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LITERATURA BRASILEIRA – PROFESSOR JOÃO MARCELO

Barroco resultou do movimento desencadeado pela

Barroco
(1580 ou 1601 a 1756 ou 1768)
Contra-Reforma, no intuito de reaproximar o homem
de Deus, o celestial e o terreno, o religioso e o
profano, conciliando as duas heranças: medieval e a
renascentista. Daí o dualismo e o contraste formarem
o eixo espiritual ou teológico do Barroco.
Esse movimento de cunho religioso parte da
Espanha e Itália para o resto do mundo e caracteriza-
se, artisticamente, pelo antagonismo, aos moldes
Clássicos e renascentistas.
Cronologicamente, o Barroco surge logo após o
Renascimento. Revolucionariamente, à primeira vista
querendo destruir tudo o que caracterizava o
Renascimento, a ordem e o equilíbrio, o predomínio da
linha reta e pura, a clareza e nitidez de contornos
simétricos. No fundo, tentando uma conciliação, uma
fusão do ideal medieval, espiritual, supraterreno, com
os novos valores que o Renascimento colocou em
voga: o antropocentrismo humanista e o gosto pelas
coisas terrenas. Daí nasceu o Barroco, novo estilo de
vida, que traduz em suas contradições e distorções o
caráter dilemático da época, na arte, na filosofia,
religião e literatura.
O Barroco foi um movimento estético de
âmbito geral, espraio-se a todas as artes e em todos
os países. Na Espanha, houve um conceito de que toda
(A Conversão de Paulo – Caravaggio) a arte que se revelava sem freio de imaginação ou
exagerada na forma, podia ser considerada barroca.
● Considerações Gerais Na verdade, a arte barroca é audaciosa, sem limites de
forma. Encontramos, na literatura, abusos de imagens,
Chama-se Barroco a toda manifestação hipérboles, metáforas, antíteses, paradoxos,
exagerada, repleta de adornos, ou à ação nas artes e eufemismos, sinestesias, que se torna difícil penetrar
nas letras, na qual abundavam os enfeites de forma ou no seu sentido verdadeiro. Houve, logo de início, o
jogos de pensamento. Foi também um movimento propósito barroco em exagerar nos ornamentos.
artístico preso a certos movimentos espirituais. Surgiu,
como a Companhia de Jesus, do movimento da Contra- ● Fatores que propiciaram o surgimento
Reforma: da necessidade que sentia a igreja Católica
conservadora em unir o teocêntrico (literariamente,
do Barroco:
aqui, representado pela Idade Média), ao
antropocêntrico (representado pelo Renascimento). Dentre os acontecimentos que influenciaram o
Entretanto, voltar aos princípios religiosos do advento do Barroco, temos a reforma provocada por
medievalismo implicaria perder o que se conquistara Martinho Lutero, que reagiu contra os abusos da
no Renascimento. Confrontam-se, por isso, duas forças Igreja. Consolidando-se a Reforma, houve necessidade
opostas: teocentrismo religioso medieval (que a igreja de a Igreja conservadora manifestar-se na tentativa de
desejava reimplantar) e o antropocentrismo racional ganhar novamente o lugar perdido: é quando surge a
renascentista (que o homem não desejava perder). “Contra-Reforma” no Concílio de Trento. A Península
O homem da época tenta alcançar uma síntese Ibérica (Portugal e Espanha) torna-se o centro da
desses valores, isto é, conciliar razão e fé, “Contra-Reforma”, na tentativa de retornar à direção
espiritualismo e materialismo, carne e alma. perdida a partir da “Reforma Protestante” que abalara
o prestígio da Igreja Católica conservadora.
Notadamente, a Espanha se torna o foco
irradiador das forças religiosas. Nesta ocasião, funda-
Antropocentrismo se a Companhia de Jesus, lançando-se contra os

→ Tensão
adeptos de Lutero. Daí se dizer que as fontes da
literatura jesuítica se acham arraigadas dentro da
X estética barroca.
Todos esses fatos se refletem no homem da
época, colocando-o em conflito, e o condicionando à
formação de um outro homem, diferente do
renascentista, que tinha os pés na lógica racionalista
Teocentrismo
Tal atitude gera um estado de tensão do antropocentrismo. Essas características do “novo”
permanente, que se irradia para o modo de pensar, homem foram fornecidas pela Contra-Reforma.
para as ideologias políticas, para a estrutura social e, Enquanto o homem renascentista se volta para o
principalmente, para a arte produzida no período. O próprio homem, o homem barroco se volta para Deus
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e para as questões terrenas ao mesmo tempo, Renascimento. Sua falta de forma tem dentro de si
ocasionando em uma das características norteadoras algo de agressivo e auto-destruidor. Figura e espaços,
dessa nova estética: a tensão. homem e mundo já não se encontram em relação
harmônica.
Logo, sendo um produto de um período
ideologicamente marcado por tantos contrastes e
transformações, o Barroco caracteriza-se,
sobretudo, pelo gosto das contradições, do
conflito e dos paradoxos, rejeitando a ordem
estabelecida pela razão. Não existe mais para o
homem barroco, uma ordem antropocêntrica ou
uma ordem teocêntrica: o que existe é a fusão
das duas, numa nova ordem que a tudo
questiona. conflito e dos paradoxos, rejeitando a
ordem estabelecida pela raz Lutero. ar perdido:

