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O
público
entra.
O
cenário
da
confeitaria
está
semi-‐iluminado.
Um
rádio
portátil
em
cima
da
mesa
toca
a
abertura
de
A
flauta
mágica,
de
Mozart.
A
gravação
falha
um
pouco,
mas
continua.
Um
contra-‐regra
gótico,
na
penumbra,
liga
uma
projeção
no
fundo
do
palco:
Uma confeitaria do século 18, decadente. Do lado esquerdo do palco uma rua, que dá para
a entrada da confeitaria, onde vemos um balcão. Do lado de dentro, uma estante de tortas,
doces e pães, vazia no momento. No centro, uma grande mesa, um forno ao fundo. No
fundo do palco uma escada, que leva para os quartos de Pellica e Isabela. À direita, a porta
da despensa, um cubículo que em alguns momentos da peça será iluminado. Num pequeno
altar, a imagem de São Judas Tadeu.
Cena I
Ghella dentro da despensa, no escuro. Alberto está em pé, atrás da mesa.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Alberto -‐ (Lendo uma lista.) Ovos... leite... chocolate... manteiga... queijo... açúcar.
e
Ghella -‐ (Respondendo em cima.) Não... não... não... não... não... não.
e
Ghella assobia.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Ghella
vem
com
um
saco
de
farinha.
Alberto
despeja-‐o
sobre
a
mesa
de
madeira,
formando
um
pequeno
monte.
Alberto -‐ A que horas o Pellica disse que chegaria de viagem?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Ghella
-‐
Eu
tô
com
um
buraco
dentro
de
mim,
Alberto,
pelo
amor
de
Deus...
eu
tô
delirando,
tô
vendo
coisas,
as
minhas
pernas
estão
bambas,
o
meu
sangue
tá
ralo,
olha
a
minha
unha
amarela.
A
minha
mãe
morreu
de
anemia,
que
o
Senhor
a
tenha,
mas
ela
está
olhando
por
mim.
E
por
você
também,
amigo.
70%
para
você
e
30%
para
mim.
Alberto
-‐
Você
sabe
que
o
Pellica
não
gosta
que
comam
as
provisões
sem
a
autorização
dele.
Ghella
-‐
Eu
sei,
eu
sei,
mas,
cá
entre
nós,
o
Pellica
está
mais
autoritário
que
o
rei,
com
todo
o
respeito
pelo
patrão
maravilhoso
que
ele
é,
e
o
rei
também
é
maravilhoso,
ninguém
disse
nada,
mas
um
patrão
deve
alimentar
o
seu
criado,
assim
como
o
rei
deve
alimentar
os
seus
súditos,
a
galinha
os
pintinhos,
o
amante
a
cortesã,
a
felicidade
o
desgraçado,
e
a
comida
o
esfomeado.
Alberto
começa
a
colocar
a
farinha
de
volta
no
saco.
Ghella
dá
dois
passos
para
trás
e
bebe
um
gole
da
garrafa
de
vinho
que
estava
escondida
dentro
da
sua
roupa.
Dissimula.
Alberto
-‐
Vamos
mudar
de
assunto
para
não
pensar
na
fome.
A
Isabela
ainda
está
dormindo?
Ghella
-‐
Isso
é
mudar
de
assunto?
Esse
é
um
outro
tipo
de
fome,
insaciável.
Vai
acabar
abrindo
em
você
um
outro
buraco.
Mas
de
amor
você
não
morre,
acho.
Ghella
-‐
Você
falou
em
Isabela,
que
na
sua
língua
tem
só
um
significado
só:
essa
palavra
aí.
Não
quero
repetir
pra
não
atrair.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Enriqueta -‐ (Falando do balcão, acordando.) Ghella, você está aí?
Ghella -‐ Não falei. (Para ela.) Já vou, minha rainha!
Ghella
-‐
A
baba.
O
olhar
vesgo.
O
sorriso
demente...
por
que
você
não
conta
logo
tudo
para
ele?
Ghella -‐ Você não via as coisas direito, é por isso que você bebia.
Ghella
-‐
Não,
não,
e
nem
eu
vou
comentar
nada,
eu
sou
um
túmulo.
Nós
somos
um
túmulo!
Meio
a
meio,
Alberto,
e
não
se
fala
mais
nisso!
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Alberto
e
Ghella
vão
até
o
balcão.
Enriqueta
se
arruma.
Ajeita
o
único
pedaço
de
torta
da
estante.
Um
homem
entra,
tirando
o
chapéu.
Pellica
adentra
a
confeitaria.
Os
três
vão
atrás,
ansiosos.
Pellica
pára
defronte
à
mesa,
olha
o
santo.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica
-‐
Um
homem
estava
voltando
para
casa.
Eu
estava
voltando
para
casa.
Eu
estava
andando,
pensando
nos
encontros
dos
últimos
dias,
e
pisei
num
rato.
Ele
parecia
morto,
estava
jogado
no
canto
da
rua,
imóvel.
Mas,
alguns
instantes
depois
que
eu
pisei
nele,
o
rato
reagiu,
e
saiu
caminhando
devagar,
desviando
dos
pés
das
pessoas.
Eu
o
segui
com
o
olhar.
Ele
entrou
no
beco
da
rua
do
açougue.
Atrás
de
uma
carroça
abandonada
tinha
um
buraco
no
chão,
com
um
ninho,
e
seis
pequenos
ratos.
Era
uma
rata.
Sabe
o
que
essa
estória
significa?
Nada.
Essa
farinha
está
velha!
Pellica -‐ Eles não podem fazer isso comigo, eu sou um artista!
Pellica
-‐
(Tira
o
sapato.)
Até
o
vinho
que
me
serviram
nos
castelos
não
prestaria
para
avinagrar
uma
salada!
Pellica
-‐
Agora
o
pior:
se
não
pagarmos
o
empréstimos
até
o
final
da
semana,
Bellone
vai
interceder
junto
ao
rei
e
se
apossar
da
confeitaria.
Ghella
-‐
(Indo
pegar
os
sapatos
de
Pellica.)
Já
que
ninguém
vai
usar
essa
farinha,
vamos
fazer
umas
rosquinhas?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica -‐ Já não disse para não falar essa palavra aqui dentro?
Ghella sai.
Alberto -‐ Eu não sabia que você tinha assinado essa promissória... é um absurdo.
Pellica -‐ Aproveita a reflexão filosófica e nos prepara um café, Enriqueta.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Ghella -‐ Não sei, eu falei “hum” e ele “hum!”. É melhor você voltar para a cama.
Alberto
-‐
...
não
seria
mais
conveniente
deixar
o
nosso
orgulho
de
lado
e
voltar
a
servir
ao
rei?
Pellica
-‐
Como
é
possível
agradar
alguém
cujo
maior
prazer
gastronômico
é
comer
rosquinhas?
Como
é
possível
agradar
alguém
cujo
segundo
maior
prazer
gastronômico
é
beber
chá?
De
camomila?
Pellica
-‐
A
guerra
civil
e
as
campanhas
internacionais
deste
país
são
um
problema
de
língua!
De
língua!
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Isabela
-‐
Estava
tendo
um
sonho
tão
bom,
meu
pai,
que
não
deu
vontade
de
acordar...
Ghella traz uma bacia de água para os pés de Pellica.
Alberto
-‐
Se
estamos
em
desacordo
com
a
política
do
rei,
por
que
não
nos
juntamos
ao
movimento
separatista?
Pellica
-‐
Uma
cabeça
fora
do
corpo
não
pensa.
Nem
come.
E
as
nossas
tortas
vendem
como
água...
apareceu
algum
freguês
hoje?
(Silêncio.)
Enriqueta,
o
balcão
está
vazio.
Enriqueta
volta
para
o
balcão,
seguida
de
Ghella.
Durante
o
discurso
de
Pellica,
Ghella
coçará
as
costas
de
Enriqueta
com
o
garfo
de
pau.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Alberto
-‐
Pellica,
com
a
guerra
a
população
mal
tem
dinheiro
para
comprar
pão...
quanto
mais
tortas.
Pellica
-‐
O
pai
dele
sim,
sabia
ser
rei...
vocês
se
lembram
do
banquete
de
comemoração
das
bodas
de
ouro?
Tarte
du
soleil,
royal
praliné,
noir
desir
e
gateau
basque.
A
duquesa
de
Truffaut
chorou
ao
provar
o
meu
gateau
basque!
E
Mellignon,
compositor
da
corte,
discursando
para
todos
que
comer
a
torta
era
ouvir
uma
sinfonia!
E
Catarina,
imperatriz
russa,
me
mandou
um
samovar
de
presente
após
o
banquete...
“Com
o
seu
chocolate
quente
eu
não
passaria
mais
frio,
monsieur
Pellica.”
“Aquece
o
espírito,
majestade...
e
a
boca.”
“É
como
descobrir
uma
nova
estrela.”
“A
descoberta
de
um
novo
chocolate
causa
mais
felicidade
ao
homem
do
que
a
descoberta
de
uma
nova
estrela,
majestade.”
(Isabela
passa
um
bilhete
escondido
para
Alberto.)
Se
apaixonou
por
mim,
pela
minha
obra,
la
meme
chose,
la
meme
chose...
vocês
se
lembram?
Ghella -‐ (Do balcão.) Tem farinha. Nós podemos fazer uma... farofa.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica
-‐
Eu
vi.
Você
lançou
um
olhar
reprovador
para
ele.
O
que
que
foi
que
você
fez,
Ghella?
Ghella
-‐
Nada,
a
minha
existência
é
reprovável
em
si,
senhor.
Eu
juro
que
não
fiz
nada.
A
culpa
é
da
população.
Isabela
-‐
Invadiram
o
quintal
à
noite,
pai.
Jogaram
um
maço
de
camomila
para
o
cachorro
dormir.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Ghella -‐ Vamos comer a galinha, então, ela ainda está gorda.
Ghella -‐ Misturando com a farinha, não vai ter barriga vazia.
Pellica
-‐
Ninguém
vai
comer
galinha
nenhuma.
A
partir
de
agora,
você
vai
guardá-‐la
no
porão.
Ghella -‐ No porão? Mas eu durmo lá, Pellica, a galinha cacareja a noite inteira...
Entra Grandegozzo.
Tempo.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Grandegozzo
-‐
É
verdade,
o
dia
não
está
muito
bom,
para
que
se
iludir?
(Pequena
pausa.)
É
sempre
melhor
se
iludir.
Pausa.
Grandegozzo
-‐
Che
nostalgia,
amici
miei!
L’inverno,
la
guerra,
la
fame
sono
ilusioni
della
mia
testa
malata!
Pellica -‐ Encontre uma cadeira para se sentar. Você chegou bem na hora do almoço.
Enriqueta -‐ Para certas cenas os atores nunca erram a deixa.
Grandegozzo
-‐
Falando
em
deixa,
Enriqueta,
senti
a
sua
maravilhosa
presença
ontem
na
platéia.
A
sua
gargalhada
inconfundível...
