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Ao Sr. Prof. Doutor Luís Adriano Carlos, pelo exemplo intelectual, tão inspirador
quanto insuperável, deixo eternamente impressa a minha mais profunda gratidão.
À Sr.ª Prof.ª Doutora Joana Matos Frias, agradeço o modo profícuo e estimulante com
que conduziu os seminários de Teoria Estética e de Estética Comparada.
NOTA PRELIMINAR 5
INTRODUÇÃO 6
Primeira Parte
TRÂNSITO DO SUBLIME
Segunda Parte
O SUBLIME EM AMOR DE PERDIÇÃO
DE CAMILO CASTELO BRANCO
II. 3. O obscuro 75
CONCLUSÃO 111
BIBLIOGRAFIA 113
«[...] Without a strong impression nothing can be sublime»
1
Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, ed. genética e crítica por Ivo Castro, Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007.
2
Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, ed. crítica por Ivo Castro, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2012.
3
Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição: Memorias duma Familia, reprodução
fac-similada do manuscrito, em confronto com a edição crítica, segundo plano organizado e
executado sob a direção de Maximiano de Carvalho e Silva, estudo prévio histórico-literário de
Aníbal Pinto de Castro, Rio de Janeiro / Porto, Real Gabinete Português de Leitura / Lello &
Irmão, 1983.
INTRODUÇÃO
4
«Se, por virtude da metempsicose, eu reaparecer na sociedade do século XXI, talvez me
regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica, e esta 5.ª edição do Amor
de perdição quasi esgotada» (Camilo Castelo Branco, «Prefácio da Quinta Edição», pref. a
Amor de Perdição, ed. genética e crítica por Ivo Castro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2007, p. 133).
5
Como bem notou Jacinto do Prado Coelho, o leitor de Camilo é convidado «não a
contemplar mas a deixar-se arrastar pelo turbilhão dos sucessos e emoções» (Introdução ao
Estudo da Novela Camiliana, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, p. 393).
6
Luc Ferry, Homo Aestheticus: A Invenção do Gosto na Era Democrática, Coimbra,
Almedina, 2003, p. 48.
7
Parecem suficientes as seguintes provas colhidas para confirmar o conhecimento direto da
obra Peri Hupsous por parte de Camilo: o verbete «Longino» no Dicionário Universal de
Educação e Ensino traduzido para português pelo escritor, o qual foi por este ampliado «nos
artigos deficientes em assumptos relativos a Portugal» (Porto / Braga, Livraria Internacional de
Ernesto Chardron e Eugenio Chardron, 1873, Vol. I, s/n); nessa mesma entrada, o enfático
elogio tecido à tradução do ensaio levada a cabo por Filinto Elísio: «São [sic] juizo, estylo
energico, eloquencia competente, são predicados que realçam n’esse livrinho brilhantemente
traduzido por Francisco Manoel do Nascimento» (idem, Vol. II, p. 93; itálico meu); a
existência das Obras de Filinto Elísio, em 22 tomos, na biblioteca pessoal de Camilo,
elencadas com o número 686 no Catalogo da Preciosa Livraria do Eminente Escriptor
7
9
Entre os estudos sistemáticos mais próximos desta intenção, contar-se-ão, de António do
Prado Coelho, Espiritualidade e Arte de Camilo (Porto, Livraria Simões Lopes, 1950), e de
Maria de Lourdes A., «Camilo e o Romantismo: A Retórica do Sentimento» (in AA. VV.,
Camilo: Leituras Críticas, Porto, Caixotim, 2003).
10
Por Tierras de Portugal y de España, Renacimiento, Madrid, s/d, p. 20; itálico meu.
11
«Camilo, Romancista Português», in Ensaios de Interpretação Crítica: Camões, Camilo,
Florbela, Sá-Carneiro, Lisboa, Portugália, 1964, p. 133; itálicos meus.
12
«Camilo e a Tradição Narrativa Camiliana», Tellus, 13, Vila Real, Julho de 1985, p. 38.
13
Cf. João Bigotte Chorão, «Apontamentos e Desapontamentos Camilianos», Tellus, 19,
Vila Real, Julho de 1990, p. 15: «A novela faz-se então poema, e aí está o modelo insuperável
do Amor de Perdição — uma tragédia em prosa, como o Frei Luís de Sousa».
14
Cf. «Em Louvor de Camilo», in Estudos de Literatura Portuguesa — I, Lisboa, Edições
70, 1982, p. 119: «Se fosse uso da terminologia crítica em Portugal chamar a todos os criadores
literários, quando pelo vigor da expressão são mais do que literatos, ‘poetas’, estariam
resolvidos os problemas que é costume levantar em torno do prestígio e do génio de Camilo,
porque foi ele, e é, um dos grandes poetas da língua portuguesa. […] A pura beleza trágica de
Amor de Perdição, a lancinante melancolia de Romance de um homem rico, a áspera narrativa
de O esqueleto, a subtil complexidade de Onde está a felicidade, a profusão teatral de
Brasileira de Prazins — para que citar mais, se fica sempre algo por citar? — revelam grande
poesia, daquela grande poesia que pode ser ou não ser apenas lirismo, em que pese àqueles
para os quais a poesia é um dejecto lírico em verso (ou prosa que ‘até’ pareça verso…), não
excedendo a meia dúzia de páginas. Trágico, épico, lírico, satírico — tudo isso foi Camilo. De
tudo isso, e de um mágico poder encantatório, se compõe o seu pessoalíssimo estilo».
9
15
Como escreve José-Augusto França: «Ele será o romancista no quadro do romantismo
português» («Camilo ou a Opção da Desventura», in O Romantismo em Portugal: Estudo de
Factos Socioculturais, Lisboa, Livros Horizonte, 1999, p. 281).
16
Neil Hertz, num artigo intitulado «The Notion of Blockage in the Literature of the
Sublime», disserta sobre a proliferação assustadora das bibliografias vertiginosamente
abundantes (in The End of the Line: Essays on Psychoanalysis and the Sublime, Nova Iorque,
Columbia University Press, 1985).
17
Foi Eugénio Lisboa quem, no âmbito de um colóquio de camilianistas, explorou o
fenómeno de adição provocado pela leitura das obras de Camilo, considerando-se ele próprio
um bom exemplo de viciado ou drogado em Camilo (cf. «(Con)viver com Camilo», in João
Camilo dos Santos (ed.), Proceedings of the Camilo Castelo Branco International Colloquium,
Santa Barbara, University of California — Center for Portuguese Studies, 1995).
18
Escreve Abel Barros Baptista: «O leitor de Camilo passa por uma experiência de leitura
invulgarmente espessa e turbulenta, e também não se escreve sobre Camilo ao abrigo daquela
tranquilidade seráfica com que alguns tocam órgão na missa das onze. Eu diria que todo o
leitor de Camilo vive, nessa experiência de leitura, um drama específico, desde logo
engendrado pela sua própria resistência, mas sobretudo pelo texto que se lhe apresenta sem
provas e defesas, frágil e vulnerável, isto é, um texto que ele, leitor, não tem qualquer
necessidade de ler (Camilo e a Revolução Camiliana, Lisboa, Quetzal, 1988, pp. 21-22).
Primeira Parte
TRÂNSITO DO SUBLIME
ORIGEM E EVOLUÇÃO DO SUBLIME:
DE PSEUDO-LONGINO A EDMUND BURKE
Ovídio, Metamorfoses
19
Observe-se a similitude do intertexto bíblico relativamente à espacialização ontológica do
homem face aos outros seres e à sua aparência divina: «Deus, a seguir, disse: ‘Façamos o
homem à Nossa imagem, à Nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre
as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra.
Deus criou o homem à Sua Imagem, criou-o à imagem de Deus’» (Bíblia Sagrada, Lisboa,
Difusora Bíblica, 1992, p. 18; itálicos meus).
12
20
Hesíodo, «Teogonia», in Teogonia / Trabalhos e Dias, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 2005, p. 60. Eis a origem do mito de Pandora, a primeira mulher. Aos encantos
femininos os antigos associaram um perigo terrível na medida em que implica um mal oculto
(cf. idem, pp. 60-61). Sobre o mito de Prometeu, cf. Hesíodo, «Teogonia», in op. cit., pp.
58-61; e «Trabalhos e Dias», in op. cit., pp. 93-95.
21
Giambattista Vico, Ciência Nova, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 13.
22
Cf. Heraclito, Fragmentos Contextualizados, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2005, pp. 69, 89, 97 e 109.
23
Jean Brun, Os Pré-Socráticos, Lisboa, Edições 70, 2002, p. 53.
13
24
Cf. Platão, O Banquete, Lisboa, Edições 70, 1991, pp. 81-82; e A República, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 436-437.
25
Platão, O Banquete, op. cit., p. 82.
26
No trabalho de reconstituição etimológica levado a cabo no Crátilo, Sócrates refere: «a
visão do mundo superior recebe adequadamente este nome, ‘urânia’, porque olha para cima;
[...] é daí que provém a pureza do espírito, e é por isso que é correcto o nome atribuído a
Úrano» (Platão, Crátilo, Lisboa, Instituto Piaget, 2001, p. 61).
27
Platão, A República, op. cit., p. 132.
28
«A teoria platónica das Ideias, na sua conceção e fundação originais, não concede
nenhum lugar a uma estética autónoma, a uma ciência da arte. Porque a arte está presa à
aparição sensível das coisas da qual é impossível obter um saber rigoroso, mas sempre uma
opinião ou imaginação. [...] nenhuma outra teoria filosófica foi o ponto de partida de efeitos
estéticos mais duradouros e enraizados como este sistema que recusa à estética uma existência
própria e independente, portadora dos mesmos direitos. Não exageramos se afirmarmos que no
fundo toda a estética sistemática surgida até ao presente na história da filosofia foi e continuou
a ser platonismo» (Ernst Cassirer, «Eidos et Eidolon: Le Problème du Beau et de l’Art dans les
Dialogues de Platon», in Écrits sur l’Art, Paris, Les Éditions du Cerf, 1995, p. 29). Discípulo
de Cassirer, Erwin Panofsky mostrou a pregnância platónica na reflexão sobre o fenómeno
artístico, desde Cícero ao Neoclassicismo, na sua obra Idea: Ein Beitrag zur Begriffsgeschichte
der alteren Kunsttheorie (cf. Idea: A Evolução do Conceito de Belo, São Paulo, Martins
Fontes, 2000).
14
29
Stephen Halliwell, «Pleasure, Understanding, and Emotion in Aristotle’s Poetics», in
Amélie Oksenberg Rorty (ed.), Essays on Aristotle’s Poetics, Princeton, Princeton University
Press, 1992, p. 246.
30
Aristóteles, Poética, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 43. Deste modo,
Aristóteles explica a bifurcação dos géneros: «Quando a tragédia e a comédia apareceram, dos
que se dedicavam a cada uma destas espécies de poesia, de acordo com a sua propensão
natural, uns tornaram-se poetas cómicos em vez de autores de iambos, e outros poetas trágicos,
em vez de autores épicos, pois que estas formas eram melhores e de maior mérito do que as
anteriores» (idem, p. 44).
15
31
Aristóteles define assim a semelhança entre os géneros trágico e épico: «A epopeia segue
de perto a tragédia por ser também imitação, com palavras e ajuda de metro, de caracteres
virtuosos» (idem, pp. 46-47; itálico meu).
32
Trata-se do grande em sentido figurado (cf. Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot, Notas a
Aristóteles, La Poétique, Paris, Seuil, 1980, p. 379, nota 7).
33
Aristóteles, Poética, op. cit., pp. 104-105.
34
Idem, pp. 105-106.
16
A definição do género trágico integra assim, num mesmo eixo, o ethos, o logos
e o pathos: a ação elevada (praxis spoudaias) é imitada através de uma
linguagem temperada (logos hedysmenos) propendendo ao acometimento de
paixões (pathe) cuja purificação (catharsis) surte efeitos sobre o espetador. Se,
no entendimento do filósofo, a ação ou estruturação dos acontecimentos
(mythos) é «como que a alma da tragédia»36, são os caracteres (ethe) que
relevam das ações, não o inverso, uma vez que «não haveria tragédia sem
acção, mas poderia haver sem caracteres»37. Na medida em que a tragédia é
uma imitação de ações elevadas, o perfil do herói trágico — expressão
consagrada, no Renascimento, pelos comentadores italianos da Poética —
rege-se necessariamente pelo caráter elevado. Este modelo de pensamento
ostenta um significativo avanço relativamente ao de Platão, já que Aristóteles
está consciente de que a superioridade constitui uma categoria ética
intersubjetiva. E esta perceção repercute-se na imperfectibilidade intrínseca aos
caracteres superiores:
Uma vez que a tragédia é a imitação de homens melhores do que nós, deve
seguir-se o exemplo dos bons pintores de retratos: estes, fazendo os homens iguais a
nós e respeitando a sua forma própria, pintam-nos mais belos. Assim o poeta,
quando imita homens irascíveis, negligentes ou com outros defeitos deste género no
seu carácter, deve representá-los como são e, ao mesmo tempo, como homens
admiráveis, da mesma forma que Homero representou Aquiles nobre, mas modelo
de inflexibilidade38.
Ora, este critério torna-se fulcral para suscitar a simpatia do espetador ou leitor
— e consequentemente o seu temor e a sua piedade —, sem a qual não se
verifica a purificação destas emoções. Com efeito, a queda do herói trágico
deve decorrer, não de uma perversidade, mas de um erro (hamartia). Ora,
35
Idem, p. 48.
36
Idem, p. 50.
37
Idem, p. 49.
38
Idem, p. 69.
17
39
Cf. Nancy Sherman, «Hamartia and Virtue», in Amélie Oksenberg Rorty (ed.), Essays
on Aristotle’s Poetics, op. cit., esp. pp. 184-188 e 189-192.
40
A este propósito, Baldine Saint Girons comenta: «Se o prazer trágico é
fundamentalmente educador em Aristóteles é porque o trágico se oferece à contemplação e
permite, graças à distância em que nos situa relativamente ao objeto, a sua meditação
prolongada. A purificação é produzida pela representação (dia mimeseôs), isto é, pela narrativa
trágica. [...] a catharsis dá a ver o trágico na medida em que o coloca fora do contexto
ordinário da vida e em que confere ao poema um estatuto autónomo» (Le Sublime: De
l'Antiquité à nos Jours, Paris, Desjonquères, 2005, p. 41). Cf. Giovanni Lombardo, A Estética
da Antiguidade Clássica, Lisboa, Estampa, 2003, pp. 94-95.
18
48
Aristóteles, Retórica, op. cit., p. 186.
49
Idem, p. 176.
50
Aristóteles, Poética, op. cit., p. 63. Neste sentido, Aristóteles observa: «Das restantes
partes constituintes da tragédia, a música é o maior dos embelezamentos, e o espéctaculo, se é
certo que atrai o espírito, é contudo o mais desprovido de arte e o mais alheio à poética. É que
o efeito da tragédia subsiste mesmo sem os concursos e os actores. E, para a montagem dos
espectáculos, vale mais a arte de quem executa os acessórios do que a dos poetas» (idem, pp.
50-51).
20
51
Aristóteles, Retórica, op. cit., p. 245. Por discurso elevado entenda-se aqui o conceito
aristotélico ogkos (ὄγκος).
52
Cf. idem, esp. p. 269 e ss..
53
Para o esclarecimento dos problemas filológicos e biográficos levantados pela obra
anónima, cf. Henri Lebègue, Introdução a Longino, Du Sublime, Paris, Les Belles Lettres,
1965. Embora seja mais rigoroso designar o seu autor de Pseudo-Longino, a verdade é que, por
tradição, os críticos assumem naturalmente o nome vulgar. Quanto ao título, Michel Deguy
adverte para o facto de Do Sublime ser uma tradução errónea do título Peri Hupsous, propondo
a sua substituição por uma expressão mais literal e rigorosa: Da Elevação (cf. Michel Deguy,
«Le Grand-Dire: Pour Contribuer à Une Relecture du Pseudo-Longin», in AA. VV., Du
Sublime, Paris, Belin, 2009, pp. 9-10).
54
Baldine Saint Girons, Fiat Lux: Une Philosophie du Sublime, Paris, Quai Voltaire, 1993,
p. 233.
21
57
Longino, op. cit., pp. 108 e 116.
58
Idem, p. 60.
59
Cf. idem, p. 107: «[...] trata-se de objetos de reflexão próprios à questão do sublime, e
que exigem de qualquer modo uma decisão. Quanto a mim [...]».
60
Cf. idem, pp. 102 e 104.
61
Idem, p. 114.
62
David Hume, «Do Padrão do Gosto», in Ensaios Morais, Políticos e Literários, Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002, p. 222. Lembre-se que David Hume distingue cinco
aferidores do gosto: a delicadeza ou qualidade do discernimento; a prática, isto é, a
experiência ou especialização; o poder de comparação; a ausência de preconceito; e o bom
senso.
63
Cf. Pierre Hartmann, Du Sublime: De Boileau à Schiller, Estrasburgo, Presses
Universitaires de Strasbourg, 1998, p. 224.
23
64
Pseudo-Longino itera a ideia de que «uma figura é melhor quando o facto de ser figura
permanece oculto» (op. cit., p. 87). Cf. Neil Hertz, «A Reading of Longinus», in op. cit., pp.
35-40.
65
Cf. Longino, op. cit., p. 110.
66
Cf. idem, esp. p. 116.
