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FACHIN, Luiz Edson.

A função social da posse e a propriedade contemporânea: uma


perspectiva da usucapião imobiliária rural. Porto Alegre, Fabris, 1988.

Quem é o autor? Graduado na Universidade Federal do Paraná, com título de Mestre,


Doutor pela Universidade de São Paulo. A tese foi apresentada para o ingresso enquanto
professor na Universidade Federal do Paraná. Ministro do Supremo Tribunal Federal,
indicado por Dilma Roussef após a vacância deixada por Joaquim Lustosa. Relator nos
processos da Operação Lava Jato. Em Direito Civil, é alinhado com a corrente de
Direito Civil Constitucional.

O autor inicia a obra explicando que a ideia de que a posse é somente a exteriorização
da propriedade se encontra superada pela realidade. Esse “enjaulamento” do fenômeno
é, inclusive, contraditado pela prioridade histórica da posse sobre a propriedade. É
porque, cronologicamente, a propriedade começou com a posse geradora da
propriedade, ou seja, a posse para a usucapião. Dessa forma, a posse não seria somente
um mero conteúdo da propriedade, mas sim, e principalmente, sua causa e sua
necessidade. Causa porque é a sua força geradora. Necessidade porque exige a sua
manutenção sob pena de recair sobre aquele bem a força aquisitiva.

Histórico da posse e propriedade

Em seguida, o Autor traz uma perspectiva histórica sobre os institutos. Narra que foram
os romanos os criadores do direito à propriedade privada e do direito privado como um
todo. O direito romano, porém, se ocupou mais dos elementos da propriedade do que de
lhe dar um conceito. O primeiro modo de propriedade reconhecido naquela ordem
jurídica foi a propriedade quiritária, reservada aos cidadãos romanos e atinente ao jus
civille. Em seguida, houve o desenvolvimento da propriedade bonitária, figura afeta ao
jus gentium. A idade média, por seu turno, consagrou a superposição de propriedades
diversas sobre um mesmo bem e a revolução francesa instaurou o individualismo e o
liberalismo. Sobre essa fase histórica, o autor, se remetendo a trecho de José de Oliveira
Ascenção, faz a seguinte ponderação: “O numerus clausus inscreve-se, ou pelo menos
pode-se inscrever, neste movimento. Abolidos os vínculos feudais e instaurada uma
nova ordem sobre os direitos e as coisas, um sistema fechado serve à maravilha para
perpetuar as conquistas obtidas; tudo o que se não adaptar ao esquema legislativo é
rejeitado” (p. 16).

Função social da posse

Em seguida, a obra trata sobre a função social. Para o autor, a função social se relaciona
com o uso da propriedade, alterando, por conseguinte, alguns aspectos pertinentes a essa
relação externa que é o seu exercício. Fazendo um paralelo com o direito obrigacional, o
autor cita Eduardo Spíndola, para quem: “o pressuposto de confiança recíproca e boa-fé,
que se integra no moderno conceito de obrigação, encontra correspondência na função
social, implícita no direito de propriedade, no sentido de consideração à solidariedade
social, compreendendo os direitos do proprietário e os deveres que lhe são impostos
pela política legislativa” (p. 17). Para o autor, “a doutrina da função social da
propriedade corresponde a uma alteração conceitual no regime tradicional; não é,
todavia, questão de essência, mas pertinente a uma parcela da propriedade que é a sua
utilização” (p. 18). O autor parece se alinhar, portanto, à chamada teoria externa da
função social, o que parece ser reforçado por trecho posterior em que afirma que a
propriedade não é função social, e sim tem função social. Nessa linha de ideias, entende
a função social como um fator de legitimação, e não como condição sine qua non para
adquirir o direito de propriedade. A expressão função social compreenderia, portanto,
limitações, em sentido largo, impostas ao conteúdo do direito de propriedade. Tem por
objetivo instituir um conceito dinâmico da propriedade, em substituição ao conceito
estático.

Explica que a função social é muito mais evidente na posse do que na propriedade, visto
que a propriedade, mesmo sem o uso, pode se manter como propriedade. Por outro lado,
o fundamento da função social da posse revela “uma expressão natural da necessidade”
(p. 20). Isso porque a posse tem um sentido distinto da propriedade, sendo uma forma
atributiva da utilização das coisas ligadas às necessidades comuns de todos os seres
vivos (p. 21). Enquanto a propriedade é dado criado e dotado de abstração, a posse é
dado dotado de realidade e de concreção A posse então assume uma perspectiva que não
se reduz a mero efeito, nem a ser encarnação da riqueza ou poder: é uma concessão à
necessidade (p. 21). É nesse panorama que entende o autor ser a posse uma legitimação
ao uso.