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Grandegozzo -‐ Uma das poucas coisas que ainda me desconcentra...
Grandegozzo
-‐
Traição!
Intriga!
Fracasso!
O
rei
suspendeu
o
subsídio
ao
teatro.
Ontem
foi
o
nosso
último
espetáculo.
Isabela -‐ Mas por quê? As comédias de Tarrine sempre agradaram tanto ao rei.
Grandegozzo
-‐
Quando
agradavam
a
toda
a
platéia.
O
abade
d’Ussey
não
gostou
nada
da
representação
de
um
frade
na
última
peça.
Pediu
uma
audiência
com
o
rei
e
kaput,
estamos
todos
no
meio
da
rua.
Grandegozzo -‐ Um frade de grande coração, mas sem vocação...
Enquanto
ele
fala,
um
foco
ilumina
Sterne,
com
roupa
de
padre,
colocando
uma
armadura,
por
cima
da
roupa.
Grandegozzo
-‐
...
depois
de
uma
crise
de
fé,
abandona
o
monastério
para
se
tornar
comediante.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Grandegozzo
-‐
Hmmm...
não
estou
vendo
a
Tedabara.
A
sua
mãe
ainda
não
voltou
de
viagem,
Alberto?
Alberto -‐ Nem sei se voltará tão cedo. Ela agora lê o futuro para a corte de Rouen.
Isabela
-‐
A
Tedabara
previu
o
incêndio
de
Lisboa
e
o
suicídio
do
barão
de
Westfall.
Os
nobres
de
Rouen
pagam
uma
fortuna
para
ela
ser
a
prestidigitadora
da
corte.
Grandegozzo
-‐
Eu
enviei
algumas
cartas
para
a
sua
mãe
quando
ela
ainda
estava
na
Armândia.
Será
que
ela
as
recebeu?
Isabela
-‐
Ela
quase
não
pára
por
aqui,
Grandegozzo.
Faz
três
anos
que
ela
viaja
sem
parar...
Grandegozzo -‐ É, que pena... hmmm, que fome... o que temos de almoço hoje?
Pausa.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Enriqueta
sai
e
volta
com
alguns
pratos.
Serve
o
resto
da
farinha,
colocando
um
prato
na
frente
de
cada
um.
Todos
vão
começar
a
comer.
Pellica
interrompe-‐os
com
um
sinal
e
tira
um
ramo
de
salsa
do
bolso.
Passa
o
ramo.
Todos
avançam
novamente
em
direção
aos
pratos,
Pellica
interrompe-‐os
mais
uma
vez.
Olha
para
a
imagem
de
São
Judas
e
começa
a
rezar.
Todos
rezam
baixinho.
Pellica -‐ (Sonolento.) Um homem... um homem vem nos salvar.
Pellica
desaba
a
cabeça,
de
sono.
Isabela
olha
para
Alberto.
A
luz
vai
se
fechando
sobre
Pellica
e
Grandegozzo,
sentado
ao
seu
lado.
Enriqueta
recolhe
os
pratos,
levando-‐os
até
o
fundo
da
cozinha.
Ghella
a
segue.
Grandegozzo
toca
algo
num
violino,
sonhoso.
Alberto
se
levanta
e
entra
na
despensa.
Faz
um
sinal
para
Isabela.
Ela
checa
se
o
pai
está
mesmo
dormindo,
segue
Alberto
e
fecha
a
porta
da
despensa.
O
balcão
e
a
despensa
são
levemente
iluminados.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Ghella -‐ Você ouviu muito bem, que estória é essa de gargalhada inconfundível?
Enriqueta
-‐
Você
não
quis
ir,
eu
fui.
Eu
não
tenho
culpa
se
a
minha
gargalhada
marca
as
pessoas.
Ghella
-‐
Você
me
convidou
para
espairecer.
Eu
tinha
que
cuidar
das
galinhas.
Ninguém
espairece
gargalhando
num
teatro,
Enriqueta.
Isabela -‐ Se o meu pai nos descobre aqui ele nos mata.
Alberto tira um papel do bolso e dá para Isabela ler.
Enriqueta
-‐
Você
não
é
meu
patrão
não,
sai
de
mim.
Já
me
basta
o
Pellica
e
a
filha
dele.
Agora
arruma
essa
calça,
compra
um
gibão,
vai
pentear
esse
cabelo.
Há
quanto
tempo
você
não
toma
banho?
Ghella
-‐
(Tirando
a
garrafa
de
vinho
da
roupa.)
Bem
que
você
gosta
do
meu
cheirinho
de
Ghella.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Alberto
-‐
Acho
que
chegou
o
momento
de
falarmos
com
o
seu
pai
sobre...
sobre
o
nosso
amor,
Isabela.
Quanto
mais
nós
adiamos...
mais
perigo
corremos.
Quem
sabe
ele
até
receba
essa
novidade
como
um
presente...
o
presente
de
um
coração
dilacerado,
pulsante
e
descontrolado.
Desculpa.
Alberto -‐ Às vezes eu me sinto um analfabeto falando de amor.
Alberto
-‐
Eu
tenho
medo
que
ele
prometa
a
sua
mão
a
outro
homem.
Bellone
a
tem
cortejado...
Isabela -‐ O meu maior medo é que ele impeça a nossa união por outro motivo...
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Alberto -‐ O nosso parentesco é muito mais distante do que o nosso amor...
Enriqueta
-‐
(Mostrando
um
vestido.)
O
que
que
você
acha?...
Eu
estou
costurando
para
o
carnaval
de
amanhã.
Só
falta
a
madrepérola
para
a
borda
da
saia.
Não
é
lindo?
Enriqueta -‐ (Colocando o vestido na frente do corpo.) Eu não pareço com ela?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Isabela -‐ (Empurrando Alberto.) Talvez seja melhor nós nos separarmos.
Alberto
-‐
Isabela,
o
que
eu
sinto
por
você
eu
nunca
senti
por
nenhuma
pessoa
no
mundo.
Isabela
-‐
O
nosso
mundo
tem
30
quilômetros
de
diâmetro.
Nós
nunca
saímos
desta
cidade.
O
amor
é
um
delírio.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Isabela
-‐
Falta
de
opção.
(Respira.)
Acho
melhor
nós
terminarmos
essa
estória
aqui.
Agora,
que
ainda
ninguém
se
matou.
Ghella -‐ A gente se ama, por que você não casa com eu?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Ghella
-‐
Então
me
diga
qual
é
o
nome
dessa
troca
de
olhares,
saliva,
fluidos,
cabelos,
segredos
e
loucura?
Ghella
-‐
Não
seja
cruel,
Enriqueta,
eu
te
divirto
e
te
faço
gritar.
Não
é
uma
combinação
tão
fácil
de
se
conseguir.
Enriqueta
-‐
Como
é
que
nós
podemos
casar,
Ghella?
Você
não
tem
nem
onde
cair
morto.
Ghella
-‐
É
por
isso
que
eu
não
morro,
minha
rainha.
Se
o
reino
está
em
depressão
econômica,
por
que
eu
não
estaria?
Eu
sou
o
criado
de
um
criado
de
um
criado
de
um
criado.
Mas
eu
não
vou
ser
um
Ghella
para
o
resto
da
vida...
eu
tenho
ambições,
eu
tenho
planos
para
ganhar
dinheiro.
Ghella -‐ Eu estou inventando algo que mudará o destino deste mundo.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Ghella -‐ Asas. Eu estou inventando asas para o homem voar...
Enriqueta -‐ É que eu estou inventando tetas para os homens ordenhá.
Enriqueta -‐ Os homens nunca vão voar, Ghella, isso é coisa para pássaros.
Ghella
-‐
O
corpo
de
um
homem
é
um
pássaro
sem
asas.
Eu
já
fiz
os
desenhos,
agora
é
só
zzzzz!
juntar
madeira,
cola
e
penas.
Depois,
subir
no
alto
de
uma
torre
e
lançar
a
minha
pessoa
no
céu.
Enriqueta -‐ Sei. Enquanto isso você poderia me conseguir algo bem mais urgente?
Ghella -‐ O mundo está aos seus pés, minha rainha, o que você deseja?
Enriqueta
-‐
Um
colar
de
madrepérolas.
Só
volte
a
falar
comigo
quando
me
trouxer
um
colar
de
madrepérolas.
Ghella -‐ O seu desejo é uma ordem. O que que é madrepérola mesmo?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Um
homem
vestido
de
soldado
adentra
o
balcão,
em
passos
rápidos.
Enriqueta
arremessa
Ghella
para
dentro
da
confeitaria.
Sterne -‐ Ah, sim, claro. Claro que (Olha para fora.) desejo, sim, claro.
Enriqueta
-‐
A
confeitaria
faz
tortas
de
morango,
frutas
silvestres,
laranja,
nata,
pão,
fubá...
mas
no
momento
nós
temos
um
pedaço
da
torta
de
chocolat,
feita
pelo
incrível
senhor
Pellica.
Ele
sai.
Enriqueta
olha
para
Isabela,
sem
entender.
Sterne
volta,
nervoso.
Ouvimos
um
rumor
próximo,
de
pessoas
falando.
Sterne
-‐
Chocolat.
Vocês
se
importam
de
eu
dar
uma
olhada?
Eu
gosto
de
ver
bem
de
perto
o
que
eu
vou
comer...
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Os
rumores
se
aproximam,
e
ouvimos
uma
voz:
“Acho
que
ele
entrou
ali.”
Sterne
adentra
a
confeitaria,
correndo.
Enriqueta
e
Isabela
vão
atrás
dele.
Grandegozzo
pára
de
tocar.
Pellica
acorda.
Sterne
olha
o
santo.
Sterne
-‐
Eu
sei
que
este
momento
exige
uma
explicação,
senhores,
mas
não
há
tempo.
É
uma
questão
de
vida
ou
morte.
Tem
alguma
saída
por
aqui?
Sterne -‐ Não, mas a minha cabeça vai rolar se me encontrarem aqui.
Ghella -‐ Uma cabeça fora do corpo não pensa. Nem come.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
O soldado ri.
Robert -‐ Me diz uma coisa, docinho azedinho, não entrou nenhum soldado por aqui?
Pellica -‐ O barril de vinho está vazio! O da esquerda, o da direita é de estrume!
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Robert -‐ Bem, Pellica, obrigado. Nós estamos precisando da sua ajuda /
Pellica -‐ Eu mandei um pão para Gerard, ele recebeu?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Sterne, procurando um lugar para se esconder, entra no barril.
Pellica -‐ Fica muito bom com geléia de maçã. Ótimo para o estômago.
Pellica
-‐
Mas
por
favor,
por
favor,
que
descortesia
da
minha
parte,
sente-‐se,
por
favor.
Aceitaria
um
pedaço
de
torta?
Enriqueta,
traga
a
torta
de
chocolate.
Você
deve
estar
morrendo
de
fome.
Robert
-‐
Vou
aceitar
um
pedaço
sim,
Pellica,
obrigado...
(Sentando-‐se.)