24
É preciso ter em conta que por Sublime, Longino não entende o que os Oradores
designam por estilo sublime: mas aquele extraordinário e aquele maravilhoso que
arrebata no discurso, e que faz com que uma obra eleve, extasie, transporte. O estilo
sublime requer sempre grandes palavras, enquanto o Sublime pode encontrar-se
num único pensamento, numa única figura, numa única volta de palavras. Uma
coisa pode encontrar-se no estilo sublime e não ser no entanto Sublime, isto é, não
ter nada de extraordinário, nem de surpreendente67.
67
Nicolas Boileau-Despréaux, Prefácio a «Traité du Sublime ou du Merveilleux dans le
Discours», in Oeuvres Complètes, Paris, Gallimard, 1966, p. 338. Nas suas meditações sobre o
sublime, alimentadas pela contenda com Daniel Huet, Boileau anota: «[…] o Senhor Clérigo,
na sua longa verborreia, [...] tudo o que avança deriva somente de um equívoco sobre a palavra
Sublime, que ele confunde com o estilo sublime, e que ele crê inteiramente oposto ao estilo
simples» («Réflexions Critiques sur quelques Passages du Rheteur Longin où, par Occasion,
On Répond à Quelques Objections de Monsieur P*** contre Homère et contre Pindare», in
idem, p. 545).
68
Cf. Théodore A. Litman, «Boileau: La Présentation du Sublime», in Le Sublime en
France (1660-1714), Paris, A. G. Nizet, 1971.
25
69
Convém notar que a Estética, enquanto disciplina filosófica, nasceu sob a égide do Belo:
«A finalidade da estética é a perfeição do conhecimento sensível como tal, isto é, a beleza»
(Alexander Gottlieb Baumgarten, Esthétique, Paris, ’Herne, 1988, p. 127).
70
Cf. idem, p. 121; e Luc Ferry, op. cit., passim. Já Ernst Cassirer havia notado a influência
do sublime, e da questão colateral do génio, na constituição da estética enquanto disciplina
eminentemente subjetiva: «A ‘subjetividade’, no âmbito da estética, recebe assim igualmente
um novo sentido e liga-se a novos fins. A importância da doutrina do sublime para a história
das ideias é aqui, do ponto de vista da arte, o de sublinhar os limites do eudonismo e de escapar
à sua estreiteza. O resultado pelo qual toda a ética do século XVIII se esforçou em vão cai aqui
como um fruto maduro por meio da estética. [...] O problema do génio e o do sublime agem
aqui na mesma direção: eles vão tornar-se nos temas intelectuais do desenvolvimento e da
elaboração progressiva de uma conceção nova e mais profunda da individualidade» (Ernst
Cassirer, La Philosophie des Lumières, Paris, Fayard, 2008, pp. 320-321). Por seu turno,
Jean-François Lyotard declara que «Foi nesta palavra [o sublime] que se decidiu e perdeu a
sorte da poética clássica, foi com este nome que a estética fez valer os seus direitos críticos
sobre a arte, e que o romantismo, ou seja, o modernismo, triunfou» (O Inumano:
Considerações sobre o Tempo, Lisboa, Estampa, 1990, p. 98). Théodore Litman mostra, por
sua vez, o papel capital do sublime nas metamorfoses internas ao classicismo, mal
compreendido na sua redução à filosofia dedutivista cartesiana e à normatividade (cf. op. cit.,
passim). Na verdade, o Classicismo viveu dentro de si próprio o conflito entre racionalismo e
sensibilidade (ou delicadeza), e o próprio Boileau é um testemunho disso. Demasiado afeito à
sua Art Poétique, continuou a ver negligenciada a sua tradução do Traité du Sublime, bem
como as subsequentes Réflexions Critiques, que o tornaram numa peça-chave na evolução da
estética da delicadeza seiscentista para a estética do sentimento setecentista (cf. Luc Ferry, op.
cit., pp. 53-68).
26
71
Marjorie Hope Nicolson faz, porém, questão de ressalvar que «O Sublime chegou à
Inglaterra muito antes das teorias retóricas de Longino terem começado a suscitar o interesse
dos ingleses» (Marjorie Hope Nicolson, Mountain Gloom and Mountain Glory: The
Development of the Aesthetics of the Infinite, Nova Iorque, The Norton Library, 1963, p. 143).
72
Esta hesitação repercute-se nomeadamente numa distinção, implícita no ensaio, entre
sublime natural e sublime artístico, em que o segundo parece prevalecer sobre o primeiro (cf. o
ensaio n.º 414 in Joseph Addison e Sir Richard Steele, The Spectator, Vol. III, Londres,
Ever man’s ibrar , 1979, pp. 284-287).
27
73
Neste sentido, Joseph Addison sustenta: «Mas se há algo de belo ou fora do comum a par
desta grandiosidade, como um oceano enfurecido, um céu adornado com estrelas e meteoros,
ou um terreno amplo recortado de rios, bosques, rochedos e prados, o prazer torna-se ainda
mais intenso, na medida em que brota de mais de um princípio único» (idem, pp. 279-280).
74
Idem, p. 288.
75
Idem, p. 298.
76
Idem.
77
Cf. idem, esp. pp. 290-293.
78
Cf. Thomas Weiskel, The Romantic Sublime: Studies in the Structure and Psychology of
Transcendence, Baltimore / Londres, The Johns Hopkins University Press, 1976, p. 14: «Deus
tinha de ser salvo, mesmo que o preço a pagar fosse o seu consórcio com o mundo das
aparências. E assim aconteceu, no sublime natural. O primeiro momento, no século XVII, foi a
identificação dos atributos tradicionais da Divindade — infinitude, imensidão, omnipresença
— com a vastidão do espaço recém-descoberto por uma astronomia emergente. As emoções
28
82
É certo que, antes de Edmund Burke, foi John Dennis quem levou a cabo «a primeira
distinção importante na crítica literária inglesa entre o Sublime e o Belo», como notou Marjorie
Hope Nicolson (op. cit., p. 279).
83
O que contraria a ideia de John Locke, segundo a qual a dor e o prazer são sensações
contrárias que interagem numa razão de proporcionalidade (cf. John Locke, Ensaio sobre o
Entendimento Humano, op. cit., Livro II, p. 304).
84
Edmund Burke, A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and
Beautiful, Oxford, Oxford University Press, 2008, p. 34.
85
Edmund Burke defende que «a ideia de dor, no seu grau mais elevado, é muito mais forte
do que o grau mais elevado do prazer» (idem, p. 59), o que está de acordo com o que John
Locke já havia notado: «o prazer não actua sobre nós com o mesmo vigor que a dor» (op. cit.,
Livro I, p. 303).
86
Edmund Burke, op. cit., p. 74.
30
87
David Hume, no seu Treatise of the Human Nature, já havia considerado a distância
como fonte de admiração pelo objeto (cf. Tratado da Natureza Humana, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 501-507).
88
Demétrio, «Sobre el Estilo», in Demétrio / Longino, Sobre el Estilo / Sobre lo Sublime,
Madrid, Gredos, 1979, p. 61. Foi Baldine Saint Girons quem fez notar a aproximação do
sublime bur eano ao δεινός (deinos) demetriano (cf. Fiat Lux: Une Philosophie du Sublime,
op. cit., p. 23).
89
Edmund Burke, op. cit., p. 57.
31
90
O núcleo empirista da época foi unânime em considerar a dor como catalisador central da
capacidade de autossuperação da espécie humana (cf. John Locke, op. cit., pp. 301-302; e
David Hume, Tratado da Natureza Humana, op. cit., p. 502).
91
Para uma distinção entre o valor estético particular e o valor estético universal do
sublime, cf. Étienne Souriau, «Le Sublime», in Les Catégories Esthétiques, Paris, Centre de
Documentation Universitaire, 1956, pp. 98-107. Cf. Mikel Dufrenne, Phénoménologie de
l’Expérience Est étique — I L’Objet Est étique, Paris, Presses Universitaires de France, 1992,
p. 127: «O objeto estético é portanto o sensível que aparece na sua glória»; e Baldine Saint
Girons, «Fiat Lux et la Gloire du Sensible», in Fiat Lux: Une Philosophie du Sublime, op. cit..
A EMANCIPAÇÃO DO SUBLIME E O ROMANTISMO
92
Cf. Samuel H. Monk, The Sublime: A Study of Critical Theories in XVIII-Century
England, s/l, The University of Michigan Press, 1960, p. 9 e passim.
93
Importa lembrar que, no último quartel do século XVIII, a metafísica é submetida a um
julgamento sem precedentes. Considerando-a maltratada pelo idealismo dogmático que lhe
33
imputa leis infundadas, Kant conduz a metafísica a um justo tribunal que assumirá a
constituição fidedigna do ramo mais importante da filosofia, cuja consistência fraquejava
embora, quando cotejada com a ciência. Este tribunal dá-se pelo nome de crítica e o processo
deste julgamento será desenvolvido ao longo da trilogia do filósofo de Königsberg: a Crítica
da Razão Pura (1781), a Crítica da Razão Prática (1788) e, finalmente, a Crítica da
Faculdade do Juízo (1790). Na primeira destas suas obras, dividida em «Estética
Transcendental» e «Lógica Transcendental», Kant refuta o projeto de constituição de uma
ciência estética tentada pelo filósofo leibniziano Baumgarten, que entendia um fundamento
gnosiológico (ainda que inferior) na experiência sensível, fundamento esse que Kant mostra ser
inválido. Com efeito, na medida em que está confinada à intuição empírica ou sensível, a
estética transcendental orienta-se no mundo dos fenómenos, assistidos contudo por dois
princípios apriorísticos do conhecimento — o tempo e o espaço —, sem os quais o sujeito nada
pode conhecer ou apreender. Aisthesis e noesis não devem ser confundidas: cada uma ocupa
um distinto domínio, pelo que é um equívoco o intento de submeter a sensibilidade aos
critérios da racionalidade. Kant rejeita pois a designação de estética enquanto ciência do
sensível, adotando uma expressão substituta, mais frequentemente utilizada fora do âmbito
germânico, a crítica do gosto. Todavia, a recusa de uma ciência do sensível (paradoxal, na
perspetiva filosófica kantiana) não constitui um óbice ao desenvolvimento da reflexão estética.
Pelo contrário, é justamente em Kant que encontraremos uma transformação que desencadeará
a fortuna de que a estética goza até à época hodierna. A culminante síntese realizada na Crítica
da Faculdade do Juízo constituiu mesmo uma «revolução do gosto», para usar a expressão de
Luc Ferry, na qual o sublime desempenhou um papel determinante.
94
Cf. Immanuel Kant, Crítica da Faculdade do Juízo, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1998, p. 137.
95
Idem, p. 138.
96
«Na representação do sublime na natureza o ânimo sente-se movido, já que no seu juízo
estético sobre o belo ele está em tranquila contemplação. Este movimento pode ser comparado
(principalmente no seu início) a um abalo, isto é a um repelir rapidamente variável e a um
atrair do mesmo objecto. O excessivo para a faculdade da imaginação (ao qual ela é impelida
34
na apreensão da intuição) é por assim dizer um abismo, no qual ela própria teme perder-se;
contudo para a ideia da razão do supra-sensível não é igualmente excessivo, mas conforme às
leis produzir um tal esforço da faculdade da imaginação: por conseguinte é por sua vez atraente
precisamente na medida em que era repulsivo para a simples sensibilidade» (Crítica da
Faculdade do Juízo, op. cit., p. 154). Sobre esse diferendo entre razão e sensibilidade, veja-se a
clarividente lição que é apresentada por Lyotard em Leçons sur l’Analytique du Sublime, s/l,
Galilée, 1991, esp. pp. 158-162.
97
Friedrich Schiller, «Do Sublime (Para um Desenvolvimento de Algumas Ideias
Kantianas)», in Textos sobre o Belo, o Sublime e o Trágico, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 1997, p. 145.
98
Cf. Immanuel Kant, Crítica da Faculdade do Juízo, op. cit., pp. 162-164. Schiller
acredita que «A cultura deve libertar o ser humano e ajudá-lo a consumar todo o seu conceito.
Ela deve portanto torná-lo capaz de impor a sua vontade, pois o ser humano é o ente que quer»
(«Sobre o Sublime», in Textos sobre o Belo, o Sublime e o Trágico, op. cit., p. 219). Nesse
intuito, Schiller apresenta o seu projeto de uma moral fundada numa estética: «Constitui
portanto uma das mais importantes tarefas da cultura submeter o ser humano à forma já durante
a sua mera vida física, tornando-o estético até onde possa chegar o reino da beleza, uma vez
que só a partir do estético, não do físico, se pode desenvolver o estado moral» (Sobre a
Educação Estética do Ser Humano numa Série de Cartas e outros Textos, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1994, p. 83).
35
des Menschen em einer Reihe von Briefen e Über Naive und Sentimentalische
Dichtung, ambas de 1795. A dignidade do homem, reconhecida pelo
humanismo renascentista de Pico della Mirandola, depende, segundo Schiller,
do exercício pleno da liberdade humana, inerente à sua superioridade moral, a
qual se vê aperfeiçoada pela sensibilidade. Partilhando do idealismo de Fichte,
Schiller acreditava que cada homem transportava individualmente a forma pura
e ideal do ser humano à qual devia procurar elevar-se. E era, portanto, ao
impulso lúdico que o poeta alemão imputava o acesso do homem ao absoluto.
Por sua vez, o círculo de Iena assumirá uma radical posição na
metalinguagem sobre o objeto poético, ao querer substituir o discurso
filosófico pelo mais rigoroso discurso poético, no sentido em que «não se pode
falar de poesia a não ser em poesia»99. Preconizadores da autonomização do
objeto estético, os românticos alemães teorizaram o absoluto literário
concebido no seu espírito de síntese e de metamorfose — a Sympoesie — que
compreendia numa cadeia analógica as categorias pan-artísticas do poético, do
sublime e do romântico100.
Tal como sucedia em Longino, a teoria romântica alemã interessa-se pela
energia que anima o verbo poético. Ao perscrutar os mistérios da força verbal,
o Frühromantik descobre a essência do silêncio, essa «autodestruição» que
«trabalha no coração das ‘palavras’»101, porque o silêncio significa, enquanto
representamen da infinita profundidade do sentido, a qual aponta para a
dimensão profética da palavra tal como ela é concebida pelos românticos em
geral. Na verdade, a poesia é, segundo estes românticos, a chave da metafísica,
99
Friedrich Schlegel, «Entretien sur la Poésie», in Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc
Nancy, L’Absolu Littéraire éorie e la Littérature u Romantisme Alleman , Paris, Seuil,
1978, p. 290. Sobre o valor teórico-especulativo do discurso poético no Frühromantik, cf.
Jean-Marie Schaeffer, La Naissance de la Littérature: La Théorie Esthétique du Romantisme
Allemand, Paris, Presses de l’École Normale Supérieure, 1983, passim; e, do mesmo autor, «La
Naissance de la Théorie Spéculative de l’Art», in L’Art e l’Âge o erne L’Est étique et la
P ilosop ie e l’Art u XVIIIe Siècle à nos Jours, Paris, Gallimard, 1992, passim.
100
Karl Philipp Moritz, vulto influente no Romantismo alemão, autor do ensaio Über den
Begriff des in sich Vollendeten (1785), já defendia a teleologia interna do objeto artístico
entendido como um «Todo, Acabado em si mesmo» («Sur le Concept d’Achevé en Soi», in Le
oncept ’Ac evé en Soi et autres Ecrits (1785-1793), Paris, Presses Universitaires de France,
1995, p. 84).
101
Michel Deguy, art. cit., p. 41.
36
102
É no fragmento 116 que Friedrich Schlegel compreende essa infinitude do verbo em
incessante apresentação, designando-a «poesia universal progressiva» (cf. «[Fragmento] 116»,
in Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, op. cit., p. 112).
103
William Wordsworth, Prefácio a William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge,
Lyrical Ballads, Londres / Nova Iorque, Routledge, 2007, p. 295.
104
Cf. idem, pp. 289-290: «O principal objeto que a mim próprio me propus nestes Poemas
foi, então, escolher incidentes e situações da vida quotidiana e relatá-los ou descrevê-los, tanto
quanto possível, numa seleção da linguagem realmente usada pelos homens; e, ao mesmo
tempo, recobri-los com um certo colorido da imaginação através do qual as coisas comuns se
apresentariam ao espírito de um modo invulgar: e, além disso e acima de tudo, tornar
interessantes estes incidentes e situações, ao delinear neles, com verdade, mas sem ostentação,
as leis primárias da nossa natureza, sobretudo no que diz respeito à maneira como associamos
ideias num estado de excitação».
105
A própria emancipação do sublime no Romantismo não pode ser dissociada de uma
compreensão da mudança do paradigma sócio-político ocorrida no dealbar do século XIX, no
rescaldo da Revolução Francesa, à qual românticos ingleses como Coleridge, Blake e o próprio
Wordsworth aderiram fervorosamente numa primeira fase de juventude. Thomas Weiskel, com
efeito, fundamenta o surgimento do sublime romântico com a mudança dos paradigmas
epistémico, teológico e sociológico ocorrida na Modernidade (cf. op. cit., passim).
37
106
William Wordsworth, Prefácio a Lyrical Ballads, op. cit., p. 291.
107
Revela-se evidente o facto de Longino ser «o exemplo e a fonte de muitos elementos
característicos da teoria romântica» (M. H. Abrams, The Mirror and the Lamp: Romantic
Theory and the Critical Tradition, Londres / Oxford / Nova Iorque, Oxford University Press,
1971, p. 72). Para essa revitalização romântica do legado longiniano, nem sempre realizada de
forma consciente, foi fundamental o interesse suscitado pelo tratado ao longo século XVIII (cf.