● Aprofundando-se na estética
seiscentista:
A cosmovisão medieval, marcada pelo
radicalismo teocêntrico, é mitigada pela revolução que
o Renascimento imprime no pensamento do homem
que, agora, descobre-se mentor do seu próprio
destino. Assim, o divino, sob o impacto do
antropocentrismo, humaniza-se, propiciando um
deslocamento do olhar do sobrenatural para o humano.
O racionalismo consolida-se.
Na arte renascentista, nada é informe ou
disforme, o equilíbrio sucede as tensões. Por isso
poderíamos ver na Mona Lisa, de Leonardo da Vinci,
uma síntese da época. Seu quase imperceptível
sorriso, seu olhar plácido revelam ausência de tensões
e angústias, pois o homem, ao voltar-se para si
mesmo, crê na solidez do mundo.
No entanto, essa imagem harmoniosa da vida,
em meados do século XVI, começa a dissolver-se. O
indivíduo vê-se envolvido numa rede de contradições.
Tais contradições são resultantes do conflito entre as
concepções racionais da Renascença e a religiosidade
teocêntrica dos séculos medievais. Agora, o homem
perde-se nas incertezas: “To be or not to be?”. A esse
período, que marca a transição para o Barroco,
chamamos de 1Maneirismo
As cenas do Juízo Final, de Michelangelo,
pintadas na Capela Sistina, são mostras da destruição
da harmonia renascentista:
No Juízo Final (1534/1541), o espírito
maneirista domina já sem nenhuma delimitação. Já
não é mais um monumento de beleza e perfeição, de
força e juventude o que surge diante de nós e sim uma
imagem da confusão e do caos, do desespero, um grito
de libertação do caos que, de repente, ameaça devorar
tudo. O dever de entrega, de purificação de toda a vida
terrena, de purificação do corpóreo e do sensual
dominam a obra de arte. A harmonia espacial das
composições renascentistas desapareceu. Trata-se,
agora, de um espaço descontínuo, sem unidade. O
Juízo Final é o protesto violento contra o êxito da
forma bela, bem acabada e sem mácula do
1
Estilo artístico que consistiu numa espécie de desconstrução Percebe-se, desta maneira, que o Renascimento
da arte renascentista. Subjetivo, assimétrico e conflituoso, recusa a Idade Média, o Maneirismo encontra-se no
assinalou a transição para o Barroco (João Marcelo Rocha).
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centro do antagonismo entre as visões medieval e enquanto o anjo aponta para o celeste. No último
renascentista, o Barroco, por sua vez, tentará a verso do primeiro quarteto, o poeta funde o humano e
conciliação desses opostos. o sagrado: em quem senão em vós se uniformara?
Antes de questionarmos sobre essa tentativa – Na segunda estrofe, a dupla abordagem da
frustrada, acho – conciliatória da arte dos Seiscentos, mulher é clara. Primeiro, está expresso o desejo: no
convém pensarmos na classificação dada às verde pé de rama florescente, está a flor-mulher, que
expressões artísticas por Nietzsche, em Origem da o eu-lírico deseja colher para si. Nos versos seguintes,
Tragédia. O filósofo alemão elaborou uma teoria entre parece que o desejo arrefece, ou seja, esfria e,
a arte apolínea e a arte dionisíaca. novamente, dona Ângela está no pedestal, sendo
idolatrada.
“... O belo Apolo simboliza o desejo da forma No primeiro terceto, desmaterializada, a
contida, equilibrada e serena, que conduz à mulher está nos altares, exercendo o papel de anjo da
criação de um mundo compreensível, racional e guarda: livrara eu de diabólicos azares.
simétrico. Em oposição, a figura de Dionísio, Na última estrofe, logo no primeiro verso, o
desatinado deus do vinho, carrega consigo a halo sagrado do anjo é destecido pelos adjetivos bela e
imagem do desregramento, irracionalidade cega, galharda que, obviamente, são caracterizadores do
incontinência, sensualidade e liberação dos corpo. O verso final representa uma síntese desse
impulsos instintivos.” (Nietzsche) quadro de dualismos que o poeta vai pintando ao
longo das estrofes. O anjo é tentador.
Ao que parece, a função conciliadora do
Barroco não se faz sem conflitos. Os contornos
Diante das considerações de Nietzsche, maneiristas ou dionisíacos são evidentes. Por quê?
percebe-se que o Classicismo é a arte dos contornos Aqui, vale ressaltar, que na época do Barroco
apolíneos, o Maneirismo é dionisíaco. E o Barroco? ocorre a unificação da Península Ibérica. O brilho
Analisemos um dos mais célebres sonetos de conquistado pelos lusitanos, através das conquistas
Gregório de Matos. ultramarinas, apaga-se. Portugal amargará por
sessenta anos o domínio espanhol. Portugal e
Espanha, com o surgimento da Reforma Protestante,
“À mesma D. Ângela”
tornaram-se fortes redutos do Catolicismo. Unificados,
(Gregório de Matos Guerra)
os dois países construíram o palco ideal para o
desencadeamento da Contra-Reforma que, pela força
Anjo no nome, Angélica na cara,
do medo, do exército jesuítico, entre outros, busca
Isso é ser flor e Anjo juntamente,
resgatar os valores medievais. Entretanto, esse
Ser Angélica flor, e Anjo florente,
resgate não foi capaz de apagar a evolução e as
Em quem senão em vós se uniformara:
transformações históricas: o homem ocidental
conheceu – a partir do Renascimento – o alargamento
Quem vira uma tal flor, que não a cortara
espacial da terra, as solicitações e atrações da vida
Do verde pé, de rama florescente?
humana, uma visão de liberdade se opõe à tradicional
E quem um anjo vira tão luzente
eternidade.
Que por seu Deus, o não idolatrara?
Nesse estado de oposições, surge o Barroco
que, embora a serviço da Contra-Reforma,
Se pois como anjo sois dos meus altares,
movimenta-se como um pêndulo, ora se inclinado ao
Fôreis o meu Custódio e a minha guarda,
materialismo, ora voltando-se à religiosidade
Livrara eu de diabólicos azares.
carregada de culpas.
Como disse no texto anterior, o movimento da
Mas vejo, que de tão bela, e tão galharda,
arte barroca é pendular, oscilando entre o sagrado e o
Posto que os Anjos nunca dão pesares,
profano.
Sois anjo, que me tenta, e não me guarda.

