, duque de 98,217 Museu Stradivariano 231


Canas, D r Martinez, Strad Lipinski 187,190, Palazzo Comunale 231-235
193,204 Piazza San D o m ê n i c o 46, 5 1 , 63, 242
Canhão, violino Guarnerius 1 1 7 , 1 1 9 , 1 2 1 -
122,129,130,135,189 Dancla, violino 16
Capra, Giacomo 44 Davidov, Carl, violoncelista 1 5 0 - 1 5 7 , 2 1 3
Cartier, violinista 92 Davidov, violoncelo 25, 62, 147-157, 180-
Catarina a Grande da Rússia 89 182,190,239, 242
Catarina de Medici 27-29, 3 6 , 2 3 3 du Pré 203, 209-213
Catedral de Saronno 30 H i l l 182
Ceruti, Giovanni Battista, luthier 188 Ma 25,151,212-213
Chanot, François, luthier 131,136 valor 204
Chanot, Georges 112 Vatelot 212
Cherubini, Luigi 93-94 D e l G e s ú , violinos 1 1 6 , 1 2 1 , 1 3 0 , 1 9 5
Chinnery, Caroline 96, 99,100 Canhão 1 1 7 , 1 1 9 , 1 2 2 , 1 2 9 , 1 3 0 , 1 3 5 , 1 8 9
Chinnery, William 96,100 Desaint, Monsieur, Strad Paganini 133,156
Clark, A n n a 197,214 d'Eymar, A . M . , Anecdotes sur Viotti 94
C o l e ç ã o C h i - M e i , Strad Viotti 217 Dilworth, John, luthier 2 2 8 , 2 2 9
C o l e ç ã o Hill,Ashmolean Museum 19-20,192 Dodd, John, fabricante de arcos 93
C o l e ç ã o Wurlitzer 181 Downes, O l i n 183
Colognetti, m ú s i c o 90 du Pré, Jacqueline 2 0 2 - 2 0 4 , 2 0 9 - 2 1 3
C o n c e r t Spirituel, Paris 8 5 , 9 2 , 1 4 8 , 2 1 7 Davidov 2 0 3 , 2 1 0 - 2 1 3
Concerto em M e m ó r i a de Stradivarius 189 Duport, violoncelo 3 5 , 1 4 7 - 1 4 9
Condessa de Stanlein, violoncelo 127 Duport, Jean-Louis 3 5 , 1 4 8
Corelli, A r c â n g e l o 5 3 , 5 5 , 6 3 D vorák, Antonin 167
C ó s i m o de Medici 62
CourtauldTrust 202 E D A X , tecnologia 236
C o z i o di Salabue, conde 81-84, 105, 108- Edison, Thomas 174
109,111,188,198 Einstein, Albert 186
Strad Khevenhuller 105 Elgar, Sir Edward 1 6 6 , 1 7 5 , 1 8 6
Strad Messias 8 2 , 1 0 5 , 1 0 8 , 1 1 1 , 1 3 6 , 1 3 9 , Ellisseiff, Pierre de, Strad Paganini 156,179
222,228 Elman, Mischa 177
cravelhais 223 etiquetas 42, 50, 7 0 , 1 6 0 , 2 0 1
Crawford, Robert, Strad Messias 159, 162, e x p o s i ç ã o e concerto de Filadélfia 196
191,229
Cremona 29, 3 6 , 7 7 , 1 8 7 - 1 8 9 Fau, Monsieur 139
e x p o s i ç ã o do bicentenário 188-191 Feraboschi, Giovanni (cunhado de Antonio
Casa Nuziale 45 Stradivari) 44
Descobrir Cremona 231 Ferrari, D o m ê n i c o 90
ÍNDICE 267

