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“E DO VENTRE LEVADO À SEPULTURA”:


JOB E AS VARIAÇÕES EM TORNO DO TEMA
DA MISÉRIA HUMANA NA POESIA MANEIRISTA

Paulo Silva Pereira


Universidade de Coimbra
psilvapereira@sapo.pt

Abstract
The starting point of this paper will be a series of texts by Camões and some of his fellow contemporary
writers, which more or less visibly reflect a systematic trend of appropriation and recreation of words,
expressions or idioms taken from the Book of Job, one of the Old Testament’s ‘wise’ writings. The aim
of this paper is to assess the extent to which the theme of human misery is dealt with in the Portuguese
mannerist poetics and poetry.
Ever since Adam’s foundational sin, time spent between cradle and grave is envisaged as a path of
suffering, leading either to restlessness or anguish, either stimulating the search for a meaning which
goes further than the most immediate time limits but which, under historic circumstances, like the ones
corresponding to a great part of the second half of the 16th century and the first decades of the 17th in
Portugal, led to the paroxysm of that particular way of feeling and thinking.
Texts only known by some, and only studied by a few, like the cycle “Lições de Job”, whose authorship
is attributed to […] in the 1791 collection or some of Manuel Soares de Albergaria’s sonnets, help us
understand the profound drama involving the reflection on the human condition and to consider,
likewise, the legitimacy of establishing, in what concerns literary historiography, a “mannerist” period.
Links with other artistic fields will also be included in this paper, whenever this dialogue proves relevant.
Keywords : Livro de Job, Luís de Camões, Manierism, Pedro da Costa Perestrelo

1. Ao propor-se definir o que é um clássico, num célebre ensaio que integra o volume
Outras Inquirições, Jorge Luis Borges sublinha que na raiz da noção se encontra a ideia
de permanente disponibilidade para a releitura e a reapropriação sob distintas formas,
assim como um certo sentido numinoso, pois “clássico é aquele livro que uma nação
ou um grupo de nações ou o longo tempo decidiram ler como se nas suas páginas tudo
fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e capaz de interpretações sem fim”
(1998: 147). Nessa medida, pertenceriam à ordem do clássico “livros como o Livro de
Job, A Divina Comédia, Macbeth […]” que “prometem uma longa imortalidade”, ainda
que não seja possível antever o modo como há de tomar forma essa irredutível persis-
tência, pois em boa verdade “nada sabemos do futuro, salvo que diferirá do presente”.
Que é longa a linhagem de comentários exegéticos, textos literários e filosóficos ou, se
quisermos, de manifestações culturais latu senso que tomaram por base, de um modo
ou de outro, um dos mais belos e controversos escritos bíblicos como é o Livro de Job,
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não resta qualquer dúvida. Em si mesmo, o Livro assume a condição de obra polifónica,
pela confluência de diversas camadas e tradições, e muitos foram, até ao momento, os
que destacaram a sua qualidade ‘literária’. Alguns até, como é o caso do ensaísta e histo-
riador Thomas Carlyle, reconhecem-lhe um lugar proeminente no cânone da literatura
mundial: “There is nothing written, in the Bible or out of it, of equal literary merit.”
(apud Gordis, 1963, p. 3)
Ler a poesia maneirista de Camões e dos seus contemporâneos apenas à luz do
Livro de Job pode parecer um exercício um tanto forçado, mas uma vez que nele se
aborda a questão teológica do sofrimento inocente e da ação de Deus no mundo acre-
ditamos que possa trazer alguma luz sobre a configuração de uma forma mentis que se
tornou dominante a partir da segunda metade de Quinhentos. Por outro lado, a abun-
dância das citações e alusões a textos bíblicos e a naturalidade com que aflora na pena
de autores portugueses deste período histórico-cultural, independentemente da profun-
didade e adequação das leituras feitas, é bem a prova de que havia a tendência (ou a
necessidade antropológica) de confrontar a experiência espiritual com esse horizonte de
tradição fortemente reverenciado e não só em contexto litúrgico ou no âmbito das prá-
ticas devotas.
Sucessivas gerações de estudiosos têm posto em evidência o vincado contraste na
figuração do objeto humano nos três livros sapienciais canónicos. Se é verdade que em
Provérbios se demonstra a certeza absoluta de que os bons recebem as bênçãos divinas e
os maus são castigados, deixando assim implícito que o problema do sofrimento ime-
recido nem sequer se põe, e se Eclesiastes também não traz uma resposta clara a essa
matéria, pois a única certeza deste mundo é a de que os processos naturais continuarão
imutáveis eternamente, sendo indiferente para o caso o nosso grau de justiça ou mal-
dade, o Livro de Job traz para primeiro plano a questão do justo que sofre sem causa apa-
rente. Seguindo o itinerário existencial deste protagonista bíblico, o leitor acompanha
de perto a discussão sobre as várias possibilidades teológicas de explicar o sofrimento
e de perceber a ação de Deus, bem como de reconhecer o alcance da transformação de
quem, através de um ato de ousadia, se lançou na procura de um conhecimento mais
profundo que vai além dos limites da tradição. É comum delimitar, no âmbito deste
texto bíblico, dois setores distintos: os enunciados em prosa, dominantes nas partes
inicial (cap. 1-2) e final (42, 7-17), ou seja, configurando uma moldura narrativa, e os
segmentos em verso, na parte central (3-41). É possível também isolar várias vozes e
analisá-las na sua intencionalidade e limitação próprias: a voz de Job (na parte inicial,
nos diálogos da parte central e na resposta final), a voz da mulher de Job (2,9), a voz dos
amigos Elifaz, Baldad e Sofar (4-27), a voz do jovem Eliú (32-37) e a voz de Deus na
teofania (38-41).
Tão provocadora quanto cativante, a figura de Job tem sido vista frequentes vezes,
ao longo da história da cultura ocidental, como paradigmática representação da atitude
de um homem justo para com o sofrimento, tendo em conta a sua conduta durante as
Job e as variações em torno do tema da miséria humana na poesia maneirista 421

