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PETRARCA 700 ANOS

Coordenação de Rita Marnoto

INSTITUTO DE ESTUDOS ITALIANOS


FACULDADE DE LETR AS DA UNIVERSIDADE DE COIMBR A
Título: Petrarca 700 anos
Coordenação: Rita Marnoto
Tradução dos textos de Giulio Ferroni, Gian Mario Anselmi, Roberto
Gigliucci, Amedeo Quondam, Sylvie Deswarte-Rosa, Soledad Pérez-Abadín
Barro, Giulia Poggi e Giona Tuccini: Rita Marnoto
Edição: Instituto de Estudos Italianos da Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra
Série: “Leonardo” 3
Coordenação da Série “Leonardo”: Rita Marnoto
Design e produção editorial: FBA, Ferrand, Bicker & Associados
Impressão e acabamento: ??????????????
Data de edição: 2005
ISBN: 972-9038-81-3
Depósito Legal: ??????/05

Com o especial apoio da Fundação Calouste Gulbenkian


petrarca na poesIa portuGuesa
contemporânea

Fernando J. b. martInHo

nUM TRABALHO de 1974 (“petrarca esse primeiro moderno”, in


Arquivos do Centro Cultural Português, 7), pina martins sugeria como
limite da influência de petrarca e do petrarquismo “junto da poesia
lírica das literaturas nacionais” o século XIX. octavio paz, por sua
vez, num ensaio de 1993 sobre o amor e o erotismo (La Llama Doble),
fazia chegar aos anos 90 do século XX a tradição com origem na poesia
provençal, e destacada passagem em dante e petrarca. acerca deste
chegava mesmo a dizer que “quase toda a poesia europeia de amor
pode ser vista como uma série de glosas, variações e transgressões do
Canzoniere.” por seu turno, Jorge de sena, numa nota sobre petrarca
de 1971, escrevia, no seu jeito polémico: “a sua importância na cultura
ocidental durou séculos, e está longe de ter-se extinguido: ainda hoje
poetas petrarquizam, a única diferença, para pior, é que o ignoram.”
relativamente a portugal, teria sena inteiramente razão?
não sei se de todos se poderá dizer, como ele insinua, que são petrar-
quistas sem o saberem, como deleuze disse, de alguns autores ingleses e
americanos, que eram spinozistas sem disso se darem conta. nem isso terá
importância, porque, a certa altura, tão difícil se torna destrinçar os fios
da meada, que melhor é seguir outras vias menos presas à identificação
de fontes. o próprio sena fornece, a propósito, um excelente exemplo: os
sonetos de As Evidências, de 1955, alguma coisa deveram aos 35 Sonnets
de pessoa, os quais, por sua vez, a crítica inglesa não deixou de associar a
shakespeare, eminente representante do petrarquismo na poesia inglesa
do seu tempo, e, assim, chegamos, por ínvios caminhos, a petrarca… ou
não reconhecem um eco da sua sortílega música neste soneto?

amo-te muito, meu amor, e tanto


que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.
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o corpus que defini abrange um arco temporal que vai de 1930 ao


ano um do novo milénio, tendo Álvaro de campos no seu ponto de
partida e chegando a um poeta revelado nos anos 90, pedro mexia. de
campos já se conhecia a “nota ao acaso” (in Sudoeste, 3, novembro de
1935), onde petrarca era usado para agredir camões, pondo em causa a
“sinceridade intelectual” deste e a sua subordinação às convenções da
época. menos conhecido é um poema do mesmo campos, de Julho de
1930, e onde petrarca já era citado (Poesia, ed. de t. r. lopes, 2002).
o texto em questão pertence à fase de um campos céptico, se não
mesmo cínico. o heterónimo assume aí a pose de um homem desmis-
tificador das aparências com que a vida nos ilude, e que dá conselhos a
um interlocutor jovem sobre o “sexo oposto”, para concluir que “tudo
é literatura” e que “não somos senão fantasmas de fantasmas”. a lição
dada vai, por um lado, no sentido de salientar que não chegamos a viver
autenticamente, que tudo nos vem “de fora”, e que, sob o império da
literatura, nem sequer seremos “páginas aplicadas de romances”, mas
apenas “traduções”, e, por outro lado, ela toma a forma de convite a
uma total imersão na vida:

arregace as mangas da camisa civilizada


e cave terras exactas!
mais vale isso que ter a alma dos outros!