Logo no primeiro verso, a harmonia Clássica é


quebrada. A mulher, dona Ângela, é angélica no nome
e na cara. Repare o contraste entre o adjetivo angélica
e o substantivo cara. Do ponto de vista semântico, o
vocábulo cara está em dissintonia com o seu
qualificativo angélica. Este remete-nos ao suave, ao
incorpóreo, aquele (cara) sintoniza-se com a
materialidade, com o físico, com o palpável.
Este contraste presentifica-se, em seguida, no
segundo verso, quando a figura feminina é comparada
ao anjo e à flor. O anjo liga-se à espiritualidade,
enquanto a flor, por mais delicada que seja, é um
elemento terreno, está fincada ao chão, na terra,
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Soneto à D. Ângela de assegurar à vida o máximo de prazeres e o mínimo


(Gregório de Matos Guerra) de sofrimentos, espalha-se pela poética gregoriana.
Veja:
Não vira em minha vida a formosura,
Ouvia falar nela a cada dia, Goza, goza da flor da mocidade
E ouvida me incitava, e me morria Que tempo trota a toda ligeireza
A querer ver tão bela arquitetura: E imprime em toda flor sua pisada.

Ontem a vi por minha desventura


Na cara, no bom ar, na galhardia
De uma mulher, que em anjo se mentia;  Cultismo e Conceptismo:
De um sol, que se trajava em criatura;
O Cultismo, conhecido como Gongorismo, e
Matem-me, disse eu, vendo abrasar-me, o Conceptismo, também chamado de Quevedismo,
Se esta cousa não é, que encarecer-me constituem os dois modos ou as duas formas de
Sabia o mundo e tanto exagerar-me: expressão do Barroco literário.
No Cultismo, observa-se a predominância da
Olhos meus, disse então por defender-me, descrição. Através dela, o escritor pretende que o
Se a beleza hei de ver para matar-me, leitor sinta o mundo através de sua capacidade
Antes olhos cegueis, do que eu perder-me. sensorial. O Cultismo, portanto, é sinestésico.
Além disso, esta modalidade de expressão
barroca prima, valoriza o culto à forma rebuscada, em
que prevalecem as inversões sintáticas, os trocadilhos
Neste soneto, a atração pelo material, o desejo e o uso abusivo de figuras de linguagem. Logo, o
pelo mundano, que se mostra logo na 1ª estrofe, Gongorismo manifesta-se, mais freqüentemente, na
sobretudo no último verso, em que a mulher é poesia.
caracterizada como “bela arquitetura”, choca-se com Enquanto os cultistas centralizam-se mais na
a idéia culposa do pecado, evidente, por exemplo, no forma, os conceptistas prendem-se mais aos conceitos
verso: Ontem a vi por minha desventura. Por que (há, inclusive, quem os denomine de Conceitistas).
se sentir desventurado diante da beleza? Esta questão Assim, a inteligência, a lógica, o raciocínio ocupam o
é respondida na estrofe seguinte, quando o eu-lírico lugar dos sentidos, pois os quevedistas têm a intenção
confessa-se abrasado, tomado pelo desejo, este que de convencer, ensinar, doutrinar. Daí seus textos
suscita a idéia do pecado e, consequentemente, do adequarem-se mais à prosa, recheada de argumentos,
castigo, da punição. Neste conflito, o eu-poético, de jogos conceituais. No entanto, os dois “ismos” em
remetendo-se à Sagrada Escritura, pede a cegueira, só que o Barroco se bifurca não constituem manifestações
ela poderá livrá-lo da pena. puras e estanques, ao contrário, guardam numerosos
Ora, se no Barroco o homem vê-se na pontos de contato e permutam, inclusive num mesmo
dualidade, no conflito e na tensão, na Literatura esta autor e num mesmo texto, os seus recursos
situação antagônica vai desaguar no culto do diferenciadores, ou seja, enquanto o Gongorismo
contraste, expresso pelo uso freqüente de figuras de também se vale das agudezas conceituais do
linguagem como antíteses e paradoxos: De uma Conceptismo, o Conceptismo lança mão das imagens e
mulher que em anjo se mentia. dos torneis e rebuscamentos frásicos do Gongorismo.
A atitude dual do homem é justificada pela Agora, proceda a uma leitura atenta dos dois
consciência que ele tem da finitude da vida. Não sonetos de Gregório de Matos Guerra. Distinga o
podemos perder de vista que o Barroco, como arte da cultista do conceptista, sem esquecer de argumentar
Contra-Reforma, está ligado ao pensamento cristão, sua resposta.
sempre a alertar: Que és terra, homem, e em terra
hás de tornar-te. A grande angústia do homem é
saber-se um ser para a morte. Assim, vem à tona um
dos temas mais universais da Literatura: o tempo.
Diante dele, a postura do artista aproxima-se com o
conceito de Heráclito: Ninguém se banha duas
vezes nas mesmas águas de um rio. O tempo, não
há quem o detenha: Em tristes sombras morre a
formosura.
Se tomarmos a formosura como um atributo
físico, aliado à juventude, não temos dúvida de que o
tempo: “Tudo gasta, tudo digere”.
Diante deste impasse, a arte barroca bifurca-se
entre o estoicismo e o epicurismo. A atitude estóica,
ligada à austeridade, à rigidez moral e, por que não
dizer, à dor, está explícita no soneto anteriormente
citado. A atitude epicurista, relativa ao prazer, à ânsia
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Soneto I 3. Exploração das emoções sensoriais


