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ENSAIO SOBRE A SEGUNDA NOVELA DE DECAMERON CONTADA POR

NEIFILE - O JUDEU ABRAAM, INCENTIVADO POR JEANNOT DE


CHEVIGNY14, VAI À CORTE DE ROMA E, VENDO A INIQUIDADE DOS
CLÉRIGOS, VOLTA A PARIS E TORNA-SE CRISTÃO.

Lorena Messias Inácio Guimarães

INTRODUÇÃO

Ao trabalhar uma análise narrativa da segunda novela da obra Decameron, de Giovanni


Boccaccio, é importante, antes de tudo, pensarmos na elaboração discursiva, bem como sua
estilística quando, na voz de Neifile, a história é contada. Para isso, tomaremos mão de
alguns conceitos bakhtinianos e aristotélicos para, então, promover uma abordagem mais
significativa.

Palavras-chaves: Decameron; Boccaccio; mimesis; enunciação.

ABSTRACT:
When working on a narrative analysis of the second novel of the work Decameron, by
Giovanni Boccaccio, it is important, first of all, to think about the discursive elaboration, as
well as its stylistics when, in Neifile's voice, the story is told. For this, we will take some
Bakhtinian and Aristotelian concepts to promote a more meaningful approach.

Keywords: Decameron; Boccaccio; mimesis; enunciation.

Num primeiro momento, a estilística textual está relacionada à forma como Neifile apresenta
a sua história para os demais. Nessa perspectiva, logo no início da narrativa, pode-se ser
levado em consideração elementos expressivos e criativos no que diz respeito à forma
artística da palavra, buscando maior elegância na sua enunciação, evidenciando a importância
da habilidade discursiva na obra. Nesse sentido, a linguagem é representada por recursos, nos
quais os processos de manipulação da linguagem são utilizados para extrapolar a mera função
de informar, existindo, inclusive, um interesse em transbordar emoções e intelectualidade.
“Ela, que não era menos ornada de costumes corteses do que o era de beleza,
respondeu alegremente que o faria de bom grado e começou da seguinte maneira: –
Com sua história, Pânfilo mostrou que a bondade de Deus não leva em conta nossos
erros quando eles decorrem de coisas que não podemos ver; eu, na minha, pretendo
provar que essa mesma bondade dá mostras de sua infalível verdade quando,
suportando pacientemente os defeitos daqueles que com obras e palavras deveriam
dar verdadeiro testemunho dela, mas fazem o contrário, leva-nos a seguir com mais
firmeza de ânimo aquilo em que acreditamos.” (DECAMERON, 1348 - 1353, p.37).

Assim sendo, bem como defende Bakhtin, a estilística - e sua abordagem - está articulada à
gramática, trabalhando com as variações da língua e sua utilização, incluindo o uso estético
da linguagem e as suas diferentes aplicações, tais quais observadas na história contada por
Neifile.

Além disso, há, ainda, a utilização das vozes dentro da narrativa, ou seja, o discurso. Segundo
Bakhtin, existe a forma como a voz das personagens é introduzida na voz do narrador na
intenção de alcançar seus objetivos, isso, sem o narrador desfazer a sua própria voz, estando
apenas a palavra sob o domínio de outro emissor. Em Decameron, Boccaccio traz uma
introdução refletindo sobre a Peste Negra e sua obra, após isso, ele compõe uma moldura
onde há várias vozes dentro do texto: narrador da obra, narrador do cenário, narradores das
histórias (Neifile, nesse caso particular) e o narrador dentro das histórias (o judeu e o
mercador). Assim sendo, dentro de um único enunciado existem várias vozes.

A MIMESE ARISTOTÉLICA

Paralelamente, pode-se observar, a mimese aristotélica presente na novela. No entendimento


