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Filosofia da linguagem

Aula 8: Linguagem e intersubjetividade

Apresentação
Certamente a frase “nem Freud explica” deve ser de seu conhecimento. A partir da aula de hoje, reconheceremos que, na
verdade, a teoria do pai da Psicanálise explicará muitas coisas cujas vertentes psicanalíticas mais tradicionais não deram
conta. Trata-se do primado da ciência da psique, que coloca a linguagem – em suas mais diversas facetas – como o
ponto central da análise científica.

A abordagem psicanalítica está na vanguarda do estudo da fala como propriedade e resultado de inúmeros
procedimentos do aparelho psíquico. Segundo Sigmund Freud, os atos falhos, os esquecimentos e algumas lembranças
estranhas reverberam de maneira aparentemente aleatória em nossa maneira de falar graças a muitas causas e diversos
fundamentos. Esquematizaremos nesta aula suas características, exemplificando os casos mais emblemáticos.
Objetivos
Identificar no pensamento de Freud os pontos inovadores da filosofia da linguagem;

Relacionar as teorias psicanalíticas com os pensamentos linguísticos vigentes à época de Freud;

Reconhecer no legado da Psicanálise uma abordagem revolucionária sobre os estudos da linguagem.

Primeiras palavras

Sigmund Freud (1856-1939), em consonância com o estudo profícuo da


linguagem, foi buscar no cotidiano uma renovação do sentido da palavra
muito além do representacional, que foi visto muitas vezes neste curso. A
Psicanálise, portanto, pode fornecer o material teórico necessário para
tentarmos desvendar certos enigmas sobre a língua e a fala, para cujos
mistérios a Linguística ainda não possui respostas.

Freud buscou as bases para o desenvolvimento da nova ciência psicanalítica nos estudos linguísticos. Ele os explorou com
maestria e cuidado extraordinários a fim de adentrar o – até então – inconsciente do ser humano, dando, assim, uma forma
significativa ao que até então se considerava indizível e completamente desconhecido.

Às suas pesquisas sobre o que sonhamos, o psicanalista associava estudos filológicos das raízes mais antigas de nossa
história. O próprio estudo da interpretação onírica 1 foi preponderante no trabalho da Psicanálise, haja vista que, para seu
disparador psíquico, tal linguagem pode ser encarada como o método pelo qual a atividade mental inconsciente se expressa.

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Atenção
Sonhos são fundamentos reveladores dos traumas, desvelando informações linguísticas que as linguagens verbal e escrita não
são capazes de exprimir por conta da seguinte ação de nosso aparelho psíquico: evitar o desprazer.

Por se tratar exatamente do trabalho de tradução de um método estranho de expressão para outro que seja familiar, Sigmund
Freud desenvolveu teorias sobre temas cotidianos para justamente evidenciar o estranho (unheimlich) por trás do inconsciente.
Para isso, usou a palavra de forma a fim de descobrir seu sentido a transbordar, embora as ciências tradicionais do século XIX
não o conseguissem enxergar.

Pretendemos contextualizar a obra linguística e cientificamente revolucionária deste grande pensador da palavra como
reveladora de nossa própria essência escondida em algum lugar por um motivo desconhecido há tempos. Para auxiliar a sua
compreensão sobre a Psicanálise nesta aula, faremos referências a alguns trabalhos importantes tanto de Sigmund Freud
quanto outros publicados por Jacques Derrida e Ferdinand de Saussure.

Exemplo
Destacamos os seguintes trabalhos de Freud: Uma nota sobre o bloco mágico, O inconsciente e A psicopatologia da vida cotidiana.

O legado que Freud trouxe aos estudos da ciência da


linguagem é tão revolucionário como o é para a própria
Psicologia, já que a Psicanálise desvenda o envoltório
simbólico das manifestações humanas ao dividir a mente
humana em três partes:

Todos eles são o resultado das tensões do inconsciente em contraste


com as castrações da consciência.