tribulações por que passou. É também assim que tende a ser lida pelo humanista por-
tuguês Jerónimo Osório, como se percebe pelo teor do proémio que acompanha a sua
Paráfrase ao Livro de Job, elaborada com o intuito de fazer chegar a um número mais
elevado de leitores um texto eivado de sentenças misteriosas, como então se dizia, mas
que não chegou a ser publicada em vida: “o Senhor quis outrora oferecer aos homens,
para que o imitassem, um claríssimo exemplo de virtude invencível, de maneira a que
tivessem por certo que não existe nenhum mal tão terrível que seja capaz de arrancar da
sua firme posição o homem que se apoia na fé e na religiosidade” (2009, p. 80). Pruden-
temente relegada para segundo plano a afirmação de autonomia de Job perante Deus
que, segundo alguns comentadores, chega a roçar o sentido de hybris que já se encon-
trara inscrita no pecado original (Génesis 3), acaba por prevalecer o sentido de exem-
plaridade do comportamento virtuoso, pois “no meio dos maiores flagelos e tormentos
das tribulações, mantinha-se sempre firme na mesma determinação e opinião” (Ibid.).1
É legítimo supor, na linha das reflexões do mais recente editor da Paráfrase oso-
riana ao Livro de Job, António Guimarães Pinto, que esta estivesse concluída e pronta
para a impressão ainda antes de 1575, mas caberia aqui lembrar que pertence a esta
mesma fase histórico-cultural, entendida agora à escala peninsular, uma outra tradução
comentada (e não isenta de ressonâncias autobiográficas) da responsabilidade de Fr. Luís
de León e que leva por título Exposición del Libro de Job. Teria ficado concluída por
volta de 1591, escassos meses antes da morte do autor (embora só viesse a ser editada em
1779), mas permite mostrar com indesmentível certeza que este intertexto bíblico trazia
em si elementos que se compaginavam em absoluto com a melancolia, o desespero ou a
angústia existencial.
Tanto quanto é possível averiguar a partir dos enunciados textuais que chegaram
até nós (seguramente em muito menor número dos que foram, então, produzidos), o
lirismo maneirista português mostrou-se especialmente sensível à tonalidade mais dra-
mática da experiência de dor de Job. Se é verdade que no quadro vetero-testamentário o
protagonista passa por dois ciclos profundamente distintos: da riqueza para a condição
de pobre, afligido por graves males, e da pobreza para um horizonte de bem-estar físico
e de plenitude a nível material e social, o certo é que os poetas maneiristas se sentiram

