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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Disciplina: Teorias em Psicologia do Desenvolvimento


Docente: Ana Paula Soares da Silva
Discentes: Carolina Jacomini – 11297430; Lívia Carniel – 11793872;
Lucas Ramazzotto – 8754465

Atividade sobre Piaget - Território do Brincar

O documentário “Território de Brincar”, dos diretores Renata Meirelles e David


Reeks, é descrito por esses como uma peça cinematográfica que assume a atividade de
brincar das crianças enquanto uma narrativa que sustenta integralmente uma história. O
trabalho desenvolvido por 21 meses buscou representar diversas crianças e seus trejeitos,
oriundas das mais variadas realidades do Brasil. São os trejeitos, os brinquedos e as
brincadeiras desenvolvidas por essas crianças que buscamos analisar e discutir no presente
trabalho, pautados pelas teorias do desenvolvimento e aprendizagem desenvolvidas por Jean
Piaget e sua obra “Seis Estudos de Psicologia”, a partir das perspectivas construtivistas,
interacionistas e estruturalistas que baseiam sua Epistemologia Genética.
Após assistirmos os três trechos propostos, decidimos por focar a discussão no
primeiro trecho selecionado, compreendido entre os tempos 5 minutos 42 segundos e 19
minutos 27 segundos. As cenas desse trecho apresentam diversas crianças, com diferentes
idades e em contextos distintos, desenvolvendo brinquedos e brincadeiras relacionadas ao
“brincar de casinha”. O trecho chama atenção sobretudo por representar uma mesma
brincadeira sendo desenvolvida a partir de diversas formas, com número diferente de
participantes, objetos a disposição e condições socioambientais.
Inicialmente, um outro aspecto que nos chama a atenção diante da cena selecionada, e
que gostaríamos de começar abordando, é a complexidade das ações desempenhadas pelas
crianças apresentadas, uma vez que, a partir do estudo da teoria piagetiana, passamos a
compreender o quão longo e complexo são os processos de desenvolvimento para chegar
neste ponto. No dia-a-dia estamos acostumados com a complexidade das ações cotidianas que
envolvem formas de conhecer e agir no mundo baseadas em abstrações, usos da lógica
formal, manejo de interesses e desejos, planejamento e organização de esquemas que só
podem ser realmente entendidos em sua totalidade a partir da compreensão de sua gênese.
Quando não nos debruçamos sobre esse processo, deixamos de perceber como essa
forma de agir no mundo, muitas vezes tomada como muito natural, é fruto de uma grande e
trabalhosa conquista. Para Piaget, essa complexa forma de conhecer o mundo tem origem nos
reflexos, sendo que estes, inicial e aparentemente muito simples como percebemos em bebês,
podem se modificar e desenvolver a tal ponto, a partir da interação com o mundo, que as
crianças, assim como na cena, são capazes de projetar, construir e adaptar seus próprios
brinquedos e brincadeiras. Por meio da perturbação causada pela interação indivíduo-meio,
dá-se o motor que impulsiona o desenvolvimento da inteligência e das capacidades dos seres
humanos. O desequilíbrio resultante dessa perturbação fomenta a busca pela regulação e
restabelecimento do equilíbrio, acarretando na possibilidade de se assimilar e acomodar as
experiências de forma a construir novas maneiras de se relacionar e compreender o mundo a
partir dessa dinâmica, desenvolvendo e refinando as estrutura cognitivas de um indivíduo.
Dessa forma, é a partir dessa dinâmica que passamos a observar a complexidade das
brincadeiras apresentadas ao longo do documentário, sobretudo à organização e desenrolar
das brincadeiras de casinha. Fruto desses processos ativos que ocorreram ao longo dos anos,
nesses momentos são demonstrados como as crianças estão apresentando sua inteligência ao
fazer uso dessa função de integração das estruturas com as mudanças, assimilando os
elementos do meio e coordenando seus esquemas de ação para satisfazer seus objetivos e
interesses além do tempo presente. Assim, quando a criança nas cenas é capaz de construir
sua própria casa, nota-se que há uma gama de esquemas ordenados para executar uma ação
que não possui um fim em si mesmo. São vários os exemplos que permitem essa percepção,
desde a organização dos objetos para se brincar de casinha, adaptando até mesmo materiais
recicláveis, bem como o de construir casinhas e modos de brincar de casinha a partir de
diversos objetos e estruturas diferentes.
Ressaltamos o momento em que uma das crianças, ao construir uma casinha a partir
de galhos de árvores, executa diversas ações como buscar os galhos de tamanhos adequados,
posicionar os galhos de maneira a seres sustentados pela estrutura que está criando, segurar
suas pontas com uma mão para amarrá-los com a outra usando uma corda, tudo com o intuito
de que a estrutura se sustente por si só e ela possa realizar a sua brincadeira. Assim, isso
demonstra o quão refinada é a qualidade de sua inteligência nesse ponto de seu
desenvolvimento, pois partindo de um bebê que agia apenas por meio de reflexos, essa
criança se tornou um ser capaz de ordenar os esquemas complexificados e diferenciados,
oriundos de seu desenvolvimento, para construir essa casinha. Também é digno de nota que,
