Você está na página 1de 10

Gêneros literários e verdade Bíblica

Pe. Johan Konings, sj

1. O que a Igreja percebeu

Há aproximadamente 60 anos o Papa Pio XII oficializou, na


Encíclica Divino Afflante Spiritu, o que muitos pastores e estudiosos andaram
percebendo: “Qual o sentido literal de um escrito, muitas vezes não é tão claro
nas palavras dos antigos orientais como nos escritos de nosso tempo. […] O
intérprete deve transportar-se com o pensamento àqueles antigos tempos do
Oriente e examinar e distinguir claramente que gêneros literários quiseram
empregar e empregaram de fato os escritores daquelas épocas remotas. De fato,
os antigos orientais, para exprimir os seus conceitos, nem sempre usaram as
mesmas formas e gêneros de expressão que nós hoje usamos; mas sim aqueles
que estavam em uso entre os seus contemporâneos e conterrâneos. […]
Ninguém […] poderá estranhar que também nos autores sagrados, como nos
outros antigos, se encontrem certos modos de expor e contar, certos
particularismos próprios especialmente das línguas semíticas, certas expressões
aproximativas ou hiperbólicas e talvez paradoxais, que servem para gravar as
coisas mais firmemente na memória […]. Advertiu já o Doutor Angélico [Sto.
Tomás de Aquino] […]: ‘Na Escritura as coisas divinas nos são apresentadas ao
modo usual, humano’. Como o Verbo substancial de Deus se fez semelhante aos
homens em tudo ‘exceto o pecado’ (Hb 4,15), assim também a palavra de Deus
expressa em línguas humanas assemelhou-se em tudo àquela
providencial condescendência (synkatábasis) de Deus […]” (Acta Apostolicae
Sedis 35 [1943]314-316).

No mesmo sentido, repete o Concílio Vaticano II: “Para descobrir a intenção dos
hagiógrafos devem-se levar em conta, entre outras coisas, também os ‘gêneros
literários’” (Dei Verbum, nº 12). E o documento da Pontifícia Comissão Bíblica,
de 1994, insiste: “Segundo a Divino Afflante Spiritu a procura do
sentido literal da Escritura é uma tarefa essencial da exegese e, para cumprir
esta tarefa, é necessário determinar o gênero literário dos textos […], o que se
realiza com a ajuda do método histórico-crítico” (A Interpretação da Bíblia na
Igreja, I, A, 4). Portanto, considerar os gêneros literários na explicação da Bíblia
não é nenhuma impiedade ou falta de fé.

Mas o que é “gênero literário” (“tipo de texto”, como hoje se diz)?

Todo o mundo sabe que o mesmo fato é descrito de modo diferente no relato do
jornalista, na folha de ocorrência policial e na fofoca das comadres da rua. São
três “gêneros literários” diferentes, e quem entende das coisas percebe
imediatamente qual a versão do jornalista, do guarda de trânsito ou das
comadres. Assim também na Bíblia. Um texto pode ser concebido conforme
padrões diversos, em função de seu ambiente de origem e do uso que dele será
feito: liturgia, ensino, crônica oficial etc. Os gêneros mais “genéricos” são a
prosa, a poesia, o drama ou teatro; ou, sob outro ângulo, a narrativa e o
discurso. E daí em diante podem-se subdistinguir centenas de variedades
subalternas. Deve-se associar à questão do gênero literário também a da
“forma” literária, que se refere às formulações específicas presentes nos textos
bíblicos em função de determinadas finalidades, especialmente às das
comunidades cristãs que se exprimem no Novo Testamento (por exemplo, as
fórmulas do querigma, as fórmulas de profissão da fé, os apotegmas, as
parábolas).

O exame dos gêneros literários permite, entre outras coisas: 1. compreender


melhor a intenção do autor e, consequentemente, a mensagem do
texto; 2. individuar o contexto vital no qual o texto se origina; 3. situar melhor
“a verdade” da Bíblia. Essas três finalidades, como veremos, estão intimamente
ligadas entre si.