de Aristóteles sobre a mimese, esta seria a imitação universal. Uma pintura, por exemplo, é a
imitação, usando cores, de objetos que observamos. O mesmo vale para esculturas, que
imitam a forma do que vemos, ou romances, que imitam determinadas ações. No que confere
a narrativa de Neifile, os desdobramentos narrativos entre o judeu Abraan e o mercador
Jeannot não são apenas a imitação de acontecimentos reais, mas, também, o que poderia
acontecer, de acordo com as leis da verossimilhança e da necessidade. Nesse ponto, não é
somente o comportamento de um personagem específico, mas o de um ser humano, sua
representação artística.
“E, observando melhor, viu que eram todos tão gananciosos e desejosos de dinheiro
que vendiam e compravam igualmente o sangue humano, ou melhor, cristão, e as
coisas divinas, quaisquer que fossem, pertencentes aos sacrifícios do altar ou aos
benefícios eclesiásticos, havendo mais comércio e intermediários destas do que em
Paris os havia para tecidos ou qualquer outra coisa; viu que à manifesta simonia
tinham dado o nome de “procuradoria”, e à gula, o nome de “sustento”, como se
Deus não conhecesse as intenções daquelas péssimas almas, quanto mais do
significado dos vocábulos, e, tal como os homens, se deixasse enganar pelos nomes
das coisas.” (DECAMERON, 1348 - 1353, p.38).

DIALOGANDO COM BAKHTIN, ARISTÓTELES E DORIS CAVALLARI

Somado a isso, numa conversa mais abrangente, Doris Cavallari, em seu artigo “A palavra
astuta: as estratégias discursivas e a modernidade do Decameron de G. Boccaccio”,
(CAVALLARI, 2010) expõe uma reflexão a respeito dos fundadores da literatura ocidental
moderna, bem como a importância destes na construção do gênero narrativo. Neste acervo, a
autora explana em como Boccaccio “selou as portas do mundo feudal arcaico, já em crise, e
preparou os homens para um novo tempo.” (CAVALLARI, 2010). Nesse ínterim, a
imitação/representação da realidade trabalhada por Aristóteles, e os componentes narrativos
de Bakhtin vão de encontro com as análises de Cavallari uma vez que, segundo ela,
Boccaccio teria criado o narrador moderno, isto é, acontece uma renovação do gênero
narrativo por meio da extraposição, cabível de nuances estilísticas a cada uma das vozes a
quem cede a palavra . Quando trazemos para dentro do cenário contado por Neifile, o judeu e
o comerciante tecem uma enunciação contínua que porpoem não somente um diálogo com a
vida, mas inova trazendo uma ideia realista da literatura, não abandonando a religião, mas
denunciando de forma cômica os atos dos sacerdotes, tudo isso, fazendo uso das variadas
formas linguísticas atribuídas aos enunciadores em questão. .

CONCLUSÃO

Por fim, me detenho em algumas conclusões provisórias. Decameron é um acervo que foi
escrito há muito tempo, sendo, portanto, um clássico grandioso que atravessou muitos
séculos. O livro em questão, por pertencer a um contexto medieval, propõe histórias cuja
dimensões sugerem os objetivos de Boccaccio, isto é, sua postura contraditória quanto aos
costumes e crenças de sua época. Diferente do tradicionalismo medieval, o autor empregou
suas narrativas nos seres humanos comuns: suas qualidades, seus amores, seus vícios e tudo
aquilo que o rodeava no mais comum da humanidade, evidenciando, assim, a transição do
teocentrismo para o humanismo. Ao trabalhar com a imagem humana no centro de tudo,
Decameron ultrapassou inúmeros anos, pois trabalhou questões que permanecem ainda nos
dias de hoje, tal como observado na novela contada por Neifile, onde a corrupção dos
clérigos é exposta, além da compreensão individual de como é o divino. Já ao tratar sobre sua
composição literária, é notório a revolução e ousadia que esta obra apresenta. Para isso, quero
esboçar o pensamento de Doris que diz:

“Nesse sentido, acreditamos que a obra maior de Boccaccio insere-se nas


características apontadas por Bakhtin como essenciais para a existência do romance,
permitindo que o Decameron marque, portanto, a fronteira entre a Idade Média e o
Renascimento e abra as portas para o aparecimento do romance moderno.”
(CAVALLARI, Doris Natia. A palavra astuta: as estratégias discursivas e a
modernidade do Decameron de G.Boccaccio. 2010, P.15)

REFERÊNCIAS:

CAVALLARI, Doris Natia. A palavra astuta: as estratégias discursivas e a modernidade


do Decameron de G. Boccaccio. BAKHTINIANA, São Paulo, v. 1, n. 4, p. 6-16, 2o sem.
2010.

ALIGHIERI, D. Boccaccio. A Divina Comédia. Edição bilıngue. Trad. Italo Eugenio


Mauro. São Paulo: Editora 34, 1998.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.

A Poética de Aristóteles: tradução e comentários. Trad. e comentários: Fernando Maciel


Gazoni. São Paulo: dissertação-USP/digitado, 2006

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