Recusar
uma
torta
sua
é
quase
um
pecado.
Pellica
-‐
Obrigado,
obrigado,
fico
honrado...
a
torta
está
no
ponto?
Enriqueta,
Ghella,
voilá:
tarte
au
chocolat
au
damasco!
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica
bate
palmas.
Grandegozzo
toca
uma
música.
Pellica
canta
a
opereta
do
“Chocolat
au
damasco”.
Ghella
começa
uma
pantomima,
que
Pellica
coreografou,
apresentando
a
torta.
Enriqueta
vem
dançando
com
o
pedaço
de
torta,
também
num
número.
Ela
serve
para
o
soldado
Robert.
Uma
luz
fecha
sobre
a
torta.
O
soldado
põe
um
pedaço
lentamente
na
boca.
Soldado
-‐
Senhor,
iluminai
as
almas
desse
mundo
e
os
pecados
pelo
qual
sofremos!
Eu
quero
uma
para
a
minha
mulher!
Ghella tira o prato. Bellone, que entrara durante a pantomima, bate palmas.
Bellone
-‐
Bravo!
Bravo!
Agora
eu
entendo
por
que
as
ruas
da
cidade
estão
tão
calmas...
se
bem
que
comer
uma
torta
de
Pellica
não
deixa
de
ser
uma
missão
perigosa.
Bom
dia.
O soldado ri.
Bellone
-‐
Ah,
sim,
muitas,
muitas...
(Olhando
para
Isabela.)
Mas
só
uma
pessoa
pode
me
ajudar
a
realizá-‐las.
O
coração
de
um
homem
apaixonado
é
um
músculo
forte,
mas
desacertado.
(Entrega
um
presente
para
Isabela,
cafona.)
Uma
pequena
lembrança
para
uma
deusa
na
forma...
presente,
corpórea,
diáfana...
de
deusa.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Bellone
-‐
Luneta
–
é
o
nome
desse
objeto.
Estou
exportando
agora...
serve
para
ver
as
estrelas...
enxergar
mais
longe...
novos
mundos,
Isabela.
Isabela -‐ Obrigado, mas eu só tenho problemas para ver de perto.
Bellone
-‐
Robert,
si
vous
plait,
peça
para
Richard
alimentar
os
cavalos,
e
esperar
o
meu
sinal.
Pellica -‐ O que é que você quer? A promissória só vence no domingo.
Bellone -‐ Calma, Pellica, não seja precipitado. Eu trago boas novas do rei.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Bellone
-‐
Nada
que
a
sua
curiosidade
não
possa
esperar.
Tratemos
antes
de
um
outro
assunto,
mais
urgente,
afinal
domingo
está
logo
aí...
Bellone
-‐
A
minha
graça
agora
é
conde
Bellone
de
Rimix
du
chateau
des’oieux,
mon
cher.
Bellone -‐ Conde Bellone de Rimix du chateau des´oieux, mon cher.
Pellica -‐ O que que você deseja, conde Bellone? Eu não vou lhe vender a confeitaria.
Bellone
-‐
A
confeitaria
é
sua,
Pellica.
Você
é
um
artista,
e
eu
sou
apenas
um
comerciante...
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Bellone
-‐
...
eu
não
privaria
a
população
e
a
corte
de
apreciarem
as
suas
maravilhas.
Se
você
continuar
a
produzi-‐las,
é
claro.
Pois
o
progresso
da
casa
tem
me
parecido
bastante
duvidoso...
Bellone
-‐
Guerra,
crise
econômica,
azar,
competição,
mudança
nos
astros,
perseguição.
Todo
fracasso
tem
a
sua
desculpa.
E
todo
fracassado
é
mestre
em
encontrá-‐la.
A
realidade
é
que
a
confeitaria
está
quebrada.
E
os
novos
horizontes
não
são
nada
promissores,
se
você
se
mantiver
tão
irredutível...
Bellone
-‐
Vamos
chamar
de
pedido.
Porque
é
um
pedido...
imagino
que
você
já
tenha
percebido
o
meu
encanto
por
Isabela,
desde
que
ela
era
uma
menina.
Com
todo
o
respeito,
mon
cher,
ela
é
a
sua
maior
criação...
Um
foco
ilumina
o
rosto
de
Isabela,
numa
moldura.
Durante
o
diálogo,
Alberto
entra
na
cozinha,
se
escondendo.
Bellone
-‐
O
tempo
está
passando,
meu
caro,
e
os
negócios
não
têm
mais
a
mesma
graça
de
antigamente.
Eu
estou
cansado,
com
o
espírito
pesado,
a
não
ser
quando
eu
venho
aqui
e
a
vejo.
Curioso,
não
é?
O
meu
pedido
é
pela
mão
de
Isabela.
Um
voto
de
felicidade
para
mim
e
para
ela,
pois
eu
não
medirei
esforços
em
fazê-‐la
a
mais
feliz
das
mulheres
do
reino.
Como
agradecimento,
e
parte
do
dote,
eu
esqueço
todas
as
dívidas
que
você
tem
para
comigo,
além
de
garantir
a
saúde
financeira
da
confeitaria.
Você
poderia
então
se
dedicar
totalmente
às
suas
criações...
Pellica -‐ Eu não posso decidir o destino da minha filha.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Bellone
-‐
Ela
é
sua
filha,
e
a
sua
palavra
é
o
seu
destino.
Eu
tenho
de
ir
a...
Veneza
semana
que
vem,
mas
antes
disso
gostaria
de
ter
essa
estória
resolvida.
(Passa
o
contrato
para
Pellica.)
O
que
você
me
diz?
Pequena pausa.
Richard, o mesmo ator que faz Robert, entra tocando uma corneta.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Richard
-‐
Decreto
real
número
4.437:
“Na
próxima
semana
será
comemorado
o
primeiro
ano
do
casamento
de
nossa
majestade!
O
rei
Pierre
estará
promovendo
um
concurso
de
tortas!
O
confeiteiro
que
fizer
a
melhor
torta
–
de
uma
receita
original...”
Richard
-‐
“...
ganhará
um
prêmio
de
100
moedas
de
ouro,
e
será
responsável
pelas
sobremesas
do
banquete
real.”
Bellone
-‐
O
suficiente
para
pagar
as
suas
dívidas,
sem
dúvida.
Mas
não
se
esqueça,
Pellica,
todas
as
confeitarias
do
reino
participarão.
O
rei
aposta
em
você,
assim
como
eu,
mas
Stronzenieux
tem
um
gosto
raro,
imprevisível.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Bellone
-‐
Na
hora
do
almoço,
não
se
preocupe.
Ser
rei
é
poder
ter
caprichos
súbitos
e
inadiáveis.
Adeus.
Pellica -‐ (Vendo que Bellone deixou uma moeda na sua mão.) Que moeda é essa?
Bellone -‐ A perna do seu São Judas. Está quebrada. Compre um novo.
Bellone -‐ Um santo quebrado não faz milagres, meu amigo.
Bellone -‐ (Vendo que Pellica deixou uma moeda na sua mão.) Que moeda é essa?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica -‐ Não se usa mais esse tipo de peruca nos salões. Demodé.
Ele
faz
uma
reverência
para
Pellica.
Passa
pelo
balcão
e
faz
uma
reverência
para
Isabela.
Todos
voltam
para
a
cozinha.
Silêncio.
Pellica
-‐
(Para
a
platéia.)
Três
xícaras
de
farinha
de
trigo,
duas
dúzias
de
ovos,
trezentos
gramas
de
chocolate,
duas
mãos
de
damasco,
uma
de
uva-‐passa,
sumo
de
laranja
e
açúcar.
(Ele
olha
para
o
santo.)
Só
um
milagre
pode
nos
salvar.
Blecaute.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Ato 2
A confeitaria. Noite.
Tedabara
está
sentada
numa
mesa.
Uma
duquesa
esquálida
está
sentada
num
penico,
suando.
A
despensa
da
confeitaria
é
levemente
iluminada,
onde
vemos
Sterne,
cabeça
para
fora
do
barril,
dormindo.
Vento.
O
vestido
de
Enriqueta
está
pendurado
na
parede
do
balcão.
Ela
dorme
sentada
na
cadeira.
A
luneta
está
apontada
para
uma
janela.
A
luz
da
lua
ilumina
o
lado
de
fora
da
confeitaria.
Grandegozzo
está
sentado
no
chão
da
rua.
Alberto
passa
por
Grandegozzo,
faz
um
sinal
para
ele,
entra
na
confeitaria,
pega
uma
receita
dentro
do
livro
A
divina
comédia.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
A
duquesa
dá
um
último
grito.
O
contra-‐regra
gótico
pega
o
penico
e
leva-‐o
até
Tedabara.
Tedabara -‐ Você quer que eu minta ou fale a verdade?
Duquesa -‐ A verdade, madame Tedabara. Ele tem outra, não é?
Tedabara
-‐
Eu
vejo
uma
mulher
no
seu
caminho,
madame
Refleieux,
e
não
é
a
sua
filha,
infelizmente
não
é
a
sua
filha.
Vê
esse
espécime
aqui,
longitudinal,
quebrado
ao
meio?
Ele
simboliza
o
seu
marido,
e
esse
aqui,
colado,
amolecido,
a
amante
do
seu
marido.
Ele
gosta
de
mulheres
magras
e
ossudas,
não
é?
(A
duquesa
balança
a
cabeça.)
Essas
pequeninas,
soltas,
representam
o
seu
casamento,
e
neste
exato
momento
o
seu
marido
está
com
ela,
em
algum
quarto
escondido
do
seu
castelo,
alguma
amiga
sua
que
faz
visitas
freqüentes;
você
tem
alguma
amiga
assim?
(A
duquesa
balança
a
cabeça.)
Mas
não
se
assuste,
ele
está
com
ela
mas
está
pensando
em
você
–
vê
como
elas
se
juntam
–,
ele
desconfia
que
você
está
tendo
um
caso
com
algum
fidalgo
da
região.
Você
tem
desejos
secretos
por
um
duque,
mas
nada
se
NOVASDRAMATURGIAS.COM
consumou,
nem
irá
se
consumar,
apenas
nos
seus
sonhos.
Esse
maior
é
o
seu
futuro...
o
que
é
isso,
você
comeu
espinafre?
Tedabara
-‐
O
seu
futuro
é
sólido
como
a
pedra
do
castelo.
Portanto,
nada
de
perguntas,
escândalos
ou
cenas
de
ciúme.
Tome
durante
uma
semana
esse
elixir
da
sedução,
assim
ele
se
esquecerá
da
outra,
e
vocês
em
breve
se
esquecerão
desse
tempestuoso
momento...
são
trinta
moedas
de
ouro.
E
dez
pelo
elixir.
Tedabara -‐ Muitas vezes o presente é mais incerto do que o futuro.
O
foco
das
duas
se
apaga.
Barulho
de
galinha.
Ghella
sai
do
porão,
ceroula
na
cabeça,
balançando
uma
gaiola.