2. Conhecer a intenção do autor e compreender a mensagem do texto

O desconhecimento do gênero literário pode levar a uma interpretação errônea


do texto. Um gênero didático muito usado pelos antigos, tanto por Sócrates
como pelo livro dos Provérbios, é a ironia — que significa: questionamento. Diz-
se uma coisa jocosa, paradoxal ou fictícia para pôr em xeque uma opinião
ingênua, para provocar a reflexão. Ora, não poucas vezes, nos testes de
verificação, os alunos reproduzem observações irônicas do professor como se
fossem a mais segura verdade, sem desconfiar da intenção questionadora do
mestre. Isso porque não perceberam o gênero literário usado por ele: a ironia.
Gênero que a Bíblia usa em profusão; veja, por exemplo, a acolhida de
Nabucodonosor no inferno, em Is 14,3-23, ou a palavra de Jesus em Mc 7,18-19.

Outro exemplo: a narrativa didática. Gn 2-3, a história de Adão e Eva, que nos
ensina qual é a situação e a vocação do ser humano. Para expressar a
universalidade, recorre-se ao gênero literário da “narrativa das origens”
(próximo do “mito”, no sentido científico desse termo). Pois quando se fala das
origens, ninguém escapa! Os nomes são simbólicos: Adão faz pensar
em adamá, “terra”, e Eva em hawah, “viver”. Eles vivem como príncipes num
“paraíso” (= jardim palacial). Mas está aí também a possibilidade do pecado,
apresentando-se na forma da serpente, e os dois se comprometem com ele por
quererem ser como deuses… Assim é todo ser humano. Só quem não percebe,
pelo menos intuitivamente, o gênero literário dessa história pode pensar que ela
faz parte da História Natural!

O livro de Jó escandaliza certas pessoas, porque Jó protesta contra Deus (Dt


8,16 diz: “Não porás o Senhor, teu Deus, à prova”). Mas sabendo que se trata de
um quase teatro, que recorre ao gênero literário do processo, compreende-se
melhor o teor: é uma maneira de pôr em diálogo a justiça de Jó, os preconceitos
teológicos de seus “amigos” e o mistério insondável de Deus, que não abandona
Jó, apesar do sofrimento inexplicável deste.

É preciso saber com que tipo de literatura se está lidando. E lembremos que
a Divino Afflante Spiritu diz que a consideração do gênero literário é necessária
para conhecer o sentido literal do texto, ou seja, o sentido que o autor
literalmente quis expressar. O autor de Gn 2-3 quis literalmente expressar um
sentido didático. O de Jó quis literalmente encenar, como num teatro, um
diálogo entre três pontos de vista em conflito. Individuar o gênero literário —
por exemplo, o gênero simbólico — não significa inventar um sentido simbólico
ao gosto do leitor ou do exegeta, mas apontar o modo como o autor quis ser
entendido. Assim, conforme o caso, determinado sentido simbólico pode ser o
sentido literal — literalmente o que o autor quis dizer. Ao contrário, ler a
história de Adão e Eva como um fato da História Natural, sem levar em conta o
simbolismo usado pelo autor, é uma traição da verdade bíblica!

3. Conhecer o contexto vital do texto

O gênero literário pode nos ensinar algo sobre a situação ou o contexto da vida
que deu origem a esse modo de falar. É pouco provável, por exemplo, que um
texto irônico tenha surgido numa liturgia de louvor a Deus! É típico de alguém
que quer levar seu público a refletir: por exemplo, os profetas que acusam a
falsa segurança do povo, ou os professores — sábios, como diz a Bíblia — que
querem ensinar seus ouvintes a pensar um pouquinho mais. O próprio gênero
literário fornece um indício, ainda que impreciso, sobre a situação em que o
texto foi formulado.