«The Longinian Tradition», in Andrew Ashfield e Peter de Bolla (ed.), op. cit.).
108
A elevação do comum subjacente ao romantismo social de Victor Hugo, que interessará
também ao autor de Le Spleen de Paris, havia sido alvo de reflexão por parte de Schiller num
enquadramento ético-estético que é apanágio do Romantismo (cf. Friedrich Schiller, «Ideias
sobre o Uso do Comum e do Baixo na Arte», in Textos sobre o Belo, o Sublime e o Trágico,
op. cit., pp. 185-191). Para a compreensão das relações entre a dimensão ético-política e a
dimensão estética do sublime nos autores românticos, cf. Dominique Peyrache-Leborgne,
«Sublime, Ethique et Politique», in Poétique u Sublime e la in es Lumières au
Romantisme: Diderot, Schiller, Wordsworth, Shelley, Hugo, Michelet, Paris, Honoré
Champion, 1997.
109
William Wordsworth, «Lines written a few miles above Tintern Abbey», in Lyrical
Ballads, op. cit., p. 159; itálico meu.
38
A partir dessa incorporação estética dos paradoxos, Victor Hugo dá o salto que
faltava: a machadada definitiva na supremacia do belo ideal, resultante da
110
Cf. Albert O. Wlecke, Wordsworth and the Sublime, Berkeley / Los Angeles / Londres,
University of California Press, 1973, passim; e Klaus Peter Mortensen, The Time of
Unrememberable Being: Wordsworth and the Sublime (1787-1805), Copenhaga, Museum
Tusculanum Press / University of Copenhagen, 1998, passim.
111
A experiência da morte de Deus, no séc. XIX, não ficou confinada aos meios filosóficos
ateístas ou niilistas, nem tão pouco aos meios científicos positivistas, mas atingiu toda uma
consciência trans-individual, mesmo nos círculos culturais de feição religiosa, o que fez do
homem um herói despojado, e por isso mais sublime. Para um estudo aprofundado sobre a
condição de Deus no período romântico, cf. Georges Gusdorf, Du Néant à Dieu dans le Savoir
Romantique, Paris, Payot, 1983.
112
Victor Hugo, Prefácio a Cromwell, Paris, J. Hetzel, s/d, p. 9.
113
Idem, p. 18. Neste sentido, Victor Hugo escreve: «[...] o contacto do disforme deu ao
sublime moderno qualquer coisa de mais puro, de maior, enfim, de mais sublime, do que o belo
antigo; e assim deve ser» (idem, p. 12). Essa síntese de contrários já se encontrava na
teorização dos românticos alemães, perante os quais Victor Hugo guarda a sua dívida (cf.
Wolfgang Kayser, The Grotesque in Art and Literature, Nova Iorque, McGrawHill, 1966, pp.
56-59). Para uma análise formal das metamorfoses internas ao binómio grotesco-sublime, cf.
Suzanne Guerlac, The Impersonal Sublime ugo au elaire Lautréamont, Stanford,
Stanford University Press, 1990, pp. 33-55.
39
114
Victor Hugo, Prefácio a Cromwell, op. cit., p. 13.
115
Cf. «La Beauté de Méduse», in Mario Praz, La Chair, la Mort et le Diable dans la
Littérature du XIXe Siècle: Le Romantisme Noir, Paris, Gallimard, 1998. Testemunhando essa
vertente obscura da beleza, em Journaux Intimes, Baudelaire escrevia: «mal posso conceber
um tipo de beleza onde não haja Infortúnio [Malheur]» (apud idem, p. 67). Veja-se, a este
propósito, a leitura psicanalítica que Pierre Jean Jouve apresenta sobre a estética do infortúnio
baudelairiana na obra Tombeau de Baudelaire, Paris, Seuil, 1958.
116
Como notou Walter Benjamin: «A beleza particular de tantos começos de poemas de
Baudelaire é: o emergir do abismo» («Charles Baudelaire: Um Poeta na Época do Capitalismo
Avançado», in A Modernidade, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, p. 151).
117
Idem, p. 57. Noutro passo do seu ensaio sobre o poeta francês, o crítico marxista adianta:
«Na declarada oposição de Baudelaire à natureza esconde-se antes de mais um profundo
protesto contra o ‘orgânico’. Em comparação com o anorgânico, a qualidade instrumental do
orgânico está muito limitada. Tem menos disponibilidade» (idem, p. 171).
118
Cf. Erich Auerbach, «As Flores do Mal e o Sublime», in Ensaios de Literatura
Ocidental, São Paulo, Editora 34 / Livraria Duas Cidades, 2007.
40
119
Neste aspeto, aliás, Lautréamont é um clássico à maneira do Marquês de Sade, na
medida em que alia uma estética da delicadeza a uma ética do terror.
120
Cf. Suzanne Guerlac, op. cit., pp. 125-129.
121
O mal serve a intenção de libertar a ação humana de quaisquer restrições, e essa
liberdade é assumida por Lautréamont como bem. Livre, o homem exerce-se no seu máximo
esplendor. Pelo contrário, a tirania de Deus torna-o um ser absolutamente abjeto e maligno.
Neste contexto, Lautréamont insere-se na corrente romântica que Václav Černý designou por
titanismo, ao reconhecer na figura de Deus a representação da crueldade e do despotismo: «O
titanismo reivindica pois Satã e Cristo como auxiliares míticos da humanidade contra o mal
cuja consciencialização é seguida por um anseio de purificação que começa por ser a rejeição
do dogma e da submissão, revolta concertada contra uma situação de facto imposta do exterior
e não ratificada pela razão do homem» (Raymond Trousson, Prometeu na Literatura, Porto,
Rés, s/d, p. 326). O romantismo titânico identifica, assim, o mal metafísico com o par Zeus /
Deus e o bem libertador com a dupla Prometeu / Homem.
41
122
Para a tradição da rutura instaurada pela modernidade romântica, veja-se o capital
ensaio de Octavio Paz, Los Hijos del Limo: Del Romanticismo a la Vanguardia, Barcelona,
Seix Barral, 1974, esp. pp. 15-35.
123
Como se viu, Baumgarten edificou a sua estética sobre o Belo, kalos em grego. Kalística
ou calística foi uma proposta de designação da disciplina teórica surgida na época, que não
vingou, em favor do termo estética.
42
constitui-se, então, como par inter pares numa proliferação de categorias que
assinalam a maturidade do pensamento estético em Setecentos. E, pela
capacidade de elevação da matéria humana abandonada pelo farol divino, o
sublime transforma-se na categoria estética correlativa da categoria
histórico-estilística o romântico.
O SUBLIME E A TEORIA DO GÉNIO
124
Deste modo, Pseudo-Longino comenta: «[...] a natureza, nos momentos de patético ou
de elevação, confere a si mesma uma regra, do mesmo modo não costuma libertar-se ao acaso
nem ser completamente alheia ao método; porque é ela que fornece o elemento primeiro e
arquetípico para a génese de toda a produção [...]»; «A grandeza abandonada a ela mesma, sem
ciência, privada de apoio e de fundamento, corre os piores perigos, abandonando-se
exclusivamente ao arrebatamento e a uma ignorância audaz; pois se é necessário muitas vezes
o aguilhão, também o é o freio»; «[...] a arte é perfeita quando parece ser natureza, e
inversamente a natureza atinge o seu fim quando encerra a arte sem que a vejamos» (op. cit.,
pp. 53, 53-54 e 92).
125
Horácio escreve: «Há quem discuta se o bom poema vem da arte se da natureza: cá por
mim, nenhuma arte vejo sem rica intuição e tão-pouco serve o engenho sem ser trabalhado:
cada uma destas qualidades se completa com as outras e amigavelmente devem todas
cooperar» (op. cit., p. 105). Por seu turno, Dionísio de Halicarnasso sintetiza do seguinte modo
as regras para obter uma obra excelente: «Três são as coisas que nos hão-de proporcionar o
mais alto grau de destreza nos discursos de intervenção pública, bem como em qualquer arte ou
ciência: uma natureza dotada, um estudo aturado e uma exercitação diligente» (Tratado da
Imitação, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica / Centro de Estudos Clássicos
da Universidade de Lisboa, 1986, p. 48).
44
126
Cf. Horácio, op. cit., p. 85; e Longino, op. cit., pp. 76-77. A mesma ideia de emulação
surge também em Dionísio de Halicarnasso: «A imitação é uma actividade que, segundo
determinados princípios teóricos, refunde um modelo» (op. cit., p. 49; cf. idem, pp. 60-61).
127
Longino, op. cit., p. 81.
128
Horácio, op. cit., p. 65.
129
Cf. Longino, op. cit., p. 128.
130
Cf. Horácio, op. cit., p. 97.
131
Cf. Longino, op. cit., p. 60; e Horácio, op. cit., p. 101.
45
132
Cf. Platão, Íon, Lisboa, Inquérito, 2000, pp. 49 e 51.
133
Longino, op. cit., p. 61. Acerca deste assunto, Baldine Saint Girons explica: «O
conceito-chave é o abalo ou choque (ekplèxis) que engendra as figurações imaginativas ou as
aparições (phantasiai). [...] O sentido do termo phantasia mudou, como sustenta Longino: já
não se reporta à faculdade representativa em si, dependente das sensações, mas supõe na sua
origem uma paixão e um entusiasmo criadores. As palavras vêm agora colocar perante os olhos
do espírito o que escapa ao regime das sensações. Assim, longe de se restringir à reprodução de
‘visões’, a imaginação criou novas imagens, elas próprias ‘fabricantes de imagens’ ou
‘idolopeias’ (eidolopoiias)» (Le Sublime: De l'Antiquité à nos Jours, op. cit., p. 43).
134
Como comenta Pierre Hartmann: «De simples elemento de uma poética, o sublime
eleva-se assim, na perspetiva de Longino, ao nível de um critério discriminativo da boa ou da
má literatura. O sublime já não se contenta em definir um estado particular do discurso, ao
invés torna-se numa instância de jurisdição, e como que o tribunal supremo onde são chamados
a comparecer os escritores do passado» (op. cit., p. 16).
135
Para um conhecimento aprofundado sobre este assunto, cf. o estudo de Noel L. Brann,
The Debate over the Origin of Genius during the Italian Renaissance: The Theories of
Supernatural Frenzy and Natural Melancholy in Accord and in Conflict on the Treshold of the
Scientific, Leiden / Boston / Colónia, Brill, 2002.
136
Os princípios da individualidade e da originalidade no ato criador adquirem considerável
sustentação teórica nesta época, embora, como aponta Edgar Zilsel, a edição de Robortelo do
tratado de Longino, «o mais radical dos textos antigos sobre a individualidade do artista», não
tenha surtido então grande influência (Le Génie: Histoire d'une Notion de l'Antiquité à la
Renaissance, Paris, Minuit, 1993, p. 189).
46
137
No artigo n.º 160 de The Spectator, dedicado ao tema do génio, Addison faz a distinção
entre o polimento disciplinado, próprio do espírito clássico francês, e a naturalidade do grande
génio original, representado pelo dramaturgo inglês William Shakespeare. A temperatura — ou
intensidade — da escrita é a marca distintiva destes génios de primeira classe, «que têm mais
Calor e Vida nas suas Imaginações» (The Spectator, op. cit., Vol. I, p. 483). Aqui Addison
associa a capacidade de elevação ou transporte ao verdadeiro génio: «Homero atinge elevados
voos que Virgílio é incapaz de alcançar, e no Velho Testamento encontramos passagens mais
elevadas e sublimes do que qualquer uma das de Homero» (idem). Por sua vez, recorrendo às
imagens da montanha e do vale, o poeta de Night Thoughts associa a elevação ao verdadeiro
génio, e a superficialidade ao epígono (cf. Edward Young, Conjectures on Original
Composition, Leeds, The Scolar Press, 1966, p. 9).
138
Immanuel Kant, Crítica da Faculdade do Juízo, op. cit., p. 211.
139
Giordano Bruno, Des Fureurs Héroïques, Paris, Les Belles Lettres, 1954, p. 134.
140
Idem, pp. 158-159.
47
141
Deste conjunto de ensaios, deve ressaltar-se a particular influência de «A Letter
concerning Enthusiasm» (1708), onde Lord Shaftesbury expõe uma teoria do entusiasmo que
assenta no princípio do sensus communis, o sentimento de comoção que pressupõe a
comunicação estética universal entre os sujeitos.
142
Denis Diderot, «Pensées Détachées sur la Peinture, la Sculpture et la Poésie pour Servir
de Suite aux Salons», in Oeuvres Esthétiques, Paris, Garnier Frères, 1959, p. 772.
143
Idem, p. 764.
48
O gosto está muitas vezes separado do génio. O génio é um puro dom da natureza;
aquilo que ele produz é fruto de um instante; o gosto é fruto do estudo e do tempo;
ele conhece uma série de regras ou estabelecidas ou supostas; produz belezas de
convenção. Para que uma coisa seja bela segundo as regras do gosto, é preciso que
seja elegante, finita, trabalhada na sua aparência; para ser de génio, é preciso que
seja negligenciada, que tenha um aspeto irregular, escarpado, selvagem144.
144
Denis Diderot, «Article Génie», in op. cit., p. 11. Sobre a negligência enquanto
característica inerente à obra de génio, cf. infra, p. 50, nota 154.
145
Denis Diderot, «Article Génie», in op. cit., p. 11; itálicos meus.
146
Denis Diderot, «Sur le Génie», op. cit., p. 20. Esta ideia, não sendo nova, teve grande
fortuna nos textos teóricos do Romantismo, nomeadamente num ensaio fundador como
Defence of Poetry de Percy Bysshe Shelley, escrito em 1821 e publicado postumamente em
1840, onde o autor conclui: «Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo»
(Defesa da Poesia, Lisboa, Guimarães, 2001, p. 87).
147
Denis Diderot, «Article Génie», in op. cit., p. 17.
148
Cf. M. H. Abrams, «The Psychology of Literary Invention: Unconscious Genius and
Organic Growth», in op. cit.. Sobre a relação entre o mito de Saturno e o caráter melancólico,
remeto para a obra incontornável da tríade Raymond Klibansky, Erwin Panofsky e Fritz Saxl:
Saturne et la Mélancolie: Études Historiques et Philosophiques (Nature, Religion, Médecine et
Art), Paris, Gallimard, 1989, especialmente a parte II intitulada «Saturne, Astre de la
Mélancolie». O próprio jovem Kant participa dessa tradição, quando, em 1764, associa
categorias estéticas a humores específicos: o sublime ao temperamento melancólico, o belo ao
49
sanguíneo, e o magnífico ao colérico, deixando de lado o fleumático por considerar este perfil
psicológico alheio à questão estética (cf. Observations sur le Sentiment du Beau et du Sublime,
Paris, J. Vrin, 1997, esp. pp. 30-34).
149
Uso o termo forjado por Jackie Pigeaud com o mesmo propósito com que o autor o
relaciona com a teoria fisiológica do Pseudo-Aristóteles (cf. Jackie Pigeaud, Apresentação de
Aristóteles, L’ omme e Génie et la élancolie Problème XXX 1, Paris, Rivages, 1988, p.
51).
150
William Wordsworth, Prefácio a Lyrical Ballads, op. cit., p. 291. É preciso, por
conseguinte, não esquecer que a teoria romântica do génio natural não é alheia ao caráter
reflexivo necessário e inerente a todo o ato espontâneo da escrita. Coleridge reforça esta ideia,
quando afirma que Shakespeare «não é um mero filho da natureza, não é um autómato do
génio, não é um veículo passivo de inspiração possuído pelo espírito, sem o possuir; primeiro,
estudou pacientemente, meditou profundamente, compreendeu minuciosamente, até o
conhecimento se tornar habitual e intuitivo conciliando-se com os seus habituais sentimentos, e
com o tempo dar à luz aquele estupendo poder pelo qual ele se encontra isolado, sem igual ou
semelhante na sua classe» (Samuel Taylor Coleridge, Biographia Literaria or Biographical
Sketches of My Literary Life and Opinions, Londres / Nova Iorque, J. M. Dent / E. P. Dutton,
1975, p. 180). Este ponto de vista coaduna-se com o pensamento de Pseudo-Longino, segundo
o qual o kairos ou momento decisivo da escrita resulta de um longo período de
amadurecimento reflexivo e crítico. Em pleno século XX, a escrita automática dos surrealistas,
corolário desta conceção romântica da espontaneidade criativa, assenta no mesmo princípio, na
medida em que o ditado do inconsciente se faz a partir do aparecimento à consciência de
experiências vivencidadas, real ou virtualmente, pelo sujeito.
151
Como mostra o estudo de Robert Kopp: «o mal do século de Chateaubriand transforma-
se em spleen em Baudelaire e o spleen torna-se depressão em Hu smans e Sartre» («’ es
imbes Insondés de la Tristesse’: Figures de la Mélancolie omantique de Chateaubriand à
Sartre», in Jean Clair (dir.), Mélancolie: Génie et Folie en Occident, Paris / Berlim, Réunion
des Musées Nationaux / Gallimard / Staatliche Museen zu Berlin, 2005, p. 328; itálicos meus).