A galinha grita.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Ghella
-‐
Isso
não
é
uma
questão
pessoal,
Marie.
Eu
gosto
de
você,
mas
eu
gosto
mais
de
mim.
É
a
lei
da
natureza.
O
mundo
tem
evoluído
assim
nos
últimos
milhões
de
anos.
O
leão
come
a
raposa,
a
raposa
come
o
cachorro,
o
cachorro
come
a
galinha,
a
galinha
come
o
milho
e
o
homem
come
todo
mundo...
foi
por
isso
que
nós
descemos
das
árvores:
fome.
O
meu
estômago
é
do
tamanho
do
mundo,
mas
ele
está
do
tamanho
de
uma
noz.
Vazia.
A
tragédia
é
que
amanhã
vai
ser
a
mesma
guerra,
o
safado
é
desmemoriado.
Não
adianta
a
minha
pessoa
falar:
“Fica
calmo,
se
lembra
de
ontem,
você
comeu
uma
galinha.”
“Que
galinha?
Olha
ali
uma
batata.”
O
safado
não
vai
se
lembrar
de
nada...
nem
você,
Marie,
o
que
torna
as
coisas
um
pouco
mais
suportáveis,
você
não
acha?
Ghella
olha
para
a
galinha.
Se
aproxima
dela
com
o
facão.
Música.
Ele
levanta
a
faca
no
ar.
Ouvimos
um
barulho
na
gaiola.
Ghella
olha
para
a
gaiola.
Tira
um
ovo
de
lá.
Segura
o
ovo
na
frente
dos
olhos.
Caminha
até
a
frente
do
palco,
atônito.
Faz
uma
cara
de
dor,
solta
um
peido
e
sai.
Sterne
sai
da
despensa
e
entra
na
cozinha,
sonolento.
Olha
em
volta.
Vê
o
resto
de
farinha
sobre
a
mesa
e
come
um
pouco.
Olha
para
a
galinha
e
levanta
a
gaiola
no
ar.
Pellica
desce
as
escadas.
Pellica
-‐
Duzentos
gramas
de
chocolate,
uma
mão
de
damasco...
o
que
que
você
está
fazendo?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pausa.
Sterne -‐ Você não acha essa gaiola muito pequena para uma galinha?
Pequena pausa.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica -‐ Nunca vi um padre vestindo uma malha de guerra.
Sterne -‐ É melhor eu ir embora, são tantas estórias para explicar. Obrigado, senhor...
Sterne
-‐
Prazer,
senhor
Pellica.
Obrigado
pela
hospitalidade,
mas
eu
devo
ir.
Se
por
acaso
o
exército
perguntar
por
mim,
por
favor,
diga
que
nunca
me
viu.
Pellica
-‐
Aonde
você
vai?
As
ruas
da
cidade
são
perigosas
a
essa
hora.
Há
patrulhas
por
todo
lugar.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica
-‐
Pode
esperar
aqui
até
o
amanhecer.
É
a
hora
da
troca
de
patrulha.
É
mais
fácil
de
se
esconder.
Pellica
oferece
uma
cadeira.
Sterne
vai
até
lá
e
se
senta.
Pellica
pega
o
prato
que
está
sobre
a
mesa
e
serve
o
resto
da
farinha.
Sterne
-‐
Deus
lhe
pague,
porque
eu
não
estou
podendo.
(Olhando
para
cima.)
Desculpa,
Senhor.
Pellica -‐ Eu sempre rezo essa prece antes de comer.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica
-‐
Nada,
padre.
Me
perdoe
por
tantas
perguntas,
mas
vivemos
em
tempos
estranhos.
Nem
é
sempre
fácil
saber
em
quem
confiar...
Sterne -‐ É verdade. Nem no que confiar... nem para que confiar.
Sterne -‐ Você está pensando no concurso de tortas do rei, não é?
Sterne -‐ Hoje em dia é difícil encontrar uma receita original.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica -‐ Desculpa, padre, mas como é que o senhor veio parar aqui?
Sterne
-‐
Acaso.
Eu
estava
fugindo
do
regimento
e
a
primeira
porta
da
rua
que
eu
vi,
entrei.
Todas
as
outras
portas
da
rua
estavam
fechadas.
Sterne -‐ Eu vou te causar muitos problemas se me encontrarem aqui?
Pellica
-‐
Não,
não,
é
que...
eu
estou
esperando
uma
pessoa.
Alguém...
muito
importante.
Pequena pausa.
Do
lado
de
fora,
na
rua,
Alberto
bebe
vinho
de
uma
garrafa.
Joga
uma
pedra
na
janela
do
quarto
de
Isabela.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica
-‐
Gateau
Soleil...
Pellica
Soleil.
Seria
impossível
não
vencer
o
concurso
com
essa
torta.
É
um
segredo
de
família.
Uma
obra-‐prima...
Pellica
-‐
Meu
bisavô
a
serviu
uma
única
vez,
para
o
príncipe
da
Hungria,
num
banquete
oferecido
pelo
nosso
falecido
rei,
Carlos
III.
A
torta
ficou
tão
magnífica,
tão
magnífica,
que
o
meu
bisavô
nunca
quis
repetir
a
receita.
Escondeu-‐a
dentro
de
um
livro,
e
colocou
na
prateleira
mais
alta
da
estante.
Outro
dia,
por
uma
sorte
do
acaso
eu
reencontrei
a
receita.
Estava
escondida
dentro
do
livro
A
divina
comédia,
de
Dante.
Sterne
-‐
“Quem
poderá
saber
onde
se
abre
o
monte,
em
trilha
mais
amena,
passível
de
ser
superada
(Junto
com
Pellica.)
por
quem
não
possua
asas...”
Pellica -‐ (Ao mesmo tempo.) “Por quem não possua asas.”
Alberto
joga
outra
pedra.
Ghella
levanta
o
alçapão
do
porão,
nota
que
os
dois
estão
lá
e
começa
a
ouvir
a
conversa,
escondido.
Pellica -‐ E por que você está fugindo do exército, padre?
Sterne
-‐
Eu
desertei.
Eu
sou
um
pacifista.
É
muito
difícil
ser
um
assassino
e
um
pacifista
ao
mesmo
tempo.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Sterne
-‐
Um
erro
de
alvo.
É
que
na
época
em
que
eu
entrei
para
o
exército
eu
estava
com
vontade
de
matar
pessoas.
Por
isso
eu
fugi
do
monastério.
Sterne
-‐
Erro
de
alvo.
É
um
sentimento
muito
comum
quando
você
está
em
desacordo
com
o
mundo.
Metade
dos
assassinatos
são
um
erro
de
alvo,
eu
acredito.
Você
é
humilhado
pelo
patrão
e
assassina
o
vizinho.
A
sua
mulher
some
com
o
amante
e
você
mata
a
sogra.
A
Coroa
aumenta
os
impostos
e
você
joga
pedras
num
comediante
ruim.
Brincadeira.
Sterne -‐ A ironia pode ser uma forma de fugir dos problemas, você não acha?
Pequena pausa.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica -‐ Eu estou muito interessado na sua estória, padre.
Pellica
-‐
Por
favor,
padre...
continue...
o
que
aconteceu?
Por
que
você
abandonou
o
sacerdócio?
Pequena pausa.
Sterne
-‐
Quando
eu
estava
no
monastério
eu
tive
uma
crise
de
fé.
Uma
visão...
uma
crise
de
fé
ou
uma
visão,
você
vai
me
perguntar.
Uma
visão
que
me
causou
uma
crise
de
fé.
Outro
paradoxo,
eu
sei,
mas
o
divino
se
revela
das
formas
mais
incompreensíveis...
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Sons
de
sino.
Um
foco
começa
a
iluminar
lentamente
uma
outra
área
do
palco.
Ouvimos
a
voz
de
Sterne.
Sterne
-‐
Eu
era
encarregado
de
tocar
o
sino
diariamente,
para
a
missa
das
cinco
horas.
O
campanário
ficava
numa
torre
de
40
metros,
e
a
escadaria
tinha
780
degraus.
O
foco
de
luz
revela
um
sino,
e
um
homem
–
representado
pelo
contra-‐regra
gótico
–
sob
ele.
Sterne
entra
no
foco.
Pausa.
Pausa.
Pausa.
Homem
-‐
Mas
você
não
vai
tocá-‐lo,
vai?
O
barulho
não
sai
mais
da
sua
cabeça,
não
é?
Você
não
quer
mais
tocar
o
sino.
Você
nem
consegue
mais
dormir
com
esse
zumbido.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Silêncio.
Homem
-‐
Eu
não
existo.
Você
sabe
disso.
Ele
também
não
existe.
Você
deve
partir.
Abandonar
o
monastério.
Olhe
o
mundo
à
nossa
frente.
Todo
instante
no
tempo
é
pleno
de
vida,
mas
também
de
morte.
Carregado,
como
a
pólvora
de
um
revólver
(Ouvimos
o
acorde
do
tema
da
arma.),
como
a
pólvora...
de
um
revólver...
o
milagre.
Sterne
vai
para
a
frente.
O
homem
desaparece
na
escuridão.
O
foco
vai
apagando
e
volta
a
luz
da
confeitaria.
A
musica
sai.
Sterne
-‐
Desapareceu.
São
Judas
aparece
para
mim,
para
dizer
que
não
existe.
Por
quê?
Pellica
-‐
Eu
também
sonhei
com
São
Judas,
padre,
e
ele
me
disse
que
um
homem
viria
em
breve,
para
salvar
a
confeitaria.
Um
homem
em
crise
de
fé.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Sterne -‐ Eu já tenho problemas demais. Não cabe mais nenhum na minha cabeça.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica -‐ Nós te salvamos do exército, padre Sterne, e você veio aqui para nos salvar...
Sterne
-‐
(Saindo.)
O
destino
é
uma
quimera
de
um
Deus
sonhador,
Pellica,
um
matémático
de
equações
perfeitas
e
incompreensíveis.
Sterne
-‐
A
verdade
está
no
centro
de
um
furacão,
e
o
mundo
é
o
que
roda
na
sua
fúria.
Pellica
-‐
Você
é
o
nosso
salvador,
Sterne.
Eu
nunca
acreditei
muito
em
Deus,
mas
há
um
mês
eu
venho
sonhando
com
São
Judas
/
Pellica
-‐
Por
favor,
fique!
Eu
sinto
que
algo
de
bom
vai
acontecer,
e
você
faz
parte
dessa
trama.
Madonna!
Fique
pelo
menos
até
amanhã.
Você
é
a
minha
única
esperança.
Depois...
seja
o
que
Deus
quiser.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Sterne -‐ Eu vou pensar. (Pequena pausa.) Eu vou dormir.
Sterne -‐ Não confie só em sonhos, Pellica... boa noite.
Ele
sai,
Pellica
sai
em
seguida.
Ghella
sai
do
porão,
inquieto,
segurando
o
ovo.
Alberto
entra.
Ghella peida.
Ghella -‐ Eu não comi nada e tô peidando sem parar.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Alberto -‐ Acho que você não devia comer esse ovo.
