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Blackbird

De David Harrower
Tradução Alexandre Tenório

Para Selma

1
Blackbird foi escrita sob encomenda do Festival Internacional de Edimburgo e estreou no
King’s Theatre em 15 de Agosto de 2005, em Edimburgo com o seguinte elenco:

UNA Jodhi May


RAY Roger Allam

Direção Peter Stein


Cenário Ferdinand Wörgerbauer
Figurinos Moidele Bickel
Luz James Weideman
Compositor Arturo Annecchino
Som Ferdinando Nicci

UNA, vinte e muitos anos. Casaco, vestido, luvas; traz uma bolsa.
RAY, cinqüenta e tantos anos. Calças, camisa, gravata; um celular preso na cintura.

Uma sala na qual há uma mesa baixa, várias cadeiras, vários armários. A porta está
fechada.

Uma lixeira com tampa de vai-vem, cheia de lixo.

No chão, entre as cadeiras, mais lixo espalhado – principalmente embalagens de comida,


com restos ainda visíveis.

Uma janela comprida com vidros jateados, de vez em quando vêem-se vultos de gente
passando.

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UNA Chocado.

RAY Claro.
É.
Agora

Pausa

UNA E

RAY Espera.

Pausa.

Ele vai até a porta e abre-a um pouquinho.

UNA Você tava ocupado.

RAY Tava.

UNA Eles

RAY Eu ainda estou ocupado.


Tava com um dos
nossos gerentes.
A gente tava fazendo uma coisa.
Eles
Então devem
Vão mandar me chamar
Vou ter que ir.
Ainda vão precisar de mim.

UNA Essa gente não tem casa?

RAY Casa?

UNA Fora daqui.

RAY Eu não

UNA Pra voltar.


Uma casa pra voltar.
Trabalhando até agora.
É tarde.

RAY Daqui a pouco a gente termina.


Daqui a pouco a gente vai.

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Chegou um pedido atrasado e
claro
a gente tem que fechar não importa a hora.
Mesmo sendo tarde
Não importa a hora
A gente tem que fechar e despachar o pedido.
É um lance bem rápido.

UNA Eles vão pra casa só quando você manda?

RAY Não.
Mas eu, verifico se ta tudo
se o trabalho está pronto.
Tenho que ter certeza.

UNA Mas afinal o que que vocês fazem aqui?

RAY São
Odontologia.

UNA Porque

RAY Manipulamos umas fórmulas às vezes.

UNA O nome na porta.


Não dá pra saber.
É só mais um desses prédios baixos que você passa
Eu passei
Na estrada, até chegar aqui.
Prédios baixos, só um andar, e você você
Carros parados no estacionamento do lado de fora
Nenhuma pista do que acontece do lado de dentro.
Só um relógio digital do lado de fora marcando a temperatura.
É assim.
A cancela na portaria.

RAY começa a pegar algum lixo que está pelo chão.

É aqui que vocês comem?

RAY Não.
Não aqui.
Não eu.
O pessoal sim.

UNA Eles não deviam deixar isso assim.


O chão.

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Ele leva o lixo para a lixeira.

Ta cheia.

Ele enfia o lixo dentro da lixeira.

Onde você come?

RAY Você está sozinha?

UNA Estou.
Quer dizer sem ninguém?

RAY É.
Sozinha.

UNA Estou.

RAY Dá pra me dizer por que veio aqui?


Pra que que você veio aqui?

UNA Eles não fazem uma pausa?


Pro cigarro?
Nenhum deles?

RAY Não.
Já ta muito tarde.

UNA Não vão interromper a gente?


Não quero ninguém entrando aqui.

RAY O que há pra ser interrompido?


Que que você ta querendo?
Não tenho muito tempo

UNA Eu vi

RAY E pra ser sincero eu

UNA O quê?

RAY Eu
Eu não tenho que estar aqui com você.
Você sabe disso, não sabe?
Tem consciência disso?
Eu não tenho que ficar aqui.

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Tenho?

UNA Não.
Você ta certo.

RAY Não tenho que ouvir.


Não tenho que falar nada.
Então
só alguns minutos
só alguns minutos e aí você vai ter ir embora e
porque vão precisar de mim.

Sem querer, ele pisa numa comida jogada, embrulhada num alumínio.

UNA Cuidado.
Não terminaram essa.
Alguém deve ter deixado aí.
Você devia reclamar disso.

Ele pega a comida.

RAY Já reclamaram.
Reclamam todo dia.

Ele leva o embrulho para a lixeira, enfia para dentro.

Uma batida na porta.

RAY vai até a porta, abre um pouquinho para ver quem é.

Ele sai, fechando a porta.

Ele volta.

Ele fecha a porta, mas não totalmente, deixando uma abertura como a de antes.

Por que a gente não vai lá pra fora?

UNA Pra onde?

RAY Fora daqui.


Lá pra fora.

UNA Não.

RAY O estacionamento ou

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UNA Aqui pra mim ta ótimo.

RAY É que

UNA Você me enfiou aqui.

RAY Não enfiei

UNA Me escondeu.

RAY Eu não te enfiei.


Eu trouxe você pra cá.

UNA Vão querer saber quem eu sou, não vão?

RAY Todo mundo te viu.


É então.
Com certeza vão.
Eles

UNA Você me deixou esperando, Peter.


Fiquei de pé te esperando por

RAY Que que você quer?


Você pode

UNA Será que posso fechar a porta?

RAY Não.

UNA Será que você pode fechar a porta?

RAY A porta fica aberta.

UNA Por que?


Eu

RAY Não quero feche.

UNA Tem um vento.

RAY Já já a gente vai sair.

UNA Mas agora eu estou aqui.


Você me trouxe

RAY Acho que seria melhor lá fora.

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Nós podíamos

UNA Feche a porta.

Ele não se mexe.

Tem um vento frio entrando.


Não gosto.
Está
Vou fechar então.

Pausa.

Ela se levanta, olha para ele, vai para a porta.

Ele dá um passo na direção dela, pára.

Ela fecha a porta, de repente, fazendo barulho.

A porta ta fechada.

Ela olha para o lixo perto da porta.

As pessoas que só
esperam que os outros venham limpando atrás.
Pedi a um cara
ele tinha acabado de jogar uma lata vazia
uma lata de cerveja
um pacote de salgadinho
na calçada.
Jogou.
Nem pensou, deixou cair assim.
Mandei ele pegar.
Ele riu.
Pensou que eu estivesse de brincadeira.
Ficou

RAY Dá pra você

Ele pisca, esfrega os olhos.

UNA com uma mulher.


Sua puta, ela me chamou.
Defendendo ele.
Ele rindo

RAY Como foi que você me encontrou?

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UNA Numa
Uma foto numa revista.

RAY Onde?
O que

UNA Sei lá

RAY Revista?

UNA Uma revista de vendas.


Promocional.
Essas revistas de papel brilhante, uma
numa sala de espera
Sabe o tipo que to falando?

RAY Sei.

UNA Tinha uma foto na contra capa.


Você e um
um grupo de pessoas.
Parecia um time.
Diziam que vocês formavam um time.
Ganharam um prêmio
Algum
Por qualidade ou
performance.

RAY Então?
O que?
Você viu uma fotografia?
Você viu essa foto

UNA Você tem amigos?

RAY E ela
Você

UNA Amigos?

RAY Sim.
Claro que eu tenho amigos, porque

UNA Amigos novos


ou os mesmos velhos amigos?

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Pausa.

Seus olhos estão vermelhos.


Parece que tão ardendo.

Ele ri consigo mesmo, esfregando novamente os olhos.

RAY O que que você sentiu?

UNA Pare de coçar.

RAY Uma foto.


Aí você decidiu vir até aqui?

UNA É
Você quer ver?

RAY Não, eu não quero ver.

UNA Mas você sabe a foto eu estou

RAY Sei

UNA Pare de coçar os olhos.

RAY Dói.

UNA Porque você está coçando.

RAY Eu coço porque sinto dor.


É o único jeito pra eles pararem de doer.

Você veio de carro até aqui?

UNA Vim.

RAY Quantas
quanto tempo você levou?
Onde
Eu não acredito

UNA Será que sou eu?


Será que sou eu a culpada disso estar acontecendo?
Será que você tá com alergia a mim?

Pausa.

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Ele fica olhando para ela.

Vai ficar calado?

RAY Vamos sair pra dar uma volta.

Ele vai na direção dela.

Vamos.
Dá pra se levantar?
Vamos sair.
Vamos dar uma volta pelo

UNA Escrevi umas cartas pra você.

RAY Cartas?

UNA Elas

RAY Nunca recebi nenhuma carta.

UNA Elas nunca

RAY Quando?

UNA foram mandadas.

Pausa.

RAY O que elas diziam?


Quando foi isso?

UNA Não tinha intenção de mandar.


Eles me disseram, as pessoas que me ajudaram.
As
que
depois
que eu escrevesse uma carta pra você
cartas
dizendo o que eu pensava de você.
O que eu sentia.
O que eu quisesse dizer pra você
Para não deixar
deixar você
ganhar.
Autoridade.
E foi por isso

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RAY Autoridade?
O que

UNA Eu escrevi
milhares.
Arrancar seus olhos.
Escrevi dizendo que queria arrancar seus olhos, escrevi tirar eles para fora, pisar
neles.
Os olhos que tinham olhado para mim.
As mãos.
Fazer
Todas as coisas.
Ainda tenho elas.