50
Não é alheia a esta defesa do erro a fortuna romântica que o mito clássico de
Prometeu alcançou155. O titã encerra o signo da liberdade humana, o ímpeto
genial da criação espontânea, num ato de rebeldia com que os românticos se
identificam. Além da sua interpretação político-social, sobretudo no
Romantismo inglês, a reabilitação do deus pagão compreende o estatuto
metafísico que o homem romântico assume, convencido das infinitas
potencialidades da razão humana. Mas, face à aceleração da história,
impulsionada pelas revoluções erguidas homologamente por toda a Europa e
pelos seus dececionantes desfechos, o homem romântico assistiu em pouco
tempo à sua vitória e à sua derrota, o que lhe conferiu a assimilação da
152
Victor Hugo, Prefácio a Cromwell, op. cit., p. 8.
153
A partir do espírito patético, piedoso e extático do Cristianismo, Victor Hugo infere:
«[...] com o cristianismo, e através dele, introduziu-se no espírito dos povos um sentimento
novo, desconhecido dos antigos e singularmente desenvolvido pelos modernos, um sentimento
que é mais do que a gravidade e menos do que a tristeza, a melancolia. […] homem,
dobrando-se sobre si mesmo em presença destas altas vicissitudes, começou a ter piedade da
humanidade, a meditar sobre os amargos escárnios da vida. Deste sentimento, que para o Catão
pagão havia sido o desespero, o cristianismo fez a melancolia» (idem, p. 7).
154
Idem, pp. 25 e 45. Recorde-se que, enquanto David Hume não deixava de recriminar os
defeitos dos grandes criadores, Kant defendia que o erro era um elemento operante na obra de
génio (cf. David Hume, «Do Padrão do Gosto», art. cit., p. 211; e Immanuel Kant, Crítica da
Faculdade do Juízo, op. cit., p. 224). Essa imperfeição perfeita já era defendida por
Pseudo-Longino no seu tratado (cf. Du Sublime, op. cit., esp. pp. 107-108).
155
Cf. Raymond Trousson, «O Prometeu dos Românticos», in op. cit..
51
156
Podemos, por isso, afirmar que «a ideologia do progresso», durante o período
oitocentista, e sobretudo na primeira metade, «carrega em gérmen o sentimento da decadência,
a perceção dolorosa e ansiosa dos perigos que a minam» (Laura Bossi, «Mélancolie et
Dégénérescence», in Jean Clair (dir.), op. cit., p. 399). Cf. Paul Bénichou, L’Ecole u
Désenchantement: Sainte-Beuve, Nodier, Musset, Nerval, Gautier, Paris, Gallimard, 1992.
157
O ópio, entre outros estupefacientes, começou a ser usado por vultos da geração
romântica como meio de aceder a estados de consciência alterados, aproximando visão poética
e alucinação. Confessions of an English Opium-Eater (1821) do inglês Thomas De Quincey é
pioneira no testemunho deste facto. Escritos na sua esteira, os dois opúsculos que compõem
Les Paradis Artificiels de Charles Baudelaire sustentam, porém, que o artista é um ser superior
que contém em si mesmo os elementos transmutadores que operam sobre o real, a saber, o
entusiasmo e a vontade, dispensando assim substâncias artificiais que não trazem verdadeiros
benefícios à criação artística. Não obstante, o poeta francês acredita no poder produtivo do
vinho, considerando mesmo que através dele se pode atingir o «hiper-sublime», conceito que o
autor deixa contudo por explorar (cf. Charles Baudelaire, «Sobre o Vinho e o Haxixe
Comparados como Meio de Multiplicação da Individualidade», in Os Paraísos Artificiais
seguidos de Do Vinho e do Haxixe, Lisboa, Guimarães, 2001, p. 217 e passim).
158
João Barrento, «Fausto, a Ideologia Fáustica e o Homem Fáustico», in João Barrento
(org.), Fausto na Literatura Europeia, Lisboa, Apáginastantas, 1984, p. 201.
52
159
Victor Hugo apud Baldine Saint Girons, Les onstres u Sublime Victor ugo le
Génie et la ontagne, Paris, Paris-Méditerranée, 2005, p. 7.
160
Cf. Baldine Saint Girons, «Du Paysagiste au Paysageur», in idem.
161
Na expressão visionária de Shaftesbury, o poeta afirma-se como «a second Maker; a just
PROMETHEUS, under JOVE» («Soliloquy: Or, Advice to an Author», in Characteristicks of
Men, Manners, Opinions, Times, ed. fac-similada, Vol. I, Hildesheim e Nova Iorque, Verlag,
1978, p. 207). Expressão de difícil tradução, literalmente «segundo Criador, justo Prometeu
sob Júpiter».
Segunda Parte
Pseudo-Longino, Do Sublime
Amor de Perdição foi, para o seu autor, um livro maldito. Nas suas
Memórias do Cárcere, escritas na mesma época do romance, Camilo Castelo
Branco deixou testemunho das circunstâncias que deram origem à sua obra,
testemunho que, pelo seu interesse, se impõe trasladar na íntegra:
Agora me ia fugindo a alma com a pena para uma necedade, que seria pueril e
perdoável, se esta curva, que faço sobre a mesa, me não estivesse admoestando a
retomar o prumo vertical em frente da desgraça162.
162
Memórias do Cárcere, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 2011, pp. 314-315.
163
A primeira vaga de camilianistas fundamentou a sua pesquisa no biografismo literário,
numa tentativa de confirmar ou desmentir as palavras do próprio autor. Esta geração acreditava
que «o grande escritor deixa transparecer pedaços da sua biografia que o leitor atento pode,
querendo, fàcilmente reconstituir» (Oldemiro César, Camilo Castelo Branco: Sua Vida e sua
Obra, Lisboa, Imprensa Nacional, 1914, p. 16). Essa tendência de arqueologia psicológica
manteve-se a ponto de Alberto Pimentel ter escrito uma biografia a partir de excertos da ficção
camiliana. No artigo que dedicou ao assunto, «Iluminar o Conceito de Biografismo em
Camilo», Alexandre Cabral reviu essa perspetiva à luz de uma nova forma de encarar o topos
biográfico na ficção camiliana: «Se é certo que Camilo disseminou por toda a sua bibliografia
particularidades das suas experiências vivenciais com recurso da efabulação […] não podemos
esquecer que Camilo desfigurou as personagens ou os eventos para os integrar na harmonia do
seu cosmos novelístico. […] a máxima preocupação do escritor era a verosimilhança interna da
história que estava a contar, sem querer saber se ela reflectia minimamente a verdade histórica»
(Tellus, 19, Vila Real, Julho de 1990, p. 7). Aníbal Pinto de Castro, defendeu, recorrentemente,
em vários ensaios seus, a necessidade de uma análise dos processos de transfiguração poética
por que passaram imensos episódios da vida de Camilo, análise concretizada em parte por um
discípulo seu, João Paulo Braga, na sua dissertação de doutoramento Retórica da Ficção: A
Construção da Narrativa Camiliana (Dissertação de Doutoramento apresentada à
Universidade Católica Portuguesa, Braga, 2011). Note-se que, na segunda edição da sua tese,
Jacinto do Prado Coelho acrescentou um capítulo final intitulado «Do Verídico à Ficção»,
mostrando uma postura mais moderada face aos compreensíveis estruturalismo e
antibiografismo dominantes da primeira edição da obra. É o próprio, aliás, que o admite, num
subcapítulo inicial intitulado «A Equação Biografia-Obra»: «Expoente privilegiado da ironia
romântica, o novelista do Amor de Perdição problematiza o seu eu de narrador, leva-nos a
perguntar que subtis relações existem no discurso narrativo entre a vida e a ficção, ou se vida e
ficção não são até a mesma coisa, numa espécie de baile de máscaras» (op. cit., p. 23). É nesta
senda que tendencialmente se situam os camilianistas da atualidade.
56
164
A veracidade histórica subjacente à intriga de Amor de Perdição foi deslindada, entre
outros, por Luís A. de Oliveira Ramos, no artigo «Uma Figura de Camilo no Amor de
Perdição», Porto, Centro de Estudos Humanísticos, 1964; por Alberto Pimentel, na obra Notas
sôbre o Amor de Perdição, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1915; por Jacinto do Prado Coelho, op.
cit., pp. 438-446; por Aníbal Pinto de Castro, no seu «Estudo Histórico-Literário», introdução a
Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição: Memórias duma Família, Rio de Janeiro / Porto,
Real Gabinete Português de Leitura / Lello & Irmão, 1983, esp. XXXVIII-LIV; e por João
Paulo Braga, na sua tese intitulada Retórica da Ficção: A Construção da Narrativa Camiliana,
Dissertação de Doutoramento apresentada à Universidade Católica Portuguesa, Braga, 2011,
esp. pp. 213-215.
165
Abel Barros Baptista, Apresentação de Amor de Perdição: Uma Revisão, Coimbra,
Angelus Novus, 2009, p. 11. Esta tese atravessa os ensaios deste autor, a partir da obra Camilo
e a Revolução Camiliana, tese que é, na sua essência, partilhada pelos camilianistas da mesma
geração.
166
Cf. Signes de Vie: Le Pacte Autobiographique, Paris, Seuil, 2005. Nesta obra, Lejeune
revê os princípios teorizados em Le Pacte Autobiographique (Paris, Seuil, 1975). Cf. Louis
Marin, «Corps et Signes dans l’Autobiographie: La Vie de Henry Brulard de Stendhal (chap.
II, III et XXXIX)», in L’Ecriture e Soi, Paris, Presses Universitaires de France, 1999, pp.
63-81.
167
Luís Adriano Carlos, «Um Génio que não Era um Santo», prefácio a Óscar Lopes,
Ensaios Camilianos, Porto, Fundação Eng.º António de Almeida, 2007, p. 13.
168
Sobre a pregnância melancólica das figuras pendidas, cf. Jean Starobinsky, «Les Figures
Penchées: ‘ e C gne’», in La Mélancolie au Miroir: Trois Lectures de Baudelaire, Paris,
Julliard, 2010.
57
escreve «de veia aberta»169, dando de comer à sua arte por meio das suas
próprias vísceras170. O texto ganha, assim, essa dimensão vibrátil, que não terá
sido alheia às próprias condições de produção do romance171. A rapidez com
que foi escrito172 é bem prova dessa «plena combustão de fosforo cerebral»173
que sentia quando o escreveu.
Com efeito, não se pode desligar a circunstância de clausura que o narrador
invoca ao interesse suscitado pela história. Na Introdução ao romance, o
autor-narrador assume que «aquelas linhas» encontradas por ele nos registos da
cadeia foram «de propósito procuradas». Esta intenção justifica-se pelo ódio,
que, logo a seguir, o narrador confessa, sentimento que transporta o próprio
sujeito da enunciação para o centro da instância diegética. Na verdade, nenhum
leitor ignora, ou deve ignorar, que quem escrevia era Camilo Castelo Branco, o
escritor, encarcerado nas Cadeias da Relação do Porto por crime de adultério,
esperando o julgamento à mercê dos códigos morais da época. A interseção do
ethos e do pathos na figura do narrador-autor é visada pelo logos, a história por
ele narrada:
169
Teixeira de Pascoaes, O Penitente: Camilo Castelo Branco, Lisboa, Assírio & Alvim,
2002, p. 163.
170
Trata-se de outro caso de mise-en-abîme na obra, pois também Simão assume o papel de
escritor quando encarcerado na Cadeia da Relação.
171
Partilha-se aqui da opinião de Alberto Pimentel Filho: «O certo é que êsse livro foi
escrito sob uma funda impressão moral, que a reclusão deveria aumentar» (Nosografia de
Camilo Castelo Branco, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1925, p. 53).
172
A investigação levada a cabo por Ivo Castro vem confirmar que, no método de escrita
deste romance, predominou a espontaneidade e a ausência de planificação prévia (cf.
Introdução a Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, ed. genética e crítica por Ivo Castro,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007, passim).
173
Camilo Íntimo: Cartas Inéditas de Camilo Castelo ao Visconde de Ouguela, Lisboa,
Clube do Autor, 2012, p. 134. O recurso às metáforas químicas é, de resto, frequente em
Camilo para designar a sua atividade literária. Dissertando sobre o génio, o psiquiatra Sousa
Martins, contemporâneo de Camilo, discorria na sua nosografia de Antero: «Não só no sentido
etymologico e no physico, o phosporo é o portador de luz. Também no sentido psychico» (José
Tomás de Sousa Martins, «Nosographia de Anthero», in AA. VV., Anthero de Quental: In
Memoriam, Porto, Mathieu Lugan Editor, 1896). Espera-se ter oportunidade de, em estudo de
maior fôlego, estudar a questão do génio em Camilo.
58
os infelizes, não choraria se lhe dissessem que o pobre moço perdera honra,
reabilitação, pátria, liberdade, irmãs, mãe, vida, tudo, por amor da primeira mulher
que o despertou do seu dormir de inocentes desejos?!
Chorava, chorava! Assim eu lhe soubesse dizer o doloroso sobressalto que me
causaram aquelas linhas, de propósito procuradas, e lidas com amargura e respeito
e, ao mesmo tempo, ódio. Ódio, sim… A tempo verão se é perdoável o ódio, ou se
antes me não fora melhor abrir mão desde já de uma história que me pode acarear
enojos dos frios julgadores do coração, e das sentenças que eu aqui lavrar contra a
falsa virtude de homens, feitos bárbaros, em nome de sua honra174.
174
AP, p. 143; itálicos meus.
175
Cf. Aníbal Pinto de Castro, Narrador, Tempo e Leitor na Novela Camiliana, Vila Nova
de Famalicão, Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão / Centro de Estudos Camilianos,
1995, p. 25. Sobre o narrador de Amor de Perdição, vejam-se as seguintes análises: Maria
Isabel Rocheta, O Sentimento (do) Trágico na Novela Camiliana, Dissertação de
Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1987, pp.
137-174; Aníbal Pinto de Castro, Narrador, Tempo e Leitor na Novela Camiliana, op. cit., esp.
23, 25, 32-36, 48-49; Rosa Maria Sequeira, «Amor de Perdição: Contribuições para o Estudo
do Narrador», Lusorama, 6, Novembro de 1987; e João Paulo Braga, Retórica da Ficção: A
Construção da Narrativa Camiliana, op. cit., passim.
176
Para cada um desses tipos de focalização, vejam-se os respetivos exemplos: de
focalização zero — «Simão Botelho reflectiu alguns minutos, e convenceu-se de que o
dinheiro recebido era de João da Cruz. Quando saiu com espírito desta meditação, tinha os
olhos marejados de lágrimas»; de focalização externa — «Um dos seus criados tinha ido levar
a beber os machos, e, por descuido ou propósito, deixou quebrar algumas vasilhas que estavam
à vez no parapeito do chafariz»; e de focalização interna — «Pararam as liteiras vazias na
portaria, e logo depois chegaram três senhoras vestidas de jornada, que deviam ser as irmãs de
Baltasar acompanhadas de dois mochilas com as mulas à rédea» (AP, respetivamente pp. 335,
163 e 313; itálicos meus). Segue-se aqui a terminologia da teoria narratológica de Gérard
Genette exposta nas obras Discurso da Narrativa (Lisboa, Vega, 1995) e Nouveau Discours du
Récit (Paris, Seuil, 1983).
59
177
Cf. Fernanda Irene Fonseca, Deixis, Tempo e Narração, Porto, Fundação Eng.º António
de Almeida, 1992, pp. 187-194.
178
Esta infiltração do narrador no plano diegético tem sido recorrentemente notada. Porém,
no que concerne ao caso específico de Amor de Perdição, faltava firmar o reconhecimento do
estatuto diegético inerente ao próprio eixo em que se situa o narrador. Talvez seja Helena
Buescu a oferecer uma perspetiva mais próxima daquela que aqui se pretende defender: «A
consciência de uma prática autoral é muito claramente pertinente no interior deste universo,
não o sendo com certeza do mesmo modo noutros: aqui, o autor-Camilo não se considera
distanciável da produção romanesca que concebe, o que é sem dúvida um dos vectores por que
a estética romântica se autoapresenta. É neste quadro que devem também ser entendidas todas
as constantes irrupções do autor (que não é apenas narrador) na história que conta. Essas
intrusões têm, justamente, como efeito produzir a imagem de um «intruso» que, embora
sabendo-se fora do universo romanesco de primeiro plano (o das personagens), considera
viável e pertinente o estabelecimento de relações quase imediatas desse plano consigo próprio.
A dimensão axiológica do seu universo ficcional é, desta perspectiva, componente básica:
porque se parte da concepção de um universo / objecto que não faz qualquer sentido sem o
sujeito que o orienta, comenta e, afinal, lhe dá origem. Por outro lado, este «desenho» críptico
(pelo menos, estilhaçado) da figura do «autor» / sujeito leva a que seja também uma certa
forma de história pessoal a que se conta: essa dimensão axiológica indiscutivelmente vai
fazendo uma outra narrativa, que diz respeito aos valores morais, sentimentais, éticos e
biográficos do sujeito que a si próprio se representa» («Enlaces e Desenlaces da Biografia: O
Caso de Camilo», in A Lua, a Literatura e o Mundo, Lisboa, Cosmos, 1995, pp. 141-142).
60
apenas serve como estratégia de veridicção, mas — o que ainda não foi notado
— como princípio de narratividade, ao criar um espaço-tempo onde se insere
uma personagem. A resistência em atribuir ao narrador-autor um tal estatuto
deriva fundamentalmente da ausência de acontecimentos nos quais o narrador
participa179. A verdade é que se trata de dois níveis diferentes: se Simão
Botelho é o protagonista da segunda intriga, Camilo Castelo Branco é-o da
primeira. Vai-se, por isso, mais longe do que Maria de Lourdes Ferraz, ao
declarar-se que o narrador não apenas avulta na obra como entidade discursiva,
mas participa nela como personagem, e personagem de primeira ordem180.