o tom condescendente dos conselhos dados não é isento de ironia.


e petrarca, que no texto da Sudoeste surgia a pretexto das convenções
que se substituem à “sinceridade intelectual”, representa aqui o domí-
nio da literatura a que tudo se reduz e que se exerce mesmo no seu
desconhecimento:

você sabe porque está tão triste? É por causa de platão,


que você nunca leu.
e um soneto de petrarca, que você desconhece, sobrou-lhe errado,
e assim é a vida.

no texto de pedro mexia (Paráfrase, Avalanche, 2001), não é me-


nor o peso da ironia. tal postura é, aliás, comum nos poetas mais
jovens, muito conscientes de terem chegado tarde de mais à lite-
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ratura, que consideram com um olhar desprendidamente irónico.


o poema é uma paródia do exercício escolar a que o título alude.
acompanhamos, na sua leitura, exactamente a descrição da pará-
frase de um poema de que, ironicamente, nada mais temos do que
essa mesma paráfrase. petrarca, presença familiar em tais práticas
da instituição escolar, sobretudo quando se trata da abordagem de
textos canónicos dos períodos de maior incidência petrarquista,
surge com total verosimilhança num contexto de confirmação de
saberes própria do tratamento institucional dos textos ao nível menos
problematizante:

este poema começa por te comparar


com as constelações,
com os seus nomes mágicos
e desenhos precisos,
e depois um jogo de palavras indica
que sem ti a astronomia
é uma ciência
infeliz.
em seguida, duas metáforas
introduzem o tema da luz
e dos contrastes
petrarquistas que existem
na mulher amada,
no refúgio triste da imaginação.
a segunda estrofe sugere
que a diversidade de seres vivos
prova a existência
de deus
e a tua, ao mesmo tempo
que toma um por um
os atributos
que participam da tua natureza
e do espaço criador
do teu silêncio.
uma hipérbole, finalmente,
diz que me fazes muita falta.
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a paródia é também um elemento fundamental no poema de


alexandre o’neill dos fins dos anos 0, Aos vindouros, se os houver
(De Ombro na Ombreira, 199). aqui, ela incide concretamente
sobre o soneto de abertura do Canzoniere, “voi ch’ascoltate in rime
sparse il suono” (cf. rita marnoto, “o primeiro moderno”, in JL,
3 de março de 2004). a o’neill, o que lhe interessa é exorcizar,
pela ironia, as ansiedades e os temores de uma época que, no meio
do aparente domínio da ciência e das tecnologias mais avançadas,
faz a experiência da sua irremovível “falha”, e duvida, afinal, do
seu futuro:

vós, que trabalhais só duas horas


a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras
na gandaia, pois tendes uma ética;
que do amor sabeis o ponto e a vírgula
e vos engalfinhais livres de medo,
sem preçários, calendários, pílula,
jaculatórias fora, tarde ou cedo;
computai, computai a nossa falha
sem perfurar demais vossa memória,
que nós fomos pràqui uma gentalha
a fazer passamanes com a história;
que nós fomos (fatal necessidade!)
quadrúmanos da vossa humanidade.

