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O que (não) dizer sobre as crianças1


Conceição Aparecida Costa Azenha ∗
Universidade Estadual de Campinas
cissazenha@terra.com.br

Estava diante de uma criança em dificuldade de aprender que, encaminhada


para avaliação é solicitada a fazer a classificação de blocos lógicos. A garota
despreza tal pedido e constrói uma série de camas vermelhas onde as personagens
que inventa, pulam, brigam e fazem coisas que ela não entende. Repete a mesma
cena com uma tenacidade ímpar, a despeito dos pedidos que lhe são feitos. A
impossibilidade de contornar esse tipo de situação parece fazer ecoar as palavras
de Sully (apud Vorcaro, 1997, p.29): “as crianças são menos fáceis de decifrar do
que se supõe comumente (...) é provável que as crianças tenham maneiras de
pensar e de sentir muito mais variadas do que nossas teorias supõem”.

Solicitada a fazer uma classificação piagetiana, a criança, ao invés disso,


brinca.

Qual o estatuto do brincar para a psicanálise? O brincar pode ser colocado


como uma atividade sem importância na clínica psicanalítica, a qual pode ser
descartada na direção de um tratamento? Essas foram questões que ficaram
ressoando para mim desde a última Jornada, aqui em Americana, após a
apresentação de Paulo Schiller. Naquele evento, o palestrante enunciou com muita
convicção que “a psicanálise de crianças precisa priorizar a fala dos pais, já que
eles é que detém a história da criança, pois do contrário, o analista apenas deixaria
a criança brincar”. (ênfase minha)

1
Texto apresentado durante a IV Jornada de Psicanálise com Crianças de Americana, maio/2008, na
mesa Brincadeira de menino, brincadeira de menina: o brincar e a diferença sexual, sob o título “O
que as crianças (não) dizem”.

Psicóloga com aperfeiçoamento em Psicanálise, Infância e Educação (USP), mestre e doutoranda
em Lingüística; Pesquisadora do Grupo SEMASOMa. Atualmente, é psicóloga no Ambulatório de
Especialidades do Hospital de Nova Odessa e Professora das Faculdades Network.
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Sabemos que a fala da criança não é revista do valor simbólico que tem a
palavra do adulto. Nesse sentido, é lícito supor priorizar a fala dos pais em
detrimento do brincar da criança, seria um avanço teórico para a psicanálise?
Estaria o palestrante resgatando a importância da fala e da linguagem a partir da
teoria lacaniana de forma que, em uma psicanálise, o que se oferece à escuta é
somente aquilo que é verbalizado?

A afirmação de Paulo Schiller parece consoante ao discurso jurídico que


concebe a criança como não responsável pelos seus atos na medida que, como já
dito, sua fala não comporta um revestimento simbólico. Tal discurso supõe que é
sempre o outro que detém o saber sobre o sofrimento da criança, além de localizar
no outro o agente desse sofrimento bem como a possibilidade de aliviá-lo.

Com as elaborações freudianas, no entanto, é forçoso supor que há uma


distinção bastante clara que a psicanálise inaugura entre criança, sujeito e infantil.
Tal distinção impõe implicações na prática clínica bastante distantes do discurso
jurídico e permite localizar, como fez Lacan (1969) a “criança como sintoma” e o
“sintoma da criança”.

Sabemos que criança e infância são conceitos históricos, tributários do


individualismo moderno. Sujeito e infantil, por outro lado, fazem parte das
ferramentas teóricas da psicanálise. A descoberta freudiana permitiu conceber o
infantil como imperecível, ou seja, não sujeito à diacronia. Por outro lado, o sujeito,
nessa abordagem é efeito da captura que o simbólico (a linguagem) opera sobre o
real de um organismo, a partir do imaginário materno, balizado por seu desejo
(Azenha, 2004).

