Você está na página 1de 134

O Poema do Cid

Rua Sylvio Rebelo, nº 15


1000 Lisboa
Tel: 8474450 Fax: 8470775

Título Original: Cantar de Mio Cid


Título: O Poema do Cid
Versão em prosa da gesta castelhana do séc. XII,
por Afonso Lopes Vieirn
Prólogo de R. Menéndez Pidal
Capa de Fernando Mateus

© Relógio D'Água Editores, 1993

Composição e paginação: Relógio D'Água.


Impressão: Arco-Íris, Artes Gráficas, Lda.
Depósito Legal nº: 63 530193

1 ª Edição na Sociedade Editora Portugal-Brasil, 1929


Versão de Afonso Lopes Vieira

O Poema do Cid

Medievais
A m e m ó r i a d e D ona Carol ina M i c hael i s d e Vasconc e l os,
e s pírito s a p i e ntís s i m o e genti l íssima a l ma, cujo labor fo rte e
fo r m o s o segu rou, d i lato u o património L u síada: e m p e nh o r
d e grati dão i nd e l ével, p o r l e m b rança d e afe cto e saudade, o
C i d p o rtuguês é consagrado.
Bem-vinda seja esta primeira tradução portuguesa do P o e m a
d e M i o C i d que agora dá à luz o Sr. Afonso Lopes Vieira.
Quando este poema se cantou e admirou «por quão grande é
a Espanha», já a literatura galaico-portuguesa dava a ouvir as
suas cantigas, aos castelhanos, na corte do imperador Afonso VII.
Castela com a sua épica e Portugal com a sua lírica interpenetra­
vam-se desde esses remotos dias. A lírica galaico-portuguesa não
havia atingido ainda, contudo, o seu florescimento; este só ocor­
reu no século XIII, enquanto a épica castelhana culminava já no
P o e ma d ei C i d, a primeira obra-prima produzida pelas literatu­
ras peninsulares.
Bem faz o Sr. Afonso Lopes Vieira em voltar a divulgar em
Portugal o velho poema.
O Cantar d e M i o C i d foi escrito por volta de I 140, pouco
mais de 40 anos após a morte do herói, sendo todo ele composto
por personagens históricas e por episódios na sua maior parte

9
históricos também. Mas, apesar disso, o jogral soube dispor tão
artisticamente os dados da realidade e as tradições locais das
proximidades de Medinaceli (lugar onde escreveu, na fronteira
castelhana), soube elaborar tão poeticamente os intrincados
episódios da vida histórica e conceder-lhes uma unidade tão
simples, que o plano do poema foi geralmente elogiado, desde
que, em 1831, o doutíssimo hispanista F. Wolf o deu a conhecer.
Apesar da tão espalhada crença de que as obras medievais
carecem de estilo próprio e pessoal, o Cantar d e M io C i d é uma
obra de particular originalidade. Podemos constatá-lo detendo-nos
em alguns dos seus aspectos.
Por exemplo, a vingança, a paixão eminentemente épica a
par tir de Homero, é tratada de um modo muito especial no
cantar cidiano. Enquanto noutros poemas castelhanos, franceses
ou alemães, qualquer vingança sacrifica numerosas vidas em
matanças ferozmente sangrentas, o Poe ma dei C i d dá à vin­
gança que o Campeador obtém dos de Carrión um carácter de
simples reparação jurídica, mediante um duelo presidido pelo rei
e terminado, não com a morte e esquartejamento dos traidores,
mas com a declaração legal da sua infâmia.
É também habitual que as epopeias castelhana e francesa
elogiem o tipo de vassalo rebelde ao seu rei. O Cid, apesar das
necessidades da realidade o tornarem por vezes inimigo do
monarca que o desterrava e hostilizava, só surge no poema nos
seus aspectos de maior fidelidade; aparece como perseguido
injustamente pelo seu rei e sempre leal e generoso com o seu
perseguidor.
A epopeia medieval apreciava os episódios de violência, ofensa
e sangue, facilmente comovedores. No R o l a n d francês e de

10
acordo com o crítico belga L. de Monge, choca-nos a dureza dos
costumes, a fer ocidade, a intoler ância com os sar racenos,
enquanto no Po e m a d ei C i d sobressaem a humanidade, a
benignidade para com os vencidos, a amenidade, pelo menos
relativa.
Em resumo, em todos os aspectos o jogral do Cid obtém uma
nota excepcional na epopeia: a da moderação. Fiel a uma grave
concepção da vida e com admirável poder ar tístico, consegue
poetizar em elevado grau uma epopeia de guerras, inimizades e
vinganças, sublimando no seu herói a mais nobre honra e o mais
constante comedimento.
O M i o C i d não é apenas um p oema guerreiro com o a
C h ans on d e Rol and . Enquanto a Chanson francesa joga apenas
com personagens, cenas, ideias e sentimentos puramente feudais
e militares, o poema espanhol apresenta uma vida muito mais
variada: compõe episódios em que preponderam mul heres,
crianças, monges, burgueses, judeus, e todos eles nos mostram na
sua actividade a pacífica vida das cidades, o comércio nos
mercados, as despedidas, as viagens, os cumprimentos e alegrias
dos encontros, os casamentos, as reuniões íntimas, os ofícios
religiosos. A própria guerra é muito mais variada e interessante
no Poe m a d ei C i d do que em Roland .
Nesta complexidade de vida e neste carácter amplamente
humano o Cid é mais parecido com os N i b e l u ngos; mas apenas
nisso. A calculada disposição da obra espanhola contrasta com a
desordem da acção no poema germânico, cujos heróis gigantescos
se vão afundando uns aos outros num caótico fervilhar de mor te.
Por outro lado, na sua aparência externa e nos recursos poéticos
o poema espanhol distingue-se muito dos seus análogos; é mais

11
apagado e pálido que o Rol and ou os N i b e l ungos e com menos
efeitos. A sua forma poética é também menos ornamentada, pois
usa versos de medida irregular, com rimas assonantes.
Em resumo, a leitura do Poema dei C i d levar-nos-á a rejeitar
de imediato a ideia de uma escassa personalidade das primitivas
obras de arte. Apesar das profundas revoluções do pensamento
que medeiam entre as origens das literaturas europeias e a sua
época de esplendor, íntimas relações unem aqueles antigos
poemas às obras produzidas depois do Renascimento. O R o l and,
pela sua simplicidade esquemática, pela sua unidade de acção e
de tempo e esmero de apresentação, anuncia a clássica tragédia
francesa. O M i o C i d , pelo seu carácter mais histórico, por
procurar uma superior verdade artística abrangendo as com­
plexidades da vida inteira, e pela desatenção à forma, é o
precu r sor das o bras-primas da comédia espanhola. Os
N i b e l u ngos mostram na sua grandiosa desordem, tão cheia de
aspectos, o seu parentesco com as trágicas concepções shakes­
pearianas.

Do Poe m a dei C i d existem desde há algum tempo traduções


em numerosos idiomas, francês, italiano, alemão, sueco... Não
seria necessária uma tradução em português, por esta língua ser
tão semelhante à castelhana que os falantes de uma e outra se
entendem tão facilmente? Em parte assim é; mas, contudo, o ar­
caísmo do M i o C i d tem demasiadas dificuldades para ser com­
preendido por toda a gente; e se o poema pôde estar esquecido
quando a lenda do Campeador se divulgava nas suas formas
posteriores de crónicas e romances, agora, quando os tempos
modernos trouxeram a reabilitação dos produtos artísticos primiti-

12
vos, parece necessário pôr ao alcance de todos o Cantar do
século XII, para reatar a interpenetração originária das duas
literaturas a que antes nos referimos.
Por sorte quem empreendeu a tradução portuguesa foi o
ilustre escritor Afonso Lopes Vieira, admirado como artista que
soube apropriar-se de muitos e fecundos elementos poéticos de
épocas passadas, recriando-os, dotando-os de vida moderna.
Entre as o bras mais originais e formosas de Afonso Lopes
Vieira contam-se as que refazem concepções poéticas anteriores,
ou partem simplesmente de uma criação artística antiga para
fantasiar a partir dela a nova poesia. É desse modo que trata as
Cantigas de Afonso, o Sábio, dos Cancioneiros galaico-portugue­
ses, do Romanceiro português e castelhano, dos Exemplários ...
reimaginando a par tir das velhas invenções outras poesias
inteiramente modernas, pelas quais, na secular reanimação dos
temas po éticos (que é uma das características básicas das
literaturas peninsulares), o Sr. Afonso Lopes Vieira ocupa um
lugar muito eminente.
O R o m a n c e d e Amad i s é um trabalho de elevado mérito ar­
tístico e uma valiosa tentativa histórica em que, mediante prolixas
leituras e investigações de quatro anos, ajudadas pela visão divi­
natória do poeta, ele se propôs extrair da enorme massa de aven­
turas que compõem a última redoeção do A m a d i s castelhano
aquilo que se poderia considerar um núcleo primitivo da novela:
uma breve narrativa onde concentrou aquilo que na obra foi pri­
mitivamente português, os episódios mais directamente destina­
dos a sustentar o elemento lírico sentimental do amor que adora.
Por isso Afonso Lopes Vieira é poeta e também filólogo, como
o disse com exactidão Carolina Michaelis; poeta que cria, filólogo

13
que estuda, ama e compreende nos seus mais íntimos recantos a
beleza da antiguidade.
Depois de ter esmaltado a língua portuguesa com tantos ve­
lhos temas transportados para a sensibilidade moderna, empre­
endeu a dificil tarefa de traduzir o Poema d ei C i d. Ele, que à
semelhança de Afonso, o Sábio, costuma tratar liricamente os
temas narrativos, seguindo o inveterado hábito da língua galaico­
-portuguesa, defronta-se agora com uma narrativa puramente
épica, para a qual faltava a velha tradição.
O vocabulário português não se exercitou na narrativa heróica
durante e Idade Média; Portugal cantou o romance em caste­
lhano, e de acordo com a muito convincente teoria de Carolina
Michaelis, compôs a partir do castelhano não apenas romances,
mas também gestas e poemas. Não faltou, cer tamente, a
Portugal a excelente prosa das velhas crónicas, nem, chegado ao
Renascimento, o verso narrativo de uma grande obra-prima; mas
nada disso diminui a dificuldade de verter em português uma ges­
ta medieval. O Sr. Afonso Lopes Vieira teve de criar, em grande
parte, a expressão que faltava, teve que trabalhar, e não pouco,
para a tornar ingénua, afectuosa, enquanto primitiva; sóbria, ro­
busta, enquanto heróica; elegante, fluida, enquanto moderna. Na
sua tradução soube reunir a obrigatória fidelidade com a neces­
sária liberdade, para que a velha frase castelhana produza, nos
ouvidos portugueses de hoje, efeitos artísticos algo semelhantes
aos que produzia nos contemporâneos do jogral; a todo o instante
o poeta moderno procura interpenetrar-se activamente com o
primitivo: «ressurjo o que digo com palavras que sinto.»
A tradução, feita em prosa, está organizada de novo em capí­
tulos independentemente das séries assonantes do original caste-

14
lhano. Nesse aspecto separa-se das duas adaptações modernas
castelhanas devidas aos insignes escritores, Alfonso Reyes e Pedro
Salinas; um em prosa e o outro em verso, conservam ambos a
divisão da matéria narrativa de acordo com as séries assonantes
do original. Ao fazer desaparecer da sua prosa as assonâncias do
Poema, A fonso Lopes Vieira é levado a estabelecer uma nova
divisão de capítulos, tendo apenas em conta uma mais clara
distribuição dos acontecimentos narrados; mas, mesmo assim,
procura diversos modos de registar a divisão originária das séries;
assim, por exemplo, acrescenta as palavras «0 mouro continuou»
depois do verso 2680, para separar as duas partes de um discur­
so que o poema castelhano divide em dois assonantes diversos.
Entre as pequenas liberdades que se concedeu o Sr. Afonso
Lopes Vieira, notamos a supressão das séries gémeas em que o
jogral repetia com uma assonância diferente aquilo que acabava
de narrar de modo a realçá-lo liricamente. Com esta supressão o
texto português ganha em claridade, pois está numa prosa que
não pode pôr em relevo a assonância diferente. Apenas num ou
noutro fragmento de movimento mais lírico, como o do episódio
da afronta de Carpes, é que julgo que teria sido preferível con­
servar as repetições das séries gémeas, pois a prosa poética de
Afonso Lopes Vieira tê-las-ia acolhido muito bem.
Mas tudo isto são pormenores que só para informar o leitor
português me julguei na obrigação de referir. No resto, o próprio
tradutor adverte os seus leitores sobre a única alteração de
alguma importância que se permitiu fazer no texto. O velho jo­
gral, depois de contar como o Campeador obtém dinheiro em­
prestado de dois judeus de Burgos, esquece-se depois de nos
dizer como satisfez a dívida; refere apenas uma promessa,

15
quando os judeus pedem o pagamento: «Mas pelo que me fi­
zerdes, enquanto viverdes sereis ricos» e não se volta a falar do
assunto. Mas basta esta frase, para que não se possa de modo
algum, ver na omissão cometida pelo jogral um aspecto anti­
-semita, um desprezo pela dívida contraída junto dos dois he­
breus. Essa omissão é do mesmo género de outras em que in­
corre o jogral e todos os autores de poemas longos; mas o Sr.
Afonso Lopes Vieira fez muito bem em sanar o esquecimento, de
acordo com o Romanceiro.
Por tudo isto, e em síntese, não se pode senão elogiar a cor­
recção com que Afonso Lopes Vieira faz soar o primitivo poema
castelhano em língua portuguesa.
Era já tempo que as duas literaturas irmãs voltassem a apro­
ximar-se na G e sta d e M i o C i d. Quando, no século XII, este
poema foi cantado por Espanha, Portugal surgia como estado
independente; antes disso não tinha existência política, vivendo
unido ao próprio reino em que surgiu o Campeador de Vivar, que
foi admirado ao mesmo tempo por portugueses e castelhanos.
Nos tempos do herói viveu um importante português, Martim
Murioz, conde de Coimbra, governador de Montemayor y Arouca
que, sendo expropriado do seu condado em benefício do genro do
rei Afonso de Leão, marchou para Valência para guerrear nas
hostes do Cid. E, de acordo com esta realidade histórica, «Martim
Murioz, o que mandou em Montemayon>, foi nomeado pelo
poema ao lado do herói, tanto nas batalhas, como nas viagens e
nas cortes. Tal como na realidade, o Cid do poema não é um
herói exclusivamente castelhano, mas hispânico e, a seu lado,
esforçavam-se e adquiriam glória os cavaleiros de Aragão e os de
Portugal, tal como os de Castela, a Gentil.

16
E, no entanto, a literatura portuguesa não contava com uma
tradução do poema; o Cid que havia tido na sua vida de guerra o
companheiro português não o encontrava para a vida poética da
sua antiga gesta. A personagem das letras portuguesas, o Martim
M unoz épico, une-se agora ao coro épico do Campeador.
Portugueses e castelhanos saudamos agradecidos o Sr. Afonso
Lopes Vieira que entoa de novo a gesta do desterrado; e o Cid
sorri, exclamando uma vez mais: «Alvíssaras, Álvaro Fánez, que
desterrados nos vamos.»

R. Menéndez Pidal

17
ª a n d o e st e Ca nta r s e ouv iu, e stava Po rtuga l
p a ra n a s c e r. Po r é m o H i s p a n o h e r ó i que o P o e m a ce l e b ra e
re ce b eu a s a r m a s na S é d e C o i m b ra, tão vivo s e e rg u e u n a
g e st a , q u e a i n d a v i b r a . E nto a n d o p o r m i n h a v e z o C a ntar
é p i c o e belo cuj o s o m Po rtuga l es cutou n o berço e cuja a l m a
é ta m b é m Po rtuga l e sa, eu, j ogral d e h oj e , faço c o m o fiz e r a m
o s m e u s i r m ã o s d e out r o r a : - r e s s u rj o o q u e d ig o c o m
p a l av ras que s i nto.
!iL!r-ini/eir-r>,
c,a,n1:ar-
E n v i o u e l -rei D o m Afo n s o a R u i D i as, o Cid, a rec e b e r os
tr i b utos que e m cada a n o lhe pagava m os reis d e C ó r d ova e
d e S e v i l h a . À q u e l e te m p o A l m uta n i z , r e i d e S e v i l h a , e
A l m u d afa r, r e i d e G ra n a d a , q u e r i a m - s e m a l c o m o m o rta is
i n i m i g o s . E s tav a m c o m A l m u d afa r o c o n d e D o m G a rc i a
O rd ó ii ez e o utros s e n h o res caste l hanos: e este s e e l - re i d e
C ó rd ova foram-se con tra A l m u taniz. R u i D i as, q ua n d o s o u b e
q u e ass i m v i n h am s o b re e l - re i d e S evi l ha, vassa l o e tr i b utá r i o
d e e l - r e i D o m Afo n s o, s e u s e n h o r, h o uve-o p o r m a l , s e nti u
g rave p e sa r ; e p o r cartas rogou a todos q u e n ão p e l ejass e m
c o m Al m utan iz, n e m l h e destr u íssem a te r ra.
N ão c u i da n d o n o que as cartas p e d i a m , e l - re i d e G ranada
e os r i c o s - h o m e n s q u e o a j u d av a m fo r a m - s e m u i
e sfo rçada m e nte c o n tra e l - re i de Sevi l h a e d e s tr u í ra m - l h e a
te rra até ao caste l o d e Ca b ra.
I s to sa b e n d o, Rui D ias fo i-se a e l es, d e u - l h e s bata l h a q u e
d uro u d e s d e a h o ra d e te rça até a o m e io-d ia, fez gran d e m o r-

21
ta n da d e e m m ouros e c r i stão s da p arte d e e l - re i d e G ra n a d a
e , d e sbarata n d o - o s , os l a n çou d o c a m p o .
P r e n d eu Ru i D i a s ao conde D o m G a rc i a Ord ónez e a r­
ra n cou- l h e um pun h a d o das b a r b a s , as s i m c o m o p r e n d eu a
muit o s cava l e i ro s e a tanta out ra ge nte que não t i n h a c o nto;
e , d e p o i s que o s h ouve p r e s o s t rês d i a s , a tod o s m and ou
s o lta r. E n quanto àque l e s guardava cativos, o rd e n ou aos s eus
que r e c o l h e s s e m qua ntos h ave res e r i quezas hav i a m ficado n o
c a m p o, e d e a í to r n ou - s e c o m a h o st e e o d e s p oj o p a r a
A l mutan iz, re i d e Sev i l h a , a que m d eu, as s i m c o m o a e s s e s
m ouros, quanto r eco n h e c e ram p o r seu d e l e s , e a i n d a d o m a i s
q u e qui s e ram to m ar.
D e a l i e m d i a nte c h am ara m m ouros e c r i stãos a e ste Ru i
D ias d e B ivar - o Cid Campeador.
F ez- l h e A l muta n iz r i c o s d o n s e p agou- l h e os tr ibutos que
e l e v i e ra c o b ra r, com o s qua i s o C i d se to r n ou p a ra e l - re i
D o m Afo n so, s eu s e n h o r.
T iv e ra m muito s g ra n d e i nv e j a d e st e s feitos e bu s c a ra m
m a l q u i stá- l o c o m e l - re i , a que m d i s s e ra m que d o s t r i butos
r e c eb i d o s gua rda ra o Cid fa rtas r i quezas. Como e l - r e i e stava
muito i ra d o c o ntra o C i d , l ogo c reu n o s e n re d a d o r e s; e p o r
c a rtas l h e m a n d ou que s aí s s e d o re i n o.
C h a m ou o C i d a s eus pare nte s e vassa l o s; c o ntou - l h e s d e
c o m o e l - r e i o m a n d ava d e ste rrar, m a i s l h e n ã o d a n d o que
n ov e d i a s p a r a ir cum p r i r o d e ste r ro , e que que r i a s ab e r
qua i s i r i a m c o m e l e e qua i s s e fi ca r i a m .
- O s q u e v i e r e m c o m igo, b o m g ra d o h aj a m d e D eu s ! E
d o s que ficare m m e quero i r sat i sfeito.
Fa l ou p o r t o d o s Á lvaro Fán ez M i n aya, s eu p r i m o c o - i r m ã o :

22
- C i d , convosco i remos p o r e r mos e p ovoa d o s , j a m a i s
v o s fa ltare m o s e n q u a n to fo r m o s vivos, e s e m p re p o r l e a i s
vass alos n o s te reis.
A p rova ram to dos a q u a nto d i s s e ra Dom Á lva ro, e o C i d
ag ra d e c e u o q u e l h e a l i d isseram.
D e ixan d o e r m o e abandonado o palácio, vai m u dar-se d e
B ivar para Bu rgos o C i d ; leva o s o l hos c h e i o s d e l ágrimas e ,
vo l ta n d o a cabe ça, o l h a a s p o rtas abe rta s , o s postigos s e m
cadeados, o s p o l e i ros sem mantos n e m açores.
E n tão s u s p i ro u e , co m e d ido, d isse:
- G raças te sejam, Pad re e S e n h or que n o a l to está s ! I sto
me u rd i ra m tredos i n i m igos !

S o ltam as rédeas os cava l e i ros a cam i n h o d e Bu rgos e , à


saída d e B ivar, voo u - l h e s u m corvo à d extra, mas à e ntrada
em Bu rgos voo u - l h es o utro à s i n istra.
E n co l h e u os o m b ros o Cid e l evantou a cabeça:
- Alvíssaras, Á lvaro Fáfí ez, q u e deste r rados n o s vamos.
M as com gra n d e h o n ra to r n a re mos a Caste l a !
E n tra o C i d p o r B u rgos, c o m sessenta pendões a aco m pa ­
n há - l o. Para o v e r e m passar, saem m u l h e res e h o m e n s ; põe m ­
- s e às j a n e las b u rga l e s e s e b u rga l e sas, e ta n ta d o r s e n t i a m
q u e c h o ravam, ao passo q u e de todas as bocas saía a m e s m a
lásti ma:
- D e u s ! q u e b o m vassal o se h o uvesse bom s e n h or! . . .
To dos d e bom grad o o a l b e rgar iam, mas n e n h u m o u s ava:
gran d e e ra a san h a d e e l - re i Dom Afo n s o e a n te s da n o ite
c h egara a B u rgos a carta real q u e orde n ava n i ng u é m d e s s e
p o u sada ao C i d , sob p e n a de p e r d e r s e u s h ave res, os o l hos

23
d a ca ra, e mais o corpo e a al ma. A todos a dor afl igia, mas
cada um se s u m ia, s e m dar palavra.
E n ca m i n h o u - s e o Campeador para a sua pou sada, p o r é m o
m e d o cerra ra ta m b é m aq u e la po rta; q ua n d o os do Cid chama­
ram em altas voze s, n i ng u é m res p o n d e u . T i ra n d o o pé d o es­
tribo, o C i d fe ri u a p orta: mas a po rta, tran cada, não se a b r i u .
E n tão ace rco u -se u ma m e n i n a de n ove a n o s e fal o u - l h e ass i m :
- A i ! Campeador, em b o a h o r a c ingistes es pada! M as e l -
- re i man d o u q u e v o s n ão a l b e rgássemos e , se o fizé s s e m o s ,
p e rd e r íamos casas e h ave res, e m a i s os o l h os da cara. C i d , a
n ossa p e rda não vos daria re méd io. Q u e o S e n h o r D e u s vos
aj u d e com s u as vi rtu d e s santa s !
Ass i m fal o u a m e n i n a, e tor n o u a e n tra r em casa.
J á o Cid e n te n d ia q u e e l -rei l h e não pe rdoava. Partin d o - s e
dal i , atraves s o u B u rgos, c h egou a Santa M aria e d e scava lgo u .
D e j o e l hos, rezou c o m todo o coração.
Aca bada a o ração, pas s o u a po nte do Arla n ç o n e no areal
fi n c o u a s ua te nda.
R u i D i a s de B i v a r, o q u e em b oa h o ra c i n g i ra e s p a d a ,
aca m p o u e m areal de rio p o rq u e n i ng u é m o q u is acol h e r.
Ta l c o m o e m s e r ra b rava, e rod eado d e s u a c o m pa n h a ,
fi c o u o Cid Cam peador.

Tam b é m aos d e B u rgos e ra vedado ve n d e r comida ao C i d ,


e n i n g u é m o u sava ve n d e r- l h e u m d i n h e i ro d e la q u e fos s e .
M arti m Anto l f n ez, o l e a l b u rga l ê s , abastece-o e a o s s e u s
d e p ã o e d e v i n h o, do q u e todos se a l eg ram. E porq u e l h es dá
d o q u e l h e p e r t e n c e , em n a d a d e s o b e d e c e . E M a r t i m
Anto l í n ez d i sse ao C i d :

24
- O h Carnpeador, e m b oa h o ra nascestes! Re p o u s e m os
e s ta n o ite e abalemos d e madrugada, pois serei acu sado d e
v o s s e r v i r e a s a n h a d e e l - r e i m e a l ca n çará. S e c o n v o s c o
e s c a p o s ã o e v i vo, a i n d a c e d o o u ta r d e m e h á - d e e l - re i
re q u es tar a am izad e . S e não, a tud o o q ue de ixo l h e q u ero
m e nos que a um figo!
Respondeu o Cid:
- M a r ti m A n to l í n e z , s o i s b r avo c av a l e i ro ! S e v i v e r,
d o b ra r-vos-e i o s o l d o. M as b e m ved e s q u e n ão trouxe ou ro
n e m p ra ta, de q ue h e i m iste r para a m i n ha cornpanha; e, p o i s
d e b o m g r a d o os n ã o h ave r e i , to rná - l o s - e i p o r fo r ç a . C o m
vos s o c o n s e l h o q u e ro s e r v i r- m e de d uas a rcas fo rradas d e
c o u r o v e r m e l h o l av r a d o e c o m b o a p r e g a r i a d o u r a d a .
E n c h a rno-las d e areia a fi m d e s e re m pe sadas. Com o s j u d e u s
Raq u e l e Vidas vos i re i s te r e d i r-l h e s - e i s q u e , p o i s e m B u rgos
me n egaram p o u sada à o rd e m de e l - re i q u e m e d e s te r ro u ,
n ã o p o s s o l evar m e u s h ave r e s p o r s e r e m m u ito p e s a d o s .
Levai as arcas d e n o ite ; q u e o n ã o vej a n i ng u é m . J u lgue -o, s i m ,
o C r i a d o r c o m to d o s o s s e u s S a n to s , p o i s , s e D e u s m e
aj u da r, a tu d o re m e d iarei.
Pas s o u M a r ti m Antol ín ez por B u rgos, e ntro u apress u ra d o
n o cas te l o, b u sc o u a Raq u e l e Vidas, q u e e s tavam e n tretidos a
c o n ta r o s s e u s gan h os e , n o ape r to e m q u e s e via, fal o u - l h es
as s i m:
- Raq u e l e Vidas, caros am igos, q u e ro fal a r-vos à p ur i da­
d e . D a i - m e as m ã o s , p ro m e te i q u e me n ã o d e s co b r i re i s a
m o u ros n e m a c r i s tãos , e e u vos fa r e i r i c o s p a ra s e m p re !
S a b e i q u e o Carnpeador torno u gran des haveres das páreas
q u e c o b r o u , pelo q u e fo i d e s te r rado. Te m d uas arcas c h e ias

25
d e o u ro fi n o ! E não as pode l evar p o r serem m u ito pesadas.
Q u e r aq u i d e ixá- las e m vosso p o d e r, p e l o que lhe e m p re sta­
re i s o qu e fo r aj u stado. Tomai pois as arcas e p o n d e-as a salvo,
j u ra n d o por vossa fé q u e não l h e s tocare i s em to d o e ste ano.
R aq u e l e Vidas res p o n d e ram:
- Nós j á sabía m os que e m te rra d e m o u ros tom o u e l e
g r a n d e s h averes e b e m se s u s p eita q u e traz m u i ta s o m a d e
d i n h e i ro . Q u e m a n d a c o m m u ito d i n h e i ro n ã o l ogra s o n o
d e s c a n s a d o . M a s q u a n to n o s d a r á d e j u ro s p o r u m a n o ?
Q ua n to às a rcas, ficarão b e m guardadas.
- O Cid - to r n o u D o m M arti m - só há-de q u e r e r o
q u e fo r j u sto e p o u co vos p e d i rá p o r d e ixar s e u s h ave res a
salvo. D e toda a parte os dese rdados l h e acorre m . Precisa d e
s e i s c e n tos marcos.
- D e b o m grado os daremos.
- M as c o m o a n o i te já e n tra e o Ca mpeador tem p ressa,
d a i - m e o s marco s !
R etorq u iram - l h e o s d o i s :
- N eg ó c i o s n ã o s e faz e m a s s i m . P r i m e i ro t o m a - s e e
d e po i s dá-se !
- Be m ; v i n d e ambos ao C i d e nós vos aj u dare m o s a l evar
as a rcas, d e g u i sa q u e o não saibam m o u ros nem cri stãos.
Cavalgo u M a rti m Anto l í n ez com Raq u e l e Vi das, e os três
de b o a m e nte s e e n cam i n h a r a m p a ra o a re a l d o Cid, n ã o
p e l a p o n te , q u e p o d e r ia m s e r v i stos, m a s p e l o r i o , a va u .
Q u a n d o o s j u d e u s e n traram n a te nda, b e ijaram a s mãos a o
C a m p e a d o r.
Fa l o u - l h e s o C id , s o r ri n d o:
- O lá! Dom Raq u e l e Dom Vidas, já me havíeis esq u e c id o ?

26
E i s m e vo u d e ste rrado, q u e e l - re i o manda. Mas p e l o q u e m e
fize rd e s , enq uanto vive rdes sere i s ricos.
Aj u s to u e ntão c o m e l e s M a r t i m Anto l íne z q u e s o b r e
aq u e las a rcas dariam s e i scentos marcos; q u e b e m g u ardadas
as h ave riam até ao cabo d o ano, e q u e se antes d o cabo do
ano l h es viesse m a tocar, ro m p id o o j u ramento p e r d e r i a m o
d i re ito aos j u ro s .
- Carrega i d e p ressa as arcas - d i s se M artim - q u e o
C i d tem d e parti r ante s q u e cante m os galos.
C u stava aos j u d e u s a poder com e l as , posto q u e fos s e m
fo rçosos e ta l s e rviço m u itís s i m o os al egrass e .
- A h ! Campeador - d i s s e Raqu e l ao C i d , b e ijand o - l h e a
mão à d e s p e d i da, como q u e l h e ia p e d i r u m d o m - e m boa
h o ra cingiste s es pada e d e Caste l a vos ides para gente s e stra­
nhas ! As s i m é vossa ventu ra, e grandes se rão vossos ganh os.
Cid, e u vos peço u ma r i ca p e l e vermel ha m o u r i s ca.
- C o n c e d i d o - t o r n o u o C a m p e a d o r. - Se v o - l a
tro uxe r, b e m e stá; s e não, d e sconta i -a das a rcas.
Com tod o o re cato, c h egou M a rtim mais Raqu e l e Vidas à
p o u sada d e stes. Estend e ram os j u d e u s no chão u m c o b e r to r,
p u s eram-l h e e m c i m a fina toal ha, e começaram a contar o d i ­
nh e i ro : trez ento s m a rcos d e p rata e trezentos m a r c o s d e
o u ro, aos q ua i s rec e b i a Antol ínez sem o s pesar.
Ca rrego u D o m M a rtim com o d i nh e i ro a c i nco escu d e i ros,
e agora ouvireis o qu e ele disse q uand o i sto h o u ve fe ito:
- Ah ! Dom Raq u e l e Dom Vidas, p e l o s ganh o s que vos
d ou , bem m e re c ia e u alvíssaras !
- Dão-se- l h e - conce rtara m entre s i os j u d e u s - p o i s
b o m n egócio n os tro uxe.

27
E d e ra m - l h e tri nta m a rcos, q u e M artim agrad ece u , d e s p e ­
di ndo-se.
R e c e b e u o C i d d e b raços abe rtos a Martim Anto l í n ez:
- Sois vós, meu fie l va ssa l o ? Oxalá c h eg u e o dia em q u e
e u retr i b u a o q u e m e faze i s !
- S o u e u , Campeador, e ve n h o c o m m u i bom recado: ga­
n haste seiscentos marcos e eu trinta! M a n dai l evantar a te nda e
e m São Pedro d e Card e n h a nos madrugue. Ve re mos vossa m u ­
l h e r, a d igna fi l h a d e algo; pouca demora te remos e d e ixare mos
o re i n o, d o que m u i to havemos m iste r porq u e o prazo acaba!

D i tas q u e fo ram esta s palavras, co l h e ra m a te nda e tod o s


cavalgara m .
Vo l to u o C i d a cabeça do caval o para Santa Maria e pe rs ig­
n ou-se:
- Eu t e agrad e ç o, m e u D e us, Se n h o r dos c é u s e da te r ra,
e t u a s v i r tu d e s me va l h am, g l o r i o s a S a n ta M a r i a ! De a q u i
d e ixo Caste la, e não s e i s e algum dia to rnarei. Vossa virtu d e
m e aco m p a n h e , G l o r iosa, e n o ite e d ia m e a m p are. S e m e
a s s i m f i z e r d e s e e u h o u v e r b o a ve n t u r a , a o vo s s o a l ta r
man darei b oas e ricas dádivas e aí farei cantar m i l m issas!
Ass i m d e a l m a e coração se despediu o Cid.
S o l ta m a s r é d e a s e vão p a ra a b a l a r, q u a n d o M a r t i m
Anto l í n ez, o leal b u rgal ê s , l h e s fal o u :
- Q u e ro d a r u m ab raço e m m i n ha m u l h e r e reco m e n da r
a casa. Se e l - re i m e v i e r a des pojar, p o u co se me dará . S e re i
co nvosco a ntes q u e nasça o S o l .
To r n o u D o m M a r t i m a B u rgos, e o Cid cravava as e s poras
a c a m i n h o de São Pe ro d e Car d e n h a , e com e l e o s b o n s

28
cava l e i ros q u e o s e rviam. J á os galos cantavam e os alvores da
m a n hã q u e riam ro m p e r q ua n d o o Campead o r chegou a São
Pe ro. R e zava mati n a s o bom a b a d e D o m S a n c h o. E D o n a
X i m e n a, c o m cin co damas d e p ro l , rezava p o r s e u marido a
São Pe ro e ao S e n h o r D e u s :
- Tu , q u e a tod os am paras, val e a o C i d Campeador!
C h a m a r a m à p o rta d o m o s te i ro e fo ram reco n h e c i d o s .
Q u e a l egre ficou o bom abade D o m Sancho! Saíram a o pátio
com drios e can d e ias, e e m gra n d e al egria rece b e ram o q u e
n ascera e m b o a h o ra.
- Cid - d i sse o abade - agrad e ç o a D e u s o ve r-vos aq u i
e tomai q u a n to preciso vos fo r.
- G raças, dom abade, q u e m u ito me contentais. Eu b u sca­
rei comeres para m i m e meus vassalos, e n e m um d i n h e iro me
ap raz q u e o m osteiro gaste comigo. Poi s vou sai r do re i n o, dou­
-vos c i n q u e n ta marcos e , se v ive r, alg u m d ia vo- l os d o b rare i .
Para D ona X i m e na e i s c e m marcos; a ela, a suas fi l has e donas
h e is-de s e rvir e ste ano. Deixo duas fi lhas p e q u enas: acar i n hai­
- mas bem! Eu vo-las recomendo, abade Dom San c h o. Com e las
e com m i n ha m u l h e r te re is todos os c u i dados. Se a despesa for
gran d e e vos m i nguar d i n h e i ro, d o mesmo modo mando q u e
tudo l h e s deis. Por cada marco gasto, darei quatro a o moste i ro.
A tudo d i sse q u e s i m d e boa m e n te o abad e .
V i n h a c h egan d o D o n a X i m e na com as fi l has, cada u ma n o s
b raços d a s u a aia.
Aj o e l h o u a es posa aos pés do deste r rado, e , em l ágrimas,
q u i s b e ijar- l h e as mãos:
- C a m p e a d o r, q u e e m boa h o ra n a s c e stes! a s s i m m a l ­
v a d o s v o s faze m d e ste rrar! C i d d a b a r b a form osa, e i s - n os

29
d i a n te d e vós, e u e vossas fi l h i n has, com e stas m i n has d o n as .
J á vej o q u e e stais p a r a v o s i r e q u e n o s te mos d e apartar. Po r
a m o r d e Santa Maria, aco n s e l h a i - n os!
Este n d e u o s b raços o da fo rmosa barba e, p ega n d o nas fi­
l ha s , ape rto u -as j u nto do co ração.
E , com os o l h os rasos d e água, s u s p i ro u :
- Ai! D o n a X i m e na, m i n h a tão d igna m u l h e r, d e m i m tão
q u e r i d a c o m o a m i n h a al ma: bem sab e i s q u e n o s te m o s d e
a p a r ta r, i n d o - m e e u e fi ca n d o vós a q u i . Praza a D e u s e a
S a n ta M a ria q u e a i n d a p o r m i n has mãos case a estas fi l h a s ,
q u e c o b r e ve n t u ra e v i va a lg u m te m p o . E a v ó s , q u e r i da
m u l h e r, h e i - d e s e m p re se rvir!