Freud descobrirá que a cura para diversas doenças


psíquicas (e até físicas) está na própria linguagem, no ato de
deixar falar, pois, quanto mais o ser humano se expressa e
põe para fora as suas melancolias, mais se aproxima da
causa das suas patologias.

É o método talking cure, no qual o divã se torna o laboratório


de análise da fala, cuja expressão pode assumir diferentes
formas.

Exemplo: Interpretar sonhos e contar histórias pretéritas.


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O interesse filológico da Psicanálise


N’O interesse científico da Psicanálise, verificamos, na segunda parte da obra, um capítulo dedicado ao interesse dela
para as ciências não psicológicas. Freud destacou nesta obra um novo tipo de linguagem (onírica) que será abordado
mais precisamente n’A interpretação dos sonhos.
Ao comparar essa interpretação com um trabalho de tradução de uma língua estranha para outra familiar, o
psicanalista concluiu que ela, como toda espécie linguística, possui suas peculiaridades. Exemplo: emprego frequente
de símbolos, por meio dos quais são expressos, acima de tudo, os órgãos e as atividades sexuais. Devido à
representação dos sonhos ser feita por meio de símbolos – e não de palavras –, Freud considerava mais sensato
comparar a sua linguagem a um sistema de escrita cujas representações ocorram por meio de símbolos, como a
escrita pictográfica exemplificada pelos hieróglifos egípcios.

De acordo com Freud, a linguagem onírica pode ser encarada como o método pelo qual a atividade mental
inconsciente se expressa. Mas será que esse método é uniforme? O inconsciente, postulava o psicanalista, fala mais
de um dialeto, no qual, “de acordo com as diferentes condições psicológicas que orientam e distinguem as diversas
formas de neurose, encontramos modificações regulares na maneira pela qual os impulsos mentais inconscientes se
expressam”. (FREUD, 1970)

Em alguns casos, portanto, a representação pictórica dos sonhos será primordial no desvendar de certas atitudes,
como, por exemplo, a dos histéricos, mas, em outros, o inconsciente revelará peculiaridades idiomáticas bastantes
especiais, sendo então de suma importância o estabelecimento de um novo paradigma acerca do eu: o aparecimento
do inconsciente como soberano no funcionamento psíquico.

A significação antitética das palavras primitivas

Antes de abordar este tema, voltemos às peculiaridades da linguagem onírica. Sigmund Freud percebeu que sua
natureza não revelava qualquer indicativo de haver nela negações ou afirmações. Por exemplo, não é possível afirmar
que a pessoa a sonhar com muito dinheiro ficará rica ou pobre.

Como saber, ao interpretar um sonho, se o seu conteúdo possui um


sentido positivo ou negativo?

O psicanalista descobriu que os contrários se representam entre si no conteúdo onírico. Como são representados por
símbolos e imagens – e não por palavras –, eles podem sê-lo por um mesmo elemento. N’O interesse científico da
Psicanálise, Freud frisa que “os conceitos são ainda ambivalentes e unem dentro de si significados contrários – como
é o caso de acordo com a hipótese dos filólogos das mais antigas raízes das línguas históricas”. (FREUD, 1970)
Já no texto A Interpretação de sonhos, ele faz a seguinte análise:

"O modo pelo qual os sonhos tratam a categoria de contrários e contradições é bastante
singular. Eles simplesmente a ignoram. O “não” parece não existir no que se refere aos
sonhos. Eles mostram uma preferência particular para combinar os contrários numa
unidade ou para representá-los como uma e mesma coisa. Os sonhos tomam, além disso,
a liberdade de representar qualquer elemento por seu contrário de desejo; não há, assim,
maneira de decidir, num primeiro relance, se determinado elemento que se apresenta por
seu contrário está presente nos pensamentos do sonho como positivo ou negativo. "
- (FREUD, 1976a)