Interrogar o estatuto do brincar, dentro da teoria psicanalítica não é sem


importância. Vale ressaltar que a produção de textos psicanalíticos problematizando
a clínica com crianças e o brincar – segundo informa Birman prefaciando o livro de
Santa Roza (1993, p. 10) – ganhou espaço de publicação, no Brasil depois de 1980,
com a introdução do discurso lacaniano em nosso país, cuja prevalência teórica é
sustentada pela experiência analítica fundada na função da fala e no campo da
linguagem. Segundo o autor, apesar de na França, célebres analistas de criança
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como Françoise Dolto e Maud Mannoni não haverem se inquietado com a questão,
no Brasil, houve uma grande polêmica sobre o direito de cidadania de uma
psicanálise com crianças pois apesar de serem falantes, a fala não constitui um
modo privilegiado de as crianças se comunicarem, sendo “o brincar e o jogar as
formas básicas da comunicação infantil, com as quais as crianças inventam o
mundo e elaboram os impactos exercidos pelos outros”.(idem). A fala de Paulo
Schiller vai justamente nesse sentido.

Para responder às questões que me propus e marcar uma diferença teórica


que inclua a função do brincar como um dispositivo clínico na psicanálise de
crianças situando-o no campo da linguagem é preciso um percurso que inclua uma
discussão sobre a linguagem, o brincar, a criança e seu dizer.

LINGUAGEM

Lacan demonstrou que a descoberta freudiana é a do campo das incidências


na natureza do homem de suas relações com a ordem simbólica. (1966, p. 276),
afirmando por diversas vezes que basta abrir qualquer página da obra de Freud
“para sermos surpreendidos pelo fato de que não se trata senão de linguagem
naquilo que ele nos descobre do inconsciente” (Jorge, 2000:112). E foi na
Lingüística de Saussure que o psicanalista francês encontrou elementos para
desenvolver sua teoria da articulação significante e seu trabalho sobre as
formações do inconsciente. Em uma conferência aos norte-americanos, Lacan
(1976:6-7) diz que “A Lingüística é aquilo por meio do que a psicanálise poderia se
prender à ciência”, e, em 1977, no artigo C’est à lecture de Freud Lacan afirma que

Uma chance, contudo, que se oferece para nós no que diz respeito ao
inconsciente, é que a ciência do qual ele depende é certamente a
lingüística, primeiro fato de estrutura. Digamos de preferência que ele
– o inconsciente – é estruturado porque é feito como uma linguagem,
que ele se desdobra nos efeitos da linguagem. (Jorge, loc.cit.)

Para Lacan, são justamente o equívoco e a pluralidade de sentido que


favorecem a passagem do inconsciente no discurso.
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O sujeito, como já mencionado, é efeito de linguagem. Nesse sentido, é


forçoso admitir que toda atividade humana – incluindo a da criança – está
atravessada pela linguagem e, nessa medida, pode se oferecer à leitura.

BRINCAR

“O brincar é uma forma de comportamento característica da infância e


pertence a um conjunto de atividades que compões a noção de jogo” (SANTA
ROZA,1993, p.23) A etimologia pode nos fazer reconhecer a dimensão da alteridade
na atividade, aparentemente individual do brincar

o nome de ‘Spiel‘ [‘peça’] às formas literárias que são


necessariamente ligadas a objetos tangíveis e que podem ser
representadas. Fala em ‘Lustspiel‘ ou ‘Trauerspiel‘ [‘comédia’ e
‘tragédia’: literalmente, ‘brincadeira prazerosa’ e ‘brincadeira
lutuosa’], chamando os que realizam a representação de
‘Schauspieler [‘atores’: literalmente, ‘jogadores de espetáculo’].
(Freud, vol. IX, EEB, s/p)

Recorrer a etimologia permite-nos reconhecer que qualquer atividade da


criança só pode se inscrever como uma atividade lúdica, nomeada brincar e
possível de ser lida pelo olhar e reconhecimento do Outro que, colocado na posição
de expectador pelo jogo da criança, distingue, recorta uma cena e, no mesmo ato,
deixa-se ultrapassar pela criança, para entrar em cena com ela, permitindo incluir-se
em seu cenário, compartilhando com ela seu drama da entrada na linguagem.