Tocam a rebate os s i nos d e São Pe ro. Entretanto p r e p a ra m


ao C i d fa rta c o m ida. Lançam-se p regõe s p o r Caste l a d e n tro
de c o m o se vai do re i n o o Campeador. E u n s d e ixam as casas,
o u t r o s as h e r d a d e s . Na p o n t e do A r l a n ç o n j u n ta r a m - s e
n a qu e l e d i a c e n to e q u i n ze cava l e i ro s . Pe rg u n tava m to d o s
p e l o C i d , e M ar t i m A n to l ín ez foi c o m e l e s p a r a S ã o Pero.
Q u a n d o o C a m p ea d o r soube q u e ta n to l h e ia c r e s c e n d o a
c a m p a n h a , l ogo cava l go u , s a i u a r e c e b ê - l o s e , q u a n d o o s
e n xe rgo u , s o r r i u c o n te n te . A o s q u e v i n h a m faze r- s e s e u s
vassalos, fa l o u a n i moso:
- Rogo a D e u s e a o P a i e s p i r i t u a l q u e , a n te s de e u
m o r re r, algum b e m possa dar aos q u e d e ixam p o r m i m casas
e h e rd a d e s , e qu e o q u e p e r d e m ago ra, d e p o i s o re c e b a m
d o b rado.
E ass i m como ao Cid agradou q u e a cam p a n h a cre scesse ,
ag rad o u a esta o u v i - l o.

30
B e m sabe o C i d q u e , se rom p e r o p razo, n e m p o r o u ro
n e m p o r p rata escapará à sanha d e e l -rei.
Ao ca i r da n o ite , j u ntou a sua ge nte:
- Ou v i , v a r õ e s , e não vos fa ça p e s a r : p o u co s h ave r e s
t r a g o , m a s te re i s a vossa parte . L e m b re - vos q u e a m a n h ã ,
q ua n d o os gal os canta re m , man dare i s apare l har s e m tarda n ça.
A m at i n a s d i r- n os-á o bom abade D o m S a n c h o a m i s s a d e
S a n ta Tri ndad e . E , ouvida a m i s sa, abalamos!
C o m o o C i d o mandou, ass i m se fez: ao s eg u n d o cantar
d o s gal os, apare l h a m .
Pre s s u rosa m e n te tangem a mati nas.
O Cid e sua m u l h e r vão à igreja.
D o n a X i m e n a roja-se aos pés d o altar, roga o m e l h o r q u e
s a b e a D e u s q u e l i v re d e tod o o mal o Cam p e ad o r :
- Se n h o r g l o rioso, Pad re q ue estás n o c é u e c r iaste c é u s
e te rra e tam b é m o mar; q u e fize ste estre las e L u a e S o l q u e
n os a q u e n ta ; q u e e n carn aste em Santa M aria M a d r e e p o r te u
q u e re r nasce ste e m Belé m , o n d e te ado raram pastores e te
d e ram ou ro e mirra trê s re is da Arábia, M e l c h i or, Gaspar e
Baltasar ; q u e salvaste a J o nas d o mar, a Dan i e l d o s le ões, ao
S e n h o r São S e b astião em R o m a , a S a n ta S u s a n a d e fa l s o s
teste m u n hos; q u e na terra an daste tri nta e d o i s an os, S e n h o r
e s p i ritu a l , faze n d o m i l ag res, m u da n d o a água e m v i n h o e as
p e d ra s em p ãe s , re s s u s c i ta n d o a Láza ro ; q u e te d ei x a s te
p re n d e r p e l o s j u d e u s n o Calvário, os q u ais te p regaram na
c r u z do G ó l g o ta e n t r e d o i s l a d r õ e s - u m q u e e s tá n o
Paraíso, o utro q u e lá não e ntro u -; e q u e , esta n d o na c r u z,
f i z e s t e g ra n d e m i l ag r e , p o i s q u e L o n g u i n h o s e r a cego d e
n a s c e n ç a , e , h av e n d o - te l a n c e a d o, c o b ro u a v i sta q u a n d o

31
u n to u o s o l h o s c o m o t e u sang u e q u e c o rr i a d a h a ste d a
l a n ça, o q u e o fe z c r e r e m t i ; S e n h o r, q u e ress u s c itaste n o
s e p u l c ro, q u i s e s t e d e s c e r a o s I n fe r n o s , a r ro m b a s t e s u a s
p o r tas e l i v raste os santos pa d r e s : - a t i , R e i d o s r e i s e
Pad re d e todo o m u n d o, a ti adoro e e m ti creio com todas
as v e r a s , e rogo a São P e r o me aj u d e a r o g a r p e l o C i d
Ca m p eador para qu e D e u s o l iv re d o mal ! E q u e , se parados
h oj e , n o s tor n e a j u n ta r em vida!
Feitas as rezas, acabada a mi ssa, a b raç o u -se o C i d e m sua
m u l h e r, que s e desfazia em lágri mas e q u e ria beijar-l h e as mãos.
E e l e , o l h a n d o as m e n i nas:
- A D e u s vos e n c o m e n d o e ao Pa i e s p i ritual ! Ago ra nos
se para m o s , sabe Deus até q u ando . . .
- C i d , q u e e m boa h ora nasceste d e mãe! - d i s s e Á lvaro
Fáriez M i naya - q u e é d o voss o â n i m o ? Cu i d e m o s d e nos i r e
d e ixe m o - n o s d o mais. Ainda todas estas d o re s se h ã o - d e m u ­
d a r e m al egrias. D e u s , q u e n o s d e u a s almas, n os h á - d e d a r o
a m paro!
E n tão cavalgam todos e , solta n d o as rédeas, põem-se a ca­
m i n h o, s e parados uns dos o u tros co m o a u n ha da car n e .

N a abalada, e já q ua n d o o C i d , vo l ta n d o a cab eça para a


m u l h e r e as fi l h as, as re comendava d e n ovo ao abade D o m
San c h o, Á lvaro Fárie z d i ss e ra a e ste:
- Abad e , s e vier gente q u e q u e i ra aco m p a n h a r- n os , q u e
s i ga m o n o s s o rasto e c u i d e m d e a n d ar, p o i s n o s h ã o - d e
achar e m e r m o o u povoado.
F o i o C i d p o u sar e m S p i n az d e Can , e n e ssa n oite j u n to u ­
- s e - l h e m u ita g e n te . N a m a n h ã s egu i n te ca m i n h o u à e s q u e rda

32
da b oa cidade d e Santo Estêvão, pas sou p o r Alco b i e l l a, o n de
Caste l a acaba, atrave ssou a calçada d e Q u i n ea e , passan d o o
D o u ro e m N avas d e Paios, parou e m Figu e r u e la.
C o n ti n u o u a j u n tar-se- l h e m u ita gente.
H ave n do adormecido, teve um sonho doce .
Aparece u - l h e o anjo G a b ri e l , e d i s s e - l he as s i m a visão:
- Cavalga, C i d , bom Cam p eador, que n u n ca e m tão boa
s azão cavalgo u h o m e m ! E, e n q u anto viveres, bem i rá ao te u .
Acord o u o Cid e b e nze u-se, consolado do sonh o q u e tive ra.
De man hã cavalgaram.
É o d i a em q ue o p razo te rmi na.
Aca m p a m na s e rra d e M i edes, à d i re i ta das to rres m o u ras
d e Ati e n ça.
A i n d a não e ra s o l - p osto, re u n i u C i d as s uas ge nte s e , fora
o s peões e o utros val e nte s , contou treze n tas lanças com p e n ­
dões:
- A s sim o C r i a d o r n o s s a l v e , d a i j á r a ç ã o à s b e s ta s .
Q u e m q u i s e r c o m e r, c o m a ; q u e m n ã o q u i s e r, cav a l g u e .
Pas sare m o s a s e r ra e m p i nada e brava q u e pod e re m o s d e ixa r
e sta n o ite a te rra d e e l -rei Afo n s o. D e p o i s , q u e m n o s b u s car
nos achará .
Pas saram a serra d e no ite e desceram - l h e a l o m ba.
Em m e i o de u m bosq u e fez o C i d p o u s ar e dar raç õ e s .
H ave n d o d ito a tod o s c o m o q u e ria cam i n h ar d e n o i te , tod os
co m o b o n s vassalos re s p o n d e ram que farão a s s i m .
A o ano itecer cavalgam, q u e o Cid d e s ej a n ã o fazer r u m o r.
C a m i n ham toda a n oite , sem d esca n so.
C e rca de Castej ó n , sobre o Fenares, põs-se o Cid com os
s e u s a armar ci lada.

33
Toda a n o ite esteve o C i d e m boscado, co nforme l h o acon ­
s e l hara Á lvaro Fáiiez M in aya:
- C i d , q u e e m b oa h ora c ingiste s espada! Vós, c o m c e m
d o s n o ssos, c o n v é m q u e fiq u e i s atrás, e a m i m m e dare i s d u ­
ze ntos para i r adiante . C o m D e u s e vossa ventu ra, gra n d e s
ga n h os h ave re mos.
To r n o u - l h e o Cam pead o r :
- D iz e i s b e m , M i n aya. I d e n a d i a n te i ra c o m d u z e n to s .
Q u e v ã o c o nvosco Á lvaro Á lvarez e Á l varo Salvadó rez, a m ­
b o s s e m m a n c h a, e Gal l i n Ga rcíaz, rija lan ça, b o n s caval e i ros
p a ra acom pan hare m a M i n aya. Correi o usados; não vos fa ça o
t e m o r l a rg a r p r e s a . Po r F i ta a b a i x o e p o r G a u d a l fa j a r a
a l o ngai -vos até Alcalá e n ã o pe rca is n e n h u m gan h o p o r m e d o
a o s m o u ro s . E u f i c a r e i a q u i c o m c e m , a m p a r a d o n o b o m
a b r igo de Castej ó n . Se correrdes p e r igo n a fre n te , m a n d a i - m e
l ogo av i so. I sto v a i s e r falado e m t o d a a Espan ha!
N o m ei a m os que hão- d e i r e os que hão - d e ficar com o
Cid.
J á a a l va e s c larece, a m a n h ã ve m , e ro m p e o S o l .
O h ! D e u s, q u e formo so nascia! Os d e Castej ó n l evanta­
vam-se e, abe rtas as p o rtas, saíam a s e u s trabal hos para as
h e rdades.
Te n d o a s s i m fe i to, d e i x a n d o a s p o rtas a b e r ta s , p o u c a
ge n te fi ca e m Castej ó n , e os o utros espal h a m - s e .
S a i e n tã o o C a m p e a d o r d a s u a e m b o s ca d a e a c o m e t e
Ca stej ó n .
Adianta-se o Cid D o m Rod rigo para a s po rtas d a cidad e .
O s q u e a s guardam, a o darem p e l a s u rp resa, gan ham m e d o e
foge m .

34
O C i d R u i D i a s e n tra as p o rtas e s ca n ca r a d a s e , c o m a
e s pada n u a n a mão, mata q u i nze d o s m o u ro s q u e a l can ça.
G a n h o u Castej 6 n , com o o u ro e a p rata !
E n ta n to o s d uze ntos e três da vanguarda vão corre n d o a
s a q u ear a s terras.
C h ega até Alcalá o p e n dão d e M i n aya, e d e ali s e to r n a m
c o m o d e s p oj o p e l o F e n a r e s acima e por G uada lfaja ra . Tra­
ze m gran d e s gan h os, reban hos d e ove l has e vacas, ro u bo s e
o u tras r i q u ezas. E rgu i d o ve m o p e n dão; n i ng u é m o u s a assaltá­
- l o s p e l a s costas.
C o m e st e s h ave r e s r e ú n e m - s e à c o m p a n h a d o C i d e m
Casté j o n. O C a m p e a d o r, s e n h o r d o cas te l o, cavalga e sai a
rece b ê - l o s c o m a s u a m e s nada:
- S o i s v6s, Á lvaro Fán ez, brava l a n ç a ? Po i s q u e lá í e i s , a
e s p e ra n ç a m e e ra ce rta. J u nte mos o s n os s o ga n h o s e , s e o
q u i se rd e s , M i n aya, o q u i n to s e rá vos so.
- M u i t o vos agrad e ç o , i l u s tre Ca m p e a d o r. C o m e s t e
q u i nto q u e a s s i m m e ofe rta i s , até o caste l h a n o Afo n s o s e
d a r i a p o r b e m pago. Po ré m e u vo- l o to r n o e aq u i p ro m eto a
D e u s , q u e n o alto e s tá, q u e e n q uanto m e n ã o sati sfaça d e
p e l ejar e m ca m p o c o m m o u ros n o m e u caval o, e m p u n h a n d o a
l a n ça e a es pada até q u e p e l o s u lco d e esta o sangu e e s c o r ra
d i a n te d e R u i D ias, o gra n d e l i dador, não aceitarei d e v6s u m
d i n h e i ro q u e seja. E e n q u anto para v6s n ão gan ha r c o i sa q u e
h o uvermos p o r gra n d e , tudo o mais o d e ixo e m vossas mãos.
J u n ta m al i os gra n d e s gan h o s .
Conje ctu rou o C i d , o q u e e m b o a h o ra c i n g i ra e s pada, q u e
a s m e s n a d a s d e e l - r e i D o m Afo n s o l h e v i r i a m a s s a l ta r a
c o m pan ha. M a n d o u repartir o s have re s p e l o s q u i n h oe i ros e a

35
e s tes q u e p a s s as s e m re c i b o d o s q u i n h õ e s . A o s cava l e i ro s
cabe boa p arte: a cada u m c e m marcos d e p rata; a o s p eões, a
m e tade certa, e o C i d g uarda o q u i nto.
Não pode o Campeador ve n d e r nem dar de prese nte o q u e
te m . M o u ros e m o u ras cativos, não o s q u e r l evar na companha.
Fa l o u e ntão c o m os d e Castejón e mandou s a b e r a F ita e a
G uada lfaj ara p o r q uanto l h e com p rariam o s e u q u i nto, a i n d a
q u e , c o m p ra n d o - l h o, tivessem gra n d e s l u c ros. Ofe re c e ra m o s
m o u ros trê s m i l marcos d e p rata; o C i d e steve p e l o aj u ste , e
-no terce i ro d ia s e m falta rece b e u o preço d o q u i n to.
Pe n s o u o Cid q u e não p o d eria a l b e rga r a toda a c o m pa n h a
n o caste l o, o n d e , a i n da q u e o gu ardas se, l h e fa ltaria águ a.
O Cam p eador fal o u aos s e u s :
- O s m o u ro s e stão e m p a z e ass i n adas as cartas. Mas e l -
- re i D o m Afo n s o p o d e v i r a b u s car- n o s c o m as s u as mes nadas.
M e s n adas, e vós, M i naya, ouvi pois: q u e ro d e ixar Ca stej ó n .
E conti n u o u :
- N ã o l eve is a mal o q u e d igo. Não poderíamos fi ca r e m
C astej ó n ; e l - re i D o m Afo n so e stá pe rto e v i r i a b u s car- n o s .
Tam b é m n ã o q u e ro asso lar o caste lo. Li b e rtemos a ce m m o u ­
r o s e m o u ras, a fi m d e q u e n ã o d igam m a l d e m i m . Estais to ­
d o s p agos e n e n h u m p o r p agar. D e m a n hãzi n h a a b a l a m o s ,
p o i s não q u e ro p e l ej a r c o m e l - rei D o m Afo n s o, m e u s e n h o r.
A p ro uve a todos o q u e o u v i ram ao C i d .
D o caste l o q u e to maram s a e m to dos r i cos, e m o u ro s e
m o u ras q u e estão abe n ç oan d o.
Vão - s e F e n ares acima quanto pod em a n d a r ; passam a l é m
d as Al carrias e d a s Covas d e An q u ita, atrave ssam a s águ a s ,
e n t r a m n o c a m p o d e Ta ra n z , e ca m i n ha m , c a m i n h a m p o r

36
e ssas te rras a l é m . Al berga-se o C i d e ntre Fariza e Ceti n a . Po r
o n d e passa gan h a e m e d ra, e ainda não sab e m os m o u ros o
a rd i m e nto q u e o l eva.
No d ia s eg u i nte pôs-se a cam i n h o o Cid de Bivar, e passou
Alfama, d e s c e u a Foz, passou d e p o i s a Bov ie rca e a Teca, q u e
fi ca adiante , e foi p o u sar e m Alcocer, n u m red o n d o o u te i ro
e l evado e fo rte o n d e l h e não p o d e m c orta r a água p o rq u e
c orre p e rto o Sa l ó n .
O C i d D o m Rodrigo cu ida e m gan har Alcoc e r.

B e m povoad o o oute i ro, e rg u i das as te ndas, u m as con tra a


s e rra, o u tras con tra o rio, o b o m Cam pead o r, q u e e m boa
h o ra c i ngira es pada, aos s e u s mandou que a b r i s s e m um fos s o
a o re d o r, m u ito pe rto da água, a fi m d e não sofrer assalto,
n e m de d i a n e m de n o i t e , e p a ra se sa b e r q u e e r a a l i a
p o usada d o C i d .
P o r tod os e s s e s l ugares cor r i a a n ova d e q u e o
Ca m p eador a í viera hab itar, d e ixan d o a cri stãos, b u sca n d o a
m o u ro s ; e e stes, c o m tal v i z i n h a n ça, n ão se atrev i a m a
trabal h a r ta nto nas terras.
Contente está o Cid, b e m como os seus vas salos: j á o s de
A l c o c e r l h e pagam tri b u tos, e ass i m os d e Teca, o s d e Te rre r,
e o s d e Calatayut, aos q uais isto c u stava.
A l i d e morou o C i d q u i nze semanas ao todo.
Q ua n d o viu q u e os d e Alcocer se lhe não re n d iam, l ogo
c o n c e rto u u m ard i l : d e ixo u ficar u m a te n da, m a n d o u l evanta r
t o d a s a s o u t r a s , e fo i - s e S a l ó n a b a i x o, l ev a n d o a l ç a d o o
p e n d ã o, e s p a d a s c i n g i d a s , l o r iga s v e s ti d as , a f i m d e , b e m
av isado, armar c i l ada q u e p e rdesse o s m o u ros.

37
D e u s ! como se alegrava m os d e Alcocer ve n d o-os parti r.
- J á pão e cevada m i nguaram ao Cid - d iziam e l e s . -
D e ix o u u ma te n d a e l eva as outras como qu em vai escapo d e
a r r a n c a d a ! D e m os - l h e assalto e c o b ra re m o s gran d e ga n h o,
a n tes que o c o l h a m os d e Te rrer, qu e esses, se o p i l ha m , n ad a
n o s d ã o . O tr i b u to qu e l h e pagá mos, n o - l o d a r á d o b rad o !
Saíra m d e Alcocer açodados.
O Cid, qua n d o os v i u fo ra, fez qu e fugia pelo Salón abaixo,
rodead o dos s e u s .
- Lá s e n o s v ã o n o s s o s ga n h o s ! - b r a d av a m o s d e
Al coce r.
E gra n d e s e p e qu e n os, ao sabor da cobi ça, saíra m d a c i ­
dad e , d e ixa n d o a s portas abertas e s e m n i ng u é m a guardá-l as.
O b o m Cam p eador, vo l ta n d o a cabeça, v i u que e n tre e l e s
e o caste l o m e d i ava largo e s paço.
E ntão ma n d o u tornar o pen dão e e s p o rear os cava los:
- A e l e s , cava l e i ros ! Feri sem te m o r ! C o m a aj u d a de
Deus m u ito h ave mos d e ga n h ar!
A m e i o d o cam po en con tram - s e com os mou ros.
D e u s ! qu e alegria a d e sta manhã gostosa!
Cavalgavam à fre nte o C i d e Á lvaro Fáfí ez, m e n e a n d o os
bons cavalos a s e u b e l - p raze r, e l ogo e n tram no caste lo.
Os vas s a l o s d o C i d dão sem p i e d a d e nos m o u ro s , d o s
q u a i s e m b reve jazem trezentos .
A vitória está gan h a !
S a b e i que p o r e ste ard i l to mou Al coce r o C i d .
P e r o Ve r m ú d oz, qu e e m p u n h a o p e n dão d o Ca m p e a d o r,
c rava- o fl utuante n o mais alto.
O C i d R u i D ias, o qu e em boa h ora nasce ra, fal o u ass i m :

38
- G ra ç a s a D e u s d o C é u e a to d o s o s s e u s S a n t o s ,
m e l h o re s p o u sadas d a r e i a cava l e i ro s e cava l o s . O u v i - m e ,
Á l v a ro F áriez e to d o s o s m a i s v a r õ e s ! C o m e s te c a s te l o
t o m á m o s g ra n d e s h ave res. J azem mo rtos o s m o u ros; vivos
poucos vejo. Não pod e remos vend er a m o u ros e m o u ras; em
d e s ca b e ç á - l o s n ad a ga n h a ría m o s . R e c e b a m o - l o s cá d e ntro,
pois é n osso o s e n h orio: p o u sare mos e m suas casas e d e l e s
n o s s e rv i re m os.

Está o C i d e m Alcocer, no meio d o q u e gan h o u .


M u ito c u sta a o s d e Teca, n ã o ap raz a o s d e Te rre r e a o s d e
Calatayut v a i pe sando.
E n tão e n v i a ra m m e n sagem a e l - re i d e Va l ê n c ia, d i ze n d o
q u e u m qu e n o m e i a m o C i d R u i D i a s d e B i v a r « o h av i a
d e sterrado e l - re i Afo n s o e v i e ra p o u sar em u m fo rte l ugar d e
A l c o c e r ; e q u e p o r ard i l tomara o caste lo. S e n os n ã o dás
aju da - acre s c e n tavam - perderás Te ca e Te rrer, p e r d e rás
Calatayut, que não poderá res isti r; tu d o i rá d e mal a p i o r por
to da esta r i b e ira d o Sal 6 n , e o m e s m o s e rá em S i l oca, qu e
fica da outra-ban da».
O p r i m i u -se o coração d o re i Tam i n q u a n d o ta l ouvi u :
- Vejo três e m ires à m i n ha i l h arga: q u e d o i s abal e m s e m
tarda n ça, l evand o a três m i l m o u ro s b e m a r m a d o s . C o m a
aju d a d o s da fro nte i ra, col h e i - m o vivo e traze i - m o. Há- d e pa­
ga r- m e d i re i tos p o r h ave r e n trad o em te r ra m i n ha!
Cavalgam três m i l m o u ros, passam a n o ite em Sego rve ,
ava n ç a m n a m a n h ã s eg u i nte e p o u s a m n a o u t ra n o ite e m
C eifa . Av i sad o s o s d a fro n te i ra, aco d e m estes d e todas a s
p a rte s . S a i n d o d e Ceifa , q u e c h a m a m d o Cana l , ca m i n ha m

39
s e m d e s canso tod o o d i a e tre s n o i ta m e m Calatayut. Lan ça m
p regõe s p o r todas e ssas terras, j u nta-se gente c a d a vez mais
grossa aos d o i s e m i res c hamados Fáriz e Galve - e vão c e r ­
car o b o m C i d e m Alcocer.
A l çadas as te n das e d i s posto o campo, cresce - l h es a san ha
p o r s e r e m m u itos. As se nti n e las avan çadas d o s m o u ros r o n ­
d a m d e n o i te e d i a, c o b e rtas d e a r m a s . As e s c u l ca s s ã o
b astas, n u m e rosas as h ostes.
Co rta m a água ao Cid.
Q u e riam as m e s n adas sa i r a dar bata l ha, mas fi r m e lho ve­
d ava o q u e em boa h o ra nascera.
Po r três sema nas apertaram o ce rco.
Ao ca bo das três s e manas, q ua n d o a q uarta q u e ria e n trar,
c h a m o u o C i d os s e u s a cons e l h o :
- J á n o s c o r tara m a água ; p o d e fa l ta r- n o s o p ã o. S e
q u i s é s s e m os sai r d e n o ite , n ã o n o s d e ixariam; e gra n d e s são
s uas fo rças para p e l ejarmos com e las. D i ze i - m e , cava l e i ros, o
q u e voz ap raz façamos.
Pr i m e i ro fal ou M i n aya, o l i dador i l u stre :
- Aq u i v i e m o s d e Caste l a a genti l , e , se não p e l ejarmos
c o m o s m o u ro s , n ã o tere m os pão. So m o s b e m s e i s c e ntos,
acas o mais. Em n om e d o Criador, não se d e c i d a o utra coi sa:
p e l ej e mos com e l es aman hã!
R e s p o n d e u o Campead o r :
- A m e u j e ito fa lastes e h o n raste s -vos, M i naya, c o m o e r a
d e e s p e rar d e vós.
Fez o Cid sa i r a todos os m o u ros e m o u ras, para n e n h u m
d e s c o b r i r o segred o. Aperce b e m -se d u rante o resto daq u e l e
d i a e d u ra nte a n o ite , e a o raiar d o S o l e stão armados.

40
E o Camp eador fal o u como ides ouvi r :
- S a i a m o s to dos; n ã o fiqu e n i ng u é m , s e n ã o d o i s p e õ e s
que guard e m a porta. Se morrermos n o campo, e ntrarão n o
caste l o; s e ve n c e r m o s a bata l h a, c resc e remo s e m r i qu e za.
Vós, Pe ro Ve rm ú d oz, alçai o m e u p e n dão: como s o i s m u ito
b o m , g u a rd á - l o - e i s c o m l e a l d a d e ; mas não vos a d i a n te i s
e n quanto vo- l o n ã o mandar.
B e i j o u aqu e l e a mão ao C i d e e m p u n h o u o p e n dão.
A b r i ram as p o rtas e saltaram para fora.
Ve n d o - o s , as ava n çadas correm a av i s a r as h o stes. C o m
que p ressa s e armam os m o u ro s ! A o som dos tam b ores pa­
rece a b r i r- s e a te rra ! Cerra m - s e as fi las armadas. Da pa rte
dos m o u ros h á d o i s p e n dões p r i n c i pais, e aos d iversos quem
p o d e r i a c o ntá - l o s ? J á s e ad i a n ta m a s fi l a s d o s m o u r o s ao
e ncontro d o Cid e dos s e u s .
- Esta i qu e d a s , m e s nadas - ma n d o u o Ca m p e a d o r.
N ão ava n c e n i ng u é m e n q uanto e u não d i s s e r.
N ã o o p ô d e s ofre r aq u e l e Pero Ve rm ú d o z q u e l evava o
p e n dão e começou a es porear o caval o :
- O C riador v o s val ha, 6 l eal Cam peador! Vo u meter o
p e n dã o na fi l a m a i s c e r rada. E ve re i como acorre m o s qu e
d evem d efe n d ê - l o !
B radou - l he o Campead o r :
- Te n d e-vos, p o r ca ridade!
- N ã o faltava mais nada! - re s p o n d e u Pe ro Ve r m ú d oz.
E, e s p o rea n d o o cava lo, mete u - s e na fila mais vasta.
O s m o u ros perseg u e m o p e n dão e dão gra n d es go l pe s qu e
n ão ro m p e m a l o r iga d o cava l e i ro.
To r n o u a b radar o Campead o r :

41
- Vale i - l h e , p o r caridad e !
E m b raçando os escudos com q u e guardam o s p e itos, abai­
xam as l a n ças, e n rolam os p e n d ões, i n c l inam-se s o b re o s ar­
ç õ e s e acom ete m com os coraç ões e m sanha.
Vai b radan d o a gra n d e s vozes o q u e e m boa h o ra nascera:
- Por a m o r do Criador, a e l es, caval e i ro s ! Sou R u i D ias
de B ivar, o Cid Cam p eador!
Aco r re m tod o s à fi l a em que Pero Ve r m ú d oz p e l eja . São
treze n tas l a n ças com p e n d ões: treze ntos go l pe s q u e mataram
a trezentos m o u ros; e , carrega n d o d e n ovo, matam a o u tros
tan tos.
Ve ríeis ali baixar e s u b i r ta ntas lanças, tre s passar e ro m p e r
tan ta adarga, tan ta l o riga rota e desman chada, tan tas b rancos
p e n d õ e s tingirem-se d e sang u e , ta ntos fo rmosos caval os e rra­
re m s e m d o n o ! Os m o u ros i nvocam a Mafoma e a Sant'lago
o s c r i s tã o s . Em b r e v e jaz e m n o c a m p o m i l e t r e z e n to s
m o u ros.
Q u e bem p e l e ja, s o b re d o u ra d o arção, o Cid R u i D ia s ,
o b o m l i da d o r ! Q u e b e m p e l eja m Á lvaro Fáii ez, o q u e m a n ­
d o u e m C o r i ta; M a rti m A n to l í n ez, o l e a l b u rg a l ê s ; M u n o
G u stioz, c riado d o C i d d e Bivar; Martim M u ii oz, o q u e m a n ­
d o u e m M o n te m o r ; Á l v a ro Á l v a r e z e Á l v a r o S a l u a d ó re z ;
G a l i n G a rcíaz, o b o m a rago n ê s ; F é l i x M u ii oz, s o b ri n h o d o
C i d ! Q u a n t o s a í e s tã o , q u a n t o s a c o r r e m a d e fe n d e r o
p e n dão d o Cam peador.
A Á lvaro Fáiiez M i n aya matara m - l h e o cava lo, e as m e s n a­
das cri stãs correm e m s e u auxí l i o.
Q u e brou-se - l h e a lança e mete mão à e s pada, com a q ua l ,
as s i m apeado, e s p a l h a b o n s go l p es.

42
V iu -o o C i d R u i D ias, o Caste l hano, e , ace rcan do-se d e u m
vizi r q u e m o n tava fi n o g i n ete , tal gol p e l h e j ogou q u e o c e ifo u
p e l a c i nta e a r rojou ao campo a outra metad e .
C o r re n d o a Á lvaro Fánez, d e u - l h e o cava lo:
- M o n tai, M in aya! S o i s o m e u b raço d ireito e h oje bem
p re c i s o d e vossa aj u da. Ved e q u e os mou ros e stão fi r m e s e
n ã o c u idam a i n d a e m d e ixar o campo. É m iste r acometê - l o s
até ao fi m !
M o n ta M i n aya s e m l a rga r a e s p a d a e c o n ti n u a l i d a n d o.
D e s pacha a q uantos alcança.
O C i d Rui D ias, o que e m boa h o ra nasce ra, acom ete e n ­
tan to a o e m i r Fáriz e d e s p e d e trê s g o l p e s , d os q ua i s e r ra m
d o i s : p o r é m o te rce iro e n sangu e nta a l o riga d o m o u ro, q u e
vo l ta o caval o para fug i r d o campo.
C o m este go l p e s e desbarata o exérc ito.
P o r s u a b a n d a , M a r t i n A n to l í n ez a c o m e te u a G a l v e : o
gol p e q u e l h e j ogou arran c o u o s r u b i s d o e l m o d o e m i r e ,
c o r ta n d o o e l mo, c h egou à carn e . Sab ei q u e o o utro não o u ­
s o u e s p e rar mais.
D e s baratados estão, pois, os e m i re s Fáriz e Galve .
Tão b o m d ia foi esse para a Cr istandade q u e j á d e u ma e
o u tra parte foge m os m o u ros!
F e r i n d o-o s o s p e rsegu e m os d o Cam p e ad o r : o e m i r F á r i z
a l ca n ç o u Te rre r ; e G a l v e , p o rq u e o não q u i s e ra m a í a c o ­
l h e r, c o rre a b o m c o r re r p a ra Cal atay u t, até o n d e o C i d o
acossa.
B o m cavalo co u be a Á lvaro Fánez M i naya, que à s u a parte
m ato u a tri nta e q u atro m o u ros. Espada tal had o ra e rg u i d a n o
b raço sangrento, p e l o s u lco d o a ç o e scorre o sang u e .

43
Ago ra s i m : ago ra e stou contente ! - exc l a m o u M i naya. -
S a b e r- se-á e m Caste l a q u e o C i d R u i D ias ve n c e u e m bata l h a
cam pa l .
Tan to s s ã o o s m o u ros mortos, q u e p o u cos res ta m vivos.
J á to rnam os d e a q u e l e que e m boa h o ra nascera e h aviam
l a rgad o e m p e rsegu i ção d o s e m ires.
A n d ava o C i d n o s e u b o m caval o, traze n d o a co ifa franzida
s obre a cara e caído n os o m b ros o cap u z da l o r iga. Oh! q u e
barba fo r m osa!
Ve n d o o s s e u s , q u e s e i a m c h e ga n d o, o C a m p e a d o r ex­
c l a m o u:
- G raças a D e u s, q u e e stá n o s C é u s , v e n c e m o s a bata l h a !
Saq u e iam o s d o C i d o aca m pame nto, re col h e n d o e s c u d o s
e a r m a s e o u tros gran d e s have re s, j u nta n d o q u i n h e n to s e d e z
cava l o s m o u riscos. G ra n d e a l egria se nte m os cri stãos v e n d o
q u e d o s s e u s n ã o faltam m a i s de q u i nze .
N ão sabe m q u e faze r a tan to o u ro e ta nta p rata.
Tod os se vêe m ricos com tal d e s p oj o to mado.
R e c ebem d e n ovo n o caste l o aos m o u ros q u e os s e rvi a m ,
e aos q u ais m a n d o u o C i d p r e s e n tear.
Q u e a l egria a d o Ca m p ead or e a d e tod o s os s e u s vassa l o s !
R e p arte m os d i n h e i ros e os have res. S ó ao q u i nto d o C i d
cab e m c e m cava l o s .
D e u s ! q u e b e m q u e paga a o s s e u s , a p e õ e s como a cava l e i ­
r o s , o q u e e m boa h o ra nascera! E todos e stão contente s .
- O u v i , M i n aya, v ó s , q u e s o i s o m e u b ra ç o d i re i to -
d i s s e o C i d . - D e sta r i q u eza q u e o Criador n o s h á dado,
to m a i q ua n to vos apro uver. Q u e ro q u e vad e s a Caste l a l evar
n ovas d e sta bata l h a. Q u e ro ofe rtar a e l - re i Afo n s o, q u e m e

44
d e ste r ro u , t r i n ta cava l os , todos s e l a d os e b e m e n fread o s ,
tod o s c o m e s padas p e n d entes d os arções.
- D e b o m grado o fare i - re s p o n d e u M i n aya.
C o n ti n u o u o C i d :
- E i s aq u i u m a b o ta alta c h e ia d e o u ro e p rata fi n a : pa­
gareis mil m i ssas e m Santa M aria d e B u rgos. O q u e s o b rar
s e rá para m i n ha m u l h e r e m i n has fi l has, as q u ais reze m dia e
n o ite p o r m i m . Se D e u s me d e r vida, s e rão d o n as abastadas.
Pagareis aos j u d e u s Raq u e l e Vidas, e d i r- l h es - e i s q u e as a rcas
e stavam c h e ias do o u ro da m i n ha palavra.
Á lvaro Fáfie z M i n aya e stá contente. E s c o l h e m - s e os h o­
m e n s q u e hão - d e aco m p a n h á - l o e à n o ite dão ração às b estas.
O Cid Rui D ias, n o m e i o dos s e u s , fal o u :
- I d e s e n tã o, M i n aya, a Caste l a, a G e n ti l ? B e m p o d e i s
d iz e r a n o s s o s a m igos q u e D e u s n o s val e u e ve n c e m o s a
batal ha. S e aq u i n os não achardes à vossa to r n ada, o n d e q u e r
q u e e s te j a m o s n o s i re i s b u s c a r. D e l a n ç a s e e s p a d a s n o s
h ave mos d e val e r ; se não, não pode ríamos vive r e m terra tã o
e scassa. Ass i m te m o q u e n os te n hamos d e i r.