1
Uma tal leitura é, de resto, confirmada por Jerónimo Osório Júnior no prefácio endereçado a
D. Jorge de Ataíde, ainda que tenha o cuidado de enquadrar devidamente a intensidade dos lamentos de
Job: “embora tenha sido atormentado por pungentíssimos sofrimentos de corpo e espírito, e ainda que
horríveis e inopinadas fatalidades sobre ele se arrojassem com incessante pertinácia, e conquanto soltasse
palavras que delatavam as dores excruciantes com que era torturado, jamais abandonou o extraordinário
comedimento de espírito que mantivera no curso da vida anterior, mas nos mais lancinantes tormentos
glorificava com louvores a majestade divina e, a palavras trasbordantes de pungentíssimo queixume, mis-
turava afirmações acerca da Providência divina que muito se alçavam acima da razão humana” (Osório,
2009, p. 66).
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muito mais atraídos pela dimensão de um Job dilacerado pela dor e impotente ainda
para compreender o sentido de tudo quanto lhe tinha acontecido. Do intenso processo
de discussão com os amigos, só a título de exemplo, quase não se vislumbra rasto ou do
último encontro com Deus, que há de culminar num grau de discernimento mais apro-
fundado e que constitui, sem dúvida, a lição maior a retirar deste texto bíblico.
Não por acaso, à medida que nos aproximamos da produção cultural do período
barroco ou nela entramos de forma plena, parece tornar-se mais forte (embora esta seja
uma hipótese ainda a confirmar) o aproveitamento da constância de Job, nomeada-
mente até no âmbito de correntes de inspiração neoestóica que se mostram interessadas
em potenciar não tanto o que se sofre, mas sobretudo como se sofre.2 Seja como for, tudo
parece apontar no sentido de recuperar a visão de um Job como protótipo da paciência,
que se fica a dever, em larga medida, a uma tradição interpretativa que remonta a Gre-
gório Magno e aos seus Moralia in Job. É, com efeito, nesses trinta e cinco livros que
se procede à intensa exploração dos vários sentidos inscritos no texto bíblico, fazendo
emergir a ideia de que o sofrimento comporta em si uma dimensão misteriosa, de que
Deus, como ser misericordioso, não pode obrar injustamente e de que existe um claro
paralelo entre Job e Cristo. Enfim, sem Gregório Magno não teríamos, por certo, uma
consolidação tão rápida e tão intensa deste protótipo de Job como virtuoso paciente e
representante do princípio de humildade que se procura enaltecer e inculcar nos cristãos
(basta pensar no profundo impacto que teve no campo do mistério medieval3).

2
Fernando R. de la Flor ao tratar, em belíssima síntese, a natureza e o alcance do que considera
“El Barroco (ultra)peninsular” reconhece inclusivamente a presença de um “complejo de Job” na cultura
hispânica: “la ética y la estética de la renuncia se modulan en el siglo siguiendo el modelo bíblico de un
Job, también siempre presente cuando se trata de la representación de un catolicismo, el cual elige autore-
presentarse en cuanto vitimario, y ello antes que como real verdugo de pueblos e idiosincrasias innúmeras”
(2010, p. 23). Num texto muito provavelmente reescrito e concluído no período da sua última prisão,
La constancia y paciencia del Santo Job, en sus pérdidas, enfermedades y persecuciones (Obras Completas.
Prosa, ed. A. Fernández-Guerra. Madrid: Atlas, BAE, 1951, pp. 213-248), Francisco de Quevedo segue
uma estratégia de identificação com a personagem bíblica muito semelhante à que, anos antes, havia feito
o seu admirado Fray Luís de León, também na condição de encarcerado, mas pela mão da Inquisição.
De resto, sabe-se hoje que o seu interesse por Job, à semelhança do que acontece com outras figuras
bíblicas ou santos, se prolonga durante largo tempo, uma vez que ainda antes de 1622 lhe dedica um
romance (“Viéndose Job afligido”) no início de Sueño de la muerte (mais tarde incluído, com pequenas
variações, em Las Tres Musas), e voltará a manifestar-se em Virtud militante e em La caída para levantarse.
Ora, reconhecendo a importância de que se reveste esta apropriação barroca do episódio bíblico, temos
vindo a fazer um levantamento de ocorrências no âmbito das manifestações literárias e artísticas luso-bra-
sileiras com vista a determinar o espectro de utilizações (exegese moral; doutrinação de comportamentos;
intervenção político-ideológica) de que foi alvo.
3
Poderíamos recordar peças como La Pacience de Job, um mistério anónimo do século XV, editado
por Albert Meillier (Paris: Klincksieck, 1971), ou Histoire de Job, mistério incluído no Mistere du Viel Tes-
tament, vasta compilação do século XV. Sirva de exemplo, no âmbito da Literatura Portuguesa, a peça de
Job e as variações em torno do tema da miséria humana na poesia maneirista 423