Ihering e Savigny

O autor segue trazendo a evolução do fenômeno possessório no direito romano até


chegar à clássica querela doutrinária entre Ihering e Savigny. O autor explica que em
Savigny o centro da proteção possessória, ou seja, protege-se a posse porque nenhuma
pessoa deve ser vítima de violência. Em Ihering, a posse gira em torno da propriedade e
a sua defesa é a guarda avançada da propriedade, ou seja, é a exteriorização da
propriedade. A teoria de Ihering abre exceção à defesa possessória ao não proprietário
porque se baseia em uma aparência: exteriormente não há diferença entre o possuidor
proprietário e o possuidor não proprietário. Justificaria a posse, portanto, ao locatário,
usufrutuário, comodatário e outros possuidores diretos. Essa possibilidade não se
verifica na teoria de Savigny. Essa teoria foi designada objetiva porque prescinde o
animus domini. A vontade de possuir não é o que distingue o possuidor e o não
possuidor, mas tão somente a expressa regra legal. A distinção entre detenção e posse é
explicada por Savigny porque o detentor não possui o animus domini, enquanto o
possuidor sim. Por outro lado, Ihering explica essa mesma distinção por uma
perspectiva estritamente positiva, ou seja, é a previsão legal de certas causas obstativas
para a posse que faz com que a relação com a coisa se torne uma mera detenção. A
natureza da posse em Savigny está ligada aos fatos, enquanto para Ihering se encontra
mais próxima a um direito, embora não se explicite se real ou pessoal. O fundamento da
proteção possessória para Savigny é o princípio geral da interdição da violência,
enquanto para Ihering é um meio de facilitar a defesa da propriedade. O Código Civil
brasileiro e o alemão são mais inclinados à teoria objetiva, enquanto os códigos
português, italiano e francês são mais inclinados à subjetivista.

Usucapião

Historicamente, a usucapião sempre esteve relacionada ao uso da coisa. “Originalmente,


contudo, a usucapião já não se estendia sobre todos os bens (os denominados fundos
provinciais excluíam-se da usucapião) nem todos os sujeitos podiam lançar mão do
instituto (usucapião era modo de adquirir, os estrangeiros tidos como tais não podiam
invocá-lo dado que a eles não se estendiam os direitos do ius civille). Como se vê, trata-
se de uma restrição quanto ao objeto e quanto à pessoa.” (p. 33). Existem duas
principais teorias que fundamentam a usucapião, a primeira, chamada de teoria
subjetiva e calcada no ânimo de renúncia ao direito pelo proprietário, a segunda,
chamada de teoria objetiva e calcada em considerações de utilidade social.

“Surge outro problema quanto aos direitos reais ou até mesmo quanto aos ônus reais
instituídos pelo usucapido, então proprietário, antes ou durante a posse para usucapião.
O que se pode ter como razoável é que tais gravames, ainda que exteriorizados mediante
inscrição imobiliária, não se transmitem ao usucapiente”. (p. 39)

“Há quem elenque a usucapião como um dos modos de perda da propriedade, ao lado da
desapropriação, da alienação, da renúncia, do abandono e do perecimento do objeto. Tal
posicionamento, em verdade, é consequente do entendimento de que a usucapião não é
modo originário de aquisição da propriedade, e, sendo então modalidade derivada,
pressupõe a vinculação do novo titular do direito real com o antigo titular usucapido.
Para este, com a aquisição do direito real por aquele, ocorre a sua correlata perda. A
usucapião se consuma com a posse continuada e esse fato, aliado aos demais
pressupostos legais, acabam por constituir um direito real novo. Esse é o fulcro da
questão: a aquisição do direito real. Se eventualmente sobre tal direito repousava antigo
titular, a perda do seu direito é consequência da aquisição pelo prescribente. Logo, é
efeito da usucapião e não a usucapião em si.” (p. 40)

“Na usucapião, o fato principal é a posse, suficiente para originalmente se adquirir; não
para se adquirir de alguém. É bem possível que o novo direito se tenha começado a
formar antes que o velho se extinguisse. Chega momento em que não dá mais para
subsistir, suplantado por aquele. Dá-se, então, impossibilidade de coexistência, e não
sucessão, ou nascer um do outro. Nenhum ponto entre os dois marca a continuidade.
Nenhuma relação, tão-pouco, entre o perdente do direito de propriedade e o
usucapiente”. (p. 41).

“O fundamental na usucapião é a aquisição do domínio pela consumação da posse


requisitada. A perda da propriedade pelo eventual proprietário usucapido é
consequência. Identificar causa e efeito é incorreção lógica evidente. Referimo-nos a
eventual proprietário porque nada impede a usucapião sobre o imóvel cujo proprietário
não é conhecido pelo usucapiente” (p. 42)

“A transferência do domínio de um imóvel hipotecado, por venda, não levanta por si só


a hipoteca que perdura sobre o imóvel adquirido. Isso se dá na aquisição derivada. A
usucapião extraordinária de imóvel eventualmente hipotecado não respeita tal gravame,
e o usucapiente o adquire livre desse ônus. O mesmo ocorre com a usucapião ordinária,
muito embora se existem defeitos tais no título que não permitam figurá-lo de justo
título, na hipótese não caberá a usucapião dita abreviada”. (P. 46")

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