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AULA 6

As Primeiras Palavras e Pensamentos da Criança

A criança que pensa em fadas

A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas

Age como um deus doente, mas como um deus.

Porque embora afirme que existe o que não existe

Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,

Sabe que existir existe e não se explica,

Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,

Sabe que ser é estar em algum ponto

Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.

Alberto Caeiro, in: “Poemas Inconjuntos” Heterônimo de Fernando Pessoa

Ao nascer, a criança já é capaz de ter comportamentos reflexos, como sugar, agarrar, entre outros. Aos poucos, a criança, com sua
capacidade motora e perceptiva, irá compreender e organizar o mundo à sua volta. Nesse período, o modo egocêntrico de ver o
mundo estabelece-se e apenas irá se desfazer com a chegada da consciência que a criança passa a ter do meio através da sua
socialização. Os sentidos visual, auditivo, tátil, gustativo e olfativo estão em pleno desenvolvimento; quanto mais estimulados
forem, mais rápido irão chegar à sua plenitude. Podemos afirmar que todo este desenvolvimento perceptivo e motor da criança
irá dotá-la de pré-requisitos para o surgimento da fala e, posteriormente, para que a linguagem aconteça.

Com as palavras, por um lado, a criança consegue entender e organizar o mundo interior e, por outro lado, com elas consegue
transmitir seus sentimentos e pensamentos. Com a linguagem, ela adentra no mundo social, relaciona-se com as pessoas e coisas
do meio em que vive. Com a linguagem, a criança cria sua rede de relacionamentos, a princípio familiares, que influenciará o
desenvolvimento da sua função simbólica e o aparecimento das primeiras palavras. A possibilidade da criação de símbolos é o que
determina o uso da palavra. A palavra é um símbolo, na medida em que ela representa uma ideia, uma coisa que não está
presente concretamente ou, ainda, em que é usada pelo indivíduo para representar seus sentimentos. Segundo Fontana e Cruz:
Empregando uma imagem mental, um símbolo, a criança relembra fatos, objetos, pessoas, acontecimentos que ocorreram em
outras ocasiões. O espaço e o tempo dilatam-se. O desenvolvimento da função simbólica exime-a de agir somente em situações
do meio imediato. Ela passa a se relacionar com ações ou fatos sem praticá-los efetivamente. Pela representação mental do
mundo externo e de suas próprias ações, a criança os interioriza. [...]. E continua. O desenvolvimento da representação cria as
condições para a aquisição da linguagem. [...]. Fontana e Cruz (1997, p. 90). O mundo que, aparentemente, era concreto e
presencial, ganha uma nova dimensão: a da representação. É um jogo, o jogo do faz-de-conta, por exemplo. Um jogo em que só é
possível entrar por meio da linguagem ou do pensamento. Assim nascem as primeiras palavras, que têm um forte caráter imitativo
e não têm um significado fixo. De acordo com Fontana e Cruz (1997, p. 93), a criança pensa por imagens, e são as imagens que
marcam a significação que ela atribui às palavras. Nesse período do desenvolvimento, a criança apropria-se da linguagem
expressando-se ou tentando entender os estímulos sociais que lhes são oferecidos, entretanto a linguagem apresenta
características simbólicas, imitativas e pré-conceituais. Ao conseguir juntar as palavras, a criança já forma frases e alcança a
dimensão da narrativa oral. Essa narrativa, sendo o processo de contar uma história real ou fictícia, é que caracteriza toda a
simbologia que carrega a palavra ou a linguagem. Quando brinca de faz-de-conta, a criança utiliza a expressão gestual, a fala etc.
para externar seu imaginário. Todo o seu corpo comunica a sua intenção.