É preciso admitir, contudo, que, na verdade, praticamente nada se passa
nesta instância, em que o discurso comentativo domina claramente sobre o
discurso narrativo.181 Ao discorrer do tempo próprio da narratividade,
sobrepõe-se uma discursividade sem tempo, agarrada a um estático origo —
eu-aqui-agora. Por meio de um efeito mimético, a instância diegética do
narrador-protagonista apresenta uma durée que reflete um espaço fechado onde
impera o não-acontecimento. Nada acontece, à exceção de uma ação contínua
que o leitor vai pressentindo, ao longo da leitura da obra, muito por causa das
estratégicas autorreferências feitas pelo narrador ao longo do corpo do texto e,
sobretudo, fora dele182. Essa ação contínua é a escrita, que o leitor acompanha
numa sensação simultânea de distância e intimidade.
179
Cf. Rosa Maria Sequeira, art. cit., p. 22: «Creio que não se poderá considerar o narrador
como uma personagem que participa da acção — actante na terminologia de Greimas. As suas
intromissões, que são frequentes e nítidas, não alteram o curso dos acontecimentos, não se
situando, portanto ao nível das personagens».
180
A este propósito, ver a opinião de Maria de Lourdes Ferraz no ensaio «Camilo
Personagem de Camilo?», Tellus: Revista de Cultura, 18, Vila Real, Julho de 1988, esp. pp.
32-33.
181
Salvo, na verdade, um episódio acontecido no escritório do advogado Joaquim
Marcelino de Matos, a que o narrador-autor diz ter assistido, visto que gozava de autorização
especial para se ausentar, por breves períodos, do cárcere. Este episódio é, como outros na
obra, um motivo de mise-en-abîme.
182
Num levantamento da presença de deixis pessoal concernente à figura do narrador,
contam-se mais de sessenta deíticos. Isto atendendo apenas à deixis pessoal de primeira pessoa,
sendo certo que a deixis espácio-temporal e a deixis pessoal de segunda e terceiras pessoas
também contribuem para essa ancoragem. No que diz respeito à deixis espacial, o
narrador-autor refere-se aos protagonistas — respetivamente, Simão e Teresa — como «aquele
homem» e «aquela ave do céu» (AP, pp. 349 e 353; itálicos meus), colocando-os em pose na
distância estabelecida entre o eu-narrador / personagem aqui-agora-presente e eles-personagens
lá-outrora-ausentes, os quais são recuperados, isto é, feitos presentes por meio da memória e da
imaginação do autor. Noutros exemplos, a indexação do narrador é feita pela combinação de
61
deítico temporal com deítico pessoal: «Um incidente agora me ocorre […]» e «Hoje (21 de
Setembro de 1861) estava eu […]»; ou de deítico espacial com deítico pessoal: «Factos e não
teses é o que eu trago para aqui» (AP, respetivamente pp. 395; 405 e 431; itálicos meus). Em
outros momentos, encontramos deixis pessoal de segunda pessoa de significativa presença, em
que o narrador-autor aproxima o acontecimento narrado à sua circunstância, criando uma
intimidade síncrona entre a primeira e a segunda estâncias narrativas. Vejam-se os seguintes
exemplos que se reportam, respetivamente, a Teresa e a João da Cruz: «Mais lágrimas que
sangue deixaste, ó filha da amargura! Flores são as tuas lágrimas, e do céu me diz se os
perfumes delas não valem mais aos pés do teu Deus […]» e «Deus terá descontado nos
instintos sanguinários do teu temperamento a nobreza de tua alma! / Pensando nas incoerências
da tua índole, homem que me explicas a providência, assombram-me as caprichosas antíteses
que a mão de Deus infunde em alentos na criatura. Dorme o teu sono infinito, se nenhum outro
tribunal te cita a responder pelas vidas que tiraste, e pelo uso que fizeste da tua. Mas, se há
estância de castigo e de misericórdia, as lágrimas de tua filha terão sido, na presença do Juiz
Supremo, os teus merecimentos» (AP, respetivamente pp. 353; 413 e 415; itálicos meus).
Também, por vezes, a ancoragem do narrador se estabelece através do apelo à presença do
leitor: «Teresa Clementina bem a viram transportada da escadaria do templo, onde caíra, à
liteira que a conduziu ao Porto»; «Di-lo-íeis arroubado […]»; «Eram, como sabem, a
correspondência de Teresa e Simão» (AP, pp. 353; 439 e 471; itálicos meus). Por fim, a
presença do narrador está patente em comentários como este que se assinala: «— Se o meu
irmão morrer, que hei-de eu fazer àquelas cartas que vão na caixa? / Pasmosa serenidade a
desta pergunta!» (p. 467; itálico meu).
62
183
Annabela Rita, «Um Pacto de Leitura», Colóquio / Letras, 119, Lisboa, Janeiro-Março
de 1991, p. 57. Cf. Philippe Lejeune, Le Pacte Autobiographique, Paris, Seuil, 1975; Annabela
Rita, «O Amor é de Perdição», Boletim da Casa de Camilo, III Série, 8, Vila Nova de
Famalicão, Dezembro de 1986, p. 713; e Mariusa Vieira Gomes, «Memória / Novela, História /
Estória: O Pacto Autobiográfico em Amor de Perdição», in AA. VV., Cleonice, Clara em sua
Geração, Rio de Janeiro, UFRJ, 1995, pp. 536-545. Abel Barros Baptista estende este princípio
a toda obra de Camilo, defendendo que ler a obra camiliana implica sempre ler na «presença
fantasmática» do seu autor (Camilo e a Revolução Camiliana, op. cit., p. 22).
184
Cf. Lucien Dällenbach, Le Récit Spéculaire: Essai sur la Mise en Abyme, Paris, Seuil,
1977; e John J. White, «The Semiotics of the Mise-en-Abyme», in lga Fischer e Max N nn
(ed.), The Motivated Sign: Iconicity in Language and Literature — 2, Amesterdão / Filadélfia,
John Benjamins, 2000.
185
R. A. Lawton, «Technique et Signification de Amor de Perdição», art. cit., p. 77.
ESPAÇO E TEMPO DO SUBLIME
Pascal, Pensées
186
Acerca da solidão de Teresa, cf. AP, pp. 181 e 203.
187
AP, p. 169.
64
Simão relê as cartas de Teresa, abre os envoltórios de papel que encerram as flores
ressequidas, contempla o avental de linho, procurando esvaídos vestígios das
lágrimas. Depois, encosta a face e o peito aos ferros da sua janela, e avista os
horizontes boleados pelas serras de Valongo e Gralheira, e cortados pelas ribas
pitorescas de Gaia, do Candal, de Oliveira, e do mosteiro da serra do Pilar. É um dia
lindo. Reflectem-se do azul do céu os mil matizes da primavera. Tem aromas o ar, e
a viração fugitiva dos jardins derrama no éter as urnas que roubou aos canteiros.
Aquela indefinida alegria, que parece reluzir nas legiões de espíritos que se geram
ao sol de Março, rejubila a natureza, que toda pompa de luz e flores se está
namorando do calor que a vai fecundando. Dia de amor e de esperanças era aquele
que o Senhor mandava à choça encravada na garganta da serra, ao palácio
esplendoroso que reverberava ao sol os seus espiráculos, ao opulento que passeava
as suas moles equipagens, bafejado pelo respiro acre das sarças, e ao mendigo que
desentorpecia os membros encostado às colunas dos templos.
188
Além do pitoresco, este cenário bucólico valoriza a natureza intocada pelo homem, que
Addison associa ao sublime, por comparação com o belo, que predomina nos bem tratados
jardins ingleses (cf. op. cit., Vol. III, pp. 286-287). Na sua fenomonologia do espaço poético,
Gaston Bachelard reflete acerca da imensidão como um fenómeno da consciência (cf.
« ’Immensité Intime», in La Poétique de l'Espace, Paris, Presses Universitaires de France,
1984). Cf. também Vincent Pomarède, «’ a Volupté de la Mélancolie’ (Sénancour): Le
Pa sage comme Etat d’Âme», in Jean Clair (dir.), op. cit.; e Frances Ferguson, «In Search of
the Natural Sublime: The Face on the Forest Floor», in Solitude and the Sublime: Romanticism
and the Aesthetics of Individuation, Nova Iorque, Routledge, 1992.
189
Cf. AP, pp. 173, 175, 199, 337, 351, 381 e 383. Sobre a figura do melancólico estudioso,
recolhido no seu escritório ou «banca de estudo» (idem, p. 199), cf. Jean Clair, «La Mélancolie
du Savoir», in Jean Clair (dir.), op. cit..
190
Observa, a propósito, Clara Rowland: «Até então, a acção aliava-se sempre a uma ideia
de movimento, de que o maior exemplo é a alternativa constituída pela hesitação no capítulo
IV: Castro Daire ou Viseu. Depondo as armas, Simão entra na segunda parte da novela
confinado a um espaço fechado, onde a única possibilidade de acção irá lentamente
configurar-se enquanto liberdade de escolha» («O Escolho do Romance», in Abel Barros
Baptista (org.), Amor de Perdição: Uma Revisão, Coimbra, Angelus Novus, 2009, p. 63).
65
A doçura que destila daquela vasta harmonia natural castiga mais ainda o
padecimento do seu observador, encerrado num sítio exíguo, lúgubre e estéril.
O ramo de «flores ressequidas» aparece aí como uma natureza morta,
desdizendo a florescência viva e abundante do espetáculo apolíneo exterior192.
Esse contraste vem agudizar o sofrimento do encarcerado, que afasta
intencionalmente o olhar daquele panorama idílico, de modo a evitar tamanho
castigo, pois o vislumbre da «indefinida alegria» daquela natureza animizada
contrasta violentamente com a dor da solidão e do desânimo de Simão193. Essa
dolência é especialmente conferida pelo uso do gerúndio e do imperfeito
durativo, que se opõe à profusa vivacidade do cenário natural suscitada pelos
vastos períodos e pelas enumerações. Além disso, ao ser comparado com os
miseráveis, Simão, ali sozinho, é reconhecido como o mais miserável de todos
os miseráveis, perante os quais a sua dor é sem comparação. Assim, enquanto a
natureza se apresenta na sua fecunda gestação que dá conta do fluir cíclico do
tempo, o preso assiste a uma duração cuja linha de tempo contínua parece
sofrer uma retração.
A opressão do espaço e do tempo não se faz, contudo, apenas sentir na
cadeia com Simão. Também Teresa está confinada aos espaços fechados — o
quarto, na casa do seu pai, e as celas, nos conventos de Viseu e de
191
AP, pp. 381 e 383. A privação de liberdade é uma fonte do sublime, como demonstra
Edmund Burke: «Todas as privações em geral são elevadas, porque são todas terríveis:
Vacuidade, Escuridão, Solidão e Silêncio» (op. cit., p. 65).
192
Estas flores murchas, os papéis das cartas, o avental de linho com as lágrimas que
Mariana chorara aquando da sentença de Simão à forca, e, por último, a trança dos cabelos de
Teresa compõem o relicário de Simão, e são vestígios ou índices da experiência da perdição ou
pulsão do ser-para-a-morte. Walter Benjamin distingue da seguinte maneira a relíquia da
lembrança: «O souvenir é a relíquia secularizada. O souvenir é o complemento da ‘vivência’.
Nele reflecte-se a crescente auto-alienação do indivíduo que faz o inventário do seu passado
como haveres mortos. No século XIX a alegoria abandonou o mundo exterior para se instalar
no mundo interior. A relíquia vem do cadáver, o souvenir vem da experiência morta que,
eufemisticamente, se designa vivência» («Parque Central», in op. cit., p. 177).
193
Como escreve Edmund Bur e: «[…] duas ideias tão opostas quanto possível
reconciliam-se nos seus extremos e, apesar da sua natureza contrária, concorrem a produzir o
sublime» (op. cit., p. 74).
66
194
Como mostra Esther de Lemos, a ação desenvolve-se em «Espaços fechados, reduzidos
e que progressivamente parecem ir estreitando em torno das personagens à medida que a
tragédia adensa» («Da Casa à Cela», in AA. VV., Camilo: Interpretações Modernas
(Antologia), Porto, Comissão Nacional das Comemorações Camilianas, 1992, p. 23). Segundo
a autora, a casa, nas suas mais variadas formas, representa a instituição sócio-familiar que se
opõe à união dos amantes. Esta opinião é reiterada por outros autores, nomeadamente
Leodegário A. de Azevedo Filho, em «Breve Nota sobre a Liberdade Oprimida no Amor de
Perdição», in Literatura Portuguesa: História e Emergência do Novo, Rio de Janeiro / Niterói,
Tempo Brasileiro / Universidade Federal Fluminense, 1987, esp. 90-91; e Raquel de Sousa
Ribeiro, em «O Espaço na Novela Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco», in AA. VV.,
Congresso Internacional de Estudos Camilianos (24-29 de Junho de 1991): Actas, Coimbra,
Comissão Nacional das Comemorações Camilianas, 1994, esp. 630-631.
195
Note-se que, além das cartas, também há personagens que funcionam como mediadoras
ativas na comunicação entre os amantes, nomeadamente Mariana e João da Cruz.
196
Veja-se a explicação de Edmund Burke acerca da intermitência como origem do
sublime: cf. op. cit., pp. 76-77.
197
Segundo Roland Barthes, «Como desejo, a carta de amor aguarda resposta; impõe
implicitamente ao outro uma resposta, sem a qual a sua imagem se altera, transformando-se
noutra» (Fragmentos de um Discurso Amoroso, Lisboa, Edições 70, s/d, p. 60). Neste sentido,
Simão escreve a Teresa: «É indispensável que te refaças de ânimo para te não assustarem os
arrojos da minha paixão. És minha! Não sei de que me serve a vida, se a não sacrificar a
salvar-te. Creio em ti, Teresa, creio. Ser me ás fiel na vida e na morte. Não sofras com
paciência; luta com heroísmo. A submissão é uma ignomínia, quando o poder paternal é uma
afronta. Escreve me a toda a hora que possas. Eu estou quasi bom. Dize me uma palavra,
chama me e eu sentirei que a perda do sangue não diminui as forças do coração». A insistência
no uso dos imperativos mostra bem a avidez do emissor, arrebatado na incapacidade que sente
em superar a barreira da distância física.
198
Leiam-se, entre outros, estes exemplos: «Simão Botelho releu a carta duas vezes, e à
terceira leitura achou menos afrontosas as bravatas do fidalgo cioso. As linhas finais
desmentiam formalmente a suspeita do aviltamento, com que o seu orgulho o atormentava:
eram expressões ternas, súplicas ao seu amor como recompensa dos passados e futuros
desgostos, visões encantadoras do futuro, novos juramentos de constância, e sentidas frases de
67
fática, na medida em que garante um contacto físico que não se efetiva entre os
interlocutores199.
Essa indigência em que permanecem na sua condição de amantes
conforma-se com a consciência da precariedade do tempo e do espaço: os
espaços, e com eles o tempo, são sempre transitórios, instáveis200. Simão e
Teresa veem-se assim obrigados, pelas circunstâncias, a projetarem-se numa
sucessividade de eventos futuros aos quais tentam dar concretização 201. Mas o
tempo escapa sempre. E, a partir da Segunda Parte, à medida que a
proximidade da pena capital de Simão — depois comutada pelo degredo — e
da morte de Teresa se pressente, os protagonistas vão sentindo a falência dessa
busca inglória em dominar a voracidade do tempo cronológico. A sua
experiência do tempo passa a confinar-se à imobilidade do tempo interior. Com
efeito, após o crime de sangue que decide o rumo da narrativa, a perceção do
tempo sofre uma desaceleração que culmina no momento de suspensão que
antecede a morte de Simão.
saudade»; «A desgraça não abala a minha firmeza, nem deve intimidar os teus projectos. […]
A falta das minhas notícias deves atribuí-la sempre ao impossível» (AP, pp. 199 e 263).
199
Cf. Maria Alzira Seixo, «O Diálogo no Romance», in O Rio com Regresso: Ensaios
Camilianos, Lisboa, Presença, 2004, esp. 154-158; e Teresa Mergulhão, «As Cartas de Amor:
Pragmática e Funcionalidade», in Retórica das Lágrimas em Julie ou La Nouvelle Héloïse, de
J. J. Rousseau, Die Leiden des Jungen Werther, de J. W. Goethe e Amor de Perdição, de
Camilo Castelo Branco, Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada apresentada à
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2001, esp. pp. 32, 35 e 43-47.
200
Maria Alzira Seixo refere que «o espaço dos amantes é sempre um espaço de transição
(a cadeia, o barco, o convento, os limiares — à porta de casa de Teresa, à porta do convento;
porque é apenas à porta dos locais que os amorosos se encontram, como foi à janela que se
enamoraram, e finalmente de forma literal se perderam), que, sem uma palavra que lhe possa
criar a sua resistência (pronunciada em acto ilocutório enunciativo), se converte em espaço de
punição» (art. cit., p. 159).
201
A sucessividade e a uniformidade — entenda-se aqui a uniformidade do propósito
perseguido pelos amantes, o da sua união — participam do infinito artificial que é
experienciado pelas personagens perante a passagem do tempo. Explicita Burke: «A sucessão e
a uniformidade das partes são o que constituem o infinito artificial. 1. Sucessão é o requisito
que permite que as partes sigam um fluxo contínuo e em determinada direção de forma a, pelos
seus impulsos frequentes, impressionar a imaginação com uma ideia da sua progressão para
além dos seus limites reais. 2. Uniformidade, porque se as figuras das partes têm de mudar a
cada mudança a imaginação encontra um limite, a cada alteração apresenta-se o fim de uma
ideia e o início de outra; o que significa que se torna impossível continuar essa progressão
ininterrumpta que sozinha consegue dar aos objetos delimitados o caráter de infinitude» (op.
cit., p. 68).
