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II ENCONTRO LITERATOS ÁGAPE

MACHADO DE ASSIS1 – Adão & Eva

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,

não falaria em Deus nem no Pecado

muito menos no Anjo Rebelado

e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:

nada das suas celestiais promessas

ou das suas terríveis maldições...

Se eu fosse um padre eu citaria os poetas.

Rezaria seus versos, os mais belos,

Desses que desde a infância me embalaram

E quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma

... e um belo poema – ainda que de Deus se aparte – um belo poema sempre leva a Deus!

MARIO QUINTANA

A panelinha, almoço de escritores e


artistas no Hotel Rio Branco, dos
“festivos ágapes”, criado por M.A. em
1901. De pé: Rodolfo Amoedo, Arthur
Azevedo, Ingles de Sousa, Olavo Bilac,
José Veríssimo, João Carneiro de
Sousa Bandeira, Filinto de Almeida,
Guimarães Passos, Valentim
Magalhães, Rodolfo Bernardelli,
Rodrigo Octavio, Afrânio Peixoto.
Sentados: João Ribeiro, Machado de
Assis, Lúcio de Mendonça e Silva
Ramos.

1
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu e morreu no Rio de Janeiro, antiga capital da República (21 de
junho 1839 – 29 de setembro 1908).
O escritor fluminense Machado de Assis, ao lado de Eça de Queiroz, por muitos é considerado
como o melhor escritor de língua portuguesa do século XIX. Iniciou sua trajetória como contista2,
em 1858 (“Três tesouros perdidos”), avançando sua produção literária como poeta (“Crisálidas”
e “Falenas”), publicadas em 1864 e 1870, respectivamente. Representou-se também como
dramaturgo, produzindo peças teatrais na antiga capital da República, Rio de Janeiro, e também
como autor de romances, crônicas, críticas literárias, entre outras modalidades de produção
cultural relacionadas às letras e oratória.

Considerado como pertencente a última geração da escola do romantismo no Brasil, foi o


responsável por inaugurar uma outra escola literária brasileira: o realismo, sendo este
caracterizado, sobretudo, por aspectos como a “crítica social”, dotada de maior ousadia em
relação a composição de temas como escravidão, burguesia, transição política, casamento,
“desteificação do mundo”3, por exemplo.

Entretanto, o bruxo do Cosme Velho (apelido dado por alguns moradores do bairro onde residia
o autor nos últimos anos), fugia a algumas das características desse gênero literário (Realismo),
evitando o determinismo e o cientificismo, por exemplo; inclusive tecendo críticas a estes
fenômenos sociais latentes e em voga naquela época, também denominada de “mundo
tardomoderno” (CONCEIÇÃO, 2013, p. 29).

Construindo seus personagens ao redor de dilemas universais, complexidades locais e


fenômenos históricos e de rupturas na ordem estabelecida (stablishment), buscou envolver e
aguçar o leitor a ampliar sua visão ética, estética e psicológica, possibilitando-lhes o “alcance
caleidoscópico das realidades múltiplas”4.

Principalmente nas obras de sua fase ligadas ao período do realismo, podemos encontrar
elementos que remetem a construção literária caracterizada por metáforas, sendo que a
intencionalidade dos efeitos se voltavam mais para aspectos fenomenológicos do que para a
construção de realidades últimas das circunstâncias abordadas.

Neste sentido, visando facilitar a compreensão desta característica em suas obras, incluindo-se
o conto “Adão & Eva”, sinalizamos o conceito de “metáfora viva” (grifo nosso) elaborada pelo
filósofo francês Paul Ricoeur 5. Observamos no enredo deste conto um Machado de Assis
preocupado com a criatividade da linguagem e seu alcance para uma realidade fenomenológica,
ou seja, uma realidade mais relacionada à experiência e a uma noção de percepção criativa e
espontânea das vivências do que para uma realidade conceitual e ideológica, estabelecedora de
dogmas e fins dotados de juízos de valor.