Ghella -‐ Acho que o meu estômago tá querendo comer o meu fígado.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Ghella
-‐
Vocês
não
sabem
o
que
aconteceu.
O
Pellica
hospedou
um
soldado
insano
que
diz
que
é
padre,
e
o
Pellica
acha
que
ele
é
um
enviado
de
São
Judas
que
veio
salvar
a
confeitaria.
Ghella
-‐
É
o
que
ele
diz.
E
antes
disso,
vocês
não
vão
acreditar
de
novo.
Eu
ia
matar
a
galinha
para
a
gente
comer,
ela
parou,
olhou
para
mim
e
colocou
um
ovo.
Ghella -‐ (Pisca o olho para Alberto.) Você também não vai dormir, não vai dormir?
Alberto -‐ Se a Isabela aparecer diga que eu estou lá fora.
Alberto sai.
Ghella -‐ Como é que você consegue dormir quando o nosso mundo está ruindo?
Enriqueta
-‐
Eu
estava
sonhando
que
estava
dançando
num
baile
da
corte....
eu
e
a
rainha
usávamos
o
mesmo
vestido...
você
estragou
tudo.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pequena pausa.
Enriqueta -‐ Me traga as madrepérolas que você entrará nos meus sonhos.
Pellica desce.
Tempo.
Pausa.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Alberto -‐ O amor é um furacão e nós estamos no meio da sua fúria.
Pausa.
Pellica vai até Alberto. Enfia-‐lhe um murro. Alberto cai sentado na cadeira.
Pellica
-‐
Se
eu
fosse
um
dramaturgo,
e
a
nossa
vida
fosse
uma
peça
de
teatro,
eu
tiraria
essa
cena
do
espetáculo.
Alberto -‐ A nossa vida não é uma peça de teatro, Pellica.
Pellica
-‐
A
nossa
vida
é
uma
peça
de
teatro,
Alberto.
Uma
peça
mal
escrita.
E
nós
somos
péssimos
atores.
E
o
cenário
está
caindo.
E
os
ratos
estão
roendo
os
nossos
figurinos.
Senta.
Pellica
-‐
Alberto,
isso
vai
passar...
é
comum
os
primos
se
apaixonarem
na
juventude...
eu
também
já
fui
apaixonado
por
uma
prima
na
juventude,
Jeanne
de
Maurois,
belos
olhos
negros
ela
tinha,
já
te
falei
dela?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica
-‐
Uma
tarde,
nós
estávamos
na
plantação
de
trigo
e
um
corvo
pousou
no
seu
ombro.
E
eu
pensei,
apaixonado:
“Como
combinam
esses
olhos
negros
com
o
corvo.”
E
ela
me
perguntou:
“O
que
você
está
pensando?”
E
eu
pensei:
“O
quê?”
E,
enquanto
eu
divagava,
o
corvo
a
atacou,
e
arrancou
o
seu
olho
esquerdo
com
o
bico
/
Pellica
-‐
Eu
também
já
fui
apaixonado
pela
minha
mãe
na
adolescência,
e
nem
por
isso
me
casei
com
ela!
Alberto -‐ Você está apaixonado é pela sua filha! Você é apaixonado por Isabela!
Alberto
-‐
A
sua
mulher
morreu
e
agora
você
quer
arrancar
os
olhos
daqueles
que
se
amam!
Você
é
o
corvo!
Pellica -‐ Tu ne vais jamais marrier ma fils! Jamais!
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pausa.
Alberto
-‐
É
a
confeitaria,
não
é?
Você
vai
trocar
a
felicidade
da
sua
filha
pelas
moedas
de
ouro
de
Bellone.
Você
vai
vender
a
sua
filha
para
não
fechar
essa
maldita
confeitaria.
É
só
pelo
dinheiro.
Pausa.
Alberto
-‐
Eu
sei
no
que
você
acredita,
Pellica.
Você
só
acredita
nessa
confeitaria
patética.
Você
só
acredita
em
tortinhas,
bolinhos,
pãezinhos,
rosquinhas.
O
país
está
em
guerra
e
você
passa
o
tempo
inteiro
sonhando
com
essas
receitas
ridículas.
Você
acha
que
alguém
se
importaria
se
essa
confeitaria
acabasse?
Pellica -‐ Provavelmente não, mas esse é o nosso ofício, a nossa arte.
Alberto -‐ Nós não somos artistas, nós somos meros confeiteiros.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica
-‐
“E
quem
poderá
saber
onde
se
abre
o
monte,
em
trilha
mais
amena,
passível
de
ser
superada
por
quem
não
possua
asas...”
Música. Blecaute.
Ato 3
A luz sobe na confeitaria. Pellica reza. Todos os personagens estão sentados. Pellica
pára de rezar e olha para o padre Sterne.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pausa.
Sterne
-‐
Quer
dizer,
sonhei.
Eu
sonhei
com...
com
o
mar.
Era...
no
meio
do
oceano...
logo
depois
de
um
maremoto.
Tinha
um
barco
ancorado
e...
a
âncora
estava
presa
a
alguma
coisa,
no
fundo.
Alguém
gritava...
eu
mergulhava...
a
âncora
estava
presa
ao
cadáver
de
um
bobo,
sorrindo.
Pelo
buraco
do
seu
olho
passava
um
peixe...
acho
que
eu
era
o
bobo.
Não,
eu
era
o
peixe.
Quer
dizer,
acho
que
eu
era
a
âncora.
Não,
eu
era
eu
mesmo...
não
confie
nos
meus
sonhos,
Pellica.
Grandegozzo
-‐
Signore
e
signori,
diretamente
do
castelo
de
Rouen,
das
estradas
da
fortuna,
das
intempéries
do
destino,
da
alcova
do
acaso,
ela,
a
senhora
dos
segredos,
a
mais
extraordinária
prestidigitadora
da
terra!...
Tedabara entra trazendo uma bagagem e sacos com todos os ingredientes.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Tedabara
-‐
(Lendo
a
receita
que
Alberto
tirou
do
livro.)
Três
xícaras
de
farinha
de
trigo,
duas
dúzias
de
ovos,
trezentos
gramas
de
chocolate,
damasco,
uva-‐passa,
laranja
e
açúcar...
por
favor,
peguem
as
minhas
malas!
Grandegozzo -‐ (Para Alberto.) Eu não disse que ela viria?
Enriqueta -‐ (Ajoelhando-‐se aos pés de Sterne.) Obrigado! Obrigado, padre!
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica-‐ Peguem a lenha, queimem uma cadeira, acendam o forno! Pellica Soleil!
Música.
Os
personagens
da
confeitaria,
atrás,
preparam
a
torta,
batendo
ovos,
passando
os
ingredientes,
cortando
frutas
e
chocolate,
numa
coreografia.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Alberto -‐ Às seis horas da tarde, na plantação de trigo.
Sterne
-‐
(Senta-‐se,
reflexivo.)
E
como
invocarei
o
meu
Deus
–
meu
Deus
e
meu
Senhor
–
se
ao
invocá-‐Lo,
O
invoco
sem
dúvida
dentro
de
mim?
Sterne
-‐
E
que
lugar
há
em
mim,
para
onde
venha
o
meu
Deus,
para
onde
possa
descer
o
Deus
que
“fez
o
céu
e
a
terra”?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Música continua.
Sterne
-‐
Pois
será
possível,
Senhor
meu
Deus,
que
se
oculte
em
mim
alguma
coisa
que
Vos
possa
conter?
Grandegozzo
dubla
uma
ópera
em
italiano.
Os
atores
colocam
a
torta
no
forno
e
continuam
a
coreografia,
limpanda
a
mesa.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Ato 4
O
contra-‐regra
gótico,
que
ajudou
indiretamente
na
feitura
da
torta,
projeta
a
rubrica
do
quarto
ato:
A
música
continua.
Os
personagens
vão
para
o
fundo
da
cena
e
colocam
alguns
adereços
de
carnaval.
Todos
saem,
menos
Pellica
e
Tedabara.
Pellica sentado na mesa, ansioso. Tedabara olha para ele. A música sai.
Pellica
-‐
O
crítico
já
deve
estar
experimentando
as
tortas,
então...
obrigado
por
ter
trazido
os
ingredientes,
Tedabara.
Tedabara o encara.
Tedabara
-‐
Eu
comi
um
pouco
do
chocolate
do
recheio
da
torta.
(Andando
na
direção
dele.)
E
antes
de
sair
do
castelo
o
conde
estava
dando
um
festim...
(Lasciva.)
Poisson
d’angolous,
carbet
avec
fantui,
masbat
du
relet,
jeant
rascaux
aux
letage.
(Ela
pára
na
frente
dele.)
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Tedabara -‐ Eu sou que nem você, Pellica, as refeições nunca me cansam.
Pellica
-‐
Não
quer
dormir
um
pouco?
Quer
um
copo
d’água?
(Levanta-‐se.)
Eu
estou
com
uma
/
Tedabara
-‐
Um
pouco
mais
amargo,
mas
no
fundo
ainda
tem
um
sabor
doce...
você
me
esqueceu,
não
é?
Os
homens
têm
a
memória
afetiva
de
uma
porta...
Eu
fiz
tudo
para
te
esquecer,
sabia?
Todas
as
mandingas,
simpatias,
rezas,
promessas.
Às
vezes
eu
conseguia
esquecer
o
seu
rosto,
então
a
sua
risada
me
invadia
os
ouvidos:
rá,
rá,
rá.
E
quando
conseguia
me
esquecer
da
sua
voz,
me
deparava
com
algum
homem
assim
na
corte:
charmoso
e
gordinho,
alegre
e
melancólico,
tímido
e
voraz.
E
olhava
para
eles
e
só
via
você.
E
pensava:
“Ah,
Pellica,
que
mal
eu
lhe
fiz?”
Pellica -‐ Muitas vezes é a única saída. Você sabe bem disso.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Tedabara
-‐
Você
acha
que
alguém
suporta
tamanha
rejeição,
tamanho
desprezo...
Eu
estava
cansada,
Pellica,
cansada
de
ser
tratada
como
uma
cunhada.
Tedabara
-‐
Isso
é
só
um
detalhe,
diante
da
dimensão...
do
meu
amor.
Eu
sempre
te
amei.
Antes
mesmo
dela.
Pellica -‐ Por favor, Tedabara, vamos respeitar um pouco a memória da sua irmã!
Tedabara
-‐
Nós
já
a
desrespeitamos,
há
muito
tempo.
Meu
Deus,
como
você
é
melodramático!
Ela
já
morreu
há
dezoito
anos!
Tedabara -‐ Ninguém vai ouvir. Ninguém ouve mais nada hoje em dia...
Pellica volta.
Pellica
-‐
Você
quer
que
eu
peça
perdão?
Que
eu
chore?
Que
eu
sinta
culpa
por
você
ter
ido
embora?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica
-‐
Sabe
por
que
eu
não
sinto
culpa
nenhuma?