É em nome de uma reivindicação dos direitos do corpo que,


por seu turno, cesariny, sempre pronto a submeter à irrisão e à
paródia os mitos maiores e menores da nossa tradição cultural, põe
em causa as visões idealizantes por ela transmitidas, servindo-se
dos exemplos de dante / beatriz, petrarca / laura, num texto de
Planisfério e Outros Poemas, de 191, Passagem do anti-mundo Dante
Alighieri:

e que quer dizer isso de amor só amor?


partes alíquotas de dois na cama
que dante nunca viu aos pés de beatriz
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petrarca também não ao pescoço de laura


[...]
tudo isso são histórias de encarregados
que andam a ver se não pagamos a conta
se damos sem vencimento a letra antiga
marcada a hebraico na carcela da história
são contos miseráveis de miseráveis
com vinte e cinco séculos de ódio ao corpo
o único transporte navegável
a única matéria que se aguenta
e aguenta
com dentro dele a linfa que varre tudo

duas décadas antes de o’neill, compusera carlos Queiroz, pro-


vavelmente com conhecimento da Posteritati de petrarca, Epístola aos
vindouros (Epístola aos Vindouros e Outros Poemas, 1989), suspeitosa,
como frequentemente acontece na modernidade literária, da moder-
nidade científica e tecnológica:

Fomos as vítimas inglórias


da infância das técnicas.

Queiroz pode não ter lido a carta de petrarca; o que seguramente


leu foi La jolie rousse de apollinaire, como o mostra o final do poema
apelando para a indulgência dos vindouros:

assim pensando em tudo isto


(e no mais que vereis à transparência
das lágrimas contidas nestes versos),
Ó felizes vindouros:
Quando a calma cristã dos vossos lares
em tædium vitæ se transforme
e vos inspire a nostalgia
desta época atroz da infância das técnicas,
orai por nós, orai por nós, orai por nós!
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nemésio, por sua vez, no melhor da desenvoltura que pôs nos ver-
sos da velhice, em Limite de Idade, 1971, cita expressamente petrarca,
acompanhando-o do seu mais conhecido continuador entre nós, num
desenfadado devaneio estival entre “praia e pinho”:

[...]
enevoado lá fora, preocupado cá dentro, ainda mais dentro metabólico,
veraneando a taxímetro na saudade de ilhas pelágicas,
com a coroa asterídea dos meus oito netos na cabeça
e – sobre tudo isto – velho e tolo pela esperança:
Que não é sensato esperar de nada alguma coisa
mas só de morte fiar puro perdão de deus,
entre pinhas reais e afonso lv, dinis II,
com um búzio e uma vieira – or piango or canto – muito fina,
por conta de camões e um pouco de petrarca,
devendo aliás chorar muito mais do que canto
e calar a buzina!

uma das epígrafes de Os Quarenta e Dois Sonetos, de pedro


tamen, coloca-nos problemas interessantes. É um divertimento,
em forma de diálogo, de José bergamín, no qual figuram petrarca
e laura, envolvidos num jogo em que, despidos de qualquer aura,
respondem a perguntas feitas por um professor. a que vem, então,
a desmitificação de dois dos símbolos maiores da lírica amorosa,
e num livro em que, precisamente, o amor é o tema dominante?
para que leitura nos estará o poeta a preparar? lembremo-nos das
palavras de paz que, no princípio, destacámos, e onde defendia que
quase toda a poesia de amor europeia podia ser vista como uma
série de glosas, variações e transgressões do Canzoniere. tamen
terá querido lembrar que, não obstante a irremediável distância de
petrarca, marcada pelo registo paródico que pede de empréstimo a
um escritor mais perto de si, o autor do Canzoniere é uma referência
incontornável, e, ademais, num livro dominado por uma forma e
uma temática indissociáveis do poeta de arezzo. basta ler um dos
sonetos, para nos darmos conta de que este poeta tão exímio em
conceptualizar as subtilezas e os paradoxos do amor e tão propenso
à expressão complexificante, alusiva dos sentimentos, leu petrarca
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e outros que, ao longo dos tempos, se deixaram seduzir pelo sor-


tilégio do seu canto:

Quase não querer-te é querer-te ainda mais:


se tudo baixa e funde sobre mim,
não saibamos de donde ou quando sais
nem porque chegas ao chegar ao fim,
ou se outras horas de manhãs de lume
te dirão tudo ou al que eu não diria.
sou um homem pequeno que resume
o minuto capaz como uma estria
que risca o mundo para sempre sal
e fazedor de um ar sempre perfeito:
que nunca mais, amor, verás o mal
e o bem que muda o mar e o seu jeito
de vir ou de ficar neste sinal.
e eu, quanto mais quero mais aceito.