Freud aponta uma analogia entre o brincar e o fazer poético em seu artigo
Escritores criativos e devaneio, de 1907:

O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um


mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe
uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma
separação nítida entre o mesmo e a realidade. (Freud, 1907, EEB,
s/p).

Pode-se identificar, sem qualquer dificuldade, que a brincadeira comparece


na literatura especializada – tanto na psicanálise como na pedagogia e
psicopedagogia – como uma atividade inerente à criança, ou como diz Freud, a
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ocupação favorita e mais intensa da criança (Freud, EEB, Vol. IX, s/p).
Reconhecendo tal fato, parece ser lícito afirmar que ao brincar, a criança interpreta
a realidade; o termo interpretação é adotado aqui em seu sentido cênico que
convoca o espectador – o adulto – a produzir teorias sobre a criança na medida em
que o brincar re-vela e recoloca a sua opacidade real (Leite, 2005, p.1).

Algumas teorias, principalmente as desenvolvimentistas, têm concebido o


brincar como atividade de imitação ligada aos esquemas de ação que se originam
no período sensório motor. Em se tratando de imitação, a noção de representação
tal como proposta por Freud fica impedida de vigorar; no entanto, a visada lacaniana
concebe a linguagem como uma faculdade essencialmente humana e que todos os
atos de um sujeito de qualquer idade estão atravessados pela linguagem, o que
equivale a dizer que toda ação humana é simbólica na medida em que significa e é
significada pelo Outro. Sabemos que os elementos que constituem a linguagem são
os signos e que a linguagem não é homóloga à coisa no mundo. Essa
heterogeneidade implica, necessariamente, uma distância entre a coisa
representada e seu signo. Podemos admitir, portanto, que a realidade é tributária
da linguagem que a engendra ao discernir algo do real e representá-lo, significá-lo,
instaurando, no mesmo instante, o campo do real e o campo simbólico. Nessa
medida, não pode haver imitação do real – seja em um desenho ou uma brincadeira
da criança – ou qualquer outra prática de linguagem; trata-se para qualquer sujeito
de sua própria condição: uma vez capturado pela linguagem, ao sujeito é
inarredável significar tudo o que lhe se apresenta. Do encontro da psicanálise com
a lingüística pela leitura de Lacan é que se pode evidenciar que não há, desta
forma, oposição entre fantasia e realidade pois, efeito de linguagem, a realidade
será desde e para sempre psíquica; a oposição está, então, entre real e realidade.

As tentativas do adulto de entender a criança são muito antigas e, conforme


nos lembra Santa Roza (1993, p. 51), desde 1919 – ano em que acontece a
primeira construção teórica psicanalítica sobre o brincar intitulada “Manifestações
das pulsões eróticas infantis nas brincadeiras. Posições da psicanálise face às
teorias do brincar” – verificamos que há uma farta bibliografia sobre o assunto, o que
não significa, entretanto, um esgotamento do tema. Dentro desse campo específico,
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as produções teóricas desenvolveram-se a partir da obra freudiana e, privilegiando


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o princípio do prazer , consideram que a criança em seu desejo dominante – o
tornar-se adulto – brinca para reverter em um jogo ativo uma situação que sofreu
passivamente, transformando, desta forma, uma situação penosa em prazer. No
entanto, ao elaborar o conceito de pulsão de morte, em Além do princípio do Prazer,
o gênio clínico de Freud (1920, Vol. XVIII, EEB) pode captar que não é sempre a
obtenção de prazer que é visada pela criança ao brincar.

O brincar, como vimos, tem sido abordado como uma atividade – ou como
sugerem alguns autores, um trabalho – inerente à criança. No entanto, sabemos que
o brincar não é exclusividade delas, ainda que possamos reconhecer diferenças da
sua condição daquela do adulto.