No entanto, nem todos os elementos oníricos se mostram


como propensos à interpretação. Há elementos que servem
apenas para determinar o significado de outro, pois,
segundo Freud, eles não precisam necessariamente
apresentar um sentido em si mesmo. Alguns elementos,
em sua inteireza, vão estabelecer o sentido de outros com o
auxílio do contexto fornecido pelo falante. N’A significação
antitética das palavras primitivas, há um trecho que alude a
tal questão:

“Se a palavra egípcia ken devia significar forte, seu som, que fosse alfabeticamente escrito, seguia-se da figura de um
homem em pé, armado; se a mesma palavra tinha de expressar fraco, as letras que representavam o som se seguiam
da figura de um corcunda, coxo”. (FREUD, 1970)

Uma palavra com significação antitética pode ser concebida positiva


ou negativamente graças a outro elemento – ou seja, devido às
imagens atreladas à palavra.

Filologia e a interpretação de sonhos


O que sonhamos – já dissemos – não deve necessariamente ser interpretado na inteireza de seus elementos nem ordenados
linearmente, foi porque, ao analisá-los, Sigmund Freud também percebeu que a linguagem onírica não obedecia a uma ordem
espaço-temporal.
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Exemplo
Alguns elementos que apareciam no início do sonho teriam sentido mais contundente se figurassem em seu fim.

Também já vimos que a linguagem onírica é desprovida de um sentido negativo. Seria necessário, em alguns casos, inverter o
sentido de seu conteúdo manifesto para ressignificar o que realmente quer comunicar o inconsciente. Isso também ocorre na
já referida língua egípcia (assim como na ariana e semita), como bem observa Freud – baseado nos estudos do filólogo Karl
Abel – n’A significação antitética das palavras primitivas. Exemplo: as línguas germânica e inglesa ratificam isso: hurry (pressa,
em inglês) e ruhe (descanso, em alemão).

No entanto, o psicanalista, ao contrário de Abel, não tomou como ponto de partida a hipótese de que esse fenômeno de
inversão de som seja uma repudiação da raiz. Para Freud, à medida que os sonhos, em sua linguagem, se utilizam
frequentemente da inversão de seu material representativo para várias finalidades, o psicanalista tem o dever de se imbuir
ainda mais do ideário regressivo e arcaico da expressão de pensamentos oníricos.

Para tanto, defende Freud (1970), a conexão entre Psicanálise e linguagem deve ser estreita e constitutiva, pois sem ela não é
possível chegar a uma suficiente análise do inconsciente humano: “não podemos escapar à suspeita de que melhor
entenderíamos e traduziríamos a língua dos sonhos se soubéssemos mais sobre o desenvolvimento da linguagem”. (FREUD,
1970)

O que vimos até agora coloca em evidência um real interesse da Psicanálise pelos estudos linguísticos. Graças às pesquisas
profundas de Freud nesse ramo, foi possível estruturar uma compreensão melhor do comportamento psíquico da mente
humana.

Isso se relaciona diretamente com a sensação de estranheza tão


íntima a todos nós.

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 Figura: Ilustração do estranho em cada um de nós feita por autor desconhecido.

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O estranho em Freud
O tema do unheimlich (estranho) é de suma importância para o presente estudo. Freud (1919) comparava a própria
significação desta palavra com as sensações de estranheza contidas na mente de seus pacientes. Em princípio, ele
expôs seu sentido óbvio: ser o oposto de heimlich (doméstico). Dessa forma, estranho é precisamente aquilo não
conhecido, nem familiar.

Essa análise pura e simples, no entanto, além de não gerar conclusão alguma, também se revela precipitada. O
psicanalista, então, foi buscar em alguns dicionários (em especial, no Wortebuch der deutschen spache, de Daniel
Sanders) significados vários da palavra heimlich, em especial um que os colocasse em posição sinônima. Assim,
heimlich seria idêntica ao antônimo unheimlich.