Porque
você
é
uma
louca.
Uma
louca
descontrolada
possessiva
e
perigosa.
Uma
ciumenta
desmedida
controladora
obsessiva
e
autoritária.
Você
se
esqueceu
de
tudo
que
fez?
O
problema
não
é
o
meu
amor
por
Francesca,
Tedabara,
mas
a
sua
pessoa...
em
si.
Tedabara -‐ Eu não fiz nada de tão horrível assim.
Pellica -‐ Não... mas depois daquela noite daquele fatídico mês /
Pellica
-‐
Depois
daquele
fatídico
mês
você
resolveu
na
sua
cabeça
que
eu
era
o
seu
prisioneiro.
Me
vigiava
vinte
quatro
horas
por
dia.
Escutava
as
minhas
conversas,
abria
as
minhas
cartas,
controlava
o
meu
humor.
Queria
decidir
a
roupa
que
eu
ia
vestir,
o
meu
penteado,
a
organização
das
minhas
panelas
e
até
na
receita
das
tortas
você
metia
o
bico.
E
você
não
sabe
cozinhar
nem
um
ovo!
Pellica
-‐
Fora
esse
maldita
copromancia,
querendo
saber
se
eu
amava
você
pela
merda,
se
eu
ia
trair
você
pela
merda,
se
ia
chover
ou
fazer
sol
pela
merda,
se
era
melhor
tirar
a
torta
do
forno
ou
não
pela
merda!
E
tudo
isso
na
minha
mesa
de
trabalho!
Pellica
-‐
Isso
é
a
base
do
casamento!
O
lugar
onde
a
pessoa
se
coloca
dentro
da
casa
é
a
base
do
casamento!...
Tedabara,
eu
reconheço,
você
é
muito
importante
para
mim.
Nós
tivemos
um
romance
maravilhoso
/
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica
-‐
Todo
mundo
é
meio
analfabeto
falando
de
amor.
(Respira.)
Eu
já
te
amei.
Quer
dizer,
eu
te
amo.
Mas
eu
não
te
amo.
Não
é
uma
questão
de
amar,
é
uma
questão
de
sanidade
mental.
Nós
não
conseguimos
viver
juntos
/
Pellica -‐ Você é irmã de Francesca, eu nunca a esqueci. E... e Alberto...
Pellica
-‐
Como
assim
o
que
tem
Alberto?
Alberto
está
apaixonado
por
Isabela.
Eles
querem
se
casar!
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Tedabara gargalha.
Tedabara
-‐
Dez
meses.
E
você
não
estava
lá,
você
não
pode
saber.
Ele
saiu
de
dentro
da
minha
barriga,
egocêntrico!
Tedabara
-‐
Raulino
morreu
queimado
no
incêndio
de
Lisboa,
você
sabe
muito
bem
disso.
Pare
de
me
torturar,
Pellica...
Pellica -‐ Alberto e Isabela não vão se casar! A confeitaria está em jogo, Tedabara /
Tedabara
-‐
A
sua
vida
é
muito
maior
que
a
essa
padaria
rococó!
Nós
vamos
ganhar
o
concurso,
eu
vi
no
jogo!
Tedabara
-‐
Como
é
que
você
pode
acreditar
num
soldado
que
diz
que
é
padre
e
não
acreditar
em
mim!?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Tedabara
-‐
Pára
de
rezar,
pelo
amor
de
Deus!!!
Você
realmente
acha
que
Ele
está
preocupado
com
você?!
O
mundo
está
praticamente
acabando
e
você
acha
que
Ele
está
preocupado
com
as
suas
tortinhas?!
Grandegozzo entra.
Tedabara
-‐
Finalmente
um
sopro
de
cavalheirismo
no
meio
da
barbárie.
Não
sei
por
que
me
chamaram
aqui.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica
olha
os
dois,
incrédulo,
e
vai
até
a
porta.
Grandegozzo
puxa
Tedabara
num
canto.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Grandegozzo
-‐
Vamos
comemorar,
Tedabara.
Rememorar
os
louros
de
uma
época
gloriosa.
Vamos
passear
pelas
coxias
do
teatro.
Grandegozzo
-‐
Anch’io!
Eu
já
fui
rei,
bispo,
nobre,
doutor
e
agora
não
sou
mais
nada.
Só
me
restam
os
meus
pobres
sentimentos.
Um
ator
sem
palco!
Um
homem
sem
chão!
Eu
vivo
apenas
na
memória
dos
espectadores!
Grandegozzo
-‐
(Melodramático.)
Não
diga
nada!
Não
me
magoe
mais!
Eu
sei
que
você
ainda
ama
Pellica,
mas
sei
também
que
você
já
me
amou,
e
se
me
amou
é
porque
ainda
pode
me
amar
novamente.
Tedabara -‐ Não seja trágico, que você me faz rir.
Grandegozzo -‐ Debaixo desta máscara cômica está represado um mar de tristeza.
Alberto -‐ Hoje à tarde, às cinco horas, na plantação de trigo. Eu já combinei com ele.
Grandegozzo
-‐
Nós
três
nos
amamos
como
amigos,
irmãos
e
amantes
há
vinte
anos.
Não
é
incrível?
E
nunca
conseguimos
ser
felizes.
Será
que
não
deveríamos
realizar
um
matrimônio
a
três?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
A
luz
da
confeitaria
diminui.
A
rua
é
iluminada.
Ouvimos
uma
marchinha
de
carnaval
ao
fundo.
Alberto -‐ Ele é um padre. Tem que executar o santo matrimônio.
Isabela
-‐
Ele
não
parece
um
padre.
Você
reparou
nele
dançando
no
carnaval?
Era
o
mais
animado.
Alberto -‐ Ele me disse que era monge no mosteiro de São Judas.
Isabela -‐ E ele aceitou, mesmo sabendo que será contra a vontade de meu pai?
Alberto
-‐
Ele
relutou,
mas
eu
o
convenci
com
a
nossa
estória.
Ele
acabou
concordando
que
o
que
importa
numa
união
sacramentada
é
o
amor....
Vai,
vai,
entra
você
primeiro,
para
o
Pellica
não
achar
que
nós
estamos
tramando
alguma
coisa.
Alberto -‐ Ele fica nervoso é com a sua ausência. Vai, entra!
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Isabela -‐ Eu também, desculpa. Vamos esquecer isso. Eu te amo.
Isabela -‐ Eu te amo muito mais do que você me ama.
Isabela -‐ Não é uma questão de tempo, mas de intensidade!
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Isabela
entra
rapidamente
na
confeitaria.
Alberto
bebe.
Sterne
chega
cantarolando
baixinho.
Sterne -‐ Que música. Que folia. Estava precisando me divertir, sabe?
Alberto -‐ O meu casamento com Isabela. Nós queremos você para celebrá-‐lo.
Sterne
-‐
Meu
filho,
eu
não
posso
celebrar
um
casamento
sem
o
consentimento
do
pai
da
noiva.
É
contra
as
normas
da
Igreja.
E
eu
nem
sei
se
eu
ainda
sou
um
padre.
Alberto -‐ Você é um padre. Você é o nosso salvador. O Pellica rezou pela sua vinda.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Alberto
-‐
Você
vai
nos
casar,
padre.
(Tira
uma
garrucha
e
aponta
para
ele.
Toca
o
acorde
da
arma.)
Alberto
-‐
Deus
é
uma
quimera
do
homem,
um
matemático
de
equações
imperfeitas
e
compreensíveis.
Alberto -‐ Quando alguém grita o nome de Deus eu já coloco a minha armadura.
Alberto -‐ Não. Se você não nos casar eu te entrego para o exército.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Sterne -‐ Muitas atrocidades já foram cometidas em nome do amor.
Alberto
-‐
Muitas
atrocidades
também
já
foram
cometidas
em
nome
de
Deus.
Não
é
o
momento
de
discutir
o
que
mata
mais
neste
mundo.
Nós
ficaríamos
dias
aqui,
e
provavelmente
nos
mataríamos
no
final
da
discussão.
Às
cinco
horas,
na
plantação
de
trigo.
Alberto
aponta-‐lhe
a
arma
e
Sterne
entra
na
confeitaria.
Alberto
vai
atrás.
Ghella
e
Enriqueta
descem
a
rua.
Ghella -‐ Para que você quer tanto esse tal de “mar de pérola”? Você já é linda assim.
Ghella
-‐
Você
já
tem
toda
a
boniteza
do
mundo,
Enriqueta.
Você
não
precisa
de
mais
nada...
você
é
o
que
você
é.
Ghella -‐ Não, você se parece com o que você é.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Ghella -‐ Você tem o que você tem, mas o que você tem é o que você é.
Enriqueta
-‐
Mas
e
se
você
não
tem
o
que
você
quer
ter,
você
vai
ser
o
que
você
quer
ser?
Ghella
-‐
E
se
você
não
é
o
que
você
quer
ser,
e
você
não
tem
o
que
você
quer
ter,
e
você
já
vai
ser
o
que
você
já
é,
melhor
do
que
o
que
você
quer
ser,
sem
precisar
ter
nem
perder,
com
o
que
que
é
que
você
se
parece?
Ghella
-‐
Eu
sou
eu.
Você
é
você.
Concorda?
Mas
eu
só
sou
eu
se
eu
sou
eu
com
você
e
você
só
é
você
se
você
é
você
com
eu.
Concorda?
Enriqueta
-‐
Quase.
Eu
sou
eu.
Você
é
você.
Mas
você
só
é
você
com
eu
se
for
você,
eu
e
as
madrepérolas,
entendeu?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Ghella
-‐
Não
sei,
me
apeguei
a
ele.
(Meio
melodramático.)
Eu
acho
que
esse
ovo
não
é
só
um
ovo,
entendeu?
Ghella
-‐
Robert
estava
na
confeitaria
de
Pierre
entregando
a
“crítica”
da
torta.
O
que
que
é
crítica
mesmo?
Pellica
-‐
Crítica
é
a
opinião
de
um
especialista
de
um
assunto
sobre
esse
determinado
assunto.
O
trabalho
do
crítico
é
avaliar
a
obra
em
questão,
e
indicar
ao
público
se
a
coisa
é
boa
ou
não,
se
é
uma
obra
de
arte
ou
não.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Ghella -‐ Ah... como é que se faz para ser isso?
Richard entra na confeitaria tocando a sua corneta. Sterne se esconde na despensa.
Richard
-‐
Caro
senhor
Pellica,
representando
a
casa
real
de
Charles
V,
venho
através
desta
crítica...
Pellica pega a crítica da mão dele. Todos se ajeitam ao redor da mesa.
Pellica
-‐
“Sinfonia
em
fuga
de
um
desastre
em
potencial.
A
obra
do
senhor
Pellica
pode
ser
comparada
a
uma
sinfonia,
como
já
foi
definido
por
um
excelentíssimo
duque
de
nossa
corte.
Cada
ingrediente
da
obra
se
torna
a
expressão
original
de
um
instrumento,
de
som
e
valor
único,
configurando
um
conjunto
‘tortífico’
que
ressoa
como
uma
sinfonia.