Para alguns dos mais importantes artistas do século XX, como Klee,
Kandinsky, Miró e Calder, o impulso lúdico - ou impulso para o jogo -
não era apenas característico da infância. Seguindo as reflexões do
poeta e filósofo romântico alemão Friedrich Schiller, esse impulso
também seria jogo estético e, portanto, artístico; seria atributo do
homem e, mais do que isso, o definiria enquanto ser livre e
espiritual. Para boa parte dos artistas modernos, portanto, a arte
tornou-se sinônimo de espaço lúdico, compartilhando com o universo
infantil o território da livre expressão (Cerón, 2004).

No mesmo ano de 1907, Freud procura diferenciar o brincar do fantasiar e


coloca como sinônimos os termos brincar e jogar. Com relação à distinção que
opera entre brincar e fantasiar, Freud afirma que a criança distingue perfeitamente
brincadeira da realidade e leva muito a sério essa atividade, enfatizando que “a
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antítese do brincar não é o que é sério, mas o que é real”. Para Freud, o que
diferencia o brincar do fantasiar é justamente a ligação que a criança realiza entre

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Princípio segundo o qual o funcionamento do aparelho psíquico se dirige no sentido de manter baixa
a quantidade de excitação. Nesse sentido, qualquer coisa que aumente essa quantidade está
destinada a ser sentida como adversa ao funcionamento do aparelho, ou seja, como desagradável.
Freud assevera que apesar dessa ser a tendência do aparelho psíquico, tal princípio não é dominante
em seu funcionamento. (Freud, 1920)
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Nesse momento, a teorização psicanalítica não dispunha dos conceitos de Real – Simbólico –
Imaginário, como propostos por Lacan e, desta maneira, o real apontado por Freud corresponde ao
termo realidade proposto por Lacan. Apenas muitos anos depois é que Lacan enfatizará que o aquilo
que se opõe à fantasia não é a realidade, mas o real. No entanto, já na Interpretação dos Sonhos
(1900), Freud abre caminho para a formulação lacaniana, diferenciando realidade psíquica de
realidade material.
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seus objetos e situações imaginadas com as coisas visíveis e tangíveis no mundo.


Na fantasia, não haveria essa ligação.

Freud alinha muitas vezes o brincar com os sonhos e com os chistes,


manifestações essas cujo denominador comum seria a realização de desejos. A
leitura lacaniana situa e classifica essas elaborações psíquicas como formações do
inconsciente, a saber: os sintomas, os sonhos, os chistes, os atos falhos e os
esquecimentos. O que responderia, portanto, à não inclusão do brincar nessa lista?

Para responder a essa pergunta, é preciso seguir a concepção freudiana de


que o brincar da criança é determinado pelos desejos da criança, aliás, ele
ressalta, por um desejo que as domina o tempo todo, o de tornar-se adulto. Nesse
sentido, o brincar cumpre a função de satisfazer o desejo insatisfeito da criança que,
ao crescer, supostamente o satisfaz, não tendo mais a necessidade de brincar. É o
que indica uma observação de crianças feita por Zanfelice e Kasper (2007, p.4):

Observamos também que há quase sempre algo por terminar nas


brincadeiras, como por exemplo, quando uma festa vai sendo
preparada, e nunca acontece. As crianças nunca experimentam o
bolo, que sempre está por acontecer, ou melhor, assando. (grifo e
itálicos meus)

Por que será que elas nunca experimentam o bolo? As brincadeiras, não
raro, têm essa característica: a de nunca se consumar o que foi planejado. O jogo
cênico da brincadeira da criança assume a lógica de sua condição: existe uma festa
que acontece na vida dos adultos e que ela ainda não pode gozar. Estamos frente à
curiosidade sexual, portanto. Tal curiosidade engendra toda atividade da criança na
busca de respostas sobre o enigma da diferença sexual.