RAY Você guardou?

UNA As melhores.
De vez em quando ainda leio.
Tanta raiva nelas.

Depois eu tive que escrever sobre esperança.


Mandaram eu escrever sobre esperança.
O que eu era capaz de fazer agora.
Como o futuro seria
O futuro promissor
a promessa que o futuro trazia
ainda que você
apesar de você
sem pensar em você.

Você não respondeu.


Novos amigos?
Ou seus velhos amigos continuaram do seu lado?

RAY O que que você acha?

UNA Eu acho
acho que o fato

RAY Seis sete horas pra vir até aqui.


Pra quê?

UNA Porque naquela foto você ta

RAY Para me fazer sofrer?

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UNA Não diria isso
seus olhos
sofrer.
Esfregue mais.
Com mais força.

RAY Não preciso falar com você.


Podia ter saído.
Não estou sob nenhuma

UNA Então esse cara

RAY Que cara?

UNA O cara que deixou cair o lixo, o


não é o lixo
não era o lixo
a sujeira.
Era o cara, a pessoa que fez isso.
Porque ele não foi, não foi
instruído
educado
suficientemente civilizado.
E eu pensei, e se
se eu entrasse na casa dele e jogasse lixo no seu carpete.
Mas as ruas, as calçadas, não são minha casa, então
o que me importam as ruas.
Acho que você é um bicho.
Nunca ninguém se importou de fato com você e você é muito estúpido
estúpido demais até para saber isso ou você nunca deixaria que as pessoas vissem
que tipo de
vissem o que você é.
Essa
Você nem sabe que você existe.

Eu pedi para falar com o Peter.


E quem me apareceu foi o Ray.

Pausa.

RAY Isso foi inútil.


Completamente inútil.
Você entende?
Será que você não entende?
Quem foi que mandou você fazer isso?
Quem disse pra você fazer isso estava

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UNA Ninguém.

RAY As pessoas que


que ajudaram você.
Seus

UNA Já faz um tempo que parei de ver eles.


Eles não são pra sempre.

RAY O médico.
Um confronto
Como é que eles chamam?
O
Cara a cara.
O
Eu não concordei com isso.

UNA Não.

RAY Pra que?


Você não tem o direito de me me me
humilhar.
Onde eu trabalho.
Onde as pessoas estão.
Meus colegas.
Colegas de trabalho.
Entrando aqui, perguntando por mim.
Não tenho nada a dizer a você.
Eu
Você é um
tipo um fantasma
aparecendo sei lá de onde pra
Vá embora.
Por favor.
Me deixe em paz.
Vá embora.

UNA Você acha que eu ainda moro na mesma cidade?

RAY Sei lá.


Sei lá onde você vive.
Como quer que eu saiba?

UNA Eu moro.
Ainda moro lá.
Nós

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RAY Fora daqui e

UNA nunca nos mudamos.

RAY Volte pra lá.


Volte.

UNA Me sinto mesmo um fantasma.


Me sinto.
Me sinto um fantasma.
Todo lugar que eu vou.
Escrevi isso nas minhas cartas também.
Você fez de mim um fantasma.
As pessoas falavam de mim como se eu não estivesse lá.
Não me deixavam falar.

RAY Vá lá pra fora.


Vá.
Estou dizendo.
Me escute.
Você está
Saia pra tomar um ar.
Respirar um ar.
Pegue seu carro.
Pare de ser um fantasma.
Você vai
Vai viver de novo.
Por que isso isso isso nunca
nunca devia ter acontecido.
Pois você está se sentindo melhor?
Isso ta te fazendo algum bem?

UNA Está.

RAY Então isso


Isso é
Não posso te dizer nada.
Você
Você passou
Como então pode ser bom?
Diga
a não ser que
a não ser que mas você não sabe o que você quer?
Você não sabe por que está aqui.
Diga pra quem te mandou vir aqui

UNA Ninguém.

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Eu já disse.

RAY Então tanto faz.

Ele faz que vai sair.

UNA Aonde você vai?

RAY Não.

UNA Não vá.

RAY Tanto faz.


Não é responsabilidade minha.

UNA Eu vou atrás de você.

RAY Faça o que quiser.


Isso é
Isso é um inferno.

Fique longe de mim.


Você ta precisando de ajuda.

Ele está perto da porta.

Ele sai.

UNA Ray.
Não me deixe aqui.

Ele volta, fecha a porta.

Pausa.

RAY Eu tenho coisas a fazer.


Coisas a checar.
E
Depois.
Quando eu for embora.
Hoje à noite.
Eu tenho uns lugares pra ir.
Vai ter gente me esperando.

UNA O quê?
O que que você vai fazer?

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RAY O negócio é
Que
Eu nem sei se é você.
Se você é
ela.

UNA Sou eu.


Claro que sou eu.

RAY Eu não te reconheci.

UNA Reconheceu sim.

RAY Não reconheci.


Não reconheço.
Você.
Não.

UNA Você ficou branco.

RAY Não.

UNA Branco com uma folha de papel.

RAY Não não quando eu te vi.


Eu não sabia quem você era.
Tem uma mulher aí querendo falar com você.
Foi só isso que me disseram.

UNA Quando eu disse

RAY Sim
sim mas o nome eu conheço.
Eu me lembro do nome.
Meu Deus o nome
Mas você pode ser uma, uma amiga dela.
Seu cabelo ta de outra cor.
Jornalista.
Uma

UNA Não sou.

RAY Repórter, sei lá.


Sei lá o que é que isso tudo quer dizer.

UNA Com quantas outras meninas de doze anos você transou?

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Pausa.

RAY Nenhuma.

UNA Você quer ver meu sinal de nascença?


Você beijou ele.
Ou o que você me disse na praia.
Apontando pro horizonte
pra Holanda.
Ou na cama naquele quarto em

Nenhuma?
A gente muda, meninas de doze anos
A gente cresce.
O que você acha.

RAY Nenhuma.

UNA Só eu.
Naquele quarto.

Achei que ia ser mais difícil olhar pra você.


Falar.
Quase fui embora.
Mas não.
É fácil.
Pois eu teria reconhecido você em qualquer lugar.
Até de costas.
Vi seus olhos antes mesmo de eu dizer meu nome.
Eu vi você.

Você tem alguém?


Você vive com alguém?
Você não quer me contar.
Sei que você tem uma mulher.
Pelo jeito que me olharam lá fora.
Pelo jeito que olharam pra você quando você veio me receber.
Uma boa mulher?
Ela

RAY Não vou falar dela pra

UNA Ela ta te esperando em casa?

Pausa.

RAY Você quer que eu diga alguma coisa?

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Há alguma coisa que você quer que eu diga agora?

UNA Ela sabe sobre mim?

RAY Não vou falar nada sobre a minha vida.


Quem está na minha vida.
Caso seja isso que você queira saber e eu não sei por que você
você quer isso
mas você não vai conseguir.
Você está me entendendo?
Você está me entendendo?

Pausa.

UNA Meu pai morreu.

Você não sabia?


Não ficou sabendo?

Ele balança a cabeça.

Seis anos.
Talvez você não estivesse aqui.
Talvez tivesse ido para outro lugar.

RAY Eu estava aqui


Como?

UNA Ele caiu.


Tropeçou.
Nos degraus.
E
Foi piorando.
Nunca se recuperou.
Ele
Você era convidado em nossa casa.
Eu era a nenezinha dele.
Ele convidava você para ir à casa dele.
Ele tentou te encontrar.

RAY Ele sabia onde eu estava nos quatro primeiros anos.

UNA Ele queria matar você.


Não pensava em outra coisa
Falava nisso o tempo todo.
Era
Ele teria te matado.

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RAY fica assustado, preocupado com seu tom de voz alto.

Quase chorando, UNA procura dentro da bolsa.

Ray a observa, inquieto.

RAY O que tem aí dentro?

O que tem na sua bolsa?


O que tem aí?

UNA Preciso de uma

RAY Me dê isso aqui

UNA Não.
Por quê?

RAY O que você ta fazendo?


Você

UNA O quê?

RAY Não.

Ele pega a bolsa dela.

UNA Você ta

RAY Você quer me matar?

Pausa.

Ele procura dentro da bolsa.

Ele tira um pacote de lenços.

UNA Eu ia te matar com um pacote de Kleenex.

Ela estende a mão.

Ele dá o pacote a ela.

Ele tira uma garrafa de água.

E isso não é água, é ácido.

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Ele pega a página arrancada da revista.

A foto dele.

Uma batida na porta.

Uma voz de trás da porta.

VOZ Peter.

Pausa.

Eles se olham.

RAY vai até a porta.

Ele abre a porta um pouquinho, olha pelo vão.

RAY (Para a pessoa lá fora) Tudo bem.

Ele fecha a porta.

Ele ainda segura a foto.

UNA Quando eu vi
a foto.
Não tá muito nítida.
Mas eu sabia que era você.
Eu arranquei, levei pra casa, fiquei
fiquei olhando pra ela.
O nome em baixo.
Peter.
Peter?
Não conseguia
Às vezes eu sou tão lenta.
Você mudou de nome.

RAY É.

UNA É difícil?

RAY Não.
Não, foi muito fácil.

UNA Mas quero dizer, decidir.


Escolher um novo.

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Escolher um nome novo.
É difícil?
Você você pensou
quantos antes de decidir?
Você fez uma lista?

