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O DIREITO DE PROPRIEDADE

A Constituição da República brasileira de 1988 estabelece em seu artigo 5º, inciso XXII,
ser garantido o direito de propriedade, encetando, ao mesmo tempo, um direito e uma garantia
fundamentais. De outro lado, no inciso XXIII do mencionado dispositivo, afirma que a propriedade
atenderá a sua função social, criando claramente uma limitação àquele direito. A partir disso, a
Carta traz institutos que regulam a utilização da propriedade e que possibilitam a intervenção do
Estado neste domínio privado, permitindo, ainda, ao ordenamento inferior a criação de outras
formas de ingerência.

O conjunto de normas constitucionais sobre a propriedade revela que ela não pode
mais ser considerada como mero instituto de direito privado, devido à sua constitucionalização,
atuando como direito fundamental e como princípio. Além disso, as facetas da função social, as
limitações e a interferência estatal demonstram a perda do caráter absoluto de outrora,
relativizando-se seu conceito e aplicação, passando a ser considerada como um dos
instrumentos capaz de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Sendo assim, sem a pretensão de esgotar o tema, visa o presente trabalho estudar as
limitações constitucionais ao exercício do direito à propriedade privada, bem como formas de
intervenção estatal presentes no ordenamento jurídico inferior. Para este fim, é necessário tecer
breves considerações acerca do direito de propriedade e da função social.

Segundo Coulanges (1981), historicamente, a família, a religião e a propriedade se


firmaram como instituições que se consolidaram de maneira interdependente e entrelaçada,
viabilizando a consistência da sociedade como um todo, inclusive, suplantando os desafios
decorrentes da evolução a que está submetida, em virtude de sua inerência à natureza humana.
Dessa forma, desde épocas mais remotas, estes três pilares sustentam e justificam a existência
da sociedade.

Explica Costa (2003) que o pilar da propriedade possui ligação com o estado de
natureza. A necessidade de sobrevivência fez com que os indivíduos se agrupassem em sistema
de cooperação mútua, levando a crer que a primeira propriedade erigida tenha sido a comunal,
e não a privada, considerando-se o vínculo da terra com os grupos familiares e religiosos.

Sustenta a autora que a propriedade comunal sofreu, ao longo do tempo,


um processo de individualização, justificado pelo advento das especializações de produção de
subsistência, prática de atividades agrícolas, domínio de terras por conquistadores, entre outros
fatores. Segunda ela, chegando à Idade Média, depara-se com o regime feudal, “onde, em
contrariedade ao modelo exclusivista da propriedade romana, assegurava-se um sistema
dominial sucessório enfitêutico” (2003, p. 46).

Com o advento da Idade Moderna, a partir de fatores como o Mercantilismo, o


Iluminismo e a Revolução Industrial, a propriedade se tornou o alvo mais almejado, passando a
ser um fim em si mesma, servindo de capital para gerar mais capital. Conforme Costa (2003), na
Idade Contemporânea, a propriedade recebeu novos contornos: os direitos perpétuos à
propriedade e os privilégios das classes abastadas foram extintos; o interesse social reclamava
restrições às prerrogativas privadas, exigindo-se do Estado a viabilização do exercício da função
social.

Há diversas teorias que buscam explicar a propriedade privada e as razões que a


fundamentam, ou seja, o que leva um indivíduo a tornar-se dominus de uma coisa ou a base
jurídica do exercício do direito em análise.

De acordo com a teoria da primeira ocupação, preconizada por Grócio, o homem


estendeu seu domínio sobre a natureza através da ocupação primitiva das coisas sem dono.
Com isso, adquire-se o direito sobre o bem, transmissível ao longo do tempo. Para a aquisição
do domínio basta a mera ocupação, sem considerar a circunstância em que ocorreu.

Para a teoria do trabalho, adotada por Locke, Guyout e Mac Culloch, as coisas chegam
ao domínio do homem por meio da transformação ou elaboração de matéria bruta, e não somente
por simples apropriação. Todos os bens da natureza seriam comuns, podendo ser utilizados por
qualquer pessoa, não significando em sua apropriação. Assim, o trabalho consistiria no título
legítimo da propriedade. Pela teoria da especificação, similar à anterior, a propriedade se justifica
quando, pelo trabalho, o especificador obtiver espécie nova, utilizando matéria-prima alheia e
instrumentos pessoais.

Segundo a teoria da natureza humana, a propriedade é característica natural do


homem, a tal ponto que vem a ser sucedânea a sua existência e pressuposto de sua liberdade.
O instinto de sobrevivência induz o ser humano a apropriar-se de bens para suprir suas
necessidades físicas e morais. A preservação da sociedade civil depende, basicamente, da
garantia jurídica da propriedade.

A teoria individualista ou da personalidade, por sua vez, preconiza que, para a


manutenção da propriedade, ela precisa estar em constante utilização, devendo haver a projeção
da personalidade do proprietário no bem de seu domínio.

A teoria positivista, promovida por Montesquieu, Hobbes, Benjamin Constant,


Mirabeuau e Bentham, acredita ser a lei o fundamento de existência da propriedade. Esta existe
porque assim o quer a lei e essa fica submetida à vontade do legislador, conforme a concepção
deste quanto ao que seja bem comum.

Por fim, a teoria da função social, defendida por Josserand, Duguit, Proudhon e outros,
posiciona-se no sentindo de que a propriedade não é um direito, mas uma função voltada a
atender os anseios públicos e coletivos. Esta teoria será analisada adiante, em tópico próprio,
por ser um princípio a ser interpretado à luz do constitucionalismo brasileiro vigente.

