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Apresentação
Nesta aula, demonstraremos as influências do ponto de vista judaico-cristão – dando relevância às colaborações de Paulo
de Tarso no âmbito da linguagem bíblica – no pensamento dos filósofos Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino.
Agostinho será analisado de forma mais detalhada, pois ele, de fato, trouxe algumas inovações ao pensamento linguístico
medieval ao se posicionar em favor do modelo representacionista de linguagem, sem deixar, porém, de reconhecer as
diversas metáforas do Texto Sagrado e suas funções variadas.
Também avaliaremos o discurso denominado apofático não como uma novidade, pois trata-se de um tema recorrente já
na filosofia pré-socrática, mas como algo de suma importância no ambiente filosófico cristão da Idade Média. No entanto,
o ponto nevrálgico desta aula localiza-se na discussão sobre os princípios agostinianos de interpretação do Texto
Sagrado: o critério da caridade como ferramenta de exegese bíblica e o conhecimento de línguas como fator essencial
para a tradução, a leitura e o conhecimento da linguagem bíblica. São as características de um filósofo considerado por
muitos estudiosos da linguagem o pai da Semiótica. Ilustraremos ainda como Santo Tomás de Aquino divergia de seus
predecessores, pois, para ele, nem mesmo as metáforas dão conta do universo desconhecido da linguagem divina.
Objetivos
Identificar nos pensamentos de Platão e Aristóteles o paradigma representacionista de linguagem a partir da relação
com os modelos de estudos da linguagem nos dias de hoje;
Relacionar o construto linguístico erigido por Paulo de Tarso com a filosofia linguística de Santo Agostinho;
Discurso apofático
Você já ouviu falar em uma espécie de discurso chamado de discurso apofático?
Saiba mais
Saiba quais filósofos1 tratavam do discurso apofático.
Discurso apofático é aquele formado por situações em que nada pode ser dito sobre uma
experiência2 , um ser ou um estado.
Santo Agostinho
No que concerne à interpretação das letras e dos signos convencionais3 , dentro da Bíblia, temos a sólida contribuição de
Santo Agostinho. Sua importância é muito grande tanto no campo metafórico quanto no apofático; todavia, para que possamos
estabelecer uma ponte com as aulas anteriores (e até para relembrar alguns pontos que você já viu), abordaremos a temática
desta aula sob o ponto de vista da seguinte tensão:
Representação x práxis
Vejamos algumas abordagens de Santo Agostinho
Santo Agostinho comentava sobre a presença de signos próprios e metafóricos na Bíblia: aqueles que fossem literais
gerariam no Texto Sagrado sentenças de sentido certo; os metafóricos, de sentido obscuro. (AGOSTINHO, 1991, Livro II, §
7º)
Sentenças com sentido determinado eram uma consequência da utilização de signos próprios empregados para designar
objetos aos quais eles foram convencionados, ou seja, quando as palavras estivessem adequadamente utilizadas
conforme seu sistema fixo de representação. Ao falar dos signos metafóricos, o filósofo utilizava a mesma definição de
Aristóteles em Arte poética, confirmando seu alinhamento com o paradigma linguístico representacionista (estudado por
você na primeira na aula deste curso).
A fim de evitar uma confusão na hora de interpretar os Textos Sagrados – para muitos, natural – devido ao excessivo
número de metáforas nas Escrituras, Santo Agostinho alertava sobre a necessidade de se conhecer as línguas bíblicas
(hebraico e grego) como uma solução dos erros de tradução – ou mesmo de interpretação. Segundo o filósofo, para se
conhecer o sentido exato da palavra, era preciso recorrer às línguas originárias ou, então, consultar as versões dos que se
prenderam mais à letra, não por serem suficientes, mas por revelarem a verdade literal e, portanto, seu significado.
Apesar de Agostinho, mais à frente (1991, Livro II, § 22º), chegar a dizer que a confrontação com esses tradutores que se
verteram ao pé da letra era inútil na busca do sentido das Escrituras, ele permanecia intimamente ligado ao ponto de vista
aristotélico sobre a linguagem.
Assim como defendia Aristóteles, Santo Agostinho acreditava que a única forma de se compreender as metáforas que,
por vezes, obscurecem o texto bíblico é conhecer a natureza real das coisas, ou seja, dos signos próprios, portadores
daquele significado emprestado aos signos metafóricos.
A sua intensa luta para desatar os nós da ambiguidade no Texto Sagrado demonstrava a preocupação que ocupava sua
mente: não permitir que a palavra fugisse de sua domesticação usual (aquele significado próprio, como vimos na obra
Crátilo, de Platão).