C o n fo r m e o dete r m i nado, parti u M i n aya d e mad rugada e o


Ca m p eador fico u - s e com a s u a com pan ha.
Escassa e má ter ra, sobeja d e s e q u idão, e ra aq u e la.
Todos o s d ias e s p i avam ao C id os m o u ros da fron te i ra e
o u tras g e n te s e stran has, as q uais se c o n c e r tavam c o m o e m i r
Fáriz, j á c u rado d a s fe ridas.
Com os d e Te ca, os d e Te rrer e os d e Calatay ut, que é
c i dade mais r i ca, e n tra o C i d em aj u ste s : fazem tratado por
carta, e ve n de - l h es Alcocer p o r trê s mil marcos d e p rata.

45
Ve n d i d o A l c o c e r, p ago u o C a m p e a d o r a s e u s v as sa l o s .
C ava l e i ro s e p e õ e s , e i - l os r i cos to d o s ; n ã o a c h a rí e i s e n tre
e l e s a u m mesq u i n ho.
«Q u e m se rve a bom s e n h o r, bom ga lardão a l ca n ça.»
Enta nto, ve n d o q u e o Cid se d i s p u n ha a d e ixar o caste lo,
m o u ro s e m o u ras com eçam a ca r p i r-se:
- Cid, ass i m te vai s ? Aco m p a n h a m -te as nossas o raç õ e s .
E agrad e c i d o s t e ficamos !
O C i d d e Bivar d e ixou Alcocer entre p rantos d e m o u ro s e
m o u ras .
Al çado o p e n d ão, encamin ha-se o Campeador para o S a l ó n .
Ao passar o r i o, as ave s d e ram - l h e b o n s ago u ros.
C o n te n te s e stão os d e Te rre r, mais a i n da os d e Cal atay ut,
mas tristes os d e Alcocer, aos q uais o Cid fazi a b e m .
C a m i n h a o C a m p e a d o r e v a i p o u s a r e m Poyo, s o b re
M o nte Real. É u m l ugar tão a lto e tão fo rmoso à v i sta q u e
não te me assaltos d e n e n h u m a parte .
Então tri b utou a Daroca, d e p o i s a M ol i na, mais ad iante a
Te r n e l , e e nfi m pôs a mão e m Ceifa, a do Canal.

H aj a o C i d Rui D ias a graça d e D e u s !


C h egado q u e foi a Caste la, Á lvaro Fá fí ez M i naya ofe rto u a
e l - re i tri n ta cavalos.
Ve n d o - o s , e l -rei s o rria d e agradad o :
- Ass i m D e u s n os val h a, M i naya: q u e m mos man d o u ?
- F o i o C i d R u i D ias, q u e em boa hora c i ngi u a es pada!
D e p o i s q u e o d e ste rraste s , gan h o u A l c o c e r p o r a rd i l .
S a b e n d o - o por m e n sage m, e l -rei d e Val ê n cia m a n d o u c e rcá - l o
e cortara m - l h e a água. O Ca mpeador saiu d o caste l o, l i d o u

46
e m c a m p o , e v e n c e u d o i s e m i re s e m b a ta l h a . S o b e j a é ,
s e n h o r, s u a riq u eza. A vós , rei h o n rad o, envia o C i d este p re ­
s e n te . Be ija-vos os pés e as m ã o s , p e d i n d o-vos m e rcê, a s s i m
D e u s v o s aj u d e .
- � c e d o - to r n o u e l - re i - para aco l h e r ao c a b o d e tão
p o u c o te m p o a h o m e m q u e p e r d e u a g raça do s e u s e n h o r.
M as p o i s q u e d e m o u ros e ra, a e ste p rese nte o aceito, e mais
vos d i re i que me a prazem o s gran d e s gan h os d o Cid. E a vós,
M i n aya, p e rdoo e vos restituo h o n ras e terras, poden d o vós
e ntrar e sair d o re i n o a vosso ta lante. M as, a re spe ito d o C i d ,
não te n h o m a i s q u e d izer-vos.
- I n d a vos d i rei - conti n u o u e l - re i - q u e não c o nfis­
carei o s b e n s dos h o m e n s b o n s e val e n te s q u e q u e i ra m i r
aju dar o Campeador, e d o u - l h e s l i ce n ç a q u e vão.
Á lvaro Fáriez M i n aya b e i j o u as mão a e l - re i :
- G raças, graças, m e u re i e s e n h o r n atu ral ! I sto faze i s
ago ra, e mais fare i s d e pois. D e u s vos aco n s e l hará e a vós, s e ­
n h o r, tam b é m .
- N ã o fa l e m o s m a i s d i s to, M i n aya. I d e p o r Caste l a a
vosso gra d o e b u scai ao Cid.
E n tr e ta nto q u e ro d i z e r-vos d o q u e e m b o a h o ra c i n g i u
e s pada e d o Poyo o n d e fo i pou sar, o q ua l , e n q uanto h o uve r
n o m u n d o m o u ros e cri stãos, s e rá chama d o o Poyo do Cid.
A l i m o ra n d o, o Cam pead o r i a tomando te rras.
Tr i b ut o u to d o o val e do rio M a rti n ; e, q u a n d o i sto s e
s ou be e m Saragoça, d e s coroçoaram-se o s mou ro s.
M anteve-se p o r l á q u i n ze se manas.
Q ua n d o o avisado c h efe v i u q u e M i n aya tardava, fez u ma
c o r r e r i a n octu r n a c o m todas as s u as g e n t e s , d e ix o u Poyo,

47
passou a l é m d e Te m ei e p o u s o u n o p i n hal d e T évar, d e p o i s
d e saqu ear a te r ra e d e l a n ç a r tr i b u to a Saragoça.
I sto fe ito, e i s qu e ao cabo d e três s e manas to rna M i n aya
de Caste la, aco m p a n h ad o d e d uzentos caval e i ro s d e es padas
c i ngidas e d e m u i n u m e rosa peo nage m .
Q u a n d o o C i d v i u a s s o m a r M i n aya, ga l op o u a o s e u e n ­
c o n t r o e fo i a b ra ç á - l o , b e i j a n d o - o n a b o c a e n o s o l h o s .
C o n to u - l h e M i n aya t u d o o q u e s u c e d e ra , e o C a m p e a d o r,
s o r r i n d o contente:
- G ra ç a s a D e u s e às s u as s a n tas v i r t u d e s ! E n q u a n to
vive rd e s , M i naya, tu d o m e há-de correr b e m !
D e u s ! c o m o se al egra a h oste c o m a v i n d a d e M i naya, qu e
l h e s dá recados d e i r mãos e d e p rimos e das c o m pa n h e i ras
que h aviam d e ixad o !
D e u s ! c o m o se al egra o da b a r b a fo rmosa ao sa b e r qu e
Á lvaro Fán ez pago u a p rome ssa das m i l m i ssas, e ao o u v i r n o ­
v a s d a m u l h e r e d a s fi l has !
D e u s ! como o Cid se sente b e m pago e qu e al egre e stá:
- D e u s vos dê m u itos anos, Á lvaro Fánez! Val e i s m a i s d o
que n ó s por tão b o n s man dados q u e nos traze i s !

N ão tard o u o q u e e m boa h ora nasce ra e m esco l h e r d u ­


ze ntos d o s s e u s m e l h o res cava l e i ros e e m largar c o m e l es e m
c o r r e r i a n o c t u r n a . D e i x a a s te r r a s n e g r a s d e A l c a n i z e
saqu e i a o s arredores. Ao te rce i ro d i a vo ltou ao l ugar d o n d e
p a rtira.
Já a n otícia corre por essas te rras todas, e pesa aos d e
M o n ç o n e a o s d e H u e s c a , m a s a o s d e S a ra g o ç a ag r a d a ,
p o rque os tri b utos que pagam o s l ivram d e te m or.

48
C o m e ste s gan h o s s e to r n a ra m à s u a p o u s a d a , a l e g r e s
todos, o q u e m u ito ap razia ao C i d e a M i n aya .
O avi sado cap itão n ão se pôde te r q u e não d i ss e s s e :
- Cavale i ros, em verdad e v o s d igo q u e a q u e m n ã o m u d a
d e p o i s o, v i r á a m i nguar o q u e tem. Cavalguemos d e m a n hãz i ­
n ha, d e ixemos e ste s l ugares, e avante !
E ntão foi aca m par n o porto d e Al u cat, d o n d e s e al argo u
até H u esca e M o nte Alvan n u ma corre ria q u e d u ro u d ez d ias.
A toda a p a rte iam c h ega n d o m a n d a d o s e d iziam q u e o
d e ste rrado d e Caste la a todos andava faze n d o mal .
C h egou u ma vez tal n otícia ao conde de Barce lona, q u e a
o u v i u c o m g ra n d e p e s a r e to d o s e afro ntou d e o C i d l h e
c o rre r a s te rras q u e e l e p rotegia.
E ra o c o n d e Dom Remont mu ito fanfarrão, e, como va i ­
d oso, d i s s e :
- G raves da no s m e faz o C i d d e Bivar! J á na m i n h a co rte
me fez dan o q ua n d o me fe r i u um s o b r i n h o e não re paro u a
fa lta. Ago ra co rre as te rras q u e e u p rotejo. N u nca o d esafi e i
n e m l h e reti re i a am izad e . Mas, visto q u e me b u sca, e u o i re i
p ro c u rar!
G ra n d e s são suas fo rças , que partem a p re ssadas. R e ú n e m ­
- s e - l h e s m u i tas gentes m o u ras e cri stãos; marcham três d i a s e
d u as n o ite s e m b u s ca d o b o m C i d d e B ivar, e n o p i n hal d e
Tévar o alcançam. Vêm tão e sforçados q u e cu i d a m e m c o l h ê ­
- l o às mãos.
O Cid Dom R o d r igo d e scia d u ma se rra e c h egava a u m
val e , traze n d o as s uas riq u ezas.
Q u a n d o o m e n sag e i ro d o conde D o m R e m o nt fal o u e o
Ca m p eador o ouvi u , res p o n d e u este :

49
- D izei da m i n h a parte ao conde q u e não l eve as coi sas a
m a l . Nada trago d o q u e é s e u ; q u e m e d e ixe i r e m paz.
R etorq u i u - l h e o c o n d e :
- N ã o h á - d e i s to fi c a r a s s i m ! H á - d e p aga r- m a s t o d a s
j u n ta s : a s q u e m e f e z e e s tá faz e n d o . Ago ra v a i s a b e r o
d e ste rrado q u e m ve i o ofe n d e r !
To r n o u - s e o m e n sage i ro e e ntão e n te n d e u o C i d q u e , a
m e n o s d e d a r batal ha, não passaria dal i .
- Eia, cava l e iros! Po n d e a salvo o q u e é vosso, vesti pres­
te s a s armas, que o con d e Dom Remont q u e r dar- n o s batal ha.
Tra z g ro s s a s g e n te s m o u ras e c r i stã s ; e a m e n o s de p e l e ­
j a r m o s , p o r nada n os d e ixará. Se nos adiantás s e m o s , b u s ca r ­
- n os - ia m . Seja p o i s aq u i a l i d e ! Ape rtai as c i l h as, c i n g i os fe r­
ros. El e s d e s c e m a e n c o sta, e tod o s ve ste m cal ças e u sa m s e ­
las rasas c o m as c i l has largas. N ós m o nta m o s e m s e l as gal egas
e u s a m o s botas por c i m a das cal ças. Cem dos nossos d eve m
ve n c e r aq u e l as m e s nadas. Antes q u e a p e i e m , aponte m o s - l h e s
as l a n ças. Po r cada u m q u e enfiardes, ficarão vazias três s e l as .
Ve rá R e m o n t Ye rengu e l a q u e m q u i s a l cançar n e ste p i n h a l d e
Tévar a fi m d e l h e ti rar q ua nto gan h o u !
Q u a n d o o C i d aca b o u d e fa lar, tod os e s tão a po nto, d e
a r m as vesti d as e m o ntados. V i ram descer a e n costa a s forças
d o s f ra n c o s , e , q u a n d o e stas h av i a m c h eg a d o a o r é s d a
p la n íci e , o C i d , o q u e e m boa h o ra nascera, m a n d o u car regar.
D e a l m a e c o ra ç ã o, o s d o C i d a c o m e te m - e tão b e m
e m p r e g a m a s l a n ç a s , q u e a u n s v ã o fe r i n d o e a o u t r o s
d e rr i b a n d o.
A s s i m ve n c e u a bata l h a o q u e nasceu e m b oa h o ra, e a ss i m
h o n ro u s uas barbas.

50
Pre n d e u o con d e Dom Re m o nt e gan h o u a e s pada Colada,
q u e val ia mais de m i l marcos.

Pre s o o co n d e , l evo u - o o Cid para a sua te n da, m a n d o u


q u e o g u ardass e m , e l ogo sa i u . Iam chegando o s s e u s , e a l e ­
g ra - s e o C a m p e a d o r ao ve r q u e traze m ga n h o s tão b o n s .
E n'tão p re param a o C i d fartos man jares, mas o con d e D o m
R e m o n t n ã o fazia caso d e l e s .
P u n h a m - l h o s d ia n te , p o r é m o c o n d e n ã o l h e s tocava e
d e s d e n hava d e tod o s :
- N e m p o r q u a nto h á e m toda a Espan h a co m e re i u m b o ­
cado q u e s eja: a nte s p e rd e re i o corpo e des p ed i re i a a l ma,
pois q u e tai s m a l cal çados m e ve nceram a m i m !
D i ss e - l h e o C i d R u i D ias o q u e i d e s ouvi r :
- C o n d e , c o m e i d e ste pão e b e b e i deste v i n h o. S e i sto fi ­
zerdes, s e re i s l ivre; s e não, não to rnare is a ve r cri stãos e m
d ias d e vossa vida.
- C o m e i vós, Dom R o d r igo, e fo lgai ! Po r m i m , q u e ro
m o rre r e nada co m e re i .
Até ao terce i ro d i a n i ng u é m consegu i u q u e e l e c o m e s s e ;
p o i s q u e t o d o s s e e m p regam e m re parti r o d e s p oj o, n ã o
p o d e m o c u par-se e m q u e o co n d e e n g u l a u m bocado.
To r n o u a d ize r- l h e o Cid:
- C o m e i , co n d e , comei algu ma coi sa, pois d o utro m o d o
não to rnare i s a ver cri stãos; e , se co m e rd e s a m e u rogo, a v ó s
e a dois dos vossos fidalgos de ixare i em liberdade e dare i a mão.
Q ua n d o tal ouvi u , o conde fo i-se a l eg ra n d o :
- C i d , s e fizé s s e i s o q u e m e d ize i s , te ria e u vi sto a m a i o r
m aravi l ha da m i n h a v i d a !

51
- Po i s c o m e i , co n d e , e q ua n d o h o u verdes jan tado, a vós e
a d o i s d o s vos sos dare i a mão. Mas sabei q ue d e q uan to ha­
ve is p e r d i d o e e u ga n h e i em cam p o, não vos dare i seq u e r u m
d i n h e i ro fa l s o, p o i s t u d o m e é n e c e s s á r i o p a r a e s t e s q u e
a n d a m passan d o m i s é rias com igo, As s i m vamos vive n d o, to­
m a n d o o vo s s o e o d e o u tr os ; e l evare m o s e sta v i d a
e n q uanto a p rouver a D e u s , como convém a q u e m padece da
i ra d e e l - re i e teve d e d e ixar a s ua te r ra.
A legre e stá o c o n d e e p e d e águ a às mãos, s e n d o l ogo ser­
v i d o. E, c o m o os d o i s cavale i ros a quem o Cid havia dado a li­
b e rd a d e , o c o n d e começa a co m e r, Deus! com que a p etite !
A s e u lado, d iz o q u e nasceu e m boa hora:
- C o n d e , se não comerdes o bastante para m e satisfaze r,
a q u i ficare m o s m o ran d o e n u n ca mais nos deixare m o s . . .
To r n o u - l h e o con d e :
- Po r gosto e d e vo n tad e !
E c o m efe i to , ta n to e l e c o m o o s s e u s d o i s cava l e i r o s
c o m i a m · b e m e d e p re ssa, d o q u e o Campeador se contentava,
ve n d o q u e o c o n d e tão bem e m p regava as mãos.
- C i d , se vos aprouver, pod e remos i r- n o s já. M a ndai dar-
- n os caval o s . Sa b e i q u e d e s d e q u e sou c o n d e n u n c a j a n t e i
c o m ta n to gosto ! E jamai s e s q u e c e re i este p raze r.
D ã o - l h e s t r ê s palafré n s r i ca m e n te s e l a d o s e b oas vesti­
m e n tas d e ma ntos e p e l es. Ao con d e D o m R e m o nt, ladeado
dos s e u s d o i s fi dalgos, acom panha o Caste l h a n o até fo ra da
p o u sada:
- C o n d e , p o d e i s parti r à g u i sa d e m u i franco, e eu vos
agra d e ç o q u a nto nos d e ixa i s . S e um d ia vos v i e r d e s e j o de
vos v i n gard e s e m e q u i s e rd e s b u s car, enviai- m e ante s av i s o : e

52
e n tã o m e d e ixa re i s d o mais q u e trouxerdes o u l evare i s d o
q u e fo r m e u .
- Folga i , C i d , q u e bem l ivre estais d is s o ! Pag u e i -vos tri­
b uto por tod o este a n o. E q uanto a vir b u scar-vos, não p e n s o
e m tal . Cam i n hava açodado o con de, volta n d o para trás a ca­
b eça, n o te m o r d e q u e o Cid se arre p e n d esse . Não o far i a
c o n t u d o o av i s a d o Ca m p e a d o r p o r q u a n to h o u v e s s e n o
m u n d o, p o i s jamais e m sua vida com ete u d e s l ea l d ad e . Parti d o
o c o n d e , to r n o u o d e B ivar às s u as m e s nadas e alegro u - s e
c o m e la s d o s m a rav i l hosos gan h o s havidos. T ã o r i co s estão
o s s e u s q u e não sabem o q u e tê m !

53
tJ�ttn/�lr>
c a1n1,ar
Povo o u o C i d o p o rto d e A l u cat, deixou Saragoça e s uas
te rras, deixou H u esca e a s te rras d e M o n te Alva n . E come­
ç o u a g u e rrear até ao mar salgado. D o O ri e n te sai o S o l : a
e s s a s p a r t e s s e v a i . G a n h a X é r i c a , O n d a e A l m e n a r. E
c o n q u i stadas te m todas as te r ras d e Borriana.
Aju d o u - o o Criador, o S e n h o r que está no C é u .
D e p o i s daq u e las te r ras, to m o u a d e M u rv i e d ro. Conti n u a
o C i d a v e r q u e D e u s l h e va i val e n do.
E d e ntro d e Va l ê n c ia não é pouco o medo.
D e c i d i ra m , p o i s, os de Val ê n c ia, após co n s e l h o q u e fi ze­
ram , vir ce rcar o b o m Cam pead o r. Saíram d e n o ite e ao ama­
n h e c e r p l a n taram as te ndas ce rca d e M u rvied ro.
Ve n d o-os, o Cid excl a m o u :
- Lo uvado sejas, P a i es p i ritua l ! Em s uas te rras e stam o s e
tod o o mal l h es fazemos: b e b e m o s d o s e u v i n h o e c o m e m o s
d o s e u p ã o : se p o i s nos vêm c e rcar, com d i re i to o faze m . A
m e n o s d e p e l eja, i sto não s e d e c i d e . Enviemos mandados aos

57
q u e d e ve m aj u d a r- n o s : u n s e m X é r ica, o u tros e m Al u cat;
e ste s e m O n da, aq u e l e s e m A l m e na r ; e acudam ta m b é m o s
d e B o r r i a n a . Pe l e j e m o s e m l i de cam pal , e e u m e fi o e m D e u s
q u e h ave mos d e ve n ce r !
Ao te rcei ro d i a acham-se juntos todos, e começou a fal a r
o qu e e m boa h o ra nasce u :
- O uv i , m e s nadas, assim o Criad o r vos salve ! D e p o i s q u e
n o s parti mos d a l i m pa C ristandade - e não o fizemos p o r gos­
to, mas p o rqu e teve de ser -, as nossas coisas foram s e m p re
p o r d iante , graças a D eus. Agora n os ce rcam o s d e Val ê n cia:
s e qu i s e r m o s d e m orar n estas terras, fo rçoso é esca r m e n tá­
- l o s . Passe a n o ite, ve n h a a man hã, e p restes sede montados e
a rm a d o s , a fi m d e i rmos ve r aqu e l e exé rcito. Al i se sa b e rá
quem m e rece o s o l d o e ntre os l a n çados e m terra estra n h a !
Ao Campead o r d i s s e Á lvaro Fánez M i naya:
- Ca m p ead or, façamos o que vos ap raz. D a i - m e a m i m
c e m caval e i ros, mais n ã o peço. C o m o s o u tros, assa ltai vós a
fre n t e . N ão h á d ú v i d a q u e h ave i s d e b rava m e n te fe r i - l o s .
C o m o s m e u s c e m acometê - los-ei d e o utra banda, e fi o e m
D e u s qu e o cam po s e rá n osso.
A p ro uve ao Cam p ead o r quanto ouvi u . Q u a n d o aman h e c e ,
a r m a m - s e , e cada u m s a b e o q u e l h e respe ita. C o m o s alvores
da man h ã cai s o b re os m o u ros o C i d :
- Em n o m e d e D e u s e do apóstolo Sant'lago: a eles, cava­
l e i ros, d e alma e coração! Que e u sou Rui Dias, o Cid d e Bivar!
E s ta l a m a s c o r d a s das te n d a s , a s e s ta cas a r ra n c a m - s e ,
d e r r u b a m - s e o s postes.
Porém os m o u ros são vastos e parecem reco b rar-se .
I nveste c o m e l e s Á lvaro Fánez p o r o u tra parte e , a i n da
que l h es c u ste, já tê m d e rec uar e m u itos d e fugir a u n ha s d e

58
c av a l o. M ata m o s c r i stãos a d o i s e m i res e n qu a n to o s vão
p e rsegu i n d o, e acossam os m o u ros até Val ê n c ia.
R e co l h e m a i s b e l os ga n h o s o Cid e, saqu ead o o cam p o,
e ntraram e m M u rvi e d ro com o rico des poj o.
Em tod o o l ugar reina alegria. Conqu istada está P u ig c o m
s e u s arredores.
E m Val ê n cia o medo é tanto que não sab e m qu e faze r.
S a b e i que a fa ma d o C i d vai dando que fal a r !
E esta fama atrave ssa o mar, e c resce sem p re . Co nte ntes,
o C i d e s u a c o m p a n h a d ã o g r a ç a s a D e u s , qu e ta n to o s
aju dara n a g u e r ra.
M o nta d o s em b o n s corredores, faziam s o rtidas de n o ite .
C h ega m a G u ge ra e a Xátiva e , m a i s a b a i x o, a o p ov o d e
D e n ia. Assolam as te r ras dos m o u ros até à s p raias d o mar, e
ga n h am a Pe n h a Ca d i e la, com s u as saídas e e ntradas.
E n tão, e m Val ê n c ia, já não e s c o n d e m a dor !

E m te rra d e m o u ros, c o n qu i stan do e saqu ean d o, d o rm i n d o


d e d ia e ve l a n d o a s n o ites, to mando u m a v i l a e d e p o i s o utra,
passou o Cid três anos.
Tão escarme ntados e stão os d e Val ê n cia que não ousam
s a i r nem s e atreve m a b u s cá- l o.
Q ua n d o e l e l h es tal ava os campos e l h e s ti rava a n o após
ano o pão, os d e Val ê nc i a qu eixavam-se, mas não sabiam qu e
faze r. D e n e n h u ma p arte o pão l h e s vi n ha. N ão p o d ia o pai
s oc o rre r ao fi l h o, n e m consolar o am igo a s e u am igo.
Q u e d u ra mágoa, s e n h o re s , é a m í n g u a d e p ã o, e v e r
m o r r e r à fo m e m u l h e r e s e fi l h o s ! As s i m v ê e m e l e s s u a
m i s é ria, p o r é m não l h e acham reméd io.

59
Enviara m recado ao re i d e M arrocos; mas este , q u e h avia
b rava g u e r ra com o d e M o ntes Claros, não l h e s deu con s e l h o
n e m aju da.
S o u b e - o o Cid e o coração alegro u - se - l h e !
S a i u d e M u r vi e d ro u ma n o ite e ama n h e ce u - l h e e m te rras
de M on te Rea l . M a n d o u d eitar p regõe s por Aragão e N avarra
e e nv i o u m e n s agei ras a Caste la, d izendo q u e q u e m q u i s e s s e
d e i x a r c u i d a d o s e c h egar a r i co, v i e s s e a o C i d , a m igo d e
b atal has, q u e q u e ri a gan h a r Val ên cia para a dar a cri stãos.
« Q u e m q u i s e r v i r c o m i g o p a r a c e r c a r Va l ê n c i a - e
ve n h a m tod o s d e grado, n e n h u m por fo rça - e u o e s p e rare i
três d ias n o Canal d e Ceifa.»
Isto m a n d o u p regoar o l ea l C a m p e a d o r, e to r n o u - s e a
M u rv i e d ro, q u e j á ti n h a por s e u .
Correram p o r toda a pa rte p regões e , ao c h e i ro d o s ga­
n h os, sem tarda n ça m u itas ge ntes da boa c r i standade ac u d ia m .
Ao passo q u e ta i s n ovas corre m , v a i a u m e nta n d o a campa­
n h a e das mesnadas d o Cid n i nguém dese rta. Cresce e m r i q u eza
o Cid de Bivar. E alegra-se de ver a l i tanta s o ma de ge nte ju n ta.
N ã o q u i s e n tã o D o m R o d r i g o e s p e ra r m a i s - e p a r a
Va l ê n c i a s e a d i a n ta. Dá s o b r e e l a; ce rca-a tão b e m c e rcada
q u e l h e não d e ixa escape. M a rca - l h e um p razo, para ve r se
alg u é m a socorre . Por n ove meses i nte i ros ape rto u o ce rco, e
n o ú lti mo m ê s tive ram d e l h a e ntregar.
Q u e al egria q u a n d o o C i d gan h o u Val ê n cia e e ntrou n a c i ­
d ad e ! O s q u e fo ram a p é j á a n d a m a cava l o . Ao o u ro e à
p rata , q u e m p o d e r i a c o n tá- l o s ? Estão to d o s r i c o s ! O C i d
to m o u o q u i n to : trinta m i l marcos e m moeda, fo ra o s h ave res
sem co nta.

60
Q ua n to se al egra o Cam p eador com tod o s o s s e u s q u a n d o
vê p l a n ta d a a s ua i n sígn i a n o alto do alcáçar!

D e scansava o Campeador com a sua campan ha. Entre m e n ­


te s c h egou ao re i d e S evi l h a a n ova da to mada d e Val ê n c ia. E
l ogo e ste march o u para al i com tri n ta m i l h o m e n s armados.
F e r i u - s e a bata l h a ao fu n d o de um cam po, e o C i d das l o ngas
b a r b a s d e i x o u -os d e stroçados. A p e l ej a ch ego u até Xátiva;
q ua n d o atraves saram o Xácar iam d e s baratados, e aí tive ra m
d e b e b e r ág ua ao l u tare m contra a corre nte .
A q u e l e re i d e Sev i l h a pôde e scapar, com três golpes; o C i d
re c o l h e u mais este des poj o, e m u ito p roveitosa l h e fo i esta
v i tó r i a d e p o i s da o utra, a maior, q u e l h e d e ra a c i d ad e . Até
aos ínfi m os da c a m p a n h a cou b e ram cem marcos de p rata.
Já ved e s como med rava o cava l e i ro !
Ass i m re i n a a a l egria e n tre todos e s s e s cri stãos q u e e stão
c o m o C i d R u i D ias, o q u e nasce u em boa h ora. E ntreta n to
crescera m u ito a e ste a barba, q u e se alo ngava. T i n h a e l e d ito
u m d i a q u e , « p o r a m o r do rei Afo n s o, q u e me d e sterro u » ,
n ã o e ntraria tes o u ra n e la, n e m l h e e s p a n taria u m cab e l o - e
q u e m o u ros e cristãos d i ssessem o q u e q u i s e s s e m .
D e scansa, p o i s , e m Val ê n cia o C i d Dom Rod rigo, e n ã o o
d e ixa u m m o m e n to Á lvaro Fáfíez M i n aya. E n riq u e c i d o s e stão
o s q u e s e d e ste r raram com e l e , aos q ua i s o Campeador, para
m a i s os c o nte n tar, d e u casas e h e rdades e m Val ê n c ia. D e ste
m o d o co n h e cem q uanto é largo o s e u a m o r. Aos q u e se l h e
j u n taram mais ta rd e , j á l h e s pagou tam b é m ; mas estes b e m vê
o Cid q u e se p u d e s s e m i r-se , to rnariam a suas te r ras com o s
h ave re s. E ntão d i s pôs q u e a q u e m abalas se s e m se d e s pe d i r e

61
l h e be ijar a mão, o p re n d essem, l h e tirasse m o q u e h o u ve s s e
e o e nfo rcassem.
- S e b e m vos parecer, M i naya, q u e ro contar os que aq u i
e stão e c o m igo h ouveram gan h os: contados sejam e a p o n te­
-se o n ú m e ro. S e a l g u é m s e e s c o n d e r ou se e n c o n t r a r a
m e n o s, o q u e h o uve r d e s e u há-de dá- l o aos m e u s vassal o s
q u e a n dam rondan d o Val ê n cia.
- D e bom con sel h o é - tor n o u M i naya.
M a n d o u , p o i s , q u e se j u ntassem todos na corte, e fê - l o s
n o m ea r e conta r : q ua n d o viu q u e h avia três m i l e s e i sce ntos,
o Cid a l eg ro u - s e e começou a dizer, sorri n do :
- G raças a Deus, M i n aya, e a Santa Maria Madre! Com b e m
m e n os saímos da casa de Bivar . . . Agora have mos riqueza, e mais
v i r e m o s a te r. S e vos agradar, M i naya, e vos não fize r tran stor­
n o, q u i se ra que to rnásseis a Caste la, onde estão nossas h e rda­
des, e falásseis d e n ovo a e l - re i Afo n so, m e u s e n h o r n atu ral.
D e tu d o o q u e j á ga n h e i , q u ero ago ra ofe rtar- l h e cem cavalos,
e vós l h o s l evare i s . Beij a i - l h e a mão por mim e rogai-l h e , ro­
ga i - l h e a m e rcê de deixar q u e a m i m ve n h a m m i n h a m u l h e r,
D o n a Ximena, e m i n has fil has. Então mandarei por e l as, e ouvi
a m i n ha m e n sage m : «Que a m u l her d o Cid e suas fi l has m e n i nas
ve n ham com grand e h o n ra às terras estranhas que ele gan hou.»
M i n aya respon d e u :
- D e b o m grado!
H ave n d o falado ass i m , concertam a partida.
D e u o Cid a Á lvaro Fáfíez cem h o m e n s para d e boa me nte
o servirem na j o r nada.
M a n d o u m i l marcos d e p rata a São Pe ro, e q u e d e s s e a
m etad e ao abade D o m San c h o.

62
N e s t e c o m e n o s , e co m a l e g r i a d e to d o s , c h ego u d a s
parte s d o O rie nte u m c l é rigo a q u e m chamavam o b i s p o D o m
J e ró n i m o. Era m u ito versado em l etras , de avi sado â n i m o e
tão e sforçado a pé como a cava l o. Ass i m b u s cava e l e n ovos
p roveitos ao Cid, e s u s p i rava por q u e e ste saísse o utra vez a
l i dar e m cam p o com m o u ros, a fi m d e se fartar d e p e l ejar -
e q u e e m d ias d e s u a vida o não lastimasse n i ng u é m .
Q ua n d o o Cam p ead o r o ouvi u , fi cou m u ito agradado:
- O uv i , Á l va ro F á n e z M i n aya, por Aq u e l e q u e no a l to
e s t á : p o i s q u e a D e u s ta n to a p r a z a j u d a r- n o s , b e m l h o
d ev e m o s agrad e c e r. Q u e ro faz e r u m b i s pa d o e m te rras d e
Val ê n ci a e dá- l o a e ste b o m cristão. Q ua n d o fo rd e s a Caste l a,
l eva re i s mais e sta boa n ova.
Agradou a Á l varo Fán ez o q u e l h e d i sse D o m Rod rigo. A
e ste D o m J e rón i mo o u torgam o b i s pado d e Val ê n c ia, o n d e vi­
ve rá co m e s p l e n d o r. Deus! q uanto s e al egram todos o s cris­
tão s por h ave rem j á agora e m te rras d e Va l ê n c i a u m s e n h or
b is po !
M i n aya, m u ito contente , d e s p e d i u - s e e parti u .