Porém, a função simbólica, nas crianças, não é privilégio exclusivo da linguagem falada; ela está presente nas outras linguagens
também, como a gestual, e no próprio símbolo em si. Vejamos o que Piaget diz a esse respeito: Podemos, então, admitir que
exista uma função simbólica mais ampla que a linguagem, englobando, além do sistema de signos verbais, o do símbolo no sentido
estrito. Pode-se dizer, então, que a origem do pensamento deve ser procurada na função simbólica. Mas também se pode,
legitimamente, sustentar que a função simbólica se explica pela formação das representações. Piaget, (1999, p.79). Piaget aponta
para a complexidade da linguagem. Com seu caráter simbólico, a linguagem se estabelece na criança, colocando-a em outro
estágio de seu desenvolvimento. Além disso, Piaget fala da origem do pensamento, que está na função simbólica dos indivíduos.
Outra característica da linguagem é que, inicialmente, a palavra possui uma característica de generalização ou categorização. Por
exemplo, a palavra “AU-AU”, a princípio, pode significar cachorro, mas pode significar também gato, cavalo, ou outro animal
qualquer de quatro patas. Paulatinamente, a criança, através de seu desenvolvimento perceptivo, perceberá as diferenças e
reorganizará seu entendimento e, consequentemente, renomeará os diferentes animais. A palavra é utilizada pela criança como
uma onomatopeia. Com base na teoria Piagetiana, Fontana e Cruz dizem: Essas primeiras palavras, que Piaget chama de primeiros
esquemas verbais, têm um forte caráter imitativo (elas são onomatopeias ou imitação de palavras usadas na linguagem adulta) e
não têm um significado fixo (seu significado oscila, conforme as situações com que a criança defronta). Tais características,
segundo Piaget, são indicadores do tipo de pensamento dominante na criança nesse período, o pensamento sincrético.
[...].Fontana e Cruz (1997, p. 91, grifo do original.).
As autoras elucidam essa questão de as primeiras palavras terem características de representação e imitação. Quanto ao
pensamento, a característica marcante é o sincretismo, que ocorre quando a criança mistura realidade e fantasia e, assim, pode
entrar no mundo do faz-de-conta, que é singular e necessário a cada criança para seu pleno desenvolvimento cognitivo, afetivo e
social. Vygotsky (1998) também falou sobre o processo de generalização que a palavra apresenta inicialmente, ao ser conhecida
pela primeira vez. Veja o que ele escreve: [...] Em qualquer idade, um conceito expresso por uma palavra representa um ato de
generalização. Mas os significados das palavras evoluem. Quando uma palavra nova é aprendida pela criança, seu
desenvolvimento mal começou: a palavra é primeiramente uma generalização do tipo mais primitivo; à medida que o intelecto da
criança se desenvolve, é substituída por generalizações de um tipo cada vez mais elevado – processo este que acaba por levar à
formação dos verdadeiros conceitos. [...] Vygotsky (1998, p. 104). O autor, assim como Piaget, fala de um processo de
generalização quando a criança conhece uma nova palavra. O que a palavra representa, inicialmente, é substituído por novas
generalizações mais elevadas, como diz Vygotsky, até chegar ao verdadeiro conceito da palavra apresentada à criança. Sobre essa
questão, Vygotsky argumenta que, para chegar ao conceito verdadeiro da palavra, a criança precisa desenvolver várias funções
intelectuais, como: a atenção deliberada, abstração, memória lógica, capacidade de diferenciar e comparar. Em relação ao uso da
palavra, importante instrumento da socialização, devemos pensar, além de em sua formação, também em seu significado. Para
que ocorra um diálogo assertivo entre pessoas, as palavras devem, em primeiro lugar, ter o mesmo significado para que haja um
entendimento comum da palavra entre as pessoas. Se você lesse a palavra “VATILA”, que significado ela teria para você?
Certamente, nenhum, pois é uma palavra que não existe. A palavra apenas tem relevância quando acompanhada de seu
significado. Para Vygotsky (1998), uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da “palavra”,
seu componente indispensável. Assim, as primeiras palavras e primeiros pensamentos da criança surgem e constituemse como
mais um recurso de comunicação com e entendimento do mundo que a cerca.

A Narrativa Infantil

A narrativa é uma atividade sociocultural. Com ela, ordenamos nosso pensar. Sem dúvida, ela é uma especificidade do ser
humano. Através da narrativa, podemos contar algo que já aconteceu ou que ainda está por vir. Com a narrativa, a criança
desprende-se do aqui e agora e lança-se na aventura do imaginário e da representação e, assim, fala de coisas que não estão
presentes. Ao narrar um fato, a memória da criança é ativada e isso favorece o seu desenvolvimento cognitivo. Quando narra,
além de ativar a memória, a criança mistura suas fantasias à narração; imaginação e realidade misturam-se, formando o
pensamento sincrético da criança, que precede a sua narrativa. A escola é capaz de ampliar esse processo, na medida em que
destina parte de seu tempo para contar histórias para os pequenos ou permite que a própria criança conte suas histórias e reconte
as histórias que ouviu. Dessa forma, estimula a capacidade narrativa e criativa das crianças.

