In: GONZÁLEZ, Mario M. Leituras de literatura espanhola. São Paulo: Fapesp/Letras
Viva, 2000.
O termo “barroco” foi inicialmente utilizado para catalogar, de maneira
depreciativa – como desmesurada, confusa e extravagante – a arte posterior ao Renascimento europeu que, ao caracterizar-se pela quebra da harmonia, do equilíbrio e da clareza próprias da arte clássica, ferira a sensibilidade dos que propunham a preservação daquelas. A palavra “barroco” designa, até hoje, em português (como em espanhol “berrueco”), uma pedra irregular, não trabalhada; em espanhol, como em português, serve também para designar uma pérola das mesmas características; por sua vez, a sigla “baroco”, serve, na Lógica, para designar um tipo de silogismo particularmente rebuscado, como no caso de: “todo chumbo é metal; algum corpo não é metal; logo, algum corpo não é chumbo”.
A noção de Barroco utilizada na literatura e nas artes dista de ser simples.
Ao aplicá-la à Literatura Espanhola, levamos em conta certas preliminares. Em primeiro lugar, entendemos aqui o Barroco não como uma constante cultural que possa reiterar-se, mas como um movimento artístico e literário próprio da cultura europeia pós-renascentista. Assim sendo, ao contrário da Renascença, que se caracteriza como um movimento internacional, o Barroco se diferencia dentro das diversas nações de maneira mais intensa, na medida em que suas manifestações vêm-se afetadas pela diversificação ideológica produzida, fundamentalmente, em volta da Reforma protestante e da Contrarreforma católica, ao longo do século XVI. Assim, Arnold Hauser distingue o Barroco burguês e protestante – que domina na Holanda – do Barroco cortesão e católico próprio da Espanha, da Itália e da França. Dentro deste último, caberia a subdivisão em: um Barroco por antonomásia, sensual, monumental e decorativo, que predomina nos dois primeiros países; um Barroco naturalista, com manifestações também nesses países (como na pintura de Caravaggio ou Ribera); e um Barroco classicista, mais estrito e rigoroso na forma, próprio da França.
Para Hauser, a tradicional formulação da suposta oposição Renascimento
/ Barroco, proposta por Wölfflin (linear / pictórico, superficial / profundo, forma fechada / forma aberta, claridade / falta de claridade e variedade / unidade), limita-se ao Barroco não classicista, entendendo inapropriadamente o Barroco como oposto ao Renascimento, e não como sua continuação. A proposta de Wölfflin, no entanto, teve o mérito de contribuir para o resgate do Barroco que, assim, pôde deixar de ser considerado negativamente.
Por último, convém reiterar que o Barroco pode conviver com a
sobrevivência de manifestações renascentistas e, especialmente, com expressões maneiristas; neste último caso, é particularmente possível que isso aconteça não apenas pela coexistência de autores de signos opostos, porém até dentro da obra de um mesmo autor ou artista.
Na Espanha, é peculiarmente intenso o atrelamento da arte e da literatura
barrocas à cosmovisão católica contrarreformista que, por sua vez, é a base ideológica que sustenta o sistema político espanhol na evolução do modelo implantado a partir dos Reis Católicos. Arte e literatura serviram para veicular essa cosmovisão, de uma maneira que frequentemente beira o didatismo, e para apregoar esse modelo. Para tanto, o Barroco preferirá o apelo à emoção, intensificando para tanto os recursos expressivos, no que se contrapõe à perspectiva crítica própria do Maneirismo. A exaltação do sistema encontrou espaço na arte e na literatura barrocas, em que a crítica, ainda que, às vezes, muito forte, reduz-se, assim, à condenação dos sintomas da falência desse sistema, falência que só pôde ser denunciada, de maneira muito indireta, por escritores que optaram por outra linguagem, como Cervantes.