A ligação entre o gênero literário e o contexto da vida da comunidade e do autor


aparece claramente, por exemplo, em certos salmos: salmos de romaria a
Jerusalém, salmos de permanência dos levitas no Templo etc. Escritos como
Provérbios e Eclesiástico mostram ligação com o ambiente da educação. Gn 1,
abertura da Torá, é um hino litúrgico, culminando no tema do sábado: está
ligado à celebração do sábado (que comportava a proclamação da Torá) nas
sinagogas, depois do exílio babilônico.

A relação com o contexto vital da elaboração dos textos foi estudada sobretudo
no que diz respeito ao Novo Testamento, no método conhecido pelo vocábulo
alemão Formgeschichte — mal traduzido como “crítica das formas”; o certo
seria: “estudo crítico das formas/fórmulas literárias”. Nesse campo, o método
consegue recuar até a tradição oral que precedeu o texto escrito dos Evangelhos.
Percebeu-se que certas maneiras de formular a mensagem correspondiam a
intenções ou métodos de pregação ou de transmissão das primeiras
comunidades cristãs. As necessidades da comunidade forneceram, por assim
dizer, o molde em que a tradição foi fundida. Assim, certas palavras em que
Jesus é proclamado “o Senhor” provavelmente foram fundidas nesse molde no
contexto da prática batismal das primeiras comunidades: o batismo em nome de
Jesus, sob proclamação da fé em Jesus como “o Senhor”. As parábolas
acompanhadas de explicação, em Mc 4 e Mt 13 (o semeador, o joio), parecem
refletir a catequese das comunidades cristãs, o que não contradiz que a
parábola, na sua original forma simples, seja de Jesus.

4. Conhecer a “verdade” da Bíblia

Considerando os exemplos citados, aprendemos que a verdade do texto não é


aquilo que está aí escrito materialmente, mas aquilo que o autor (solidário com
a comunidade que recebeu a revelação de Deus) quis expressar. No caso de um
texto irônico, a verdade é o contrário daquilo que está aí escrito de modo irônico
e questionador: a ironia é como o negativo de uma fotografia, mostra em preto o
que na realidade é branco e vice-versa. Coisa semelhante acontece no exagero (a
“hipérbole” bíblica): quando o salmista diz, exagerando, que “não há quem faça
o bem, nem um sequer” (Sl 14,1), ele nos faz refletir: será que realmente não há
nenhuma pessoa que faça o bem? O mesmo vale para as palavras sobre o camelo
passar pelo olho da agulha (Mt 19,24 e par.), a montanha se deslocar (Mt 17,20 e
par.) e semelhantes. A verdade não está na letra da frase, mas na conclusão que
o autor deseja que o ouvinte tire.

Isso, em certo sentido, vale para toda literatura. As letras são meras referências
à realidade que o leitor ou ouvinte deve descobrir por sua própria cabeça. A letra
não é verdadeira em si, mas aponta para a verdade fora de si; ou ainda, ela é
verdadeira se aponta no sentido certo — ainda que seja ironicamente, fazendo o
leitor/ouvinte refletir. Assim, em certos gêneros literários, não importa a
exatidão material daquilo que é dito, mas a direção certa para a qual aponta.
Exageros, insultos, expressões vingativas, elementos mitológicos… Encontramos
de tudo nos diversos gêneros literários, e, se tomássemos tudo isso ao pé da
letra, Deus deveria esmagar os filhos dos inimigos contra a muralha (Sl 137,9) e
deveríamos cortar o pé ou a mão que causasse escândalo (Mt 5,29-30).

5. Os limites do gênero literário

Não é raro alguém perguntar: então tudo é gênero literário? E a vida de Jesus, e
sua ressurreição, como ficam?