Visto, brevemente, a evolução da propriedade ao longo da história e as teorias que


estudam os seus fundamentos, passa-se à análise sobre seu conceito, natureza e regime
jurídico.

Aduz Silva (2011), o direito de propriedade fora concebido como uma relação entre
uma pessoa e uma coisa, de caráter absoluto, natural e imprescritível. Com a evolução do
conceito, passou-se a entendê-lo como uma relação entre um indivíduo (sujeito ativo) e um
sujeito passivo universal integrado por todas as pessoas, o que tem o dever de respeitá-lo.
Assim, o direito de propriedade se revela como um modo de imputação jurídica de uma coisa a
um sujeito.

Estes conceitos, segundo o autor, manifestam uma visão muito parcial do regime
jurídico da propriedade, baseado em uma perspectiva civilista, que não alcança a complexidade
do tema, resultante de um conjunto de normas jurídicas de Direito Público e de Direito Privado,
e que pode interessar como relação jurídica e como instituição jurídica.

Ademais, o caráter absoluto do direito de propriedade foi sendo superado a partir da


criação do sistema de limitações negativas e de imposições positivas, deveres e ônus,
desaguando na concepção da propriedade enquanto função social. Não se confunde mais,
assim, a faculdade que possui qualquer indivíduo de chegar a ser sujeito desse direito, que é
potencial, com o direito de propriedade sobre um bem, que somente ocorre quando é atribuído
positivamente a uma pessoa, o que faz superar a ideia da propriedade como direito natural.

Silva (2011) explica as divergências doutrinárias sobre o regime jurídico da propriedade


privada:
Os juristas brasileiros, privatistas e publicistas, concebem o regime jurídico da propriedade
privada como subordinado ao Direito Civil, considerado direito real fundamental. Olvidam as
regras de Direito Público, especialmente de Direito Constitucional, que igualmente disciplinam a
propriedade. Confundem o princípio da função social com as limitações de polícia, como
consistente apenas no “conjunto de condições que se impõe ao direito de propriedade a fim de
que seu exercício não prejudique o interesse social”, isto é, mero conjunto de condições
limitativas.
Essa é uma perspectiva dominada pela atmosfera civilista, que não leva em conta as
profundas transformações impostas às relações de propriedade privada, sujeita, hoje, à estreita
disciplina de Direito Público, que tem sua sede fundamental nas normas constitucionais. Em
verdade, a Constituição assegura o direito de propriedade, mas não só isso, pois, como
assinalamos, estabelece também seu regime fundamental, de tal sorte que o Direito Civil não
disciplina a propriedade, mas tão-somente as relações civis a ela referentes. Assim, só valem no
âmbito das relações civis as disposições do Código Civil que estabelecem as faculdades de usar,
gozar e dispor de bens (art. 1.228), a plenitude da propriedade e seu caráter exclusivo e ilimitado
(art. 1231) etc., assim mesmo com as delimitações e condicionamentos que das normas
constitucionais defluem para a estrutura do direito de propriedade em geral.

A doutrina se tornara de tal modo confusa a respeito do tema, que acabara por admitir
que a propriedade privada se configurava sob dois aspectos: (a) como direito civil subjetivo e (b)
como direito público subjetivo.

Ensina o autor que esta dicotomia ficou superada com a concepção de que a função
social é elemento de estrutura e do regime jurídico da propriedade, atuando como seu princípio
ordenador e incidindo no conteúdo do direito em questão, impondo-lhe novo conceito. Por isso,
a noção de situação jurídica subjetiva tem sido usada para abranger a visão global do instituto,
em lugar daqueles dois conceitos fragmentados.

Portanto, é possível falar em direito subjetivo privado do proprietário particular, como


pólo ativo de uma relação jurídica abstrata, em cujo pólo passivo se acham todas as demais
pessoas, a que corre o dever de respeitar o exercício das três faculdades básicas: uso, gozo e
disposição.

Afirma Costa (2003) que a propriedade é o direito real por excelência, por abranger a
coisa em todos os seus aspectos, sujeitando-a totalmente ao seu titular. É a plenitude do direito
sobre a coisa, composta pela unicidade de poderes interligados.

Para a autora, o direito de propriedade tem como objeto, desde que apropriáveis para
o homem, os bens corpóreos (coisas móveis, imóveis ou semoventes) e a propriedade artística,
literária e científica. Assim, tanto as coisas corpóreas quanto as incorpóreas podem ser objeto
do domínio, por força dos princípios da corporeidade ou materialização (o bem deve se
determinado), da individualização (defende a singularidade da coisa, embora admita que a essa
sejam outras aderidas) e da acessoriedade (subordina ao bem principal todos os seus
acessórios).

Concebe-se, ainda, alguns atributos conferidos pelo direito civil brasileiro à


propriedade: absolutismo, exclusividade, perpetuidade e elasticidade.

A propriedade possui caráter absoluto em virtude de sua oponibilidade erga omnes e


por ser dos direitos reais o direito que mais oferece amplitude ao titular, quanto ao desfrute e
disposição de seu domínio, restringindo-se tal desfrute apenas aos parâmetros determinados em
respeito ao interesse público e a outras titularidades de terceiros. A oponibilidade erga omnes
também confere a característica da exclusividade, impedindo o direito de terceiro sobre o bem,
com exceção das situações condominiais. A perpetuidade, por sua vez, significa que o domínio
não se extingue sem que seja por causa legal ou vontade do titular do bem, não sendo motivo
extintivo o desuso. Por fim, a possibilidade de ampliar ou reduzir o exercício do domínio nas
situações em que seus respectivos poderes possam ser acrescidos ou retirados singulariza o
atributo da elasticidade.

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