RAY Escolhi um nome qualquer.

UNA Como?

RAY Abrindo a lista telefônica.

UNA Uni duni tê.

RAY Tipo.

UNA Qual seu nome todo?


Peter o quê?
Peter
Posso perguntar aí fora.

RAY Trevelyn.

UNA Peter Trevelyn.

RAY É.

Pausa. Ela dá um sorrisinho, entende.

UNA De onde você tirou isso?

Peter Trevelyn?

RAY Da letra T.
Eu tinha que.
Eu tinha

UNA Mas
Deus.
Trevelyan.
Você fez
Meu Deus, não
É
De
Nome de gente rica.
Berço de ouro.
É

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de uma lista telefônica?
Você tava delirando?
Foi
mania de de grandeza?
Porque
Meu Deus.
Os ricos dormem
dormem com menininhas também.
Menores de idade.
Arruínam a vida delas também.
Na verdade os ricos devem transar com menininhas tanto quanto os pobres.
Devem ser pau a pau.
Mas se isso faz diferença.
Se isso
Faz?
Impõe respeito?
E te ajuda
Te ajuda

RAY Tudo bem.

UNA esquece.

RAY Chega.

UNA Eles não sabem.


Nenhum deles, aí fora.
Sabem?
E a sua
A companheira?
Ela
A rainha do lar.
Ninguém

RAY Ela sabe.

UNA Ela sabe?

RAY Sabe.

UNA Como ela soube?

RAY Eu contei pra ela.

UNA Tudo?

RAY Os fatos.

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UNA Minha idade?

RAY É.

UNA Sua pena?

RAY É.

UNA Quando?
No começo do

RAY É.
Estamos juntos há sete anos.

UNA O que você contou a ela?


O quê?
Me diga o que você contou a ela?

RAY Que quando eu tinha quarenta eu


Eu tive uma relação proibida.
Eu fiz sexo com uma menor.

UNA E ela achou que tudo bem?

RAY Não.
Claro que não.
Mas eu
Eu disse a ela como era minha vida.
Eu não estava indo bem.
Eu tava tendo problemas e eu não
Eu não conseguia lidar com eles.
Eu cedi.
Eu desmoronei.

UNA Você?

RAY Eu fiz a maior


o erro mais mais estúpido da minha vida.

UNA Você contou que foi um

RAY Um o quê?

UNA Um erro estúpido que durou três meses.


Que você fugiu comigo.
Isso também?

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RAY E que eu
eu me recompus.
Eu
retomei meu caminho
Eu
Você ri.
Você não acredita.
Tudo bem.
Por mim tudo bem.
Eu também não preciso de você.

UNA Ela acreditou em você.


Você fez com que ela acreditasse

RAY Porque ela me ama.

UNA O que há de errado com ela?


Tem que ter alguma coisa errada com ela.

RAY Não
Não diga isso.
Não fale dela.
Ela ela me ajudou.

UNA Você teve filhos com ela?

RAY Não.

UNA Você quer ter filhos?

RAY Isso não tem graça.

UNA Será que eu estou rindo?


Não, eu acho que é.

Ela dá um risinho.

Ele se vira.

Nesta foto não tem nada.


Nada no seu rosto.
Sorrindo.
Você se esqueceu.
Você se

RAY É

25
É eu esqueci.

UNA Dez anos depois


Oito
oito anos
e agora
você está fichado.
seu nome está lá.
Ray está lá.
Você conseguiria
Você não conseguiria esquecer.
Você não poderia
Peter
Você
Não iam deixar.
Não seria só eu.
Ia ter gente lá fora
rondando sua casa.

RAY Eu tô vivendo a minha vida.


Uma nova vida pela qual eu lutei porque eu perdi

UNA Alguma vez você pensou em mim?

RAY Tenho todo o direito.


Posso fazer o que me der na telha

UNA O que estava acontecendo comigo?

RAY Você acha que eu devia reviver todos os dias?


É a minha vida.
Você não pode

UNA Quando aquele juiz

RAY Você não pode entrar e

UNA Seis anos.


E quando meus pais me contaram.

RAY Eu tenho direito a alguma coisa.


A viver.

UNA Eu cumpri a pena.


Eu cumpri a sua pena.
Por quinze anos.
Eu perdi tudo.

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Eu perdi muito mais do que você.
Eu perdi
porque eu nunca tive
tive tempo pra pra pra começar.
Nós nunca nos mudamos.
Aquela casa naquela rua.
Eu fiquei falada, era apontada, encarada.
Eu perdi todos os meus amigos.
Eu
Eu mantive meu nome.
Eu tive que manter meu nome.
Eu
É.
E revivo isso todos os dias.

RAY Se você quer que eu


qualquer coisa que você queira que eu
Eu te levei a sério.
Mas se você me diz
Não dá pra pensar nisso todos os dias.

UNA Eu não tenho que pensar.


Está lá.

RAY Isso é certo?


Não.
Se
Se deixar?
Se
Ninguém fala pra você que isso é
Você não tem amigos
pessoas que

UNA Claro que eu tenho amigos.

RAY Que sabem que você faz isso?

UNA É.

RAY E eles ouvem?


Eles ainda

UNA ouvem.

RAY Que tipo de amigos são esses?


Que tipo de

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UNA Não fale dos

RAY Eles aceitam isso?


Eles realmente
Eles estão loucos pra saber não estão?
Como é que foi?
Como
Será que eles estão aí fora?
Foram eles que te trouxeram?
Eles tão (?)

UNA Não tem ninguém comigo.


Quantas vezes eu tenho que dizer?

RAY Você tem


namorado?
Um

UNA Isso não tem nada a ver.

RAY Afinal alguém se importa com você?

Pausa.

Eu fiz a mesma coisa.


Eu trouxe você pra cá
Deixei deixei você falar.
E fui
eu ouvi e

UNA E as fotos?

RAY O que você faz?


Você trabalha?
Você pode trabalhar?
Você tirou folga pra?

UNA As fotos.

RAY Que fotos?

UNA As fotos que você tirou de mim.


No seu apartamento.
Cadê?
Nunca encontraram.

RAY Eu

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UNA A polícia nunca encontrou.

RAY Eles

UNA Procurei na internet.


Milhares de sites.
Milhares de nove, dez, onze, doze anos.
Mais novas.
Fotografadas em
em camas
em quartos e
Seria eu uma delas?
Porque essas
algumas dessas
fotos são dos anos setenta
elas
dá pra ver pelos quartos
e as pessoas, os caras escaneiam e colocam elas, eles
essas crianças agora são adultas e não sabem que estão

RAY Eu queimei.

UNA Queimou?

RAY Queimei.
Claro que eu queimei.
Claro.
Ninguém nunca viu.
Queimei antes da gente
Antes da gente parar de se ver.
Pra eles não terem
Você estava de roupa, jeans
Eles

UNA Sentada no sofá.


Deitada.
Eles têm as mesmas fotos na

RAY Esses sites.


Essa
Essa gente.
Esses doentes.
Eu nunca fui um deles.
Eu nunca fui isso.
Você
Te disseram que eu era, que eu sou, que eu

29
Eles me chamaram disso.
Eles

UNA ameaça sair.

O que que cê está fazendo?

UNA Eu quero ir embora.

RAY Não.
Eu não era um desses.
Nunca.
Eles

UNA Me deixe sair.

RAY Espera.

UNA Me deixa.

RAY Só um minuto.
Senta.

UNA Não.

RAY Senta.

UNA Não chegue perto de mim.

RAY Não faça isso.


Não

UNA Quero sair daqui.


Sai da frente da porta.

RAY Me escuta.

UNA Vai pra lá.

RAY Escuta.
Eu passei três anos no inferno.
Mais do que isso.

UNA É.

RAY Do que me chamaram.


Cuspiram em mim, me chutaram.

30
Bosta, jogaram bosta de gente na minha cara.
Você sabe que eu não era um desses.

UNA Como

RAY Você sabe.

UNA Eu não te conheço.


Não sei nada de você só que abusou de mim.
Não foi?
Não foi?

RAY Foi.
Mas

UNA Não tem mas.

RAY Deixa eu

UNA Não tem mas.

RAY É.
Foi.

Mas.

UNA Meu Deus.

RAY Eu não
Eu não

UNA Não o quê?

RAY Disseram no tribunal que eu, eu


deram a entender
fizeram parecer
que eu tinha selecionado você.
Tinha escolhido

Aquele dia.
Aquele dia do churrasco.
Na
Quando a gente se falou pela primeira vez.
Eu não fui pra
Você sabe.

Em seu cinto, o celular de RAY toca.

31
Quando eu falei com você pela primeira vez.
Eu
Espera.

Ele olha o celular.

Desliga.

Pausa.

UNA Era ela?

RAY Era.

Posso beber água?

Ele pega a garrafa de água, bebe.

Eu não sei por que ele me convidou, seu pai.


Eu cumprimentava ele na rua quando o via.
Ajudei ele a consertar o carro uma vez.
Mas
Fiquei surpreso quando ele me convidou.
Eu não ia.
Não conhecia ninguém lá.
Ou vizinhos que
Mas eu

Minhas janelas estavam abertas e eu sentia o cheiro do churrasco.


Cinco casas pra frente.
A fumaça.

Não era por


por sua causa
pra
Eu tinha te visto na rua.
Ali perto.
Mas não
Não

UNA Você ficou olhando para mim.