Não se pode atribuir tudo ao gênero literário. Este diz respeito à forma na qual o
texto foi moldado. Antes dessa “formatação”, porém, existe uma matéria, um
fato ou pensamento à procura da forma adequada para ser transmitido. É
possível que em função dessa forma sejam acrescentados alguns detalhes, mas a
substância é anterior à forma de transmissão. É preciso recuar para lá do texto,
procurar atrás do texto. Pode-se dizer que chamar Jesus de “o Senhor” é uma
forma das primeiras comunidades. Entretanto, por trás disso se encontra a
realidade substancial: algo deu ensejo para que Jesus fosse chamado assim.
Onde há fumaça, há fogo. Isso se aplica à questão da ressurreição. A maneira de
contá-la — esse ou aquele tipo de aparição, a constatação de um sepulcro vazio
— pode refletir o modo de proclamação das primeiras comunidades cristãs. Mas
quem pôs na cabeça dos primeiros cristãos que proclamassem coisa tão incrível
como é a ressurreição de um crucificado, “escândalo para os judeus e loucura
para os pagãos” (1Cor 1,23)? Se fosse para ter sucesso na pregação, poderiam ter
inventado algo mais acreditável. Olhem só o que aconteceu com Paulo, quando
de sua pregação no Areópago em Atenas (At 17,32)!

Toda linguagem assume alguma forma literária, algum modelo de expressão,


algum gênero de comunicação: um gênero muito geral (narrativa, discurso…),
um gênero mais específico (narrativa didática, discurso de despedida, exortação
moral…), uma fórmula específica (apotegma, fórmula querigmática, profissão
de fé, doxologia…). Não conhecemos a verdade, a realidade, senão por meio de
formas e gêneros literários. Estes não impedem o conhecimento da verdade,
antes o possibilitam. Mas é preciso “decodificar” o gênero para discernir a
realidade que ele aponta — tarefa de quem a explica: do exegeta e do pregador.

6. Gêneros literários problemáticos

Não pretendemos aqui abordar todos os gêneros literários, nem sequer os mais
importantes, mas apenas os que geralmente provocam dificuldades na pastoral,
em nível de catequese, pregação e leitura bíblica.

6.1. O gênero apocalíptico

Um gênero literário que causa muitos problemas é o gênero apocalíptico,


presente nos textos que, com descrições às vezes aterradoras, falam sobre o fim
“deste mundo”, em que reinam poderes contrários ao de Deus (DN, Ap, Mc 13
etc.). A interpretação ao pé da letra desses textos até se tornou marca
característica de algumas confissões cristãs ou afins (adventistas, Testemunhas
de Jeová…). Na realidade, o gênero apocalíptico é uma maneira de expressar a
decepção com a presente realidade (daí as imagens ameaçadoras), mas também
a esperança de uma realidade melhor, escondida ainda, que o visionário, por
ordem de Deus, revela para animar seu povo e fazê-lo resistir aos poderes
idolátricos deste mundo que pretendem competir com Deus
(apocalipse significa “revelação”). O próprio escritor apocalíptico sabe que suas
visões não são objeto de ciência profana: ninguém conhece o dia nem a hora
(Mc 13,32). A verdade do gênero apocalíptico não está nas imagens que ele usa,
mas na atitude que provoca: firmeza e esperança.
6.2. Histórias de sentido figurativo, parábolas

Existe na sabedoria oriental grande variedade de discursos figurativos, reunidos


sob o nome genérico de mashal, linguagem enigmática: fábulas, parábolas,
alegorias, enigmas, charadas… Destacamos aqui as parábolas de Jesus,
principalmente as parábolas do Reino. Geralmente, mais que descrever, elas
querem evocar algum insight (intuição) ou atitude relativa ao Reino de Deus
que Jesus anuncia. São histórias para “fazer cair a ficha”, geralmente usando
imagens conhecidas da vida cotidiana.