Entretanto, a melhor definição da palavra unheimlich é a de Schelling : “Unheimlich é o nome de tudo que deveria ter
permanecido secreto e oculto, mas veio à luz”. (SCHELLING apud FREUD, 1919)

Saiba mais
O filósofo alemão Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854) foi um dos principais expoentes do Idealismo alemão.

Essa definição perturbadora talvez tenha levado o psicanalista a dirimir algumas de suas dúvidas no Dicionário de
Grimm, no qual ele encontrou definições esclarecedoras para a palavra heimlich.

Exemplo

“Os homens que não morreram foram feridos nas suas partes heimlich.” Esta palavra, aqui, significa íntimo. (FREUD, 1919)

O termo em destaque claramente significa não amistoso e não familiar – ou seja, estranho. Ao considerar unheimlich,
de certo modo, uma subespécie de heimlich, Freud pôde seguir seu trabalho: desvendar o estranho no inconsciente por
meio da associação com aquilo que lhe é familiar.

Acerca do inconsciente

Já mencionamos anteriormente que o grande marco da teoria freudiana teve início na ruptura com o modelo clássico,
fundado na racionalidade, em que o sujeito possui plena consciência de seus atos. O aparecimento do inconsciente
representava, nesse contexto, conforme o próprio Sigmund Freud relata em Uma dificuldade no caminho da psicanálise,
a terceira ferida narcísica da humanidade, pois ele abalava a crença humana no domínio do eu e da razão sobre suas
ações e sua vida ao demonstrar quem reinava soberano no funcionamento psíquico.

Ao escrever suas primeiras linhas sobre o inconsciente, Freud estabeleceu que um ato psíquico, quanto ao seu estado,
passa por duas fases. Há entre elas uma espécie de censura, que pode se tornar um ato psíquico reprimido, dando
origem ao recalque. Vejamos a seguir quais são essas duas fases:

1 2

Inconsciente Consciente
(Ics) (Cs) caso não seja reprimido

O psicanalista, todavia, não considerava esses atos psíquicos, logo depois de saírem de seu estado Ics, conscientes.
Para Freud, eles já possuem a capacidade para tal sem haver qualquer resistência especial. Ele, portanto, preferiu
adotar uma terceira nomenclatura: pré-consciente (Pcs). Freud constituiu, em seguida, um sistema de ordenamento do
aparelho psíquico.

1. Primeira tópica
O inconsciente se contrapõe ao sistema pré-consciente/consciente, havendo entre ambos uma barreira bem
estabelecida. Ele seria regido pelo princípio do prazer: como sua tendência é escoar o acúmulo de tensão do qual a
mente de cada um está repleta, ele procuraria descarregá-la da forma mais rápida e eficaz possível.

2. Segunda tópica
Resiste a essa descarga imediata da tensão oriunda do inconsciente, moldando-a ao princípio da realidade.

3. Diferenças entre os dois sistemas


Diferem entre si no concernente às leis que os regem:

1ª tópica: Coordenado pelo chamado processo primário, no qual a energia psíquica escoa livremente de uma
representação para a outra sob mecanismos de condensação e deslocamento;
2ª tópica: Regido pelo processo secundário, no qual essas energias não estariam livres; pelo contrário, elas investiriam
representações de maneira estável, possibilitando, assim, um adiamento da satisfação.

Ao conceber a primeira tópica de sua teoria psicanalítica, Freud já dialogava com o que ele mesmo
chamou de determinismo psíquico, por meio do qual pôde reafirmar suas teses em favor da soberania do
inconsciente sobre nossas ações, contrapondo-se tanto ao paradigma do determinismo biológico quanto
à concepção hegemônica de subjetividade, que, no século XIX, estava centrada na consciência.

A crítica ao Logocentrismo na Psicanálise


As contraposições acerca da linguagem sob o paradigma da representação são muito anteriores ao advento da Psicanálise. O
ponto de vista adotado sob uma perspectiva diferente daquele impetrado pelos filósofos da Antiguidade foi ganhando força:
muitos pensadores não mais admitiram enxergá-la como um mero instrumento de representação dos objetos externos à
língua.