Ele elaborou técnicas para resolver esse problema, como o recurso às regras da fé e à Igreja no Livro III de sua obra A
doutrina cristã:
Quando for o sentido próprio que torna ambígua a Escritura, a primeira coisa a ser feita é verificar se não estamos
pontuando ou pronunciando mal. [...] Que ele consulte as regras da fé, adquiridas em outras passagens mais claras da
Escritura. Ou então que recorra à autoridade da Igreja. [...] Mas no caso de dois sentidos, ou todos eles, caso forem muitos,
resultarem ambíguos, sem nos afastarmos da fé, resta-nos consultar o contexto anterior e o seguinte à passagem onde
está a ambiguidade. (AGOSTINHO, 1991, Livro III, § 2º).
Princípios interpretativos
Imbuído pelo pensamento filosófico vigente, Santo Agostinho, em nome dessa domesticação conceitual da palavra,
estabeleceu princípios interpretativos em A doutrina Cristã:
Critério de julgamento: A caridade vence a concupiscência; (AGOSTINHO, 1991, Livro III, § 16º).
Segundo princípio: Verificar com que intenção é realizada a ação. (AGOSTINHO, 1991, Livro III, § 18º).
“Ignoro o que escolher; porque de ambos os lados vejo-me solicitado: tenho veemente desejo de partir e estar com
Cristo, porque isto é em muito o melhor, mas permanecer na carne é necessário para vós.” (Filipenses, 1, 23,24).
Caso confrontemos a versão latina do Texto Sagrado – à qual Santo Agostinho tinha acesso – com a Bíblia
Septuaginta grega, encontraremos a seguinte passagem: “Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e ir estar com
Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa”. (Filipenses, 1,
23,24) Isso retrata exatamente o que o próprio apóstolo mencionara na sua carta aos romanos: “Realmente não
consigo entender o que faço; pois não pratico o que quero, mas faço o que detesto”. (Romanos, 7,15).
Agostinho
Agostinho atribui os erros na tradução à percepção de que Paulo vivia um dilema entre a vontade e o dever. Ele tentou
consertar esse sentido – para ele, pouco construtivo – advindo da leitura da Escritura, direcionando-o para uma moral
cristã, sempre pautada pela caridade e pelo amor a Deus, finalidades inequívocas de todas as passagens do Texto
Sagrado.
Arendt
Nos escritos de Hanna Arendt (1906–1975), ao contrário de Agostinho, ela reforça esse dilema vivido pelo apóstolo.
A descoberta do apóstolo Paulo, que ele descreve com muitos detalhes na epístola aos romanos (escrita entre 54 e 58
d.C.), envolve novamente um dois-em-um; mas esses dois não são amigos ou parceiros; estão em permanente luta.
Precisamente quando ele “quer fazer o correto (to kalon)”, descobre que “o mal está ali à mão” (7:21), pois ele “não
conheceria a concupiscência se a lei não dissesse: ‘Não cobiçarás’”. Portanto, foi a ordem da lei que ocasionou “toda a
concupiscência. Porque sem a lei o pecado estava morto” (7:7,8). [...] E o ponto central do problema é que esse conflito
interno jamais pode ser solucionado, seja em favor da obediência à lei, seja da submissão ao pecado. (ARENDT, 2000,
p. 234).
Arendt
Sentido Figurado e Sentido Próprio
Saiba como Agostinho lidava com o sentido figurado e com o sentido próprio, sem correr o risco de tomar o que fosse literal
como figurado e vice-versa, mantendo-se domesticadas, primordialmente, as verdades intrínsecas às sentenças bíblicas:
Sentido figurado
Com efeito, para Agostinho, se uma palavra ou parte do texto bíblico indicasse algum significado que não conduzisse à
caridade e à moral cristã, ela deveria ser tomada figuradamente.
Sentido próprio
No entanto, uma palavra ou parte do texto bíblico evocasse a caridade e a moral cristã, devíamos tomá-la em sentido
próprio: “Tudo o que na palavra divina não puder se referir ao sentido próprio, nem à honestidade dos costumes, nem à
verdade da fé, está dito que devemos tomar em sentido figurado”. (AGOSTINHO, 1991, Livro III, § 14º)
Ainda sobre as ambiguidades, Agostinho (1991, Livro III, § 8º) assim concluía sua fórmula: quando tomadas em sentido próprio,
as palavras raramente podem encerrar as ambiguidades, a não ser que consideremos o contexto em que elas aparecem por:
Confrontação de tradutores;
Vejamos como, no quinto capítulo de A doutrina cristã, Santo Agostinho parece se alinhar ao pensamento de Paulo ao
desenvolver um tópico que buscava resolver ambiguidades nos textos tomados em sentido figurado.