(sinestesia): O Barroco em si é muito visual e
Nasce o sol, e não dura mais que um dia, sinestésico. Utiliza-se de todos os recursos para
Depois da Luz se segue a noite escura, explorar o visual e o sinestésico para dar uma visão
Em tristes sombras morre a formosura, profunda de sua arte. Dentro desse aspecto há uma
Em contínuas tristezas a alegria. tendência acentuada para descrever os aspectos cruéis
e repugnantes da vida. Descrevendo esses aspectos,
Porém se acaba o sol, por que nascia? estariam atingindo o máximo dentro da exploração das
Se formosa a Luz é, por que não dura? emoções sensoriais. Valorizando o sensorial, o Barroco
Como a beleza assim se transfigura? conhece o mundo, também, através dos sentidos. As
Como o gosto da pena assim se fia? cores, os perfumes, os sons, as sensações táteis,
levam-no a utilizar-se das imagens sensoriais,
Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza, sobretudo das visuais.
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza. 4. Feísmo: Em decorrência da exploração dos
elementos sensoriais, há no Barroco, a preferência
Começa o mundo enfim pela ignorância, pelos aspectos repugnantes, sangrentos, dolorosos e
E tem qualquer dos bens por natureza até cruéis da realidade, ou seja, pelo “feio” da vida,
A firmeza somente na inconstância. ressaltando a miséria da condição humana,
característica que se opunha à ânsia de beleza e
perfeição da arte renascentista.
5. Conflito do Eu com o Mundo: O autor
Soneto II barroco é um desajustado com o mundo, o seu EU
está em constante conflito com aquilo que o cerca, que
Na confusão do mais horrendo dia, o rodeia. Fica oscilante entre dois pólos base: a carne
Painel da noite em tempestade brava. e os anseios do espírito. Esse conflito se faz claro nas
O fogo com o ar se embaraçava, poesias lírico-amorosas e lírico-religiosas dos autores
Da terra, o ar e o ser se confundiam. desse período, em especial Gregório de Matos Guerra.

Bramava o mar, o vento embravecia,


6. Culto do Contraste: Esta característica é
decorrente da fusão de visões de mundo antagônicas.
A noite em dia enfim se equivocava
Aproxima elementos opostos, tentando conciliá-los,
E com estrondo horrível que assombrava,
tais como: pecado x perdão; amor x sofrimento; céu x
A terra se abalava e estremecia.
terra; religiosidade x erotismo; carne x espírito;
juventude x maturidade; material x espiritual.
Desde o alto aos côncavos rochedos,
Desde o centro aos altos obeliscos 7. Intensidade: Há, na arte barroca, o desejo de
Houve temor nas nuvens e penedos. expressar, intensamente, o sentido da vida,
caracterizado pelo exagero na expressão dos
Pois dava o céu ameaçando riscos sentimentos e sensações. Daí o uso excessivo de
Com assombros, com pasmos e com medos: hipérboles.
Relâmpagos, trovões, raios, coriscos. 8. Pessimismo: Traço oposto ao otimismo
renascentista, que exaltava a alegria e o gozo da vida
terrena, o Barroco concentra-se num conflito
existencial, por isso muitos textos e expressões
 Características específicas do Barroco: artísticas da época barroca revelam uma concepção
triste e pessimista da vida terrena, em oposição à
1. Dualismo: Talvez a mais importante e que gera beleza, à luz, e à glória da vida celestial.
uma série de outras características. Esse dualismo faz 9. Sadismo: O homem barroco tem “prazer” no
parte do homem barroco, voltado ou dividido entre o sofrimento. Tal situação nos remete à base da arte
céu e a terra, consciente dos desejos carnais e de suas barroca que se apóia no contraste, na dualidade e no
fraquezas, e, ao mesmo tempo, ansiando pela antagonismo, antítese e no paradoxo.
beatitude cristã do paraíso, buscando a remissão para
as suas culpas, o perdão dos pecados. É a visão 10. Transitoriedade e Efemeridade da
teocêntrica e, ao mesmo tempo, antropocêntrica que o vida: Tal característica advém da noção cristã e gera
faz tomar atitudes contraditórias. um certo pessimismo. O homem barroco tem
2. Fusionismo: É a fusão de duas concepções consciência de que a vida terrena é transitória,
opostas: a medieval e a renascentista, numa síntese efêmera e passageira, e, por isso, é preciso pensar na
que se manifesta de modos diferentes na arte, e, em salvação espiritual, na salvação da alma porque a
geral, na pintura, fusão de luz e sombra; na música, carne, embora lhe dê o prazer, se acaba e “morre”.
fusão de sons; na literatura, fusão do racional e do Tendo a vida como passageira, sente-se a
irracional, de razão e fé. vontade, o desejo de gozá-la antes que acabe, o que
se conhece como Carpe Diem, “aproveitar o dia”,
“aproveitar a vida”, o que resulta num sentimento
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contraditório, uma vez que gozar a vida significará


pecar, e se há o pecado, não haverá a salvação.

