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Introdução
Não é fácil aceitar a ideia de que precisamos renunciar a uma postura adultocêntrica
para compreender o universo infantil, sobretudo quando ele nos é apresentado por meio
da linguagem. Isso significa dizer que não é possível compreender a criança por nossos
próprios parâmetros, pois os equívocos interpretativos seriam inevitáveis. Se estamos de-
sempenhando a difícil tarefa de ouvir uma criança, o primeiro desafio é construir com ela
oportunidades em que tenha voz, possibilitando que revele seu mundo, suas concepções,
sua lógica peculiar.
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Outra marca desta fase pré-conceitual da linguagem é a função simbólica, pela qual a
criança emprega uma imagem mental para algo que não se encontra imediatamente presente.
Por exemplo, pode usar uma caneta como microfone ou uma vassoura como cavalo. Esta
capacidade de simbolizar dá a criança a possibilidade de fazer de conta, de pensar no objeto
na ausência dele. Isso aparece no discurso infantil de forma ainda concreta, com semelhanças
entre o que se quer representar e as características do objeto. Ao descrever uma situação de
violência, pode imaginar objetos para representar outros. Recentemente, uma professora
relatou que uma criança do abrigo lhe fizera um estranho pedido: “faz de conta que esta
folha de árvore é um papel. Enrola aqui o meu ‘piu-piu’ (referindo-se ao pênis) para presente,
igual o amigo grande faz quando a gente brinca de aniversário”.
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cente, é quando elas contam partes muito recortadas de um fato e, aparentemente mistura,
no relato, itens que não fazem sentido, como: “era uma vez um homem grande que ia me
dar balinha para ir com ele na padaria, aí o caminhão atropelou a bicicleta e aí eu ganhei
uma boneca da vovó e depois minha mãe foi trabalhar”. A criança não tem compromisso
com a causalidade e, por isso, suas explicações e seus desenhos trazem trechos produzidos
sem um fio condutor, o que, muitas vezes, promove a ideia de que a fala infantil deva ser
desacreditada por esse motivo.
Para quem avalia o discurso infantil, tais características podem sugerir que o relato da
criança a respeito de um fato não seja verdadeiro. Entretanto, esse pensamento não encontra
respaldo na literatura do desenvolvimento infantil. É preciso apenas uma interpretação
adequada. Imagine ouvir uma criança vítima de violência sexual perpetrada por alguém de
sua família. João, 3 anos de idade, foi surpreendido por seu pai em uma cena com primo
mais velho no qual este brincava de dar-lhe banho, fazendo todo o tipo de manipulação em
seus órgãos sexuais. Ao ser questionado posteriormente pela família, João relatava que seu
primo gostava de fazer de conta que era o sabonete e ficava lavando ele todo na brincadeira
de faz de conta. Para João, não havia uma relação entre significante e significado. Por isso, ele
não associou a brincadeira a algo errado. Fazendo uso do sincretismo, seu relato misturava
trechos da violência, aspectos da casa da avó, descrições de brinquedos e de colegas da esco-
la. Contudo, mesmo com sua visão pré-operatória, guiada pela percepção imediata, João
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mostra um conteúdo claro, passível de ser interpretado pelos adultos como uma experiência
abusiva a ser investigada.
Ainda no estágio pré-operatório, há outro subestágio que vai dos 4 aos 7 anos de
idade, e é caracterizado pela maior complexidade de pensamentos, imagens e progressões
na capacidade de conceitualizar. A irreversibilidade é característica típica do período, pois a
criança não é capaz de visualizar a situação original. A lógica infantil é baseada em critérios
perceptivos, pois não há conduta conservativa.
É válido lembrar que os intervalos etários mencionados por Piaget, à época de seus
textos, devem ser contextualizados para o momento atual. Isso quer dizer que devemos nos
atentar para o processo de desenvolvimento que buscou retratar desde a gênese e não para
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as idades, como se fossem determinantes, uma vez que a estimulação do ambiente sofreu
constantes modificações desde seus estudos.
Com várias contribuições diferentes das de Piaget, Vygostky (1989) elege a lingua-
gem como um tema central em sua teoria, uma vez que é o sistema simbólico básico de
todos os grupos humanos. A linguagem apresenta duas funções básicas: a de intercâmbio
social – absolutamente importante para garantir a comunicação e que, por esta necessidade,
impulsiona o desenvolvimento da linguagem – e a de pensamento generalizante, que, ao
categorizar conceitos e nominar objetos do mundo real, torna possível o intercâmbio social.