68
202
Sobre o conceito ricoeuriano ucronia-utopia em Amor de Perdição, veja-se Maria José
de Almeida, Alguns Aspectos da Temporalidade no Amor de Perdição, Dissertação de
Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 1989, esp. pp.
72-74.
203
AP, p. 461.
204
Edmund Burke diferencia, na reprodução de um objeto, a clareza da pintura e a
obscuridade da literatura, mostrando que esta se adequa por inerência ao efeito sublime (cf. op.
cit., pp. 55-57). Para a distinção entre o belo como categoria da relação entre os sexos e da
sociedade em geral e o sublime enquanto categoria da autopreservação, cf. idem., pp. 37-40. A
propósito, veja-se o artigo de Lênia Mongelli, segundo a qual o projeto de união do casal
assenta numa «concepção burguesa do mundo»: «Acerca do Amor de Perdição», Boletim
Informativo do Centro de Estudos Portugueses da Universidade de São Paulo, 2ª Série, Ano II,
5, São Paulo, 1977.
69
205
Edmund Burke, op. cit., p. 40.
206
Cf. AP, p. 461: «Noutra carta, me falavas em triunfos e glórias e imortalidade do teu
nome».
207
Maria José de Almeida, op. cit., p. 82.
208
Na senda das reflexões agustinianas sobre o tempo, Husserl assinala a mútua implicação
das três dimensões temporais (cf. Paul Ricoeur, Temps et Récit — III: Le Temps Raconté, Paris,
Seuil, 1985, p. 116).
209
Ferdinand Alquié, Le Désir ’Eternité, Paris, Presses Universitaires de France, 1993, p.
63.
70
213
Cf. AP, pp. 445, 447 e 449. Na 5.ª edição, o narrador valoriza o mirante com a seguinte
observação em nota de rodapé, que visa distinguir, por comparação, a relação elevada dos
protagonistas: «Quando escrevi este livro, ainda existia o mirante. Agora, lá, ou aí por perto,
está um salão de baile em que dançam nos dias santificados marujos e as damas
correspondentes» (AP, p. 445).
72
214
AP, p. 449; itálicos meus.
215
A primeira carta de Teresa integra, desde logo, a distância espácio-temporal vivida pelos
amantes provocada por uma oposição da instituição familiar e a consequente autoprojeção num
futuro diferido pautado pelas coordenadas do infinito e da eternidade: «Meu pai diz que me vai
encerrar num convento, por tua causa. Sofrerei tudo por amor de ti. Não me esqueças tu, e
achar-me-ás no convento, ou no céu, sempre tua do coração, e sempre leal. Parte para
Coimbra. Lá irão dar as minhas cartas; e na primeira te direi em que nome hás-de responder à
tua pobre Teresa (AP, p. 173; itálicos meus).
216
Uma análise exaustiva desta última carta de Teresa é feita por Maria José de Almeida
(cf. op. cit., pp. 87-126).
217
AP, p. 461; itálico meu.
218
AP, pp. 447 e 449. Não inadvertidamente, Manoel de Oliveira filma esta cena da morte
de Teresa em contra-picado, assistida em contracampo pelos outros dois protagonistas, situados
73
Às três horas da manhã, Simão Botelho segurou entre as mãos a testa, que se lhe
abria abrasada pela febre. Não pôde ter-se sentado, e deixou cair meio corpo. A
cabeça, ao declinar, pousou no seio de Mariana.
— O Anjo da compaixão sempre comigo! — murmurou ele — Teresa foi muito
mais desgraçada...
— Quer descer ao camarote? — disse ela.
— Não poderei... Ampare-me, minha irmã.
Deu alguns passos para a escadinha, e olhou ainda sobre o mirante. Desceu a
íngreme escada, apegando-se às cordas. Lançou-se sobre o colchão, e pediu água,
que bebeu insaciavelmente. Seguiu-se a febre, o estorcimento, e as ânsias, com
intervalos de delírio.
De manhã, veio a bordo um facultativo, por convite do capitão. Examinando o
condenado, disse que era febre maligna a doença, e bem podia ser que ele achasse a
sepultura no caminho da Índia.
Mariana ouviu o prognóstico, e não chorou.
Às onze horas saiu barra fora a nau. Às ânsias da doença acresceram as do enjoo. A
pedido do comandante, Simão bebia remédios, que bolçava logo, revoltos pelas
contracções do vómito220.
num plano mais abaixo. O grotesco da imagem cadavérica de Teresa a esvair-se também
aparece no filme.
219
Cf. AP, p. 445. O excerto aciona dispositivos poético-retóricos que garantem a
transmissão dessa sensação de serenidade.
220
AP, p. 465; itálicos meus.
221
AP, p. 469.
222
Maria José de Almeida, op. cit., p. 85.
74
Por fim morto, o corpo de Simão é envolto num lençol. No convés, dois
marujos erguem a mortalha, dão-lhe balanço de modo a lançarem-na para
longe, «E, antes que o baque do cadáver se fizesse ouvir na água, todos viram,
e ninguém já pôde segurar Mariana, que se atirara ao mar»223, cumprindo a
declaração feita a Simão quando este lhe perguntara que faria se ele
sucumbisse à febre. Mas,
223
AP, p. 471.
224
Idem.
225
Com um objetivo diferente, na análise poético-retórica que faz das designações dos três
protagonistas, Maria Helena Garcez conclui que Mariana é a única personagem que desenha
uma trajetória ascensional, enquanto Simão e Teresa sofrem uma trajetória descensional (cf.
«Acerca das Designações dos Agentes em Amor de Perdição», Colóquio / Letras, 125/126,
Julho-Dezembro de 1992).
226
«As ideias de eternidade e infinitude estão de entre as que mais nos afectam, e no
entanto talvez não haja nada que menos entendamos do que a infinitude e a eternidade»
(Edmund Burke, op. cit., p. 57). Relembre-se, a propósito, que as últimas palavras proferidas
por Teresa, antes de morrer, foram: «Simão, adeus até à eternidade!» (AP, p. 451). Cf. Maria
José de Almeida, op. cit., pp. 123-126.
O OBSCURO
227
AP, pp. 311 e 313; itálicos meus. Note-se a paronomásia com efeito contrastante entre a
lâmpada acendida por Mariana no seu santuário pessoal e o lampadário do convento.
76
228
AP, p. 441; itálico meu. Vejam-se também as seguintes passagens, expressivas desse
movimento pendular: «Tu verás esta carta quando eu já estiver num outro mundo, esperando as
orações das tuas lágrimas. As orações! Admiro-me desta faísca de fé que me alumia nas
minhas trevas!... Tu deras-me com o amor a religião, Teresa. Ainda creio; não se apaga a luz
77
Porém Simão Botelho, ao cabo de cinco meses de cárcere, já sabia o seu destino, e
achara útil prevenir Teresa, para não sucumbir ao inevitável golpe da separação.
Bem queria ela alumiar com esperanças a perspectiva negra do desterro; mas
froixos e frios eram os alívios em que não era parte a convicção nem o sentimento.
Teresa não podia sequer iludir-se, porque tinha no peito um despertador que a
que é tua; mas a providência divina desamparou-me»; «Teresa carecia de forças para a
rebelião. Deixou a sua tia a santa vaidade de exorcismar o demónio das paixões, e deu um
sorriso ao anjo da morte, que, de permeio ao seu amor e à esperança, lhe interpunha a asa
negra, que tão de luz refulgente rebrilha às vezes em corações infelizes» (AP, p. 309 e 357;
itálicos meus).
229
AP, p. 351; itálicos meus. Noutra passagem, Simão alude à metáfora da luz da razão
insuflada por ação do fogo divino: «Eu queria que Mariana pudesse dizer: ‘Sacrifiquei-me por
meu marido; no dia em que o vi ferido em casa de meu pai, velei as noites a seu lado; quando a
desgraça o encerrou entre ferros, dei-lhe o pão que nem seus ricos pais lhe davam; quando o vi
sentenciado à forca, endoideci; quando a luz da minha razão me tornou num raio de
compaixão divina, corri ao segundo cárcere, alimentei-o, vesti-o, e adornei-lhe as paredes nuas
do seu antro […]’» (AP, p. 423). A metáfora da luz para designar a entidade divina, constante
ao longo do romance, é comum, não obstante uma certa teologia mística cristã associar Deus à
absoluta escuridão enquanto excesso de luz (cf. Ysabel de Andia, « ’Entrée dans la Ténèbre
Divine et le Feu de l’Esprit», in Christian Trottmann e Anca Vasiliu (dir.), Du Visible à
l'Intelligible: Lumière et Ténèbres de l'Antiquité à la Renaissance, Paris, Honoré Champion,
2004, p. 361 e passim). A cegueira proveniente do excesso de luz é, aliás, um fenómeno físico,
como lembra Burke: «A luz em excesso, ao ultrapassar os órgãos da visão, ofusca todos os
objetos, e neste efeito assemelha-se exatamente à escuridão» (op. cit., p. 74).
230
AP, p. 353; itálicos meus. Recorde-se, a propósito, que Luz Coada por Ferros é o título
dado a um conjunto de escritos originais de autoria de Ana Plácido, também eles produzidos
na sua grande maioria no cárcere, conjunto esse publicado em volume no ano de 1863.
78
231
AP, pp. 427 e 433; itálicos meus. O paroxismo provém também da combinação
esperança / morte, como se vê nesta passagem de profundo desespero vivenciado por Teresa:
«E com as mãos convulsivamente enlaçadas sobre o seio, Teresa arquejava em pranto. / – Se eu
já não tenho forças!... Todos dizem que eu morro, e o médico já nem me receita!... Então
melhor me fora ter acabado antes desta hora! Morrer com esperanças, ó Mãe de Deus! / E
ajoelhou ante o retábulo devoto que trouxera do seu quarto de Viseu, ao qual sua mãe e avó já
tinham orado, e em cujo rosto compassivo os olhos das duas senhoras moribundas tinham
apagado os seus últimos raios de luz» (AP, pp. 363 e 365; itálicos meus).
232
Numa projeção do futuro degredo, Simão vê Mariana a trabalhar «à luz do sol
homicida» (AP, p. 423).
233
«[…] antes a masmorra, onde pode ouvir-se o som abafado de uma voz amiga; antes os
paroxismos de dez anos sobre as lajes húmidas de uma enxovia, se, na hora extrema, a última
faísca da paixão, ao bruxulear para morrer, nos alumia o caminho do céu por onde o anjo do
amor desditoso se levantou a dar conta de si a Deus, e a pedir a alma do que ficou» (AP, p.
435; itálicos meus).
234
AP, p. 141; itálico meu.
235
O narrador fá-lo explicitamente: «Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do
leitor, se cuido que o degredo de um moço de dezoito anos lhe há de fazer dó» (idem).
236
AP, p. 459; itálico meu.
79
A luz ténue e intermitente gera uma ansiedade latente que culmina com a
leitura da carta de Teresa onde esta confirma a notícia da sua morte, à qual
chama «noite da vida»238. A frouxidão da luz que prepara o passamento de
Simão tem um correspondente na morte de Teresa:
Simão é visto por Teresa desvanecente. E, após a morte da sua amada, morte a
que ele assiste ignorante, Simão fica a velar o lugar da sua ausência até a
escuridão o submergir completamente. Reproduzindo a própria ausência, o
olhar de Simão exprime o vazio, reflete ele mesmo o olhar a-lucinado da morte
em total prostração:
237
AP, pp. 455 e 459; itálicos meus.
238
Acerca da intermitência associada à luz como fonte de sublimidade, cf. Edmund Burke,
op. cit., pp. 76-77.
239
AP, p. 447; itálicos meus.
80
Nenhum sinal de vida. E as horas passaram até que o derradeiro raio do sol se
apagou nas grades do mosteiro240.
Aquela ansiedade crescente terminará com o apagar da luz que vela Simão
moribundo:
240
AP, p. 449; itálicos meus.
241
AP, p. 469; itálicos meus.
242
A associação do passamento à luz parece, de facto, escolher preferencialmente o raiar do
dia: Simão morre com a aurora, como vimos, mas também Teresa liga a sua morte ao nascer do
sol: «Rompe a manhã. Vou ver a minha última aurora... a última dos meus dezoito anos!» (AP,
p. 463). De novo a referência à juventude, de novo a menção do derradeiro momento. Para
situar o momento da morte de Mariana, serve como ponto de referência a morte de Simão, com
a notação cronológica acima transcrita: «Ao romper da manhã», cuja cerimónia fúnebre ocorre
«Algumas horas volvidas» (AP, p. 471). É nesse momento que a protagonista se suicida.
243
Escreve com pertinência José-Augusto França, a respeito de Amor de Perdição: «O Sol
não entra neste universo de trevas senão para melhor realçar as sombras ameaçadoras»
(«Camilo ou a Opção da Desventura», in op. cit., p. 289).
244
AP, p. 463.
81
245
Cf. Marc Eigeldinger, « ’Image du Crépuscule chez Baudelaire», in AA. VV., Du
Visible a l’Invisible — I: Mettre en Images, Donner en Spectacle, Paris, José Corti, 1988, p.
297.
246
Baldine Saint Girons chama a atenção para a etimologia ambivalente do sema sku
(presente em palavras como escuridão e obscuridade), que pode representar cobrir, mas
também rasgar (cf. Fiat Lux, op. cit., p. 155).
247
Cf. AP, pp. 247 e 307; itálicos meus: «Acabara Teresa de ler e esconder no seio a
resposta de Simão Botelho, que a mendiga lhe passara ao escurecer [...]»; «Ao anoitecer,
Simão, como estivesse sozinho, escreveu uma longa carta […]».
248
Cf. AP, pp. 173 e 469: «Com o amanhecer esfriou-lhe o sangue, e renasceu a esperança
com os cálculos»; «Ao anoitecer desse dia o condenado delirou pela última vez, e dizia assim
no seu delírio […]».
249
Cf. AP, p. 365. Cf. Edmund Burke, op. cit., pp. 71-72: «A Magnificência é também uma
fonte de sublime. Uma grande profusão de coisas esplêndidas e valiosas em si mesmas é
magnificente. O céu estrelado, embora ocorra diante dos nossos olhos com muita frequência,
nunca falha em excitar uma ideia de grandeza. Isto não se deve a alguma coisa que existe nas
próprias estrelas consideradas separadamente. O número é certamente a causa. A aparente
desordem aumenta a grandeza, enquanto a aparência de cuidado é bem contrária às nossas
ideias de magnificência».
250
Cf. I. Kant, Crítica da Faculdade do Juízo, op. cit., p. 139: «Daí, porém, se vê
imediatamente que em geral nos expressamos incorrectamente quando denominamos qualquer
82
objecto da natureza de sublime […]. Não podemos dizer mais, senão que o objecto é apto à
exposição de uma sublimidade que pode ser encontrada no ânimo; pois o verdadeiro sublime
não pode estar contido em nenhuma forma sensível, mas concerne somente a ideias da razão,
as quais, se bem que não lhes seja possível nenhuma apresentação adequada, precisamente por
esta inadequação, que deixa apresentar-se sensivelmente, são activadas e chamadas ao ânimo».
251
AP, p. 469.
252
Na carta de Teresa lia-se: «A tua imaginação passeava comigo às margens do Mondego,
à hora pensativa do escurecer. Estrelava-se o céu, e a lua abrilhantava a água» (AP, p. 461).
253
Cf. idem: «Estou vendo a casinha que tu descrevias […]». Atente-se em toda a
linguagem ecfrástica dominante nesta carta de Teresa, de que destacamos os seguintes termos:
«visão», «pintavas», «vendo», «descrevias», «imaginação», «li», «recordando», «falavas»,
«imaginava». Todo o discurso é altamente descritivo, abrindo imagens após imagens. A
presença do vocabulário concreto também contribui para essa ekphrasis.
83
254
Cf. ouis Marin, « es Fins de l’Interprétation, ou les Traversées du Regard dans le
Sublime d’une Tempête», in De la Représentation, Paris, Seuil / Gallimard, 1994, p. 186 e ss..
255
Baldine Saint Girons, Fiat Lux, op. cit., p. 163.
256
AP, p. 449.
84
257
AP, p. 455.
258
Cf. Jean Starobinsky, art. cit., pp. 49-50.
259
AP, p. 459; itálicos meus.
85
260
Sobre o efeito da subitaneidade como fonte do sublime, ver Edmund Burke, op. cit., p.
76.
261
Cf. ouis Marin, « e Sublime Classique: es ‘Tempêtes’ dans quelques Pa sages de
Poussin», in Sublime Poussin, Paris, Seuil, 1995, p. 138: «A tempestade é um momento súbito
e é um processo».
262
Aquando do diálogo entre o capitão do navio e Simão, lê-se: «Não replicou o
comandante, e continuou a passear no convés, apesar das rajadas de vento» (AP, p. 465;
itálico meu).
263
AP, p. 467.
264
A propósito da condensação do tempo na tempestade descrita, parece haver aqui uma
inversão do papel tradicional que distingue as artes da pintura e da literatura, principalmente a
partir de Lessing. As paisagens pictóricas, segundo o pensador alemão, visariam os objetos,
logo, o espaço; enquanto as paisagens verbais tenderiam para expressar ações, portanto, o
86
272
José Régio, art. cit., p. 111. Por sua vez, Jacinto do Prado Coelho também reconhece que
«Este realismo, de lavra pessoal, a denunciar em Camilo, além duma memória vivíssima, uma
atenção extraordinária aos movimentos e às falas, que são ainda acção […] representa um dos
maiores valores do Amor de Perdição» (op. cit., p. 259). A fecundidade do romance na sua
transcodificação para a arte cinematográfica está na origem de duas teses sobre o assunto: cf.