Ferrari, Gaudenzio 3 0 , 2 4 1 Hamma, Fridolin 194


Fétis, François 7 0 , 1 0 1 , 1 6 2 , 2 1 8 Meisterwerke Italienischer Geigenhaukunst
Feuermann, Emanuel 15 182
Fiorini, Giuseppe, luthier 188 Hamma, Walter 200
Ford, H e n r y 191 Hardman, Dr. William 169
Français, E m i l e 186,194 Hargrave, R o g e r 3 0 , 3 5
Franchomme, Auguste 148 harpa 5 1 - 5 2 , 1 8 9
violoncelo Duport 148-149 Hart, George 169,218
Freeman, Jay C . 181,200 Heifetzjascha, violinista 1 7 6 , 1 8 1 , 2 0 6
Fulton, David 239 Hellier, Sir Edward 46
F u n d a ç ã o Musical N i p ô n i c a 15, 214 Herrmann, August 196
Fundo Memorial Stradivarius 190 Herrmann, E m i l 1 7 8 , 1 8 9 , 1 9 7
Quarteto Paganini 1 9 6 , 2 1 3
Galeria de Arte Corcoran, Strad Paganini 214 Strad Khevenhuller 1 7 9 , 1 8 5 , 1 8 7
Garbousova, Raya, violoncelista 202 Strad Paganini 179,214
Gemunder 1 6 4 , 2 3 8 Strad Soil 195
G e r m i , Luigi Guglielmo 126
Gofriller, Francesco, luthier 211 H i l l , Alfred 191,228
Goldman, H e n r y 184-185 H i l l , A r t h u r 191
G o o d w i n , Edward 161,202 H i l l , Arthur Phillips 192
Goupillat, Gabriel 182 H i l l j o s e p h 160
gramofones e música 176 H i l l , William Ebsworth 1 6 0 - 1 6 2 , 1 6 3 , 1 9 1
Grancino, violino 183 Holland, Isména 2 0 3 , 2 1 0
Grubb, Suvi 209
Guadagnini, Giovanni Battista 8 2 , 1 7 9 , 2 2 2 Isserlis, Steven 15
Guarneri, família de fabricantes de violinos 69
Guarneri, Andrea (1626-98) luthier 3 7 , 4 2 , J . & A . Beare 202
56,69,149 Jacobsen, Sascha, violinista 190
Guarneri dei Gesú, Giuseppe (1698-1744) Jambe de Fer, Philibert 29
luthier 6 9 , 1 1 6 , 1 6 4 , 1 9 8 , 2 4 2 , 2 4 3 Jarnowick, violinista 89
Canhão, violino 117,119,122,129,130, Joachim, Joseph 1 4 4 , 1 6 2 , 2 2 9
135 Strad Cremonês 235
Guarneri, Giuseppe (n. 1666) 69 Strad Lipinski 163
Guarneri, Pietro 69 Johnstone, James 160

Hall, Marie, violinista 165-169,170-175,205 Khevenhuller, príncipe 103-106


Hall, Marie, Strad Viotti 2 1 , 169-173, 210, Khevenhiiller, Giuseppina 103,104-106
217-219 Khevenhuller, Marie-Amelie 103
Hamma & C o . 182,194 Kirkman, Annie 172
268 STRADIVARIUS

Kitchin, Bóris 179 Merighi, Vincenzo, violinista 127,128


Klein, Dr. Peter 224-227 Metternich, conde 118
Knoop, barão, Strad Viotti 218 Micanzio, padre Fulgentius 37,80
Krasner, Louis, violoncelo Dancla 16 Miles, Philip Napier 167
Kreutzer, Rodolphe, violinista 9 2 , 9 7 Milstein, Nathan, Strad Dancla 16
K u b e l i k j a n 167,172 Modern, Geraldo, Strad Viotti 217
Kuniholm, Dr. Peter Ian 226 M o n t a g n a n a , D o m ê n i c o (1687-1750),fabri-
cante de violoncelos 147, 211
Landseer, E d w i n Henry, Paganini Monteverdi, C l á u d i o 37
Laplace, Madame 117 UOrfeo 38
Laredo, Jaime 23 M o r r i s o n j a c k , Strad Viotti 2 0 7 , 2 1 6
Laurie, David 1 2 9 , 1 3 6 , 1 4 0 , 1 6 0 , 1 7 1 , 1 8 8 Museu Stradivariano, Cremona 1 8 8 , 2 3 1
Le Blanc, Hubert 86 música gravada 174-176,186
Leopoldo 'diTedesco', luthier 37 Mutter, Anne-Sophie 16
Levers, Monsieur, Strad Paganini 156
Lipinski, Karol 1 2 1 , 1 4 9 , 1 6 3 , 2 0 5 Nardini, Pietro, violinista 76
rivalidade com Paganini 121-124,125 negociantes 201
Liszt, Franz 150 Nissel, Siegmund 215
liutomachia 200
Livak, E l y 205 octobasso 133
Lolli, Antonio, violinista 88
Lombardini, Maddalena, violinista 76 Paganini, Achillo 1 1 8 , 1 2 9 , 1 3 1 - 1 3 3
Paganini, N i c o l ò 115-120,124-130
Ma,Yo-Yo 25,151 Concerto para violino 119,167
violoncelo Davidov 25, 151, 211-213 concertos em Viena 118,121
violoncelo Montagnana 2 1 1 , 212, 213 Quarteto Paganini 23, 128, 1 3 1 , 196,
Maas, R o b e r t 196-197 214
M c C o r m i c k , Derek 225-227 rivalidade c o m Lipinski 121-124,125
Maggini, G i o v a n n i Paolo ( c l 5 8 0 - c l 6 3 2 ) Sonata N a p o l e ã o 118
luthier 35, 37, 5 5 , 1 6 2 , 2 4 1 violino Canhão 1 1 7 , 1 2 1 - 1 2 2 , 1 2 9 , 1 3 0 ,
M a n Ray, fotografia de n u 30 135
Marwood, Anthony 238 Pagin, A n d r é - N o é l , violinista 86
Mazzurana, violinista 124 Paris
Medici, família 2 7 - 2 9 , 3 6 , 6 2 , 1 4 8 , 1 6 1 , 2 3 3 Concert Spirituel 8 5 , 9 2 , 1 4 8 , 2 1 7
Mendelssohn, Felix 149 Ópera 94,100,194
Menuhin, Yehudi, violinista 183,194 Theatre Feydeau 95
Strad Klievenhuller 184,186,190,194,215 Peresson, Sergio, luthier 211
Strad Soil 15, 195 Perlman, Itzhak 183
violino Graticino 183 Strad Soil 15
ÍNDICE 269