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Isso nos ajuda a compreender por que uma fala da criança, com detalhes sexualizados,
converte-se em indicadores de violência sexual. Se, em sua fase de desenvolvimento, cabe apenas
a curiosidade sobre órgãos sexuais, sobre diferenças anatômicas entre gêneros e questões cor-
porais, o fato de estar reproduzindo cenas ou perguntas com erotização excessiva pode revelar
que está sendo submetida a algum tipo de estimulação, ou seja, o discurso socializado vigora,
sendo internalizado ou naturalizado para a criança, como uma mudança provocada de fora para
dentro. Este não seria um processo natural da criança, mas foi favorecido pelo acesso a esse con-
teúdo de forma deliberada, intencional ou por observação de um ambiente permeado por isso.
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Nesse ponto reside um dos pontos de divergência entre Vygotsky e Piaget, que é o
conceito de fala egocêntrica. Para Vygotsky (1984), a fala começa socialmente. Desde bebê,
observa-se a forma de comunicação e utiliza-se a linguagem externa disponível no meio
cultural para se fazer compreender pelo outro. À medida que se desenvolve, a criança se
apropria das expressões da cultura e passa a fazer uso com intenção não mais comunicativa,
mas como apoio às resoluções de problemas e planejamento de sequências de ações.
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Isso é revelador do valor da interação e das etapas posteriores do processo, pois crian-
ças de 6 anos de idade podem fazer algo sozinhas, aquilo que, aos 3 anos de idade, faziam
apenas com ajuda e que, aos três meses, nem com ajuda conseguiriam, como andar de bicicle-
ta, por exemplo. De acordo com Oliveira (1997), a concepção vygotskyana de que o apren-
dizado desperta processos internos comprova a relação entre desenvolvimento e ambiente
sociocultural, deixando claro que o organismo não se desenvolve plenamente sem o suporte
de outros indivíduos de sua espécie. Esta intervenção transformadora do outro terá lugar
em um conceito específico que Vygotsky formula para explicar a relação desenvolvimento
e aprendizagem: a zona de desenvolvimento proximal.
É importante lembrar que cada fala, cada intervenção, vai atuar sobre o processo de
maneira pessoal e que não pode mensurar como estão ocorrendo as transformações, pois
cada qual relacionará, às próprias aprendizagens, vivências anteriores e particularidades dos
processos de desenvolvimento psicológico. Daí a importância da preparação de profissio-
nais para a escuta de crianças, pensando que sua intervenção, pergunta, questionamento
ou proposta lúdica pode promover mudanças, progressos e impactos no desenvolvimento
das crianças.
Considerações finais
Grande desafio que se impõe aos profissionais que atuam na escuta de crianças e
adolescentes é conhecer o desenvolvimento infantil para compreender as características da
linguagem. Sabe-se que um vocabulário erotizado e o relato de experiências ricos em detalhes
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que não deveriam fazer parte de seu universo de vivências são indicadores de aspectos de
estimulação a serem investigados. A internalização de conceitos equivocados e a naturalização
da violência ou do gesto de abuso sendo compreendido como cuidado, a manutenção dos
pactos de segredo, são consequências desastrosas ao desenvolvimento psicológico da criança
e do adolescente, que precisam ser combatidas, interrompidas e elaboradas emocionalmente.
Quanto mais tivermos acesso aos aspectos teóricos e práticos que compõem o dis-
curso infantil, mais condições teremos de prover uma atuação consciente no campo da
violação de direitos e de prevenir as sequelas psicológicas decorrentes das violências a que
são submetidas estas crianças. Encontrar quem as escute e quem se interesse pela dinâmica
peculiar de seu universo pode ser um recurso muito poderoso no enfrentamento de sua dor.
Referências bibliográficas
SEBER, M.G. Piaget: o diálogo com a criança e o desenvolvimento do raciocínio. São Paulo:
Scipione, 1997.