2. Pese embora já ter sido objeto de múltiplas leituras e de cuidadosas avaliações filo-
lógicas por vários estudiosos, o soneto O dia em que eu nasci, moura e pereça, que consta
no Cancioneiro de Luís Franco Correia como parte integrante de uma série de sonetos
onde avultam alguns de muito provável autoria camoniana e no Cancioneiro de Fer-
nandes Tomás como a última composição transcrita, acompanhada da epígrafe “De Luís
de Camões”, continua a suscitar o debate, entre os editores contemporâneos, sobre a sua
inclusão (ou não) no corpus da lírica camoniana. De tão citado e comentado que tem
sido (e com inteiro mérito, diga-se), quase se torna desnecessário referir aqui o ensaio em
que Vítor Manuel de Aguiar e Silva (1994a, 1994b, 2008) dá conta das “inquirições” a
que submeteu o referido soneto, ainda que outros não menos sofisticados ‘leitores’ atuais
de Camões, como Maria Vitalina Leal de Matos (1987, 1995) (que nele vê um exemplar
‘autorretrato’ do autor, pela manifestação de uma “hipertrofia do eu”) e Vasco Graça
Moura (1993, 2005) persistam em reconhecê-lo como genuinamente camoniano em
nome de um rigor construtivo e de um apuro estético que não deixam insensível quem
o lê, à semelhança de outros textos do mesmo autor, ou mais recentemente Hélio J. S.
Alves (2007).
Se suspendermos, por instantes, esse já longo debate em torno da questão da
autoria, que não deixou de trazer ainda assim um forte alcance iluminativo, e concen-
trarmos o olhar sobre o texto em si e seu produtivo diálogo com determinadas matrizes
culturais (numa dimensão lata), verificaremos que a pedra de toque, em termos de apro-
veitamento do Livro de Job, passará pela matéria poética, deixando de lado qualquer
tipo de incursão no conteúdo da prosa introdutória (capítulos 1-2), onde se manifesta
de maneira mais viva a paciência do protagonista bíblico. Aliás, se há quem se mostre
mais sensível à dimensão teológica do livro, procurando explorar uma linha de reflexão
sapiencial, outros preferem apostar na vertente existencial e no fundo antropológico que
o mesmo encerra e parece-nos ser esta última a mais preponderante no caso em apreço.
Emerge, assim, no texto português a imagem de um simulacro de Job que perde, com
os lamentos e as imprecações de quem se mostra afligido pela desgraça, a sua exem-
plaridade, enchendo de assombro (ou de terror) o leitor habituado a ter diante de si o
perfil de um ser mais paciente. É o excesso do mal, e consequente sofrimento, que per-
mite ao herói tomar a palavra, seja no âmbito bíblico, seja em textos que, de modo mais
ou menos pronunciado, nele se inspiram, pelo que não causa estranheza que estudiosos
como Aguiar e Silva ou Maria Vitalina Leal de Matos, que têm proposto leituras dis-
tintas do poema (desde logo, fazendo, ou não, depender o seu teor da presença de uma

Gil Vicente que de modo mais flagrante se aproxima dessa matriz genológica do teatro medieval europeu,
o Breve Sumário da História de Deus. Em texto apresentado no IV Congreso Internacional de la SEMYR
(Sociedad de Estudios Medievales y Renacentistas), sob o título de “El Libro de Job y la cultura portuguesa
de la Edad Media al Renacimiento: traducción, tradición y transgresión”, procurámos rastrear a presença
deste texto bíblico numa fase cronologicamente anterior à que agora exploramos.
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voz identificável com a de Camões), possam convergir na leitura de um fenómeno de


agigantamento da voz enunciativa, sob forma de “protagonismo trágico-narcisista”, nas
palavras do primeiro, ou de “hipertrofia do eu”, na opinião desta última. Embora se
reconheça que o autor do poema utiliza a mais vívida formulação discursiva para mani-
festar a intensidade do desespero e da angústia, justo é reconhecer que a tendência viti-
mista – bem patente nos versos do último terceto: “a vida / mais desgraçada que jamais
se viu!” (1994, p. 182) – e o vigor do verbo de um ser atormentado já estavam presentes
no hipotexto original, pelo que um dos aspetos mais fortes, a nosso ver, diz respeito à
larga “gente temerosa” que assiste, coberta de espanto, ao terrífico espetáculo que tem
diante de si.
Ao abrir o soneto com a paráfrase de uma proposição retirada do Livro de Job
– “Pereça o dia em que nasci” (3,3), que está próxima, de resto, de segmento semelhante
que se encontra em Jeremias (20,14-18) – e ao reescrever (nos versos 4-5) o passo bíblico
em que se alude à conversão do “dia em trevas” (3,4-5, de forma mais intensa, mas não
única, pois a dialética entre luz e trevas atravessa todo o setor das lamentações de Job),
no que tem sido visto como reverso semântico do fiat primordial de Deus, o sujeito
enunciador institui um quadro de referência de elevada densidade. Compreende-se a
razão que leva Aguiar e Silva a propor que o texto português dá mostras de ir além
da matriz bíblica, nas “imagens horrendas, cruéis e paroxísticas” que enchem toda a
segunda quadra, mas seria de ponderar, num estudo mais aprofundado, se a simples
menção a Leviatã, o monstro do caos primitivo (Sl 74,14; 104,26; Is 27,1), rejeitado nos
abismos das águas que simbolizam as forças do mal, não sinaliza, desde logo, essa visão
(quanto mais não seja, em potência) apocalíptica e aterradora: “Amaldiçoem-na [a noite]
os que aborrecem o dia e estão prontos a despertar Leviatã!” (3:8). Ainda que no plano
elocutivo o soneto apresente um tom mais pungente, é indesmentível que a ameaça de
caos e desordem se insinua já nos interstícios do texto bíblico, por via da alusão a cria-
turas como a anteriormente citada ou a Behemoth que se apresentavam como símbolos
do caos primitivo no antigo Próximo Oriente.
Perante a pena que constitui a existência terrena para um mortal, e mais ainda
para quem a si próprio se considera como o ser mais desgraçado, é legítimo supor que
o momento mais dramático, o do nascimento, seja alvo de particular atenção. Assim,
desde o horizonte bíblico, com as lamentações de Job (3) e de Jeremias (20), aos poemas
que são objeto de análise neste estudo, constata-se que o tratamento do tópico da
maldição do dia do nascimento se faz acompanhar de uma reiterada alusão ao ventre
materno, e não necessariamente em sentido disfórico, mesmo tratando-se de um con-
texto maneirista. Se é verdade que há toda uma tradição cultural, moldada pelo influxo
de matrizes neoplatonizantes, que tende a associar o ventre a indigência e a obscuridade,
já a senda bíblica há pouco invocada permite a consideração de um espaço reconfortante
e protetor, deixado para trás no momento de entrada neste mundo e, por isso, recordado
com nostalgia. Ora, o soneto “O dia em que eu nasci, moura e pereça”, não alude de
Job e as variações em torno do tema da miséria humana na poesia maneirista 425