Sem que possam ser reduzidas a isso, a mencionada vinculação
contribuiu para fazer da literatura e das artes plásticas, na Espanha, um meio para a exposição de uma maneira de se ver a realidade, marcada pela noção do mundo como uma circunstância enganosa na trajetória do homem rumo à eternidade. Ao se fazer depender o destino eterno do homem de sua adesão aos preceitos morais, aos dogmas e aos ritos da Igreja Católica, que encarnaria a priorização dos valores espirituais, qualquer desvio da ortodoxia católica significaria o risco da condenação eterna às penas do inferno. Nessa perspectiva, os valores materiais – retomando uma visão que já encontramos, por exemplo, nas “Coplas a la muerte de su padre”, de Jorge Manrique – são considerados a fonte fundamental do engano que pode levar o homem à perdição eterna. Dessa maneira, subjaz à arte barroca, em boa medida, um sentido didático que a leva a expor o “desengano” do homem com relação a esses valores materiais.
A riqueza material, no entanto, concentrada na classe dominante, permite
que esta se rodeie de luxo e de obras de arte nas quais prevalece uma ornamentação por cima das estruturas arquitetônicas renascentistas, em que a expressão do sentimento é exacerbada ao máximo, esquecendo-se a contenção clássica, e em que, ao sistema de coordenação estrutural da Renascença, contrapõe-se a prolífica subordinação dos elementos. É evidente que essa valoração das exterioridades contrasta com a sua negação em função da consideração religiosa da existência. Mas esse é, talvez, o primeiro e maior dos contrastes, que são outros dos recursos favoritos da arte e literatura barrocas. Assim, em que pese o luxo que domina nas artes, essas mesmas artes – e a literatura – expressarão, de inúmeros modos, a metáfora que identifica a vida com um sonho. Um outro componente ideológico que deve ser levado em conta é o fato de que a sociedade espanhola assentara-se, a partir do século XVI, sobre um sistema excludente de qualquer desvio da ortodoxia – cristã, primeiro, e católica, depois – que a Contrarreforma afirmara definitivamente a partir do Concílio de Trento. Isso mantém a divisão entre os que se declaram “cristãos velhos” e os que sofrem o estigma de serem “cristãos novos”, ou descendentes de conversos. Estes últimos carregam um ônus que os impede de ter acesso à cidadania plena, sem que encontrem outro mecanismo para se ver livres dele a não ser mentir a respeito de sua condição. Por sua vez, numa sociedade onde o todo-poderoso tribunal da Inquisição encarrega-se de vigiar a preservação da ortodoxia, todo cidadão é obrigado a agir como delator dos desvios de que possa suspeitar, sob pena de ele próprio poder ser visto como conivente. Esses desvios podem consistir em palavras, atos, gestos que façam parecer alguém agindo fora do cânone. Dessa maneira, as aparências são de enorme importância num momento em que na arte prevalecem os aspectos exteriores. Na literatura, a aparência dos indivíduos é exaltada como a base da “honra”, conceito agora facilmente esvaziado de verdadeiro conteúdo para limitar-se a significar a “opinião” de que esses indivíduos são credores em função de sua aparência. O conceito de “homem honrado” se aplica a todos aqueles que parecem sê-lo. O parecer, no entanto, depende não apenas de uma conduta honrada, mas também esta pode não ser inquirida na medida em que as aparências materiais, produto da riqueza, permitam estabelecer a falsa analogia entre riqueza e conduta honrada.
A noção de homem honrado é atribuída também ao cristão velho; este,
por sua vez, define-se como tal pelas aparências que o evidenciam como submisso às exigências da Igreja Católica; ao mesmo tempo, o cristão novo pode ser denunciado como um falso converso, em função das aparências que o façam suspeito, da mesma maneira que aparências podem ser suficientes para que alguém seja considerado herege. Em ambos os casos, como se sabe, a simples denúncia à Inquisição era infamante, mesmo que o indiciado conseguisse provar sua inocência.