D e i x a d a s e m p a z a s te r r a s d e Va l ê n c i a , Á l v a r o F á n e z
M i n aya e n d i re itou a Caste la.
C h egado que foi aí, p ergu n to u onde poderia falar a e l - re i
D o m Afo n s o . C o m o e l - r e i p o u c o a n te s p a r t i r a p a ra S a n
F ag u n t, e n ca m i n h o u - s e para Carrió n , o n d e o e nc o n traria, e
c o m o s e u prese nte s e ad iantou para lá. Saía da m issa e l - re i
D o m Afonso, e e i s q u e o gentil M i naya s e l h e ace rca. Aj oe­
l h a - s e - l h e aos pés d ia n te d o p ovo to d o e, b e i j a n d o - l h e a s
m ã o s , c o m e ç a a d i ze r as s i m :

63
- M e rcê, s e n h o r D o m Afo n so, em n o m e d o Criador! C o ­
m o a s e u s e n h o r natu ral , o Cid Campeador be ija-vos as mãos
e os p é s e roga-vos - ass i m o S e n h o r n o s val h a - que l h e s
faç a i s m e rc ê ! D e s u a te r ra o l a n çaste e l á n ã o te m vos s o
a m o r. M as, a i n da q u e e m terra e stra n ha, vai a tod o s faze n d o
b e m . To mada X é r i ca e a c h amada O n da, to m o u Al m e n a r e
M u rv i e d ro , q u e é m e l h o r ; o m e s m o fez a P u ig, a d i a nte a
Castej 6 n , e d e p o is a Pe n ha Cad i e l a, q u e é fo rte p e n h a. Enfi m ,
to m o u Val ê n cia, d e q u e é s e n h o r, e o n d e h á criado p o r s u a
m ã o a u m b i s p o. Pe l e j o u e m c i n co bata l h a s c a m p a i s e e m
todas ve n c e u . D e u - l h e o Criador gran d e s ri q u ezas. A s p rovas
da ve r d a d e , e i - l a s aq u i : c e m cava l o s fo r te s e c o r r e d o r e s ,
e nfreados e s e l ados, os q uais o C i d roga q u e ace ite i s . E l e é
vosso vas sal o e vós o s e u s e n h o r !
E rg u e n d o a m ã o d i reita, e l - re i b e n ze u - s e :
- Va l h a - m e S a n to I s i d r o ! A l eg r a - s e - m e o c o r a ç ã o a o
s a b e r q u e o Campeador gan h o u tanta r i q u eza, e e s sas n ovas
todas me co nte nta m . Aceito o dom de stes cava l o s .
Po rém o q u e apro uve a e l - re i , pesou a G a r c i a O rd ó n ez:
- Parece q u e e m te rra d e m o u ros não h á v ival ma, p o i s
p o r lá faz q uanto q u e r o Cid Ca m p eador!
- Ta l n ã o d i g a i s , c o n d e , q u e em t u d o me s e r v e e l e
m e l h o r d o q u e vós - ata l h o u e l - re i .
Prossegu i u M i naya c o m o esforçado va rão:
- S e n h or, a m e rcê q u e o Cid vos pede, se vos ap raz sabê-
- l a, é que s u a m u l h e r, Dona X i m e na , e s uas fi lhas saiam d o
m o s te i ro o n d e e l e as h á d e ixado, e s e l h e v ã o j u n ta r e m
Va l ê n cia.
R e s p o n d e u e n tã o e l - re i :

64
- D o c o r a ç ã o o co n c e d o . E u a s fa re i a b a s te c e r e n ­
q ua n to j o rnadeare m por m i n has te r ras e as guardare i d e todo
o d a n o e a f r o n ta . Q u a n d o c h e g a r e m à f r o n t e i r a , a o
C a m p e a d o r e a v ó s r e s p e i ta r á s e r v i - l a s . O u v i - m e , p o i s ,
m e s n a d a s e to d a a m i n h a c o rte ! N a d a q u e ro q u e p e r c a
o C a m p e a d o r. A t o d o s q u e p o r s e n h o r o r e c o n h e c e m ,
r e s t i t u o q u a n to l h e s c o n fi s q u e i : q u e p o r s u a s h a j a m a s
h erdades, o n d e q u e r q u e s e achem com o C i d . S e u s corpos
l ivro d e castigo, e tu d o isto faço para que s i rvam b e m a s e u
s e n h o r.
Á l v a r o F á ri e z M i n aya b e i j ava - l h e a s m ã o s ; e e l - re i c o n ­
ti n u o u , s o rr i n d o c o m m u ita ge nti l eza:
- Aos q u e q u e i ram i r s e r v i r o Cam peador, dou m i n h a l i ­
c e n ç a e q u e vão n a graça d e D e u s . M ais gan haremos c o m isto
q u e e m tratá - l o c o m desamor.
A q u i o s m oç os C a rr i o n s , q u e e ra m fi l h o s d o c o n d e
daq u e las te rras, p u s e ram-se a d ize r u m a o outro:
- M u i to vai c r e s c e n d o p o r ta i s faç a n h a s o C i d Ca m ­
p eado r ! S e casáss e m os com a s fi l h as d e l e , b e m n o s i ri a a n ó s .
N ão o u saríamos porém mostra r este d e s ejo, q u e o C i d é d e
B ivar e n ós v i m o s d o s c o n d e s d e Car rió n .
E calara m - s e c o m e stes p e n same ntos.
Á lvaro Fári ez M i n aya d e s p e d i u - s e d o seu bom re i .
- I d es -vos p o i s ? - disse este . - I d e e ntão c o m a graça
d o Criador! Leva i a um m e n sage i ro, q u e po d e rá convi r-vos.
S e a co m p a n h ard e s as s e n h o ras, se rvi -as a s e u conte n to. Até
M e d i n a d a r- l h es - e i tudo o q u e p re c i sare m ; de ai p o r d i a n te
c u i dará d e las o Campeador.
D e s p e d i u - s e M i naya e fo i - s e da corte.

65
D e c i d i ra m - s e e n tretan to o s m o ç o s C ar r i o n s . Aco m pa ­
n ha m a M i n aya e vão-l h e d iz e n d o :
- C o m o d e tudo v o s s a í s b e m , assim s e j a com isto: saudai
d a n ossa pa rte ao Cid d e B ivar, d i ze i - l h e que o s e r v i re m o s n o
q u e p u d e rm o s , e q u e nada p e r d e rá e m n os ter p o r s e u s .
R e s p o n d e u Á lvaro Fán ez:
- N a d a me cu stará d izer- l h o.
M i n aya parti u : o s m o ç os Car r i o n s to rnaram.
E n ca m i n h o u - s e aq u e l e para o moste iro d e Car d e n ha, o n d e
as s e n h o ras estavam . Ve n do-o asso mar, q uanta alegria sente m !
A p e o u M i n aya e fo i rezar a São Pe ro. Acabada a o o ração,
fa l o u às s e n h o ras:
- D ia nte d e vós m e h u m i l ho, Dona Xime na, a q u e m D e u s
guarde d o m a l , a s s i m c o m o a vossas fi l has a m bas. Saú da-vos o
C i d l á d e a l é m d o n de e stá. M u ito rico e são o d e ixei. A m e rcê
de e l - re i vos e n trega a mim, para q u e vos l eve a Val ê n cia, q u e
o r a h ave m o s p o r h e rdade . Q ua n d o o C i d vos v i r ass i m b e m
c o m o estais, tão al egre fi cará q u e não se ntirá mais pe nas.
- O Criador o mande! - d i sse D o n a X i m e n a.
Á lvaro Fánez M i naya enviou a Val ê n c ia três cava l e i ros c o m
e ste recad o :
- D i z e i ao Ca m p eador, a q u e m D e u s l ivre d o m a l , q u e
a s u a m u l h e r e s u a s fi l h as c o n c e d e u e l - re i a l i be rd a d e ; q u e
e n q u anto fo r m os p o r te rras d e Caste l a n o s dará s u ste nto,
e q u e d e n t ro de q u i n ze d i a s , se D e u s q u i s e r, e s t a r e m o s
e m Val ê n cia, e u , s u a m u l h er, suas fi l h as e as d o n a s q u e e las
tê m .
Abalam os cava l e i ros e Á lva ro Fánez M i n aya d e m o ra a i n d a
e m S ã o Pero.

66
I a m c h ega n d o a l i de todas as partes cava l e i ros q u e q u e ­
r i a m j u n tar- s e a o C i d de Bivar. E ped iam a Á lvaro Fán ez l h es
d e s s e d e s pac h o.
- Com gosto vo- l o dare i - re s p o n d ia M i n aya.
J u n tam-se ali sessenta e cinco cavaleiros, sem contar os cem
que M i n aya trouxera: boa compa n h ia para i r com as se n h oras.
D e u M i naya os q u i n h e n tos marcos ao abad e , e d i r-vos-ei o
q u e fez d o s outros q u i n h e n tos. Trato u o b o m M i n aya de pro­
v e r d o s m e l h o re s ve s t i d o s e atav i o s q u e p ô d e a c h a r e m
B u rg o s a D o n a X i m e n a , a s u as fi l h a s e d o n as , e e s c o l h e u
p a l afré n s e m u las para e las. Q ua n d o h o u ve co m p rado e com
q u e p rove r as s e n h o ras, o bom M i n aya volto u a São Pero e
p e n s o u e m cavalgar. Reú n e-se- l h e m u ita gente; e fo i c h e ia d e
p e n a a d e s p e d i da d o abade D o m Sanc h o :
- O C r i a d o r v o s val ha, Á lva ro F á n e z M i n aya! B e i j a i p o r
m i m as m ã o s ao Cam peador e q u e n ã o esq u e ça este m o ste i ­
ro, p o i s e m o p rotege r se acrescenta rá.
R e s p o n d e u - l h e M i naya:
- De bom grado o fare i, dom a bad e .
D e s p e d e m-se e põem-se a cam i n h o, leva n d o a s e u s e r v i ç o
u m m e n sage i ro rea l .
Po r toda a terra de e l -rei os abastece m com fartu ra. Vão
em c i n co d ias d e São Pero a M e d i n a.
E aq u i de ixamos as s e n h o ras e m com pa n h ia de Á lvaro Fán ez.

A g o r a v o s d i r e i d o s c ava l e i r o s q u e l e v av a m ao C i d a
m e n sage m . Na h o ra e m q u e e l e os ouvi u não cabia e m s i de
c o nte nte e c o m e ç o u a dize r :
- Q u e m b o m m e n sage i ro m a n da, b oa m e n sage m rec e b e !

67
Tu , M u n o G u stioz, e tam b é m tu , Pe ro Ve r m ú doz, e M arti m
Anto l í n ez, o leal b u rgal ês, e o b i s p o D o m J e ró n i m o, b o m c l é ­
r ig o , cava l g a i c o m c e m h o m e n s a r m ad o s c o m o s e foss e m
l i dar. Passare i s p o r Santa M aria, ireis a d ia nte a M o l i na, c u j o
a l caide é Ave ngalvo n , m e u am igo, c o m q u e m e stou e m paz, e
v o s d a rá o u t ro s c e m cava l e i ro s . Ad i a n ta i - v o s q u a n t o p u ­
d e rd e s para M o l i na: por n ovas q u e rec e b i , a í deve i s e n con tra r
m i n h a m u l h e r e m i n h as fi l h as, às q u a i s M i n aya a co m p an h a .
Tr a z e i - m a s p a r a c á c o m g r a n d e s h o n r a s . E u f i c a r e i e m
Val ê n cia, q u e ta n to m e cu stou a gan h a r ; seria l ou c u ra d e s a m ­
p a rá- l a agora. F i ca re i e m Va l ê ncia, pois p o r h e rdade a te n h o.
D ito q u e fo i i sto, cavalgam e andam q u anto p o d e m .
P a s s a r a m p o r S a n ta M a r i a , fo r a m a l b e r g a r- s e e m
F ro n c h a l e s e n o d ia segui nte p o u saram e m M o l i na.
O m o u ro Ave ngalvo n , q ua n d o rece b e u a m e n sage m , aco­
l h e u -o s com m u ita a l eg ria:
- Sois vós vas salos do m e u bom a m igo ? Sabei que m u ito
m e a p raz rece b e r-vos.
M u n o G u sti oz retorq u i u - l h e l ogo:
- O Cid vos saúda e manda ped i r q u e sem tardança l h e
d e i s c e m caval e i ros. S u a m u l h e r e fi l has estão e m M o l i na. D e ­
seja o Cam peador q u e a s b u s q u e i s e ac ompa n h e i s até Va l ê n c ia.
- Da m e l h o r vontade - d i sse Ave ngalvo n .
D e u - l h e s o a l ca i d e b o a c e i a e d e m a n h ã a b a l a r a m . H a ­
v i a m - l h e p e d i d o ce m h o m e n s ; e l e partiu c o m d u z e n tos. Pas ­
sam as se rras a l tas e b ravas, d e aí a mata d e Ta ranz. D e ta l
g u i sa vão q u e n ada te m e m , e baixa m ao val e de A r b u x u e l o .
Q u a n d o e m M e d i n a v i r a m a d i a n ta r- s e ta n t o s h o m e n s
a r m a d o s , Á l varo F á n e z M i n aya, b e m p re catad o, re c e o u , e

68
e n v i o u d o i s cava l e i ros a re c o n h e c e r aq u e l a s g e n te s . E s t e s
p a r t e m l ogo, como p restáve is q u e são; u m d e l e s fi ca c o m o s
recé m-vi n d o s e o outro tor n a a Á lvaro Fáfíez:
- São gentes d o Ca mpeador e vêm a b u s car- n os, traz e n ­
d o à s u a fre n te a Pero Ve r m ú doz e a M u n o G u sti oz, q u e ta n ­
t o v o s e sti m a m , a M a rtim Antol í n e z, o l ea l b u rgal ê s , e a o
a l c a i d e Ave n g a l vo n , q u e p o r a m o r d o C i d traz a o s s e u s .
J u ntos vê m e p restes se rão aq u i .
- Va mos- l h e a o e n co n tro.
Logo se a p ressam ce m fo rmosos caval e i ros em b o n s cava­
l o s c o b e rtos de g u a l d rapas, com pe itorais d e cascavéis; l eva­
vam os e s c u d os p e n d e nte s como colares e e m p u n havam l a n ­
ças co m p e n d ões .
Á lvaro Fá fíez M i n aya a tod os q u e r m o strar d e q u anto é
capaz para aco m pan har desde Caste la a s e n h o ras ta i s .
E n q u a n to vão cava l g a n d o , fl o r e i a m c o m a s a r m a s , fo l ­
gam e m despo rtos, e ass i m al egres passam à b e i ra do
S a l ó n . Q u a n d o o s o u t r o s c h e ga m , v ê m p ro s t r a r- s e a n te
M i n aya.
E Ave ngalvo n , q u e o o l ha a s o r r i r- s e , ace rca- s e , abraça-o e
b e i j a- l h e o o m b ro, conforme o u s o :
- E m d itoso d i a v o s vejo, Á l va ro F á fí e z M i n aya! A e stas
s e n h oras traze i s , p e l o q u e mais va l e m o s : a m u l h e r do C i d
C a m p e a d o r e s uas fi l has. Todos a s h o n rare m o s , c o m o c o n ­
v é m ao C i d ; p o i s a i n d a q u e m a l l h e q u i s é s s e m o s , n ã o l h o
p o d e r í a m o s fa z e r. D o n o s s o c o m p a rti l h a rá, n a p a z o u n a
g u e rra. E a o q u e ass i m não fize r, p o r to rpe o have re i .
C o m a b o ca ta m b é m a s o rr i r- s e , Á l v a r o F á fí e z M i n aya
torn o u - l h e :

69
- Ó Ave ngalvo n , bom am igo s o i s ! S e D e u s m e l evar e m
b e m até a o C i d , l ogo q u e o v i r l h e d i re i o q u e h ave i s fe ito,
com o q u e nada te r e i s a perder. Ago ra vamos co m e r, q u e a
ceia está p ro nta.
- M u ito me apraz vosso agasal h o - to rnou - l h e Ave ngalvo n .
- A n t e s d e t r ê s d ias, e u vo- l o retr i b u i re i ac rescentado.
Entrara m e m M e d ina, e a todos co nte ntava o e n ca rgo q u e
h av i a m to mado e o servi ç o d e M i naya. Dal i despac h o u este o
m e n sage i ro rea l .
E t o d o s h o n r av a m a o C i d , q u e f i c a r a e m Va l ê n c i a ,
h o n r a n d o a o s s e u s e m M e d i n a , o n d e l h e s d a v a m fa r t o s
c o m e re s . E l - re i tu d o paga e M i naya está q u ite d e gastos.
Pas sada que foi a n o ite , e v i n d a que fo i a m a n h ã , o u v i ram
m i ssa e cavalgara m. Saíra m d e M e d i na, passaram o Sal ó n , d e ­
r a m d e e s p oras p o r Arbux u e l o acima, l ogo passara m o campo
d e Taranz e c h egara m a M o l ina, a que Ave ngalvon man dava.
H avia n oites e dias q u e o b i s p o Dom J e ró n i m o, cri stão s e m
m a n c ha, a l i aguardava a s s e n h oras , à g u i s a d e bom cavalo d e
c o m bate q u e va i n a p r i m e i ra fi l a das armas. J u nta-se a Á lvaro
F á ii e z e q u a n d o e n tram e m M o l ina, boa e rica te r ra, o m o u ro
Ave ngalvon os s e rve m u ito b e m , sem q u e nada l h es fal te d e
q ua n to n e cess ita m . Até pagou a s fe rrad u ras d e q u e o s caval o s
p re c isava m .
D e u s ! C o m o o a l caide h on rava à s s e n h o ras e a M i naya!
N o o utro dia p e l a m a n h ã parti ram, e até ce rca de Val ê n c ia
o s s e r ve Ave ngalvon . Aí se d e s p e d i u o m o u ro, q u e d e l e s nada
a c e i t o u . Com ta i s a l e g r i a s e b oa s n ovas c h e g a r a m a t r ê s
l ég uas d e Val ê n c ia. E man dara m recado a o C i d , o q u e e m boa
h o ra c i n giu e s pada.

70
Tão a l egre ficou o Cam p eador q u e n u n ca o fo ra mais, n e m
tanto! E q u e , d o q u e mais amava, já recado l he vi n h a. M a n d o u
l ogo s a i r a d u zentos cava l e i ros a fi m d e receberem a M i n aya e
à s d o n as fi l h as d e algo. E l e d e m o ra e m Va l ê n c ia , c u i d a n d o
d e l a e g u a r d a n d o - a . E c e rto está d e q u e M i n aya tu d o fe z
c o m o convé m .
R e c e b e m , p o i s , aq u e l e s a M i naya, à s s e n h oras, à s m e n inas
e a toda a com pan h ia.
M a n d o u o C i d a todos os da s u a casa q u e guardas s e m o
a l cáçar, as torres altas, as portas, as saídas e as e ntradas da ci­
dade, e o rd e n o u q u e lhe trouxessem o caval o Bavie ca, o qual
gan h a ra havia pouco àq u e l e re i de S evi l h a ve ncido. Ainda não
sabia o Campeador, o q u e e m boa h o ra cingiu es pada, se seria
bom corredor e se ti n h a a boca macia. E q u e ri a, às portas d e
Val ê ncia cativa, jogar a s armas d iante de s u a m u l he r e s uas fi l has.
Aco l h i das com g ran d e p o m pa as damas, ad ianta-se o b i s p o
D o m J e r ó n i mo, a p e i a e e n tra na ca pela, d o n d e sai a rec e bê-­
las e ao b o m M i n aya com q u antos a l i já o e s p e ravam , vestidos
e m s o b re p e l izes e com cruzes d e p rata al çadas.
A p ressa-se o q u e nas c e u em boa h ora e e nfia um p e l ote .
O ste n ta as s u as l o ngas barbas. To mada a rmas d e fu ste , o C i d
m o n ta e dá u m a carre i ra tão d e ad m i rar q u e todos se m a rav i­
l ha m ao vê-la. Desde esse dia fo i Bav i e ca tido p o r p re c i o s o
em toda a Espanha.
Ao ca b o d a carre i ra d es cavalgo u , e adianto u - s e para s ua
m u l h e r e s u as fi l has.
D o n a X i m e n a aj oel h o u - se- l h e aos p é s :
- G raças, Campeador, q u e e m b o a h o ra c i ngi ste es pada!
De ve rgo n h o s o s tra b a l h o s m e h ave i s l i vrado. E i s - m e aq u i ,

71
s e n h o r, c o m vossas fi l h as am bas , sãs e c r iadas para s e r v i r a
D e u s e a vós.
A mãe e à s fi l h as a b r a ç av a e l e , e d o g o s to q u e s e n t i a
c h o rava m - l h e o s o l hos.
A l egrava m - s e todas a s mes nadas; j ogavam as armas e q u e ­
b rava m tavo lados.
O uvi o que d is s e o que e m boa h ora cingiu e s pada:
- Vós, Dona X i m e na, q u e r i da e h o n rada m u l h e r, com m i ­
n has fi l h as , q u e s ã o m e u coração e m i n ha a l m a , e ntrai com igo
n e sta cidade d e Val ê n cia, h e rdad e q u e para vós gan h e i !
M ãe e fi l has b e i j ava m - l h e a s mãos, e c o m m u i gran d e s h o n ­
ras e ntravam n a cidad e .
E n c am i n h o u -as o C i d para o a l cáçar e c o m e l a s s u b i u ao
p o n to mais alto.
E s p ra i a m - s e em roda o s fo rmosos o l h o s : m i ra m Val ê n c i a,
q u e se este n d e e m baixo; a l o ngam-se de o utra parte até ao
m a r ; vê e m os h o rtos i m e nsos e fro n d osos, e a d m i ra m q u anto
e stão o l ha n d o.
E n tã o l evantam as mãos a fi m d e agrad e c e r a D e u s tão
g ra n d e e boa r i q u eza!

Vive m conte ntes o Cid e s uas compan has. F o i - s e o I nver­


no; Março q u e r e ntrar. Agora vos darei n ovas das pa rte s de
a l é m - mar, daq u e l e re i l ú cef d e Marrocos, o q ua l , pesando- l h e
o q u e s a b i a d o C i d , d izia:
- M ete u -s e à força por m i n has terras, e não o ag rad e c e
s e n ão a J e s u s C ri sto !
M a n d o u e n tã o e l - re i d e M a rrocos j u n ta r a s e u s va r õ e s ,
d o s q u ais s e re ú n e m até p e rfazerem c i n q u e nta vezes m i l d e

72
armas. M eti d o s e m barcas, navegam com r u m o a Val ê n c ia, e m
cata d o Cid D o m Rodrigo.
A p o r t a m e d e s e m b a rc a m n e s s a te r r a q u e o C i d c o n ­
q u i stara. F i n cam as te n das e a l i acam pam as d e scridas gentes.
C h egara m ao Campeador tai s n ovas, e ei-lo exc lama:
- Lo u vad o seja o C r iad o r e o Pai e s p i ritual ! A tod o o
b e m q u e p o s s u o, o te n h o dia nte . C o m afã gan h e i Val ê n cia,
q u e h e i por h e rdad e , e a m e n o s d e m o r rer n ã o n a p o s s o
d e i x a r. G ra ç a s a o C r i a d o r e a S a n ta M a r i a M ad re , e stão
c o m igo m i n ha m u l h e r e m i n has fi l h as. E agora vê m a mim as
d e l ícias d e a l é m - ma r ! E m p u n harei as armas, que não p od e re i
d e p o r. M i n h a m u l h e r e m i n h as fi l h as hão-de ve r- m e p e l ejar,
e , c l a ro, hão - d e ver com s e u s o l hos como se fazem m o radas
em terras a l h eias e d e q u e modo se gan ha o pão.
Sobe o Campeador ao al cáça r com a m u l h e r e as fi l h as, e ,
b a ixa n d o a s s e n h o ra s a v i sta, o l h a r a m o ca m p o d e te n d a s
a l ç adas:
- Que é isto, C i d , ass i m o Criador nos salve ?
- Eia, h o n rada m u l h e r, não h ajais pesar! t a r i q u eza q u e
n o s cresce, marav i l h osa e gran d e ! H á tão pou co te m po c h e ­
gaste - e j á v o s q u e re m d a r p resente s . N ossas fi l has e stão
p o r casar, e traze m - n os s e u s e nxovai s . . .
- G raças a vós, C i d , e a o Pai e s p i ritual !
- F i cai-vos segu ras n o a l cáçar. Q uando m e v i rdes l idar, não
receeis. Com a m e rcê de Deus e de Santa M a ria Madre, h e i -d e
ve ncer - e o rgul ha-se-me o coração porq u e será d ia nte de vós!

O cé u cl are ia. Levantam os mou ros as te ndas e o u ve - s e o


p ress u roso rufo d o s ta m bo res. Alegra- se o Campead o r :

73
- G ra n d e d ia va i s e r e ste !
Po r é m D o n a X i m e n a te m m e d o, e o co ração pare c e q u e ­
re r saltar- l h e . As s i m tam bé m s uas fi l h as e d o nas. N e n h u ma
ta n to se ass u stara d e p o i s q u e h avia nascido.
Afagan d o as barbas, d i s s e - l h e s o C i d :
- Não h ajais tem o r, q u e é tu d o p o r voss o b e m . Antes d e
q u i nze d i as, s e D e u s q u i s e r, a q u e l es tam bores s erão n o s s o s :
e u vo- l o s trare i e ve rei s como s ã o fe itos . Dá-l os - e m os d e p oi s
ao b i s p o D o m J e ró n imo, a fi m d e q u e os d e p e nd u re n a Igreja
d e Santa Maria, Mãe d e D e u s.
C u m p r i u e sta promessa o C i d Cam p eador.
Vão as damas cobran d o â n i m o, e j á e s pai rece m .
O s m o u ros d e M arrocos, cavalga n d o e sforçados, ro m p e m
p e l os h ortos ade ntro. Vê -os a atalaia e tange o s i n o. Pre stes
e stão as m e s nadas de R u i D i as: armam-se a n i m osas a saem da
c i d a d e . O n d e to p a m m o u ro s , aí o s aco m e te m com s a n h a ,
a r roj a n do-os d o s h o rtos com tai s danos q u e a o cabo daq u e l e
d ia m ata r a m q u i n h e n t o s . A l o nga - s e o a s s a l to até o c a m p o
i n i m igo. E, a p ó s o m u ito q u e já fize ra m , c u i d a m e m reti ra r.
Cativo, l á fi c o u u m cava l e iro d o C i d . O s q u e com e m o pão d o
C a m p e a d o r to r n a m a e ste e c o n ta m - l h o. Ta m b é m o C i d o
v i r a c o m o s s e u s o l h o s . E , p o r q u a n to h a v i a m fe i t o , o
C a m p ea d o r s e conte nta:
- O uv i - m e , cava l e i ros: não ficare mos por aq u i. Bom d i a
fo i o d e h oj e , m e l h o r s e rá o d e aman hã. Armai -vos ante s da
alva; dar- n os-á a absolvição o b i spo D o m J e ró n i mo, que nos
d i rá m i s sa, e cavalgare mos. I remos aco metê-l os, co m o d eve
de s e r, em n o m e do C riador e do apósto l o Sant' l ago. M a i s
val e q u e n ó s o s vençamos, q u e co l h e re m - nos e l e s o pão!

74
D i s s e ra m l ogo to dos:
- Po r amor e d e vontad e !
Aq u i fa l o u M i naya:
- Se ass i m o e nte n d e rdes, Cid, mandai-me a m i m d e ste
m od o : da i - m e cento e tr i n ta cava l e i ro s para a l i d e ; q u a n d o
a c o m e te rd e s d u m a b a n d a , e u a s s a l ta re i d a o u tra, e n u m a
d e l a s o u e m am bas D e u s n o s aj u d a rá !
- Be m e stá - re s p o n d e u o q u e n a s c e u e m boa h o ra.
Cai o d ia; a n o ite e ntra. Apre stam-se as gentes cri stãs . Ao
s egu n d o cantar dos gal o s , antes q u e a ma n h eça, o b i s p o D o m
J e r ó n i m o d isse m i ssa. E, d ita q u e fo i, d e u - l h e s larga absolvição:
- Ao q u e h oj e m o rre r a o l i d a r d e cara, a b s o l vo - o de
p ecados e Deus aco l h e rá s ua al ma. A vós, C i d Dom R o d r igo,
q u e em boa h o ra ci ngistes e s pada, peço eu, q u e vos cante i
m i s s a e s ta m a n h ã , t a l d o m : s e j a m d a d o s p o r m i m o s
p r i m e iros go l pe s !
To rn o u - l h e o Cam p ead o r :
- Concedido!

S a i u p e l a s to rres d e Q ua rto a gente armada, e a t o d o s o


C i d vai aco n s e l h a n do. D e ixam às p o rtas da c i d a d e h o m e n s
a p e rce b i d o s .
S a l ta o C i d s o b r e B av i e c a , q u e e s tá b e m a j a e za d o e
g u a r n e c i d o . C o m as armas seg u e o p e n dão - e ro m p e m d e
Val ê n cia.
Vão c o m o Ca m p eador q uatro mil m e n os tri nta, e d e a l m a
e c o ra ç ã o a c o m e te m o s c i n q u e n ta m i l m o u ro s . M i n ay a e
Á lvaro Á l varez inve stem de o u tra banda.
E a p ro uve ao Criador dar a vitória aos nossos.

75
O C i d e m p r eg ou a l a n ç a e , d e p o i s , a e s p a d a , c o m q u e
m atou a m o u ros s e m conto. Pe l o s u l c o d o aço o sangu e vai
e s c o r re n d o . N o r e i l ú c e f d e u t r ê s g o l p e s : fu g i u d a q u e l a
e s p a d a o r e i a toda a b r i da, e fo i mete r- s e n o caste l o d e
G ug e ra, até o n d e o p e rsegu i u o C i d d e B iva r. D e s d e a l i s e
to r n o u o q u e e m boa h o ra nascera, l ed o d o q u e tomara. É
s e u o d e s p ojo. E, d o s c i n q u e nta m i l i n i m igos, v i ra m q u e não
h av i a m escapa d o mais d e ce nto e q uatro. Em o u ro e p rata, ao
l e v a n ta r a p re s a , r e c o l h e r a m a s m e s n a d a s , fo r a o u t ro s
h ave res i n u m e ráve is, três m i l marcos.
A l egre está o C i d , com todos os s e u s vassalos, pela d iv i n a
m e rc ê d a vitória! Q u a n d o o Cam p ead o r d e u p o r ven c i d o o
r e i d e M a r r o c o s , e n trego u o c o m a n d o a Á l v a r o F á fi e z e
r e c o l h e u a Va l ê n c i a . Tra z i a a ca b e ç a n u a e , m o n ta d o e m
Bav i eca, e m p u n h ava a espada.

R e c e b e ra m ao C i d as s e n h o ras, que o estava m e s p e ra n d o.


Para n d o d ia n te d e las, d i s se - l h es, s e m l a rgar as rédeas:
- Ante vós, s e n h o ras, m e h u m i l h o. Grande bem vos h e i
c o b r a d o. G u a rd a s te s - m e Va l ê n c i a , e e u ve n c i e m c a m p o .
As s i m D e u s o q u is, com tod o s os s e u s Santos, q u e , aq u a n d o
d e v o s s a v i n da, ga n h asse ta l r i q ueza. Ved e e sta e s pada s a n ­
gre n ta e e ste caval o suado: d e sta arte s e ve n c e m m o u ro s n a
g u e rra! Rogai ao Criador q u e v o s e u viva algu n s a n os, p o i s
m u ito p re zadas s e re is e hão- d e b e ij a r-vos as mãos.
Ass i m fal o u o Cid, e apeou d o caval o.
Q ua n d o e l e se adianto u , as fil has, as d onas e s u a h o n rada
m u l h e r caíram d e j o e l hos dia nte d o Cam p ead o r :
- Por vossas n o s te mos, e D e u s v o s d ê m u i to s a n o s !

76
Rodean do-o, e n traram com e l e e m palácio e s e n ta ra m - s e à
s u a vol ta e m p re c iosos escan os.
- Dona X i m e na, m i n h a m u l h e r, não m o h avíe i s p e d i d o ? A
e sta d o n as q u e trouxeste s , e tã o b e m v o s s e rve m , q u e ro
c a s á - l a s c o m v a s s a l o s m e u s . A c a d a u m a d a r e i d u ze n t o s
m arcos. Q u e e m Caste l a s e s a i b a a q u e m v i e ram s e r v i r. E ,
q ua n to a vossas fi l has, falaremos m a i s d e espaço.
L e va n ta r a m - s e a s d o n a s e fo r a m b e i j a r- l h e a s m ã o s .
G ra n d e a l egria vai p o r tod o o palácio!
Como o Cam peador o disse, ass i m se fez.

E ntreta n to Á lvaro Fáriez M i n aya estava no cam po, conta n d o


e e s c reve n d o, com todas as s uas gentes, o s gan h o s havi dos.
Em te n d a s , a r m a s e r i c a s v e s ti m e n ta s , tão g ra n d e é a
r i q u eza q u e tod o s fal a m d e la.
E agora q u ero d izer-vos o m e l h o r : não l ograram sab e r a
c o n ta de tod o s o s cavalos, q u e an davam apare l hados mas n i n ­
g u é m p o d i a apan h ar.
O s m o u ro s dessas te r ras tam b é m algu ma coisa gan haram.
E , apesar d e stas largu ezas, ao q u i n h ão d o Cam peador c o u b e ­
ram m i l cava los. Q ua n d o ao Cid co u be ra m tan to s , b e m pagos
fi caram os q u e o serviam.
Q ua n tas fo r m o sas te n das e poste s l av rad o s !
A ten d a de e l -rei d e M a r rocos, p ri nc i p a l d e todas, s u stê m­
- n a dois postes d e lavrado o u ro. M a n d o u o avisado Cam pea­
dor q u e a d e ixass e m a rmada e n e n h u m cristão l h e tocass e :
- Tal te n da c o m o e sta, v i n d a d e M a r rocos, q u ero e nviá- la
a Afo n s o, o Caste l h a n o, pa ra q u e creia n a s n ovas d a boa

s orte d o Cid.

77
E ntraram e m Val ê n ci a com todas e stas ri q u ezas.
O bispo D o m J e r 6 n i m o, o c l é rigo c u m p r i d o r, farto u -se de
p e l e j a r às mãos a m b a s , e n ã o tê m c o n to o s m o u ro s q u e
m ato u .
O q u e l h e cabe a e l e é tam b é m sobejo, p o rq u e o C i d D o m
R o d r igo, o q u e e m b o a h ora n ascera, d e todo o seu q u i n to
d e u - l h e o d é c i mo.

A l egres e stão os cristãos d e Val ê n cia, tão g ra n d e s h ave res


p o s s u í a m , e cava l o s e a r m a s . A l e g r e e s tá D o n a X i m e n a
c o m s u a s fi l h a s a m b a s , a s s i m c o m o a s o u t r a s d a m a s , j á
casadas.
O b o m d o C i d não q u i s e s p e rar mais:
- O n d e esta i s , meu b raço d i reito ? V i n d e cá, M i n aya. O
q u e vos c o u b e , a vós m e s m o o deve is. Do m e u q u i n to, o u v i ­
- m e b e m , to m a i o q u e q u i s e r d e s , q u e o r e s t o c h e g a . E
a m a n h ã p e l a a l va i r-vo s - e i s , c o m d u ze n tos cava l o s d o m e u
q u i nto, s e l ados, e nfreados e d e e s padas p e n d e ntes. Po r a m o r
d e m i n h a m u l h e r e m i n has fi l h as , p o r h avê - l as d e ix a d o v i r
o n d e estão c o n te n tes, estes cava l o s ofe rto ao re i Afo n so,
para q u e não d iga mal d o que manda e m Val ê n c ia.
O rd e n o u a Pe ro Ve r m ú doz q u e aco m pan hasse a M i n aya.
N o o u t ro dia d e m a n h ã l ogo cava lgara m , l evan d o d u ze ntos
h o m e n s em sua com pan h ia, com m u ito saudar d o Cid ao re i
Afo n s o, a q u e m b e ij ava as mãos, d izen d o- l h e q u e «se m p re o
s e r v i ria e n q uanto a a l m a a avive ntasse».
Sae m d e Va l ê n cia e metem-se a cam i n h o. Tai s riq u ezas le­
v a m q u e é m i ste r g u a rd á - l a s . D i a e n o i t e a n d a m , s e m s e
d a re m vaga res. Passaram a serra q u e o s apartava d o re i n o, e

78
vão p e rg u n ta n d o por e l -re i Dom Afo n so. D e n ovo atrave ssam
m o n te s e ág uas e ch egam a Val lado l i d , o n de e l - rei e stava, e a
q u e m M i n aya e Pe ro Ve r m ú d o z e nv i a r a m av i s o , p a ra q u e
m a n dasse rece be r e sta companha q u e l h e traz o p rese nte d o
C i d , o d e Val ê n c ia.
H avíe is d e ver q uanto e l - rei se a l eg rou !
Logo m a n d o u a s e u s fi dalgos cavalgassem e , e ntre os p ri ­
.
m e i ros, s a i u para v e r a s m e n sage n s d o q u e n ascera e m boa­
- h o ra.
Os moços Car r i o n s e stavam p res entes, e tam b é m o co n d e
D o m G arcia, o m a u i n i m igo d o C i d . O q u e a u n s ap raz, a o u ­
tros pesa.
J á s e av istavam os daq u e l e que em b oa h o ra nasce ra: d i r­
- s e - i a u m exé rc ito, não m e n sage iros.
E l - re i Dom Afo n s o b e nzia-se!
A d i a n ta m - s e M i n aya e Pe ro Ve r m ú d oz, apeiam, ajoe l h a m
d i an te d e e l - re i , b e ij am - l h e os pés e beijam a te rra:
- M e rcê, Dom Afo nso, rei h o n rado! Estes beijos vo- los da­
mos em n o m e do Cid Campeador, que seu s e n h o r vos ch ama
e se te m por vosso vassalo. M u ito apreciou o Cid a ho n ra q u e
l h e fize ste s. Po u cos d i as há, s e n h o r, q u e d estroçou e m campo
a o r e i l ú cef d e M a rrocos, c o m c i n q u e n ta mil m o u ros. Tão
gran d e s h averes co l h e u que ch egaram a r i cos todos os seus
vassalos. Envia-vos e ste s d uze ntos cavalos e b e ij a-vos as mãos.
R e s p o n d e u e l - re i Dom Afonso:
- Ace ito-os com gosto. Agradeço ao C i d tal d o m que me
ele e nvia, e ve n ha a i n d a a h ora em que e u possa retri b u i r- l h o.
Agrad o u a m u ito s i s to q u e o u v i ra m , e fo r a m b e i j a r as
mãos a e l -rei.