modo explícito ao ventre enquanto vaso que permite a gestação da criatura humana,
mas não ignora a condição materna quando, no momento de evocação de cataclismos
vários, vem ao de cima a antevisão da “mãe [que] ao próprio filho não conheça”, numa
formulação algo próxima à que se encontra noutro passo do Livro de Job: “o ventre que
o gerou esquece-o” (24,20).
Desde a falta primordial, todo o percurso da existência humana, entre o berço
e a sepultura, aparece posto sob o signo do padecimento, ora gerando inquietação e
angústia, ora estimulando a procura de um sentido que não se esgote no horizonte da
mais imediata temporalidade, mas, por circunstâncias várias, determinadas conjunturas
históricas, como a que corresponde a parte significativa da segunda metade do nosso
século XVI e primeiras décadas do seguinte, levaram ao paroxismo essa particular
forma de sentir e de pensar.
Ora, da “miséria do homem, desde que nace” trata também Manuel Soares de
Albergaria num soneto que integra o magro espólio literário que do autor chegou até
nós (neste caso, através do Cancioneiro Fernandes Tomás), tendo como pano de fundo
(se não de modo declarado, pelo menos implícito) a dramática reflexão sobre a condição
humana que tomava forma no texto bíblico que temos vindo a comentar (1971, fl. 80r).
É o último verso que fornece a mais adequada chave de leitura para todo o enunciado
– “Ai que há do berço um passo à sepultura” –, porquanto traz em si a justificação da
angústia: a precariedade do humano. Da primeira quadra ao último terceto é o corpo
no seu devir temporal que se mostra perante o olhar do leitor, com a evocação do pade-
cimento associado a cada uma das idades do homem (infância, juventude, idade adulta
e velhice). Ora, se o sujeito emerge como vítima de um mundo absurdo e cruel, pouco
resta que esperar, sequer que compreender. Não que ele deseje morrer, mas certamente
lamenta viver, pois só reconhece em torno de si os múltiplos rostos da miséria e do sofri-
mento. O queixume, porque em boa verdade é disso que se trata, torna-se mais vigo-
roso a partir da consciência aguda da injustiça do mal e do padecimento que atinge o
“mísero mortal”.
A um primeiro contacto com um ciclo de poemas que aparece encimado pelo
título Lições de Job, na coletânea Obras inéditas dos nossos insignes poetas Pedro da Costa
Perestrello coevo do grande Luís de Camões, e Francisco Galvão […]), que António Lou-
renço Caminha fez publicar em 1791, qualquer leitor consegue desde logo reconhecer
o subtexto bíblico que lhe serviu de inspiração, mas ninguém até hoje teve o cuidado
de fazer notar que esse exercício de reescrita aparece moldado pela tradição do Ofício de
Defuntos. Sabe-se muito pouco acerca da vida e da obra do homem a quem tais Lições
aparecem atribuídas – Pedro da Costa Perestrelo – pois de momento só podemos contar
com a informação que dele consta na Biblioteca Lusitana de Diogo Barbosa Machado e
com os textos que aquele editor reuniu sob o seu nome (ainda assim com fidedignidade
questionável, como é habitual neste contexto de produção poética das últimas décadas
do século XVI e início do seguinte). Acreditamos, contudo, que mereceria por certo
426 Paulo Silva Pereira