Persinger, Louis, violinista 183 Romberg, Bernhard, violoncelista 149


Pescaroli, Francesco, entalhador 42,46, 51 R õ n t g e n , professor Engelbert, violinista 163
Pezze, Alessandro, violinista 127 Rubinstein, Anton 154
P i x i s j o h a n n 106 R u d o l p h Wurlitzer Company 181
Pleeth, William 203 R u g e r i , Francesco, luthier 3 7 , 4 2 , 4 3 , 5 6
Poliedro, violinista 71
Pollens, Stewart 223—224, 226-228 Sacconi, Simone 197-199, 234, 237
Popov,Viktor, Strad Klievenhuller 156,178 The 'Secrets'of Stradivari 198
Posner, Nathan 177 SalafF, Peter 214
Pozzolana, terra de 2 3 6 , 2 3 8 Salomon, Johann Peter, violinista 95
preços de instrumentos de cordas 17,23,38, Salvini, Signor, Strad Lipitíski 77,122
68, 83,164, 204 Savart, Félix 134
Pugnani, Gaetano, violinista 7 1 , 76, 88, 89, Scheinin, Michael, Strad Khevenhuller 216
91 Schubert, Franz 120
Schumann, R o b e r t 115,149
Quarteto Aberni 41 Schuppanzigh, Ignaz 107
Quarteto Amadeus 215 Segelman, Gerald 22
Quarteto Curtis 195 Servais, Adrien-François, violoncelista 153
Quarteto da Sinfónica Nacional 214 Sevcík, Otokar 167-168
Quarteto de Cleveland 214 Shuttleworth, A n n a 211
Quarteto de Cordas de Iowa 214 Sivori, Camillo 129,135
Quarteto de Cordas de T ó q u i o 2 3 , 2 1 5 Sociedade Cremona 145
Quarteto Joachim 144 Sociedade Filarmónica 98
Quarteto Paganini 197 Sociedade Stradivari 190
Quarteto Paganini de instrumentos Stradivarius Spohr, L u d w i g 1 0 9 , 1 2 2 , 1 6 2
23,128,131-133,196,214 Stainer, Jacob (1617-83) luthier 37, 52, 8 1 ,
114,165,241,242
Ramsay, Mary, violinista 206 Storioni, Lorenzo, luthier 188
R C A 176 Strad Alard 138,140
Reade, Charles 1 1 1 , 1 4 3 , 1 6 4 , 2 3 6 Strad Betts 98, 185
R e a l Academia de Música, Strad Court 160
c o l e ç ã o de Strads 41 Strad Cremonês 234
réplicas de violinos Strad 134-136,139,164, Strad Fleming 127
187,194 Strad Hellier 46, 234, 237
Reyes, Angel, Strad Lipitíski 193 Strad Khevenhuller 2 2 , 70, 1 0 3 - 1 0 7 , 156,
R o c c a , Guiseppe 222 242
R o d e , Pierre, violinista 9 2 , 9 7 , 1 0 6 B õ h m 108,120,143,144,156
Roeckel, Jane Jackson 167 C o z i o 105
Rogeri, Giovanni Battista, luthier 3 7 , 4 2 Herrmann 1 7 9 , 1 8 5 , 1 8 7
270 STRADIVARIUS