(Eles
se
olham.)
Todavia,
em
Pellica
Soleil,
o
que
era
harmonioso
malogra
tal
qual
um
assobio
mudo,
de
inaudível
termo,
se
a
grandiloqüência
era
o
que
se
esperava
do
artífice,
onde
o
volátil
sobrepõe-‐se
ao
useiro.
(Eles
se
olham.)
Palmas
costumares
para
Pellica.”
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica -‐ Bellone! O que esse crítico quer dizer com isso?
Bellone
-‐
Não
sei,
não
sei,
a
crítica
também
pode
ser
uma
obra
aberta,
uma
obra
de
arte...
Bellone
-‐
O
resultado
já
está
decidido,
meus
amigos,
lacrado
dentro
desta
carta...
o
rei
me
pediu
para
vir
aqui
pessoalmente
para
vos
dar
o
resultado
do
concurso.
Tedabara -‐ Nós vamos ganhar o concurso, eu li no jogo!
Ghella -‐ Pode ler o meu futuro, Tedabara? Eu tô tão precisado.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Bellone -‐ (Abrindo um papel.) “Representando a real casa de Carlos V...”
Bellone
-‐
Ça
va.
“Em
quarto
lugar,
com
a
torta
La
Coberture
Foule,
a
vencedora
é...
a
confeitaria
de
Pinhon.”
Eles comemoram.
Bellone
–
“Em
terceiro
lugar,
com
a
torta
Le
Caldeau
Rouge,
a
vencedora
é...
a
confeitaria
de
Rineux.”
Eles comemoram.
Bellone
–
“E
em
segundo
lugar,
com
a
torta
Pellica
Soleil,
a
vencedora
é...
a
confeitaria
do
sr.
Pellica...”
Parabéns.
Silêncio.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Música
dramática.
Sterne,
nervoso,
se
esconde
dentro
do
barril,
o
de
merda,
desta
vez.
Alberto
mata
o
vinho
da
garrafa.
Voltam
a
falar
ao
mesmo
tempo.
Ritmo.
Alberto
perde
o
equilíbrio
e
derruba
o
santo.
O
contra-‐regra
gótico
sai
do
seu
lugar
e
atravessa
o
palco,
pelo
canto,
entrando
na
coxia.
Isabela se dirige até a despensa. Fala no ouvido de Sterne.
Bellone -‐ A confeitaria de Pierre, com a torta Le Gateau Imprevisible...
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Alberto -‐ Eles são os primeiros a fugir, e depois roem as cordas!
Pellica
-‐
Pierre
é
o
confeiteiro
mais
medíocre
do
reino!
Eu...
eu
exijo
uma
audiência
com
o
rei!
Bellone
-‐
Nós
precisamos
resolver
aquele
assunto.
A
minha
viagem
foi
antecipada
para
amanhã
de
manhã.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Bellone
-‐
(Tirando
uma
garrucha
da
casaca.)
Ela
é
muito
jovem,
ainda
não
sabe
o
que
ama.
Isabela
-‐
Boa
tarde,
meu
nome
é
Isabela,
eu
sou
muito
jovem
e
dizem
que
eu
não
sei
o
que
amo.
Bellone
-‐
Isabela...
eu
pedi...
eu
sei
que...
vós
ainda...
não
há
nada...
o
coração
é
um
músculo
forte,
mas
descontrolado.
Eu
vos
farei
a
mulher
mais
feliz
do
reino.
Pellica olha para ela e depois para Alberto, que abaixa a arma.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Sterne -‐ Todo instante é carregado como a pólvora de um revólver.
Enriqueta
-‐
(Apontando
para
a
roupa
de
Bellone.)
Aquilo
ali
que
é
madrepérola,
Ghella.
Bellone -‐ O duelo parece inevitável. Hoje à noite, às sete horas.
Alberto -‐ (Trêbado.) Por que você fez isso, Pellica? Por quê?
Pellica -‐ (Subindo o tom.) Você não sabe?... Você não sabe?!
Pellica
-‐
Olhe
para
você!
Olhe
para
mim!
Olhe
para
você!
Olhe
para
mim!
Você
é
meu
filho,
Alberto!
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Alberto
-‐
Esse
golpe
de
teatro
é
velho,
Pellica.
Nós
não
estamos
numa
peça
de
Molière.
Pellica -‐ Infelizmente. Pelo menos poderíamos ter a esperança de um final feliz.
Alberto olha para ele, ri e sai. Pellica vai atrás dele.
Ghella e Bellone ficam em cena. Ghella observa a madrepérola na roupa de Bellone.
Bellone -‐ A imagem de um navio naufragando é sempre de uma beleza pertubadora...
Ghella pega uma faca que está sobre a mesa. Bellone olha para Ghella, que dissimula.
Ghella
-‐
Desculpa
a
pergunta,
senhor
conde
Bellone,
mas
vós
estás,
esteis,
estais
usando
uma
vestimenta
com
madrepérola
na
borda
da
gola?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pausa.
Ghella
-‐
Desculpa
a
pergunta
novamente,
senhor
conde
Bellone,
mas
já
que
estamos
falando
sobre
negócios,
vós
não
estarias,
is,
eis
interessados
em
investires
num
projeto
altamente
lucrativo?
Ghella -‐ Asas. Eu estou inventando asas para o homem voar.
Ghella
-‐
Bom,
a
pessoa
que
quer
voar
compra
as
asas
da
gente,
nós
vendemos,
e
ela
voa
pelo
céu...
muita
gente
quer
voar.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Bellone -‐ Se as asas não funcionarem o comprador cai do céu e morre.
Ghella
-‐
(Contrariado.)
Claro,
claro...
uma
última
coisa,
senhor
conde
Bellone,
eu
também
tenho
uma
outra
invenção,
muito
prática,
altamente
lucrativa,
pouco
poética
e
sem
risco
de
vida.
Não
estarias...
estaríeis
interessado
em
conhecer?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Bellone
acende
outro
cigarro
e
anda
em
direção
à
escada.
Ghella
vai
atrás
com
uma
faca,
tentando
cortar
a
borda
da
gola
de
Bellone.
Ghella
-‐
A
matéria-‐prima
é
simples
e
vem
diretamente
da
natureza:
o
ganso.
É
só
pegar
um
ganso,
um
ganso
bem
emplumado,
e
manter
a
cabeça
dele
entre
as
pernas.
E
pode
acreditar,
senhor
conde
Bellone,
palavra
de
honra,
a
gente
sente
no
olho
do
cu
uma
volúpia
mirífica...
Pellica -‐ Nem na merda nem nas palavras do santo... onde está ela?
Ghella -‐ ...a qual facilmente é comunicada ao cano de cagação e a outros intestinos...
Pellica -‐ É que a Isabela fugiu. Eles devem ter ido ao palácio do rei.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica
-‐
“Quem
poderá
saber
onde
se
abre
o
monte,
em
trilha
mais
amena,
passível
de
ser
superada
por
quem
não
possua
asas?”
Os três saem.
Alberto entra.
Ele bebe.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Blecaute.
Tempo.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Tempo.
Sterne
-‐
Eu
desconfio
dessas
palavras
que
nos
trazem
grande
sofrimento.
Amor...
Deus...
destino.
Just
words.
Sterne
-‐
Metade
inglês,
metade
francês....
minha
mãe
era
católica
e
o
meu
pai
protestante.
Eu
nasci
no
canal
da
Mancha.
Na
travessia.
Pequena pausa.
Pequena pausa.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Tempo.
Ela sai.
Vento.
A confeitaria.
Enriqueta
-‐
“Senhoras
e
senhores,
o
jantar
já
será
servido.
No
menu
principal
nós
oferemos...
ele
mesmo...
lui
même...
o
conde
Pelliquinha
em
si!”
Alberto ri.
Alberto -‐ Você quer que eu minta ou fale a verdade?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Alberto -‐ Você é, Enriqueta. Você é uma espécie de rainha...
Ele ri.
Enriqueta -‐ Quer ir para a guilhotina? Beija os meus pés.
O
contra-‐regra
gótico
vem
da
coxia
segurando
uma
moldura
antiga,
e
enquadra
os
pés
de
Enriqueta.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Alberto
tira
a
parte
de
cima
da
roupa
de
Enriqueta.
Se
deitam
sobre
a
mesa.
Ele
beija-‐
lhe
os
seios.
Isabela
entra.
O
contra-‐regra
coloca
a
moldura
na
frente
do
rosto
de
Isabela,
expressão
de
dor.
Um
outro
foco
acende
sobre
Pellica.
Isabela sai. O contra-‐regra gótico liga uma TV velha na coxia, fora do ar. Ruído.
Um
outro
foco
acende
sobre
Grandegozzo
e
Tedabara,
que
olham
para
o
urdimento
do
teatro.
Grandegozzo
-‐
Milhões
de
figurinos...
eles
são
guardados
lá
em
cima,
em
caixas.
Uma
vez
por
mês,
eu
coloco
no
sol,
para
arejar.
Se
não
cuidar
muito
bem
eles
são
destruídos
por
traças,
mofo
e
poeira...
o
tempo.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica
-‐
(Olhando
para
a
frente.)
Nem
nas
palavras
sagradas
do
santo
nem
nas
mãos
do
homem...
Pellica -‐ Elas brilham tão longe que parece que não existem.
Foco sobre Ghella atravessando o fundo do palco lentamente, colocando as asas.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica -‐ Um dia não haverá mais estrelas, só lunetas.
Música.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Ato 5
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Isabela
olha
para
Enriqueta.
Enriqueta
olha
para
Alberto.
Alberto
olha
para
Sterne.
Enriqueta
se
levanta.
Isabela
dá
um
tapa
nela.
Enriqueta
se
senta.
Isabela -‐ Você bebe muito desde que nasceu. Você é um alcoólatra.
Isabela
-‐
Eu
proponho
um
jogo:
o
jogo
do
perdão.
Afinal,
somos
todos
cristãos.
Eu
vou
te
fazer
uma
pergunta
e
dependendo
do
que
você
responder
nós
ficaremos
juntos
ou
então
nos
separaremos
para
sempre.
O
desafio
é
que
você
vai
jogar
no
escuro.
Quer
jogar?
Isabela -‐ Se eu te perdoar pelo que você fez, você me perdoa pelo que eu fiz?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Isabela
-‐
Já
começou
perdendo,
não
vai
ter
outra
chance...
se
eu
te
perdoar
pelo
que
você
fez,
você
me
perdoa
pelo
que
eu
fiz?
Alberto
tenta
dar
um
soco
em
Sterne
mas
erra
o
alvo.
Enriqueta
se
levanta
e
recebe
um
tapa
de
Isabela.
Enriqueta
se
senta
novamente.
Isabela -‐ (Para Enriqueta.) Eu não vou te perdoar nunca. Mas eu amo você.
Enriqueta -‐ Eu também amo você. (Dá um tapa em Isabela.)