maior fortuna editorial e crítica do que a que tem tido ao longo do tempo e a análise
que de seguida iremos propor, se outro mérito não tiver, pelo menos que ajude a ilu-
minar algumas zonas de sombra que teimosamente têm persistido.
Comecemos pelo ponto mais decisivo: a articulação com o Ofício de Defuntos. Se é
verdade que a tradição exegética que vem do trabalho fundacional de Gregório Magno
tende a privilegiar o conteúdo inscrito na moldura narrativa do Livro de Job, também
se sabe que certos fragmentos retirados das intervenções da personagem bíblica circu-
laram por várias vias, sendo a mais substancial a que respeita à adaptação, por parte da
Igreja, de nove leituras e de vários responsos aplicando-os à liturgia de defuntos. Graças
a um processo de difusão muito intensa, os versos que integram a liturgia de defuntos
tiveram uma receção específica no campo literário, que ia muito para além da consa-
grada imagem do paciente Job.
Em vários pontos do macrotexto constituído pelas nove Lições de Costa Perestrelo
se insinua a voz de um ser atormentado que anseia por respostas que permitam aplacar
o seu sofrimento excruciante. Assim, na Lição I, paráfrase da primeira leitura do Ofício,
é possível surpreender uma forte acumulação de frases de caráter interrogativo. Ganha
especial vigor o direito de ser sujeito questionador, direito que é conferido a Job, no
âmbito bíblico, a partir do momento em que abre a boca para maldizer o dia do seu nas-
cimento e dá início a uma jornada de procura por um grau de discernimento mais pro-
fundo sobre o sentido da vida e de Deus. Melhor do que ninguém, George Steiner, num
passo admirável de Gramáticas da Criação, soube apontar essa vontade de perscrutar o
silêncio de Deus: “Job, o Edomita, não reclama justiça. Se tivesse sido judeu, tê-la-ia
reclamado. Mas Job, o Edomita, reclama sentido. Exige de Deus que faça sentido (fazer
sentido [make sense]: eis uma das fórmulas mais impensadamente problemáticas das gra-
máticas da criação). Exige que Deus Se torne compreensível. Recusando por completo a
conceção agostiniana – “se o apreendes, não é Deus” –, Job intima Deus a revelar-Se de
outro modo que não o das aparências do absurdo e do insensato” (2002, p. 55).
Num outro segmento textual que manifesta um elevado grau de proximidade face
ao original bíblico (Job 19,25-27) e, por extensão, a versos que comparecem na leitura
VIII, e como responso do Ofício de Defuntos, vem ao de cima uma antiquíssima e forte
tradição que tende a reconhecer em Job uma prefiguração do sofrimento de Cristo e,
por extensão, a crença no poder da Ressurreição:
Que vive meu bom Deus, estou seguro,
E que da terra no dia derradeiro
Em carne e pele, corpo vivo e puro,
Homem ressurgirei qual fui primeiro.
Com olhos próprios meus e não alheios,
Verei então a ti, Deus verdadeiro,
C’os d’alma entanto de esperança cheios. (Caminha, 1791, I, pp. 9-10)
Job e as variações em torno do tema da miséria humana na poesia maneirista 427

Esse lastro exegético e cultural que parte dos comentários dos Padres da Igreja vem
depois a ser confirmado pela tradução proposta pela Vulgata e sai amplificado pelo teor
de sucessivas representações iconográficas que reforçam, sobretudo a partir do século
XV, o alcance da finíssima articulação entre Antigo e Novo Testamentos. Um dos casos
que melhor se presta a exemplificar esta vertente encontra-se na produção artística de
Albrecht Dürer, nomeadamente no retábulo Jabach.4 Num dos dois painéis que fazia
parte do dito retábulo e agora conservado no Städelsches Kunstinstitut (Fig.1), vemos o
pensativo Job, num estado de profundo sofrimento.

Fig. 1 4 Fig. 2 5
5

Segundo vários historiadores da arte, o modo como a figura se apresenta faz


lembrar um motivo iconográfico de larga fortuna, sobretudo na Europa do Norte: o
Cristo nu, com a cabeça apoiada na mão e o cotovelo assente no joelho (conhecido sob a

4
A designação do retábulo deriva do nome de um famoso mercador e banqueiro, Everhard Jabach,
que colecionava obras de arte. Mais tarde, Joseph Haussmann dividiu os vários setores do retábulo e ven-
deu-os dessa forma para conseguir um lucro maior. Neste momento, fazem parte das coleções de dois
museus: do Städelsches Kunstinstitut de Frankfurt e do Wallraf-Richartz-Museum de Colónia.
5
Reprodução da Fig. 1 disponível em: http://www.staedelmuseum.de/sm/index.php?StoryID=1
033&ObjectID=406 e da Fig. 2: http://www.wallraf.museum/index.php?id=223&L=1 (arquivos consul-
tados em 30/09/2012).
428 Paulo Silva Pereira

designação de “Man of sorrows”) e também alvo da atenção de Dürer na pintura abaixo


reproduzida, o “Christus als Schmerzensmann”, de cerca de 1492-1493 (Fig. 3):

Fig. 3 6
6

Sem de modo algum pôr em causa a relevância dessa leitura, acreditamos que seria
benéfico considerar também uma linha de tradição que entronca numa outra famosa
gravura de Dürer, Melencolia I, elaborada por volta de 1514 (Fig. 4). Todos sabemos
que esta cenografia da representação envolvendo uma personagem sentada com o rosto
apoiado na mão e o olhar distante podia aparecer associada, no âmbito das práticas
artísticas do Ocidente, ao campo da tristeza e do luto ou, por outro lado, ao sentido
de meditação, mas neste caso em particular acaba por denunciar os limites da própria
condição humana, quanto mais não seja ao nível da criatividade e do conhecimento, ao
mesmo tempo que traz consigo a memória de uma plenitude perdida. Que na origem
de qualquer estado melancólico se verifica a existência de um sentimento de perda é
matéria que tem sido explorada (e provada) por numerosos especialistas, mas isso não
significa que, no final, tudo se reduza à manifestação de ensimesmamento, dolência ou
culpabilidade, pois não raro comporta também o impulso necessário para retornar ao
estado de completude.