Menuhin 185,186,190,194,215 Strad Viotti 21,62,87,91,100,206,216-219,


Popov 156,178 242
Scheinin 216 Baker 2 1 8 , 2 1 9
Strad Lipinski 2 4 - 2 5 , 6 4 , 1 2 2 - 1 2 4 , 1 2 5 , 1 4 9 , Bowes 2 0 , 2 1 7
205,239,242 C o l e ç ã o C h i - M e i 217
Anschutz 205 Hall 2 1 , 1 7 0 - 1 7 2 , 2 1 0 , 2 1 7 - 2 1 9
Canas 1 8 7 , 1 9 0 , 1 9 3 H i l l & Sons 216, 218-220
H a m m a 182 Knoop 218
Hill 64,163,183 M o d e r n 217
Joachim 163 Morrison 2 0 7 , 2 1 6
Reyes 193 Stradivari, Alessandro (filho de A S ) 4 5 , 5 3 , 6 1 ,
R õ n t g e n 163
66, 77
Salvini 77, 126-127
Stradivari, A n t ó n i a (m.1737) (mulher de A S )
Tartini 7 3 - 7 7 , 1 2 2 - 1 2 4 , 2 0 5
59, 6 0 , 7 1 , 2 4 2
Wurlitzer 182
Stradivari, Antonio (1644-1737)
Strad Marie Hall 2 1 8 , 2 1 9 , 2 3 9
VIDA
Strad Messias 1 9 , 6 4 , 1 1 0 , 1 1 1 , 1 4 1 - 1 4 3 , 2 2 1 -
casamentos 44, 59
230,242
nascimento 4 1 , 2 4 2 ; morte 7 1 , 2 4 2
Alard 113,140
residências 4 5 , 4 6 , 5 1 , 5 2 , 1 8 7
Bennett 191
testamento 67-69, 78
Cozio 82,105,108-110,112,136,139,
OBRA
228
carreira 7 8 - 7 9 , 1 6 1 , 2 3 9
Crawford 1 5 9 , 1 6 2 , 1 9 1 , 2 2 9
harpa 51-52
H i l l 1 5 9 - 1 6 1 , 1 9 2 , 2 2 3 , 2 2 5 , 228
violas 52
Tarisio 112,136
violinos 4 1 , 4 4 , 5 4 , 5 9 , 6 0 - 6 2 , 6 4 , 7 1 , 7 8 -
Vuillaume 138-140
79,242
Strad Paganini 23, 47, 48, 49, 5 1 , 127, 156,
v i o l õ e s 20, 52
190,215,239
violoncelos 52, 62
Desaint 133, 156
Stradivari, Caterina (filha de A S ) 4 5 , 5 3 , 7 7
Ellisseiff 1 5 6 , 1 7 9
Stradivari, Francesca (m.1698) (mulher de
Fundação Musical N i p ô n i c a 214-215
Galeria de Artte Corcoran 214 A S ) 44, 5 5 , 2 4 2

Herrmann 179,214 Stradivari, Francesca (filha de A S ) 6 0 , 6 6 , 7 7

Kitchin 179 Stradivari, Francesco (1671-1743) (filho de

Levers 156 A S ) 56, 65, 7 8 , 2 4 2 , 2 4 3

Vuillaume 1 2 9 , 1 3 2 , 1 3 9 aprendizado 53

Walton 179,196 nascimento 45; morte 79

Strad Soil 15, 195 violinos 58, 6 1 , 8 0

Strad Toscano 161 violoncelos 67


ÍNDICE 271

Stradivari, Giovanni Battista (1703-27) (fi- Davidov 25, Ilustr. 20, 25, 62, 147-157,
lho de A S ) 6 0 , 6 6 , 6 7 , 2 2 9 , 2 4 2 180-182,190,239
Stradivari, Giulia (filha de AS) 44 Duport 147-148
Stradivari, Giuseppe (filho de AS) 6 0 , 6 6 , 7 7 Stasov, Vladimir 150

Stradivari, O m o b o n o (1679-1742) (filho de Straus, Herbert N . , violoncelo Davidov 182,