Assim sendo, na arte e na literatura barrocas, a aparência é, ao mesmo
tempo, um valor artístico que exalta a sensualidade e uma maneira de denunciar a sua efemeridade, um valor social que deve ser preservado e um recurso que permite esvaziar conteúdos sociais. Não surpreende, assim, que essas contradições não apenas permeiem a vida social, mas permitam à literatura e às artes montarem conflitos que as espelhem.
Estilisticamente, com base no contraste, uma série de recursos são
característicos da literatura e das artes do Barroco. Na pintura, é frequente o recurso do claro-escuro, em que se produz uma violenta oposição de planos muito sombrios e planos fortemente iluminados; da mesma maneira, são aproximados os motivos repugnantes e os sedutores. O dinamismo é outra característica barroca que rompe com a maior estaticidade e equilíbrio da arte clássica, impondo, às vezes, uma violência que se conjuga com o caráter desmedido dos modelos ou das expressões. O domínio do horror vacui (“horror ao vazio”) leva ao predomínio de uma profusa ornamentação que mascara as estruturas e à acumulação dos recursos verbais. Nesse aspecto, o barroco privilegia a acumulação da pluralidade de sentidos de um mesmo signo linguístico, o que permite o abuso de todo tipo de tropos, especialmente da metáfora, bem como o recurso às inúmeras possibilidades do jogo de palavras, como o calembur ou trocadilho, a dilogia ou diáfora e a silepse. Paronomásia, antimetábole, paralelismo, gradação e antítese fazem também parte desse tipo de recursos. Ao mesmo tempo, procura-se obter o adensamento do universo conceitual, mediante a acumulação, a hipérbole, a prosopopeia, o zeugma e a elipse. O resultado é, muitas vezes, uma frase de ritmo cortado e veloz, cujo laconismo exige do leitor uma verdadeira decodificação do seu sentido; ou longos períodos que, igualmente, impõem a necessidade de reiteração da leitura.
Dessa maneira, não corresponde considerar o Barroco como a negação
ou a degeneração da Renascença. Estamos perante a transformação e a evolução final do universo clássico, cujas estruturas subjazem aos excessos ornamentais do Barroco. Não assistimos, por exemplo, à negação da Poética de Aristóteles, porém à superação das interpretações restritivas desta impostas pela preceptiva renascentista. O racionalismo renascentista é invadido pelas manifestações vitalistas do Barroco, como aponta Emilio Orozco, diferentemente do que acontece no Maneirismo, onde o racionalismo subsiste e preside a criação artística. O Barroco, no entanto, priorizará as emoções. Da mesma maneira, diz Orozco, enquanto o Barroco privilegia a capta- ção do instante, surpreendendo a figura num momento que supõe um antes e um depois, o Maneirismo coloca a priori o modelo na posição desejada. E, na literatura, enquanto o texto maneirista pareceria sempre se encaixando em formas previamente pensadas, o texto barroco pareceria quebrar quaisquer formas.
A oposição do Barroco e Maneirismo com relação ao tempo, evidenciada
nessa preocupação barroca com o instante, decorre, em boa medida, do fato de que o artista e o escritor barrocos atrelam-se mais claramente à cosmovisão contrarreformista. Nela, a realidade temporal carregada de enganos e a vida eterna que deve ser obtida daquela encontram-se separadas pela morte que, assim, é o instante decisivo que acumula a angústia e a esperança do homem. O tempo ganha, dessa maneira, uma dimensão transcendental, ao mesmo tempo em que é o espaço dos enganos sedutores que ameaçam desviar o homem da vida eterna.
Essa mesma cosmovisão católica impedirá a redução do homem à
existência. Curiosamente, em função disso, apesar de a angústia ser frequente nas manifestações barrocas, no teatro barroco espanhol reeditar-se-á a impossibilidade medieval da tragédia: na medida em que o homem é um ser transcendente, a morte não é a catástrofe definitiva, já que a salvação eterna pode ser obtida até no instante final mediante o arrependimento.
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