6
Reprodução da Fig. 3 disponível em: http://www.kunsthalle-karlsruhe.de/de/mediathek/samm
lung-online.html (arquivo consultado em 30.09.2012).
429

Fig. 4 7
7

Na verdade, se uma análise mais meticulosa do conteúdo do painel que pertence


ao Städelsches Kunstinstitut poderia insinuar um estado psicossomático identificável
com a melancolia, a presença de um par de músicos, no painel que agora se encontra
no Wallraf-Richartz-Museum (Fig. 2), torna ainda mais visível, por contraposição, essa
vertente. Muito se tem discutido a função de tais músicos, não só no âmbito desta pin-
tura de Dürer como noutras manifestações artísticas onde o mesmo tópico comparece,
mas o espectro das interpretações tende a oscilar entre o intuito de escarnecer e a missão
fraterna de consolar. Certo é que, apesar da presença no mesmo espaço de outras três
figuras, dificilmente poderia ser mais eloquente a solidão de Job e o seu pendor contem-
plativo, oscilando entre a estranheza pelas tribulações do presente e o anseio de regresso
à unidade originária com Deus. Poucos foram os artistas que souberam de modo tão
adequado tornar visível esse estado psíquico, como bem sublinhou Pierre Assouline,
num livro recente que leva por título Vies de Job, ao mostrar que “Dürer y concentre

7
Reprodução da Fig. 4 disponível em: http://www.kunsthalle-karlsruhe.de/de/mediathek/samm-
lung-online.html (arquivo consultado em 30.09.2012).
430 Paulo Silva Pereira

l’essentiel de sa souffrance, loin du spectacle des ulcères. Du moins les situe-t-il à l’in-
térieur, du côté de ce qui ronge l’âme et le sang. […] Job y est rongé par la mélancolie.
Jusqu’à présent, sa passion était identifiée à celle du Christ. Dürer nous le rend fraternel
par sa faiblesse même. Soudain il est des nôtres. D’autant que les musiciens lui font cor-
tège, qui espèrent le ramener dans le bonheur.” (Assouline, 2011: 65). A alegria propor-
cionada pela performance dos músicos não seria suficiente para retirar Job do seu estado
meditativo, pelo que acaba por ser remetida para a condição de ruído de fundo.8 A sua
obrigação para com a virtude, de que não quer abdicar, pese embora os males sofridos,
leva-o a deixar de lado os protocolos da vida ativa, entregando-se à vida contemplativa.
Por coincidência (ou talvez não), das Lições atribuídas ao poeta português faz parte
uma sequência de versos que parece reforçar esta proposta de leitura, pois estando em
causa ainda o eco das palavras de Job é sintomático que se tenha pensado no sintagma
“amarguras e malanconias” para se caraterizar tão intenso estado de sofrimento e frus-
tração:
Em amarguras e malanconias
Meus olhos se detêm e eu sem pecado
Em ânsias me desfaço, e agonias. (Caminha, 1791, I, p. 8)

Ao acentuar a incoerência da vida terrena, mediante a evocação de todo um


quadro de “desordens, dor, temor e pranto eterno”, a voz que se faz ouvir no interior
deste ciclo de ‘lições’ não deixa de pôr em causa que a mesma existência possa efetiva-
mente ser concebida como um bem, o que de si é também fator que alimenta o sofri-
mento. Na verdade, uma reflexão profunda sobre a precariedade da vida, essa mesma
que passa “como flor seu breve termo, / E quase ao vento como solta areia/ Fugindo
em sop’lo a nós desaparece, / Ou como sombra que do sol s’alheia” (Ibid., p. 6), e uma
consciência mais aguda da dor crescente concorrem para alimentar a dúvida quanto à
dimensão e ao caráter genuíno deste dom divino que é a existência terrena, até porque o
espetáculo que o real exibe é desesperantemente sombrio:
Por que, Senhor, das corporais entranhas
De mulher me tiraste e fui trazido
A ver misérias tantas e tamanhas?
Melhor me fora então ser consumido,
E não me vira em tanta desventura
Se quasi sem nascer fora nascido,
E do ventre levado à sepultura. (Ibid., 10)

8
Que Job ocupa um lugar único no âmbito da história da arte é algo que se pode comprovar pela lei-
tura da obra que Samuel Terrien (1996) consagrou à matéria, pois aí se pode encontrar um minucioso levan-
tamento de manifestações que, desde as iluminuras de manuscritos medievais e bizantinos a formas artísticas
da nossa contemporaneidade, tomaram por base uma ou outra cena da história daquela figura bíblica.
Job e as variações em torno do tema da miséria humana na poesia maneirista 431