ora é precisamente no soneto que iremos encontrar alguns dos mo-


mentos mais felizes do diálogo da poesia portuguesa contemporânea
com petrarca. aí, ocupa um lugar de relevo david mourão-Ferreira,
que incluiu na edição da sua Obra Poética, em 1988, a abrir um con-
junto inédito, uma Fala apócrifa de Camões. camões recomenda aos
que o lêem que o procurem, não nos acidentes da biografia ou nas
consagrações oficiais que a posteridade lhe fez, ou nas discussões à
volta da edição da sua obra, mas na dimensão essencial da sua vida,
a que viveu em diálogo com os seus autores de cabeceira. só a esses,
contou “por seus amigos”. curiosamente, os cinco autores citados,
virgílio e ariosto, petrarca, bembo e Garcilaso, repartem-se enquanto
modelos da poesia épica e lírica camoniana, respectivamente. não
por acaso, entre aqueles com quem manteve trato íntimo na lírica,
encontram-se duas das figuras maiores do petrarquismo, bembo e
Garcilaso. embora não seja dos exemplos mais notórios de textos
em que, dando a fala a outro poeta, o autor acaba por falar de si
mesmo, vê-se que mourão-Ferreira, grande conhecedor da tradição
literária ocidental, estava bem familiarizado com as tradições que
os poetas citados representam, e nomeadamente com a que tem o
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início em petrarca. leia-se o Soneto do Cativo de Os Quatro Cantos


do Tempo, de 1958:

se é sem dúvida amor esta explosão


de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias,
tão longe da verdade e da invenção;
o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que os outros dirão ou não dirão;
se é sem dúvida amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;
não há dúvida, amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!

se mourão-Ferreira aqui petrarquiza, é essencialmente por via do


relevo que no soneto têm os temas das contradições e da prisão do amor,
para além do inexcedível cuidado posto na construção do poema e da
agudeza com que nele é desenvolvido o argumento. mas, mais uma vez, é
impossível esquecer, como sempre acontece com os poetas portugueses
contemporâneos petrarquizantes, que eles leram petrarca só depois de
terem lido camões. e o eco deste é, a vários níveis, bem sensível no
soneto: tudo, afinal, é integrado, de forma individualizada, no universo
poético do próprio david. lembremos que um dos temas maiores da
sua poesia é o amor, como logo punha em evidência a epígrafe de dante
do primeiro de Os Quatro Cantos do Tempo, “tutti li miei penser parlan
d’amore”, e que, contrariamente à tradição platonizante tão enraizada
na lírica portuguesa, a poesia amorosa de david é uma poesia de cele-
bração do corpo, não só dos sentimentos, mas também dos sentidos e
das “sensações”, como vemos no Soneto do Cativo.
num outro poeta da geração de 50, alberto de lacerda, encontramos
idêntico fascínio pelo que chama a “forma sumptuosa / austera e nobre”
do soneto, num livro impresso em veneza nos começos dos anos 90 e cujo
título, Sonetos, não podia ser mais austero nem mais elucidativo quanto
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à celebração da mais célebre das formas fixas. num dos 147 sonetos do
volume, o 113º, alude o poeta ao nascimento da forma na sicília e a um
dos poetas que tiveram um papel preponderante no seu surgimento,
Jacobo da lentini, e nesse mesmo texto sobressai um dos motivos que
mais associamos à tradição petrarquista, o da “chama”, do “fogo” do
amor, aquele que Gaspara stampa fixou na fórmula “arder amando”.
noutro poema, o 2º, o poeta toma como confidente da “tortura” causada
pela “ausência” do ser amado a terra natal de petrarca, arezzo:

ai, arezzo, palavra diamantina,


ouve a música escura da saudade
ouve a tortura pura antiquíssima:
ausência criando outra eternidade

mas em nenhum outro lugar se ouve tão distintamente a “música


escura” do petrarquismo como naquele soneto em se tematiza a “bár-
bara contradição” que abala o coração:

meu coração, por que te contradizes?