No churrasco.

RAY Não.

UNA Eu vi você

32
RAY Eu não estava.

UNA Percebi você.

RAY Eu olhei para você.


Não fiquei olhando.

UNA Você disse porque você não está contente?


Você devia estar contente.
A primeira coisa que você disse.

RAY É.
Você tava sentada na sua.
Não falava com ninguém.
Você não tava muito contente.
Era isso o que eu tava olhando.

O pessoal tentava falar com você e você você não dava bola pra eles.
Você tinha
Você tinha brigado com sua melhor amiga.
Não tinha?

UNA Eu ficava pensando.


Depois.
Se a gente não tivesse brigado.
Se ela estivesse lá.
Podia ter sido ela.

RAY Quantas pessoas estavam lá?


Quantos convidados?
Cinqüenta, vinte.
No seu jardim.
No quintal dos seus pais e
Você sabe quando você é
Uma pessoa sabe.
Eu leio sobre isso
quando se excitam com crianças
com menores
as pessoas.

UNA Você lê sobre isso?

RAY Leio.

UNA Tem algum manual?

RAY Tem

33
UNA Algum catálogo?

RAY Porque quando você se excita com crianças


quando

UNA Eu li alguns desses livros também.

RAY Pr’eu poder.


Pr’eu ver
Todos que eu pude encontrar
Pra pra
É, um catálogo
Era pra, é.
Pra descobrir
pra
pra saber os fatos.

UNA Que fatos?

RAY Os fatos.
Os padrões.
O o ciclo.

UNA O ciclo?

RAY Do do

UNA Abuso.

RAY É.

UNA Você não sabe?

RAY O abuso
o ato
Existem números

UNA Você foi abusado quando era criança?

RAY Não.

UNA Tem certeza?

RAY Tenho.
Pelo amor de Deus.
Não

34
Eu to enojado.
Acho que me lembraria.
O advogado me perguntou se eu tinha sido.
Seria melhor para mim se eu tivesse.
Melhor melhor para todo mundo se eu tivesse.

Eu li esses livros.
Pensei na minha vida.
Pra ter certeza de que eu não era um deles, um
Porque quatro anos ouvindo
sendo obrigado a me perguntar
me interrogando.
Sem receber nenhum

Porque quando você é


quando crianças
quando eles eles fazem isso com
uma pessoa que
eles não admitem
eles ficam chocados
horrorizados que eles
eles sintam isso
Eles se afastam.
São uma ameaça e sabem disso.
Eles se distanciam.
Eles
Porque eles amam
eles amam demais pra
eles quererem mostrar esse amor porque esse amor é
Eles querem protegê-las.
Eles ficam longe de onde as crianças ficam.

Mas se você fica excitado.


Realmente deseja.
E quer quer
alimentar esse desejo
eles acham um jeito
eles
estão sempre procurando um jeito de ficar perto delas.
De persuadi-las.
Essas pessoas são
muito muito cautelosas
são muito muito espertas
Quanto maior a esperteza
quanto maior o risco
mais elas se divertem.

35
UNA Você decorou esses livros?

RAY Estava quente.


No dia do churrasco.
Eu
e eu tava usando uma bermuda.
Minha única bermuda.
Eu só tinha uma de cada vez.
Usava aquela até ficar velha só então eu comprava outra
Porque eu não

UNA Quê?

RAY uso bermudas.

UNA Você está (?)

RAY Eu nunca uso bermuda a não ser que esteja muito quente.

UNA Bermuda?

RAY Era uma bermuda justa.


Era o estilo da época.
O
Não ria.
Não
Estou tentando te dizer.
Não
Eles riram no tribunal.
Eles riram disso no tribunal
Eu me lembro da bermuda.

UNA Você está ouvindo o que está dizendo?


Sua bermuda justa?
Você percebe

RAY Se eu tivesse tido uma ereção.

Se eu tivesse tido uma ereção.


Tivesse ficado excitado.
Eu tava de pé ao seu lado.
Eu teria
Eu teria me afastado de você
ou sentado ou
porque quando eu tinha uma ereção com aquela bermuda ficava
Você perceberia.
Seria óbvio.

36
Qualquer pessoa que olhasse poderia perfeitamente ver
qualquer convidado teria visto.
Eles teriam
E não é
Eu sei que isso não é a única
evidência
mas mas para mim é.
Quando eu estou
quando eu
estou a fim eu fico de pau duro.
Meu pau fica duro imediatamente.
Mas eu fiquei lá.
Eu fiquei lá e falei com você.
Você era uma
a filha de um vizinho que
que estava chateada com o mundo naquele dia.
Não não um
alvo.
Eu nunca

Eu tinha uma
Eu estava saindo com uma mulher.
E eu sei que esses
esses caras podem ter relacionamentos
e mesmo assim fazerem isso que eles fazem.
Mas a maioria deles não
não.
São pessoas sós.
Incapazes de ter uma

Pausa.

UNA Meus pais achavam que você era

RAY O quê?

UNA Tímido.
Meio bobo.
E solitário.
Por que você não tinha levado sua namorada.
Meu pai disse que você podia ter levado ela.

RAY Ela não era minha namorada.


Ela era

UNA Você já tava há muito tempo com ela

37
RAY Fiquei com ela só alguns meses.
Não consigo nem lembrar o nome dela.
Ela era boba.

UNA Ela me atacou uma vez.


Uns anos depois.
Eu estava com minha mãe andando na rua.
Ela veio e me deu um tapa na cara.

Pausa.

RAY Ela dizia que você ficava olhando pra ela.


Que você estava, estava atrás de mim.
Ficava fazendo hora na rua perto do meu carro.

UNA Eu mentia pra minha amiga.


Falava de você pra ela.
Que eu conversava com você.
Você você me olhando.
Paquerando.

RAY Era você, não eu.


Você
Os bilhetes.
Os bilhetes que você escrevia.
Colocava no pára-brisa do meu carro.
Sua amiga era feia.
Usava óculos.
Não falava mais que uma frase
Quando ria parecia um macaco.

UNA Não é

RAY E as outras.
Lembra do churrasco.
Tinha uma.
Tive que pedir para você parar.
No jornaleiro.
E você disse o que eu estava pensando (?)
Você fingia que não sabia.

UNA Eu parei.
Parei de escrever os bilhetes.
Faria qualquer coisa que você pedisse.
Eu queria que você fosse meu namorado.
Queria me sentar ao seu lado no seu carro e que você me levasse pra cidade.
E que todo mundo me visse.

38
Nos visse.
Eu tirei uma polaroide de você e
com minha amiga
nós beijamos
nós
coloquei do meu lado no travesseiro e dormi com ela.
E eu
achava sempre uma desculpa
Te levava biscoitos bolo que minha mãe fazia.
Pedi pra você assinar uma autorização pr’um passeio da escola
Eu
ah eu era impossível.
Você não parou com aquilo.
Você só tinha era que contar pr’os meus pais.
Uma menina boba com uma paixão estúpida.
Mas não.
Você deixou rolar.

RAY Você não era boba.

UNA Era sim.

RAY Não era não.

UNA Se eu não fosse boba eu teria percebido o que estava acontecendo.


Mas não.
Eu era muito nova.
Muito muito
apaixonada.
Muito boba por não ser mais velha
não ter tido tido
a consciência
a experiência.
Mas era isso que você queria.
Eu não fazia perguntas difíceis.
Nem tinha perguntas a fazer.
Eu queria qualquer coisa que você quisesse.

RAY Não.

UNA Sim.
Eu dizia sim e eu continuava dizendo sim.
Ansiosa para agradar.
Desesperada para agradar.

RAY Você não se lembra de você.


Como você era.

39
UNA Como eu era?

RAY Forte.

UNA Forte?
O que você quer dizer?

RAY Cabeça dura.

UNA Não.

RAY Determinada.

UNA Não.

RAY Quando começamos a nos falar mesmo.


Sozinhos.
Quando você me falou de si mesma.
Eu descobri
Você me surpreendeu
Você me fez rir.

UNA Rir?
Por acaso eu
o quê?
Fazia caretas?

RAY Eu

UNA Fazia cócegas em você?

RAY Você era mais velha que ela.


A mulher com quem eu estava saindo.

UNA Mais velha?

RAY Com aquela risada boba.


É.

UNA Como, mais velha?


Você não está

RAY Você sabia sobre o amor.


Você sabia mais sobre amor do que ela.
Do que eu.
Você sabia o que queria.

40
Tão tão impaciente.
Você não agüentava mais esperar pela primeira menstruação.
Você me disse isso.
Você ficava danada por ser tratada como criança.
O que você menos suportava era que dissessem que você era uma criança.

UNA Meu Deus.

RAY Você

UNA Isso é o que as crianças dizem.

RAY Você não era como as outras crianças.

UNA Eu era uma menina.


Uma virgem.
Um corpo imaculado.
Uma
E você teve tudo pra você.
Sendo o primeiro.
Me ensinando.
Me mostrando.

RAY Não

UNA Entrando em mim.


O que eu podia ter dado a você
dado a você além do meu corpo de doze anos?
O que mais você podia querer?
Não tinha mais nada.

RAY Tinha.
Pra mim tinha.

Ela se afasta dele.