79
Ao c o n d e D o m G arcia m u ito p e s o u . Aparta n d o - s e c o m
d e z d o s s e u s pa re n tes, re s m u n gava, i rado:
- M arav i l h a é que o C i d tanto cresça em h o n ras ! E co m
tai s h o n ras n o s avi l tamos n ó s . Por tão faci l m e nte ve n c e r reis
em c a m p o, ta l s e o s achasse m o rto s , e por m a n d a r ta ntos
c ava l os d e p re s e n te , h av e i s d e ver q u e ai n d a re c e b e r e m os
afro n ta !
Fa l o u e l - re i D o m Afo n s o como ides o uv i r :
- G raças a D e u s e ao S e n h o r Santo I s i d ro, m e oferta o
C i d e ste s d u ze n to s cava l o s . Po r m e u re i n a d o ad i a n te m e
p o d e rá e l e a i n da m e l h o r servir. A vós, Á l varo Fáfiez M i n aya e
Pe ro Ve r m ú d oz, mando q u e sejam dadas ri cas vesti m e ntas e
as a r m as q u e e s c o l h erdes, a fi m d e q u e b e m pare çais ao C i d
R u i D ia s . D e stes cavalos, to mai trê s. D iz-me o coração q u e
d e todas e stas coi sas nos há-de p rovi r b e m !
H av e n d o b e i j a d o a s m ã o s a e l - r e i , M i n ay a e P e r o
Ve r m ú d o z r e c o l h e ra m - s e a d e s c a n s a r, p rov i d o s d e q u a n to
h av i a m m i ste r.

O ra vos contare i o q u e os moços Car r i o n s d iziam u m ao


o u tro, à p u ridade:
- C a d a v e z vão m a i s p o r d i a n t e as c o i s a s do C i d !
C u i d e m os d e p e d i r- l h e as fi l h as para casa r m o s c o m e la s , e
c re s c e r e m o s ta m b é m e m ri q u eza e h o n ra.
Foram te r c o m e l - re i e fize ram - l h e o p e d i d o :
- C o m o a rei e s e n h o r v o s rogamos esta me rcê, e com
vosso co n se l h o isto q u e re m os faze r : p e d i para n ó s d o i s as fi ­
l has d o C a m p eador, as q uais e s p osare mos, para b e m n os s o e
h o n ra s ua.

80
Po r l a rgo espaço p e n s o u e l - re i e , ao cabo, d isse- l h es :
- D esterrei o bom Cam peador, e , faze n d o- l h e e u tan to
m a l , e e l e a m i m , gran d e b e m , não s e i s e l h e agradarão tais
casa me ntos. Mas, pois ass i m o d e sejais, c u i demos d e o sabe r.
E n tão chamou a Á lvaro Fáíiez M i n aya e a Pe ro Ve rmú doz
e, apartan d o - s e com e l es e m u ma câmara, fal o u - l hes:
- O uvi, M i naya, e vós, Pero Ve r m ú doz: tão bem me s e rve
o Cid R u i Dias Campeador, q u e o meu p e rdão have rá e b e m
merecido. Aviste-se e l e com igo, se tal l h e ap raz, pois q u e e m
m i n h a c o rte h á c o i sas n ovas : D i ogo e F e r n a n d o, o s moços
Carr ions, tê m gosto d e casar com as fil has d o C i d . Sede bons
m e n sage i ros, e rogo-vos d igais ao Campeador q u e c re s ce rá
e m h o n ra ao apare ntar- s e com Diogo e Fernando d e Carrión.
De acordo c o m Pero Ve r m ú d oz, M i n aya re s p o n d e u :
- D i r- l he - e m os da vossa p arte o q u e d e s ejais. D e po i s o
C i d fará como e nte n d e r.
- D izei mais a R u i D ias - acresce ntou e l -rei - q u e n o s
e n c o ntrare m os o n d e m e l h o r l h e ca l h e e ai p l a n ta r e m o s o
s i na l . Q u e ro aj u d a r ao C i d e m tudo q u anto possa.
Ass i m se d e s p e d i ram d e e l - re i , e para Val ê n cia se e n ca m i ­
n ha m com todos os s e u s.

Q ua n d o s o u b e q u e c h egavam , o b o m Cam peador cavalga,


sai a rece bê - l o s e ab raça-os, sorri n do.
- M i n aya e Pero Ver m ú d oz: em q u e pou cas te r ras h ave rá
d o i s varões c o m o vós! Q u e n ovas me trazeis de Afo n s o, m e u
s e n h o r ? F i co u contente ? Recebeu a ofe rta ?
- Conte nte d e al ma e coração - res p o n d e u M i n aya - e
s e u a m o r vos dá.

81
- Louvado s ej a D e u s ! - exclamou o Cid.
D i to q u e fo i i sto, c o m e ç a ra m a p rati c a r ace rca do q u e
p ro p u n ha Afo n s o, o d e Leão, q u e e ra dar o C i d a s fi l h as aos
moços Carr i o n s : gan haria mais h o n ra com o pare n tesco, p e l o
q u e e l - re i , c o m o a m igo, o acon s e l h ava a dá-las.
Q u a n d o o bom C a m p e a d o r ta l o u v i u , fi c o u - s e a c i s m a r
l o ngo te m po, e d e p o i s d i s s e :
- Lo u vad o seja N os s o S e n h or J e s u s C r isto ! F u i d e ste r­
r a d o, t i r a r a m - m e as h o n ra s , com g ra n d e afã ga n h e i o q u e
ago ra te n h o. Agradeço a D e u s m e to r n e o a m o r d e e l -rei, e
q u e este p e ç a m i n has fi l has para os moços Carri o n s . D izei­
- m e , M i n ay a , e v ó s Pe ro Ve r m ú d o z : q u e v o s p a re c e m o s
casa m e nto s ?
- H ave re m o s p o r b o m o q u e v o s a p rouver.
C o n ti n u o u o C i d :
- S ã o os m o ç os Ca r r i o n s de gra n d e l i n h age m , m u ito s o ­
b e rb os o s c o m o gente da corte. Não levaria e u e m gosto ta is
casame ntos, se mos não aco nsel hasse quem val e mais d o q u e
n ó s. E , p o i s isto é assim, trate m o - l o à p u ridad e , e q u e D e u s
d o C é u tudo faça p e l o m e l h o r !
- D i s s e ta m b é m e l - r e i Afo n s o - a c r e s c e n ta r a m o s
m e n sage i ros - q u e co nvosco s e av ista ria o n d e m e l h o r vos
c a l h a s s e , p o i s d e s e j a ve r-vos e m o strar-vos s e u afe cto; e
e n tão acordaríeis com e l e n o q u e l evásseis e m gosto.
- Do coração me a p raz - tor n o u o C i d .
- C u i d a i , p o i s - l e m b r o u M i n aya -, o n d e h á - d e s e r
vosso e n co n tro.
- Não e ra de ad m i rar - res p o n d e u o Campead o r - q u e ,
q u e re n d o - m e e l - rei falar, me d i ssesse o l ugar o n d e h avia d e

82
s e r, para q u e e u o h o n rasse como a rei e senh or. Mas o q u e
e l e q u i s e r, isso o q u eremos nós. Na marge m d o Tej o, q u e é
gra n d e rio, n o s avistare mos q u an d o o m e u senhor determ i na r.
E s c reve u cartas o C i d , s e l ou -as b e m se ladas e mando u -as
por dois caval e i ro s .
O q u e e l - re i q u iser, isso fa rá o Cam p eador.

Q ua n d o e l - re i l e u as cartas, a l egrou-se- l h e o coração:


- Sa ú d a - m e o C i d , o q u e em b oa h o ra c i n g i u e s p a d a .
Av i star- n os-emos d e aq u i a três s e m a n a s , e , se D e u s m e der
v i d a e saú d e , s e m fal ta l á estare i .
R e c e b e u o Campeador a resposta.
E, d u m a e o u tra parte, começam a prepara r-se para as vi­
s itas .
Q u e m v i u n u n ca p o r Caste l a tanta b o n ita m u la, tanto pala­
fré m bom an dari l h o, tantos fortes gin etes corredores, tan to
garrido p e ndão m etid o e m hastes ricas, tanto escudo com c e n ­
tro s d e o u ro e p rata, e mantos, p e l e s e bons cendais d e An dria?
M a n d a e l - r e i p a r a a m a rg e m do Te j o , o n d e h ã o - d e
c e l e b ra r- s e as vis itas, fartos mantime ntos. Vai c o m e l - re i boa
e n u m e rosa c o m pan h i a. O s moços Car r i o n s n ã o param d e
c o ntentes. C o m u n s se e n d ividam, a o utros paga m . E p e n sa m
q u e tão r i c o s vão fi car q u e hão-de t e r q u anto ou ro e q u anta
p r ata q u i s e r e m ! C ava l gava a p r e s s a d o e l - r e i D o m Afo n s o,
l eva n d o c o n s igo a co n d es, i nfan ç ões e n u m e rosas m e s n adas.
Os m o ç o s C a r r i o n s l evavam ta m b é m grossa c o m p a n h a .
C o m e l - re i v ã o l e o n e ses, m e s n adas ga l egas, e s a b e i q u e as
c a s t e l h a n a s n ã o t ê m c o n ta . E t o d o s s o l ta m as r é d e a s a
cam i n h o da marge m d o Tej o.

83
E m Va l ê n c i a o C i d C a m p e a d o r ta m b é m s e a p r e s s a e
p re para.
A l i as m u l a s fo r ç o s a s , os fi é i s p a l afr é n s , o s c av a l o s à
l igei ra, as b oas armas, as capas r i cas e ricas p e l e s.
G ra n d e s e p e q u e n o s traj am ga rri das cores.
Á lvaro Fán e z M i naya, Pero Ve r m ú doz, M arti m M u n oz, o q u e
man d o u e m M o n te m o r, M arti m Anto l f n ez, o leal b u rgal ê s , o
b is p o D o m J e ró n i mo, clé rigo exce l e n te , Á lvaro Á lvarez, M u n o
G u sti oz, o n ob re cava l e i ro - todos s e d is p õ e m para aco m p a­
n ha r o Cam peador, e ass i m os outros q u e a l i se e n contram .
A Á lvaro Salvad ó rez e G a l i n Ga rciaz, o d e A ragão, e n trega
o Ca m p e ad o r a g u a rd a de Val ê n cia: recom e n d a- l h e s q u e a
ve l e m d e a l m a e c o ração, e aos q u e n e l a fica m . D ete r m i n ou o
C i d q u e n e m d e d i a n e m d e n o ite se a b r i s s e m as p o r tas d o
al cáçar: lá d e ntro e stão s u a m u l h e r e s uas fi l h as, c o m q u e m
l h e d e m o ra a p ró p ria a l ma, e à s q u a i s a s d o n as deve m d e b e m
s e r v i r. M a i s r e c o m e n d o u , c o m o v a r ã o p r u d e n t e , q u e
n e n h u m a s a i r possa d o a l cáçar até q u e to r n e o q u e n a s c e u
e m b oa h o ra.

D ão d e e s p o ras e abalam de Val ê n c ia. Tantos cava l o s de


g u e rra, fo rtes e vel ozes, havia-os gan h o o C i d : n i ngu é m l h o s
ti n h a d a d o. E e n ca m i n h a m - s e p a r a o n d e s e aj u sta ra o
e n contro c o m e l - re i .
E l - re i D o m Afo n s o ti n h a ch ega d o u m d i a antes. Q u a n d o
v i ra m assomar o Campeador, saíram a rece b ê - l o c o m gra n d e s
h o n ras. O l h a n d o i sto, o q u e e m boa h o ra n a s c e ra m a n d o u
e stacar a c a m p a n h a e avan ç o u só com aq u e l e s a q u e m o s e u
c o ração mais q u eria.

84
C o m u n s q u i n ze caval e i ros apeou e, de joe l h o s e com as
m ã o s e m te r ra , m o r d e u a s e r vas d o c h ã o , c h o r a n d o d e
al egria aos p é s d e e l -rei.
D e ste m o d o s e h u m i l h ou o C i d ante Afonso, s e u sen h o r.
E l -r ei, com gra n d e p e sar, exclam o u :
- Leva ntai-vos, o h C i d Campead o r ! B e i j a i - m e as mão s ,
p o ré m o s pés, n ão. S e isto me n ã o fize rd es, n ã o conteis com
a m i n h a am izad e !
Aj o e l h ad o, o Cam peador res p o n d e u :
- M e rcê v o s p e ç o como a m e u s e n h o r n atu ra l ! E, e sta n d o
e u ass i m , d a i - m e a v o s s a graça d iante d e q u antos aq u i estão.
- De a l ma e coração o faç o ! - to r n o u e l - re i . - Aq u i
vos p e rdoo, vos d o u m i n ha am izad e e , d e s d e h oj e , aco l h id a
e m tod o o m e u rei n o.
- G raças, meu senhor, e tudo aceito, agradecen do-o a D e u s
d o C é u , d e p o i s a v ó s e a estas mes nadas q u e n o s rod e i a m !
S e m p re d e j o e l h os , o C i d b e i j o u as m ã o s a e l - r e i ; e m
s eg u i d a e rgu e u - s e e b e i j o u - o n a boca.
To d o s em v o l ta s e n t i a m g ra n d e gosto do q u e e stav a m
ve n d o, m e n os Á l va ro D ias e Garcia O rd ó n ez.
C o n ti n u o u o C i d :
- I sto agrad e ç o ao Pad re C r i ad o r : o reave r a g r a ç a d e
m e u se n h or D o m Afo n s o ! S e m p re D e u s m e h á - d e va l e r n o ite
e d ia. S e r e i s m e u h ó s p e d e , se vos ap raz, s e n h o r.
- Tal não s e rá - d i sse e l - re i . - C h egastes agora e n ó s
v i e m o s o n te m . S e re i s vós m e u h ó s p e d e , C i d C a m p ead o r, e
a m a n h ã fare m o s como desejais.
B e i j ou - l h e a mão o Cid, con ce d e n d o.
Ace rca m - s e e n tão os moços Car r i o n s , para sau d a r :

85
- Ante vós n o s h u m i l hamos, Cid, nasc i d o e m boa h o ra.
Em tudo o q u e p u d e rmos vos have mos d e s e r v i r.
R e s p o n d e u - l h es o Cam p ead o r :
- D e u s o q u e i ra !
E naq u e l e d i a o C i d R u i D ias, o q u e em b o a h o ra nas ce ra,
fo i hóspede d e e l -rei, que não o pode d e ixar, tan to lhe q u e r,
e s e m aravi l h a , como todos os mais, ao re m i ra r- l h e as barbas
tão c o m p r i das.
Pas s o u esse dia e ve i o a n o ite .
N o o u tro d ia d e m a n h ã , e n q u a n to o S o l s a fa , m a n d a o
C ampeador aos s e u s q u e p re pare m manjares para q ua n to s al i
s e a c h a m . D e ta l g u i s a o b s e q u e i a a to d o s , q u e to d o s s e
s e n te m a l e g r e s e n i sto a c o rd a m : q u e h av i a t r ê s a n o s n ão
c o m i a m tão b e m !
N a m a n h ã s eg u i n te , ao ro m p e r da a u r o ra, o b i s p o D o m
J e r ó n i m o cantou m i ssa. A saída da m i ssa j u ntara m - s e tod o s e
não tard o u q u e e l - re i d issesse:
- Escutai - m e , mes nadas, con d es, i n fanções ! Q u e ro faz e r
u m p e d i d o ao C i d Cam peador. Ass i m J e s u s Cri sto man d e q u e
s e j a para b e m . Vossas fi l h as p e ç o, D o n a E l v i ra e D o n a S o l ,
p a r a q u e a s d e i s p o r m u l h e re s a D i og o e F e r n a n d o d e
Ca r r i ó n . Pa rece m - m e casa m e n tos h o n rados e propícios. E l e s
vo - l o p e d e m , e u o reco m e n d o. Q u a ntos a q u i e stão, d u m a
p arte e da o u tra, os m e u s e os vossos, peçam tam b é m c o ­
m igo. C i d , dai -as pois, e sem p re nos va l h a o S e n h o r !
- N ão d eve ra e u casar a m i n ha s fi l h as - re s p o n d e u o
Ca m p eador - p o r a i n d a serem tão n ovas. São d e m u ita n o ­
b reza o s moços Carri o n s , b o n s p a r a m i n has fi l has e até para
o u tras m e l h o re s . E u as enge n d re i , vós as criaste s : e u e e l as

86
e stam o s e m vossas mãos. D e l as, pois, d i s poreis, e dai a q u e m
q u i s e rd e s D o n a Elvira e D o n a S o l , q u e ficarei co nte nte .
- G raças - d i s s e e l - re i - a vós e a toda esta corte!
Leva n ta ram-se os moços Carr i o n s , fo ram b e i jar as mãos
ao q u e n a s c e ra e m boa h o ra e, d i a n te d e e l - re i , trocaram
c o m ele as es padas, e m s i na l d e pacto.
E n tão e l - re i d isse:
- G raças, b o m Cid, d i l e cto d o Criador, p o r m e h ave rdes
dado vossas fi l has para os moços Carri o n s . Daq u i to mo por
m i n h a s mãos a D o n a E l v i ra e D o n a S o l , p a ra a s dar p o r
e s p o s a s a D i ogo e F e r n a n d o . C o m v o s s a l i c e n ç a as cas o ;
D e u s q u e i ra q u e d isto h aj a i s gosto. Entrego e m vossas mãos
o s m o ç o s C a rr i o n s p a ra q u e vão c o n v o s c o . D o u - l h e s
treze n tos marcos d e p rata para aj uda das bodas, o u para o
q u e q u i s e rdes. Q ua n d o e m Va l ê n c ia, a M a i o r, e stive rem s o b o
vosso p o d e r, ge n ros e fi l has todos s e rão fi l h os. Faze i d e l es o
q u e vos a p rouver, Cam p eador.
R e c e b e u -os o C i d , d e p o i s d e beijar a mão a e l -rei:
- M u ito vos agrad eço como a rei e s e n h o r. S o i s vós que a
m i n has fi l has casais; não e u .
Estão dadas a s palavras , fe itas a s promessas.
Na manhã segu i n te cada u m c u i dará d e i r a cam i n h o do
l ugar d o n d e v i e ra .
A l i fez o C i d c o i s a s ass i n aladas. Tanta m u l a forçosa, tan to
b o m palafré m , ta nta prec iosa vesti m e n ta, começa o Cam p ea­
dor a ofe rtá- l o s a q u e m os q u e r. Cavalos, d e u sesse nta. Cada
p e s soa p e d e e ele a todos dá.
E todos se acham conte nte s d e te re m v i n d o a tai s vis itas.
E nfi m re co l h e m - s e , q u e a n o ite fec h o u - s e .

87
A d e s p e d ida, to m o u e l - re i p e l a mão aos m o ç os Car r i o n s e
e ntrego u - o s ao Cam p ead o r :
- E i s aq u i a vossos fi l h os, p o i s j á os have i s p o r g e n ros.
Po r vossos os rece b e i , para q u e vos s i rvam como a pai e res­
p e ite m como a s e n h o r.
- Agradeço tal d o m , e D e u s vo-lo pag u e - re s p o n d e u o
Cid.
E c o n ti n u o u :
- M a i s u m a m e rcê vos peço, como a m e u re i n atu ral: p o i s
q u e casai s a m i n h as fi l h as segu n d o vo ssa vonta d e , d e s ig n a i
q u e m a s r e c e b a e m v o s s o n o m e . N ão as d a re i p o r m i n h a
mão: não s e gab e m d e tal .
- Aq u i e stá Á l varo F á ii e z. To m e -as e l e p o r s u a m ã o e
d ê -as aos m o ç o s Carri o n s , ass i m como e u as tom o daq u i , tal
se fos s e m prese ntes. Serei vós o pad r i n h o, M i naya, e q u a n d o
vo l ta r m o s a ver- n os, d i r- m e- eis s e isto c u m p ristes.
R e s p o n d e u Á lvaro Fáii ez:
- S e n h o r, à fé q u e o c u m p r i re i .
Tu d o isto s e fe z, c o m o esta i s ve n do , d e m u i c u i d a d o s o
modo.
D i ss e p o r fi m o C i d :
- Eia, p o i s , re i D o m Afo n s o, m e u tã o h o n rado s e n h o r :
d e stas nossas visitas guardai algu m a l e m bran ça. Ofereço-vos
t r i n ta palafré n s b e m aj aezad o s e tri n ta cava l o s c o r re d o re s ,
b e m s e l a d o s : aceitai-os. Beij o-vos as mãos.
- Vossa l a rgueza m e espa nta ! - to r n o u e l - re i . - Ace ito
o d o m , e D e u s , c o m todos os s e u s Santos, vos pag u e o gosto
q ue me dai s. M u ito m e h o n rais, Cid R u i D ias, e tão b e m m e
s e rv i s a m e u c o n te n to, q u e , s e e u v ive r, algu m a c o i sa fa re i

88
p o r vós. Daq u i m e vou e n comen dando-vos a Deu s. E E l e n o s
guarde a tod o s !
Salto u o C i d s o b re Bavieca, e fa l o u :
- Aq u i o d igo d i a nte de m e u s e n h o r e l - re i D o m Afo n s o :
q u e m q u i ser assistir às b o d a s e rece b e r m e u s dons, ve n h a d e
af c o m igo, q u e e m s e u p rove ito s e rá.
D e s p e d i u - s e de e l -rei o C i d , sem d e ixar q u e e l e saísse a
d e s p e d i - l o.
A l i ve r í e i s fo rm osos cava l e i ros b e ijarem a mão d e e l - re i :
- S e n h o r, d e ixai - n o s i r às bodas das fi l h as d o C i d , e m
Val ê n cia, a M ai o r !
D . Afo nso, agradado, dava l i ce n ç a a todos.
E m u itas ge n tes s egu i ra m o Cam peador.
Ass i m a c a m pan h a d o C i d c resce u , e a d e e l - re i m i n g u o u .

E n ca m i n h a m - s e p a r a Va l ê n c i a , a q u e fo ra ga n h a e m b o a
lide.
M an d o u o C i d a Pero Ve rm ú d oz e M u n o G u stioz q u e ate n ­
d e s s e m a o s moços Carr i o n s , p o i s são q u e m m e l h o r co n h e ce
o s s e u s costu mes. Aos moços Carr i o n s j u n tara- s e s e u i rmão
A n s u o r G o n ç á lvez, q u e e ra b u l içoso e solto d e l í ngua, i n da
q u e para o mais não e ra tão bom.
To d os d i s p e n s a m g ra n d e s h o n ras a o s fut u ro s ge n ros d o
C i d . E i - l o s e m Val ê n c ia, a d o Campeador. Q ua n d o e n traram
na cidad e , cresce u - l h e s a a l egria. A Dom Pero M u n o G u stioz
d i sse o Cid R u i D ias:
- A l b e rg a i a o s m o ç o s C a r r i o n s e p e ç o - v o s q u e os
a c o m p a n h e i s . A m a n h ã , q u a n d o o d i a r a i a r, v e rã o a s u a s
e s p osas D o n a Elv ira e Dona S o l .

89
Rec o l h e ram-se todos às suas pou sadas.
O Cid e ntrou n o a l cáçar, onde Dona X i m e n a e s u as fi l has
o re c e b e ra m :
- S o i s vós, Ca m p ead o r ? E m b oa h ora c i ng i stes e s pada!
Pe rm ita Deus que m u itos d ias vos vejam este s o l h o s !
- G raças a D e u s cá t o r n o , h o n ra d a m u l h e r. Trago-vos
g e n r o s q u e nos d a rão l u stre . Ag ra d e c e i - o , m i n h a s fi l h a s ,
p o rq u e v o s h ã o casado b e m .
B e i j a ra m - l h e a s m ã o s a m u l h e r e as fi l h a s , e t o d a s a s
damas q u e a e stas serviam.
- G raças a Deus e a vós, C i d da barba fo rm osa! - d is s e
D o n a X i m e na. - Tu d o o q u e faze is, b e m fe ito é . E n q u an to
vive rd e s , não se rão n ecess itadas as vossas fi l has.
- Bem r i cas s e re m os q u a n d o n o s casard e s - d i s s e ra m
e las.
Então o C i d fal o u - l h es ass i m :
- S e j a p o r D e u s , D o n a X i m e na. A v ó s o d igo, m i n h as fi ­
l ha s : d este s vossos casam e ntos n os virá l u stre , p o r é m s a b e i
q u e n ã o fu i e u q u e m os d i s pôs. Q u e m v o s p e d i u fo i e l - re i ,
m e u s e n h or Afo n so, e c o m ta nta vontade e d o coração o fez,
q u e p o r n e n h u ma coisa p u d e ra eu d izer- l h e q u e n ão. A vós
a m bas p u s em s u as mãos. Crede-o p o i s : q u e m vos casou fo i
e l e , não e u .

C o m e ça ram l ogo a adornar o palácio, cob rira m a s pare d e s


e o c h ão d e tap ete s, se das, p ú r p u ras, pan os p re c iosos.
- Se vós, s e n h o res, l á tivé s s e i s estad o e com ido, m u ito
h ave r í e i s gozado.
J á s e acham re u n idos todos os cava l e i ros.

90
M a n daram b u scar os moços Carrions, os q uais cavalgaram
e se e n ca m i n h a ra m p a ra o p a l á c i o. Tr aj avam r i c a s v e s te s
c o b e rta s d e atavios. Apeiam-se o s noivos e entram com b e l a
p ostu ra. Recebe-os o C i d , com todos os s e u s vassalos. Eles
h u m i l h a m - s e ante o Cam peador e s ua m u l h e r, e vão sentar-se
em p reciosos escanos. Entanto, todos vão o l hando à socapa o
s e m b l an te d o q u e nasceu e m b oa h o ra.
E rg u e - s e o Ca m peador e diz:
- Po i s q u e o h ave m o s d e faze r, para q u e ta rdaría m o s ?
V i n d e cá, Á lvaro Fáfíez, a q u e m tanto q u e ro e p rezo. E i s aq u i
a m i n h a s fi l h a s : e m vo s s a s m ã o s a s p o n h o , c o n fo r m e o
trata d o c o m e l - r e i . N ão q u e ro e m p o n to a lg u m fa l ta r a o
c o m b i n a d o : dai-as p o r vossas mãos a D i ogo e F e r n a n d o d e
C a rr i ó n . Q u e recebam as b ê n çãos, e d espac h e m o- n os.
M i n aya, e n tão, res p o n d e u :
- Ass i m fare i .
Leva n ta m - s e as donze l as , às q ua i s M i n aya to m a p e la mão.
E, d i rigi n do-se aos n oivos, Á lvaro Fáfíez fal o u :
- E i s - v o s a n te M i n ay a , i r m ã o s D i og o e F e r n a n d o d e
C a r r i ó n . P o r m ã o d e e l - r e i A fo n s o , q u e a s s i m m o h á
o rd e n a d o, d o u -vos e stas damas, a m bas fi l h as d e a lgo, p a ra
q u e as recebais como vossas m u l h e res, p o r h o n ra e p o r b e m .
A m b o s as rece b e m c o m a m o r e vo n ta d e , e vão b e ij a r a s
m ã o s ao C i d e a s u a m u l h e r. Q u a n d o isto h o u ve ram fe ito, saí­
ram do palácio e e n cam i n haram -se sem tard a n ç a para Santa
M a r i a . O b i s p o D o m J e r ó n i m o , revesti d o , e s p e rava - o s n o
p o rtal d a igreja. Abençoou -os e cantou m i ssa.
Ao saírem da igreja, cava lgaram para o a real d e Va l ê n c ia.
D e u s ! q u e bem ali j ogaram as armas o Cid e s e u s vassa l o s !

91
Tr ê s v e z e s m u d o u d e cava l o o q u e n a s c e u e m b o a h o ra .
Alegro u - s e o C i d a o ve r q u e os moços Carr i o n s m o ntava m
c o m b oa arte. Vo ltaram d e 13o i s a Val ê n cia com as s e n h o ras.
R icas fo ram as bodas n o h o n rado alcáçar e, no s eg u i n te d ia,
m a n d o u o C i d e rg u e r s e te ta b u a d o s , q u e t o d o s fo r a m
q u e brados antes d e s e j antar. D u raram a s bodas q u i nze d ias
ao todo, ao cabo dos q ua i s com eçaram os fidalgos a reti rar.
O C i d D o m Rod rigo, o q u e e m boa h o ra nasce u , ofe rtou ,
p e l o m e n o s , u m c e n to d e b e stas , e ntre p a l afr é n s , m u l a s e
c a v a l o s c o r re d o r e s , fo r a m a n to s , p e l e s e o u t r a s m u i ta s
v e s t i m e n ta s , a l é m d e d i n h e i ro c u n h a d o , q u e e s p a l h o u à s
man c h e ias. O s vas salos d o C i d fize ram igual m e nte s e u s d o n s
a o s h ós p e d e s . A q u e m q u e ria d i n h e i ro, dava m - l h o grosso; e
d e sta s orte o s q ue v i e ram às boda � tornam ricos a Caste l a. J á
o s h ós p e d e s se d e s p e d e m d o C i d R u i D ias, o q u e n a s c e u e m
b o a h o ra , e mais das damas e d o s fi dalgos. Vão tod o s m u ito
ag rad e c i d o s ao Cam pead o r e aos s e u s , e g ran d e b e m d izem
d e l e s , como é de razão. Conte n te s e s tão ta m b é m D i ogo e
F e r n a n d o, fi l h o s d o c o n d e D o m G o n ç a l o d e Ca r r i ó n . O s
h ós p e d e s voltaram a Caste la. O C i d e os gen ros fi cara m e m
Val ê n cia, o n d e os moços Carr i o n s d e m o raram ce rca d e d o i s
a n os, acari n h ad o s d e todos. Alegre estava o Cam peador, b e m
c o m o o s s e u s vassalos. Praza a Santa M aria e a o Pai d o C é u
q u e e stes casame ntos co nte nte m ao C i d e a q u e m o s d i s p ô s !
Aca b a m - s e aq u i as copias deste canta r. Val ha-n os o C r i a d o r
c o m tod o s o s s e u s Santo s !

92
�,.,D�l:,.,a-­
Dll/ftf;a,.,
Estava o C i d e m Val ê n c ia, n a com p a n h i a d o s s e u s . O s ge n ­
ros aco m p a n h avam - n o.
O ra , u ma vez q u e o Cam p e a d o r d o r m i a e m u m e s c a n o,
aconte c e u caso tal q u e a todos custo u , c o m o ago ra o u v i re i s :
u m l eão s a i u da j a u l a e esca p o u - s e . P o r toda a co rte corre u
g ra n d e m e d o.
E m b ra ç a n d o o s m a n tos, a fi m d e o p rotege r, os d o C i d
c e rcaram o escano e m q u e o s e u s e n h or dorm ia.
Um d o s moços Ca rrions, Fe rnan d o G o n çálvez, não ve n d o
o n d e s e e s co n desse, n e m p orta d e câ mara o u torre , m ete u ­
- s e d e baixo d o escano, tal e ra o s e u pavo r! O o u tro, D i ogo
G o n çálvez, l a n ç o u - s e pela po rta, exc la m a n d o :
- N ã o to r n o a ve r Carri ó n !
E, c o m pavor ig u a l , fo i e s c o n d e r-se atrás d u ma v iga d o l a­
ga r, d o n d e sai u d e p o i s com o brial e o ma nto tod o s s u j os .
N e ste c o m e n o s acordou o q u e nasce ra e m b o a h o ra, e ,
ve n d o - o rodeado d e s e u s varões:

95
- Q u e é i s t o , m e s n a d a s ? - p e rg u n t o u - Q u e m e
q u e re i s ?
- A i , h o n rado s e n h or, q u e su sto n o s meteu o l eão!
E rg u e u - s e o C i d s o b re o cotove l o, l evan to u - s e e m s eg u i da ,
e , com o ma nto p reso ao pescoço, como estava, fo i d i reito
ao l eão. Q u a n d o e ste o viu vir, abaixou a ca beça e fi n co u o
foci n ho. O C i d agarrou -o p e l a j u ba e l evou -o aman sado até o
m ete r n a j a u l a.
Q ua n tos isto v i ram s e marav i l h ara m, e as s i m vo l ta ra m ao
p a l ácio.
Pe rg u n to u e n tã o o C i d p e l o s g e n ro s ; e, a i n d a q u e os
e stejam c h a m a n d o, n e n h u m res p o n d e . Q ua n d o e nfi m d e ra m
c o m e l e s , v i n ham tão descorados q u e t o d a a corte s e largo u
a r i r, até q u e o C i d i m pôs res pe ito.
F i caram e nve rgo n h ados os moços Car r i o n s , e l a m e n ta n d o
d o f u n d o d e a l ma o s u ce d ido.

E n q u a n t o o s d e C a r r i o n re m o ía m a ve rgo n h a , v i e ra m
c e rcar Val ê n c ia a s fo rças d e M arrocos. Pou saram n o cam po d e
Q uarto, o n d e l evantaram n ã o m e n os d e ci n q u e nta m i l te n das.
C o m a n d ava- os o rei B ú car, que talvez j á o u víss e i s n o m ear.
Alegrava-se o C i d c o m to dos os s e u s vassa los, porq u e , graças
a D e u s , l h e s h á - d e a u m e n ta r a faze n d a . Po r é m s a b e i q u e
m u ito p e sava i sto aos moço s Ca r r i o n s , o s q u a i s , a o ve r e m
ta n tas te n d as d e mou ros, n ã o se ntiam gosto n e n h u m.
- O l h á mos ao gan ho e não à p e rda - d i ziam os d o i s i r­
mãos u m ao outro. - Agora te mos d e e ntrar ne sta batal ha:
não volta re m o s a ve r Carr i ó n e viúva s d e ixare m o s as fi l has
d o Cam peador!

96
O uv i u M u n o G u st i oz à p u ridade e stas palavras e fo i d iz e r
ao C i d :

- S a b e i g u e tão va l e n te s s ã o vossos gen ros g u e s u s p i ra m


p o r Carri ó n n a s vé s p e ras da batal ha! I d e , p o i s , co nfo rtá- l o s ,
a s s i m D e u s v o s aj u d e . D i ze i - l h e s g u e fi g u e m e m p a z e n ã o
e ntre m n a l i d e , p o i s n ó s ve n c e r e m o s co nvosco s e o C r i ad o r
n os aj u da r !
O C i d D o m R o d r igo fo i t e r com os gen ros, s o r r i n do-se:
--- Deus vos salve, moços Carri o n s , meus ge n ros: e m vos­
s o s braços te n d e s as m i n has fi l h as, tão bran cas c o m o o S o l !
E u d e s e j o b ata l has, v ó s s u s p i ra i s p o r Car r i ó n . F i ca i-vos, p o i s ,
e m Va l ê n cia, fo lga n d o a v o s s o sabor, g u e àg u e l e s m o u ros e u
m e atrevo a d e stroçá- los com a aj u d a d e D e u s !