Curiosamente, era exatamente isso que a concepção clássica de linguagem proporcionava àqueles que assim a
concebiam.
Sobre a lei hebraica, à qual Paulo estava bastante ligado em suas críticas, Santo Agostinho ratificava o pensamento do
apóstolo ao falar sobre a servidão dos israelitas a signos úteis. (AGOSTINHO, 1991, Livro III, § 10º) Há por parte de
ambos a certeza de que o povo hebreu tomou os signos da realidade espiritual sem que pudessem compreender o que
eles representavam, fazendo-o apenas pela certeza de que essa servidão agradava ao Deus único de Israel. Eles, de
fato, cumpriram sua missão, pois a finalidade de tais signos, segundo Agostinho, era uma imposição temporária aos
servos de Deus a fim de sujeitá-los ao culto do monoteísmo. No entanto, eles, ainda assim, continuavam a venerar
esses signos temporários, não observando a dádiva que Deus lhes havia concedido: a encarnação de Seu Filho
unigênito, representando o corte temporal e espacial com toda e qualquer funcionalidade da velha letra. Daí a recusa
de muitos judeus em aceitar o espírito que vivifica, o de Cristo, pois Ele desprezava a parte carnal que habitava nos
mandamentos da Torá. Paulo, assim como Agostinho, discorreu sobre o dever de exercitar o espírito numa
compreensão espiritual das coisas: “Não foi para os submeter no futuro a outros sinais – úteis que fossem –, mas
antes para exercitar o espírito deles numa compreensão espiritual”. (AGOSTINHO, 1991, Livro III, § 12º).
Exaltar o triunfo do reino da caridade Interpretar tudo pelo critério da caridade
Caso nos deparemos com alguma expressão dentro das Escrituras que
ordene um delito ou proíba uma benevolência, ela encontra-se em sentido
figurado; por outro lado, se ela nos ordena uma benevolência ou nos proíbe
uma ignomínia, está em seu sentido próprio. (AGOSTINHO, 1991, Livro III, §
24º).
Sob a ótica agostiniana, então, o próprio apóstolo Paulo foi vítima dos seus desenganos interpretativos dos Textos
Sagrados, pois, ao tomar conhecimento dos ordenamentos divinos pela lei, viu-se imerso na concupiscência: “[...] pois eu
não teria conhecido a concupiscência se a lei não tivesse dito: ‘Não cobiçarás.’”. (Romanos, 7,7).
Será que faltou a Paulo o critério da caridade ao ler os preceitos divinos? Ou será que ele, como hebreu e conhecedor das
práticas do seu povo, sabia bem que um preceito envelhecido os afastava cada vez mais de Deus? Afinal, “[...] o preceito,
dado para a vida, produziu a morte”, aproximando-os do “bezerro de ouro”. (Romanos, 7:10; Êxodo, 32,4)
Santo Agostinho se viu necessariamente levado em seus escritos a abordar questões como a pluralidade de sentidos literais na
Escritura – desde que fossem adotados os critérios já expostos, conduzindo a uma única verdade. Dessa forma, não haveria
perigo em se adotar qualquer um desses sentidos.
Ao falar sobre as metáforas no texto bíblico foi um tanto diverso do trilhado por Agostinho, pois ele admitia a linguagem
metafórica sobre Deus, embora criticasse, ao mesmo tempo, uma teologia simbolista, reconhecendo o estatuto científico
da Teologia pelo uso analógico do conceito e da linguagem: “precisamente porque d’Ele é mais o que não sabemos do que
o que sabemos, e a metáfora, por sua carga imaginativo-afetiva sensível, mostra mais claramente a inadequação de
nossa linguagem humana com respeito a Deus”. (AQUINO, 1973, I, q. I, a IX, obj. III).
O filósofo reconhecia que convém às Escrituras nos transmitir o conhecimento divino por intermédio das comparações,
que, segundo ele, são próprias dos homens.
“[...] e, do mesmo modo, o nome leão, aplicado a Deus, não significa senão que Deus age fortemente, nas suas obras,
como o leão nas suas. Por onde é claro que tais nomes, aplicados a Deus, não podem ser definidos senão por
comparação com o sentido que têm quando atribuído às criaturas.” (AQUINO, 1973, q. XIII, a. VI, sol. I).
Ideias em comum com Agostinho
O que se conhece pela metáfora não pode ser totalmente concebido pelo intelecto.