Na prisão.
As sessões.
Sessões em grupo.
Remexendo em em tudo.
O que deu errado.
O que foi perdido.
Meu meu status
A raiva que eu tive.
Botando a culpa nos outros.
A necessidade de destruir.
Porque foi isso o que eles disseram que eu tinha feito.

41
Destruído.
Destruído você.
Sua família.
Meus pais.
Minha vida.
E o que me levou a isso não era o amor que eu sentia.
Alguma coisa
alguma coisa estragada
Alguma coisa mais profunda.
Você estava na minha cabeça o tempo todo.
Eu não podia tirar.
E eu deixei.
Eu deixei isso.
E isso
tudo
todo dia só pensava como eu podia te ver, falar com você.
Eu saía do trabalho cedo.
Eu, eu ficava na rua mexendo no meu carro.
Não precisava de concerto nenhum.
Eu desmontava umas peças e montava de novo
Só pra
O motor estava ótimo.
Mas eu
Porque você ia pra lá e nós podíamos ficar conversando e era tão bom.
Todo mundo via e ninguém imaginava.
Seus pais.
As crianças que ficavam brincando lá.
Mas não, não bastava, não
Eu tinha que ficar sozinho com você.

Você se lembra dos


dos códigos
dos dos sinais que tínhamos pra pra nos encontrar.
Só para falar.
Conversar.
Pra gente ficar sozinho junto.
Você lembra?
Eu ligava para a casa dos seus pais.
Um toque.

UNA Queria dizer que ela não estava com você?


Você estava sozinho.

RAY Estacionava meu carro de frente.

UNA Tinha esquecido esse.


E no dia seguinte você estava lá me esperando.

42
No parque.
No parque do bairro.

RAY Era o único lugar onde a gente podia se encontrar.

UNA A primeira vez.


No parque.

Eu ficava tão empolgada.


Sabendo que você ia estar lá.
E eu corria.
Porque você era meu.
Você sentado num banco lendo jornal.
E a primeira coisa que você disse pra mim
Você me disse pr’eu não me sentar ao seu lado.
Eu tinha que ficar andando
E eu sabia porque.

RAY Era ridículo.


Lugar idiota para se encontrar.
Eu não tinha pensado nisso.
Eu, eu não tinha pensado.
Eu não sabia o que estava acontecendo comigo.
E você

UNA Eu andava pelos canteiros.

RAY Você desaparecia.


E começava a gritar meu nome.
Ray.
Venha cá, Ray.
Eu sentado lá e
um homem
tinha um homem andando.
Você gritou de novo e ele olhou para mim e sorriu.
Ele não tinha te visto.
Ele não sabia.
Só ouvido a sua voz.
Ray, venha cá.
Estou te esperando.
E eu
Eu tinha sido visto mas ainda podia explicar.
Até aquele momento ainda acreditariam em mim.
Podia ter ido embora e acabar com tudo.

UNA Mas você não foi.

43
RAY Não.
Eu não fui.
O que quer que estivesse acontecendo
o que quer que eu estivesse pensando
pensando sobre
estava em mim
me fez acreditar que eu te amava.
Me fez andar pela grama, a
me ajoelhar e engatinhar entre os galhos.
e segurar sua mão e
e beijar você.

UNA E deitar junto um do outro.


E abrir minha saia e tocar meus
meus seios.
E e abrir o seu zíper.
E tirar o pau.

RAY Não na primeira vez.

UNA Me desculpe.
Senhor senhor cavalheiro.
Não na primeira vez.
Na segunda, na terceira vez.
Nós dois deitados num cobertor que você trazia.
Um cobertor.
Eu pensava que fosse para mim mas era

RAY Era.

UNA era pr’os galhos e e pra terra


não sujarem minhas roupas.
Pra ninguém suspeitar.

RAY Eu não queria que fôssemos pegos.

Eu nunca mais
amei
Nunca desejei ninguém da tua idade de novo.
Nunca.

UNA Só eu.

RAY É.
Só você.
Você foi a única.

44
Pausa.

Isso nunca apareceu no tribunal.


O parque, os canteiros.
O cobertor.
Sempre me perguntei porque.

UNA Eu nunca contei.

RAY Por quê?

UNA Eu era
Não sei.
Nem você.

RAY Não.
Teriam me dado dez anos.

Pausa.

UNA Fui no tribunal só um dia.


Atrás daquela tela.
Nunca soube o que disseram.
Ninguém me disse nada.
Fiquei na casa de uns parentes.
Proibida de sair.
Sem televisão, sem jornal.
Ninguém me falou sobre o julgamento.
Até hoje minha mãe não
Qual era o nome da cidade?
Onde a gente
pra onde a gente foi.
Tinha uma praia.
Fomos pra lá para pegar uma balsa.
Estava escuro.
Inverno.
As lojas todas fechadas
Qual era o nome?

RAY Por quê?

UNA Eu quero saber.


Não acho em lugar nenhum.
Qual era o nome?
Nós andamos pela praia.
Estava frio.
Nos demos as mãos.

45
Só podíamos fazer isso porque estava escuro.
Você apontou para o mar.
Pro outro lado do mar pra onde nós íamos.
Você está vendo?
É lá.
Você alugou um quarto num hotelzinho.
Eu tive que ficar atrás de você enquanto você pagava a mulher.
Abaixei a cabeça e subi correndo as escadas
Você conhecia ela?
Aquela mulher.

RAY Não.

UNA Eu sempre achei que você conhecia.


Não sei por quê.

RAY Não.
Por que eu conheceria?
Não.
O que

UNA Tinha duas camas iguais

RAY Certo.

UNA Por que não

RAY Eu te disse porque.


Era
Eu não quero ouvir isso.

UNA Pois eu quero

RAY Nós dois sabemos o que aconteceu.

UNA Eu não.
Eu não sei de tudo.
Você não.
Você não sabe de nada.
Eu quero que você saiba.
O que eu fiz por você.

RAY O que você fez por mim?

UNA Qual era o nome da cidade?

RAY O que você fez por mim?

46
Pausa.

UNA Camas iguais.


Uma TV.
Nada mais.
A janela com vista pr’o mar.
Tiramos a roupa.
Fizemos sexo numa das camas.
Não sei por quanto tempo.
Eu vi o prazer que isso te deu.
Fiquei feliz de poder fazer isso.
Fizemos duas vezes, trepamos duas vezes.
Você me virou pra segunda.
Você fez tanto barulho.
Dormimos um nos braços do outro depois.
Eu chorei um pouco.
Meus pais deviam estar me procurando.
Deviam ter ligado pra minha amiga
talvez pra escola perguntando onde eu estava
por que eu não estava em casa
alguém teria me visto?

Pausa.

Você disse que precisava de cigarros.


Ia procurar uma loja, um bar.
Eu queria ir com você mas você disse não eu tinha que ficar esperando, tinha que
esperar por você
Não mais que cinco minutos.
E você me tocou você
me beijou entre as pernas
sua língua
em meus seios.
Você voltaria num minuto.

Fiquei deitada na cama.


Ouvi seus passos descendo.
Me enrolei no lençol e fui até a janela
Eu queria um chocolate
Tentei abrir.
Comeria qualquer coisa.
Um doce.
Gritei para você.
Chocolate.
Mas a janela não abria.
Eu vi você lá embaixo, abrindo o portão.

47
Eu bati na janela mas você
você já estava andando na rua, no meio da rua.
você não me ouviu.

Eu caí no sono e quando acordei não sabia a hora.


Estava ardda entre as pernas mas me sentia ótima.
Você ainda não tinha voltado mas eu estava tão feliz.
Meu homem voltaria logo e traria chocolate pra mim.
Não precisava dizer o que eu queria.
Você saberia e traria para mim.
Mas você não chegava.

O quarto tava frio.


Eu me vesti, olhei pela janela.
Seu carro ainda tava lá na rua.
Ouvir conversas lá embaixo, não claramente.
Mas vozes.
Desci as escadas.
A porta da frente tava fechada.
O único som era de uma TV vindo de um quarto.
As vozes eram da TV.
A porta entre-aberta.
Eu bati na porta.
Não aconteceu nada.
Não tinha ninguém lá.
Eu abri a porta da frente e saí.
Houve um grito quando eu fechei a porta.
A mulher.
Eu abri
vi que ela
o que você
vi que ela vinha atrás de mim
e eu, eu fechei a porta e
corri para o portão, fui para a rua e corri.

Fui andando até o centro da cidade.


Era tarde.
Dez horas no relógio da igreja.
A balsa saía à meia noite.
Não tinha muito.
Você não estava em lugar nenhum.
Vi uma loja aberta, luzes.
Eu perguntei se um homem tinha entrado pra comprar cigarros.
O cara disse pr’eu ir embora.
Ele achou que eu estava querendo comprar cigarros.
Eu tentei te descrever mas ele não me ouviu.

48
Então um bar.
O primeiro bar.
Você devia estar lá dentro bebendo e fumando um cigarro.
Mas eu não podia entrar
Eu tive que
toda minha coragem
esperei até que dois homens entrassem
fui atrás deles
e procurei por você
andando pelo bar.
Homens contando piadas, rindo.
O que eu estava fazendo?
Você está perdida, querida?

Eu disse meu pai.