Alguns exemplos. As pessoas querem ver o Reino anunciado. Jesus responde:


um agricultor que semeou a semente não fica olhando para vê-la crescer; ele
dorme, acorda, cumpre seus afazeres e, de repente, aparecem o caule e a espiga
cheia de grãos, não se sabe como (Mc 4,26-29)…

O Reino exige que nos preparemos: é como um administrador que, vendo sua
função em perigo, manda os endividados falsificarem a promissória, para que,
depois de perder a função, ele tenha amigos (Lc 16,1-8)… Essa parábola, que usa
como imagem a duvidosa esperteza comercial dos orientais, faz intuir uma coisa
boa: a sabedoria que consiste em preparar-se. Os detalhes descritivos, a
desonestidade, não fazem parte do ensinamento; a perspicácia que se revela no
comportamento desonesto de um “filho das trevas” pode, de repente, ser uma
lição para nós! Na parábola das dez jovens que formam o séquito para o noivo
que chega no meio da noite (Mt 25,1-13), a recusa das “sábias” em repartir o
óleo com as “tolas” pode parecer egoísmo, mas não é esse o cerne da parábola; o
ponto central é que umas estão atentas e preparadas, enquanto outras,
negligentes e despreparadas, e aí está sua verdade.

6.3. Provérbios e aforismos

Os provérbios e aforismos que aparecem com frequência tanto no Antigo como


no Novo Testamento são, muitas vezes, “meias verdades”. Por isso, é comum
nos livros sapienciais um provérbio ser contrabalançado por outro que diz o
contrário (por exemplo, Pr 26,14 versus Pr 26,5; Pr 11,14 versus Eclo 37,8). O
leitor tem de refletir sobre quando vale um e quando vale o outro. Caso
semelhante acontece no Novo Testamento, quando Jesus diz: “Quem não é
contra nós está a nosso favor” (Mc 9,40), mas em outro caso: “Quem não está
comigo, é contra mim” (Mt 12,30).

Outros provérbios e aforismos surpreendem por sua crueza. Não são


politicamente corretos; nem querem ser, pois procuram assustar: “Deixa os
mortos enterrarem seus mortos” (Lc 9,60), “Onde está o cadáver, aí se reúnem
os urubus” (Mt 24,28). Essas frases não são objeto de análise palavra por
palavra, mas produzem uma impressão de susto salutar: sua verdade não está
nos vocábulos, mas no efeito que produzem.
6.4. O cumprimento das Escrituras, a “profecia”

O Novo Testamento, muitas vezes, implícita ou expressamente, vê em


determinado acontecimento o cumprimento das Escrituras (do Antigo
Testamento, normalmente a Lei e os Profetas, suas partes principais). Aqui se
destacam duas dificuldades: 1) o determinismo do cumprimento; 2) a
interpretação “acomodada” dos textos antigos.

1) Muitas vezes os textos de cumprimento das Escrituras são introduzidos pela


fórmula: “para que se cumprisse…” ou “assim/então se cumpriu…” Isso dá a
impressão de que as antigas Escrituras são uma espécie de programa
preestabelecido, que se deve cumprir com Jesus de Nazaré. Na realidade,
porém, trata-se do reconhecimento posterior de um texto antigo que, de certa
maneira, pode significar aquilo que com Jesus veio a acontecer. Dois trechos do
Antigo Testamento, ambos do profeta Isaías, são muito caros aos autores do
Novo Testamento nesse sentido: o texto do Servo Sofredor (Is 52,13-53,12) e o
da incredulidade do povo (Is 6,9-10). Vendo o que aconteceu com Jesus, os
autores do Novo Testamento reconheceram que este era o sentido final do fato
paradoxal narrado em Is 52-53: um justo massacrado e rebaixado, que carrega
sobre si o pecado do povo, mas no fim é exaltado por Deus. A vida, morte e
ressurreição de Jesus são vistas como o “sentido pleno” desse acontecimento.
Esse “sentido pleno” (= plenificado, ou seja, de significado maior que o
originário) é o sentido “espiritual”, reconhecido à luz do Espírito (mas não
“espiritualizante”, no sentido de “levantando voo”…).