Para refletir enquanto você escuta Chico a) Requinte formal: O nível lingüístico dos
textos barrocos é sofisticado. O vocabulário é erudito,
Buarque!!! elevando as construções sintáticas a um certo
rebuscamento de suas formas, com uma linguagem
Se o autor barroco descreve a beleza de rica e bem trabalhada que reflete recursos imagéticos
uma mulher, vem-lhe logo ao pensamento a (imagem), tais como: excesso de antíteses e
efemeridade dessa beleza, aconselhando-a a hipérboles que expressam os aspectos contraditórios e
aproveitá-la ao máximo, pois breve acabará. exacerbados do mundo barroco.
Geralmente, a beleza feminina era comparada a b) Figuração: O autor barroco não se expressa de
uma rosa ou ao sol, que assim como surge e nasce, maneira direta e objetiva. Prefere a figuração (figuras
desaparece e morre. de linguagem), a sugestão através de metáforas e
outras figuras. Como já fora dito, o homem barroco
O homem barroco encara todos os aspectos está dividido entre o mundo espiritual e o mundo
da vida sempre num sentido transitório, material. Para expressar esse estado de alma, utiliza-
encaminhando-o à morte. se da antítese e do paradoxo.
A incapacidade desse homem de vencer a
c) Cultismo ou Gongorismo: É o
morte vai gerar uma concepção pessimista da vida.
rebuscamento formal caracterizado pelo jogo de
palavras e pelo excessivo emprego de figuras de
linguagem. Corresponde à tendência de explorar
 Olha lá!!!
elementos de ordem sensorial, tais como: a
sonoridade, a cor, a forma, o volume, sugeridos por
O tema Carpe Diem (aproveitar o dia, vocábulos (palavras) raros, rebuscados, preciosos e
aproveitar a vida) não é exclusivo do Barroco. Na extravagantes, através da valorização do detalhe e das
verdade, toda a literatura de orientação clássica se construções de imagens, essencialmente,
utiliza do Carpe Diem, configurando-se como um descritivistas. O Cultismo predomina na poesia, mas
convite aos prazeres terrenos, ressaltando de que a pode ser encontrado no texto em prosa do Barroco.
beleza e a vida são efêmeras e que é preciso
d) Conceptismo ou Conceitismo:
aproveitar enquanto há tempo.
É o jogo de idéias, construída pelas sutilezas
do raciocínio e do pensamento lógico. É a linguagem
 Presta atenção na tua vida!!! dos conceitos com o objetivo de ensinar, educar,
doutrinar ou, até mesmo, catequizar, como fora feito
Tome cuidado! Não considere Barroco todo pelos Jesuítas.
texto construído a partir de antíteses. Esse tipo de O Conceptismo é basicamente dissertativo,
figura pode ser utilizado em qualquer movimento levando o leitor a raciocinar. Manifesta-se,
literário. preferencialmente, no texto em prosa.
Só é Barroco o texto escrito entre os anos de e) Epicurismo ou Estoicismo: Epicurismo é
1580 a 1768, que sigam todas as características duais, uma doutrina filosófica de valorização do aspecto
contrastantes e conflituosas mencionadas já terreno, mundano e material, ditando ao homem que a
anteriormente. vida devia ser gozada com o máximo de prazeres e o
Observe: a letra abaixo da música “Quereres” de mínimo de sofrimentos; já o Estoicismo pratica o
Caetano Veloso, é construída através de oposições de contrário. No lugar dos prazeres e deleites sensuais,
idéias e de palavras, mas não é um texto barroco. aplicados pelo epicurismo, o estoicismo devia refrear
os instintos, valorizando a razão, objetivando uma
● Leia com atenção: certa rigidez moral, ainda que isso implicasse em dor e
sofrimento. Ambas correntes, advindas dos filósofos
gregos, podem ser encontradas na arte conflituosa,
“Onde queres o ato eu sou espírito conflitante, oscilante e contraditória do Barroco.
E onde queres ternura eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde queres prazer sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido sou herói”.

 Características da linguagem barroca: Características Gerais do Barroco


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unicamente de realizações individuais. Aqueles que


Quanto à Forma Quanto ao Conteúdo escreviam, encontraram na Literatura um instrumento
para criticar a realidade brasileira.
-- Jogo de palavras e -- Oposição entre o mundo A obra considerada oficialmente o marco inicial
trocadilhos; material e o espiritual; do Barroco brasileiro é a Prosopopéia (1601), de
-- Sugestões sonoras e -- Consciência da Bento Teixeira, um poema seguidor dos modelos de
cromáticas; efemeridade da vida, do Camões. Entretanto, coube a Gregório de Matos
-- Gosto por construções tempo e da beleza; Guerra o papel de maior destaque.
complexas, raras e -- Carpe Diem;
rebuscadas; -- Conflito existencialista
-- Vocabulário, (pessimismo);
predominantemente, -- Gosto por raciocínios
erudito; complexos, intrincados;
-- Excesso de figuras de -- Presença da morte.
linguagem;
-- Ordem inversa na
construção das frases;
-- Frases interrogativas
(dúvida).

Temáticas preferidas pelo Barroco:

 Antítese entre Vida e Morte: foi o grande


tema explorado pelo autor barroco. Nesta antítese
evidenciam a transitoriedade da vida e o Carpe Diem.

G
 A Mulher: há muitos poemas dedicados à figura
feminina. Porém, não é aquela mulher ideal como no
medievalismo. É muito mais a “mulher de carne”,
possuidora de belezas e atrativos carnais e, por isso,
transitórios.
 Amor Místico x Amor Carnal: muitas vezes
regório de Matos Guerra, poeta do barroco brasileiro,
aparecem os autores barrocos reconciliados com Deus,
depois de ter tido uma vida pecaminosa. O eu-lírico nasceu em Salvador/BA, em 1633 e morreu em
pede perdão por seus pecados, buscando a salvação, a Recife/PE em 1696. Foi contemporâneo do Pe. Antônio
remissão para a sua alma. Vieira. Amado e odiado, é conhecido por muitos como
 Natureza: os elementos da natureza aparecem "Boca do Inferno", em função de suas poesias que
nas obras dos autores barrocos para representar a satirizavam a sociedade baiana da época, muitas vezes
transitoriedade da vida, como exemplo da rosa, da flor, trabalhando o chulo em violentos ataques pessoais.
da planta, etc... Influenciado pela estética, estilo e sintaxe de Gôngora
e Quevedo, é considerado o verdadeiro iniciador da
literatura brasileira.
 O Barroco no Brasil (1601-1768):
De família abastada (seu pai era proprietário
Século XVII a XVIII de engenhos), pôde estudar com os jesuítas em
As condições da colônia eram bem diferentes Salvador. Ainda muito jovem, vai para Portugal,
do luxo ostensivo das cortes européias apreciadores da formando-se em Direito pela Universidade de
arte barroca, e por essa razão, o Barroco apresenta, no Coimbra.
Brasil, algumas características específicas. É nomeado juiz-de-fora em Alcácer do Sal
As primeiras manifestações literárias em terras (Alentejo). Após alguns anos, torna-se procurador de
brasileiras eram ainda bem frágeis e presas aos Salvador junto à administração lisboeta.
modelos europeus. Volta ao Brasil pouco depois de 1678.
Não havia um público consumidor ativo e Quarentão e viúvo, tenta acomodar-se novamente
influente, mas já começavam a aparecer escritores na sociedade brasileira, tarefa impossível. Apesar de
nascidos na colônia e com eles surgiram as primeiras investido em funções religiosas, não perdoa o clero
manifestações ao sentimento nativista, ou seja, de nem o governador-geral (apelidado "Braço de Prata"
valorização da terra onde havia nascido. por causa de sua prótese) com seu sarcasmo.
Mulherengo, boêmio, irreverente, e possuidor de um
Não existia um sentimento de coletividade ou
legendário entusiasmo pelas mulatas, pôs muita
de grupo: nossa literatura da época foi fruto
LITERATURA BRASILEIRA – PROFESSOR JOÃO MARCELO