O cara do bar me perguntou
Combinamos que se tivéssemos algum
problema
você era meu pai.
Disse a ele como você tava vestido, como você era.
Ele tinha visto você.
Você tinha ido lá.
Pelo sotaque.
Fumou um cigarro, bebeu, e saiu.
Ele ficou preocupado, o cara.
Perguntou meu nome e eu disse.
Ele queria sair comigo, me ajudar a te procurar.
Eu disse não, não, não, estou bem, estou bem.
Continuei andando.
Pela rua principal.
Umas pessoas passaram por mim.
Eu queria perguntar se elas tinham visto você mas eu não sabia o que dizer.
Entrei em outro bar, em outro.
Todos se viravam, olhavam para mim, gritando, rindo.

Eu andei andei.
O próximo bar, o próximo.
Pessoas me encarando, rindo, me mandando sair.
Passei por casas antigas
ficando cada vez mais longe do mar.
Andava dez passos, corria dez.
Você estaria na próxima esquina, na próxima.
A qualquer momento.
E cada carro era você.
Acabaram as casas.
Eu estava no fim da cidade.
A estrada continuava

49
Eu fiquei olhando pro campo escuro
Eu tinha ido muito longe.
Tinha andado muito.
Tinha chegado ao fim.
Você
Eu tinha te perdido.
Você tinha voltado pro hotel.
Tava procurando por mim, imaginando onde eu estava.
Eu tinha
Eu corri.
Eu corri de volta.
Achei que estava perdida mas vi que não estava.
Vi o relógio por cima dos telhados.
Fui na direção dele.
Eram onze e meia.
Ainda podíamos pegar a balsa.
Eu corri e corri.
Consegui achar o hotel.
Mas seu carro não estava lá.
Eu olhei bem
corri pra lá e pra cá olhando dentro de todos os carros mas
e minha bolsa tava dentro do seu carro
com minhas roupas
com tudo.
E você tinha ido.
As roupas que eu tinha trazido.
Mas
e
minha identidade no meu bolso isso
eu
O quarto
estava escuro, a janela. Eu não sabia o que fazer.
Esperei.
Sentei num banco.
Eu tava congelando, com fome.
Eu queria saber porque você tinha ido.
O que eu tinha feito.
Eu estava chorando.
Você tinha me deixado.
Você tinha
Ou alguma coisa horrível tinha acontecido.
Você tinha morrido sido assassinado ou
Eu não podia fazer nada, não podia ir a lugar nenhum.
Nós não conseguiríamos pegar a balsa.
Não iríamos embora.
Eu não sabia o que fazer.
Alguma coisa tinha acontecido.

50
Você não podia ter me deixado.
Você não faria isso.
Deu meia-noite.
Você não vinha.
Eu estava sozinha.
Uma mulher veio falar comigo.
Eles me viram e atravessaram a rua.
Um homem e uma mulher passeando com o cachorro.
Me perguntaram o que eu tava fazendo ali.
Onde eu morava?
Quem estava comigo.
Eu fui pra casa deles.
Eles me deram um cobertor e ligaram para os meus pais.
Eu me deitei no sofá e ouvi a mulher falando com a minha mãe.
A polícia tava lá com ela.
Eu senti um enjôo.
Queria morrer.
Eu nunca mais ia ver você de novo.
Eu ia ter que encarar eles todos
todos
todos eles
sozinha.

Eu protegi você.
Defendi você.
Fiquei
fui convincente
Eu disse à polícia que você não tinha tocado em mim.
Você não tinha feito nada.
Eu tinha
Eu tinha fugido
Eu queria fugir dos meus pais, de casa, da escola.
Você tinha me dado uma carona.
Você me ajudou a fugir.
Eu tinha te pedido, te implorado.
Você tinha me levado lá e ido embora.
Você não sabia de nada.

Eles quiseram fazer testes.


Tirar amostras.
Médicos, polícia.
Eu recusei.
Ninguém ia tocar em mim.
Eu gritei, berrei.
Você não tinha feito nada.
Você tinha
Eu queria que você

51
Eu queria você de volta.
Eu
Eles me drogaram.
Me deitaram e injetaram.
Abriram minhas pernas e tiraram
tiraram seu gozo.
Evidência.
Me perguntaram o que você tinha feito comigo.
Como eu não disse, então eles me disseram o que você tinha feito comigo.
Você só queria uma coisa.
Você conseguiu o que queria.
Minha minha mãe gritando comigo.
Ela
A polícia, a
a psiquiatra que falava
falava sempre baixinho
Adultos mentem.
Quando eles querem alguma coisa das eles mentem pra conseguir e, e nem
eles nem sabem que estão mentindo.
Eles nem se conhecem.
Às vezes eu não conseguia ouvir o que ela dizia.
Tinha que pedir
que ela repetisse
repetisse o que tinha dito.
Sabia o que eu tinha feito?
Sabia que eu tinha machucado as pessoas?
Pessoas que me amavam?
Será que era isso que eu eu queria?
E
Todo santo dia.
O que você tinha dito?
O que você tinha me prometido?
Que palavras
Que palavras você tinha usado?

E no tribunal eu sentei atrás daquela tela e falei.


Eu chorei.
Você me ouviu.
Eu chorei mais do que falei.
E então eu
Eu falei demais, eu
Os advogados ficaram loucos comigo.
Não era o que eles queriam.
Eu não consegui evitar.
Era você.
Você estava lá e eu não podia te ver então eu tinha que gritar.
Eu tinha que fazer você me ouvir.

52
Você me deixou sozinha.
Ardendo.
Você me deixou.
Você me deixou apaixonada.

No final quando eles vieram para casa


dentro de casa.
Meus pais.
Não na nossa casa.
Na casa dos parentes.
Eu estava na cama, esperando.
Eles não falavam.
Não se mexiam.
Eu sentei e esperei.
Eles não falaram logo.
Eu pensei que talvez você tivesse escapado.
Que você tinha sido solto.
Você voltaria a viver perto da gente.
Até que meu pai
mais tarde
me disse seis anos.
E durante a noite eu acordei e minha mãe estava lá.
Olhando para mim.
Gritando que eles tinham sido julgados
Ela tinha sido obrigada a depor
E meu pai teve que tirar ela de lá.
levar ela pra fora.
E
O juiz.
O que ele disse de mim.
Você vai se lembrar.
Eu tinha
modos
muito suspeitos de adulto.
Quando minha mãe me disse isso eu não sabia o que ela queria dizer.

E nós nunca mudamos daquela casa.


Eles
Pra, pra me envergonhar.
Pra me punir.
Eu era apontada.
Era estapeada na rua
Ou a psiquiatra disse para eles que era melhor ficar.
Pra pra continuar ou

Eu odeio a vida que eu tive.


Disso você não sabe.

53
Eu queria que você soubesse.
Eu sabia que você ia me esquecer.

RAY Eu te escrevi uma carta.


Depois de um ano lá dentro.
Eu mandei uma.
Eles me deixaram mandar uma.
Tiveram que ler primeiro.
Você recebeu?

UNA Não.
Eu nunca recebi carta nenhuma.

RAY Eles avisaram seus pais.

UNA O que dizia?

RAY Pra você me perdoar.


Explicando.
Me desculpando.
O que eu tinha aprendido sobre mim mesmo.

Pausa.

Teve uma outra carta


Que eles não me deixaram mandar.
Seria bom se você tivesse lido.

Eu voltei.
Eu estava voltando para você.

Pausa.

Eu comprei.

UNA Voltando?

RAY É.
Eu comprei os cigarros.
Eu
Escute.

UNA É essa história que você conta a si mesmo?

RAY Foi isso o que aconteceu.


Eu comprei os cigarros mas eu fui

54
UNA É isso que você costuma?
Pra pra
Pra isso?
Pra sorrir numa foto?

RAY Não.
Escuta.
Tinha um bar.
Eu
Escuta.
Eu bebi.
Precisava dar um tempo.
Eu tinha que pensar, que planejar.
A balsa, as identidades.
Como explicar.
O que dizer.
E eu precisava de uma bebida.
Precisava de coragem.
Ia acontecer.
Eu andei um tempo.
As ruas.
Atrás, em volta.
Eu sabia que você estava me esperando.
Mas eu tinha que
Quando eu voltei, pro hotel.
Olhei a janela.
A luz na janela.
A mulher tava lá.
Tirando os lençóis.
Ela disse que você tinha ido.
Você tinha fugido.
O que estava acontecendo?
Eu deixei ela.
Eu saí.
Você não estava no carro onde eu pensei que você estaria.
Nem na praia.
Eu gritei por você.
Achei que você estava se escondendo.
Saí guiando pela cidade procurando por você.
Eu não conseguia te encontrar.
Eu não sabia pra onde você tinha ido.
Por que você tinha ido.
Eu entrei em pânico.
Eu achei que a polícia ia aparecer a qualquer momento, iam apreender meu carro.
Eu estacionei.
Eu voltei pro bar.
Pro mesmo bar e pedi mais uma bebida.

55
Ele não se mexeu, o homem de lá. o mesmo homem que tinha me servido.
Ele ficou me encarando.
Me perguntou sobre minha filha.
Será que, será que eu tinha encontrado ela?
E eu
Eu olhei pra ele e disse sim, sim eu tinha, ela tava bem.
Tinha outro cara ao meu lado.
Perguntando se eu tinha uma filha e qual era o nome dela.
Eu
e eu
Um outro homem se levantou.
O primeiro se apoiou no balcão, tentou me agarrar.
Eu me soltei, xinguei.
Eles
Disse a eles
Três, quatro caras atrás de mim.
Eu corri.
Eles me seguiram.
Dois continuaram me seguindo.
Eu me escondi
corri pra qualquer lugar, um
Eu escapei.
Eu me escondi por, não sei, uma hora.
Eu ouvi o relógio dar meia-noite.
Eu voltei pr’o carro e, saí dirigindo
Eu não sabia se você tinha ido à polícia ou
se eu estava te deixando
mas eu não podia ficar.
Fui dirigindo até o cais.
Pr’o lugar de onde saía a balsa.
Se por acaso você tivesse ido, ido pra lá.
Podia estar me esperando lá.
Eu esperei até clarear o dia.
Então eu sabia que já era.