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Isabela -‐ Deixa de ser imaturo. Cala a boca e vamos nos casar.
Isabela
-‐
Shhhh!
Shhhh!
Nós
estamos
conversando
há
anos.
As
nossas
palavras
são
velhas
e
vazias.
Hoje
eu
descobri
muito
mais
sobre
você
e
sobre
mim
do
que
em
todos
os
livros
que
nós
lemos
juntos.
Isabela
-‐
Eu
odeio
poesia.
Eu
vou
queimar
tudo.
Você
é
jovem,
travado,
repetitivo,
medroso
e
meloso,
Alberto.
Isabela -‐ Claro que sim. Eu sou igual a você. Nós vamos mudar. Juntos.
Alberto
-‐
Como
é
que
você
pode
fazer
amor
com
o
padre
e
depois
querer
casar
comigo?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Enriqueta
-‐
Nós
estamos
em
pleno
século
18
e
vocês
ainda
acreditam
em
casamento?
Isabela
puxa
Alberto
e
os
dois
se
ajoelham
no
chão,
na
frente
da
imagem
do
santo.
Sterne
se
coloca
atrás
da
mesa,
na
frente
deles.
Sterne
-‐
Como
é
que
era
mesmo?
“Estamos
aqui
reunidos,
na
santa
casa
de
Deus”,
não,
não...
“Todo
animal
ama
o
seu
semelhante;
assim
também
todo
homem
ama
o
seu
próximo.Toda
carne
se
une
à
que
se
assemelha,
e
todo
homem
se
une
com
o
seu
semelhante”
/
Sterne
-‐
“Eu,
Isabela,
aceito
você,
Alberto,
como
meu
marido
e
juro
diante
de
Deus
e
destas...
desta
testemunha
amá-‐lo
e
ser-‐lhe
fiel...”
Isabela
-‐
Eu,
Isabela,
aceito
você,
Alberto,
como
meu
esposo
e
juro
diante
de
Deus
e
desta
testemunha
amá-‐lo
e
ser-‐lhe
fiel...
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Sterne
-‐
“Na
riqueza
e
na
pobreza,
na
alegria
e
na
tristeza,
na
saúde
e
na
doença,
até
que
a
morte
nos
separe.”
Isabela
-‐
Na
riqueza
e
na
pobreza,
na
alegria
e
na
tristeza,
na
saúde
e
na
doença,
até
que
a
morte
nos
separe.
Sterne -‐ (Rápido.) “...como minha esposa e juro diante de Deus e desta testemunha...”
Alberto -‐ (Rápido.) ...como minha esposa e juro diante de Deus e desta testemunha...
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Sterne
-‐
(Muito
rápido.)
“...amá-‐la
e
ser-‐lhe
fiel
na
riqueza
e
na
pobreza,
na
alegria
e
na
tristeza,
na
saúde
e
na
doença,
até
que
a
morte
nos
separe.”
Alberto
-‐
(Muito
rápido.)
...amá-‐la
e
ser-‐lhe
fiel
na
riqueza
e
na
pobreza,
na
alegria
e
na
tristeza,
na
saúde
e
na
doença,
até
que
a
morte
nos
separe.
Sterne
-‐
“E
eu
vos
declaro
marido
e
mulher.
Que
aqueles
que
Deus
juntou
o
homem
não
separe!”
Pellica
-‐
Isabela,
você
e
o
Alberto...
vocês
não
podem
se
casar...
vocês...
vocês
são
irmãos!
Música dramática.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica -‐ Isabela, eu e a Tedabara tivemos um caso... dezoito anos atrás...
Isabela -‐ Como é que vocês podem esconder uma coisa dessas?
Tedabara
-‐
Fraqueza.
Insegurança.
Culpa.
Foi
um
pecado
terrível,
eu
sei,
mas
é
perdoável,
não
é,
padre?
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Teadbara
-‐
Eu
e
seu
pai
tivemos
um
caso,
mas...
Alberto
não
é
filho
nem
de
Raulino,
nem
de
Pellica.
Tedabara
-‐
Alberto
é
filho
de...
ai,
meu
Deus,
como
é
que
eu
vou
colocar
isso...
Alberto
é
filho
de
Grandegozzo.
Grandegozzo
-‐
Eu
sabia!
No
fundo
do
meu
coração
eu
sentia!
(Abraça
Alberto.)
Figlio
mio!
Alberto -‐ Por isso que eu sou tão desequilibrado... padre mio!
Grandegozzo -‐ Por que você não me contou tudo, Tedabara?
Tedabara
-‐
Ah,
Grandegozzo,
você
é
ator...
nunca
teve
a
menor
condição
de
criar
um
filho...
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Robert
-‐
Representando
a
casa
de
Carlos
V
(Faz
um
reverência
para
Enriqueta.),
perdão,
majestade.
Robert
-‐
Robert.
Eu
vos
trago
uma
mensagem
do
rei:
Decreto
real
número
4.434:
“Em
virtude
de
ser
uma
cópia
da
famosa
torta
Le
Créme
Fugitive,
servida
no
banquete
de
comemoração
da
vitória
de
Carlos
III
sobre
os
búlgaros
em
1637,
a
torta
Le
Mure
Dore,
da
confeitaria
de
Pierre
Legan,
foi
desclassificada
do
concurso
real.
Venho
por
meio
desta
anunciar
o
prêmio
de
melhor
torta
do
reino
para
Pellica
Soleil,
da
confeitaria
do
sr.
Pellica.”
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Robert entrega um saco com moedas de ouro para Pellica.
Ghella
-‐
Enriqueta,
eu
fui
até
o
inferno
para
trazê-‐las,
mas
agora
elas
estão
aqui:
madrepérolas.
Casa
comigo,
minha
rainha.
Grandegozzo -‐ Io sono un padre! Io sono un padre!
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Música.
Tedabara -‐ Eu não disse, Pellica? Estava tudo escrito... nas estrelas.
Grandegozzo
-‐
(Over
romântico.)
Tedabara,
tu
sei
la
donna
della
mia
vita!
Noi
abbiamo
un
figlio
adesso,
il
mondo
non
sará
niente
ai
nostri
piedi!
Pellica...
tu
sei
l’uomo
della
nostra
vita,
viene
abbitare
con
noi!
Bellone
-‐
Que
alegria.
Que
folia.
Tudo
está
bem
quando
termina
bem...
se
tudo
estivesse
bem.
Se
tudo
tivesse
terminado.
Bellone -‐ A única coisa a ser resolvida agora é a anulação deste casamento... ilegítimo.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Sterne -‐ O que está selado por Deus não pode ser quebrado pelo homem.
Sterne -‐ A lei do Estado não é maior do que a lei de Deus, Bellone.
Bellone -‐ Não? De que paróquia você é, padre? Eu nunca o vi por aqui.
Robert
-‐
Ele
não
é
um
padre,
ele
é
um
soldado.
Ele
é
o
desertor
que
nós
estávamos
procurando.
Robert -‐ Sterne, as suas mentiras não vão mais te levar a lugar algum.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Robert
-‐
Sei,
como
você
também
já
foi
ator,
comerciante,
navegador,
e
lutou
cinco
anos
na
China
no
exército
de
um
samurai.
Sterne -‐ Essas estórias são ficção, mas eu sou um padre!
Ghella começa a subir uma escada, que dá em algum ponto alto da confeitaria.
Sterne
-‐
Vade
retrum
ad
locum
tum!
Suae
quisque
ipsius
vitae
libertatis
incolumitatis
potestatem
habet!!!
Bellone
-‐
Parece
que
temos
um
impasse
aqui.
Um
conflito.
Um
pequeno
drama.
Eu
quero
ir
para
casa,
Pellica,
e
esta
estória
já
está
me
cansando.
Você
é
o
pai
da
noiva,
você
me
deu
a
sua
palavra,
você
é
único
que
pode
desfazer
este
casamento.
Qual
é
a
sua
decisão?
Pausa.
NOVASDRAMATURGIAS.COM
Pellica
-‐
Como
saber
quando
estamos
dando
um
passo
para
o
abismo,
Bellone?
Onde
se
agarrar
neste
momento?
Estamos
diante
de
um
padre
que
não
sabemos
se
é
padre;
o
meu
sobrinho,
que
eu
pensava
que
era
meu
filho,
é
na
verdade
filho
do
meu
maior
amigo;
a
melhor
torta
do
reino
quase
foi
destruída
por
uma
crítica
inexplicável;
um
milagre
se
fez
e
se
desfez
várias
vezes
na
última
noite,
como
uma
pequena
mandala
nas
nossas
mãos...
Como
dar
um
passo
se
a
realidade
nos
passa
a
perna,
e
o
mistério
é
o
chão
no
qual
pisamos?
Será
o
nosso
desejo
de
decifrar
a
realidade
um
jogo
perdido?
O
que
é
o
real?
Um
objeto
dos
nossos
sentidos?
Uma
parte
do
possível?
Como
manter
a
cabeça
num
mundo
que
nós
mesmos
inventamos?
Um
mundo
feito
de
carne,
mas
também
de
sonhos...
de
ovos,
de
farinha,
de
tortas
/
Bellone
-‐
Essa
filosofia
de
padeiro
não
vai
levá-‐lo
a
lugar
algum,
Pellica.
Ou
você
suspende
o
casamento
e
cumpre
a
sua
palavra
ou
então
eu
o
processo
e
será
preso.
Pausa.
Sterne -‐ Todo instante é carregado como a pólvora de um revólver.
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Alberto e Bellone se posicionam, cada um de um lado do palco.
Enriqueta deixa a caixa com as madrepérolas cair no chão; elas rolam pelo palco.
Blecaute.
Um
foco
ilumina
lentamente
o
contra-‐regra
gótico.
Ele
está
com
uma
roupa
de
sair,
e
uma
mochila.
Todos
os
personagens
na
mesma
posição,
menos
Sterne,
caído
no
chão.
Há
penas
voando
para
todo
lado.
Tempo.
Pausa.
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Silêncio.
Tempo.
Robert -‐ Nós teremos que reportar esse incidente para a guarda real.
Pausa.
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Pausa.
Robert
-‐
Dois
tiros
foram
dados.
Apenas
uma
bala
o
atingiu.
Alberto,
Pellica,
Tedabara,
Isabela,
Grandegozzo,
Bellone...
por
favor...
todos
devem
nos
acompanhar
ao
palácio.
Pausa.
Robert -‐ O rei. O ministro da Justiça. Um juiz. A lei dos homens é justa, Pellica.
Pausa.
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Pausa.
O
contra-‐regra
gótico
coloca
o
rádio
do
início
da
peça
no
proscênio.
Ele
sai
de
cena.
A
luz
cai
lentamente.
Epílogo
Ouve-‐se
o
rufar
de
tambores.
Ghella
cai
do
alto,
amarrado
num
elástico.
Ouvimos
o
início
de
A
flauta
mágica
novamente.
Quando
ele
vai
cair
no
chão,
volta
a
subir,
voando.
Blecaute.
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