Tendo saído nu “das corporais entranhas de mulher” para ver “misérias tantas e
tamanhas”, o sujeito enunciador nem sequer manifesta a nostalgia do regresso a esse
ponto de origem, antes quisera nunca tê-lo abandonado. Como fazia questão de notar
Costa e Silva, numa das páginas do seu “Ensaio biográfico-crítico sobre os melhores
poetas portugueses”, Perestrelo, de modo mais intenso (mas não único) nesta Lição IX
que agora comentamos, conseguiu projetar um “pungente grito de desesperação”, que
faz lembrar a melhor tradição do lamento no âmbito da cultura hebraica (1851, III,
p. 321). Por outras palavras, ainda aqui ecoa o diálogo tenso entre um Deus que se
esconde ou que, no limite, guarda um perturbante silêncio (pelo menos, durante uma
certa fase do combate agonístico que o texto bíblico encerra), e o homem que grita
desesperadamente por Ele.
Compreende-se que perante uma tão débil e lastimosa condição humana, que
pressupõe um convívio constante com a dor (quantas vezes em registo agonizante), a
morte possa trazer consigo, como tantos autores deste período maneirista se esforçaram
por mostrar, um sentido de libertação: “Qual homem morto cuidas tu que viva! / Meus
dias cessem, e do corpo austero / Desejo desatar alma cativa” (Caminha, 1791, I, p. 7).
Por outro lado, se o homem sofre é porque Deus permite que isso aconteça à luz de um
desígnio que aquele, pela sua própria condição, não consegue alcançar. Compete-lhe
confiar no misterioso e sapiente desígnio divino, que não é indiferente ao sofrimento
do homem justo, mas que, pela sua irredutível grandeza, tem um plano providencial, ao
qual o homem se deve entregar com confiança.9
Um exercício de reescrita da parte lírica do Livro de Job como o que foi realizado
por Perestrelo, levando em linha de conta o efeito de mediação prévia que se opera com
o texto do Ofício de Defuntos e jogando com a fronteira entre literatura sacra e cultura
secular, revestia-se de elevado potencial estético e de seguro impacto a nível emocional
e moral. Foi, de resto, também essa a leitura feita por um compositor do século XVI,
Orlando di Lasso (1983), que tomou a seleção de segmentos que o Ofício apresenta
como base para a elaboração de duas peças musicais: um primeiro ciclo de motetos, com
o título Sacrae lectiones ex Propheta Job, composto cerca de 1560, e um segundo ciclo, as
Lectiones sacrae novem, ex libris Hiob excerptae, que veio a público em 1582. Segundo
recentes leituras deste trabalho artístico de Lasso, a representação do Job do protesto,
da dúvida e do desespero aparece contrabalançada por uma teologia da humildade e da
submissão implícita na música (Wisse, 2003). Em todo o caso, não se pode perder de
vista que, ao omitir toda uma série de aspetos que o Livro de Job referia, as ‘lectiones’ do

9
Valeria a pena considerar, a este propósito, o seguinte passo do “Discurso preliminar do Coletor e
Editor destas Obras” com que abre a edição que aqui utilizamos: “Com que admiração não tem sido lida
dos sábios a versão que fez em linguagem das Lições de Job? É quase impossível o ler-se esta obra, única no
seu género, sem que a nossa alma não sinta aquela doce comoção que sentem os que se dão à meditação
das verdades eternas” (Caminha, 1791, p. XIII).
432 Paulo Silva Pereira

Ofício se tinham transformado no instrumento ideal, de qualquer crente, para mani-


festar o lamento, as preocupações (quando não o protesto) a propósito do sofrimento
por que estivesse a passar. Além disso, o efeito de diluição da autoria (ou da proveni-
ência) desses segmentos do texto bíblico facilitava ainda mais o mecanismo de autoiden-
tificação entre os membros do auditório e o discurso daquela figura bíblica. Apesar de
pertencer a um horizonte geográfico-cultural distinto do português, a interação entre
o texto bíblico e o contexto musical que se realiza pela mão de Lasso vem confirmar a
tonalidade sombria que tomou posse do clima mental europeu a partir de certa fase e
que legitimaria equacionar a existência de uma rutura epistemológica no seio da eude-
monia renascentista.
Terminaremos quase como começámos, regressando a Borges e à sua conceção de
clássico como “livro que as gerações dos homens, instadas por diversas razões, leem com
prévio fervor e com uma misteriosa lealdade” (1998, p. 147), porque o Livro de Job,
sendo de uma universalidade absoluta, não cessa de interpelar os seus leitores e muito
para além de razões estritamente atinentes ao plano da Fé, uma vez que se apresenta
como eco aprofundado e transfigurado de todos os sofrimentos humanos.

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