AS) 4 5 , 5 3 , 6 1 , 6 3 , 6 5 , 6 7 , 2 4 2 202,203,204

em N á p o l e s 58, 77
Stradivari, Paolo (filho de A S ) 6 0 , 6 6 , 7 1 , 7 8 , Tarisio, Luigi 1 1 0 - 1 1 3 , 1 3 7 , 1 8 9

106,223 Tartini, Giuseppe 7 3 , 8 6

herda o n e g ó c i o 7 9 , 8 2 Sonata do Diabo 73, 77

Stradivarius, violas 1 2 5 , 1 2 8 , 1 9 5 , 2 1 4 Strad Lipinski 73, 75, 7 7 , 1 2 2 , 1 2 3 , 2 0 4

Stradivarius, violinos Temianka, H e n r i 196

Alard 138,140 The Musical World 9 8 , 1 2 5

Betts 9 8 , 1 8 5 The Strad 1 5 9 , 1 6 8 , 1 6 9 , 1 7 5 , 1 7 7 , 2 0 6 , 2 1 7

Court 161 Thibaud, Jacques, violinista 194


Tieffenbrucker, Gaspard, luthier 136
Cremonês 234
Topham,John, luthier 225-228
Dancla 16
Tourte, François, arcos 9 3 , 1 1 3 , 1 5 2 , 1 8 5
Fleming 127
transmissões radiofónicas 176
Hellier 46, 2 3 4 , 2 3 7
T r i o Florestan 238
Khevenhuller 22, 7 0 , 1 0 3 , 1 0 4 - 1 0 7 , 1 0 8 ,
121,156,179,185,187,190
Vatelot, Etienne, luthier,
Lipinski 2 4 , 6 4 , 7 3 , 7 5 , 7 7 , 1 2 2 - 1 2 4 , 1 2 5 ,
violoncelo Davidov 212
149,187,190,193,204,239
Vaughan Williams, R a l p h 174
longos 54, 81
The Lark Ascending 173,174
Marie Hall 2 1 8 , 2 3 9
Vengerov, Maxim 23
Messias 20, 64, 82, 108, 110, 111-113,
Strad Kreutzer 1 6 , 2 3
136,138-140,141-145,159,162-164,
Veracini, Francesco, violinista 75
191,221-230
verniz 3 3 , 5 1 , 8 0 , 1 6 5
Paganini 2 3 , 4 7 , 4 8 , 4 9 , 5 1 , 1 2 7 , 1 2 9 , 1 3 3 ,
verniz c r e m o n ê s 3 3 , 5 1 , 8 0 , 1 3 4 , 1 4 3 , 1 6 4
139,156,179,190,239,242
Vieuxtemps, H e n r i , violinista 149
primeiros 4 1 , 4 3
Vignola, Giacomo 50
réplicas 135
Vingt-Quatre Violons du R o i 3 7 , 8 6
Soil 15, 195
violas 24, 34, 52
Toscano 161
ver também Stradivarius, violas
ver também violinos, fabricação
volume do som 34
Viotti 2 1 , 6 2 , 8 7 , 9 1 , 1 0 1 , 1 6 9 - 1 7 2 , 2 1 0 ,
violino Albani 55
217-219
violinos, fabricação 3 0 , 3 1 - 3 5 , 4 7 , 2 3 5 - 2 3 9
Stradivarius, violoncelos 147,196
aberturas acústicas 3 3 , 4 8 , 4 9 , 6 6
Condessa de Stanlein 127
alma 32
272 STRADIVARIUS