Maria do Rosário Leitão Lupi Bello, Narrativa Literária e Narrativa Fílmica: O Caso de
Amor de Perdição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência e a
Tecnologia, 2008; e Maria Helena Amaral de Pinho, Camilo Castelo Branco na Sétima Arte:
Entre o Amor e a Perdição, Dissertação de Mestrado em Literatura e Cinema apresentada à
Universidade Aberta de Lisboa, Lisboa, 2002.
273
Veja-se com especial atenção o quarto parágrafo do capítulo V, que exibe a mestria de
Camilo neste procedimento (cf. AP, p. 207).
88
274
Cf. op. cit., p. 130: «[…] na completa escuridão, é impossível saber qual o grau de
segurança em que nos encontramos; ignoramos os objetos que nos circundam, podemos, a
qualquer momento, embater contra uma perigosa obstrução; podemos cair de um precipício ao
primeiro passo que dermos; e se um inimigo se aproxima, não sabemos de que lado nos
havemos de defender; num caso desses, a força não é garantia de proteção, a sageza age apenas
por conjetura; os mais ousados são dominados pelo espanto; e aquele que nada queira implorar
pela sua defesa ver-se-á forçado a suplicar pela luz».
275
Cf. Aristóteles, Retórica, op. cit., pp. 269 e 270: «Na verdade, chamo ‘pôr diante dos
olhos’ aquilo que representa uma acção»; «[…] [às coisas inanimadas] o poeta atribui-lhes vida
e confere-lhes também movimento; ora, movimento é acção».
276
Cf. Baldine Saint Girons, Fiat Lux, op. cit., p. 156.
277
Idem, p. 160.
278
Edmund Burke, op. cit., p. 57.
89
Muito há que me reluz e voeja, alada como ideal querubim dos santos, nesta minha
quasi escuridade, aquela ave do céu, como a pedir-me que lhe cubra de flores o
rastilho de sangue que ela deixou na terra. Mais lágrimas que sangue deixaste, ó
filha da amargura! Flores são tuas lágrimas, e do céu me diz se os perfumes delas
não valem mais aos pés do teu Deus que as preces de muita devota, que morre
santificada pelo mundo, e cujo cheiro de santidade não passa do olfacto hipócrita ou
estúpido dos mortais279.
279
AP, p. 353.
280
Jean-Luc Marion, La Croisée du Visible, Paris, Presses Universitaires de France, 1991,
p. 154.
SIMÃO E O SUBLIME CRIMINAL
O filho mais velho escreveu a seu pai queixando-se de não poder viver com seu
irmão, temeroso do génio sanguinário dele. Conta que a cada passo se vê ameaçado
na vida, porque Simão emprega em pistolas o dinheiro dos livros, convive com os
mais famosos perturbadores da academia, e corre de noite as ruas insultando os
habitantes e provocando-os à luta com assuadas. O corregedor admira a bravura de
seu filho Simão, e diz à consternada mãe que o rapaz é a figura e o génio de seu
bisavô Paulo Botelho Correa, o mais valente fidalgo que dera Trás-os-Montes.
281
AP, p. 147.
282
AP, p. 161.
91
Manuel, cada vez mais aterrado das arremetidas de Simão, sai de Coimbra antes de
férias e vai a Viseu queixar-se, e pedir que lhe dê seu pai outro destino283.
Simão Botelho levou de Viseu para Coimbra arrogantes convicções da sua valentia.
Se recordava os chibantes pormenores da derrota em que pusera trinta aguadeiros, o
som cavo das pancadas, a queda atordoada deste, o levantar-se daquele,
ensanguentado, a bordoada que abrangia três a um tempo, a que afocinhava dois, a
gritaria de todos, e o estrépito dos cântaros afinal; Simão deliciava-se nestas
lembranças, como ainda não vi nalgum drama, em que o veterano de cem batalhas
283
AP, p. 161.
284
R. A. Lawton, «Technique et Signification de Amor de Perdição», art. cit., pp. 95-96.
285
AP, p. 161.
92
286
AP, p. 165.
287
AP, p. 169.
288
Cf. AP, p. 167.
289
Cf. Aristóteles, Retórica, op. cit., p. 274: «As hipérboles são como os adolescentes:
manifestam grande exagero. Por isso, expressam-se assim sobretudo os que estão dominados
pela cólera […]. Não é, por isso, apropriado a um velho proferir tais coisas». Entre essas
hipérboles associadas ao herói de Amor de Perdição, vejam-se as seguintes: «O filho do
corregedor de Viseu defendia que Portugal devia regenerar-se num baptismo de sangue, para
que a hidra dos tiranos não erguesse mais uma das mil cabeças sob a clava do Hércules
93
Movido ao excesso por caráter, idade, mas também por força das
circunstâncias — históricas, familiares e pessoais —, o protagonista de Amor
de Perdição mereceu condenações impiedosas por parte de alguns críticos que
limitaram a sua interpretação da personagem a uma univocidade sem rigor.
Ramalho Ortigão encontrava na personagem fictícia — como se fosse decalque
da histórica — um exemplo da «hereditariedade degenerativa» que malograva
o próprio autor do romance, numa perspetiva determinista e positivista.
Também marcados pelo positivismo, os estudos de Jorge de Faria (1910) e de
António Augusto Mendes Corrêa (1911) catalogavam Simão na série de
criminosos ocasionais — passionais290. Por seu turno, em 1951, António
Sérgio seria implacável com a personagem — e, consequentemente com a obra
e o seu autor —, tratando Simão como um criminoso nato, terminologia
científica amplamente vulgarizada. Mas enquanto o leigo camilianista
maldissera a lógica da construção do romance, R. A. Lawton, ilustre crítico
francês vem, em 1964, provar a coerência estrutural de Amor de Perdição, não
obstante o equívoco de Camilo, que teria acertado se tivesse intitulado a sua
obra de Ódio de Perdição. Embora com propósitos distintos, ambos concordam
na caracterização negativa dada à personagem: segundo António Sérgio, Simão
não passa de um «jovem degenerado, sem nenhuma capacidade de
auto-domínio ou mesura, um impulsivo sanguinário que se desencadeia à toa,
um criminoso nato»291, enquanto, para R. A Lawton, o motor da ação é o
popular»; «Simão, porém, entre mil projectos, achara melhor o de ir para Coimbra, esperar lá
notícias de Teresa, e vir a ocultas a Viseu falar com ela»; e «Das mil visões que lhe
relancearam no atribulado espírito, a que mais a miúdo se repetia era a de Mariana suplicante
com as mãos postas; mas, ao mesmo tempo, cria ele ouvir os gemidos de Teresa, torturada
pela saudade, pedindo ao céu que a salvasse das mãos de seus algozes» (AP, pp. 167, 173 e
313; itálicos meus).
290
Cf. Jorge Brandão Figueiredo de Faria, Criminosos e Degenerados em Camilo,
Coimbra, edição de autor, 1910, pp. 54-58; e Antonio Augusto Mendes Corrêa, O Genio e o
Talento na Pathologia, Porto, Imprensa Portugueza, 1911, p. 19. Entre várias classificações do
foro criminalista, desde as propostas de Benedikt às de Lombroso, Jorge de Faria adota a de
Ferri, criminologista italiano, discípulo de Lombroso, que divide os delinquentes em duas
classes — habituais ou ocasionais. Os habituais podem ser natos, loucos ou por hábito
adquirido. Os ocasionais distinguem-se entre ocasionais propriamente ditos e passionais.
291
António Sérgio, «Monólogo do Vaqueiro ou Notazinha Problemática sobre o Amor de
Perdição», Camiliana & Vária: Revista-Boletim do Círculo Camiliano, 1, Lisboa,
Janeiro-Março de 1951, p. 2.
94
absoluto «egocentrismo de Simão»292, o qual não se perdeu por amor, mas pelo
ódio e pela vingança que o sentimento de pundonor lhe inspirara. Cinco anos
depois, era publicado em volume um artigo que se assumia como uma réplica
ao texto de Lawton: «Amor de Perdição, Novela do Pundonor?» de Jacinto do
Prado Coelho. Aqui o autor da magistral Introdução ao Estudo da Novela
Camiliana mostrava como o crítico francês, apesar da sua argúcia analítica,
havia confundido o sentimento de nobreza pessoal sentida por Simão com o
sentimento de pundonor associado ao prestígio de casta. Assim, como Sérgio,
Lawton não tinha captado a essência trágico-poética que faz de Amor de
Perdição uma obra-prima293.
Em 1977, a estudiosa brasileira Lênia Márcia Mongelli expõe uma visão
mais complexa do herói, dividido num conflito entre o amor e o dever, por um
lado, e a sua individualidade, por outro294. Este é já um ponto de vista que vem
iluminar a complexidade dialética da personagem. Ao reeditar a sua dissertação
de doutoramento, em 1981, Jacinto do Prado Coelho integra uma nova reflexão
sobre o romance, após um comentário a estes contributos exegéticos. O
ensaísta propõe a distinção de três fases no percurso de Simão: oposição à
ordem estabelecida, reconciliação com a ordem estabelecida, nova oposição
radical à ordem estabelecida295. Conclui então o autor: «Simão elevou-se pelo
amor e conquistou na luta uma certeza obstinada, pela qual enfrenta
altivamente o sofrimento e a morte»296. Assim, Jacinto do Prado Coelho
reabilita a figura de Simão como um mártir de amor e mártir apesar de toda a
292
R. A. Lawton, «Technique et Signification de Amor de Perdição», art. cit., p. 129.
Jacinto do Prado Coelho notou, neste estudo, algumas contradições do autor que não podem
deixar de ser vistas como uma falta de convicção na tese urdida. Aliás, num segundo ensaio
sobre Amor de Perdição, « es Peines d’Amour Perdues de Camilo Castelo Branco», Lawton
reduziu o tom judicativo com que havia culpabilizado Simão pela perdição de Teresa e
Mariana. Tem pois razão Sérgio de Sousa quando nota uma «ligeira inflexão» neste novo
ensaio que sucede ao artigo de Jacinto do Prado Coelho, o qual não é referido pelo autor
francês (cf. Sérgio Guimarães de Sousa, «Crimes de Amor?: Tradição Crítica de Amor de
Perdição», Diacrítica, 21/3, Braga, 2007, p. 430).
293
Cf. Jacinto do Prado Coelho, «O Amor de Perdição, Novela do Pundonor?», in A Letra e
o Leitor, Lisboa, Portugália, 1969, p. 143.
294
Cf. Lênia Marcia de Medeiros Mongelli, art. cit., esp. pp. 39, 41 e 43.
295
Cf. op. cit., pp. 256-257. A 3.ª edição póstuma, de 2001, replica a 2.ª versão, de 1981,
revista e aumentada pelo autor.
296
Idem, p. 257.
95
297
Não deixa de ser curioso observar o tom ofensivo que António Sérgio e R. A. Lawton
adotam, bem como o tom defensivo patente nos discursos de Jacinto do Prado Coelho e de
Aníbal Pinto de Castro.
298
Aníbal Pinto de Castro, «Estudo Histórico-Literário», introd. cit., p. LVII.
299
Sobre as relações do herói camiliano com o patriarcado, vejam-se as seguintes
perspetivas: Eurico Figueiredo, «Jovens Amores Contrariados na Literatura: Amor de
Perdição», in No Reino de Xantum: Os Jovens e o Conflito de Gerações, Porto, Afrontamento,
1985; Leodegário A. de Azevedo Filho, art. cit.; Miguel Rettenmaier da Silva, «Desejo e Culpa
em Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco», Letras de Hoje, Vol. 31, 1, Porto Alegre,
Março 1996; e Sérgio Paulo Guimarães de Sousa, Entre-Dois: Desejo e Antigo Regime na
Ficção Camiliana, Dissertação de Doutoramento apresentada à Universidade do Minho, Braga,
Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, 2005, esp. pp. 20-29.
96
300
João Bigotte Chorão, «Nocturno Camiliano», in Abel Barros Baptista et al. (org.),
Camilo: Evocações e Juízos – Antologia de Ensaios, Porto, Comissão Nacional das
Comemorações Camilianas, 1991, p. 242.
301
Esta é, de resto, a tese defendida por Sérgio Guimarães de Sousa na sua dissertação de
doutoramento, onde defende que «Os patriarcas, por muito que propalem os valores do Antigo
Regime, já não parecem ser o que seriam no antigamente, e os heróis românticos, por mais que
repudiem a ordem antiga, ainda não são indivíduos emancipados da tradição» (op. cit., p. vi).
97
dada altura, tem com o dinheiro necessário para se sustentar com Teresa em
caso de fuga faz disso prova302. Também em certa conversa com João da Cruz,
Simão revela uma conceção de casamento perfeitamente enquadrada na lógica
de mercantilização feminina que dominava à época, conceção aliás inesperada
numa personagem que pugna por viver um amor livre de preconceitos303. Além
disso, se Simão luta pelos ideiais da revolução popular, não deixa de ser
conivente com um certo tratamento deferente que João da Cruz e Mariana lhe
prestam. Por outro lado, a sua altivez compadece-se com uma sincera
humildade com que muitas vezes se deixa guiar pela figura paternal do
ferreiro304. O gosto pelas armas de fogo não se conforma com o horror que
sente por João da Cruz quando constata que este matou o malogrado mochila
de Baltasar Coutinho. Embora reconheça a sua responsabilidade no infortúnio
de Mariana, não deixa de forma egoísta de a aliciar a que o acompanhe no
degredo. O mesmo Simão feroz que atemoriza as irmãs Ana e Maria, obedece à
irmã mais nova, Rita, por quem nutre uma afeição especial e com quem
partilha brincadeiras infantis. Estes e muitos outros passos perturbam toda a
imagem idealizada ou demonizada que se possa querer fazer do herói de Amor
de Perdição. Certo é que, ao longo da narrativa, Simão desenvolve todo um
percurso de protagonismo heroico em que a sua coragem não é posta em causa.
Mesmo quando confrontado com a adversidade, como no caso da emboscada,
Simão revela-se um exemplo de bravura e destemor, com uma certa
inconsciência e ingenuidade que, em vez de o minorizarem, o engrandecem.
Na carta que é ela própria um emblema da sublimidade, escrita ao anoitecer
do dia que precede o crime, Simão assume um ato de abdicação: abdica não do
amor de Teresa, mas da possibilidade de realização desse amor. O protagonista
encena a sua morte, pressupondo-se um fantasma falante, muito antes de que
302
Óscar Lopes vê nesse passo uma manifestação de uma certa «veia realista» de Camilo
(cf. «Claro-Escuro Camiliano», in op. cit., pp. 49-50).
303
«Se vocemecê tem uma casinha sofrível — atalhou Simão — pode, querendo, casar a
sua filha numa boa casa de lavoira» (AP, p. 267). Óscar Lopes refere-se à «mercenarização
feminina» como um tópico recorrente na ficção camiliana (cf. «Claro-Escuro Camiliano», art.
cit., pp. 43-46).
304
Lawton considera mesmo João da Cruz um «pai substituto» de Simão (cf. «Les Peines
d’Amour Perdues de Camilo Castelo Branco», in José-Augusto França, R. A. Lawton e
Eduardo Lourenço, Hommage à Camilo Castelo Branco, Paris, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1985, p. 8).
98
Era uma hora, e estava Simão defronte do convento, contemplando uma a uma as
janelas. Em nenhuma vira o clarão de luz; luz só a do lampadário do Sacramento se
coava baça e pálida na vidraça duma fresta do templo. Sentou-se nas escaleiras da
igreja, e ouviu, ali imóvel, as quatro horas307. Das mil visões, que lhe relancearam
no atribulado espírito, a que mais a miúdo se repetia era a de Mariana suplicante
com as mãos postas; mas, ao mesmo tempo, cria ele ouvir os gemidos de Teresa,
torturada pela saudade, pedindo ao céu que a salvasse das mãos de seus algozes. O
vulto de Tadeu de Albuquerque arrastando a filha a um convento, não lhe
afogueava a sede da vingança; mas cada vez que lhe acudia à mente a imagem
odiosa de Baltasar Coutinho, instintivamente as mãos do académico se asseguravam
da posse das pistolas308.
309
AP, p. 313.
310
Sobre as anáforas referenciais por meio das quais as personagens são designadas, veja-se
o artigo já citado de Maria Helena Nery Garcez, «Acerca das Designações dos Agentes em
Amor de Perdição».
311
AP, p. 317; itálicos meus.
100
312
AP, p. 321.
313
Nas palavras do padre Álvaro, protagonista do contemporâneo O Romance dum Homem
Rico (Lisboa, Cotovia, 1992, p. 41).
314
Abel Barros Baptista refere-se a um erro moderno que assenta numa retroatividade da
autointerpretação da conduta feita pelo herói (cf. art. cit., esp. pp. 111-112). Sobre o sublime da
falha, cf. Stephanie Barbé Hammer, «Resistance, Metaphysics, and the Aesthetics of Failure in
Modern Criminal Literature», in The Sublime Crime: Fascination, Failure, and Form in
Literature of the Enlightenment, Carbondale, Southern Illinois University Press, 1994.
315
AP, p. 437.