No livro A Ciência Nova, de Giambattista Vico, houve a


primeira aparição da metáfora como elemento fundante. Ela
não era mais fundada como apontava Aristóteles na obra
Arte retórica e arte poética. Ao traçar a história dos homens,
Vico percebeu que a primeira forma de expressar o mundo
era poética, enquanto a linguagem serviria, na idade dos
homens, diferentemente de outras eras, para dar uma
representação articulada às ideias.

No excelente Mitologia branca, o filósofo argelino Jaques


Derrida criticaria o modelo metafísico essencialista, em que
o sujeito possui uma essência universal, subjacente às
mudanças superficiais. Derrida construiu sua filosofia sobre
a linguagem na crítica ao Logocentrismo, pregando o jogo
livre dos significantes que, mesmo controlados de alguma
maneira, preservam sempre o mal-entendido nela.
 Figura: Entrevista de Freud à rede BBC.

Podemos encontrar esteio na ciência freudiana para muitos de nossos desafios – os quais a Linguística até hoje tenta resolver
– se traçarmos um paralelo entre as críticas de:

Derrida ao desejo de se evitar o mal-entendido por intermédio da ideia de presença;


Freud sobre os procedimentos clássicos ao lidar com as psicopatologias.

N’O inconsciente, veremos que o lugar da representação propriamente dita – onde coisa e palavra a ela pertencente se unem,
formando uma apresentação – está alojado na consciência.
Freud (1976c) introduziu a justificação do conceito de inconsciente ao descrever a incapacidade da consciência de dar conta
das lacunas que se lhe apresentam. Afinal, segundo o psicanalista, é insustentável a hipótese de que todo ato mental que
tivermos deva obrigatoriamente ser experimentado por nós por meio dela.

 Figura: Ilustração do estranho em cada um de nós feita por autor desconhecido.

Estaria Sigmund Freud, em seu paulatino trabalho de submissão do


consciente às práticas do inconsciente, ratificando a crítica ao
representacionismo e, por assim dizer, concordando em dar à palavra,
à linguagem, uma existência independente? Ou, mais que isso, um
mundo com leis e mecanismos próprios?

 O Curso de Linguística Geral e Freud

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O Curso de Linguística Geral e Freud


É forçoso repetir que o desenvolvimento da Psicanálise se deu devido a um reconhecimento da importância dos
estudos da linguagem. Quem diz é o próprio Freud. Portanto, estabeleceremos um diálogo entre o psicanalista e o
linguista Ferdinand de Saussure sobre determinados pontos importantes para esta aula.

Em seu estudo sobre as afasias, Sigmund Freud criticou as concepções neurológicas vigentes no tratamento desse
distúrbio, principalmente as conceituações linguísticas utilizadas para pautar as teorias sobre as afasias. Para resolver
e tratar com mais eficácia o problema, ele concebeu o psíquico como um aparelho de linguagem, elaborando, em
seguida, uma psicologia da representação independente do sistema nervoso.
De acordo com Freud, esse aparelho não estaria pronto desde o nascimento do indivíduo. Ele não seria, assim, inato, e
sim constituído graças à relação com outros aparelhos de linguagem. Podemos contrastar tal conceito às palavras de
Saussure, que, no livro Curso de Linguística Geral, postulava que “não é a linguagem que é natural ao homem, mas a
faculdade de constituir uma língua, vale dizer: um sistema de signos distintos correspondentes a ideias distintas”.
(SAUSSURE, 2002)

Se pensarmos especificamente no inconsciente, Freud, ao tratar das características especiais desse sistema Ics,
percebeu peculiaridades interessantíssimas:

Ausência de um lugar para negação, dúvida ou quaisquer graus de certeza;


Grande mobilidade de suas intensidades catexiais;
Intemporalidade;
Substituição da realidade externa pela psíquica.