2
Seu primeiro texto data de 6 de janeiro de 1855 (cf. ANTUNES & MOTTA, 2008, p. 33)
3
Alusão ao conceito nietzschiano da “morte de Deus”, abandono dos valores sagrados, e também de um
certo antagonismo à alienação religiosa promovida pelo cristianismo institucional, vigentes na época.
4
A intensão daquele que vos escreve, no tocante à terminologia em questão, é salientar uma das
preocupações possíveis do autor, quanto às características da época em que viveu, como por exemplo,
um cientificismo pragmático e determinismos sociais herdados da era moderna, que outrora promoveria
catástrofes inéditas como as Grandes Guerras Mundiais e outras tragédias não menos sangrentas,
oriundas de fundamentalismos e ideologias precursoras de exclusivismos notavelmente destruidores e
genocidas.
5
Filósofo francês (1913-2005) que contribuiu para a linguística, psicanálise, fenomenologia e
hermenêutica, e interessou-se por questões envolvendo o existencialismo cristão e teologia protestante
(influenciado pelo suíço Karl Barth). Além de órfão de mãe e de pai (este morreu em conflito bélico em
1915), foi prisioneiro pelos nazistas na Segunda Guerra, passando por dois campos de concentração.
Neste ponto, quando refletimos sobre a metáfora viva, a literatura passa a equivaler-se de novas
funcionalidades, como as ressignificações adaptáveis às múltiplas percepções dos leitores,
quando imergidos na complexidade figurativa dos personagens machadianos. Assim, a “obra
literária passa a ter um mundo autônomo” (CONCEIÇÃO, 2013, p. 22), uma vida própria que
rompe uma antiguidade de compreensão aristotélica pautada nos processos “miméticos” (grifo
nosso), ou seja, em experiências comparadas com outras vividas ou imaginadas.

E aqui podemos observar a conjunção deste conceito, a saber: a metáfora viva, dentro do
contexto do conto “Adão & Eva”, que traz novas significações mesmo dentro do próprio enredo,
tendo em vista que o autor leva-nos a repensar o sentido essencial do texto, desconstruindo a
nossa direção, que tende se voltar para a discussão envolvendo a dogmática cristã; pelo
contrário, aqui apresenta a beleza textual criativa ao nos fazer observar, mesmo que
subliminarmente, um contexto bem distinto: a expectativa por saborear “o doce”, em
detrimento aos apelos retóricos narrados ao longo do conto. Saborear o doce, para o autor,
recebe nitidamente ares de um protagonismo, mesmo contendo poucas linhas no texto. O doce
é “per se”, e se transforma distintamente ontológico, que existe, independentemente de
conjecturas humanamente frágeis, formulações irresponsavelmente solidificadas pela natureza
de uma historicidade débil nas reinterpretações sofridas.

Inferimos, portanto, que

há uma subordinação do aspecto semântico do símbolo em relação à


metáfora. Porém, só o símbolo é capaz de possuir uma região não-verbal. Se
esta subordinação é de fato possível, cabe-nos dizer que há uma cúmplice
relação entre metáforas e símbolos. Sendo as metáforas a superfície
linguística dos símbolos e ainda uma inovação discursiva [...] poderemos
também dizer que a elucidação de um novo sentido de um texto literário
operado pela atuação metafórica pode promover um processo de
equivalência entre o sentido manifesto e as profundidades simbólicas de
nossa existência (grifo nosso). (RICOEUR, 2000, p. 80 apud CONCEIÇÃO, 2013,
p. 23-24)

Ainda, poderíamos sinalizar essa questão, a saber: sobre a linguística dos símbolos, apontando
para realidades “encobertas” (grifo nosso), mas que podem se tornar acessíveis mediante uma
dimensão não-verbal, supostamente manifestada pela metáfora, diante da compreensão por
Paul Tillich6, que expõe sua análise, pautando-se que o símbolo é devedor a “noção de história
[...] emergem e desaparecem de acordo com épocas” (ibid, p. 25). Compete-nos saber que a
época em que foi publicado o conto “Adão & Eva” contextualizava com uma ambientação
influenciada pelo ceticismo oriundo de um racionalismo filosófico, bem como teorias ligadas a
um darwinismo social, até mesmo por parte de ícones do pensamento científico brasileiro, como
o caso das interpretações euclideanas7 acerca de fenômenos de messianismos, revoltas e
insatisfações provocadas por rupturas como o advento da República, entre outros.

6
7
Na obra “Os Sertões”, Euclides da Cunha tece uma análise sobre o movimento organizado por Antônio
Conselheiro, considerando-o como patologia social, ou seja, seguindo em linhas parecidas com os de
Raimundo Nina Rodrigues, um médico que fundamentava suas pesquisas sobre a violência e o banditismo
social em vistas da análise de crânios dos representantes populares dos movimentos sociais.
As confluências do nosso contista às percepções paralelas de Paul Ricoeur e Paul Tillich leva-nos
compreender, mesmo que parcialmente, a complexidade de sua narrativa, quando apresenta
uma temática polêmica e, ao invés de sugerir alguma projeção conclusiva acerca das ideias
alocadas, leva-nos a um desfecho distinto daquele aguardado pela maioria dos leitores, ao longo
do conteúdo abrangente no conto.