porque és contradição apaixonada.
tanto acusas e louvas ou desdizes
como te fechas num horror cercado

mas um dos momentos culminantes do uso do soneto na poesia


portuguesa contemporânea têmo-lo numa colectânea de manuel alegre
publicada em 1993, Sonetos do Obscuro Quê. poeta muito consciente
da sua inserção na tradição poética ocidental, manuel alegre procede
aqui, sob o impulso tutelar de dante, como ele poeta do exílio e da
errância, à revisitação de alguns dos momentos e vozes cimeiros desse
legado, que inclui também a contemporaneidade. a presença de dante,
glosado, epigrafado, aludido, não impede que o poeta dialogue com
outras vozes, nomeadamente com outras duas igualmente responsáveis
pela consolidação do soneto, Guido cavalcanti e petrarca. o eco deste
último, o ponto mais alto de toda uma tradição que, deliciada e inter-
minavelmente, teoriza os paradoxos do amor, é bem audível no terceto
de fecho de Teoria do amor, não sem que antes, contraditoriamente, o
poeta se mostre sensível às irrecusáveis sugestões do antipetrarquismo:
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amor é mais fazer do que dizer.


por amor no teu corpo fui além
e vi florir a rosa em todo o ser
fui anjo e bicho e todos e ninguém:
como bernard de ventadour amei
uma princesa ausente em tripoli
amada minha onde fui escravo e rei
e vi que o longe estava todo em ti.
beatriz e laura e todas e só tu
rainha e puta no teu corpo nu
o mar de Itália a líbia o belvedere.
e quanto mais te perco mais te encontro
morrendo e renascendo e sempre pronto
para em ti me encontrar e te perder.

caberia ainda referir, neste contexto, as glosas de temas e moti-


vos do Canzoniere que orlando neves faz nos sonetos que constituem
a primeira parte de Nocturnidade, 1999, sob o título Epístolas a
Francesco.
poeta de uma família diferente da do seu coetâneo e amigo manuel
alegre, fazendo sua não a tradição do lirismo elevado mas a da auto-
-ironia e da suspeição sobre os grandes temas e a de uma linguagem
dessolenizada, Fernando assis pacheco cita, no original, dois ver-
sos de uma conhecida poeta do petrarquismo quinhentista italiano,
Gaspara stampa, num dos poemas da colectânea póstuma Respiração
Assistida, 2003. a desenvoltura do poeta fica logo patente no título do
texto (Sacado da Gasparina), com o uso desinibido do calão e a fami-
liaridade com que se refere à poeta quinhentista. por detrás do tom
displicente da sua lira, estava um poeta que era senhor de uma notável
cultura poética. dos dois versos que cita da Gasparina – apresentada
como “exemplo sublimado / [de] amante” na primeira elegia de duíno,
de rilke –, é indicada, em nota, a fonte bibliográfica. por outro lado,
torna-se evidente, não obstante a clave irónica sob que coloca o texto,
que assis pacheco está bem familiarizado com o código petrarquista,
como se vê pela referência às “almas namoradas”, aos tormentos, às
lágrimas e ao “fogo” de amor, e à sublimação de tudo isso que o canto
realiza:
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piangerò arderò canterò sempre


como fazem as almas namoradas
sobretudo em verso e mais as castigadas
pelos demónios que transportam dentro
o amor toca a todas as espécies
mas à humana muito em particular
desde os primeiros bípedes do afar
que supõe-se o enumeravam entre as febres
como ponta de cigarro no arvoredo
que se transforma logo em fogo basto
fica de ele passar só cinza mas
io d’arder amando non mi pento.

de composição um pouco anterior ao texto de assis pacheco é um


poema de manuel Gusmão incluído em Mapas o Assombro a Sombra
(1989-1993), 199, “Há o retrato dela por trás dele”, em que a memória
que associa laura e beatriz serve os propósitos de um universo poético
que faz da força alucinatória da “imagem” e da “imaginação” o seu
fundamento maior:

Há o retrato dela por trás dele.