Atenção

A última característica confere ao inconsciente – nos mesmos termos conferidos à língua no Curso de Linguística Geral – a
categoria de sistema.

Ferdinand de Saussure também traçou alguns caracteres da língua. Segundo o linguista, ela é parte social da
linguagem e externa ao indivíduo, o qual não pode nem a criar, tampouco a modificar por si só. Assim como o
inconsciente, ela também possui uma realidade interna, com características independentes do mundo exterior. Dessa
forma, ele concluiu que, devido a determinadas faculdades – entre elas, a de associação e coordenação –, a língua
também possui um sistema autônomo, que, assim como o inconsciente, pode (e deve) ser cognoscível para fins de
análise profunda.

Segundo Saussure, a língua é um produto que o indivíduo registra passivamente, sem que isso jamais suponha uma
premeditação. Por Freud ser um estudioso da linguagem, ele desenvolveu uma clínica fundada na palavra,
concebendo-a como autônoma em relação aos centros cerebrais.
Foi dessa forma que ele conseguiu alcançar uma fórmula de tratamento para os lapsos de linguagem, pois, da mesma
maneira que Saussure tratou a língua, Freud sabia que, ao estudar o inconsciente, ele a todo instante descarregaria sua
catexia no cérebro do sujeito independentemente de sua vontade. Esse registro, portanto, também é passivo. O
psicanalista, dessa forma, desenvolveu sua tese de que o mecanismo de formação dos lapsos é regido pelas mesmas
leis do processo primário que caracterizam o inconsciente, o que explicaria a surpresa daquele que o comete.

Traçamos alguns poucos paralelos entre os estudos linguísticos de Ferdinand de Saussure


e Sigmund Freud no tratamento de seus objetos específicos (Linguística e a Psicanálise),
buscando conferir-lhes um status de ciência. Ainda assim, de forma alguma se pode dizer
que os estudos psicanalíticos endossam o ponto de vista saussuriano acerca da língua.

É no ponto de divergência com a linguagem segundo o paradigma da representação que seus críticos –
principalmente Derrida – aproximam-se da Psicanálise, pois eles enxergaram nela um estudo linguístico no qual se
concebe a língua também como caótica, propensa a proporcionar mal-entendidos, falhas na comunicação, erros e
lapsos. Isso é muito diferente do que previa Saussure ao desenvolver a teoria dos signos, em que significante e
significado, na língua, são indissociáveis e impermeáveis ao erro.

Atividade
1. Pode-se dizer que há muitas razões para que a Psicanálise se aproxime dos estudos da linguagem e mereça certo destaque,
exceto:

a) Por tratar a palavra como método de cura para as diversas histerias, o método talking cure de Freud.
b) Por atribuir à palavra um papel central, seja na análise dos casos de traumas, seja na interpretação dos sonhos.
c) Por buscar na significação antitética das palavras primitivas um sentido para a linguagem onírica.
d) Por dispensar as colaborações dos estudos linguísticos anteriores e criar um ponto de vista contrário à interface Psicologia e linguagem.
e) Nenhuma das alternativas acima.

2. Para auxiliar na interpretação da linguagem dos sonhos, Freud estudou muito as antigas e primitivas linguagens, como, por
exemplo, a dos hieróglifos egípcios. Isso foi feito por diversos motivos, exceto:

a) As linguagens antigas eram incompreensíveis da mesma forma que a linguagem onírica.


b) A linguagem dos sonhos não pode ser interpretada como uma linguagem humana corrente, pois possui muitas peculiaridades, como a
de algumas linguagens primitivas.
c) As linguagens antigas possuíam um significado antitético, ou seja, possuíam em si os seus contrários, como a maioria da linguagem dos
sonhos.
d) A linguagem onírica e algumas linguagens primitivas possuem muito em comum.
e) Nenhuma das respostas anteriores.
3. Sobre os escritos de Freud sobre o inconsciente, pode-se afirmar que:

I. A linguagem proveniente das tensões do inconsciente obedece a uma censura e é sempre muito polida.
II. Alguns atos falhos cometidos por nós, como falar uma palavra indevida no lugar de outra correta, ou esquecer um nome,
não possuem ligação alguma com o inconsciente.
III. Freud defende que o homem é senhor de si, sujeito onisciente, só sendo vítima de atos falhos se quiser.