autoridade civil e religiosa em má situação, A mulher, muitas vezes, é a personificação do


ridicularizando-as de forma impiedosa. próprio pecado, da perdição espiritual.
Provocando a ira de um parente próximo do
governador-geral do Brasil, foi embarcado à força
para Angola (1694), pois corria risco de vida. Na Soneto à D. Ângela
(Gregório de Matos Guerra)
África, curte a dor do desterro, espanta-se diante
dos animais ferozes, intriga-se com a natureza e se Não vira em minha vida a formosura,
arrisca à perda da identidade. Sua chegada a Ouvia falar nela a cada dia,
Luanda coincide com uma revolta da soldadesca E ouvida me incitava, e me morria
portuguesa local. Gregório interferiu, pacificou o A querer ver tão bela arquitetura:
motim, acalmou (ou traiu?) os revoltosos e, como
prêmio, voltou para o Brasil, para o Recife, onde Ontem a vi por minha desventura
terminaria seus dias. Na cara, no bom ar, na galhardia
De uma mulher, que em anjo se mentia;
Sua obra poética apresenta duas vertentes De um sol, que se trajava em criatura;
principais: uma satírica (pela qual é mais conhecido)
que, não raro, apresenta aspectos eróticos e Matem-me, disse eu, vendo abrasar-me,
pornográficos; outra lírica, de fundo religioso e Se esta cousa não é, que encarecer-me
amoroso. Sabia o mundo e tanto exagerar-me:
Ao contrário de Vieira, Gregório não se
Olhos meus, disse então por defender-me,
envolveu com questões magnas, afetas à condução
Se a beleza hei de ver para matar-me,
da política em curso: não lhe interessavam os Antes olhos cegueis, do que eu perder-me.
índios, mas as mulatas; não o aborreciam os
holandeses, mas os portugueses; não cultivou a
política, mas a boêmia; não transitou pelas cortes
européias, mas vagabundeou pelo Recôncavo
baiano.
É uma espécie de poeta maldito, sempre
“À mesma D. Ângela”
ágil na provocação, mas nem por isso indiferente à
(Gregório de Matos Guerra)
paixão humana ou religiosa, à natureza, à reflexão
e, dado importante, às virtualidades poéticas duma Anjo no nome, Angélica na cara!
língua européia recém-transplantada para os Isso é ser flor, e Anjo juntamente.
trópicos. Ridicularizando políticos e religiosos, Ser Angélica flor e Anjo florente,
zombando dos mulatos, assediando freiras e Em quem, senão em vós, se uniformara:
mulatas, ou manejando um vocabulário acessível,
popular e erudito, o poeta baiano abrasileirou o Quem vira uma tal flor, que não a cortara,
barroco importado. Seus versos são um espelho fiel Do verde pé, da rama florescente;
de um país que se formava. E quem um anjo vira tão luzente;
Que por seu Deus, o não idolatrara?
A obra de Gregório costuma ser dividida de
acordo com sua temática em: lírica-amorosa, Se pois como Anjo, sois dos meus altares,
lírica-religiosa, satírica, reflexiva e burlesca. Fôreis o meu Custódio, e a minha guarda,
Livrara eu de diabólicos azares.
 Poesia Lírica: Gregório de Matos cultivou a
poesia lírica-amorosa e lírica-religiosa. Como poeta Mas vejo, que por bela, e por galharda,
lírico seguiu os temas e utilizou os recursos de Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.
linguagem comum ao barroco europeu.

1) Lírica-amorosa: é fortemente marcada pelo


dualismo amoroso: carne x espírito, gerando
frequentemente um sentimento de culpa no âmbito
espiritual.
Louva a mulher, de acordo com a tradição
lírica anterior (Renascimento), só que se trata da
mulher desejada, não apenas platonicamente
idealizada, de quem se solicita a companhia para
aproveitar os prazeres da vida.
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linguagem, de inversões sintáticas, jogos de palavras


e do ludismo.

“A Jesus Cristo Nosso Senhor”

Lisonjeia outra vez impaciente a retenção de Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
sua mesma desgraça, aconselhando a esposa Da vossa alta clemência me despido;
neste regalado soneto Porque, quanto mais tenho delinqüido,
(Gregório de Matos Guerra) Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Discreta e formosíssima Maria, Se basta a vos irar tanto pecado,


Enquanto estamos vendo a qualquer hora A abrandar-vos sobeja um só gemido;
Em tuas faces a rosada Aurora, Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia: Vos tem para o perdão lisonjeado.

Enquanto com gentil descortesia Se uma ovelha perdida e já cobrada


O ar, que fresco Adônis te enamora, Glória tal e prazer tão repentino
Te espalha a rica trança voadora, Vos deu, como afirmais na sacra história:
Quando vem passear-te pela fria:
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada;
Goza, goza da flor da mocidade, Cobrai-a e não queirais, Pastor divino,
Que o trota a toda ligeireza, Perder na vossa ovelha a vossa glória.
E imprime em toda flor sua pisada.

Oh não aguardes, que a madura idade


Te converta essa flor, essa beleza
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.