Eu continuei dirigindo.
Não sabia pr’onde ir.
Fui para o oeste.
Ouvi a notícia no rádio
Sã e salva.
Encontrada por um casal que passeava com o cachorro.
A polícia tava me procurando.
Procurando meu carro.
Eles deram o número da placa.
Eu fui para o litoral.
Usava só as estradinhas.
Larguei meu carro

56
Andei.
Achei um telefone público, liguei pra polícia.
Fiquei esperando lá até eles chegarem.
Eu nunca teria deixado você lá.

Pausa.

UNA Mas não faz diferença.


Ter ou não ter deixado
Não

RAY Faz.
Pra mim faz.

UNA Melhor pra você.


Mas fácil pra você.

RAY Não é mais fácil.


É
O advogado

UNA Por que tá dizendo isso


Por que tá dizendo isso agora?

RAY O advogado disse que seria melhor se eu tivesse deixado você lá


porque mostraria que eu sabia da gravidade
do terror daquilo que eu tinha feito
Que eu larguei você.
Pra pra nunca mais voltar.
Porque o que ia parecer pr’os jurados
teria parecido
Que eu estava voltando
pra mais.
Ou por que por que eu estaria voltando?

Quando eu não consegui te encontrar naquela noite.


Eu pensei que alguma coisa tinha te acontecido.
Eu sabia que você não me deixaria.
Alguém tinha te levado.
Alguém, tinha te insultado.
Até mesmo talvez
talvez eu devesse ter ido à polícia.

Quando eles me encontraram eu estava no chão da cabine telefônica.


Encolhido.
Chorando.

57
Porque eu tinha te perdido.
Eu, eu não tinha te protegido.

Fazia eu me sentir melhor.


Dizer que eu estava voltando.
Ainda faz.
Seja lá quem eu era na época.
Isso me faz sentir melhor.

UNA Por que você não mandou a carta?

RAY Eu disse.
Eles não deixaram.

UNA Devia ter um jeito.

RAY Não.

Pausa.

Ela olha para ele.

As luzes se apagam de repente, na sala e nas janelas.

UNA O que foi que aconteceu?


O que foi que aconteceu?

RAY Eu não

UNA se encosta na parede.

UNA O que está acontecendo?

RAY Eu tenho que ir ver.

UNA Tem alguma coisa errada?

RAY Não.
Espere aqui.

UNA Onde você vai?

RAY Eu tenho que descobrir o que


Fique aqui.
Ta bem?

UNA Tá.

58
RAY Só um minuto.
Provavelmente é um problema na força ou mas
Espere aqui.

Ele abre a porta, sai

UNA espera, imóvel.

Lá fora, sons distantes de portas fechando.

Passa um minuto.

UNA Ray.
Ray.

Ela vai até a porta, olha para fora para a escuridão, assustada.

Ela volta.

A luz volta na sala mas não nas janelas.

RAY volta.

RAY Inacreditáveis.

UNA Quem?

RAY Eles.
Todos eles.
Foram embora.

UNA Todos eles?

RAY É.
Pra casa.

UNA As portas estão trancadas?


Nós estamos

RAY Não.
Não.
Eu tenho as chaves.
Eu tranco.

UNA Por que não te avisaram?

59
RAY Não sei.
Eles
São uns imbecis.

Que mal há nisso?

Um deles não deve ter


nem pensou que.
Eles são

UNA É você quem fecha?

RAY Eu tenho as chaves.


Geralmente sou o último

UNA É você que vai fechar hoje?

RAY Sou.
Por quê?

UNA Você é o

RAY O quê?

UNA O vigia?
O, o
segurança?

RAY Não.

UNA O zelador, o porteiro?


Você é

RAY Não.

UNA Eles devem achar você muito

RAY Não sou.

UNA Pra te deixar aqui.

UNA Eu não sou

UNA Você ainda não acabou de limpar.


Você tinha

RAY Estou de

60
UNA melhor começar.

RAY uniforme?

UNA Olhe para isso.

RAY E essas calças.


E esses

UNA Você ficou com

RAY sapatos

UNA algum tipo de fixação.

RAY Na foto não diz a equipe de zeladores.


O que você quer dizer, fixação?
O quê?

UNA Calças, bermudas.

RAY Do que você tá falando?


Eu sou
Eu tenho uma posição aqui.

Pausa.

UNA Eu não sei para quem eu estou olhando.

RAY Eu dei duro pra conseguir isso.


Trabalhei muito pra chegar aqui.

UNA Você sabe?

RAY Tudo tinha se acabado pra mim.


Se fechado pra mim.

UNA Alguém?

RAY Eu me escravizei.
Para não acabar como faxineiro.
Como zelador.
Um bêbado.
Um
um nada
Para salvar alguma coisa pra mim

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UNA Você não mudou nada.
Você ainda fala só em
só fala em conseguir, em
Mente e nem sabe que ta

RAY Cale a boca.

UNA Eu não sei no que acreditar, Ray.


As opções são tantas.
Você mora aqui?

RAY O quê?

UNA Talvez toda essa

RAY Do que você está falando?

UNA a comida seja sua.


Isso é seu.
Você mora aqui e você
Você nunca sai.
Você nunca
Você não tem ninguém.

RAY Eu tenho alguém sim.

UNA Você mora aqui e come aqui e

RAY Eu encontrei alguém


Eu

UNA Ela sabe?


Ela sabe que você ia voltar pra mim?
Disse isso a ela?

Você não disse a ela.


Disse?
Você não contou nada pra ela.

RAY Eu queria.
Queria ter contado mas
não devia
E nós temos uma vida
Consegui mais muito mais do que eu pensava

UNA Você

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RAY do que imaginava.
Daquela cabine telefônica.
Desde então
Encolhido chorando.
Eu
Meus pais.
Minha família.
Quando eu tava preso.
Os amigos.
fizeram nada por mim.
Meu apartamento foi confiscado.
Eu tinha dívidas.
Não tinha nada.
Mas encontrei ela.
Dei muita sorte

UNA Meu Deus.

RAY Sou um cara de muita sorte.

UNA Posso conhecer ela?

RAY Não seja burra.

UNA Mas eu não sou burra, Ray.


Você disse que eu não era burra.
Eu quero conhecer ela.
Essa mulher maravilhosa.
Que jamais perdoaria se soubesse.
Que
Descreva ela.
Como é que ela é?

RAY Por que?

UNA Ora vamos.


Como é que ela é?

RAY Não.

UNA Ela é bonita?


Atraente?

RAY sai dela.

UNA vai atrás dele, aproximando-se.

63
Loura, morena?
Alta ou baixa?
Burra ou inteligente?
Ignorante.
Você é um covarde.
Por viver assim.

RAY Por que não cala essa boca?

UNA Eu odiaria ser ela.

Quantos anos ela tem?


Qual a diferença de idade entre vocês?
Quantos anos

RAY Um ano.
Ela é um ano mais velha do que eu.

UNA Então ela é tão velha como você.


Sessenta anos.

RAY Ela não tem sessenta anos.

UNA Você tem quase sessenta.

RAY sai dela.

Ela ainda é sexy?


Ela ainda te excita?

RAY Excita.

UNA O que ela faz com você?

RAY Meu Deus.

UNA O que você gosta?


Daquela pele toda enrugada.
O que ela faz que você mais gosta?

RAY Você é doente.


tem que

UNA Eu não sou doente.

RAY Não chegue perto de mim.

64
UNA Eu não sou doente.

Pega uma cadeira e o ameaça com ela.

Não sou doente.


Você é que é.

Pega outra cadeira.

RAY tenta pará-la.

Eles lutam.

UNA cai no chão, dá um grito de dor.

RAY Você ta bem?

UNA Sai de perto de mim.

Pausa.

RAY Quanto tempo você levou pra chegar aqui?

UNA Por que?

RAY Veio direto pra cá?

UNA dá um risinho.

UNA Tem uma


Na sua camisa.
Ta molhada.
É comida ou

RAY Deus.

UNA O que foi?

RAY Não sei.


Ta molhada.
Meu Deus
Tenho que

Vai até um dos armários, abre-o.

Nada.

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Pensei que tivesse outra camisa.

Ele se senta.

To cansado.

UNA Também to cansada.

RAY Entrei hoje às seis.

UNA Longo dia.

RAY Jornada dupla.

UNA Você gostava de boas roupas.


O paletó que você usava.

RAY Não sei o que aconteceu com ele.

UNA Suas roupas agora, são

RAY Eu sei.
Baratas.
O salário aqui não é dos melhores.
Não me pagam o que deviam.
Eu devia pedir um aumento.

Eu gosto da sua roupa.

Pausa.

UNA Cadê a água?

Ele pega a garrafa d’água, dá pra ela.

Ela bebe.

Pausa.