altura do som (afinação) 34, 113 Vitali, Tommaso 63


barra h a r m ó n i c a 3 2 , 4 9 , 1 1 3 Voghera, marquês de 90
braço 50, 113 Volumierjean-Baptiste 63
cabeça 30 Vuillaume, Claude-Françoís, luthier 131
caixa de ressonância 32, 34, 49, 54, 59, Vuillaume, Jean-Baptiste, luthier 112, 129,
60,114 131-137,165,237
cordas 3 4 , 1 1 3 compra a c o l e ç ã o Tarisio 137-140
etiquetas 42, 50, 70 réplicas 1 3 4 - 1 3 6 , 1 3 9 , 1 6 4 , 1 8 7
filetes 51 Strad Messias 222, 229
madeira 32, 48 Vuillaume, Nicolas-François, luthier 140
moldes 47, 54, 61
verniz 3 3 , 5 1 , 6 0 , 8 0 Walton, David, Strad Paganini 179,196
volutas 50, 5 8 , 6 0 W E . H i l l & Sons 159-165,191-192
violinos, ver Stradivarius, violinos; arcos; Antonio Stradivari: His Life and Work 163
violoncelo Montagnana 2 1 1 , 212, 213 Strad Lipinski 64, 163, 183
violoncelo 34, 62, 147 Strad Marie Hall 219
braço 50 Strad Messias 159-161,192,223,225,228
caixas de ressonância 62 Strad Viotti 216,218
Condessa de Stanlein 127 violoncelo Davidov 182
Davidov 25, 6 2 , 1 4 7 - 1 5 7 , 1 8 0 - 1 8 3 , 1 9 0 , Wielhorski, conde Mateusz 148-152
239, 242 violoncelo Davidov 149-151
Duport 147-149 Wielhorski, conde Michal 150
espigão 153 Wilhelmj, August 166,217-218
mais velho do mundo 34 Wilson, Elizabeth 204
moldes 62 Wood, Henry 168
v i o l õ e s 20, 52 Wurlitzer, Anna Lee 202
Viotti, Giovanni Battista (1753-1824) 8 5 - Wurlitzer, R e m b e r t 199,201-202
101 Wurlitzer, R u d o l p h 181,182
em Londres 96, 97-99 Wurlitzer, órgão de cinema 181
em Paris 85-88, 9 1 , 9 4 , 9 7 , 9 9 Wurlitzer Company 199,202
negociante de vinhos 99
Ó p e r a de Paris 9 4 , 9 9 Ysaye, E u g è n e 170
Sociedade Filarmónica 98 Yurkevitch, general 178
turnê européia 89
violinista 85-88, 88-93, 93-101 Zimbalist, Éfrem, violinista 177,190
Visconti, Gasparo, violinista 6 3 , 7 5 Zuckerman, Pinchas 210
Agradecimentos

E N T R E AS ALEGRIAS de escrever u m livro como este estão as pessoas


que encontramos e a generosidade que demonstram em matéria de
disponibilidade e informação.
Christina Beale, Thomas Bowes, Howard Davis, Steven Isserlis,
Anthony Marwood, Siegmund Nissel e Rafíy Todes me ajudaram a
entender a relação entre u m instrumentista e seu instrumento, e me
contaram como é tocar u m violino ou u m violoncelo feito por u m
dos grandes luthiers clássicos. Espero ter apreendido algo do seu e n -
tusiasmo.
Charles Beare e Peter Biddulph ofereceram-me a perspectiva de
dois dos maiores especialistas em violino do mundo, preenchendo muitas
das lacunas na história dos meus instrumentos. T i m Inglês e Graham
Wells, da Sotheby's, fizeram o mesmo, oferecendo apoio no início de
minha pesquisa. John Topham foi meu primeiro entrevistado; falou de
seu trabalho no terreno da dendrocronologia e indicou várias linhas
de investigação. David Rattray respondeu a muitas perguntas e me
mostrou a magnífica coleção de instrumentos de cordas da R e a l A c a -
demia de Música de Londres, pela qual é responsável. N o momento
em que eu concluía o livro, o professor Curtis Price, diretor da Acade-
mia, proporcionou informação e encorajamento.
Sou particularmente grato a Carlo Chiesa e John Dilworth. Ambos
cederam-me muito de seu tempo, não só quando nos encontrávamos,
mas no trabalho de correção e comentários que fizeram numa das etapas
do original. Foi Carlo, juntamente com Duane Rosengard, que desco-
briu o testamento de Stradivari; e as pesquisas efetuadas por ambos cons-
274 STRADIVARIUS