É pois só a imagem
da imagem de laura que o atormenta. que vibra como
o halo do candeeiro
na imaginação
do amor.
o medo de a ter perdido antes de a ter encontrada.
a alucinação entretanto faz que o mundo venha até aqui.
a dois passos.
É no limiar que ela vem. e é a aura dela
que trémula a precede junto dele que estremece
na sombra do coração.
laura é a minha beatrice, he said.
ma io non sapeva. e ele olha para, como se
pudesse olhar para aqui. como se de aqui lhe pudesse
vir algum
socorro.
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a familiaridade com o código petrarquista é sensível em dois poe-


mas longos de Toda a Terra, de ruy belo, 197, dedicados à paixão
de Garcilaso por Isabel Freire, dama do séquito da Infanta d. Isabel
quando do seu casamento com carlos v. a consciência irónica das
convenções próprias do código faz mesmo com que eventualmente se
deslize para o antipetrarquismo:

eu procurava
[...] uma razão a única razão (e não sentimental como afinal o é)
a convenção que adopto de petrarquizar
neste meu verso aparentemente livre
mas no fundo apoiado no decassílabo
[...]

e chegamos a dois poetas revelados nos anos 80, que represen-


tam uma orientação típica do período, a de uma poesia que entra
desinibidamente em diálogo com o discurso da cultura. o primeiro,
luís Filipe castro mendes, alia a esse culturalismo um pendor clas-
sicizante que o leva a privilegiar não apenas o metro e a estrofação
regulares e a rima, como a recorrer a formas poéticas tradicionais.
num poema de Viagem de Inverno (Petrarca coroado no Capitólio –
1341), 1993, toma como tema um dos episódios mais relevantes da
biografia de petrarca: a coroação como poeta laureado no domingo
de páscoa de 1341, no capitólio, em roma. o texto assume, dentro
do esquema estrófico do soneto inglês, a forma de uma fala dos poe-
tas que reagiram mal à coroação de petrarca, a qual ocupa os três
quartetos, a que se segue, num dístico, a conclusão enunciada pelo
poeta-narrador:

“Que um só personagem tenha sido


de todos o eleito nos parece
abuso singular do dom divino
que não sabe entender a dura prece.
não nos interessa prémio nem castigo,
temos diante nós a eternidade.
Injusto nos parece tal destino,
que coroa assim a vã facilidade.
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príncipe dos poetas ele fora,


que numa só palavra saberia
trazer junto da terra nesta hora
quanto a memória sabe de alegria”.
assim falavam os demais poetas:
suas pobres palavras hoje desertas.

o poema acaba por conduzir a uma reflexão sobre os aspectos


menores da instituição literária, para o caso as rivalidades entre poe-
tas, e a vanidade dos esforços dos que, envolvidos nas intrigas do seu
tempo, querem a todo o custo impedir o reconhecimento da verda-
deira grandeza. digna de registo é a presença, na obra deste poeta que
tão deliciadamente se entrega ao jogo de fazer versos, de três triunfos,
que, todavia, pela reduzida dimensão e pelas suas opções estróficas, se
afastam do modelo petrarquiano e do forte investimento que o poeta
de arezzo nele pôs. transcreva-se, aqui, o que fez em homenagem a
um célebre romance moderno, Margarida e o Mestre do russo mikhail
bulgakov:

o corpo tens na alma oferecido


ao mais escuro lado da razão:
dissemos só palavras sem sentido,
mudámos o desejo em negação.
e fez-se do teu nome cinza rara,
versos com o rigor da exaustão;
a certeza da neve mais clara
a fustigar as árvores. e a mão,
adormecendo o tempo na cintura,
a deixar entrever tua loucura…

entre parênteses, registe-se o exercício que, em jeito de irónico digest,


José emílio-nelson faz a partir dos Triumphi, em I Trionfi (Excertos),
de Polifemo e Outros Poemas, 1983:

triunfa a Fama de plumas


Golpeando as armas do tríptico extenso,
animal que tolda o som épico.
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triunfa a eternidade sacra e luminosa,


rasga no azul o azul que persegue,
a convicção anterior, simpleza e
desproporção.
triunfa a castidade inacessível,
complacência que se estende
por frisos de trama para um tear
de bordaduras largas.
triunfa a morte no mosaico intenso
desdenha e intercala-se com personagens insípidas
a inculcar desígnios.
triunfa o tempo, músculo saliente
de um discóbolo, o portal do fogo.