“Buscando a Cristo”
(Gregório de Matos Guerra)

A vós correndo vou, braços sagrados,


Soneto
Nessa cruz sacrossanta descobertos,
A uma dama dormindo junto a uma fonte
Que, para receber-me, estais abertos,
(Gregório de Matosa Guerra)
E, por não castigar-me, estais cravados.
À margem de uma fonte, que corria,
A vós, divinos olhos, eclipsados
Lira doce dos pássaros cantores
De tanto sangue e lágrimas cobertos.
A bela ocasião das minhas dores
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
Dormindo estava ao despertar do dia.
E, por não condenar-me, estais fechados.
Mas como dorme, Sílvia, não vestia
A vós, pregados pés, por não deixar-me,
O céu seus horizontes de mil cores;
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
Dominava o silêncio entre as flores,
A vós, cabeça baixa, para chamar-me.
Calava o mar, e o rio não se movia,
A vós, lado patente, quero unir-me,
Não dão o parabém à nova Aurora
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Flores canoras, pássaros fragrantes,
Para ficar unido, atado e firme.
Nem seu âmbar respira a rica Flora.

Porém abrindo Sílvia os dois diamantes,


Tudo a Sílvia festeja, tudo adora
Aves cheirosas, flores ressonantes.

2) Lírica-religiosa: a lírica-religiosa de Gregório


de Matos obedece aos princípios fundamentais do
barroco europeu, utilizando-se de temas como o amor
a Deus, a culpa, o arrependimento, o pecado e o
perdão. Além de fazer uso de constantes citações
bíblicas num estilo culto, refinado, cheio de figuras de
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“Ao Mesmo Assunto” Sua linguagem é rica, repleta de termos


(Gregório de Matos Guerra) locais (regionalismos), indígenas e negros, de
palavrões e gírias.
Ofendi-vos, meu Deus, é bem verdade; A criação poética de Gregório, ao dar espaço
É verdade, Senhor, que hei delinqüido;
para a paisagem local e a língua do povo, “talvez seja
Delinqüido vos tenho, e ofendido,
a primeira manifestação nativista de nossa literatura
Ofendido vos tem minha maldade.
e o início de um longo despertar da consciência crítica
Maldade encaminhada a uma vaidade; nacional”, que mais tarde surgiria nas manifestações
Vaidade, que todo me há vencido; literárias brasileiras.
Vencido quero ver-me, e arrependido;
Arrependido em tanta enormidade.
(Gregório de Matos Guerra)
Arrependido estou de coração,
De coração vos busco, dai-me abraços, A cada canto um grande conselheiro,
Abraços, que me rendam em vossa luz. Que nos quer governar cabana e vinha,
Não sabem governar sua cozinha,
Luz, que clara me mostra a salvação, E podem governar o mundo inteiro.
A salvação pretendo em tais abraços,
Misericórdia, amor, Jesus, Jesus! Em cada porta um freqüentado olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha,
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para levar à Praça e ao Ferreiro.
(Gregório de Matos Guerra)
Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos pelos pés os homens nobres,
Meu Deus, que estais pendente em um madeiro
Posta nas palmas toda a picardia.
Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja Santa lei hei de morrer
Estupendas usuras nos mercados,
Animoso, constante, firme e inteiro:
Todos, os que não furtam, muito pobres,
Eis aqui a cidade da Bahia.
Neste lance, por ser o derradeiro
Pois vejo a minha vida anoitecer,
É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um pai manso e cordeiro.

Mui grande é o vosso amor e o meu delito.


Porém pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor, que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar,


Que, por mais que pequei, neste conflito
Espero em vosso amor me salvar.

3) Satírica: neste tipo de poesia, Gregório foge


aos padrões barrocos estabelecidos, elaborando um
painel crítico, pitoresco, original e pessoal da
sociedade baiana do século XVII.
Durante muito tempo, sua poesia satírica foi
relegada a segundo plano, entretanto, hoje é
considerada extremamente criativa.
Criticou a tudo e a todos (políticos, membros
do clero, colonizadores, comerciantes, gente do povo,
negros e mulatos), daí o apelido de “boda do inferno”,
utilizando-se não só de humor sutil e malicioso como
também de uma sátira ferina e brutal, em que a
obscenidade e os palavrões são recursos freqüentes.
Através da poesia satírica deste autor, pode-
se reconstituir grande parte da vida brasileira do
período colonial.
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Que falta nesta cidade?... Verdade. E nos frades há manqueiras?... Freiras.


Que mais por sua desonra?... Honra. Em que ocupam os serões?... Sermões.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha. Não se ocupam em disputas?... Putas.

O demo a viver se exponha, Com palavras dissolutas


Por mais que a fama a exalta, Me concluo na verdade,
Numa cidade onde falta Que as lidas todas de um frade
Verdade, honra, vergonha. São freiras, sermões e putas.

Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio. O açúcar já acabou?... Baixou.


Quem causa tal perdição?... Ambição. E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.
E no meio desta loucura?... Usura. Logo já convalesceu?... Morreu.

Notável desaventura À Bahia aconteceu


De um povo néscio e sandeu, O que a um doente acontece:
Que não sabe que perdeu Cai na cama, e o mal cresce,
Negócio, ambição, usura. Baixou, subiu, morreu.

Quais são seus doces objetos?... Pretos. A Câmara não acode?... Não pode.
Tem outros bens mais maciços?... Mestiços. Pois não tem todo o poder?... Não quer.
Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos. É que o Governo a convence?... Não vence.

Dou ao Demo os insensatos, Quem haverá que tal pense,


Dou ao Demo o povo asnal, Que uma câmara tão nobre,
Que estima por cabedal, Por ver-se mísera e pobre,
Pretos, mestiços, mulatos. Não pode, não quer, não vence.

Quem faz os círios mesquinhos?... Meirinhos.


