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No mesmo sentido, repete o Concílio Vaticano II: “Para descobrir a intenção dos
hagiógrafos devem-se levar em conta, entre outras coisas, também os ‘gêneros
literários’” (Dei Verbum, nº 12). E o documento da Pontifícia Comissão Bíblica,
de 1994, insiste: “Segundo a Divino Afflante Spiritu a procura do
sentido literal da Escritura é uma tarefa essencial da exegese e, para cumprir
esta tarefa, é necessário determinar o gênero literário dos textos […], o que se
realiza com a ajuda do método histórico-crítico” (A Interpretação da Bíblia na
Igreja, I, A, 4). Portanto, considerar os gêneros literários na explicação da Bíblia
não é nenhuma impiedade ou falta de fé.
Todo o mundo sabe que o mesmo fato é descrito de modo diferente no relato do
jornalista, na folha de ocorrência policial e na fofoca das comadres da rua. São
três “gêneros literários” diferentes, e quem entende das coisas percebe
imediatamente qual a versão do jornalista, do guarda de trânsito ou das
comadres. Assim também na Bíblia. Um texto pode ser concebido conforme
padrões diversos, em função de seu ambiente de origem e do uso que dele será
feito: liturgia, ensino, crônica oficial etc. Os gêneros mais “genéricos” são a
prosa, a poesia, o drama ou teatro; ou, sob outro ângulo, a narrativa e o
discurso. E daí em diante podem-se subdistinguir centenas de variedades
subalternas. Deve-se associar à questão do gênero literário também a da
“forma” literária, que se refere às formulações específicas presentes nos textos
bíblicos em função de determinadas finalidades, especialmente às das
comunidades cristãs que se exprimem no Novo Testamento (por exemplo, as
fórmulas do querigma, as fórmulas de profissão da fé, os apotegmas, as
parábolas).
Outro exemplo: a narrativa didática. Gn 2-3, a história de Adão e Eva, que nos
ensina qual é a situação e a vocação do ser humano. Para expressar a
universalidade, recorre-se ao gênero literário da “narrativa das origens”
(próximo do “mito”, no sentido científico desse termo). Pois quando se fala das
origens, ninguém escapa! Os nomes são simbólicos: Adão faz pensar
em adamá, “terra”, e Eva em hawah, “viver”. Eles vivem como príncipes num
“paraíso” (= jardim palacial). Mas está aí também a possibilidade do pecado,
apresentando-se na forma da serpente, e os dois se comprometem com ele por
quererem ser como deuses… Assim é todo ser humano. Só quem não percebe,
pelo menos intuitivamente, o gênero literário dessa história pode pensar que ela
faz parte da História Natural!
É preciso saber com que tipo de literatura se está lidando. E lembremos que
a Divino Afflante Spiritu diz que a consideração do gênero literário é necessária
para conhecer o sentido literal do texto, ou seja, o sentido que o autor
literalmente quis expressar. O autor de Gn 2-3 quis literalmente expressar um
sentido didático. O de Jó quis literalmente encenar, como num teatro, um
diálogo entre três pontos de vista em conflito. Individuar o gênero literário —
por exemplo, o gênero simbólico — não significa inventar um sentido simbólico
ao gosto do leitor ou do exegeta, mas apontar o modo como o autor quis ser
entendido. Assim, conforme o caso, determinado sentido simbólico pode ser o
sentido literal — literalmente o que o autor quis dizer. Ao contrário, ler a
história de Adão e Eva como um fato da História Natural, sem levar em conta o
simbolismo usado pelo autor, é uma traição da verdade bíblica!
O gênero literário pode nos ensinar algo sobre a situação ou o contexto da vida
que deu origem a esse modo de falar. É pouco provável, por exemplo, que um
texto irônico tenha surgido numa liturgia de louvor a Deus! É típico de alguém
que quer levar seu público a refletir: por exemplo, os profetas que acusam a
falsa segurança do povo, ou os professores — sábios, como diz a Bíblia — que
querem ensinar seus ouvintes a pensar um pouquinho mais. O próprio gênero
literário fornece um indício, ainda que impreciso, sobre a situação em que o
texto foi formulado.
A relação com o contexto vital da elaboração dos textos foi estudada sobretudo
no que diz respeito ao Novo Testamento, no método conhecido pelo vocábulo
alemão Formgeschichte — mal traduzido como “crítica das formas”; o certo
seria: “estudo crítico das formas/fórmulas literárias”. Nesse campo, o método
consegue recuar até a tradição oral que precedeu o texto escrito dos Evangelhos.