Estão corretas as alternativas:

a) I e II
b) II e III
c) I e III
d) III
e) Nenhuma das alternativas acima.

4. Se traçarmos um paralelo entre as teorias de Freud e as de alguns pensadores da linguagem, podemos afirmar que:

a) Freud se aproxima da tradição platônica, mas se afasta de Locke.


b) Freud contrapõe-se a Saussure em algumas teorias estruturalistas, aproximando-se em alguma medida das ideias pós-estruturalistas de
Derrida.
c) Freud é favorável a Saussure integralmente, contrapondo-se a Derrida.
d) Freud apoia o ponto de vista de Wittgenstein, Bloomfield e Derrida ao mesmo tempo.
e) Freud não se aproxima de nenhum estudioso da linguagem, tampouco contrapõe-se a algum ponto de vista. Na verdade, sequer falou de
linguagem.

5. Esta ciência estuda o aparelho psíquico, tomando por base conhecimentos psicológicos e biológicos com o auxílio da
linguagem como instrumento de análise e tratamento de pacientes. Estamos falando da:

a) Neurolinguística
b) Neurolinguagem
c) Psicanálise
d) Linguística
e) Pós-estruturalismo

Notas

Interpretação onírica 1

Interpretação da linguagem dos sonhos.

DERRIDA, J. A escritura e a diferença. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995.


Referências
DERRIDA, J. A mitologia branca: a metáfora no texto filosófico. In: DERRIDA, J. Margens da Filosofia. Porto: Rés Editora, 1986.
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Disponível em:
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976a.
https://issuu.com/andretangram/docs/arte_ret__rica_e_arte_po__tica_-_ar. Acesso em: 30 maio 2019.

FREUD, S. A psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro: Imago, 1976b.


FREUD, S. A significação antitética das palavras primitivas. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. v. 9. Rio de Janeiro: Imago, 1970.

FREUD, S. O estranho. 1919. Disponível em: https://docero.com.br/doc/n8xvv8. Acesso em: 30 maio 2019.

FREUD, S. O inconsciente. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976c.

FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica. Rio de Janeiro: Imago, 1976d.

FREUD, S. Uma dificuldade no caminho da Psicanálise. 1917. Disponível em: https://pauloacbj.fandom.com/pt-


br/wiki/Uma_dificuldade_no_caminho_da_Psican%C3%A1lise_(1917)_(autor:_Freud,_Sigmund). Acesso em: 30 maio 2019.

FREUD, S. Uma nota sobre o bloco mágico. 1925. Disponível em: https://pt.scribd.com/doc/111506895/Freud-Uma-Nota-
Sobre-o-Bloco-Magico. Acesso em: 30 maio 2019.

NUNES, S. A. Para ler Freud: a psicopatologia da vida cotidiana – como Freud explica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2011.

SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1971.

SCHELLING, F. W. J. V. apud FREUD, S. O estranho. 1919. Disponível em: https://docero.com.br/doc/n8xvv8. Acesso em: 30
maio 2019.

VICO, G. A Ciência Nova. Rio de Janeiro/São Paulo: Record. 1999.

Próxima aula

A linguagem na ficção;

Linguagem como objeto estético contemporâneo;

Beckett e a linguagem levada às últimas consequências.

Explore mais

Assista a dois documentários sobre Freud:

O jovem dr. Freud, do History Channel;

A invenção da psicanálise.

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