o outro poeta enquadrável na orientação culturalista de alguma


da poesia do último quartel de novecentos é paulo teixeira, que,
no diálogo com figuras relevantes do mundo da literatura e das artes,
recorre com frequência, especialmente na primeira fase da sua obra,
ao monólogo dramático. o dar-lhes a fala, no caso dos escritores, não
pressupõe necessariamente por parte do poeta qualquer preocupa-
ção de mimetização estilística. usa, sim, paulo teixeira uma dicção
poética elevada, em contraste com alguma poesia imediatamente sua
anterior que aposta numa linguagem mais coloquial. as personagens,
surpreendidas num momento capital ou de crise da sua existência,
aludem a episódios ou circunstâncias do seu percurso biográfico, que
requerem, para a consecução do processo comunicativo, a cooperação
de um leitor informado. em A Região Brilhante, de 1988, encontramos
um poema em que é petrarca que toma a fala, dirigindo-se a laura, ao
saber da sua morte em parma, em maio de 1348. a voz que chega até
nós dá não apenas expressão à dor irreparável causada pela morte da
mulher amada, mas também a um contraditório sentimento de frus-
tração de quem, pela desmedida idealização desse amor, renunciou,
afinal, a viver:

Já o azul das alturas se abate sobre a terra


como a tua mão, outrora, no ventre como um monte
adormecido. eu, fazendo da solidão e do ócio
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um rito quase monástico, em que divino e humano


desejando-se se receiam para sempre, caminhando
vou com passos ineptos na luz desse rosto
uma vez entrevisto e logo desvelado pelos abismos.
no calor suportado de uma vida que em si guarda
um coração encimado por neves não enternecidas:
os versos oferecidos a uma mulher (stilnovisti / come gli altri) menos
que as outras odiada.
ao mundo agrada um sonho rápido como o meu.

vasco Graça moura, que se inclui igualmente na tradição do


poeta culto, deu-nos recentemente a ler, na sua totalidade, as Rimas
de petrarca. num poema de A Furiosa Paixão pelo Tangível, de 1987,
O Desgaste das Imagens, começa por fazer, com irónico desrespeito,
referência a laura e beatriz como duas imagens que, para nosso alívio,
se apagaram e que, pelo desgaste a que foram submetidas, se tinham
tornado “insuportáveis”. então, vasco Graça moura não adivinhava
certamente que viria a traduzir petrarca, nem dante, diga-se de pas-
sagem, embora já averbasse na sua bibliografia traduções de shakespeare,
enzensberger e Gottfried benn. mas nisto de traduções, e no que
permitem deduzir acerca das afinidades e famílias poéticas de um
autor, não andamos longe do que John ashbery disse, um dia, a pro-
pósito das influências: não somos nós que as escolhemos, mas elas que
nos escolhem. e alguns anos depois da saborosa diatribe sobre laura
em A Furiosa Paixão pelo Tangível, vemos Graça moura incluir petrarca
na lista dos seus “mestres”, na “nota final” dos Poemas Escolhidos,
onde, de resto, não custa imaginar, há longos anos já devia figurar.
perto do fecho dessa nota, escreve o poeta que “nunca nada é inteira-
mente nosso”. É entre essa salutar constatação e o gesto de pôr a par
na sua bibliografia poética o alheio e o próprio, que há que situar a
aventura poética de um autor que não cessa de nos surpreender e que
no que faz deixa perceber que pertence à estirpe daqueles “que inven-
tam a poesia […] / como radical abalo do mundo”.

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