N e ste c o m e n os m a n d o u o r e i B ú car d izer a o C i d g u e d e i ­


x a s s e Va l ê n c i a e s e fo s s e e m paz, s e n ã o g u e l h e p ag a r i a
g ua n tas o Campeador l h e havia fe ito.
R e s p o n d e u o Cid à m e n sag e m :
- I d e d i zer a B ú ca r, e s s e fi l h o d e i n i m igo, g u e a ntes d e
três d i as l h e darei a re s p osta q u e m e p e d e .
N o o u t r o d i a m a n d o u o C i d a r m a r to d o s o s s e u s e
marchar c o n tra os m o u ros.
Os m o ç o s Car r i o n s p e d i ram- l h e e n tão a h o n ra d e fe r i r o s
p r i m e iros g o l p e s ; e , d e p o i s q u e o C i d fo r m o u as s u as fi l e i ras
c e r ra d a s , D o m Fe r n a n d o d e C a r r i ó n a d i a n to u - s e p a ra
a c o m eter u m m o u ro c h a m a d o A l a d raf. Este , q u an d o o vi u
ava n ç a r, fo i - s e a e l e , m a s tã o g r a n d e m e d o to l h e u o d e
C a r r i ó n q u e virou a garu pa d o cava l o e , s e m mais o u sar e s ­
p e ra r, fugi u !

97
Pe ro Ve r m ú d oz, q u e ia à i l h arga d o moço, ven d o i sto arro­
j ou - s e a o m o u ro, l i d o u com ele e mato u - o. Agarrou e n tão o
caval o d o m o u ro, correu atrás d o q u e ia fugi n d o, e grito u - l h e :
- D o m Fe r n a n d o, tomai este caval o e d ize i a todos q u e
m ataste o d o n o, q u e e u o atesta re i !
- D o m Pero Ve r m ú d oz - d i s s e - l h e o m o ç o Carr i ó n - ,
m u ito vo- l o ag rad e ç o e oxa l á ve n h a a h o ra e m q u e vo- l o
p agu e !
Vo l ta m o s d o i s d e compan h ia, e D o m Pero d á te ste m u n h o
d a façan h a d e q u e F e r n a n d o se ga bava. O fe ito a p ro u ve a o
C i d e a o s s e u s vassalos.
- O s meus ge n ros - cog ito u o Cam p ead o r -, s e D e u s
q u i s e r i n da hão-de v i r a s e r b o n s e m ca m p o !
E n q uanto i sto p e n sa vão- se ace rcan d o as h o stes m o u ras,
ao som dos r u fos dos s e u s tam bores. M u itos cristã os recém­
- c h egad o s , q u e n u n ca o s h av i a m o u v i d o, e s p a n tava m - s e d o
te m e roso s o m . E mais d o q u e n i ngu é m s e es pantavam D i ogo
e F e r n a n d o, os q u a i s por seu alve d ri o n u nca ali te riam v i n d o .
O uv i como fa l o u o q u e nasce u e m b o a h o ra:
- O lá, Pero Ve r m ú d oz, m e u rico s o b r i n h o, sede-me o aio
de D i ogo e F e r n a n d o, m e u s ge n ros, a. q u e m m u ito e sti m o,
p o rq u e o s mou ros n ão fi carão n o campo, s e D e u s q u i se r.
- C i d , p e ç o -vos p o r car i d a d e q u e aos m o ç o s Carr i o n s
o u tros si rvam q u e n ã o e u , p o i s pouco s e m e dá d e l e s ! C o m
o s m e u s q u e ro acomete r a fre nte dos m o u ros. F i cai com o s
v o s s o s n a retaguarda e , se h o uve r pe rigo, soco rre r- n os - e i s .
N este c o m e n o s c h egava Á lva ro F á fi e z M i naya:
- O uv i , 6 C i d , leal Ca m p eador! Esta bata l h a dete r m i n a -a
D e u s e vós b e m digno sois d e a parti l h a r com E l e ! M a n d a i -

98
- n o s i nvestir p o r onde vos parecer: cada u m c u m p r i rá o q u e
deve, c o m a aj u d a d e D e u s e com vossa ventura!
R e c o m e n d ou o C i d :
- C o b re mo s sossego.
A q u i ace rco u - s e o b i s p o D o m J e r ó n i m o, m u ito b e m
a rmado; e , para n d o d iante d o ve ntu roso Campeador, fa l o u ­
- l h e ass i m :
- H oj e vos d i sse a m i ssa d e Santa Tri n da d e . Saí da m i n ha
t e r r a e v i m b u s c a r- v o s p e l o g o s t o q u e h av i a d e m a t a r
m o u ros. H o n rai, p o i s , a m i n h as o rd e n s e a m i n has mãos d e i ­
xan d o - m e i nvesti r a ntes d o s o utros. Trago u m p e n dão com
e m b l e m a d e co rças e, com a aj u d a d e Deus, q u e ro p rová- lo.
D e ixai fo lgar meu co ração, e vós, Cid, mais me p rezareis. Se
i sto me não fize rdes, d e ixo-vos !
R e s p o n d e u - l h e e n tão o Cam pead o r :
- Ap raz- m e o q u e ta nto q u e reis. Aí te n d e s os m o u ro s à
v i sta: a e l e s , p o i s ! E veremos daq u i como l i d a o p ri o r !

Adianto u -se o b i s p o Dom Jeró n i m o e foi assaltar a fre nte .


P o r fortuna e favo r de D e u s , aos primeiros gol pes matou a d o i s
m o u ros. Q u e b rada a lan ça, m ete u mão à espada. O b i s p o e n ­
saiava as armas, e q u e b e m l idava! C o m a l a n ç a matou dois,
c o m a e s pada cinco. Já m u itos m o u ros o cercam , e asse nta m ­
- l h e g randes gol pes q u e n ã o rom pem a armad u ra. O l h ava-o o
q u e n a s c e u e m b o a h o ra. E n tão o C i d e m b ra ç a o e s c u d o,
a baixa a lan ça, es pore ia o ve l oz Bavieca e arroja-se d e alma e
co ração aos i n i m igos. Entra nas primei ras filas, derriba sete e
m ata q u atro. E ap rouve a Deus q u e aq u i começasse a vitória. O
C i d e os seus p e rsegu em os m o u ros, arrasam o acam pamento.

99
E e nfi m os do Ca m peador l a n ç a m d o cam p o aos d e B ú car.
A l i veríe is n o d estro ç o tan tos b raços cortados cai r c o m as
l o r ig a s , tan ta s ca b e ç a s com e l m o s r o l a r no c h ã o, ta n t o s
g i n etes s e m d o n o fug i r e s p a n ta d o s ! O a c o s s a r d o i n i m ig o
d u ro u sete boas m i l has.
O Cid pe rseg u i a o r e i Bú car:
- E s p e ra a i , B ú ca r, q u e v i e s te de a l é m - m a r ! Agora te
h á s - d e h ave r com o Cid das l o ngas barbas. Te m o s q u e n o s
b e i j a r e pactua r a m izad e !
- C o n fu n d a D e u s ta l a m iza d e ! - res p o n d e u B ú c a r. -
C o r re s d e e s p a d a n a mão para a p rovar e m m i m . M a s se o
cava l o n ã o e m b i ca, s ó m e alcan çarás n o mar!
- N ã o há-de s e r as s i m ! - brad o u - l h e o Cid.
Bom cava l o tem B ú ca r e c o r r e l ige i ro, m a s o Cid te m
B av i eca e q uase l h e c h ega já.
A três b raças d o mar e nfi m o a l ca n ça e, e rg u e n d o ao alto
a Colada, d e s p e d e - l h e tal golpe q u e corta o e l m o do m o u ro,
fe n d e - l h e a cabeça e a b re-o até à ci n ta ! Ass i m m ato u o Cid a
B ú ca r, o re i d e a l é m - mar, e gan h o u a e s pada Tizona, q u e val e
m i l m a rcos d e o u ro.
Ve n c e u a g ra n d e e m a rav i l h o s a b a ta l h a ! H o n r o u - s e o
C a m p e a d o r e q ua n tos com e l e estão.

C o m e ç a m a re col h e r o gra n d e d e s p oj o e, com o C i d R u i


D i as, o q u e nasce u e m boa h o ra, ch egam à s te n das m o u ras.
Trazia e l e as d u as e s p adas q u e ta n to esti mava. Com a co ifa
fra n z i d a e o cap u z s o l to, c o r r i a o C a m p e a d o r o ca m p o d a
m a ta n ç a . R o d e i a m - n o o s s e u s vas s a l o s , q u e d e t o d a s a s
p artes aco r r e m .

1 00
M as o C i d algo vê q u e o contenta, p o i s não d e s p rega d u m
p o nto o s o l h o s : via v i r a D i ogo e Fernan d o, fi l h o s d o co n d e
D o m G o n ç a l o d e Car r i ó n .
A l egre, sorria- l h es:
- S o i s vós, meus g e n ros, que meus fi l h os sois a m bos ? S e i
q u e e s ta i s b e m s a t i sfe i t o s d e l i d a r. I r ã o a C a r r i ó n b o a s
n otíc ias vossas. Ve n c e m o s o re i B ú car, e fio e m D e u s e e m
tod o s o s s e u s Santos q u e e s ta v itó ria n o s conte n ta rá.
N e ste p a s s o c h egou Á lvaro Fán ez M i n aya, q u e traz i a ao
p e s c o ç o o e s c u d o a l a n h a d o . N ã o n o t i n h a m fe r i d o a s
l a n çadas. H av i a m o rto a m a i s d e vi nte m o u ros: p e l o s u lco d a
s ua espada esco rre o sang u e .
- G raças a D e u s - d i sse - , S e n h o r d o C é u , e a vós,
Cid, q u e em boa h o ra nascestes ! M atastes a B ú car e é n ossa
a v itó r i a ! To d o s e s te s h av e re s n o s p e rte n c e m . E vo s s o s
g e n ro s a s s i n a l a ra m -se hoje e farta ram-se d e p e l ej a r c o m o s
m o u ro s .
- I s s o m e a l egra - re s p o n d e u o Campead o r. - Q u an d o
ago ra s ã o b o n s , m a i s tarde s e rão dos me l h o res.
Ass i m disse o C i d p o r b e m , m as os ge n ros tomara m - n o
p o r e s cá r n i o.
J á o d e s p oj o e ntro u em Val ê n cia, com o q ue se a l egram o
C i d e s e u s vassalos.
C a b e m a c a d a q u i n h ã o s e i s c e n t o s m a r c o s de p r a t a .
Q ua n d o o s gen ros do C i d recebe ram os q u i n h ões, c u i daram
q u e n u n ca e m d ias d e sua vida v i r iam a passar n e cessidades.
Os de Va l ê n c i a , t r aj a d o s de b o n s m a n t o s e b o a s p e l e s ,
j u n tavam - s e e m co meza i nas.
O C a m p e a d o r, afagan d o as barbas, d izia:

1 01
- Louvores a C r isto, S e n h o r d o m u n d o, q u e p e r m itiu o
q u e m e d á tanto gosto: l idaram m e u s ge n ro s a m e u l a d o .
B o a s n ovas i rão a C a r r i ó n : a i se s a b e r á c o m o e l e s s e
h o n raram, h o n ra n d o - nos a n ós .

A todos cou beram sobejos have res: a o q u e já te m, gozam- n o ;


ao q u e recebem agora, põe m-no a bom recato. M a n d o u o Cid, o
q u e n asceu e m boa h o ra, q u e cada u m to masse o q u i n hão d o
d e s p oj o e s e não e s q u ecesse d o q u i nto q u e ao Cam peador ca­
b ia. Ass i m o faze m todos, por con cordes. Ao q u i nto d o Cid per­
te n c e ra m s e i sc e n tos cavalos, azê molas e cam e los sem conto.
- G ra ç a s a D e u s , S e n h o r do m u n d o ! - ex c l a m o u o
C a m p e a d o r. - F u i p o b re e ago r a s o u r i c o : te n h o b e n s ,
te r ras, o u ro, h o n ras, e são m e u s gen ros o s Car r i o n s . Ve n ç o
b ata l has cada vez q u e a o Criador ap raz, e res peita m - m e m o u ­
r o s e c r i stãos. Q u e e u d ê u ma n o ite u m salto a M arrocos,
o n d e s e a l ç a m m e s q u itas, q u e m sabe s e e l es o te m e m , a i n d a
q u e e u n ã o p e n s e e m tal ? N ã o i r e i b us cá-los p o rq u e , fica n d o
e m Va l ê n c i a , c o m a aj u d a d o C r i a d o r aq u i m e v i rão pagar
t r i b u tos, a m i m ou a q u em me a p rouve r.
E m Val ê n c ia, a M a i o r, conti n uam as festa s das co m p a n h as
d o Campeador, as q uais d o coração l i daram p e l a vitór ia. O s
ge n ro s d o C i d a n d a m sati sfe itís s i m os : rece b e ram c i n co m i l
marcos; e stão ricos. C o m o u tros cavale i ros v i e ram à corte,
o n d e o C i d s e acha com o b ispo D o m J e rón i mo, com o b o m
Á lvaro Fáfi ez, gran d e l idador, e c o m m u itos o utros a q u e m o
Ca m p eador c r i o u e m s u a casa.
Q ua n d o e n trara m os moços Ca rrions, re ce b e u -os M i naya
e m n o m e do C i d R u i D ias:

1 02
- V i n d e cá, parentes, q u e mais val emos por vós.
E o Cid, al egre d e os ve r :
- G e n ros, aq u i está m i n ha excel e nte m u l h e r, e m i n has fi ­
l h as D o n a E l v i ra e Dona S o l , as q uais vos abrace m b e m e s i r ­
v a m d o coração. G raças a Santa M a ri a, M ã e d e D e u s , N os s o
S e n h o r, d e vossos casa mentos have i s h o n ras, e b o n s manda­
d o s i rão a te r ras d e Carri ó n .
R e s p o n d e a e stas palav ras o m o ç o Fernando:
- G r a ç a s a o C r i a d o r, e a vós, h o n r a d o C i d , t e m o s
h ave res q u e se não p o d e m conta r ; p o r vós gan há mos h o n ra e
c o m b ate m o s , v e n c e m o s o s m o u ro s e m ca m p o e m atá m o s
aq u e l e r e i Bú car, tra i d o r p rovad o. C u idai agora n o d e o utros,
q u e o n o s s o te m o - l o a bom re cato .
O s vassal os d o C i d iam-se s o r r i n d o : h aviam u n s l i dado e m
cam p o, o utros acossad�1 os ve n c i d os , p o r é m n e n h u m l ograra
pôr a vista e m D iogo o u em Fernan d o !
P o r e s t e s r i s o s q u e s e i a m l eva n ta n d o e n o i te e d i a o s
e scarneciam, v i e ra m os moços a p raticar h o r re n d o fe ito.
D ign os i r mãos u m do outro, aparta m - s e para c o n c e rtare m
aq u i l o d e q u e não to m e mos nós parte a lgu ma:
- M u d e m o - n o s p a r a C a r r i ó n , q u e j á a q u i ta r d á m o s .
Aos h averes q u e temos n ão p o d e re m os gastá- l os e n q u a n to
fo r m o s v ivos. Vamos p ed i r nossas m u l he res ao C i d , dize n d o ­
- l h e q u e as l evare m o s a te rras de Car r i ó n , para l h e s m o strar­
mos as h e rdades q u e lá tê m . Arran cá- las-e m o s d e Val ê n ci a e
ao p o d e r d o Cam peador, ante s q u e nos ati re m à ca ra o caso
do l e ã o . D e p o i s , p e l o ca m i n h o , fa r- l h e s - e m o s o q u e n o s
a p ro u v e r. Te m o s s a ng u e d o s c o n d e s d e Ca r r i ó n ! Leva m o s
gra n d e ri q u eza. Pod e mos e scarn ece r d a s fi l has d o C i d !

1 03
-·· C o rn o que p os s u í m o s s e remos s e m p re ricos. Pod e re ­
m o s c a s a r- n o s c o m fi l h a s d e re i s o u i m p e ra d o re s . Te m o s
s a n g u e d o s c o n d e s d e Carri ó n ! Es ca r n e ç a mos d a s fi l h as d o
C i d , a n te s q u e n os afrontem c o m o l eão!
C o n c e r ta d o s d e s te m o d o , fo r a m à c o r t e e , p e d i n d o
s i l ê n c i o � F e rn a n d o G o n çálvez fa lou ass i m :
-- D e u s vos aj u d e , Cid Carn p eador! Q u e o q u e vo u d iz e r
a p raza a D o n a X i m e na, a v ó s p r i m e i ro, a Á l varo F á n e z M i n aya
e a q uantos aq u i e stão: - e ntrega i - n os n o ssas m u l h eres, q u e
p o r b ê n ç ã o h o u v e m o s ; l evá- l a s - e m o s a te rras d e C a rr i ó n ,
p a ra q u e to m e m p o s s e d a s a r ras q u e l h e d e m o s p o r
h e rd a d e s . Ve rão vossas fi l h as o q u e h ave mos p o r n o s s o, e d e
q u e v i rão a h e rdar o s fi l h os q u e tivermos.
Sem d esco nfiar d o q ue o u via, re s p o n d e u o Campead o r :
- E n tregar-vos - e i m i n has fi l has, e tam b é m da m i n ha faze n ­
da. D e ste - l h es v i l as por arras e m te rras d e Carr i ó n , e e u q u e ­
ro d a r- l h e s p o r e n xoval trê s m i l marcos. M a i s vos dare i m u las
e palafr é n s robu stos, caval o s vel ozes, e bastas vesti m e n tas de
pano e seda entrete c i da d e o u ro. Dar-vos - e i d uas e s padas: a
C o l ada e a Tizona, a s q uais, b e m o sabeis, gan h e i à g u i sa d e
v a r ã o . Po r m e u s fi l h o s v o s te n h o, a o e nt regar-vos m i n ha s
fi l has. C o m e l as m e l ava i s as fi bras d o coração! Saiba-se e m
G a l iza, e m Leão e e m Caste la, c o m q u e r i q u e za d e s p e ç o a
m e u s g e n ros. A m i n h as fi l h as s e r v i , p o i s, c o m o vossas m u ­
l h e re s . S e a s b e m s e r v i rdes, b o m gal ardão h ave re i s .
A s s i m o p r o m e te r a m o s m o ç o s C a r r i o n s . R e c e b e r a m
e stes e n tã o a s fi l has d o Cam pead o r, e começaram tam b é m a
r e c e b e r o q u e o C i d l h e s d av a . Q u a n d o s e s e n t e m p o r
d e ma i s s at i sfe itos, m a n d a m faz e r a s ca rgas p a ra a j o r n ad a .

1 04
P o r Va l ê n c i a j á vai g ra n d e afã : todos se armam e cava lgam
p a ra s e d e s p ed i re m das fi l h as d o C i d , q u e vão para Car r i 6 n .
C h ega a h o ra d e a b a l a r. Am bas a s i r mãs, D o n a Elvira e D o n a
S o l , s e a j o e l h a m a o s p é s d o Ca m p ead o r :
- Pai, p e d i m o-vos me rcê, as s i m o Criador vos val h a ! Vós
n o s ge rastes e n o s s a mãe n o s d e u à l u z. Eis - n os d i a n te de
vós, se n h o r e se n h ora. A m e rcê q u e am bas vos p e d i m o s é
q u e m a n d e i s m e n sage i ros a Carr i ó n .
A b ra ç o u -as o C i d e b e i j o u -as na b o ca. A mãe fa l o u - l h es
assim:
- I d e , fi l has, e D e u s vos acom p a n h e ! B e m sabe i s q ual é o
a m o r d e vos s o p a i e o m e u . I d e às vossas h e rd a d e s d e
Ca r r i6 n , p o i s j u lgo p o d e r have r-vos p o r b e m casadas.
B e i j a m as mãos d o pai e da mãe , e rece b e m a b ê n ção.
M o n tad os e armados com riq ueza, o Cid e os s e u s p õ e m ­
- s e a cam i n h o.
D e p o i s d e d ize r e m ad e u s às damas e aos c o m p a n h e i ros
q u e ali ficavam, sae m da c l a ra Val ê n c i a os moços Carr i o n s .
I a m j ogan do as armas p e l o s h o rtos val e n cianos as c o m pa ­
n has d e C i d .
Po rém ao q u e e m boa h o ra c i n g i u a e s p a d a mostraram o s
ago u ro s q u e tai s casam e n tos tra riam d e sgosto s .
J á n ã o é te m p o de arre p e n d e r-se: - estão casad os !
- F é l i x M u n oz, m e u s o b r i n h o - d i s s e o C i d -, és p r i m o
d e m i n has fi l h as e esti ma-as d e a l ma e co ração. M a n d o-te q u e
as aco m pa n h e s até Carr i 6 n , o n d e ve rás as s u as h e rdades. E
traze - m e n ovas .
- D o c oração o fare i - torn o u - l h e M u n oz.
Á lvaro Fán ez M i n aya ve i o ao Campead o r :

1 05
-- C i d , tor n e m o - n os a Val ê n cia, a M a i o r. S e D e u s q u i s e r,
l á i re m o s vis itá- las a te rras d e Ca rrió n .
O C i d , e n tã o, d i sse:
- E n c o m e n dam os-vos a Deus, D o n a E l v i ra e Dona S o l !
A n d a i s e m p re e m tudo p o r modo q u e n o s d e i s gosto.
- Ass i m D e u s o man d e ! - resp o n d e ram o s genros.
A d e s p e d ida fo i c h e i a d e l ágri mas: c h o rava o pai com as fi ­
l has, c h o ravam os caval e i ros d o Cam p ead o r.
- O u v i , s o b ri n h o F é l ix M u ri oz - reco m e n d o u a i n d a o
C i d -, ireis p o r M o l i na, o n d e p e r n oitare is. Saudai p o r m i m
ao m e u am igo, o m o u ro Ave ngalvo n . Q u e e l e a co l h a a m e u s
ge n ro s c o m o m e l hor p u d e r. Dize i - l h e q u e envio m i n has fi l h as
a Carrió n : s i rva-as e l e em tudo o q u e p reciso for, e p o r a m o r
d e m i m a s aco m p a n h e até M e d i na. Pe l o q u e fize r, re c e b e rá
b o m gal a rdão.
Enfi m se para m - s e , como a u n ha da car n e .
To r n o u a Va l ê n c i a o q u e n a s c e u e m b o a h o r a , e o s
Carrio n s p u s e ram-se a cam i n ho.

H av e n d o d e s c a n s a d o em S a n ta M a r i a d e A l va r ra z i n ,
a p e rtaram o passo e c h egaram a M o l ina, d e q u e e ra alcaide o
m o u ro Ave ngalvo n . Q ua n d o o al caid e o s o u b e , tão sati sfe ito
fi c o u q u e saiu a re cebê-los com al egre alvoroço. D e u s ! q u e
b e m o s s e rve o m o u ro a m igo ! N o o u tro d i a d e m a n h ã
cavalgou c o m e l e s , te n d o ordenado a d uzentos cava. l e i ros q u e
o aco m pa n h as s e m . Atraves sam o s montes d e Luzon c h a ma­
dos, passam por Arbuxuelo e pou sam n u m l ugar q u e dizem
d e An sare ra. Fez o · m o u ro s e u s dons às fi l has d o C i d e deu
bons caval o s aos Carri ons. Tu d o por a m o r d o Cam peador.

1 06
Ve n d o a riq u eza d o a l ca i d e , p u s e ram-se os dois i rmãos a
u rd i r traição:
- J á q u e vamos d e ixar as fi l h as d o Cid, se p u d é s s e m o s
m atar o m o u ro Ave ngalvo n , q uanta r i q u eza e l e te m h avê- l a­
- f a m o s ! Pô - l a - fa m o s a salvo e m Carri6n s egu ro. E n u n ca o
Campeador n o s poderia p e d i r contas.
Escutou ta is palavras traid oras um m o u ro ! ati n ado, o q u a l
as fo i c o n ta r a Ave ngalvo n :
- Alcai d e , m e u s e n h o r, acaute l a-te : os Car r i o n s c u i d a m
e m te mata r !
O m o u ro Avengalvo n e ra m u ito val e n te , e cavalgavam con­
s i go d u z e ntos d os s e u s , a r m a d o s . Postado a n te o s moços,
d i s s e - l h e s o que a e stes cu stou a o uv i r :
- S e não fora o m e u res pe ito ao C i d d e Bivar, ta l coisa
vos faria que daria b rado. Leva ria ao leal Campeador as fi l h as ,
e vós jamais e ntraríe is e m Carrión !
O m o u ro conti n u o u :
- Q u e v o s fiz e u , moços Carri o n s , para q u e , servi n d o-vos
sem mal ícia, c o n c e rtás s e i s a m i n ha m o rte ? Aq u i m e aparto de
vós como d e maus e traidores, s e D o n a Elvira e Dona Sol mo
c o n s e n te m : q u e p o u co se me dá da p rosápia dos Carrions. E
q u e i ra D e u s , S e n h o r d o m u n d o, q u e ta i s casame ntos p os sa m
dar gosto ao Cam peador!
D i to q u e fo i i s to, o m o u ro voltou co sta s . Ao passar o
S a l 6 n i a j oga n d o as armas.
E m u ito bom fo i ele em to rnar d este modo a M o l i n a .

O s C a r ri o n s saem d e Ansare ra e cam i n h a m n o ite e d ia.


D e ixam à d i reita a rude penha d e Ati e nça, passam a s e r ra d e

1 07
M ie d e s e p icam d e e s p o ras p o r M o n te s Claros. A e s q u e r d a fi ­
c o u - l h e s G riza, q u e Á lamos povoou e o n d e estão a s c ovas e m
q u e e n c e r r o u E l fa . M a i s a d i a n te , à d i r e i t a , d e i xa m S a n to
E stêvão. E agora p e n etram n o r o b l e d o d e Corpes, c u j o s tro n ­
c o s s ã o tão a l tos q u e as ramadas top etam c o m a s n u ve n s .
R o n d a m p o r a l i a s fe ras. Te n d o a c h a d o u m vergel c o m s u a
l í m p i d a fo n te , m a n d a ram o s Carr i o n s a l çar a te n da , e e l e s ,
c o m q ua n tos traze m , descansam es sa n o i te .
C o m s u as m u l h eres nos b raços, d ão - l h e s m ostras d e a m o r.
- Q u ão mal h aviam d e as ma nte r n o o u tro d i a !
F i z e ra m car regar a s azê m o l as c o m os far tos h ave res e , co­
l h i da a te n d a , d e i xa ra m ir a d i ante aos q u e os acom pan h avam .
H aviam o r d e nado q u e n ã o ficasse n i ng u é m , n e m m u l h e r, n e m
h o m e m , p o i s c o m suas es posas q u e riam d e s e nfadar-se m u ito
a seu c o nte nto.
Tod os s e fo ra m . O s q uatro acham-se sós.
- B e m o podeis crer, D o n a Elvi ra e D o n a S o l : n e sta se lva
s e l vage m s e re i s h oj e escar n e c idas! I r- n os-emos d e a q u i e d e i ­
x a r- v o s - e m o s . N ã o h ave r e i s p a rte e m t e r ras d e C a r r i ó n .
C h egarão estas n ovas a o Cid Cam pead o r - e ass i m l h e paga­
re m os a afron ta d o l eão!
T i ra m - l h e s o s ma n to s e as p e l e s de a r m i n h o, p õ e m - n a s
n u as, s ó c o m c a m i sas e b r i a i s . O s p e r ros tra i d o re s t ê m a s
e s p o ras cal çadas, e l a n çam m ã o d e ásperas c i l has. Q u a n d o a s
s e n h o ras v i ra m isto, D o n a S o l fa l o u :
- Po r D e u s vos rogamos, D o m D i ogo e D o m Fe r n a n d o !
Te n d es d uas es padas afiadas e r i j a s : a u ma c h a m a m Colada, à
o u tra T i z o n a . C o r ta i - n os as cabeças - s e re m o s márti re s !
M o u ro s e c r i stãos d i rão q u e o não m e recíamos! E n ã o é p e l o

1 08
m e r e c e r q u e v o - l o p e d i m o s ! M a s n ã o n o s t r a t e i s d e ta l
m o d o ! S e n o s bate r d e s , av i l ta r-vo s - e i s ! E h ã o - d e p e d i r- v o s
c o n ta s e m j u ntas o u co rtes !
Po r é m e l es não faze m caso d o q u e as s e n h o ras i m p l o ra m .
E c o m e çam a c h i coteá -las c o m as c i l has corre d ia s .
C o m as e s p o ra s ag udas go l p e i a m - nas por o n d e m a i s l h e s
d ó i ! Rasgam - l h e s a s c a m i s a s e as ca r n e s , até q u e s o b re o
o u ro d o s b r i a i s j o rra o fo r m o s o sangu e .
J á os corações d e l as e stre b u c h a m !
O h ! q u e ventu ra s e r i a se agora aprouvesse a D e u s q u e al i
aparecesse o C i d Campead o r ! . . .
M a l haram até q u e as vi ram ca i r d esfa l e c i das e sang r e n ta s .
O s Carr i o n s estão cansados d e fe r i r e d e d a r b o n s g o l p e s à
c o m p ita. J á não p o d e m fa lar D o n a Elvira e D o n a S o l ! E p o r
m o rtas a s d e ixam n o ro b l e d o d e C o r p e s .

Pe l o cam i n h o os Carri o n s iam-se gaba n d o :


- O ra esta m o s v i ngad os d e n o s s o s casame nto s . N e m p o r
b a r regãs as d evíamos d e ter to mado. Para m u l h e res não e ra m
d a n o s s a igual ha. Está paga a afronta d o l e ã o !
A g o r a d i r- v o s - e i d a q u e l e F é l i x M u n o z , s o b r i n h o d o
C a m p ead or. H aviam - l h e m a n d a d o q u e fos s e a d i a n te , e a s s i m
o fizera, p o sto q u e d e mal-grado.
M as q ua n d o i a s e u cam i n ho, o coração d e u - l h e um baq u e .
Aparto u - s e d o s m a i s e mete u -se p e l a e s pe s s u ra , p a ra ve r v i r
a s u a s p r i mas o u s a b e r q u e faziam os m a r i d o s . V i u -os passa r,
s e m q u e d e s s e m p o r e l e , e o u v i u a l g u m a s p a l av r a s . ( S a b e i
q u e , s e o tê m d e s c o b e rto, não have ria e s capad o d a morte . )
P i ca n d o e s p o ra s , fo r a m - s e o s C a r r i o n s . E n tã o , s e g u i n d o o

1 09
rasto, F é l i x M u noz to r n o u atrás e fo i dar c o m as s e n h oras ja­
c e ntes c o m o mo rta s .
- P r i m a s ! Pri mas ! - b r a d a e l e , apea n d o- s e .
E, te n d o atado o caval o a u m a árvo re, c o rre p a r a e l as :
- A i ! P r i m a s ! m i n h a s p r i m as D o n a E l v i ra e D o n a S o l !
H o r re n d o fe ito o d o s m o ç o s Carr i o n s ! D e u s p e r m i ta q u e
rece b a m d ig n o p ago !
Va i -as faze n d o to r n a r a s i . Tão tur badas estão q u e não p o ­
d e m fal a r. Estal a m - l h e s a s fi b ras d os coraç ões.
- P r i mas, m i n has p r i mas D o n a E l v i ra e D o n a Sol: d e s p e r ­
tai , p o r a m o r d e D e u s , e n q u anto a n oite não d e s ce , s e n ã o
c o m e r- n o s -ão as fe ras de ste mato !
D o n a Elvi ra e D o n a S o l começam a d a r acordo. A b re m os
o l h o s e vê e m Fél ix M u n oz.
- P r i mas, por a m o r de D e u s : e sforçai-vos ! Se o s m o ç o s
C a r r i o n s d ã o p e l a m i n h a a u s ê n c ia, corre m a b u s ca r- m e . S e
n o s n ã o vale D e u s , m o rremos aq u i tod o s !
C o m s u a tão gra n d e mágoa, D o n a S o l fal o u :
- P r i m o, a s s i m vo- l o retr i b ua n o sso p a i , o C a m p e a d o r-,
dai - n o s água por a m o r d e D e u s !
F é l ix M u n oz fo i b u scar ág ua n o s e u r i c o s o m b re i ro acaba­
do de e s t rear, e d e u - a a b e b e r a s u as p r i m a s l a sti m o s a s .
Pe d e - l h e s m u ito e e n fi m co n s eg u e q u e e l a s s e s e n te m .
Va i - a s c o n f o r ta n d o e d a n d o - l h e s â n i m o , a t é q u e , m a i s
re c o b radas, a s a l ç a até à s e l a, c o b r i n d o-as c o m o s e u m a n to
e l eva n d o o caval o à rédea. Sozi n h o s atrave ssam a s e lva d e
C o r p e s , e , já e n tre d i a e n o i te , d e a l i sa í ram e c h ega ram às
águas do D o u ro. Entã o d e ixa M u n oz a s u as p r i mas na To r re
d e D o n a U rraca, e vai a S a n t o Estêvão, o n d e fa l a c o m u m

110
h o m e m q u e ti n h a s i d o d e Á lvaro Fári ez e s e c h a m ava D i ogo
T é l ez.
Q ua n d o este o o u v i u , d oe u - l h e o co ração; e, a p e rc e b e n ­
d o - s e l ogo d e b e stas e vesti d o s , fo i rec o l h e r D o n a E l v i ra e
D o n a S o l , traze n d o -as para Santo Estêvão, o n d e a s a p o s e nto u
e s e rv i u o m e l h o r q u e p ôd e . E sta g e n te d e S a n to Estêvão,
q u e fo i s e m p re b e m - c r i ada, l a m e n tava d o coração o s u c e d i d o ,
e ofe re c i a às fi l h as do C i d o tri b u to d e vian das, trigo e vi n h o.
E a l i ficaram e l as até q u e se acharam sãs .