O mesmo vale para a citação de Is 6,9-10 a respeito da incredulidade do povo


diante da palavra de Jesus (Mt 13,14s; Jo 12,39-41) ou dos seus mensageiros (At
28,25-27). O que já aconteceu ao maior profeta do Antigo Testamento tanto
mais se realiza em tomo de Jesus: a incredulidade está descontada no projeto de
Deus. Não desmancha o projeto, mas já está incluída na conta… Assim, quando
essas citações são introduzidas por “para que se cumprisse” ou algo semelhante,
não se deve pensar numa predestinação por parte de Deus, mas numa lógica
divina que em Jesus se revela em plenitude. Deus não faz sua obra com a
finalidade de os destinatários ficarem cegos e endurecidos, mas, quando isso
acontece, cumpre-se uma lógica que já apareceu anteriormente. Certas Bíblias
traduzem por “de modo que se cumpriu”, pois no pensamento semítico, mesmo
quando expresso em grego, a distinção entre finalidade (“para que”) e
consequência (“de modo que”) é muito tênue (cf. a forma hifil do verbo
hebraico).

2) O segundo problema relacionado às citações das Escrituras no Novo


Testamento é que o sentido que elas dão ao Antigo Testamento nem sempre
é aquele que a exegese aponta como o sentido originário. Tendo em vista o que
dissemos acima, isso não importa. O autor do Novo Testamento não está
explicando o Antigo, certamente não de modo histórico-crítico, mas quer
mostrar que o Novo Testamento cumpre uma lógica de Deus que, agora, pode
ser reconhecida no Antigo. A interpretação do texto antigo é assim
“acomodada”, mas isso não tira seu valor como sinal do agir de Deus. O sentido
da citação “do Egito chamei o meu filho”, em Mt 2,15, é muito distante daquilo
que historicamente Os 11,1 quis dizer, mas como sinal da atuação de Deus na
história de Jesus é válido: Deus reverteu o refúgio de Jacó no Egito em êxodo de
libertação e, de modo semelhante, agiu em favor do menino Jesus.

De passagem, digamos algo sobre a “profecia”. Geralmente esse termo é


entendido como futurologia. Ora, profeta significa “porta-voz”, pouco importa
se a respeito do futuro, do presente ou do passado. Enquanto os profetas eram
uma instituição com peso político em Israel (antes do exílio babilônico), suas
palavras eram geralmente comentários críticos — em nome de Deus — a
respeito do presente ou do futuro imediato, dos projetos dos reis etc. Mais tarde,
quando o sentido imediato não era mais relevante, em algumas palavras se
encontrou um sentido para o futuro, sobretudo em relação ao Messias ou
Salvador que devia chegar. A partir daí o termo profecia começou a significar
anúncio do futuro. Muitas vezes esse valor futuro só foi reconhecido depois que
aconteceu, no “cumprimento das Escrituras” que acabamos de comentar.

6.5. Bem-aventuranças, “mal-aventuranças”, increpações

Também para compreender as bem-aventuranças é útil conhecer o gênero


literário. Elas confirmam que tal pessoa está em boa posição diante de Deus, no
caminho reto e feliz, abençoado por Deus com prosperidade (hebr. esher).
Assim se entende que as bem-aventuranças não ensinam alguma virtude (por
exemplo, a pobreza), mas prometem o bem-estar de Deus a pessoas em tal
situação, o que pode acontecer exatamente pela mudança da situação (no Reino
de Deus os pobres não são mais infelizes, porque reinará a fraternidade). O
contrário disso são as increpações, advertências duras, eventualmente
introduzidas por “ai”, como nas “mal-aventuranças” que contrabalançam as
bem-aventuranças, em Lc 6,24-26. Não são “danações”, mas advertências para
que o destinatário mude de rumo.