Na escola, outros suportes da narrativa devem ser apresentados. Além da narrativa escrita e falada, os pequenos podem trabalhar
outras formas de expressão, como um filme, um desenho animado ou uma música. Claro que os livros devem ser valorizados na
escola, mas outros suportes de narrativa podem ser utilizados, e isso inclui as linguagens artísticas. Podemos narrar algo de forma
oral ou por escrito, uma história real ou fictícia. A narrativa é uma fala que conta fatos, acontecimentos passados, presentes ou,
ainda, conta fatos que apenas aconteceram na imaginação de alguém, como é o caso dos contos de fadas, que se multiplicam na
cabeça das crianças que leem ou ouvem suas histórias. Há diversos gêneros de narrativas. Aquelas sobre as experiências pessoais
da criança compõem-se como a primeira forma de narrativa a se desenvolver. Presume-se que, a partir dos dois anos, essa
narrativa esteja presente na criança. As narrativas de ficção ou reconto de uma história, por parte da mesma criança, podem
apresentar diferentes níveis de desenvolvimento. As narrativas pessoais, de certa maneira, são mais fáceis de acontecer, pois
trazem, com ela, a experiência vivida pela criança. Contar algo para alguém significa colocar nossa visão de mundo ao interlocutor;
ao relatarmos um acontecimento ou uma história, apresentamos uma interpretação própria dos fatos. Narramos os fatos como os
vemos e os entendemos; é nossa forma singular de estarmos no mundo.

Macedo e Sberp (2007), nas considerações finais de seu trabalho, colocam que o intercâmbio de narrativas propicia a socialização
e a troca de experiências entre os interlocutores. Nesse sentido, a forma narrativa permite ao pensamento transitar através do
tempo e do espaço, organizar a história de uma vida e marcar o pertencimento do sujeito a uma determinada família e cultura. A
ação de compartilhar uma experiência permite que a história de quem conta se entrelace à história de quem ouve. Entre pessoas
da mesma família, esse compartilhar leva, ainda, à intimidade e proximidade, o que conduz ao sentimento de amar e se sentir
amado. Macedo e Sberp (2007, p. 239). As autoras observam que, no âmbito familiar, essa troca de narrativas influencia a
formação de uma identidade familiar, que faz aflorar o sentimento de pertencimento a uma família e, por que não dizer, a uma
determinada sociedade. Para iniciarmos nosso estudo sobre o imaginário infantil, é preciso, em primeiro lugar, falar sobre a
cultura lúdica. A cultura lúdica não é um fenômeno isolado e está inserida na cultura geral de uma determinada sociedade. Essa
cultura é individual e compartilhada. De forma geral, toda cultura refere-se ao que é compartilhado, permitindo que uma criança
brinque com outras crianças; todavia a criança brinca, também, sozinha. Arraigada em uma determinada cultura lúdica, a criança e
seu imaginário desenvolvem-se no ato de brincar. Para melhor entendermos o que é uma cultura lúdica, vamos nos apropriar das
ideias de Gilles Brougère (1998, s/p): A cultura lúdica é, antes de tudo, um conjunto de procedimentos que permitem tornar o jogo
possível. [...]. Dispor de uma cultura lúdica é dispor de um certo número de referências que permitem interpretar como jogo
atividades que poderiam não ser vistas como tais por outras pessoas [...]. Não dispor dessas referências é não poder brincar. Seria,
por exemplo, reagir com socos de verdade a um convite para uma briga lúdica. Se o jogo é questão de interpretação, a cultura
lúdica fornece referências intersubjetivas a essa interpretação, o que não impede evidentemente os erros de interpretação.
Brougère (1998). Esse universo imaginário Brougère denominou de segundo grau e, segundo o autor, é um universo alternativo
que tem como base a realidade imediata da criança; é a partir da realidade que circunda a criança que ela irá criar esse universo
no qual está presente o faz-deconta. Nesse universo é possível criar, recriar, inventar saídas para os problemas encontrados na
brincadeira; é o imaginário da criança em ação. Nesse universo fantástico, nascido da realidade imediata, a criança tem as rédeas
na mão. Ela inicia uma ação (brincar) e poderá retornar ao estado anterior quando quiser. Com seu domínio sobre a brincadeira,
ela pode continuar ou parar a ação quando achar necessário. Além disso, a criança pode mudar as regras ou instalar novas regras
durante a brincadeira ou, então, simplesmente, decidir que a brincadeira não tem regras definidas. Desta forma, os indivíduos
caracterizam-se como seres lúdicos. O ser humano, além de ser homo sapiens, é, ao mesmo tempo, homo ludens, o homem que
brinca e joga, com ou sem regras definidas. É notório que a criança aprende por intermédio dos jogos e das brincadeiras. Ao
brincar, a criança está desenvolvendo e aperfeiçoando suas capacidades de percepção sensorial, imaginação, coordenação motora
fina e global, memorização, socialização, expressividade, percepção espaço-temporal, entre outras. O lúdico torna-se o principal
elemento motivador e de estímulo para a aprendizagem humana e, consequentemente, para o desenvolvimento humano. O
imaginário permite à criança relacionar-se com o não real, produzindo uma realidade singular que apenas ela sabe que existe. É o
caso do “amigo imaginário”. Entre três e cinco anos, é normal a criança, inserida no universo imaginário, em que predominam a
fantasia e a imaginação, criar um amigo com o qual ela se relaciona intensamente. É bom lembrar que nem toda criança possui um
amigo imaginário e também que a maioria dos adultos se esquece dessa fantasia.