E n treta nto i a m - s e ga b a n d o os Carrio n s . J á as n ovas, cor ­


re n d o por todas e s sas t e rra s , vão p e sa r n o c o ração d o b o m
re i D o m Afo n so. E c h egam a Va l ê n cia, a M a i o r. Q ua n d o o C i d
Ca m p ea d o r as o u v i u , l o ngo te m p o fi c o u c i s ma n d o . E, p o r fi m ,
e xc l a m o u afaga n d o a s b a r bas :
- Lou vores a C r i sto, S e n h o r d o m u n d o ! Por estas b a r bas ,
q u e n u n ca n i n g u é m m e a r ran c o u , não h ã o - d e os Ca r r i o n s l o ­
g r a r d e s o n rar- m e , e h e i - d e casar b e m as m i n has fi l h a s !
Q u e d o r a d o C i d , a d e toda a s u a c o r te , e a d e Á l varo
F á ri ez, a q u e m i sto ta n to cu sta !
Cava lgou M i n aya com Pe ro Ve r m ú d oz e M a rti m A n to l í n ez,
o l e a l b u r g a l ê s , a c o m p a n h a d o s de d u z e n t o s c av a l e i r o s .
O rd e n o u - l h es severa m e n te o C i d q u e a n das s e m d e d i a e d e
n o ite e q u e a Va l ê n cia, a M a i o r, tro u xe s s e m a s s u as fi l h as.
N ã o ta r d a m e l e s e m c u m p r i r as o rd e n s do seu s e n h o r.
C ava l g a m a ç o d a d o s , c a m i n h a m d i a s e n o i t e s , e c h e ga m a
G o r m az , fo rte caste l o , o n d e tive ram d e p e r n o i ta r.
N e ste c o m e n o s c h egara a S a n to Estêvão a n ova d e q u e
M i n aya vi n ha p o r s u as p r i mas. O s varões d e sta ter ra, à g u i sa

111
d e b o n s e h o n ra d o s , rece b e m a M i n aya e a o s s e u s e ofe re­
c e m - l h e ne ss a n o ite tr i b utos co m o vassa l o s , mas a o s q ua i s ,
ag rad e c e n d o- o s , M i n aya n ão a c ei ta:
- G ra ç a s , p r u d e n t e s v a r õ e s de S a n to E s têvão, p o r n o s
h ave r d e s h o n ra d o n o q u e ta n to n o s p e s a . Ag rad e c e - vo s , l á
o n d e e s t á , o C i d C a m p e a d o r, e e u d a q u i ta m b é m v o s
ag rad e ç o. D e u s d o C é u p e r m iti rá q u e s e j a i s ga l a r d oa d o s .
To d o s p o r s a t i s fe i t o s l h e d ã o g r a ç a s , e reti ra m - s e p a ra
d e s c a n sa r.
M i n aya va i e n tão v e r as s uas p r i mas, q u e se l h e aj o e l h a m
aos pés:
--- Tan to vo- l o agrad e c e m o s c o m o s e vira m o s ao próprio
D e u s ! E v ó s a g r a d e c e i - L h e a E l e o a c h a r- n o s v i v a s . E m
Va l ê n cia, a M a i o r, q ua n d o h o u v e r vagar, vos c o n tare m o s toda
a nossa d o r.
A s s e n h o ra s c h o rava m ; c h o ravam tam b é m Á l varo Fánez e
Pe ro Ve r m ú d oz, q u e d i s s e :
- D o n a Elvi ra e D o n a S o l : n ã o h aj a i s c u i da d o s , q u e e sta i s
s ã s e s a l v a s . S e p e rd e ste s b o n s c a s a m e n to s , m e l h o re s o s
v i re i s a te r. As s i m n o s ch egu e o d i a d e v o s vi nga r !
E a l i p a s s a m a n o i t e , t o d o s c o n te n te s d e s e a c h a r e m
j u n to s .
N o o u tro d i a d e m a n h ã p õ e m - s e a cam i n h o. O s d e S a n to
Estêvão a c o m p a n h a m - n os e fe stejam - n os até R i o d e A m o r,
o n d e s e d e s p e d e m p a ra t o r n a re m . M i n aya vai cav a l ga n d o a
p a r d a s s e n h o ras. Pa ssam A l c oceva, d e i xam G o rmaz à d i re i ta,
atrave s s a m Bad o d e Rei e p o u sam no p o voad o de B e r l anga.
N o dia seg u i n te a l b e rga m - s e em M ed i n a , e daq u i a M o l i na l e ­
v a m u m d i a. O m o u ro Ave nga l v o n r e c e b e - o s e s e rve - o s d e

112
t o d o o c o ração e , p o r a m o r d o C i d , dá- l h e s r i c a c e ia. E
e n d i r e i ta m a Va l ê n c i a .
Q ua n d o o C a m p e a d o r s o u b e q u e vi n h am c h egan d o, cava l ­
g o u e s a i u a rece b ê - l os. l a j ogan d o a s armas o q u e e m b o a
h o ra n a s c e ra, e d a n d o m o stras d e m u ita a l egria.
A o ve r as fi l h a s , a b ra ç o u - a s , b e i j o u -as, e disse, s o r r i n d o ­
- l h es :
- V i n d e , m i n h a s fi l has, e D e u s vos l i vre d e todo o m a l !
Ace ite i vossos casa me ntos p o rq u e n ã o o u s e i o p o r- m e . D e u s
p e r m i ta q u e vos e u vej a b e m casadas. E D e u s m e d e ixe vi ngar
dos d e C a r r i ó n !
B e i j a ra m as fi l has as mãos a o p a i .
J ogan d o as a r m a s. , os cava l e i ro s e n tra m l e d o s n a c i d ad e .
G ra n d e a l eg r i a s e n t i u D o n a X i m e n a a o ve r a s fi l h as. S e m ta r­
d a n ç a fa l a com os s e u s o q u e nasceu em b oa h ora. E, à p u rida­
d e , c o n certam e nviar m e n sagem a e l - e i Dom Afonso d e Caste la.

Ve m cá, M u n o G u sti oz. meu i l u stre vassal o. E m boa h o ra


te c r i e i em m i n ha casa. Leva a m e n sage m a Caste l a , a e l - re i
Afo n s o. D e a l m a e coração b e i j a- l h e a s mãos p o r m i m , p o i s
_
e l e é m e u s e n h o r, e u s e u vas sal o. E p e d e ao b o m re i q u e s e
d ê ta m b é m p o r ofe n d i d o d a i n j ú r i a q u e o s C a r r i o n s m e
fize ra m . E l e , e n ã o e u , cas o u a m i n h a s f i l h a s . Ag o ra q u e as
d e ixaram c o m d e s o n ra - se n i sto h á d e s o n ra -, g ra n d e ou
p e q u e n a c a b e ela to d a a meu s e n h or. Aj u n ta - s e à ofe n sa o
h ave re m e l es l evado o m u ito e o bo m q u e l h es d e i . C i ta - o s à
p re s e n ç a d e e l - re i , e m j u n tas o u e m corte s, a fi m d e m a n te r
m e u d i re ito, p o i s s o b e j a é a sa n h a q u e m e o c o ração ró i !
Ass i m fa l o u o C i d .

1 13
M u fi o G u s t i o z a b a l a s e m ta r d a n ç a ; v ã o c o m e l e d o i s
cava l e ir os para b e m o s e r v i r e m e alg u n s e s c u d e i ro s d a co rte
do C a m p e a d o r.
S a e m d e Val ê n c ia e a n dam q u anto p o d e m , d i a e n o ite . E l ­
- re i Afo n s o estava e m San Fagu nt. É r e i d e Caste l a e r e i d e
Leão, e d a s Astú rias e S ã o S a lvad o r, até é s e n h o r d e S a n t' l ago
na G a l i za , o n d e o s c o n d e s o acata m p o r s o b e ra n o. M u n o
G u stioz d e s m o n ta ; e n co m e n da-se aos S a n tos, reza a N os s o
S e n h o r, e c o m o s s e u s v a i a palácio.
Ve n d o - o s e n t r a r p e l o m e i o d a c o r t e , c o n h e c e u l og o a
M u n o G u st i o z e l - r e i , q u e s e l ev a n t o u p a ra o r e c e b e r c o m
h o n r a . O m e n s a g e i r o a j o e l h o u d i a n t e d e D o m Afo n s o ,
b e i j o u - l h e o s p é s , e excla m o u :
- M e rc ê , re i a q u e m ta ntos r e i n o s tê m p o r s e n h o r ! O
Ca m p ea d o r b e ija-vos o s p é s e as mãos: s o i s vós o s e u s e n h o r,
e l e o v o s s o v a s s a l o. Casaste s a s u as fi l h a s c o m o s m o ç o s
C a r r i o n s : fize ra m - s e ta i s cas a m e n tos p o rq u e vós, s e n h o r, o
q u i s e st e s . J á sab e i s o q u e d i sto n o s adve io, co m o o s Carri o n s
n o s h ã o u ltraj a d o ! Es p a n caram a s fi l has d o Cam p e ad o r, e d e ­
s a c o rdadas, n u as e sozi n has a s d e ixara m n a s e l va d e C a r p e s ,
à m e rcê das fe ras d o m ato e das ave s d o m o nte ! Ass i m , p o i s ,
o Ca m p e a d o r v o s b e i j a a s m ã o s c o m o vas s a l o e p e d e q u e
l eve i s a j u ntas o u co rtes a e s s e s m o ç o s Ca r r i o n s , o s q u ai s , s e
o ofe n d e ra m a e l e , m a i s vos ofe n d eram a vós. E tam b é m vos
pede q u e to m e is p o r vossa a i n j ú ria, a co m p a n h a n d o - o n a d o r
e m a n t e n d o - l h e o d i reito !
E l - re i fi c o u a c u i da r u m te m p o e , ao cabo, re s p o n d e u :
E m v erdad e t e d igo q u e i sto m e c u sta d o c o ração, e
c e rto é o q u e d iz e s , M u n o G u stioz: fu i e u q u e os case i . P o r

1 14
b e m o fiz e par a p rove ito d e to d o s . O xa l á n u n c a s e h o u ­
ve s s e m fe i to ta i s casa m e n to s ! A m i m , c o m o a o C i d , a p e na
d ó i . Ass i m D e u s m e salve q u e o h e i - d e aj u d ar e m s e u d i r e i to !
L o nge e s tava e u d e futu rar ta i s casos. M as e nviare i m e n s a ­
g e i ro s p o r to d o o m e u re i n o, ap rego a n d o q u e s e j u n ta rã o
c o rte s e m To l e d o, às q u a i s i rão c o n d e s e i nfa n ç õ e s . M a n d a re i
q u e aí a c u d a m o s m o ç o s Carri o n s , para res p o n d e re m às d e ­
m a n das d o C i d Ca m pead o r. D ize i - l h e q u e a o s e u d e sgosto o
re m e d iarei n o q u e p u d e r.
E l - re i c o n ti n u o u :
- D izei ao C a m p e a d o r, n a s c i d o e m b o a h o ra, q u e daq u i a
s ete s e manas e steja com s e u s vassal o s e m Tol e d o: este é o
p razo. Po r a m o r d o C i d faç o e stas cortes. S a u d a i - o a todos, e
q u e h aj a m c o n s o l ação: d e po i s d o q u e aco ntece u , m a i s h o n ra
l h e s h á - d e p rov i r.
D e s p e d i u - s e M u n o G u stioz e torn o u ao Cam pe a d o r.
Fa l o u verdade Afo n so, o Caste l h a n o : as s i m c o m o o d i s s e ,
as s i m o fez. S e m tarda n ça e nv i o u cartas a Leão e a S a n t' l ago,
aos Portuga l e s e s e aos G a l egos, aos d e Carrión e aos varões
caste l h a n o s , d i ze n d o - l h e s aq u e l e h o n rado r e i q u e ao cab o de
s ete s e manas s e j u n tas s e m nas co rte s d e Tol e d o, q u e o q u e
fa ltass e s e n ã o h o uvesse p o r s e u vassa l o .
E todos por e s sas te rras s e d i s p õ e m a o b e d e c e r ao m a n d o
d e s e u s e n h o r.

J á p e sa a o s C a r r i o n s q u e e l - re i fa ça c o r te s e m To l e d o :
te m e m q u e a e stas a s s i sta o C i d Cam p e ad o r. D e p o i s d e s e
a co n s e l h a r e m c o m a p a r e n te l a , roga m a e l - re i q u e o s
d i s p e n s e d e co m parece r.

115
- Ta l n ã o fa re i , ass i m D e u s m e sa lve ! - to r n o u - l h e s D o m
A fo n s o . - O C i d v i r á à s c o r t e s , e v ó s , q u e t a n t o o
ag ravastes , h ave i s d e res p o n d e r a s u a s d e m a n das. Q u e m n ão
q u i s e r i r às cortes q u e d e ixe o m e u re i n o, p o i s p a ra vas s a l o
m e n ã o p re sta !
Aq u i e nte n d e ra m o s Ca r r i o n s q u e ti n h am d e i r às c o rte s.
To r n aram a a co n s e l h a r- se com o s pare n te s ; e o c o n d e D o m
G a rc i a O rd 6 fí ez, o i n i m igo d o C i d , ta m b é m o s a c o n s e l h o u
p o r ca rtas .
C h egava o p razo. Tod o s s e e n cam i n h avam p a ra as c o r te s .
E ntre o s p r i m e i ro s i a m o b o m r e i D o m Afo n s o, o co n d e D o m
H e n r i q u e , o c o n d e D o m Ra i m u n d o - p a i , e ste , d o b o m i m ­
p e ra d o r - , o c o n d e D o m F r 6 i l a e o c o n d e D o m B i r b o n . E
a c o rre ra m d e todo o re i n o m u itos o utros sa b e d o r e s d e l e i s ,
e tod o s o s m e l h o r e s d e Caste la: o c o n d e D o m Garcia, p o r
a l c u n h a o C r e s p o d e G ra fí o n , Á l varo D ías, o q u e m a n d o u e m
O ca , A n s u o r G o n ç álvez, G o n ça l o An s u órez e Pe d ro
A n s u 6 rez.
D i ogo e Fe r n a n d o de C a r r i ó n lá iam tam b é m , rodeados de
n u m e r o s o b a n d o , c u i da n d o e m e m ba i r o Cid Cam p ead o r.
D e todas as partes acod e m os q u e e m To l e d o s e j u n ta m .
S ó n ã o h av i a a i n da c h egad o o q u e e m b oa h o ra n a s c e ra, e n ã o
a p raz ia a e l - r e i e ssa tarda n ç a . A o q u i n to d ia, e n fi m, c h eg o u o
C i d , q u e e nv i ara a d i a n te Á lvaro F á fí e z a b e i j a r as mãos a e l ­
- re i e a a n u n cia r- l h e a s u a c h egada n e s sa n o i te .
A l egro u - s e e l - re i c o m ta l n ova; e , cava lgan d o c o m m u ita d a
s ua g e n t e , fo i re c e b e r o q u e n ascera e m b oa h o ra.
V i n h a o C a m p e a d o r m u i t o b e m atav i a d o, a s s i m c o m o
to d o s o s s e u s : ri cas c a m pa n h as para s e n h o r ta l . Q u a n d o v i u

116
o b o m r e i D o m Afo n so, o C i d d e s m o n to u e q u e r ia h o n ra r a
s e u s e n h o r, h u m i l h a n do - s e - l h e d iante, mas e l - re i ata l h o u - o :
- Po r Santo I s i d ro, C i d , cavalga i , se não q u e re i s d e s p ra­
z e r- m e ! B e i j a r- n o s - e m o s d e a l m a e c o r a ç ã o . O q u e a v ó s
p esa, a m i m d ó i . D e u s p e r m ita q u e a s co rtes s e h o n re m p o r
vós!
- A m é m ! - d i s s e o Campeador.
E , te n d o be i j a d o a mão a e l - re i , b e i j o u - o d e p o i s n a boca:
- Lo uvad o seja Deus que vos vej o, s e n h o r ! H u m i l h o - m e
d iante de vós, do c o n d e Dom H e n ri q u e , do c o n d e D o m
Ra i m u n d o e d e q uantos aq u i estão. De u s g uarde a n ossos am igos
e a vós, s e n h o r, mais q u e a tod os. M i n h a m u l h e r, D o n a X i m e na,
dama de p ro l , beija-vos as mãos, ass i m como m i n has fi l has, para
p e d i r-vos q u e d e q uanto n os s ucedeu to meis vossa pa rte d e d o r.
To r n o u - l h e e l - re i :
- Ass i m faço, p o r D e u s !

l a e l -re i voltar a To l e d o, m a s n e ssa n o ite n ã o q u i s o C i d


atrave ssar o Tej o :
- M e rc ê , ó re i , ass i m D e u s vos salve! To r n a i v ó s, se n h o r,
à c i d a d e , q u e e u m e a l b e rgare i c o m os m e u s e m S a n S e r va n .
C h egara m e s ta n o ite m i n has com pan h as ; v e l arei n e ste s a n to
l ug a r e a m a n h ã c e d o e n trarei na cidad e , i n do às c o rtes a n te s
d e c o m e r.
- S e j a as s i m - d i s s e e l - re i , parti n d o.
E m S a n S e r va n , o n d e p o u s a n e s s a n o i t e , m a n d a o C i d
ace n d e r l u ze s e p ô - las n o a l ta r. Conforta-o ficar a l i v e l a n d o ,
fa l a n d o c o m D e u s à p u r i d ad e e reza n d o - L h e as s uas o ra ç õ e s .
M i n aya e os o u t ros cava l e i r os e s tã o p re pa r a d o s q u a n d o

117
ro m p e a a l va. Reza ram M a t i n a s e P r i mas, e o u v i ram m i s s a a n ­
t e s q u e o S o l ra iass e . J á o s d o C i d fize ram val i osa ofe rta.
R e c o m e n d o u - l h es o Cam p e ad o r :
- V ó s , Á l v a r o F á n e z M i n ay a , q u e s o i s o m e u m e l h o r
b raço, v i r e i s c o m igo e m c o m p a n h i a d o b i s p o D o m J e ró n i m o,
d e Pe ro Ve r m ú d oz, M u n o G u sti oz, M a rtim A n to l í n ez, o b u r­
g a l ê s d e p r o l , Á l va r o A l v a r e z , Á l va r o S a l v a d ó re z , M a r t i m
M u n oz, q u e e m fe l i z p o nto nasce u , e d e m e u s o b r i n h o F é l ix
M u n oz. V i rão tam b é m M a l Anda, q u e é e s p e r to sa b e d o r d e
l e i s , e G a l i n G arcíaz, o b o m d e Aragão. J u nte-se a e stes u m
c e n to d o s n o s s os m e l h o r e s . Vesti a s tú n i cas ac o l c h oadas para
a g u e n ta r b e m a s a r m a d u r a s ; p o n d e em c i m a as l o r i g a s
r e s p l e n d e n te s , e , s o b re e sta s , a r m i n h o s e p e l ot e s . A p e r ta i
b e m o s c o r d õ e s , p a ra s e não verem o s fe rro s . S o b o s m a n tos
l eva i a s e s padas. Ass i m m e q u e ro ir às c o rtes, para ali faz e r
val e r m e u s d i re itos e d e c larar m i n has razõ e s . S e o s d e
C a r r i ó n m e a r m a r e m c i l a d a , d e s c a n s a d o e s ta r e i o n d e o s
m e u s c e m e stive r e m .
- I s s o q u e r e m o s , s e n h or - assegu raram os s e u s .
C o m o e l e o d i s s e o fizeram tod o s .
E n tã o s e m dete n ç a o q u e e m boa h o ra n a s c e u vesti u c a l ç a s
d e b o m p a n o , cal ç o u sapatos b e l a m e nte o b ra d o s . A cam i s a
q u e l eva é d e l i n h o tão a lvo c o m o o S o l ; a p e rtam - n a botões
de p r a ta e o u ro e c a i b e m s o b re o s p u n h os , q u e a s s i m o
C a m p e a d o r a m a n d o u ta l h a r. S o b re e sta vesti u m u ito r i c o
b r ia l d e b rocado d e o u ro, c u j o s lavo res c i nti l a m . E p o r c i m a
p ô s a p e l e v e r m e l h a c o m fra n j a s d e o u ro, q u e s e m p r e
c o stu m ava traz e r. N a c a b e ç a e n fi o u u m a c o i fa d e te l a p r e ­
c i o s a , te c i d a d e o u ro, a q u a l u s ava a f i m d e q u e n i n g u é m l h e

1 18
p u d e s s e p uxar os cabe l os ; e à sua l o nga barba (q u e ri a i r apa­
re l h ad o p a ra t u d o ) ato u -a c o m u m co rdão.
Por fi m , c o b r i u - s e com um manto de ta n t o val o r q u e o
ad m i ravam q u a ntos o v i a m .
E , c o m os c e m b e m p r e p a rados, s a i u d e San S e rvan, cava l ­
ga n d o . D e ste m o d o i a o C i d à co rte precav i do.

A o p o rta l a p e o u e , rod e a d o d o s s e u s c e m , n o meio d e l e s ,


ava n ç a m e s u radam e n te o Ca m p ea d o r. Q u a n d o v i u e ntrar o
q u e e m boa h o ra nasce ra, o b o m r e i D o m Afo n s o l evanto u ­
- s e , e , c o m e l - re i , o s c o n d e s D o m H e n r iq u e e D o m Rai m u n d o
e to d o s o s o u tro s d a s c o r t e s . R e c e b e m - n o c o m g ra n d e s
h o n ras. N ão q u i s e ram l evantar- s e o co n d e D o m G arcia, n e m
n e n h u m d o partido d o s Carr i o n s .
E l - re i to m o u o C i d p e l a mão:
- S e n ta i -vos ao p é d e m i m , C a m p e ad o r, n e ste escan o q u e
m e d es te s d e p r e s e n te . E m b o ra a a lg u n s p e s e , val e i s m a i s d o
q u e n ós.
O q u e Val ê n c i a h av i a ga n h o, res p o n d e u :
- C o m o re i e s e n h o r, f i c a i n o vo s s o e s c a n o . E u fi ca re i
aq u i , c o m o s m e u s q u e me aco m pa n h a m .
E s e n t o u - s e n u m e scano tor n eado, te n d o à vo l ta os c e m
d a s u a g u a rd a .
Agra d o u m u i to a e l -re i a re s p o sta d o C i d . En treta n to iam
m i r a n d o a o C a m p e a d o r q u a n to s s e j u n ta v a m em c o r te s :
a d m i r ava m - l h e a s l o ngas b a r b a s , e v i a m n e l e u m va rão, nas
o b ra s e n a p r e s e n ç a.
Os m o ç o s C a rr i o n s não se atrev i a m a e n cará- l o, com ver­
go n h a.

119
E n tão o b o m rei D o m Afo n s o e rg u e u - s e e d i s s e :
- O u v i , m e s nadas, a s s i m D e u s vos salve ! M a i s não f i z q u e
d u as c o rtes d e s d e q u e s o u r e i : u mas e m B u rg o s , o u tras e m
Ca r r i o n . Esta s d e To l e d o a s faç o p o r a m o r d o C i d , o q u e n a s ­
c e u e m boa h o ra, a fi m d e q u e r e c l a m e s e u d i re ito aos m o ç o s
Ca r r i o n s . Q u e este s l h e fi zeram g ra n d e agravo, t o d o s o sa­
b e m . S e j a m j u í z e s do p l e i t o o c o n d e D o m H e n r i q u e e o
c o n d e D o m Ra i m u n do , e tod o s o s c o n d e s q u e n ã o são d o
b a n d o . A p u ra i vo s s a s m e n t e s n e s t e s u c e s s o , e, p o i s o
c o n h ec e i s , d i zei d a vossa j u stiça, q u e i n j u stiças n ã o as a p rovo
e u . De u m a e o u tra parte, m a n te n h a m o s paz. J u ro p o r S a n to
I s i d ro q u e d e ixa rá m e u re i n o e p e rd e rá m i n h a a m izade aq u e l e
q u e tu r b a r e stas c o rte s . Q u e ixe- s e agora o C i d C a m p e a d o r, e
s a b e r e m o s d e p o i s o q u e os m o ç o s Car ri o n s a l eg a m .

B e i j o u o C i d a mão a e l - re i e ass i m fal o u :
- M u ito v o s agrad e ç o , c o m o a re i e s e n h o r, q u e p o r m i m
h a j a i s fe ito e stas co rtes. O h ave rem o s m o ç o s Carri o n s d e i ­
xad o a m i n h as fi l h as , n ã o m e d e s o n ra, p o i s v ó s , r e i , a s casas­
tes, e h o j e d itare i s o que s e h á - d e faze r. M as n o te m p o em
q u e l h e s q u e ria d e a l m a e c o ração e e l es levara m d e Val ê n c i a
a m i n h a s fi l has, d e i - l h es d uas e s padas: a C o l ada e a Tizona, as
q ua i s gan h e i à g u i sa d e va rão , e com qu e e u d e s e j ava s e h o n ­
rass e m , e a vós, s e n h o r, s e r v i s s e m . Q u an d o d e ixaram as m i ­
n has fi l h a s na s e l va d e C o r p e s , p e r d e ra m tod o o m e u a m o r :
e n tregu e m - m e , p o i s , e s sas e s pa d a s aq u e l e s q u e j á n ã o s ã o
m e u s gen ros.
O s j u ízes s e ntenciaram:
- O C i d te m razão.
- R e s p o n d a m o s a i s to - d i s s e o con d e Dom G arcia.

120
E , aparta n d o - s e os Carr i o n s , os parentes d este s e to d o o
b a n d o , c o n c e rtaram à p re s sa a res posta:
- G ra n d e m e rcê n o s faz a i n d a o C i d Ca m p ea d o r e m n o s
n ã o d e m a n d a r p e l a d e s o n r a d a s f i l h a s . Co m e l - r e i D o m
A fo n s o h av e m o s d e e n t e n d e r- n o s . E n t r e g u e m o s - ! h e a s
e s padas e c e rre - s e aq u i a d e m a n da, a fim d e q u e as l eve das
c o rte s e n ã o te n h a mais d i re itos s o b re n ó s .
C o m esta res p o sta p re parada, voltaram às c o rtes:
- M e rcê , r e i D o m Afo n s o, s e n h o r nosso! Não p od e m o s
n eg a r q u e rece b e m o s as d u as e s padas: p o i s a s re q u e r q u e m
n o - l as d e u , d ia n te d e v ó s l has e n trega m o s .
E , t i ra n d o a C o l ad a e a T i z o n a , d e p u s e ram - nas nas m ã o s
d e e l - re i . Q u a n d o a s e s p a d a s c i n ti l a r a m , i l u m i n a ra m - s e a s
c o r te s : m a ç ã s e c o p os são to d o s d e o u r o. O s c o n d e s marav i ­
l ha m -s e d e o l h á- las.
E l - re i c h a m a o C i d e e ntrega- l h as . R e c e b e -as o Cam p e a d o r,
b e ij a as mãos a e l - r e i e to r n a ao s e u e s can o. Em p u n ha a e s pa­
das e re m i ra-as : o Cid co n h e ce-as b e m ; n ã o l h a s p o d e m tro­
c a r. E , al egre d e as m i rar, s o r ri - l h es d o c o ração! Afaga n d o as
barbas, d i z:
- P o r e stas b a r b a s , q u e n u n ca n i n g u é m m e a r r a n c o u ,
a s s i m i re m o s v i ngan d o D o n a Elvi ra e D o n a S o l !
C h a m o u a Pe ro Ve r m ú doz e , este n d e n d o o b raço, d e u - l h e
a Tizo n a :
- Toma-a, s o b ri n h o, q u e m e l h o ra d e d o n o . . .
C h a m o u d e p o i s a M a r t i m A n to l i n ez, o l e a l b u rg a l ê s , e
d e u - l h e a o u tra espa d a:
- M a rti m A n to l l n e z , m e u n o b re va s sa l o : to m a i a
C o l ada. G a n h e i - a a n o b re d o n o: R e m o n t Ve rengu e l , c o n d e d e

121
Barce l o n a. Por i s s o vo-la d o u pa ra q u e m u ito a esti m e i s . S e i
b e m q u e , e m v i n d o o l a n c e , c o m e la gan h a r e i s mai s h o n ra e
p re ç o.
M arti m b e i j o u - l h e a mão e g u a rd o u a C o l ada.
To r n o u o Cid a l evantar- s e :
- G ra ç a s a D e u s e a v ó s , m e u re i e s e n h o r, c o n t e n t e
e sto u q ua n to a C o l a da e Tizo n a . Te n h o, p o r é m , o u tra q u e ixa
c o ntra o s m o ç o s Carri o n s : q u a n d o l evaram de Val ê n c i a a m i ­
n has fi l ha s , d e i - l h e s três m i l marcos d e o u ro e p rata. I s to l h e s
f i z e u ; s a b e i s o q u e m e e l e s fi z e r a m ! E n tre g u e m - m e , p o i s ,
e ste d i n h e iro aq u e l es q u e j á n ã o são m e u s g e n ros.
A q u i veríeis q u e ixare m - s e os Carrio n s !
O c o n d e D o m Ra i m u n d o ata l h o u - o s :
- D i ze i s e s im o u n ã o !
Respondem eles:
- S e e ntregá m o s as e s padas ao C i d Ca m p e a d o r, fo i p a ra
q u e n a d a m a i s n o s p e d i s s e e s e c e r rass e a d e ma n d a .
E o c o n d e D o m R ai m u n d o :
- C o m l i c e n ça d e e l - re i vo- l o re q u e re m o s : re s p o n d e i à
d e ma n d a d o C i d !
- Ass i m o o uto rgo - confi r m o u o b o m r e i .
O Ca m p ea d o r aj u n to u :
- D i z e i s e m e to r n a re i s o d i n h e i ro o u s e m e d a re i s razão
dele.
A p artam - s e o u tra vez os Carr i o n s e os d o s e u b a n d o , p a ra
r e s o l v e r ; p o r é m j á n ã o ac h a m s a í d a p o r q u e a q u a n t i a e ra
grossa e j á a h aviam gasto.
Vo l ta m e d iz e m :
- M u ito n o s a p e rta q u e m gan h o u Va l ê n cia, mas p o i s ta nto

122
a p e t e c e n o s s a faze n d a , pagar- l h e - e m o s c o m a s n o s s a s
h e rd a d e s d e C a rr i ó n .
Ve n d o re co n h e c i d a a d ív i d a , s e n te n c iaram os j u íze s :
- S e i s s o a p ro u v e r a o C i d , a tal n o s não o p o m o s . M a s
m a n d a m o s e m n os s o j u ízo q u e l h e pagu e i s a q u i n a s corte s .
N e ste p o nto fa l o u e l - re i D o m Afo n s o :
- B e m s a b e m o s q u e o C i d d e m a n da c o m b o m d i re ito.
D e s s e s três mil marcos re c e b i eu d u ze n to s , como pres e nte
d os afi l h a d o s . Q u e ro d ev o l ve r- l h o s , p o rq u e fi carão p o b re s .
E ntreg u e m e ste d i n h e i ro ao Campead o r, p o i s s e tê m d e d a r o
q u e h av i a m , não q u e ro g u ardar o q u e d e l e s re c e b i .
- M o e d a , n ã o n a have m o s - d i s s e F e r n a n d o G o n ç á l vez.
A o q u e l ogo retorq u i u o co n d e Dom Ra i m u n d o :
- Já g a n h a s t e o o u ro e a p rata. D a m o s , p o i s , e s ta
s e n te n ç a a n t e e l - re i D o m Afo n s o : pagai e m e s p é c i e .
E a l i fizeram traze r gran d e c ó p ia d e caval o s c o r r e d o r e s ,
d e m u l as , d e fi n o s p a l afré n s , e p re c i osas e s padas g u a r n e c i d a s .
S o b re os d u z e n tos m a rcos q u e e l - r e i D o m Afo n s o havia r e c e ­
b i d o, p aga r a m os C a r r i o n s a o q u e e m b o a h o ra n a s c e u . E
c o m o l h e s não c h eg u e o q u e tê m, p e d e m e m p re s ta d o .
S a b e i q u e mal parad o s f i c a m d e sta !

To m o u o C i d aq u e l a faz e n da, q u e fi c o u s o b a g u a rda d o s


s e u s. M a s , q ua n d o i sto h o uve fe ito, p a s s o u a trata r d o m a i o r
ag ravo:
- M e rc ê , r e i e s e n h o r, p o r c a r i d a d e : n ã o me p o s s o
e s q u e c e r d a gran d e q u e ixa ! O u ça m - m e a s c o rtes e d oa- l h e s
c o m igo. A o s m o ç os Carri o n s , q u e ta n to m e ofe n d e ra m , não
o s h e i - d e d e ixa r s e m d e safi o !

123
O Cam p ea d o r p rosseg u i u :
- D i ze i - m e , m o ç o s Carri o n s : q u e m a l vos f i z j a m a i s d e
q ua l q u e r m o d o ? Aq u i o re p a rare i e m j u izo d a s c o rte s. Porq u e
m e c ortaste o s fi o s d o c o ração ? À saída d e Va l ê n c i a e n tre­
g u e i - v o s m i n h a s f i l h a s , fa z e n d o - v o s h o n r a s e d a n d o - v o s
r i q u eza. O h ! cães tra i d o re s ! s e a s n ã o q u e r íe i s , para q u e mas
l e v a s t e s de s e u s m i m o s ? Po rq u e as fe ri ste a g o l p e s d e ta­
g a n te s e a c i cate s ? D e i xaste - l a s a o d e s a m p a r o na s e l va d e
C o r p e s , à m e rcê das fe ras d o mato e das aves d o m o n te . Por
q u a n to f i z e ste s vos h e i s av i l ta d o . Se o n ã o r e c o n h e c e i s ,
j u lg u e m - n o e stas corte s !
O c o n d e D o m G a rc i a l eva nto u - s e :
- M e rc ê , 6 r e i , o m e l h o r d e toda a Es p a n h a ! A estas ce l e ­
b radas c o rtes ve i o o C i d d a s l o n gas barbas, a s q uai s ta nto d e i ­
x o u cresce r q u e a u n s espa nta e a o u tros a m e d r o n ta . S ã o o s
d e C a r r i ó n d e t ã o a l ta l i n h ag e m q u e n e m p a ra b a r r e g ã s
d ev i a m d e q u e r e r a q u e l a s c o m q u e m c a s a ra m ! Q u e m l h as
p od e r ia d a r por m u l h eres l egíti mas e suas igua i s ? S e as d e ixa­
ram, u saram d e seu d i re ito. A q ua n to e l e d iz não da m o s p e s o !
E rg u e u - s e o Cam p ea d o r, afagan d o as barbas:
- L o u v a d o s e j a D e u s , q u e m a n d a C é u s e Te r r a ! Q u e
te n d e s v ó s , c o n d e , q u e d i zer d a m i n ha barba? S e é c o m p r i d a
é p o rq u e d e s d e q u e m e apo nto u a trate i com rega l e s . E s a b e i
q u e n u n ca j a m a i s m a a r r a n c o u fi l h o d e m u l h e r, m o u ro o u
c r i s tã o , c o m o e u a r ra n q u e i a v o s s a , c o n d e , n o caste l o d e
C a b r a ! Q u a n d o to m e i o caste l o, to m e i -v o s ta m b é m p e l a s
b a r ba s e arran q u e i - l h e s u m p u n hado. Essas q u e vos a rran q u e i
n ã o s e c o m param c o m as m i n h as . A s vossas trago-as aq u i n a
b olsa!