Quem faz as farinhas tardas?... Guardas.
Quem as tem nos aposentos?... Sargentos. 4) Reflexiva: também há poemas cujos temas
retomam o sentimento da brevidade da vida, da
Os círios lá vem aos centos,
passagem do tempo, da fugacidade das coisas e da
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando beleza física, marcados pelo Carpe Diem, mas
Meirinhos, guardas, sargentos. temperados com o pessimismo, próprio da estética
barroca. Poemas que discutem questões e os dramas
E que justiça a resguarda?... Bastarda. que refletem sobre a condição humana. Por isso,
É grátis distribuída?... Vendida. reflexivos.
Que tem, que a todos assusta?... Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa


O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça Desenganos da vida metaforicamente
Bastarda, vendida, injusta. (Gregório de Matos Guerra)

Que vai pela clerezia?... Simonia. É a vaidade Fábio, nesta vida,


E pelos membros da Igreja?... Inveja. Rosa, que da manhã lisonjeada,
Cuidei que mais se lhe punha?... Unha Púrpuras mil, com ambição dourada.
Airosa rompe, arrasta presumida.
Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé É planta, que de abril favorecida,
O que mais se pratica é Por mares de soberba desatada,
Simonia, inveja e unha. Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, navega destemida.

É nau enfim, que em breve ligeireza,


Com presunção de Fênix generosa,
Galhardias apresta, atentos prega:

Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa


De que importa, se aguarda sem defesa
Pedra a nau, ferro a planta, tarde a rosa.
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5) Burlesco: são poemas que abordam uma


Nasce o sol, e não dura mais que um dia, temática cotidiana com uma linguagem descontraída,
Depois da luz se segue a noite escura, bem-humorada e, muitas vezes, assim como
Em tristes sombras morre a formosura, acontece nos satíricos, chula, ou seja, de baixo calão,
Em contínuas tristezas a alegria. justamente por querer retratar o dia-a-dia dos
criados, mulatos e mulatas ou, até mesmo, de figuras
Porém se acaba o Sol, por que nascia? do Governo e do Clero nas suas ações corriqueiras.
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia? (Gregório de Matos Guerra)

Mas no Sol e na Luz falte a firmeza, Mancebo sem dinheiro, bom barrete,
Na formosura não se dê constância, Medíocre o vestido, bom sapato,
E na alegria sinta-se tristeza. Meias velhas, calção de esfola-gato,
Cabelo penteado, bom topete.
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza Presumir de dançar, cantar falsete,
A firmeza somente na inconstância. Jogo de fidalguia, bom barato,
Tirar falsídia ao Moço do seu trato,
Furtar a carne à ama, que promete.

A putinha aldeã achada em feira,


(Gregório de Matos Guerra) Eterno murmurar de alheias famas,
Soneto infame, sátira elegante.
Cresce o desejo, falta o sofrimento,
Sofrendo morro, morro desejando, Cartinhas de trocado para a Freira,
Por uma, e outra parte estou penando Comer boi, ser Quixote com as Damas,
Sem poder dar alívio a meu tormento. Pouco estudo, isto é ser estudante.

Se quero declarar meu pensamento,


Está-me um gesto grave acobardando,
E tenho por melhor morrer calando,
Que fiar-me de um néscio atrevimento. Ó tu do meu amor fiel traslado
Mariposa entre as chamas consumida,
Quem pretende alcançar, espera, e cala, Pois se à força do ardor perdes a vida,
Porque quem temerário se abalança, A violência do fogo me há prostrado.
Muitas vezes o amor o desiguala.
Tu de amante o teu fim hás encontrado,
Pois se aquele, que espera se alcança, Essa flama girando apetecida;
Quero ter por melhor morrer sem fala, Eu girando uma penha endurecida,
Que falando, perder toda esperança.
No fogo que exalou, morro abrasado.

Ambos de firmes anelando chamas,


Neste mundo é mais rico, o que mais rapa: Tu a vida deixas, eu a morte imploro
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa: Nas constâncias iguais, iguais nas chamas.
Com sua língua ao nobre o vil decepa:
O Velhaco maior sempre tem capa. Mas ai! que a diferença entre nós choro,
Pois acabando tu ao fogo, que amas,
Mostra o patife da nobreza o mapa: Eu morro, sem chegar à luz, que adoro.
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa: _____________
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.
Em o horror desta muda soledade,
A flor baixa se inculca por Tulipa;
Onde voando os ares a porfia,
Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Apenas solta a luz a aurora fria,
Mais isento se mostra, o que mais chupa.
Quando a prende da noite a escuridade.
Para a tropa do trapo vazo a tripa,
Ah, cruel apreensão de uma saudade!
E mais não digo, porque a Musa topa
De uma falsa esperança fantasia,
Em apa, epa, ipa, opa, upa.
Que faz que de um momento passe a um dia,
E que de um dia passe à eternidade!
LITERATURA BRASILEIRA – PROFESSOR JOÃO MARCELO

São da dor os espaços sem medida,


E a medida das horas tão pequena, Homem sei eu que foi vossenhoria,
Que não sei como a dor é tão crescida.
Quando o pisava da fortuna a roda,
Mas é troca cruel, que o fado ordena; Burro foi ao subir tão alto clima.
Porque a pena me cresça para a vida,
Quando a vida me falta para a pena.

_____________________ Pois, alto! Vá descendo onde jazia,

Verá quanto melhor se lhe acomoda

Que me quer o Brasil, que me persegue? Ser homem embaixo do que burro em cima.
Que me querem pasguates, que me invejam?
Não vêem que os entendidos me cortejam,
E que os nobres é gente que me segue?

Com o seu ódio a canalha que consegue?


Com sua inveja os néscios que motejam?
Se quando os néscios por meu mal mourejam,
Fazem os sábios que a meu mal me entregue.

Isto posto, ignorantes e canalha,


Se ficam por canalha, e ignorantes
No rol das bestas a roerem palha:

E se os senhores nobres e elegantes


Não querem que o soneto vá de valha,
Não vá, que tem terríveis consoantes.

___________________

Senhor Antão de Sousa de Menezes


A despedida do mau governo que fez o governador da

Bahia.

Senhor Antão de Sousa de Menezes,

Quem sobe ao alto lugar, que não merece,

Homem sobe, asno vai, burro parece,

Que o subir é desgraça muitas vezes.

A fortunilha, autora de entremezes

Transpõe em burro o herói que indigno cresce:

Desanda a roda, e logo homem parece,

Que é discreta a fortuna em seus reveses.

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