O caráter provisório dessa atividade em um sujeito em constituição parece


responder, pelo menos em parte4 à não possibilidade de inclusão do brincar na lista
das formações do inconsciente, lembrando, contudo, o que Freud nos diz a respeito:

4
Veras e Vorcaro (2006), no artigo “O brincar como operação de escrita”, apresentam uma distinção
bastante interessante entre o brincar e o sonho em seu artigo, problematizando os interstícios entre
apresentação e representação, discutindo a polissemia do termo figurabilidade, concluindo que o
brincar ultrapassa a representação do vivido (como nos sonhos) para tornar-se uma vivência de fato,
vivencia que escreve, ou seja, reinventa, cifrando, num voto de re-solver o afeto da angústia
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Ao crescer, as pessoas param de brincar e parecem renunciar ao


prazer que obtinham do brincar. Contudo, quem compreende a
mente humana sabe que nada é tão difícil para o homem quanto
abdicar de um prazer que já experimentou. Na realidade, nunca
renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra. O que
parece ser uma renúncia é, na verdade, a formação de um substituto
ou sub-rogado (Freud, V. IX, EEB, s/p)

Assim, Freud pode conferir ao humor e a arte uma herança do brincar. Vale
ressaltar que Freud diz que é o poeta que faz como a criança e não o contrário.

No episódio relatado por Zanfelice e Kasper, a criança cozinha seu tempo


(aquele que irá chamar de infância um dia) em nome de esperar crescer para poder
partilhar da “festa” com os adultos e, desta forma, já não se pode deixar de
conceber a infância como um tempo lógico e necessário e a brincadeira como um
trabalho necessário à criança para impedir que o imaginário e o simbólico
fracassem e a deixem realmente frente à angústia. Se admitimos essa hipótese,
então não podemos concordar que o brincar pode ser tomado como uma atividade
de adaptação tal como proposto pelas teorias desenvolvimentistas (Assis, 1999,
p.70), ou como imitação exata da realidade (idem, p.86) de forma que o adulto
possa capitaneá-la através do oferecimento de “material conveniente, a fim de que,
jogando, elas [as crianças] cheguem a assimilar as realidades intelectuais, que sem
isso, permanecem exteriores à inteligência infantil”.(Piaget, apud Assis, op.cit., p.
89-90).

A criança figura como um enigma que resiste à teorização: embora o real de


sua condição sempre convoque simbolizações e significações, sua singularidade
sempre aparece como aquilo que excede, como o que resta ou como o que falta às
teorias (Leite, 2005). A opacidade real que a criança apresenta aos adultos, não
raro, impede o reconhecimento da possibilidade de leitura que seu brincar, como
operação de linguagem, oferece. Nesse sentido, podemos supor, como Lajonquière
(1999) que trata-se de uma ilusão – no sentido atribuído por Freud, uma crença
animada por um desejo – o fato de supor em qualquer adulto algum conhecimento
sobre a criança. Também é a lógica formal que orienta a leitura

desmedida em realização de desejo. A tese de doutorado “Lingüisterria: um chiste”, de Viviane Veras


(1999) é esclarecedora quanto às diferenças que se pode estabelecer entre o brincar e os chistes.
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desenvolvimentista – que não é tida como provisória, mas efetiva dentro dos
estágios de desenvolvimento pré-fixados – da qualidade do desenho da criança:

Outra característica que se observa no desenho dessa fase é a de


que a criança utiliza um único desenho representando um
desenvolvimento cronológico. Vários bonecos em diferentes alturas do
tronco de uma árvore representam o mesmo personagem ao galgar o
topo da árvore (Assis, p.91)

De forma bastante diferente às teorias desenvolvimentistas e sensível à


condição da criança, a leitura de Benjamin sobre uma cena de brincadeira de
criança: Para a criança que brinca, a sua boneca é ora grande, ora pequena, e
certamente pequena com mais freqüência, pois se trata de um ser subordinado.
(Benjamin, p.98) e mais adiante, o autor comenta que “o brincar tem sido visto em
demasia a partir da perspectiva do adulto, exclusivamente sob o ponto de vista da
imitação” (idem, p.100), o que impede, ao meu ver, o reconhecimento das
manifestações do inconsciente em sua atividade.

A elaboração psicanalítica sobre o brincar é radical uma vez que está


associada à realização de desejos, à elaboração de situações penosas, operando a
transposição da passividade vivenciada para a atividade lúdica e à compulsão à
repetição5.