6.6. Os “evangelhos da infância”

Uma palavra sobre os “evangelhos da infância de Jesus”, como são chamados os


capítulos iniciais de Mt e de Lc (Mt 1-2 e Lc 1-2). Além de pertencerem a um
gênero que está longe da mera historicidade exterior, esses textos foram ainda
sobrecarregados, na memória popular, com elementos apócrifos (por exemplo,
os nomes dos reis magos). Aliás, na religiosidade popular muita coisa apócrifa é
tida por evangelho!
Ora, Mt 1-2 e Lc 1-2 usam esse gênero de modo bastante diversificado. Em Mt, o
essencial é o cumprimento da expectativa do Messias, que pertence à linhagem
de Davi mediante José (Mt 1,1-17), mas é fruto da obra do Espírito de Deus em
Maria (1,18-25). E nele condensa-se, sendo ao mesmo tempo superada, a
história do povo de Israel (Mt2). É narrativa altamente teológica. Também Lc 1-
2 é narrativa teológica, baseada nos mesmos elementos da tradição cristã (o
nascimento do Messias de Maria virgem). Mas a elaboração é bem diferente da
de Mt 1-2. Lc cria um contraste entre o nascimento de João Batista, que
pertence à antiga “economia”, e o de Jesus, que inaugura a nova “economia”.
Essas histórias, além de transmitirem o dado tradicional do nascimento
virginal, ensinam, portanto, toda uma compreensão teológica do acontecimento
de Jesus Cristo. Por isso mesmo são chamados de “evangelhos” da infância de
Jesus. Prefiguram o evangelho do Jesus adulto.

7. Atitudes pastorais

Como lidar, na pastoral, com as questões ligadas aos gêneros literários das
Escrituras?

7.1. A pastoral dos “fiéis assíduos”

As pessoas que frequentam assiduamente a liturgia dominical são confrontadas


com todos os gêneros literários que aparecem no Novo Testamento e com
muitos do Antigo. Exatamente essa diversidade facilita o problema. Com a ajuda
de uma homilética adequada, os fiéis descobrem por si mesmos a variedade e
“elasticidade” da linguagem bíblica.

7.2. A religiosidade popular

Na religiosidade popular sobrevivem muitas interpretações literalistas de


trechos que, pelo gênero literário, deveriam ser entendidos de outra maneira.
Ora, não se deve ferir a sensibilidade do povo, especialmente a dos mais
simples, que são os preferidos de Deus. Pensamos que a maneira mais indicada
para libertar as pessoas de crenças desnecessárias — e que um dia poderão
causar descrença geral — é deixar transparecer, delicadamente, a relatividade
dessas expressões literárias acolhidas na religiosidade popular e apontar com
toda a força aquilo que é essencial. Isso será mais fácil onde existir um ambiente
comunitário em que as pessoas se deixem carregar, por assim dizer, pela
compreensão da fé que reina na comunidade como tal.
7.3. Os questionadores profissionais

Existe um público especializado em questionar sistematicamente o que se faz e


se diz na Igreja. Quem age assim encontra um alimento muito apreciado nos
gêneros mais misteriosos, no gênero apocalíptico, nas parábolas, nas histórias
da infância de Jesus… — exatamente os trechos preferidos pela religiosidade
popular. Convém conscientizar esses questionadores a respeito de si mesmos.
Por que questionam? Será porque procuram verdadeiramente compreender
melhor sua fé ou porque querem justificar sua falta de prática, sua aversão à
Igreja — algo muito comum entre os varões brasileiros influenciados até hoje
pelo Iluminismo e pela maçonaria do século XVIII, tempo de Voltaire e do
Marquês de Pombal, tempo do anticlericalismo provocado pelo próprio clero?
Conscientize-se a pessoa da verdadeira razão de seu ceticismo obsessivo. E não
se deve esquecer: em certos casos, vale a antiga sabedoria que reza que um tolo
pode fazer mais perguntas do que dez sábios conseguem responder.

***
A verdade da Bíblia não está necessariamente naquilo que o texto diz
gramaticalmente, mas na realidade escondida para a qual ele aponta ou no
efeito que ele produz.

Você também pode gostar