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VIAGEM POR UM SÉCULO


· DE LITERATURA
PORTUGUESA 1
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à VOLTA DA LITERATURA
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RELÓGIO D'Á GUA
O REALISMO

« Por esse mar de fogo viajando!»


João de Deus

Aí por meados do século XIX corria pelas ruas de Lisboa, 0 · 1.~. 0


levando atrás de si um bando de crianças que o apupavam, n"'l\
um velho de barbas brancas. Era, tal como no-lo recorda o
historiador Oliveira Martins (1845-1894 ), o sebastianista.
Ainda vivo na pessoa desse velho excêntrico, o mito do rei-
-infante que havia de voltar na manhã de nevoeiro para res-
suscitar o esplendor pátrio-atingia talvez o seu estertor. A ge-
ração que dava os primeiros passos no momento em que o 1
romantismo chegava ao fim (a sua grande figura literária, e.cf
Almeida Garrett, morre em 1854), e que teria na década decfo, '
72_ os vinte anos, preparava-se para enterrar o tugal anti- d-9-
go, fixan o ~s o os na lição europeia. Passara o período das /\O
«viagens na minha terra» que correspondeu ao regresso do
exílio e à redescoberta de um país longamente inacessível
para o espírito do nosso intelectual. Agora, tratava-se de fa-
zer pro~~.:Iir esse espírito na direcção daquilo que era identi-
Nuno Júdice
?')
•J' ficado com _o progresso e a civilização: Paris, de onde vinha
\~ tudo o que era necessário para alimentar a curiosidade dos
estudantes que, em Coimbra, não suportavam já o discurso
bafiento dos lentes debitando a lição do Direito e da escolás-
tica.
Nesses bancos, sentaram-se Eça de Queirós ( 1845-1900),
Antero de Quental (1842-1891), Guerra Junqueiro (1850-
-1923), João de Deus (1830-1896), Teófilo Braga (1843-
-1924) ... Aí aprenderam a crítica ao poder, uns, a arte dos
versos, outros - de tal modo que o curso ficava para depois,
chegando João de Deus a dizer que demorara a concluí-lo
tantos anos quantos os gregos tinham passado no cerco de
Tróia. Eça, recordando Coimbra, escreveu:

«Cada manhã trazia a sua revelação, como um sol que fos-


se novo. Era Michelet que surgia, e Hegel, e Vico, e
Proudhon; e· Hugo tornado profeta e justiceiro dos reis; e
Balzac com o seu mundo perverso e lânguido; e Goethe vas~.·
to como o universo; e Poe, e Reine, e creio que já Darwin, . _e
quantos outros!»

O mimetismo em relação à experiência estrangeira leva um


Antero de Quental a, sucessivamente·, querer alistar-se no
exército de Garibaldi e a acalentar o projecto de ser guarda
pontifício.. . Um crítico deste frenesi cosmopolita apontou o
absurdo de aparecerem jovens nascidos em famílias exempla-
res que, só por terem lido num autor francês uma afirmação
blasfema em relação à mãe, se apressavam a escrever sonetos
pondo em causa a virtude dos seus ascendentes. Ou, como es-
creveu um seu contemporâneo, Anselmo de Andrade:

«Havia pouco tempo que Proudhon tinha escrito que Deus


era o mal, e essa frase célebre, repetida inconscientemente
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por muito boa gente, era · ela divisa ímpia e demagógica


dos blasfemadores do Cenácui~

O Cenáculo era o nome que se dava à casa coimbrã de An-


J tero; e que, algum tempo e uma licenciatura decorridos, bap-

!
tizaria o grupo de Lisboa a que se juntou Batalha Reis e que,
como realização máxima, deu origem a um poeta satânico:
Fradique Mendes. Foi o personagem de um folhetim semipo-
licial publicado por Eça Ramalho Ortigão num jornal: O
mi§.Mrio da Estrada de Sintra; foi_ o mais fiel discípulo d~
Charles Baudelaire, escrevendo pela mão de Antero, de Bat<il-
11.!_a Reis e, até, de Eça, poemas ímpios e de uma sensualidade
perversa; foi, finalmente, um he.ter.óninlo_do_próprio Eça, que
lhe escreveu a Correspondf ncj4, _dele..f.az_enclo...mn-pi:eGYrsor
- -----
lusitano_d_e Des Esseintes.
Foi, sobretudo, o primeiro exercício a que essa geração se
dedicou no trabalho de modificar o gosto piegas do romantis-
mo. Eça prolongará essa actividade nas caricaturas que per-
correm os seus romances, sendo uma das mais conseguidas o
Tomás de Alencar de Os Maias, em quem se reconhece o lí-
dco Bulhão PaloT[829-1912), mais conhecido hoje pela sua
receita de amêijoas do que pela Paquita. Mas Eça também
não poupa os amigos: e é Antero que podemos ver retratado
no poeta messiânico e revolucionário Damião, em A Capital
e.