Eu tenho um emprego.
Eu trabalho.
Antes, passei uns anos viajando.
Agora eu trabalho.
Ganho um bom dinheiro.
Bebo moderadamente.
Não tenho problemas com comida
Alguns novos amigos.

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Não muitos.
Meu apartamento podia ser um pouco maior.
Sou péssima motorista.
Mas meu carro é legal.

Como vai sua mãe?


Você ainda vê ela?

Eu não tenho escolha.


A minha vem me ver sempre.
Fica me espionando.
Ainda ainda não confia em mim
Se ela soubesse.
A cor que ela ia ficar

De repente ela ri de si mesma.

Minha mãe.
Ela começou a me arranjar namorados. Perguntava.
Há um tempo atrás. Candidatos. Filhos das amigas, vizinhos.
Convidava eles pra virem em casa, tomar chá.
Parecia coisa do século dezenove. Ela oferecendo minha mão.
Porque antes disso eu dormia com um monte de caras. Um monte.
E quando eu ficava triste. Quando eu ficava farta
quando depois que eu tinha feito meus pais sofrerem bem porque eu contava pra
eles
Eu contava pra eles cada mínimo detalhe do que eu fazia com esses caras. Eu
parava.

RAY Quantos caras?

UNA Você não acha que eu contei, acha?

RAY Sei lá. Quem sabe.

UNA Oitenta e três.

RAY Você tem alguém agora?

UNA Tenho.

RAY Ele não sabe que você ta aqui?

UNA Não.
Não contei pra ele.
Não disse nada pra ele.
Eu não quero.

67
Gosto demais dele.
Estamos separados agora.
Depois de três anos.
Mas eu amo ele.
Quero voltar a amar ele.
Se a gente pudesse.
Essa água.
Preciso beber alguma coisa.
Um drinque de verdade.
Minha boca está seca

RAY Cerveja.

UNA É.
É isso que você bebe?

RAY Às vezes sim.


Vinho.
Melhor a gente ir
Uma cerveja seria legal.
Você não quer?

UNA Sair pra beber

RAY Tem um lugar não muito longe

UNA Um drinque

RAY Não.

UNA Não.

RAY Minha barriga


Muita cerveja
Tem uma cerveja boa lá.

UNA Cerveja européia?

RAY Não sei de onde é.

UNA Da Holanda.

RAY Dizem que é da Holanda, mas deve ser daqui mesmo.

Eles riem.

UNA Não tem mais balsa saindo prá lá.

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RAY Eu sei.

Riem novamente.

UNA Isso aqui ta um chiqueiro.

RAY Eles
Amanhã eles vão comer aqui de novo no meio dessa
e não é
porque o faxineiro o
cara da limpeza
não serve pra nada
Ele não faz nada. Ele lê.
Tem uma sala e fica lá sentado lendo e

UNA Cadê ele?

RAY Ta doente.
Vive doente.
Fica doente a hora que quer.

Pega novamente em sua camisa.

Isso aqui ta um nojo


Um chiqueiro

Vai rapidamente até a lixeira e dá-lhe um chute

Esta vira, espalhando o lixo.

Ele chuta o lixo.

UNA junta-se a ele.

Eles chutam o lixo juntos.

Espalham o lixo pela sala.

Param, olham-se.

Recomeçam.

Ele pára, sem fôlego. Se senta.

Ela chega perto dele.

69
UNA Você ta bem?

RAY Acho que sim.


Isso ta parecendo uma ferida.
Ta tão molhado
Eu vou morrer aos sessenta anos.
Sei que vou.
Eu sempre tive
uma
Um pressentimento.
Só me restam quatro.
Só quatro anos.
Ficava imaginando como você tinha crescido.
Como você tinha ficado
O tipo de pessoa que você tinha se tornado.
Como era sua vida.
E olhar pra você agora.
E você infeliz.
Eu o culpado disso.
Eu não queria nunca ter machucado você

UNA Mas machucou.

Ele levanta a mão, faz um carinho nela.

RAY Você estava tão sozinha


Antes de me conhecer.
Antes de me conhecer você era tão sozinha. Você era uma criança sozinha.
Seus pais deixavam você sozinha. Você nunca me disse isso mas
quando eu te abraçava eu sentia.
Eu vejo agora.
Pensava que você fosse forte
Mas não era
Nem eu

Eles se beijam.

Eu pensei em você.
Eu penso em você.

UNA O que você pensa?


Você pensava em mim na época?

RAY Pensava
pensava sim.
Era tudo que eu tinha.

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UNA Naquele quarto?

RAY É.
Tocando em você.
Pegando em você.

UNA Me fodendo?

RAY É.
Fodendo você.

UNA Você se masturba?


Você goza?

RAY Gozo.

Eles se beijam.

Começa a ficar mais intenso.

Começam a tirar a roupa um do outro.

Vão para o chão.

RAY se reprime.

Não.
Eu não posso.
Não posso.

UNA Eu quero que você.

RAY Não.

UNA Por que não?

RAY Desculpe
Não posso.

UNA Estou muito velha?

De fora da sala, uma voz de mulher chamando.

VOZ Peter?

RAY Ta tudo bem.

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Ele parece não ter ouvido.

UNA Você

VOZ Peter?

Ele olha para a porta.

UNA É ela?

RAY É.

Mais uma vez ouve-se a voz chamando, agora, mais longe.

VOZ Peter, você t’aí?

PETER Ela ta do outro lado do prédio


A gente pode.

UNA O que?

PETER A gente tem que sair.

Pausa.

Som da maçaneta da porta sendo aberta.

RAY se dirige para um dos armários.

Abre-se a porta e uma MENINA de doze anos aparece.

MENINA Você t’aqui.


Peter.
Você t’aqui.

RAY Oi.

A MENINA vai até ele, abraça-o.

O que você está fazendo?

MENINA A gente tava procurando você.


Onde você tava?

RAY Tava aqui.


Me trocando.

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Ele se afasta um pouco dela.

Estou ocupado.

MENINA O que você ta fazendo?

RAY Olha a sujeira que está aqui.

MENINA Vou ajudar você.

Ela se abaixa para pegar o lixo.

Você come demais.

Ela ri consigo mesma.

RAY Não.
Não, querida.
Não.

Mais firme.

Largue isso.

A menina deixa cair o lixo, fica olhando para ele.

Vá encontrar sua mãe.


Diga a ela que já estou indo.
Diga que vou encontrar com vocês na portaria.
Vou pegar o carro e encontrar com vocês na portaria.
Esperem por mim lá.
Só uns minutos
Vá.

MENINA Vem comigo.

RAY Não posso.

MENINA Por que?

RAY Não posso ir agora.


Eu vou.
Cinco minutos.
Tenho que trancar as portas.

MENINA Por que não posso ficar aqui com você?

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RAY Não devia nem ter entrado aqui.
É proibido.
Agora você tem que ir.

A MENINA vê UNA.

MENINA Quem é essa daí?


Peter?
Por que ela está aqui?
Por que ta se escondendo?

RAY Ela não esta se escondendo.

UNA Não to me escondendo.

A MENINA vai até RAY.

MENINA Peter, quem é ela?

RAY Uma amiga.

MENINA Ela trabalha aqui?

UNA Nós só estávamos conversando.

RAY E você nos interrompeu.

MENINA Você vai vir com a gente?

UNA Não.

RAY Querida

MENINA Você conhece minha mãe?

UNA Não, não conheço.

MENINA Como ela se chama?

RAY Una.

UNA Você tem que ir agora.

RAY Tem sim.

MENINA Quero ficar com você.

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RAY Querida, não pode.
Vá procurar sua mãe.

UNA Vá.
Por favor.
Vá.
Você tem que.

UNA conduz a MENINA para fora da sala.

Silêncio.

Ela não é sua?

RAY Não.
É de outro homem.
Você não é minha minha
Não tenho que ficar lhe contando tudo.

UNA faz um som.

Não.

UNA Oh meu Deus.

RAY Não.
O que que você ta pensando?

UNA Você não.


Oh meu Deus.

RAY Não.
Eu nunca.
Acredite.

Ele chega mais perto dela.

Eu cuido dela.
Eu tomo conta dela.
Eu nunca.

Ele pega ela, tornando-se mais insistente.

Nunca faria isso.


Jamais seria capaz.
Acredite em mim.
Tem que acreditar em mim.

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Ele pára.

Nunca.

Ele abraça ela, acariciando seu rosto.

Ele a beija.

Ela não retribui.

Ele sai dela.

Não tenho mais nada a dizer.

Eles se olham.

Pausa.

Os dois olham para a porta.

RAY dá um passo na direção da porta.

UNA Espera.
Você não pode.

RAY Tenho que.

UNA Não.

RAY Tenho que ir encontrar elas.

UNA Não.

RAY Elas precisam de mim.

Ela vai para ele e o abraça.

UNA Não.
Você não pode.
Não pode voltar pra elas.

RAY Me deixe.
Me deixe.

UNA Não.

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RAY Deixe-me ir.
Deixe.
Tenho que

UNA Você não pode.

RAY Me solte.

Ela se agarra com mais força.

Ele empurra ela.

Ela volta para ele.

UNA Deixe eu ir com você.


Elas tem que saber.

RAY Me solta porra.

Ele dá em empurrão nela.

UNA quase cai.

RAY sai.

UNA Ray

UNA sai correndo da sala.

A sala fica vazia.

Fim.

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