Deste modo,

torna-se “possível compreender que a suspensão de uma referência de


primeiro nível, que é estabelecida por uma obra literária implica o
estabelecimento de uma referência de segundo nível como pressuposto de
criação de um mundo autônomo, denominado mundo do texto. Neste
mundo, entretanto, é possível perceber as operações imaginativas que a
literatura efetua sobre o real (CONCEIÇÃO, 2013, p. 27)

Portanto, se considerarmos os elementos temporais e espaciais os quais o nosso autor estava


inserido (relevância histórica), bem como suas influências literárias (Dante, Voltaire,
Shakespeare, Victor Hugo, Edgar Allan Poe, entre outros), resta-nos enfatizar nitidamente a
impossibilidade de se colher, através da leitura de suas obras, vereditos conclusivos ou
percepções definitivas que venham alçar uma ideia de verdade última das coisas. Sabe-se que,
para Machado de Assis, as “tentativas repetidas de acesso ao mundo verdadeiro são tentativas
fracassadas. Quando se chega ao ápice de tal odisseia – a cisão entre mundo verdadeiro e
mundo aparente – se inicia um processo que culmina na ruína Daquele que concentrava em si
todo conteúdo ontológico e divino do mundo em si: Deus” (CASANOVA, 2003, p. 194 apud
CONCEIÇÃO, 2013, p. 31).

Cabe ainda ressaltar que para Paul Ricoeur, na sua obra “A metáfora viva”, o mito de Adão
representa a universalidade do mal, e Adão representa, deste modo, a humanidade toda. Neste
sentido, observamos semelhanças com a percepção de Tillich, visto que

o próprio movimento expressionista foi muito caro a Paul Tillich não porque
se configurava com uma degenerada (grifo do autor) expressão artística, mas
porque era portador de elementos que, através da desfiguração da superfície
do real, representavam a restauração do poder do simbólico e a busca pelo
fundamento da realidade, num momento específico e historicamente
construído. Seria a religião, por meio das expressões criativas do ser humano,
o estado em que o ser humano passaria ser tomado por algo incondicional,
sagrado e absoluto, em suma, sua preocupação última. A religião, se vista
pelas lentes tillichianas, deixaria de ser um lugar de enraizamento de sistemas
simbólicos rígidos ou de ritos para se tornar o espaço mesmo de nossa
preocupação suprema. (CONCEIÇÃO, 2013, p. 76)

Contudo nossa reflexão não se paute numa ordem puramente teológica agnóstica ou alguma
religiosidade entrelaçada com aspectos ateístas, podemos sugerir que o bruxo do Cosme Velho
buscou vingar-se do deus forjado pelo consciente coletivo, vingança arquitetada através de um
doce, salpicado em doses homeopáticas na teologia cristã, e recheado de uma “preocupação
suprema” e, por que não, sublime. Pois que, mesmo diante de um deus morto, “não o priva nem
do seu poder nem da sua autoridade infinita, nem mesmo da sua infalibilidade: morto, ele é
ainda mais terrível, mais invulnerável, num combate onde não existe mais a possibilidade de
vencê-lo” (BLANCHOT, 1997, p. 15-16 apud CONCEIÇÃO, 2013, p. 90). Por mais contundente e
exposto (expressionismo) que se apresenta uma possibilidade de vingança ao deus conceitual,
na criatividade artística nem a morte se torna realidade, mas a vida, com sua bela complexidade.

A exemplo da personagem machadiana, o juiz de fora, também trocaríamos o divino por um


prato de doce, propiciando, literalmente, uma “doce vingança”, ou nos dobraríamos ao encanto,
como o bruxo do Cosme Velho, de extrairmos do texto bíblico o néctar: a beleza trágica?

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Benedito & MOTTA, Sérgio Vicente. Machado de Assis e a crítica internacional. São
Paulo: UNESP, 2009.

BLANCHOT. Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

CASANOVA, Marco Antonio. O instante extraordinário: vida, história e valor na obra de


Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

CONCEIÇÃO, Douglas Rodrigues da. Teologias e literaturas 3 – Aspectos religiosos em Machado


de Assis. São Paulo: Fonte Editorial, 2013.

MACHADO DE ASSIS, José Maria. Várias estórias. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

MAGALHÃES, Antonio. Narrativa e hermenêutica teológica: pressupostos da teologia narrativa.


Caminhando. São Bernardo do Campo, n. 9, p. 7-40.

RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Loyola, 2000.

TILLICH, Paul. Teologia de la cultura y otros ensayos. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974.

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