- que, de resto, não verá nunca a luz do dia em vida de Eça.


Um pudor - ou consciência dos limites a que a mistura de
vida e ficção obriga - reteve o romancista aqui, como na
«Batalha do Caia», novela inacabada em que se assistiria à
invasão do País pelos espanhóis, praticamente sem resistên-
cia. O romancista terá pensado que tão apocalíptica visão do
estado moral da nação lhe poderia trazer problemas - tanto
mais que a sua profissão de diplomata aconselhava prudência
em tão melindroso assunto. Recentemente, Mário Cláudio to-
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ma este episódio como tema de um romance (A Batalha do


Çaia, 1995).
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Mas não se pense que Eça hesitou perante a crítica de cos-
tunies, quer se tratasse do clero, em O Crime do Padre Ama-
ro~ .quer da burguesia, em O Primo Basílio, versão lusitana da
Madame Bovary. Acrescente-se a isto a crítica impiedosa das
instituições que Eça e Ramalho Ortigão fizeram na publica-
ção As Farpas: e teremos sem dúvida um quadro negro da
sociedade a caminho do fim do século.
Eça, de qualquer modo, acaba por corrigir o tom na fase fi-
nal da sua obra. Quer porque o exílio a que a profissão o
obrigava abrandasse o seu sentimento crítico, quer porque a
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idade lhe desse uma visão menos negativa, o que é certo é
/' que A Cidade e as Serras e A !lustre Casa de Ramires re2re-

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sentam uma reconciliação com Portugal - já não, em todo o
caso, o Portugal de Lisboa, símbolo de um poder que repre-
sentava a estagnação e o vício, mas o campo, o Portugal das
: quintas e das virtudes ancestrais onde o homem corrompido
i; pela civilização
,,
se revigora e, até, adquire ânimo para partir
para Africa, procurando refazer o percurso da Idade de Ouro
dos Descobrimentos.
Bem diferente é a personalidade de Antero, e diverso o ru-
mo da sua vida. Tudo, nele, é dividido: desde a vocação, que

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oscila entre a poesia, a revolução e a filosofia, numa conci-
liação difícil entre o inspirado lírico. de sonetos por onde per-
passa o sopro dos românticos alemães de que foi leitor e tra-
dutor (sobrevivem passagens do Fausto e de A Balada do Rei
de Tule de Goethe, entre outros poemas), o introdutor da In-
ternacional, recém-criada por Marx, no nosso país e a ambi-
ção especulativa de produzir um sistema filosófico capaz de
responder aos anseios da nova época.
, O que sobrevive, acima de tudo, Nela Antero
~/ deixa um diário espiritual do homem que sofreu os perca!-
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ços de uma existência nómada, em parte determinada pela


depressão psíquica, que só encontrou repouso por curtos ins-
tantes. Ainda se consegue estabilizar num período longo em
que vive em Vila do Conde, de 1881 a 1891. Neste ano, des-
faz a casa, parte para os Açores e, uma noite, põe fim à vida
com dois tiros, sentado num banco de jardim em Ponta Del-
gada.
Os contemporâneos chamaram-lhe santo, talvez devido à
sua existência celibatária e sem outros compromissos que
não fossem os i~eais do espírito e a poesia. Foi, também, o
emblema mais puro dessª-&eração que~_erg_ueu quixotesca- e-:;
mente contra o moinho de vento da inércia Eortuguesa, sa-¼ .
bendo quÍ! esse combate não tinha triunfo ~ossível. Por isso CÍq¾
se autodesignaram «os vencidos da vida». O único que sabia 0; .
o que queria, Antero, falou para surdos ao pronunciar a sua ctq
conferência sobre as «Causas da decadência dos povos pe-
ninsulares» que, lucidamente na sua óptica, o Governo da al-
tura proibiu:

«Que é pois necessário para readquirirmos o nosso lugar


na civilização? Para entrarmos outra vez na comunhão da
Europa culta? É necessário um esforço viril, um esforço su-
premo: quebrar resolutamente com o passado. Respeitemos a
memória dos nossos avós: memoremos piedosamente os ac-
tos deles: mas não os imitemos. Não sejamos, à luz do século
XIX, espectros a que dá uma vida emprestada o espírito do
séc. XVI. A esse espírito mortal oponhamos francamente o
espírito moderno. Oponhamos ao catóiicismo, não a indife-
rença ou uma fria negação, mas a ardente afirmação da alma
nova, a consciência livre, a contemplação directa do divino
pelo humano (isto é, a visão do divino e do humano), a filo-
sofia, a crença no progresso, na renovação incessante da hu-
manidade pelos recursos inesgotáveis do seu pensamento,
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sempre inspirado. Oponhamos à monarquia centralizada,


uniforme e impotente, a federação republicana de todos os
grupos autonómicos, de todas as vontades soberanas, alar-
gando e renovando a vida municipal, dando-lhe um carácter
radicalmente democrático, porque só ela é a base e instru-
mento natural de todas as reformas práticas, populares, nive-
ladoras. Finalmente, à inércia industrial, oponhamos a ini-
ciativa do trabalho livre, a indústria do povo, pelo povo e pa-
ra o povo, não dirigida e protegida pelo Estado, mas espontâ-
nea, não entregue à anarquia cega da concorrência, mas orga-
nizada duma maneira solidária e equitativa, operando assim
gradualmente a transição para o mundo novo industrial do
socialismo, a quem pertence o futuro.»

Em 1871, ainda sob a ressaca dos acontecimentos da Co-


muna de Paris, estas palàvras não podiam senão cair sob a
suspeita de uma autoridade que, no entanto, só se veria seria-
mente abalada quase duas décadas depois, em 1890, quando
a Inglaterra impõe um ultimato vexatório para que Portugal
abandone a pretensão de soberani~ sobre território sul-africa-
no reivindicado igualmente pela Coroa britânica. A «crise do
ultimato», como ficou conhecida, provoca um levantamento
nã ciona[ A estátua de Camões é coberta de crepes; os repu-
blicanos lideram a contestação à monarquia; e forma-se a Li-
ga Patriótica do Norte, que entrega a sua presidência a Ante-
ro, naquele que será o último acto de intervenção cívica do
)
) poeta. ·
O tempo está para outros. Não é o lírico dos Sonetos que
poderia intervir no jogo político, no qual germinava a revolta
que desembocaria no duplo regicídio do rei e do herdeiro, em
1908, e na revolução republicana de 1910. A voz que ressoa
na praça pública é a de Guei:i:a-JY-QqJJeiro, igualmente um
companheiro de Coimbra e, também, discípulo de Victor Hu-
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go e de Baudelaire. Na sua poesia surgem alguns dos grandes


temas ideológicos da luta antimonárquica e anticlerical: a de- O I
generescência da «raça» dos Braganças, tratada no poema~ •
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«Pátria», responsabilizada pela decadência política do país,


ou a boçalidade de uma Igreja cujos membros são apresenta-
dos, em A Velhice do Padre Eterno, como criaturas ignoran-
tes e sensuais guiando as massas atrasadas à maneira de reba-
nhos. Assim, Junqueiro constrói um monumento destinado a
indicar ao público a direcção do futuro, como o braço esten-
dido da Liberdade de Delacroix guiando o povo sobre as bar-
ricadas
.,
.
E, no entanto, análogo ao de Eça o percurso de Junqu_go.
Com efeito, passado o período panfletário dos poemas so-
ciais e ideológicos, o poeta volta-se para um lirismo de raiz
bucólica, em «Os Simples», terminando mesmo por dois
poemas que roçam o misticismo religioso: «Oração ao pão» e
«Oração à luz». Se há um desencanto subjacente à interven-
ção política, o factor determinante para essa mudança de ru-
mo é, antes, o esgotamento formal do romantismo - e nes-
ses últimos poemas líricos há, já, uma adaptação aos novos
timbres do fim de século, com o recurso a uma visão messiâ-
nica da natureza·que se encontra, igualmente, em Raul Bran-
dão (1867-1930) e em Teixeira de Pascoae~ (1877-1952) de
__
um modo ainda_ mais. afirmativo.
-

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