tituem fonte decisiva sobre a segunda metade da vida de Stradivari J o h n


proporcionou-me o ponto de vista de u m luthier sobre numerosos as-
pectos da minha pesquisa; sua participação foi inestimável.
Minhas fontes escritas estão relacionadas na bibliografia. Quase to-
das podiam ser encontradas na Biblioteca Britânica — uma grande ins-
tituição.Várias pessoas me ajudaram a localizar ou identificar publicações
específicas. O Dr. B . J . Cook, curador de cunhagem medieval e do p r i -
meiro período moderno no Museu Britânico, ensinou-me a fazer a
transposição das moedas italianas para libras esterlinas. Robert B e i n e
Jennifer Jeffries, da B e i n & Fushi, em Chicago, deram-me acesso a sua
excelente biblioteca. D a mesma forma, em Londres, Peter Biddulph e
seus assistentes, Jamie Buchanan e Jennifer Laredo, emprestaram-me
livros que eu n ã o encontrava. Richard T. Rephann, da Biblioteca de
Yale, e Oliver Davies, do Departamento de Retratos do R e a l Colégio
de Música, consultaram seus arquivos a meu pedido. Y o - Y o M a e sua
assistente Betsy G i l l responderam a uma importante pergunta. Alan
Cromartie e Christian Hess me ajudaram em certas traduções; Roger
Davis me manteve em dia com a agenda de concertos do Festival Hall.
Ashwin Adarkar foi u m verdadeiro manancial de idéias de títulos; e Joe
Way forneceu-me a fonte da história sobre Beethoven e B õ h m .
Muitas pessoas estiveram envolvidas na gestação deste livro. F o i
minha agente, Caroline Dawnay, na P F D , que me convenceu a trans-
formar uma idéia numa proposta. E l a e seus assistentes, primeiro W i l l
Francis e agora A l e x Elam, foram sempre de grande apoio. Nos Estados
Unidos, Michael Carlisle e sua ex-sócia Christy Fletcher fizeram o
mesmo. Entre os outros leitores — e aperfeiçoadores — das primeiras
versões do livro estão meu pai, o Dr. Thomas Fáber, minha madrasta, a
Dra. Liesbeth van Houts, e uma amiga, Joanna Wagstaffe.
Katie Hall, da Random House ( E U A ) , e Anya Serota, da Macmillan,
fizeram a encomenda original do livro, sendo sucedidas respectivamente
por Susanna Porter e Jason Cooper. Perder u m editor poderia ser con-
siderado uma falta de sorte; perder dois poderia ter sido desastroso. O
AGRADECIMENTOS 275

constante entusiasmo de Jason e Susanna garante que isto n ã o aconte-


cerá. Ambos me ajudaram a aperfeiçoar este livro; e sinto-me particu-
larmente grato pelo fato de Jason, como editor principal, ter se
empenhado tanto num livro que herdou.
Acima de tudo, contudo, quero agradecer a minha mulher, Amanda.
E l a me estimulou a cada passo, e sua leitura atenta das sucessivas ver-
sões foi vital em sua combinação de entusiasmo e crítica. Só Deus sabe
como este livro teria ficado sem ela.
Créditos das Fotos

As F O N T E S D A S F O T O G R A F I A S são relacionadas abaixo. O autor e os edi-


tores tiveram todo o empenho em entrar em contato com os detentores de
copyright O autor também gostaria de expressar sua gratidão ao Sr. Andrew
McGee por ter posto à disposição itens de sua coleção de objetos ligados à
arte do violino.

Ilustrações 1,2,4, 9,10,12 — de Herbert Goodkind, The Violin ofAntonio


Stradivari 1644-1737, 1972. Ilustração 1 reproduzida por autorização do
Ashmolean Museum, Oxford.

Ilustrações 6,7,19 — de W. H . Hill et al, Antonio Stradivari — His Life and


Work (1644-1737), 1963.

Ilustração 11 — por L . Boilly, 1824. Coleção particular. Reproduzida por


autorização do Sr. Andrew McGee.

Ilustração 13 — de Franz Farga, Violins & Violinists, 1950.

Ilustração 8 — de Emil Herrman, Two Famous Stradivarius Violins: King


Maximillian* and 'Prime Khevenhiiller*, c l 9 2 8 .

Ilustração 14 — de Musical Instruments Through the Ages, de Anthony Baines.


Copyright © Penguin Books, 1961. Reproduzida por autorização da Penguin
Books.

Ilustração 15 — U m dos vários esboços de Paganini por Sir Edward Henry


Landseer.
278 STRADIVARIUS

Ilustração 16 — Karol Lipinski pintado em 1822 por Walenty Wankowicz,


de Polskie Wydawnictwo Muzyczne, Tematy Muzycze WPlastyce Polskiej, 1956.
Reproduzida por autorização do Museu Nacional de Varsóvia.

Ilustração 17 — De um cartão-postal,cl905. Coleção particular. Reproduzida


por autorização do Sr. Andrew McGee.

Ilustração 18 — Copyright © Bettmann/Corbis.