Percebeu-se que certas maneiras de formular a mensagem correspondiam a
intenções ou métodos de pregação ou de transmissão das primeiras
comunidades cristãs. As necessidades da comunidade forneceram, por assim
dizer, o molde em que a tradição foi fundida. Assim, certas palavras em que
Jesus é proclamado “o Senhor” provavelmente foram fundidas nesse molde no
contexto da prática batismal das primeiras comunidades: o batismo em nome de
Jesus, sob proclamação da fé em Jesus como “o Senhor”. As parábolas
acompanhadas de explicação, em Mc 4 e Mt 13 (o semeador, o joio), parecem
refletir a catequese das comunidades cristãs, o que não contradiz que a
parábola, na sua original forma simples, seja de Jesus.
Isso, em certo sentido, vale para toda literatura. As letras são meras referências
à realidade que o leitor ou ouvinte deve descobrir por sua própria cabeça. A letra
não é verdadeira em si, mas aponta para a verdade fora de si; ou ainda, ela é
verdadeira se aponta no sentido certo — ainda que seja ironicamente, fazendo o
leitor/ouvinte refletir. Assim, em certos gêneros literários, não importa a
exatidão material daquilo que é dito, mas a direção certa para a qual aponta.
Exageros, insultos, expressões vingativas, elementos mitológicos… Encontramos
de tudo nos diversos gêneros literários, e, se tomássemos tudo isso ao pé da
letra, Deus deveria esmagar os filhos dos inimigos contra a muralha (Sl 137,9) e
deveríamos cortar o pé ou a mão que causasse escândalo (Mt 5,29-30).
Não é raro alguém perguntar: então tudo é gênero literário? E a vida de Jesus, e
sua ressurreição, como ficam?
Não se pode atribuir tudo ao gênero literário. Este diz respeito à forma na qual o
texto foi moldado. Antes dessa “formatação”, porém, existe uma matéria, um
fato ou pensamento à procura da forma adequada para ser transmitido. É
possível que em função dessa forma sejam acrescentados alguns detalhes, mas a
substância é anterior à forma de transmissão. É preciso recuar para lá do texto,
procurar atrás do texto. Pode-se dizer que chamar Jesus de “o Senhor” é uma
forma das primeiras comunidades. Entretanto, por trás disso se encontra a
realidade substancial: algo deu ensejo para que Jesus fosse chamado assim.
Onde há fumaça, há fogo. Isso se aplica à questão da ressurreição. A maneira de
contá-la — esse ou aquele tipo de aparição, a constatação de um sepulcro vazio
— pode refletir o modo de proclamação das primeiras comunidades cristãs. Mas
quem pôs na cabeça dos primeiros cristãos que proclamassem coisa tão incrível
como é a ressurreição de um crucificado, “escândalo para os judeus e loucura
para os pagãos” (1Cor 1,23)? Se fosse para ter sucesso na pregação, poderiam ter
inventado algo mais acreditável. Olhem só o que aconteceu com Paulo, quando
de sua pregação no Areópago em Atenas (At 17,32)!
Não pretendemos aqui abordar todos os gêneros literários, nem sequer os mais
importantes, mas apenas os que geralmente provocam dificuldades na pastoral,
em nível de catequese, pregação e leitura bíblica.
O Reino exige que nos preparemos: é como um administrador que, vendo sua
função em perigo, manda os endividados falsificarem a promissória, para que,
depois de perder a função, ele tenha amigos (Lc 16,1-8)… Essa parábola, que usa
como imagem a duvidosa esperteza comercial dos orientais, faz intuir uma coisa
boa: a sabedoria que consiste em preparar-se. Os detalhes descritivos, a
desonestidade, não fazem parte do ensinamento; a perspicácia que se revela no
comportamento desonesto de um “filho das trevas” pode, de repente, ser uma
lição para nós! Na parábola das dez jovens que formam o séquito para o noivo
que chega no meio da noite (Mt 25,1-13), a recusa das “sábias” em repartir o
óleo com as “tolas” pode parecer egoísmo, mas não é esse o cerne da parábola; o
ponto central é que umas estão atentas e preparadas, enquanto outras,
negligentes e despreparadas, e aí está sua verdade.
7. Atitudes pastorais
Como lidar, na pastoral, com as questões ligadas aos gêneros literários das
Escrituras?
***
A verdade da Bíblia não está necessariamente naquilo que o texto diz
gramaticalmente, mas na realidade escondida para a qual ele aponta ou no
efeito que ele produz.