Para Tomás de Aquino, a indescritibilidade e o anonimato são essenciais a Deus. Ele não é algo de que teremos ciência ao
fim de uma busca: portanto, nomes como “bom”, “sábio” e “verdadeiro” apenas significam que, aplicados à perfeição de
Deus, representam algo além de nosso entendimento. Os nomes — bom, sábio e semelhantes — são impostos como
derivados das perfeições que procedem de Deus para as criaturas. São, porém, aplicados para significar não a natureza
divina, mas as perfeições mesmas, absolutamente falando; e, portanto, mesmo na verdade das coisas, são comunicáveis
a muitos. Mas o nome de Deus é imposto como tendo a sua origem na operação própria a Deus — e que nós
experimentamos continuamente — para significar a natureza divina. (AQUINO, 1973, q. XIII, a. 9, obj. 3).
As analogias de Santo Tomás de Aquino davam apenas a impressão de que Deus se tornaria palpável por meio delas,
embora somente Ele pudesse tornar uma analogia dotada de sentido em sua infinitude, haja vista nossas limitações. Seus
princípios não podem por nós ser conhecidos, mas somente por Ele e por aqueles que o contemplaram em uma
beatificada visão conforme sua sacra doutrina.
Em suma, a única coisa que podemos saber de Deus é que ele excede toda compreensão. Isso, de
certa forma, retoma o que foi dito no início da aula: trata-se do discurso apofático.
Atividade
1 - Podemos afirmar que uma das inovações de Santo Agostinho, ao falar das interpretações do texto bíblico, é:
a) Ele avança na perspectiva de uma linguagem sob o ponto de vista pragmático, abandonando a abordagem clássica representacionista.
b) Ele adota um critério para que a leitura e a interpretação do cânone sagrado sejam feitas de forma adequada: o princípio da caridade. Se
pautados por esse princípio, os signos ficarão claros e não haverá ambiguidade.
c) Ele apresenta a possibilidade de se falar de Deus somente por metáforas, dispensando as palavras em seu sentido literal.
d) Santo Agostinho não acredita no gênero apofático, e sim que Deus pode ser falado e explicado com muita facilidade por qualquer
pessoa, seja ela estudada ou não.
e) Nenhuma das respostas acima.
2 - Acerca do gênero discursivo denominado apofático (ou discurso negativo), qual frase de Santo Agostinho melhor define este
ato?
a) “Não se pode falar de Deus, mas ai daqueles que assim não o fizerem!” (Confissões, Livro XXI, § 3º).
b) “A caridade é o critério mais bem-sucedido para se interpretar as Escrituras.” (A doutrina cristã, Livro XI, § 6º).
c) “O conhecimento das línguas, especialmente a grega e a hebraica, fornecem subsídio teórico para a compreensão dos signos próprios
nas Escrituras.” (A doutrina cristã, Livro XX, § 4º).
d) Todas as afirmativas acima estão corretas.
e) Nenhuma das afirmativas acima está correta.
3 - A grande característica da linguagem, ao descrever a natureza de Deus, segundo Santo Tomás de Aquino, é:
Notas
Filósofos1
Diversos filósofos, como Parmênides, Nicolau de Cusa, Platão e Paulo de Tarso (estudado por nós na aula passada)
1. Em uma clássica passagem da segunda carta de Paulo aos coríntios, o apóstolo afirma ter subido ao terceiro céu em
espírito, não podendo dizer mais nada sobre o ocorrido por se tratar de uma experiência inexprimível em palavras
humanas. Vimos na aula passada o ponto de vista cabalístico da natureza divina: não se pode conhecer a Deus, a não ser
pelas letras da Torá. Ali está a parte reconhecível do Criador.
2. Filósofo do período medieval (354 d.C.-430 d.C.), Santo Agostinho abordou esse tipo de linguagem em suas obras A
doutrina cristã e Confissões, nas quais resumiu o complexo ofício daqueles que buscavam, pela linguagem, um
conhecimento sobre Deus: “Não se pode falar de Deus, mas ai daqueles que assim não o fizerem!”. (AGOSTINHO, 1988,
Livro XXI, § 3º)
Nomenclatura dada por Santo Agostinho aos signos que manifestassem as afecções de nossa alma, como o pensamento e as
sensações, alinhando-se à teoria aristotélica dos sons da fala como representações de nossas paixões.
Referências
AGOSTINHO, S. A doutrina cristã. São Paulo: Edições Paulinas, 1991.
FRANKE, W. On what cannot be said. v. I, II. Indiana: University of Notre Dame, 2007.
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