Do pensamento espontâneo ao não-espontâneo O desenvolvimento infantil inicia-se com incremento das funções sensório
motoras, o que habilita a criança para as demais fases de seu desenvolvimento. Andar e falar são partes integrantes dessa fase.
Em seguida, com o domínio da linguagem e da locomoção, a criança entra em uma fase simbólica e de socialização, que culmina
com a entrada da criança no ensino fundamental. Neste momento, envolta na cultura escolar e assessorada por um adulto
(professor), a criança dá inicio ao pensamento científico. Vygotsky (1998) discute a complexidade da passagem do pensamento
espontâneo para o pensamento não-espontâneo, caracterizado pelos conceitos que a criança aprende. As pessoas aprendem
espontaneamente, através de suas vivências, ou aprendem de modo cientifico, através do ensino escolar, por exemplo. A
intencionalidade no ato de aprender pode conduzir a criança ao pensamento científico, com a descoberta de conceitos científicos.
O autor traz à tona a discussão sobre se devemos, ou não, refletir sobre se estes dois tipos de conceitos, espontâneo e não-
espontâneo, de maneira separada ou devemos estudalos conjuntamente, e chega a seguinte conclusão: [...] Acreditamos que os
dois processos – o desenvolvimento dos conceitos espontâneos e dos conceitos não-espontâneos – se relacionam e se influenciam
constantemente. Fazem Parte de um único processo: o desenvolvimento da formação de conceitos, que é afetado por diferentes
condições externas e internas, mas que é essencialmente um processo unitário, e não um conflito entre formas de intelecção
antagônicas e mutuamente exclusivas. [...] Vygotsky, (1998, p. 107). Observamos, na citação acima, que o autor aponta para um
estudo que abrange os dois tipos de conceito. Fundamentalmente, estaremos estudando o processo de formação de conceitos,
levando em conta, também, os fatores internos e externos da criança que desenvolve conceitos. Vygotsky argumenta, ainda, que
o aprendizado é uma fonte de formação de conceitos para a criança em idade escolar, uma força que direciona o desenvolvimento
de conceitos. Nesse sentido, podemos concluir que a instituição escolar e o professor são os grandes responsáveis pelo
desenvolvimento de conceitos não-espontâneos ou científicos. O autor fala, ainda, da importância do aprendizado escolar: O
aprendizado escolar induz o tipo de percepção generalizante, desempenhando assim um papel decisivo na conscientização da
criança dos seus próprios processos mentais. Os conceitos científicos, com o seu sistema hierárquico de inter-relações, parecem
constituir o meio no qual a consciência e o domínio se desenvolvem, sendo mais tarde transferidos a outros conceitos e a outras
áreas do pensamento. A consciência reflexiva chega à criança através dos portais dos conhecimentos científicos. Vygotsky (1998,
p. 115). É, sem dúvida, a escola a instituição que garantirá o desenvolvimento dos conceitos científicos e a aprendizagem dos
conceitos científicos por parte da criança. A escola é lugar privilegiado para auxiliar a criança a fazer a passagem da aprendizagem
espontânea para a aprendizagem dos conceitos científicos e estabelecer uma ligação entre elas. A escola, ampliando e
modificando a percepção do aprendiz, poderá levá-lo à conscientização reflexiva sobre o significado das coisas, sobre os conceitos.
Passar dos conceitos espontâneos para os científicos requer, então, uma intencionalidade de quem ensina e de quem aprende;
depende, também, como citado anteriormente, das condições internas e externas dos envolvidos no processo de ensino
aprendizagem. Vygotsky lembra que os conceitos científicos que a criança aprende na escola são mediados por outros conceitos já
internalizados, o que nos remete à certeza de que, nos processos de ensino aprendizagem, é fundamental considerar os
conhecimentos prévios do aluno, os conceitos aprendidos anteriormente pela criança, conhecimentos que a criança construiu
espontaneamente ou não. Finalizamos, aqui, as unidades da disciplina. A disciplina investigou o pensamento e a linguagem
humana do ponto de vista interacionista, destacando autores fundamentais com Piaget e Vygotsky, cada qual com sua importante
contribuição para os estudos do desenvolvimento humano, e também buscou visões mais contemporâneas, trazendo, para nossas
conversas e investigações, autores da atualidade

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