1. O Messias— um "violino novo e sem equivalente em meio
a instrumentos envelhecidos, desgastados e cheios de rachaduras".
2. O violoncelo Davidov passou pelas mãos de
muitos músicos famosos, e até hoje atrai admiradores com sua beleza.
"Antonio Stradivari fez este violoncelo para dar a todos nós
uma lição de humildade."
3. Por trás da aparente simplicidade do violino, a considerável complexidade de um desenho inalterado há mais de quatro séculos.
5. A base de um dos cravelhais mais importantes:
é fácil perceber por que os H i l l leram " P S " onde estava escrito " P G "
6. A casa onde morou Stradivari na Piazza San Domênico (atualmente Piazza
Roma) já não existe, sendo aqui reproduzida numa gravura do século X I X .
8. N o pé da etiqueta do Khevenhiiller, pode-se distinguir
a menção da idade de Stradivari quando o fabricou.
9a. A madeira de corte radial é extraída da árvore em forma de cunha.
Stradivari utilizou este formato em quase todos os tampos de seus violinos
e na maioria dos fundos. Neste exemplo, a cunha é novamente serrada
e colada pela extremidade espessa, criando uma prancha simétrica na
qual será talhado o tampo do violino.

9b. A madeira cortada em lâmina, ao contrário,


é extraída tangencialmente do tronco da árvore.
12. "Finalmente, tive a idéia de entregar-lhe meu violino, para ver o que faria com ele."
O sonho de Tartini, gravura de L . Boilly, 1824.
13. O fundo pele de tigre do Stradivarius Viotti.
^tcrstnnc. 70?O

Ktrcfier. 7600.

Castrovillarv. 7660

Bassani, mo

ÍOTtUv. 1700

Tarlani, 1700

Cramer. 7770.
" MM A

— n d a ^

14. Esta sequência, extraída de The Violin and its Story,


de H . Abele, mostra a evolução da forma do arco do violino,
do início do século X V I I até Viotti-Tourte.
15. U m violino de Jacob Stainer (à esquerda),
em sua configuração original com espelho em cunha,
comparado a um Stradivarius adaptado às exigências modernas.
Note-se o arqueamento mais abaulado do Stainer
em comparação com o Stradivarius.
. Paganini em plena ação: de uma série de retratos pintados por E d w i n
Henry Landseer, que capta a presença cénica do maestro.
17. Karol Lipinski — "digno herdeiro de Tartini" — com seu
recém-adquirido Stradivarius, retratado em 1822 por Walenty Wankowicz.
18. Marie Hall — "frágil e emagrecida", mas com uma
"imensa reserva de força" — com seu Stradivarius Viotti,
num cartão-postal de aproximadamente 1905.
19. Foto publicitária de Yehudi Menuhin — "o supremo menino
prodígio" — em janeiro de 1929, ao lado do Sr. e da Sra. Henry Goldman
e empunhando o violino que acabara de ganhar deles.
Toby Fáber e x p l o r a o u n i v e r s o de

colecionadores, avaliadores, falsificadores

e a rede de i n t r i g a s e m torno dos m a i s

cobiçados i n s t r u m e n t o s acústicos do

m u n d o . A p o n t a os f u n d a m e n t o s d a

inigualável s o n o r i d a d e por m e i o de

d a d o s científicos c o m p r o v a d o s c o m

testes q u í m i c o s e raios X . A n a r r a t i v a

r e c u p e r a detalhes da trajetória de

lendários S t r a d i v a r i u s que se t o r n a r a m

v e r d a d e i r o s " p e r s o n a g e n s " do m u n d o da

música clássica e desta obra, b a t i z a d o s a

p a r t i r de seus antigos proprietários:

Messias; Viotti; Khevenhuller; Paganini;

Lipitíski e o v i o l o n c e l o Davidov -

fabricado e m 1712 p a r a os M e d i c i ,

e m p u n h a d o por d i v e r s o s artistas até

chegar, nos anos 1980, às m ã o s do m a i o r

violoncelista da a t u a l i d a d e , o francês

de o r i g e m chinesa Y o - Y o M a .

TOBY FÁBER , inglês nascido

e m C a m b r i d g e e m 1965, foi diretor

editorial da Fáber a n d Fáber. M o r a em

L o n d r e s , é casado e tem u m a f i l h a .

Este é o seu p r i m e i r o l i v r o .
(...) mostra deforma vigorosa o impacto deste génio
excêntrico na história musical do Ocidente."
The N e w York Times

"(...) um livro esclarecedor sobre


um monumento cultural.
Publishers Weekly

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