QUANDO BRINCAR É DIZER

Nesse ponto de elaboração, há elementos suficientes para que não


consideremos o brincar como uma atividade menor, quase dispensável na
psicanálise de crianças, como fez-nos notar6 Paulo Schiller7 ao priorizar a fala dos
pais para tratar psicanaliticamente a criança. Longe de esta afirmação ensaiar um
avanço no que respeita ao tratamento psicanalítico das crianças e ao estatuto que o
lúdico pode ocupar na clínica, configura um retrocesso às elaborações psicanalíticas

5
A esse respeito, a brincadeira do fort-da é esclarecedora.
6
e anotar, já que a discussão revelou-se surda.
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durante a III Jornada de Psicanálise com crianças: figuras da angústia na infância, em
Americana/SP, de 25 a 26/05/07.
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mais recentes e mesmo àquilo que o lúcido Johann Christoph Friedrich von Schiller ,
no final do século XVIII, já enunciava: “O que significa, entretanto, dizer mero jogo,
quando sabemos que, de todos os estados do homem, é o jogo e somente ele que
torna completo e desdobra de uma só vez sua natureza dupla?” [razão e
sensibilidade]. (Schiller, 1795, apud Santa Roza, 1993, p. 74).

Reconhecendo o estatuto do brincar como uma operação análoga à condição


de figurabilidade localizada por Freud como operação do sonho, Vorcaro & Veras
(2006) conferem ao brincar o mesmo caráter do sonho, no que ele tem de
ciframento da experiência, ou seja, de construção de um dialeto inconsciente pela
criança, impondo ao clínico a tarefa de decifrá-lo. Dito de outro modo, como
operação de escrita, o brincar apresenta traços que se oferecem para ser lidos.

É assim que J., de cinco anos – trazida à análise por que só veste roupas de
meninos – brincando comigo, desenha muitos rabiscos em uma folha de caderno e,
na sua borda, faz um buraco. No jogo com a analista, vai compondo uma história
para aquele desenho; trata-se de um labirinto. Um labirinto é um lugar que parece
não ter saída, enfatizo, ao que ela responde: “tem sim, é nesse buraco vazio”.
Buraco da falta que engendra o desejo. É assim que o brincar cumpre a função de
apreender esse vazio (PAVONE, 2004, p. 259), que as marcas do encontro sempre
faltoso com o real fazem borda; vazio inassimilável, uma vez eu o desejo é seu
representante não representativo (Lacan, 1985, p. 207), buraco deixado pelo objeto
desde sempre perdido, o qual, como no jogo do “Resta 1”, faz as peças se
movimentarem.

Na clínica, freqüentemente vemos que meninas brincam de carrinho e


meninos de casinha sem que possamos recolher dessa atividade uma garantia de
um futuro comportamento dito homossexual. Ao brincar, a criança inverte posições
e, ao reviver o vivido, inventa uma nova ordem que lhe agrada, veiculando sua
leitura dos fatos e, emendando o que foi recalcado com fábulas e teorias.

8
Poeta pré-romântico alemão e filósofo que se aproximou da crítica kantiana objetivando legitimar a arte,
através da fundação de bases universais que, assim, promoveriam sua aceitação num mundo das ciências
emergentes. (Chuc, 1997)
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Huizinga (apud Santa Rosa, 1993, p 57) lembra que

o puro e simples jogo se configura como um fato de linguagem


logicamente anterior à verbalização e como condição necessária para
o surgimento desta última Nesse sentido, ele é irredutível a qualquer
outro fenômeno humano.

O real que causa a brincadeira da criança, suas manifestações enigmáticas e


a história que contém o seu brincar são irredutíveis a qualquer fala de adultos. É
bem provável que a brincadeira seja uma arte-ofício da criança: um artifício por onde
aparece o Real, mas sobre o qual não há nada a dizer.
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REFERÊNCIAS

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1.993. 55p. p. 20.

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_____ Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

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Trad. M.D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

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uma escola de educação infantil. Trabalho apresentado no 16º-COLE -
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