1 24
F e r n a n d o G o n ç á l vez l eva nta-se para d izer e m a l tas voz e s :
- B a s t a , C i d ! J á e s ta i s p a g o d e v o s s o s h ave r e s . N ã o
c r e s ç a e ntre n ó s o p l e ito! S o m o s d a l i n hagem dos c o n d e s d e
C a r r i ó n : d eve m o s casar com fi l h as d e re i s o u i m p e ra d o r e s .
F i l has d e i nfa n ç õ e s n ã o e ra m p a r a n ó s . Ao de ixá- las, u sá m o s
d e n os s o d i reito. E p o r i s s o va l e mos mais, q u e n ã o m e n o s !
O C i d R u i D ias o l h a a Pe ro Ve rm ú d oz:
- An da, Pero Mudo, varão q u e ta nto calas! Se são m i n h as
fi l h as, são tuas p r i mas c o - i rmãs. A mim fa l a m - m e , mas a ti p u ­
xam -te as o re l h a s . S e re s p o n d o ante s , n ã o toma rás as armas.
Va i e n tã o P e r o Ve r m ú d o z p a r a fa l a r, p o r é m a l f n g u a
e m b r u l h a - s e- l h e e n ã o ati na:
- C i d , c o s t u m a i s s e m p r e c h a m a r- m e P e r o M u d o n a s
c o r te s . B e m s a b e i s q u e isto é m a i s fo rte d o q u e e u . M a s n e m
p o r i s s o d e ixarei d e faze r o q u e d evo!
S ú b ito d i s para a fa l a r Pe ro Ve r m ú d oz e d e s d e q u e c o m e ç a
n u n c a m a i s acaba:
- Fe r n a n d o : e m q u anto d i s s este , m e n tiste ! Foi p e l o C a m ­
p e a d o r q u e v a l e ste m a i s ! E agora c o n tare i a q u i a s t uas m a ­
n ha s . L e m b ra-te d e q ua n d o l id á m o s c e rca da g ra n d e Va l ê n c ia
e tu p e d i ste a h o n ra d o s p r i m e i ros go l p e s ao l ea l Cam p e a d o r.
V i ste u m m o u ro e fo ste s o b re e l e , mas, a n tes q u e o m o u ro
s e c h ega s s e , fugiste ! S e a l i não esto u , ria-se d e t i ! M as e u ma­
te i - o e d e i -te em segredo o s e u cava l o. Até h oj e n u n ca o c o n ­
tara a n i n g u é m . E tu foste ga ba r-te a tod o s da faç a n h a . Tod o s
a c r e d i ta r a m , m as sa b e m ago ra a ve rdad e . Eras b o n i to, m as
m e d ro s o ! E o u sas fa l a r, l ín g u a s e m mãos ? N ega l á , s e p o d e s :
n ã o t e l e m b ra o c a s o d o l eã o ? S i m , q u e fi zeste tu q ua n d o o
l e ã o s e s o l t o u e n q ua nto n o p a ç o d e Va l ê n ci a o Cam p e a d o r

125
d o r m i a ? Es co n d e ste-te d e baixo d o s e u e s ca n o ! M a i s u m a vez
te e nvi l e c e ste . Nós cercámos o e s ca n o p a ra guardar a n o s s o
s e n h o r. O C i d , q u a nto acord o u , fo i mete r o l e ã o n a j a u l a .
M as , e n tre o s s e u s vassal os re u n i d o s , e m vão b u sc o u o s g e n ­
ros ! F e r n a n d o : d e safi o-te p o r m a u e tra i d o r. E aq u i s u ste n to,
a nte e l - re i Dom Afo n so, e m h o n ra das fi l ha s d o C i d , D o n a
E l v i ra e D o n a S o l : p e l as h ave rd e s d e ixado, val e i s m e n os . São
m u l h e re s , m a s , por todas as razõe s , val e m mais d o q u e v ó s .
Q ua n d o c o m bate r m o s , tu p ró p r i o d i rás , s e D e u s q u is e r, q u e
é s trai d o r, e e u h e i - d e s u ste n ta r a verdade d e q u anto d ig o !
D i ogo G o n çálvez fa l o u p o r s u a vez:
- S o m o s d a l i n h ag e m dos m a i s l i m p o s c o n d e s ! O x a l á
n u n ca n o s h o u v é s s e m o s a p a r e n ta d o c o m o C i d ! A i n d a n o s
n ã o a r re p e n d e m o s d e h av e r d e ixad o as s u a s fi l h a s . E n q u a n to
v i ve re m , h ã o - d e e l as s u s p i ra r p o r causa d o fe ito c o m q u e as
a s s i n a l á m o s ! I sto h e i -d e mante r ao l i da r c o m o mais v a l e n t e:
p e l as d e ixa r m o s h o n rá m o - n o s !
N e ste p a s s o , M a rti m A n to l í n e z l evanto u - s e :
- Cal a-te , a l e ivoso, boca s e m verdade ! Não d evias e s q u e ­
c e r o caso d o l e ão: l a n çaste -te p e l a p o rta, c o r re ste a o pátio
e fo ste -te e s co n d e r atrás d a v iga d o l aga r ! N u n c a mais p u ­
d e ste p ô r o m anto e o b r i a l q u e trazi as. E m c o m bate o h e i -d e
m a n te r : p e l as have r d e s d e i xa d o val e m m a i s d o q u e vós , p o r
todas a s razõe s , as fi l h as d o C i d ! E , n a h o ra d o c o m bate , p o r
t u a b o c a d i rás q u e és trai d o r e q u e m e nti ste e m tu d o o q u e
d i s s e ste !
l a a q u i a d i s p u ta q u a n d o e n t r o u A n s u o r G o n ç á l v e z .
Arrastava u m m a n to d e a r m i n h o e , c o m o acabara d e a l m oçar,
v i n h a r u b ro.

126
S e m d e c o ro, fa l o u :
- O h ! s e n h o r e s ! q u e m v i u n u n ca u m a c o i sa de stas ? ! Q u e
n o s e n o b r e c e m o s p e l o C i d ! Vá - s e e l e a B i v a r, a o r i o d e
O v i r n a, p i ca r m o i n h o s e c o b ra r as maq u ias, q u e i s s o l h e c o n ­
v é m ! Q u e m l h e d i r i a q u e h av i a d e a p a re n ta r- s e c o m o s
Carrion s ? . . .
M u n o G u st i oz l evanto u - s e e re s po n d e u - l h e :
- Cala, a l e ivoso, m a u e tra i d o r ! P r i m e i ro al m oças , d e p o i s
va i s r e za r, e a o s q u e d á s o ó s c u l o d e p a z , e n oj a s ! N e m a
a m igo n e m a s e n h o r d i z e i s verdad e , refa l sad o para to dos e
p a ra D e u s ! N ão h aj a e u parte d e tua a m izad e . H e i - d e faze r-te
d i z e r q u e és ta l c o m o d igo.
E l - r e i Dom Afo n s o fa l o u e n tã o :
- C e r re - s e a q u i a d i s p u t a . O s re p ta d o s h ã o - d e l i d a r,
as s i m D e u s m e salve !

Acabavam d e d i s p utar c o m o o uv i ste s , q ua n d o d o i s cava l e i ­


r o s e n tra ra m p e l a s c o rtes: a u m c h a m a m O j arra, ao o u tro
l n igo S i m e n o n es . O p r i m e i ro vem por m e n sage i ro do i nfa n te
d e N ava rra; o segu n d o, da parte d o i n fa n te d e Aragão. B e i j a m
as m ã os a e l - re i D o m Afo n s o.
E p e d e m a s f i l h a s d o C i d Ca m p e a d o r, c o m o l e g í t i m a s
e s p osas, p a ra rai n h as d e Aragão e N ava rra.
To d a a co rte , em s i l ê n c i o, e s c uta.
O Cid Ca m pe ad o r e stá d e pé:
- M e rc ê , re i Afo n so, que s o i s meu s e n h o r ! Ag ra d e ç o a
D e u s o p e d i r e m d e A r a g ã o e N av a r r a a s m i n h a s f i l h a s .
P r i m e i ro casaste - l as vós, q u e n ã o e u . E i s q u e à s vossas mãos
as torn o a c o n fiar ; sem vosso mando, não d e c i d o nada.

127
- C i d - to r n o u - l h e e l - re i -, av isado Cam p ead o r : rogo -
- v o s q u e a c e i t e i s , e e u o u t o r g á - l o - e i . Aj u s t e m - s e o s
c a s a m e n t o s h o j e a q u i . P o r e l e s c r e s c e r e i s e m fe u d o s e
h o n ras.
B e i j o u o Campeador as mãos a e l - r e i :
- S e n h o r, p o i s vos ap raz, e u o c o n c e d o .
- D e u s v o - l o p ag u e ! A v ó s , O j a r r a , e a v ó s , l n i g o
S i me n o n es , vos o u to rgo e m casa m e n to a s l i l h a s d o C i d , D o n a
E l v i ra e D o n a S o l , para m u l h e res d e b ê n ção d o s i n fantes d e
N avarra e d e Aragão.
B e i j a r a m as m ã o s a e l - re i o Oj arra, S i m e n o n e s e, d e p o i s , o
Cam p ea d o r.
Estão lavradas as p ro m e ssas, fe itos o s j u ra m e n to s : t u d o s e
h á- d e faze r ta l c o m o se d i ss e , o u m e l h o r.
Agrada i s to a m u itos d a corte . M a s j á vedes q ua nto c u sta
aos Carri o n s .

N este p o nto l eva n to u - s e Á l va ro F á n e z M i naya :


- Peço -vos m e rcê c o m o a s e n h o r e r e i , e não p e s e i sto
a o C i d C a m p e a d o r. A tod o s o u vi ca l a do : q u i s e ra ago ra d iz e r
d e m i n h a j u stiça.
- Fal a i , M i naya - to r n o u - l h e e l - re i . - O u v i r-vos - e m o s
c o m go sto.
- Rogo à s c o rte s me e s c u te m , p o i s dos m o ç o s Ca r r i o n s
te n h o ta m b é m g rave q u e ixa. E m n o m e d e e l - re i D o m Afo n s o
d e i - l h e s a s m i n h a s p r i m a s p o r m i n h a p r ó p r i a m ão, p a r a a s
to m a re m p o r m u l h e r e s . O C a m p e a d o r e n c h e u - os d e r i q u eza.
E , d e modo tão cru, e l e s d e ixara m - n a s . Po r maus e tra i d o res
os re pto ! O vo s s o sang u e , Carr i o n s , vem dos Va n i - G ó m e z,

128
d o s q u ais saíram c o n d e s d e p re ç o e val o r. M a s b e m s a b e m os
o q u e e l e h o j e val e ! Ag ra d e ç o ao C r i a d o r q u e h a j a m s i d o
p e d i das m i n h as p r imas para o s i nfa ntes d e Aragão e N ava rra.
Antes as h avíe i s por vos sas iguais; agora te rei d e b e i j a r- l h e s
as mãos e d e as trata r p o r s e n h o ras. Louvado seja D e u s ! E
ta m b é m o rei Afo n s o ! As s i m c resce e m h o n ra o Cam p ead o r.
Ta i s s o i s v ó s c o m o e u o d i g o : e , s e h o u v e r q u e m m e
d e s m i nta, sai ba q u e s o u Á lvaro Fánez para os m a i s val e n t e s !
G ó m e z Pe láez reto rq u i u - l h e , p o r é m s e m o d e s m e n ti r :
- Q u e val e , M i n aya, o vosso arrazoad o ? Cá n e sta corte
h á m u itos p a ra v ó s , e, s e h o uv e r q u e m o n e g u e , s e rá para
d a n o p ró p r io. S e Deus n os aj u da r e nos sairmos bem, v e re i s
d e p o i s s e é c e rto o q u e d i s s e ste s .
- Aca b e - s e a d i s p u ta - man d o u e l - re i . - S e j a o c o m bate
a m a n h ã, ao raia r do S o l : trê s co n tra três.
- R e i - d is s e ra m o s Car r i o n s -, aman hã não p o d e s e r ;
m a rc a i - n o s m a i o r p r azo. E n tr e gá m o s a r m a s e cava l o s a o
Cam p ea d o r, e te m o s d e n os i r a n os sas te rras.
E l - r e i vo l to u - s e para o C i d :
- S e j a e sta l i d e c o m o v ó s a ma n d a r d e s .
- S e n h o r, m a i s q u e ro to r n a r- m e a Va l ê n c i a q u e i r a
Carrión .
- B e m - to r n o u - l h e e l - r e i . - D a i - m e o s v o s s o s
c av a l e i r o s a r m a d o s ; e u o s l e v a r e i e d e l e s h e i - d e c u r a r.
R e s p o n d o p o r e s s e s , c o m o o d e vo a tão b o m vassal o. E aq u i
d e s i g n o o p razo d e três s e manas pa ra q u e e m m i n ha p r e s e n ça
l i d e m nas ve igas d e Carr i ó n . Q u e m não vi e r n o p razo, p e rca
o seu d i re i to: te n h a- s e por ve n c i d o e h aj a - s e p o r tra i d o r.
Os Car r i o n s d ã o - s e p o r e n te n d i d o s .

1 29
- D e ixo e m vossa mão aos m e u s três cava l e i ros - d i s s e
o C i d a D o m Afo n so, b e i j a n d o - l h e as mãos - e c o m o a re i e
s e n h o r vo- l o s e n co m e n d o . E i - l o s a p e rce b i d o s para c u m p r i r o
q u e d ev e m . E n v i a i - m o s h o n ra d o s a Va l ê n c i a , p o r a m o r d o
Criador!
- D e u s o q u e i ra ! - c on c l u i u e l - re i .
E ntão ti ra o C i d a s ua fi na coifa alva c o m o o S o l e d e ixa v e r
o s c a b e l os; d e sata o cordão e s o lta a for m osa barba. O s d a
c orte n ã o s e farta m d e o m i rar. Ad ia nta-se o Cam p eado r para
o s c o n d e s D o m H e n r i q u e e D o m Ra i m u n d o e a b raça-os d o
c oração, roga n d o - l h es to m e m d o s e u q u anto l h e s aprouver. O
m e s m o d iz a o utros q u e te m da s u a parte , e desses h á o s q u e
aceita m e h á o s q u e não. Perdoa a e l - re i o s d uze n tos marcos
das bodas. E e s co l h e do resto o que l h e convé m .
- M e rc ê vos p e ç o , re i , p o r a m o r d o C riad o r ! Ago ra q u e
e stas c o i sas s e a c h a m a r r u madas, b e i j o -vos a s mãos e , c o m
vossa l i c e n ça, s e n h o r, q u ero i r- me até Va l ê n c ia , a q u e e u ga­
n h e i c o m afã.
M a n d o u ta m b é m o C i d p r e s e n t e a r a o s m e n sage i r o s d e
Aragão e N ava rra, e d e s p e d i u - o s .
E e l - re i D o m Afo n s o cavalgo u , com o s m e l h o r e s s e n h o r e s
d a s u a c o rte , p a r a ac o m p a n h a r o C i d até fo ra d a c i d ad e .
Q u a n d o c h egaram a o Zocodover, d i s s e e l - re i a o Ca m p ea d o r,
q u e ia m o n ta d o e m Bav i e ca:
- D o m R o d rigo, gostava d e vos ve r correr n e s s e caval o
d e q u e tanto te n h o o u v i d o fal a r.
- S e n h o r - to r n o u - l h e o C i d , s o r r i n d o -, te n d e s e m
vossa co rte m u itos alvos varões q u e correm tão b e m c o m o e u .
- C i d , faze i - m e poré m o favor d e co rre r n e s s e cava l o.

1 30
O Cid p i ca d e e s poras e larga e m tal carre i ra q u e todos s e
m aravi l ha m de ve r correr as s i m .
- J u ro p o r Santo I s i d ro d e Leão - exc l a m o u e l - re i , b e n ­
ze n d o - s e - q u e e m todas a s n os sas te rras n ã o h á varão tão
bom!
O C i d b e i j o u as mãos a e l - re i :
- M a n daste s - m e c o r r e r n o Bavieca e j á v i stes q u e n e m
m o u ro s n e m c r i stão s têm o u tro igua l . E u vo- l o d o u de p re­
s e n te , s e n h o r, d ig n a i -vos ace itá - l o.
- Tal n ã o s e rá - d i s s e e l - re i . - Se vos e u p r ivasse d e l e ,
n ã o h ave r i a o cavalo tão fo rte cavalgad or. É b o m para varrer­
des m o u ro s d o ca m p o e os al cançardes. Não val ha o Criador
a q u e m vo- l o q u i s e r tirar, pois por vós e p e l o caval o gan h a­
m o s m a i s h o n ra.
À d e s p e d i da o Campead o r reco m e n d o u aos s e u s cava l e i ros:
- E i a , M a r t i m A n to l í n e z , P e r o Ve r m ú d oz e v ó s , m e u
i l u s t r e va s s a l o M u n o G u s t i o z : s e d e f i r m e s n a l i d e c o m o
varões. Lá e s p e ro e m Val ê n c ia as b oas n ovas.
- Para q u e o d izeis, se n h o r 1 - retru cou Martim
A n to l í n e z. - To m á m o s o e n c a rg o : h ave m o s d e c u m p r i - l o.
Pod e re i s o u v i r fal a r d e m ortos, não p o r é m d e ve n c i d o s !
A l eg ro u - s e d e i sto o u v i r o q u e n as c e u e m boa h o ra e d i s s e
ad e u s a todos o s s e u s a m igos. O C i d to r n a a Va l ê n c ia e e l - re i
vai p a ra Carri ó n .

C o r r e ra m a s t r ê s s e m a n a s d o p ra z o ; o s d o C i d e s t ã o
p ro n to s para c u m p r i r o e n ca rgo d o s e u s e n h o r. Protege -os
D o m Afo n s o , o de L e ã o . C h e g a ra m d o i s d i a s a n t e s d o s
C a r r i o n s . Estes a p r e s e n tam-se m u i to b e m p rov i d o s d e cava-

131
l os e a r m a s . Aco n s e l hara m - n o s s e u s pare nte s a q u e , s e
p u d e s s e m c o l h e r o s d o C i d , o s matass e m , para d e s o n ra d e
q u e m e l e s s e rvia m . M a s n e m c o m e ça r- s e p ô d e tal r u i m p r o ­
p ó s i to, p o r te m o r ao Afo n s o l e o n ê s .
Ve l a ra m as a r m a s os do C i d e rezaram. Passa a n oi te , ro m ­
p e m o s alvores, e já m u itos ricos- h o m e n s acorrem para v e r a
c e l e b ra d a l i d e . E l - re i D o m Afo n s o c u i d a e m q u e val h a o d i ­
r e ito, n ã o a i n j u s t i ç a . J á os d o b o m Cam p e a d o r v e s te m a s
a r ma s , e to d o s t r ê s s e c o n ce r ta m n o s e r v i ç o d o s e u b o m
s e n h o r. E m o u tro l u ga r s e estão a r m a n d o os Ca r r i o n s , aos
q u a i s o conde G a rc i a Ordónez dá c o n s e l h os . E ntretanto vão
ter c om e l - re i e req u e rem- l h e que não e n trem na lide a Co lada
e a Tizona, q u e e l e s s e arre p e n d iam d e have r e n tregado.
N ão o c o n c ed e u e l - re i :
- Q u a n d o f i z c o r t e s , n ã o m o r e q u e re s te s . Ag o r a , s e
te n d e s b oas es padas, s e r v i -vos d e l as , q u e ass i m fa rão o s d o
Ca m p ea d o r. E ia, m o ç o s Ca rr i on s ! e n trai n o c a m p o . É m i ste r
q u e l i d e i s à g u isa d e va r õ e s . O s d o Ca m p ea d o r l i darão as s i m .
S e v o s s a í rd e s b e m , h o n rar-vo s - e i s . S e fo rd e s ve n c id o s , n ã o
vos q u e i xe i s d e m i m , p o i s to d o s s a b e m q u e o b u scaste s v ó s .
J á o s Carri o n s m u ito se v ã o a r re p e n d e n d o d o q u e fize ra m .
E d e s e j a r i a m n ã o o have r fe i to p o r q ua n to havia e m Carr i ó n .
A r m a d o s os três d o C i d , fo i vê - l o s e l - re i D o m Afo n s o. E
d i ze m - l h e os d o Cam p ead o r :
- C o m o a r e i e s e n h o r vos p e d i m os para s e rd e s j u iz d o
ca m p o. Va l ha o d i re i to, a i n j u s ti ça não. Aq u i têm os Carri o n s
o s e u ba n d o , e n ã o s a b e m o s s e a r m a r ã o c i l a d a . A v o s s a s
m ã o s n o s c o n fi o u n o s s o s e n h o r. M a n t e n d e o d i r e i to, p o r
amor de Deus!

1 32
- D e a l m a e c o ração ! - torn o u - l h e s e l - re i.
Traze m - l h e s b o n s cava l o s c o r re d o r e s , e e l e s , d e p o i s d e
b e n ze re m a s s e l as , p re ste s cava l ga m . Levam a o p e s c o ç o o s
e s c u d o s c om b roca i s d e m e ta l ; e m p u n h a m a s h aste s das l a n ­
ç a s agudas, o n d e p e n d õe s fl utuam, e v ê m rodeados d e m u itos
h o m e n s - b o n s . C h e g a m a o c a m p o o n d e e s tã o o s s i n a i s , e
d e c i d i d o s tod o s trê s a b rava m e nte fe r i r. E i s ai d e o u tra parte
os C a r r i o n s , c o m m u i to b o a c o m p a n h i a de s u a p a r e n te l a .
D e s ig n o u - l h e s e l - re i os j u ízes d o cam po, a fi m d e d i zere m o
q u e é d e d i re i to e o q u e não é, para se n ã o b a ra l h a r e m o s i m
e o não.
Q ua n d o to d os se a c h a m a p o stos , fal a e l - r e i D o m Afo n s o :
- O u v i o q u e v o s d ig o , m o ç o s C a r r i o n s : e m To l e d o
p u d e ra h av e r- s e fe ito a l i d e , mas v ós o n ã o q u i s e s te s . A o s
três cava l e i ro s d o C i d Ca m p ea d o r tro u xe e u g u a rdados até
C a r r i o n . P u g n a i ago ra p o r vosso d i re ito e não d e s e j e i s i n j u s ­
t i ç a , q u e a q u e m d e s e j a r i n j u stiça e u l h o sabe re i v e d a r, e n ã o
h á- d e a c h a r paz e m todo o m e u r e i n o .
C a d a v e z o s Carr i o n s estão mais a r re p e n d i d o s !

O s j u íze s d e e l - re i a s s i n a l a m as extremas e j u n tos s a e m d o


cam p o, d e p o i s d e h ave re m d ito a to d o s s e i s q u e s e d ê p o r
v e n c i d o q u e m ta i s extre m as p a s s a r. R o d e i a m o c a m p o a s
g e n te s , à d i stân c i a d e s e i s h a stes d e l a n ç a d e s d e a extr e m a .
S o rtead o o cam p o, parti d o o s o l , saem os j u ízes, c a r a a cara,
até m e i o cam p o. Arre m etem de a q u i o s d o Ca m p ea d o r e de
a c o l á o s Carr i o n s . C o b re m - s e com o s e s c u d o s , a ba ixam as
l a n ç a s , a c i catam os cava l o s , i n c l i n a m - s e n o s a r ç õ e s , e t a l
e str u p i d o faz tre m e r a terra!

133
Ava n ç a c a d a u m p a ra o s e u c o n t rá r i o ; e i s s e j u n ta m o s
s e i s , t r ê s c o ntra trê s , e j á s e c u i da v ê - l o s ca i r m o rtos. P e r o
Ve r m ú d oz, o q u e r e p t o u p r i m e i ro, e nfre nta- se c o m Fe r n a n d o
G o n ç á l vez e a m b o s s e g o l p e ia m o s e s c u d o s . O d e Ve r m ú doz
é atrave ssado, mas o go l p e fe r i u o vazi o, a l a n ça parti u - s e e o
cava l e i ro fi cou fi r m e . E n tão D o m Pero e n s o p a- l h e a l a n ç a n o s
p e i to s , c e rca d o c o r a ç ã o . O Ca r r i ó n te m t r ê s d o b ras d e
l o r iga, e i s s o l h e va l e : d u as ro m p e ra m - s e , a t e rc e i ra a i n da
re s i ste , mas não tanto q u e a camisa, o aco l c h oa d o e a gua r n i ­
ç ã o l h e n ã o e ntre m na carn e , n a l a rgu ra d e u ma mão, e q u e o
g o l pe n ã o faç a b o l s a r sangue p e l a b o ca ao q u e o rece b e u e
fi c o u d e r r u ba d o n o cava l o asse nte s o b re as an cas. D e ixan d o
e m b e b i d a a l a n ç a , P e r o Ve r m ú d o z m e t e m ã o à e s p a d a .
Ve n d o-a re l a m p ej a r, o C a r r i ó n reco n h e c e -a: - é a T i zo n a ! E,
sem e s p e ra r o go l p e , d iz:
- Esto u ve n c i d o !
C o m o o s j u ízes i sto o u to rgam , P e ro Ve r m ú d oz d e ixa-o.

D o m Martim e D iogo G o n çál vez a r re m e te m e com o f u r o r


q u e b ra m a s l a n ças . M a s A n to l í n e z d e se m b ai n h a a e s pada, e
tão l ím p i d a e c l ara e l a b r i l ha q u e o c a m p o todo i l u m i na- s e !
D e u m tal h o d e travé s arra n ca o e l m o ao Ca r r i ó n : c o rta- l h e
a s c o rreias, fe n d e - l h e ca p u z e coifa, rapa - l h e o s cabe l o s e e m ­
b e b e - l h e o a ç o n o casco. Depois que a p re c i osa C o l ada
d e s p e d i u tal b e l o go l p e , v i u D i ogo d e Car r i ó n q u e l h e n ã o
e s caparia c o m vid a . A i n d a e n d i re i ta o caval o ao i n i m igo, mas
já não e m p r ega a e s p a d a q u e e m p u n h a . R e c e b e - o M a r t i m
A n to l í n e z n a p o n ta res p l e n d e n te da C o l ada, e p õ e - s e D i og o
aos b e rros d e s c o m p o sto s:

1 34
- Va l h a - m e D e u s , q u e e s tá n o C é u ! L i v ra- m e , S e n h o r,
d e sta e s p ad a !
F u g i n d o d a te m e rosa l â m i na, p a s s a as extremas d o c a m p o ,
o n d e D o m M a r t i m fic o u .
N e ste p o nto d i sse e l - re i ao l e a l b u rgal ê s :
- Vi n d e cá p a r a o p é d e m i m , q u e j á ve n c i d o h ave i s .
E, p o i s e sta é a verdade , os j u ízes ass i m o o u to rga m .

D o i s j á e s tã o v e n c i d o s . A g o r a v o s d i r e i c o m o M u n o
G u stioz c o m b ate u c o m D o m A n s u o r.
C o m e ça r a m o s l i d a d o r e s p o r go l p e a r o s e s c u d os . E ste
A n s u or d e Ca r r i ó n e ra possa n te e b ravo : rom p e u c o m u m a
l a n çada a a r m a d u ra d e G u stioz, m a s o fe rro n ã o m o rd e u a
c a r n e . I n veste p o r s u a vez M u n o G u sti oz: fu ra o c e n tro d o
e s c u d o d o i n i m igo, mete - l h e a l a n ça c o m o p e n dão p e l o c o r p o
d e n tro, atrave ssando-o u m a b raça; sacod e - o n a s e l a p e l a h aste
da l a n ç a cravada e de ita-o por te rra ao sacar esta , q u e ve m
t i n ta d e sangu e , c o m o sangre n tos v ê m h aste e p e n dão.
Tod o s d e ra m A n s u o r p o r m o rto.
M u n o G u st i o z a p o nta- l h e a i n da a l a n ç a e v a i s o b re e l e .
M as G o n ça l vo A n s u órez bradou - l h e :
- Basta, p o r D e u s ! Está o cam p o v e n c i d o. Aca b o u - s e !
O s j u ízes o co n fi rm a m :
- J á ouvimos.

M a n d o u d e s p e j a r o c a m p o o b o m r e i D o m Afo n s o , e
to m o u p a ra s i as armas e s p a l h adas. Parte m c h e i os d e h o n ra
o s d o g rã o C a m p e a d o r : g raças a D e u s , ve n c e ra m . G ra n d es
p e s a r e s vão p o r te rras d e Carr i ó n ! O rd e n o u e l - re i aos d o

1 35
Cid q u e s a ís s e m d e n o i te , para não h ave r te m o r d e assa lto.
E l e s , c o m o avi sa d o s , cam i n h a m d e n o ite e d e d i a. E i - l os e m
Va l ê n cia , c o m o C i d Ca m pead o r.
M a l parad os d e ixaram os Car r i o n s : c u m p r i ram b e m o q u e
s e u s e n h o r l h e s m a n d o u . Q u e c o n te n te fi c o u o C i d ! E o s
Ca r r i o n s ficaram i nfa m a d o s .
A q u e m e s c a r n e ce r d e boa s e n h ora e d e p o i s a d e i xa r, ta l
ve n h a a s u c e d e r, o u a i n d a p i o r.

D e ix e m o s o s Carri o n s , aos q u a i s o castigo tan to a ma rga.


Fa l e m o s , s i m , d o q u e nasce u em b oa h o ra . G ra n d es a l egrias
v ã o p o r Va l ê n c ia , a M a i o r, por tão h o n ra d o s to r n a r e m os
cava l e iros d o bom C i d .
R u i D i as afaga a s barbas, e exclama:
- Louvado seja D e u s : as m i n h as fi l h as e stão vi ngada s ! E
ago r a estão q u ite s d e s u a s h e rdades de Ca r r i ó n . . . Casá- l a s - e i
s e m ve rgo n ha d e n i n g u é m , d oa a q u e m d o e r !
O s d e N av a r ra e A ragão f i z e r a m s e u s aj u st e s , tive r a m
c o n s e l h o c o m e l - re i D o m Afo n so, e casa ra m c o m D o n a E l v i ra
e D o n a S o l . S e as p r i m e i ras b o d a s f o r a m l u z i d a s , e s tas o
fo r am m u i to m a i s .
Ve d e , p o i s , c o m o c r e s c e e m h o n ra o q u e e m b oa h o ra
n as c e u , q u e já s u a s fi l h a s s ã o s e n h o r a s de N av a r r a e d e
A ragão. H oj e o s r e i s d e Es p a n h a são s e u s pare nte s , e todos
mais h o n ra a l ca n ç a m pelo que n a s c e u e m boa h o ra. O C i d ,
s e n h o r d e Va l ê n c i a , p a s s o u d e sta a m e l h o r n a P á s c o a d o
E s p í r i t o S a n to . C r i s t o l h e h a j a p e r d o a d o . E a s s i m s e j a
c o n n o s c o, j u s t o s e p e ca d o re s ! E s t e s s ã o o s fe i t o s d o C i d
C a m p e a d or, e aq u i s e aca ba o poe ma.

1 36
O p e rga m i n h o man u s c r ito d o Cantar d e M i o C id exis­
te n te n a Bi b l i ote ca Nacional de E s pa n h a é d e d ifíc i l a c e s s o e
s o fr e u d a n o s c o m o trata m e n to d e c o n s e rva ç ã o q u í m i ca a
q u e fo i s u b m et i d o. ( E m 1 982, a Câmara d e B u rgos p u b l i c o u
u m a e d ição fac - s i m i l ada.)
No e n tanto, a ve rsão cláss i ca, que os e stu d i osos co n s i d e ­
r a m não te r a i n da s i d o s u p e rada e m d iversos a s p e ctos, data d o
i n íc i o d o s é c u l o, s e n d o d e R a m ó n M e n é n d ez P i d a l , autor d o
p r ó l ogo à ve rsão d e Afo n s o L o p e s V i e i ra ( C a n ta r de M i o
C id . Texto, gramática e vocab u l ário - M a d r i d , Es pasa- Ca l p e ,
1 9 7 7 3 vol s . ) . N o Círc u l o d e Le itores, e s o b a d i recção d e B .
M o rros e p r ó l ogo d o h i storiador F rancisco R i co, sa i u e m 1 9 8 8
u ma o u tra e d i ção, q u e i n tegra as versões m o d e rnas q u e s o b re
c a d a C a n ta r fi z e r a m Cam i l o J o s é C e l a , A. R e y e s e Pe d r o
S a l i n a s . U m a e d i çã o a b rev iada fo i ta m b é m l a n ç ada e m 1 9 1 1
( M ad r i d , Espasa-Cal p e , 1 98 1 ) .

Ve r s õ e s m e n o s e r u d i ta s s ã o a s e d i ç õ e s d e C . S m i t h
( M a d r i d , Cáte d ra, 1 9 8 7 ) q u e estu d a o con texto h i stó r i c o e o
e sti l o da o b ra, e a d e 1 . M i c hae l ( M a d ri d , Castal ia, 1 9 8 8 ) q u e
a n a l i s a o s s e u s p ro b l emas textu a i s e ge ográfi c o s .

139
I g u a l m e n t e d i g n a s d e reg i s to s ã o a s e d i ç õ e s d e M . E .
Laca rra ( M a d r i d , Ta u r u s , 1 9 8 2 ) , J . H o r re n t ( G a n te , 1 9 8 2 , 2
v o l s . ) e a d e Pe d ro M . Cáte d ra ( Barce l o n a , P l a n eta, 1 9 8 5 ) .
O utras e d i çõ e s são a s d e E . R u l l ( M a d r i d , S G EL, 1 98 2) , J . J . d e
B u sto s ( M a d r i d , A l i a n za , 1 9 8 3 ) , E . E n r i q u e s C a r ras c o
( Ba rce l o na, P l aza y J a n é s , 1 9 84) e F. Marcos M a r í n ( M ad r i d ,
Al h a m b ra, 1 9 84) .
N o q u e s e refe r e às a n á l i s e s d o C a n ta r , c o n ti n u a a s e r
u m a o b ra d e refe rê n c ia E n t o r n o a i " Po e m a d e i C i d " d e
R a m ó n M e n é n d ez Pidal ( Barc e l o na, E d h asa, 1 9 8 3 ) .
I n te r e s s a n t e s s ã o ta m b é m E I A r t e j u g l a r e s c o e n e l
" C a n t a r d e M i o C i d " , d e E . d e C h asca ( M ad r i d , G re d o s ,
1 9 7 2) e H i st ó r i a y Po e s i a e n t o r n o a i " C a n t a r d e i C i d " ,
d e J . H o rre nt ( Barce l o na, A ri e l , 1 97 3 ) .
O s e s t u d o s m a i s r e c e ntes a p rofu n d a m , à l u z d a s n ovas
t e o r i a s , a a n á l i s e d a o b ra. É esse o caso do l iv ro de M. E.
Lacarra, E I " Po e m a d e M i o C i d " : R e a l i d ad h i st ó r i ca e
i d e o l o g ía ( M ad ri d , Po rrúa, Tu ra nzas, 1 9 8 0 ) e d e J . J . D ugga n ,
T h e " C a n t a r d e M i o C i d " : Po e t i c C r e a t i o n in its
E c o n o m i c a n d S o c i a l C o n t exts (Cam b r i dge U n ive rs ity).
N u m s e ntid o mais c l á s s i c o te m os as recentes o b ra s d e M .
d e Espalza e S . G u e l l os , L e C i d , p e r s o n n ag e h i s t o r i q u e et
l i t t é r a i r e ( P a r i s , M a i s s o n e u ve e t L e r o s e , 1 9 8 3 ) e d e B .

Powe l l , E p i c a n d C h ro n i c l e : T h e " Po e m a d e M i o C i d "


a n d t h e " C r ó n i c a d e Ve i n t e R e y e s " ( L o n d r e s , T h e

M od e r n H u m a n iti es Research Assoc i ati o n , 1 9 8 3 ) .


" M i o C i d " S t u d i e s (A. D eye r m o n d , Lo n d res, 1 9 7 7) é u m

l i v r o q u e r e c o l h e t r a b a l h o s d e i m p o rta n t e s e s p e c i a l i s ta s .
E n tre o s artigos " p oste r iores" m a i s i m p ortantes d e staca m - s e

1 40
o s d e A. M o n ta n e r, F ra n c i s co R i c o, T. M o n tg o m e r y e M .
M o l h o.
O m a i s controve rso l ivro s u rgido nos ú l ti m o s an os é d e C .
S m ith ( L a C re ac i ó n d e i " Po e m a d e M i o C i d " , Barc e l o n a,
C r ítica, 1 9 8 5 ) ao afi rmar q u e o C a ntar fo i escrito e m 1 20 7 e
q u e o s e u autor fo i Pe r Abad, u m j u r i sta natural d e Bu rg o s .
N o e n ta n to, a m a i o r i a d os e s tu d i o s o s c o n ti n u a a coi n c i d i r,
c o m M e n é n dez P i d a l , e m datar a o b ra d e 1 1 40 .
U ma ú l ti m a o b ra d e i n trod ução úti l é E I " C a n t a r d e M i o
C i d " y l a é p i c a m e d i ev a l e s p a n o l a ( Barce l o n a, S i r m i o,

1 9 8 7) d e A. Deye r m o n d .

( E l e m e n tos extraíd os d e "Actu a l i dad b i b l iog ráfi ca d e


Cantar d e i C i d " . d e Rafa e l Ramos)

141
._cTndice

7 {/)u/icató,.ia

9 _<7'_ró kf9o

21 éJ Me,\·tnv•o tio 6í'd

57 .CXJru/m; tÍttA' Çh"f/uM tio 6í't!

95 ,/{ ,,ffr<N1fa t!e 6(ufuw

137
.CXJ;6/iq9rctfta

Você também pode gostar