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Rita Ippólito
• A criança nasce com uma herança genética que forma a base do desenvolvimento
biológico e mental;
• O crescimento ocorre no encontro entre as estratégias inatas com a realidade e
com base na experiência. Não apenas as estratégias iniciais mudam, mas tornam-se
cada vez mais complexas;
• A criança, desde o nascimento, é basicamente um explorador, um sujeito ativo
que se relaciona com o meio ambiente, com base em dois processos: assimilação
e acomodação. A assimilação é o processo pelo qual novas experiências e novas
informações são absorvidas, são processadas de forma a adaptar-se às estruturas
existentes. A acomodação é o processo fundamental que envolve a modificação das
ideias ou das estratégias como resultado de novas experiências. A criança enquanto
se adapta ao mundo constrói seus próprios padrões de pensamento, tornando-os
cada vez mais complexos.
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Destacamos aqui uma das operações mentais específicas desse período chamado por
Piaget de pensamento mágico. Vamos nos aprofundar um pouco mais para
entender a relação entre a interpretação da realidade por parte da criança e a
psicanálise de Freud. No âmbito da gênese e da natureza do pensamento mági-
co, essa operação sempre capturou a imaginação e foi, por vários pesquisadores,
em diferentes campos, fonte de interesse. Freud, porém, acredita que a magia é
produzida pelo desejo.
Também acredita que, por trás de cada prática mágica, existe um elemento afetivo
particular. Ele considera a mágica o resultado do narcisismo infantil, ou seja, um
estágio de desenvolvimento emocional durante o qual a criança só está interes-
sada em sua pessoa, seus desejos e seus pensamentos. A criança em amor por ela
mesma, de acordo com Freud, considera que seus pensamentos e desejos podem
influenciar, magicamente, os acontecimentos.
No período anterior à função da linguagem, as crianças não têm, por objetivo, a co-
municação. Elas falam entre si, mas não se escutam, não desenvolvem um trabalho
coletivo e não se ajudam. Ao contrário, nessa fase, é impressionante o nível de
concentração individual, maior que uma real colaboração na realização de uma
tarefa comum.
Depois dos sete anos, a criança é capaz de se conectar, coordenar e dissociar suas
ações das dos outros. Não há somente uma tentativa de comunicação, mas uma
verdadeira discussão. A criança não é capaz, somente, de explicar um fato, mas
também seu ponto de vista. As conversas são uma comunicação eficaz com os
outros, com troca real de informações. Inicia-se a reflexão, portanto, diminui a
fase egocêntrica. Há a noção de identidade, a capacidade de classificação, a ordem
em série e os julgamentos morais.
Piaget foi o primeiro autor a vincular o nascimento do senso moral com o desenvol-
vimento de propriedade intelectual da criança, distinguindo duas etapas: a hete-
rônoma e a moral autônoma. O realismo moral começa aproximadamente aos 5
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anos de idade e é caracterizado por um absolutismo moral (as regras são absolutas
e imutáveis) e uma justiça imanente (a violação segue sempre o justo castigo).
O adolescente como a criança vive no presente, mas está muito projetado no futuro.
O seu mundo está cheio de projetos e teorias sobre si mesmo e sobre a vida. Em
seguida, ele estende seu pensamento com base no real em direção ao possível.
A transição do pensamento concreto para o formal, também chamado de hi-
potético-dedutivo, é uma transição suave. Até agora, portanto, as operações de
pensamento baseavam-se exclusivamente na realidade e nos objetos tangíveis que
poderiam ser manipulados e submetidos a experiências reais. Nessa fase, nasce a
representação de objetos ausentes, o que equivale à representação da realidade.
Além da lógica formal e da conclusão da construção do pensamento, o adolescente
define a própria personalidade.
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Por meio de projetos e programas de vida, ele faz parte da sociedade adulta. Essa tam-
bém é a etapa da puberdade, com suas mudanças físicas, alterações hormonais.
Intensifica-se a atividade masturbatória e instala-se a genitalidade. Abrem-se novos
horizontes e novas curiosidades, podendo ocorrer as explorações da atração e das
fantasias sexuais com pessoas do mesmo sexo e do outro sexo. Inicia a experienciar
o sentimento dos vínculos amorosos entre pares. As expressões da sexualidade,
assim como a intensificação das vivências amorosas, são aspectos centrais na vida
dos adolescentes.
Referência bibliográfica
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