316
«Technique et Signification de Amor de Perdição», art. cit., p. 125.
101
317
O discurso de Simão assume um papel preponderante ao denotar a sua consciência da
tragicidade operada. Ao perceber que Mariana lhe é incondicionalmente fiel, Simão conclui
diante de João da Cruz: «É pois certo que a minha má estrela arrasta a sua desgraçada filha a
todos os meus abismos!»; e quando Mariana lhe confessa que se suicidará, caso ele morra,
conclui: «Tanta gente desgraçada que eu fiz!...». Por outro lado, Simão reconhece a sorte de
Mariana, que não sofreu o abandono a que foi votada Teresa: «O Anjo da compaixão sempre
comigo! — murmurou ele — Teresa foi muito mais desgraçada...» (AP, respetivamente pp.
391, 467 e 465).
318
AP, p. 383.
319
AP, p. 443.
320
AP, p. 377.
321
AP, p. 449.
322
Cf. AP, p. 451.
323
Na expressão de Lawton, Simão «avança com elevação sobre o abismo» («Technique et
Signification de Amor de Perdição», art. cit., p. 77).
102
energia sem limites que nos fascina sob um limiar estético324. Dessa forma,
Simão representa um avatar da liberdade absoluta325. Na construção deste
protagonista sublime, Camilo não esqueceu, pois, a máxima de Pascal de que o
homem é o ser mais vil e mais nobre, tendo dado à luz uma personagem
complexa feita sobretudo de sombras326.
324
Sobre o predomínio da impressão estética sobre a impressão moral em atos reprovavéis,
mas plenos de energia, cf. Friedrich Schiller, «Ideias sobre o Uso do Comum e do Baixo na
Arte», in Textos sobre o Belo, o Sublime e o Trágico, op. cit., esp. pp. 190-191; Dominique
Peyrache- eborgne, «Diderot et Schiller: Du Sublime du Crime au Concept d’Humanité
Idéale, in op. cit.; e Michel Crouzet, « ’Esthétique et l’Energie», in Essai sur la Genèse du
Romantisme — II: La Poétique de Stendhal (Forme et Société, le Sublime), Paris, Flammarion,
1983. Essa energia de Simão não o abandona mesmo nos momentos de passividade ou
melancolia. Veja-se, a título de exemplo, as exclamações dadas energicamente e abruptamente
por Simão ao comandante nos momentos em que este teme pelo seu suicídio (cf. AP, pp. 451 e
465).
325
Cf. G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, Petrópolis, Vozes, 2002, esp. pp.
401-410.
326
Numa obra de introdução ao estudo do autor, João Bigotte Chorão afirma: «A
complexidade da natureza humana, essa inextricável contradição já assinalada pelo poeta
Ovídio e pelo sábio Montaigne parece escapar a um novelista que só vê a luz e a sombra em
oposição. Na sua radical dicotomia, esquece a advertência de Pascal de que o homem não é
anjo nem besta. É a mais miserável das criaturas e a mais sublime. O maniqueísmo camiliano
prejudica a complexidade humana de muitas das suas personagens, não suficientemente
contrastadas ou demasiado esquemáticas para serem verdadeiras» (Camilo: Esboço de um
Retrato, Lisboa, Vega, s/d, pp. 53-54). Assumidas como generalizações, são contudo perigosas
estas afirmações, revelando sobretudo falta de rigor, pois se é verdade que a passagem
transcrita se adequa a vários romances dados a lume na oficina camiliana, não foram esses que
elevaram Camilo à figura de génio criador. Esse mal-entendido perdura quando se seguem
passagens como estas que podem conduzir a um equívoco: «Sucede assim que na ficção
camiliana sejam por vezes personagens secundárias as de maior autenticidade humana. O
ferrador João da Cruz, do Amor de Perdição, ou o criado Tranqueira, do Amor de Salvação,
destacam-se com vigor nesse painel de meninas anémicas e de moços frenéticos» (idem, pp.
54-55).
O PRAZER NEGATIVO
Ansiosa de verte,
deseo morir.
Jacques Lacan,
sobre Êxtase de Santa Teresa de Bernini,
in Encore: Le Seminaire — Livre XX
327
Embora pouco estudada, algumas vozes de críticos importantes são peremptórias em
considerar Mariana a personagem excecional do romance: «é a figura mais humana e mais
complexa da obra» (Jacinto do Prado Coelho, op. cit., p. 251); «é sem dúvida uma das grandes
invenções de Camilo e é talvez a ela que deve ser cabalmente imputada a fortuna do romance»
(Luciana Stegagno Picchio, «Amor de Perdição: Uma ‘Crónica Stendhaliana’. Estudo de
Fortuna», in AA. VV., Congresso Internacional de Estudos Camilianos (24-29 de Junho de
1991): Actas, Coimbra, Comissão Nacional das Comemorações Camilianas, 1994, p. 769); «é
quem recebe a maior deferência nos modos de ser designada. […] Mariana é a personagem de
maior dignidade. […] Ela é, de facto, a heroína romântica por excelência na novela. […]
Mariana acaba sendo uma criação mais pura e mais forte (ou perfeita) do que a própria Teresa»
(Maria Helena Nery Garcez, art. cit., pp. 20-21). Sobre a complexidade dinâmica que a figura
de Mariana vem conferir ao romance, que se revela uma autêntica inovação relativamente ao
cânone romântico português, cf. José-Augusto França, «Camilo ou a Opção da Desventura», in
op. cit., pp. 289-290.
104
O ferrador tinha uma filha, moça de vinte e quatro anos, formas bonitas, um rosto
belo e triste. Notou Simão os reparos em que ela se demorava a contemplá-lo, e
perguntou-lhe a causa daquele olhar melancólico com que ela o fitava. Mariana
corou, abriu um sorriso triste, e respondeu:
— Não sei o que me adivinha o coração a respeito de vossa senhoria. Alguma
desgraça está para lhe suceder...328.
328
AP, p. 213; itálicos meus.
329
Maurice Merleau-Ponty, O Olho e o Espírito, s/l, Vega, 2009, p. 26.
330
João da Cruz recorda com saudade a sua filha, caracterizando-a por meio de uma
metonímia expressiva: «Dava agora tudo quanto tenho para a ver aqui ao pé de mim, com
aqueles olhos que pareciam ir direitos aos desgostos que um homem tem no seu interior» (AP,
p. 409; itálico meu).
331
Segundo Maurice Merleau-Ponty, o corpo é simultaneamente vidente e visível (cf. op.
cit., p. 30). Na verdade, trata-se de uma relação intersubjetiva, já que «através dos outros olhos
tornamo-nos plenamente visíveis a nós mesmos» (Maurice Merleau-Ponty, Le Visible et
l’Invisible, Paris, Gallimard, 1995, p. 188).
105
Era a resposta um grito de alegria. Teresa não reflectiu, respondendo a Simão, que
naquela noite se festejavam os seus anos, e se reuniam em casa os parentes.
Disse-lhe que às onze horas em ponto ela iria ao quintal e lhe abriria a porta.
Não esperava tanto o académico. O que ele pedia era falar-lhe da rua para a janela
do seu quarto, e receava impossível este prazer, que ele avaliava o máximo.
Apertar-lhe a mão, sentir-lhe o hálito, abraçá-la talvez, cometer a ousadia de um
beijo, estas esperanças, tão além de suas modestas e honestas ambições, igualmente
o enleavam. Enlevo e susto em corações que se estreiam na comédia humana, são
sentimentos congeniais.
332
AP, p. 349. Como notou José-Augusto França, esta ambiguidade sentimental de Simão
concorre para a complexidade e originalidade da obra (cf. «Camilo ou a Opção da
Desventura», in op. cit., pp. 289-290).
333
AP, p. 351.
334
Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, Lisboa, Edições 70, s/d, p. 54.
335
«Somos seres descontínuos, indivíduos que isoladamente morrem numa aventura
ininteligível, mas que têm a nostalgia da continuidade perdida» (Georges Bataille, O Erotismo,
Lisboa, Antígona, 1988, p. 14).
336
Veja-se o seguinte exemplo: «O cavalo demorou-se meia hora, e o seu bom anjo, neste
espaço, vestido com as galas com que ele vestia na imaginação Teresa, deu-lhe rebates de
saudade daqueles tempos e ainda das horas daquele mesmo dia, em que cismava na felicidade
que o amor lhe prometia, se ele a procurasse no caminho do trabalho e da honra» (AP, p. 197;
itálicos meus). O lexema vestir repete-se num breve espaço, e, embora o seu sentido primeiro
seja conotativo, a presentificação dessa imagem em sentido denotativo assoma
instantaneamente ao leitor.
106
À hora da partida, Simão tremia, e a si mesmo pedia contas da timidez, sem saber
que os encantos da vida, os mais angélicos momentos da alma, são esses lances de
misterioso alvoroço que aos mais serôdios de coração sucedem em todas as sazões
da vida, e a todos os homens, uma vez ao menos.
Às onze horas em ponto estava Simão encostado à porta do quintal, e a distância
convencionada o arrieiro com o cavalo à rédea. A toada da música, que vinha das
salas remotas, alvoroçava-o, porque a festa em casa de Tadeu de Albuquerque o
surpreendera. No longo termo de três anos nunca ele ouvira música naquela casa. Se
ele soubesse o dia natalício de Teresa, espantara-se menos da estranha alegria
daquelas salas, sempre fechadas, como em dias de mortório. Simão imaginou
desvairadamente as quimeras que voejam, ora negras, ora translúcidas, em redor da
fantasia apaixonada. Não há baliza racional para as belas, nem para as honrosas
ilusões, quando o amor as inventa. Simão Botelho, com o ouvido colado à
fechadura, ouvia apenas o som das flautas, e as pancadas do coração
sobressaltado337.
337
AP, pp. 201 e 203. A preeminência da experiência do tempo na ereção do sublime
parece justificar uma tão longa transcrição.
338
Em As Lágrimas de Eros, Georges Bataille mostra como, antropologicamente, o
erotismo está associado ao reconhecimento da morte. Esta é uma tese central da teoria
batailliana do erotismo (cf. As Lágrimas de Eros, Lisboa, Sistema Solar, 2012, esp. pp. 19-28).
339
Eugénio de Andrade aponta como um dos defeitos de Camilo «o seu ódio ao corpo»
(«Sobre Camilo», in Os Afluentes do Silêncio, Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 1997, p.
19). Já Dulce Mindlin, por seu turno, declara: «[…] é de se notar, na narrativa, a ausência do
elemento erótico. Talvez fosse melhor dizer recalcamento, uma vez que em nenhum momento
o par amoroso mal cogita numa entrega que não seja sentimental apenas» («Paixão: Doença ou
Fado?», in João Camilo dos Santos (ed.), Proceedings of the Camilo Castelo Branco
International Colloquium, Santa Barbara, University of California — Center for Portuguese
Studies, 1995, p. 87).
107
340
«A estética de Camilo é uma estética da sugestão, não do explícito» (R. A. Lawton,
«Technique et Signification de Amor de Perdição», art. cit., p. 82). Sobre a fenda como lugar
da irrupção do erótico, veja-se Roland Barthes, O Prazer do Texto, Lisboa, Edições 70, 2001,
p. 44.
341
Jacinto do Prado Coelho, op. cit., p. 251.
342
É interessante observar a explicitação erótica a que Manoel de Oliveira, no seu filme,
expôs a personagem. Com efeito, o cineasta é mais declarativo na exploração do caráter erótico
da personagem, chegando mesmo a exibi-la numa pose perversa, ao filmar um plano-médio ao
nível da cintura de Mariana, a qual exibe à frente do seu sexo um prato com um frango assado
inteiro expondo um grande buraco escuro, num processo a um tempo metafórico e metonímico.
A aumentar essa luxúria, Mariana exibe um sorriso libidinoso. Numa outra cena, a atenção ao
erotismo desta personagem por parte de Oliveira manifesta-se em sublimidade quando o
cineasta filma Mariana a contorcer-se em grandes planos, numa encenação como que
orgiástica. A ênfase conferida ao corpo de Mariana é deveras pronunciada na obra oliveiriana,
como se observa no final. Após ouvir do capitão a confirmação sobre o estado de Simão —
«Está morto!...» —, Mariana atira-se devoradoramente ao cadáver, fundindo-se com ele no que
visualmente nos aparece como um beijo na boca. Mariana recebe de Simão o halo da morte, o
último sopro de vida até se atirar ao mar para morrer com ele. Manoel de Oliveira aproveita,
então, o momento para demorar a necrófila nos lábios do amado até ao ponto de se tornar
imoral e de o capitão reagir firmemente, desgarrando-a de Simão.
343
Cf. Jean-Luc Marion, Le Phénomène Erotique: Six Méditations, Paris, Grasset, 2003, p.
247.
108
344
Para os conceitos economicistas de utilidade e despesa, veja-se, de Georges Bataille, A
Parte Maldita precedido de A Noção de Despesa (Lisboa, Fim de Século, 2005). Segundo o
autor, em O Erotismo, o que distingue a prostituta de outra mulher é que, após a sua proposta
de oferecimento, a prostituta não simula de seguida uma retração (cf. op. cit., p. 265). Note-se
que, ao contrário de Mariana, Teresa tem interditos — de cariz familiar, social, moral — que a
afastam de Simão e nessa distância está o seu valor. Enquanto Mariana está livre, e a sua
disponibilidade é total. Urge também notar a propósito que a suscetibilidade de Mariana à
condição de prostituta ou de concubina é por mais de uma vez aludida no romance: «Ela está
aqui como sua criada, porque eu já lhe disse que se não fosse o pai de vossa senhoria já ela há
muito tempo que andava por aí às esmolas, ou pior ainda»; «Já Manuel tinha reparado em
Mariana, e da beleza da moça inferira para formar falsos juízos» (AP, pp. 265 e 397; itálicos
meus).
345
Acerca da lógica reversível entre os papéis do senhor e do escravo, veja-se G. W. F.
Hegel, Fenomenologia do Espírito, op. cit., esp. pp. 147 e ss..
346
Cf. AP, p. 295.
347
AP, p. 391.
348
Cf. AP, pp. 271 e 421.
349
Cf. AP, p. 178. Num certo sentido tomado a Levinas, Mariana acaricia Simão. Nessa
carícia reside a profanação e consequente realização erótica da protagonista mais intensa e
109
«Teresa foi muito mais desgraçada» porque não esteve sempre com Simão.
Nessa postura em decúbito, Mariana assume o bathos, o sublime baixo, animal,
que o seu corpo expressa. O êxtase de Mariana consiste, portanto, no gozo
erótico da carne, que ela sabe perecível. O sublime a que assistimos na morte
de Teresa idealizada reside na elevação, na sua ascensão ao céu — o lugar
onde «deve ela estar»352, como admite o capitão — assistida em contraponto
pelos outros dois protagonistas, situados num plano abaixo, o que indicia já o
seu modus mortis353. Ao invés, os corpos de Simão e Mariana lançam-se às
voluptuosa do romance: «A carícia não actua, não se apodera de possíveis. […] Toda ela
paixão, acomoda-se na passividade, no sofrimento, na evanescência da ternura. Morre dessa
morte e sofre desse sofrimento. Enternecimento, sofrimento sem sofrimento, consola-se já
acomodando-se no seu sofrimento. O enternecimento é piedade que se compraz, um prazer, um
sofrimento transformado em felicidade — a volúpia» (Emmanuel Levinas, Totalidade e
Infinito, Lisboa, Edições 70, 2000, p. 238).
350
Cf. Octavio Paz, A Chama Dupla: Amor e Erotismo, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, pp.
46-52.
351
AP, p. 465. Manoel de Oliveira replica, nesta cena, a imagética da Pietà.
352
AP, p. 449.
353
Como explica Michel Deguy: «O elevado não ocorre sem o suporte do baixo, do
por-abaixo; a elevação fermenta a partir do baixo, que se faz esquecer no serviço que é o seu,
‘natural’, ao saber sustentar como um servo aquilo em que ele consiste e desaparece: o
110
356
Segundo as próprias palavras de Kant, o génio poético «ousa tornar sensíveis ideias
racionais de entes invisíveis, (…) transcendendo as barreiras da experiência, mediante uma
faculdade da imaginação que procura competir com o jogo da razão no alcance de um máximo,
ele procura tornar sensível numa completude para a qual não se encontra nenhum exemplo na
natureza; e é propriamente na poesia que a faculdade de ideias estéticas pode mostrar-se na sua
inteira medida. Esta faculdade, porém, considerada somente em si mesma é propriamente só
um talento (da faculdade da imaginação)» (Crítica da Faculdade do Juízo, op. cit., p. 220).
112
357
Longino, op. cit., p. 61.
BIBLIOGRAFIA
BIBLIOGRAFIA ATIVA
CORPUS PRINCIPAL
Amor de Perdição [1862], ed. crítica por Ivo Castro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2012.
Amor de Perdição [1862], ed. genética e crítica por Ivo Castro, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2007.
Amor de Perdição: Memorias duma Familia [1862], reprodução fac-similada do manuscrito,
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Assumpto de Educação, ...de Instrucção Primaria, ...[e de] Instrucção Secundaria. Segue
Diccionario Etymologico de Todas as Palavras Technicas provenientes das Linguas Grega
e Latina Trasladado a Portuguez por Camillo Castello Branco, e Ampliado pelo Traductor
nos Artigos Deficientes em Assumptos relativos a Portugal [Dictionnaire Universel
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grande número de livros raros, em diversas linguas, e muitos manuscriptos importantes, a
qual será vendida em leilão, em Lisboa, no proximo mez de dezembro de 1883, no local
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