ao esmiuçarmos essa coordenação de esquemas, as crianças demonstram a capacidade de
manter interesses menos imediatos, ao contrário do que se percebe em estágios anteriores do
desenvolvimento, passando de uma ação que tem fim em si mesmo para ações sujeitas a
critérios de meios e fins. A fim de ilustrar isso, quando pensamos em um bebê tentando
alcançar um objeto, seu esquema motor está orientado pelo interesse de pegar o objeto (fim
em si mesmo). Por outro lado, no exemplo da menina construindo a casinha, o esquema de
pegar o galho tem a finalidade de não apenas pegar o galho, mas sim de, a partir da
coordenação de outros esquemas, construir a estrutura na qual irá brincar de casinha, seu
interesse menos imediato que orienta suas ações.
A menção aos diferentes estágios do desenvolvimento abre precedente para
abordarmos outros aspectos que podem ser discutidos a partir do trecho do documentário.
Conforme a teoria piagetiana, há seis estágios do desenvolvimento, dentre os quais o estágio
da inteligência intuitiva, comumente denominado pré-operatório, que compreende a primeira
infância (de dois a sete anos), tem presença majoritária no trecho. Em se tratando da primeira
infância, é relevante destacar a modificação que ocorre nas condutas no aspecto afetivo e
intelectual através do aparecimento da linguagem. A criança torna-se capaz de reconstituir
suas ações passadas sob forma de narrativas, bem como de antecipar suas ações futuras pela
representação verbal. Nesse estágio, Piaget destaca como consequências essenciais para o
desenvolvimento mental a socialização da ação, a aparição do pensamento propriamente dito
e a intuição.
Sobre a socialização da ação, Piaget destaca a existência de fatores de subordinação e
relações de coação espiritual exercidas pelo adulto sobre a criança. Assim, os pais e adultos
aparecem como seres grandes e fortes, tornando-se o modelo do “eu ideal” que se propõe ao
eu da criança, isto é, exemplo de modelos que a criança deve copiar ou igualar. No trecho
selecionado, o próprio ato de brincar de casinha, incluindo as ações de varrer o chão, arrumar
a casa e preparar a comida, representam essa tentativa de cópia do modelo ideal representado
pelos pais.
Além dos fatores de subordinação, outra categoria de fatos que se destaca no trecho
selecionado envolve o ato das crianças não falarem somente às outras, mas também a si
mesmas, incessantemente, em monólogos variados que acompanham seus jogos e
brincadeiras. Isso se apresenta principalmente nos minutos derradeiros do trecho, em que há
uma garota brincando sozinha com uma casinha de bonecas, narrando em voz alta todas as
ações que ela realiza (realmente funcionando como um auxílio de suas ações imediatas). Tal
aspecto se explicita em frases como “tem que arrumar umas coisas”, “a nenê precisa de
cobertor, se ela quiser deitar de ponta cabeça pode deitar porque tem um travesseirinho” e
“pronto, já cozinhei”. Em suma, essa cena é uma representação da ideia defendida por Piaget
de que a criança nesse estágio permanece (inconscientemente) centralizada em si mesma, ao
invés de sair do seu ponto de vista para coordená-lo com o dos outros, havendo uma
indiferenciação entre o eu e a realidade exterior e, portanto, a primazia do próprio ponto de
vista - afinal, a menina na cena narra suas ações não para a câmera, não para quem está
filmando, nem para qualquer ponto exterior, mas apenas para si mesma.
A respeito da gênese do pensamento, cabe salientar que, na primeira infância, há uma
transformação da inteligência, a qual se prolonga como pensamento influenciado tanto pela
linguagem quanto pela socialização. Conforme explicação do autor, entre duas crianças
aparece uma forma diferente de jogo característica da primeira infância e que sofre
intervenção do pensamento, sendo este individual, quase puro, com o mínimo possível de
elementos coletivos. Esse jogo, denominado simbólico ou de imaginação e imitação, está
presente no decorrer do trecho, em cenas nas quais crianças brincam de boneca ou de “fazer
comidinha”. Os jogos simbólicos representados nessas cenas constituem uma atividade do
pensamento principalmente egocêntrica, dado que, de acordo com Piaget, a função desses
jogos é satisfazer o eu transformando o real em função dos desejos: as crianças que brincam
de boneca (dão banho, alimentam, cuidam, fazem-na dormir, etc.), refazem sua própria vida,
revivendo todos os prazeres e conflitos, corrigindo suas vivências da maneira que preferem,
isto é, completando a realidade por meio desse jogo ficcional.
Por sua vez, ainda na primeira infância, um último aspecto passível de se ressaltar é a
intuição. A criança de dois a sete anos apresenta uma inteligência prática que prolonga a
inteligência senso-motora do período pré-verbal. A inteligência prática em formação se dá, de
acordo com o autor, através de dispositivos engenhosos, que visam alcançar objetivos por
meio de instrumentos variados (tais quais gravetos, varetas, etc.). Nas cenas apresentadas, é
possível ressaltar que, quando as crianças se utilizam de gravetos e varetas para construir um
apoio aos lençóis e montar a cabana, essa inteligência prática é posta em ação, podendo-se
constatar a presença de tais dispositivos engenhosos. Isso permite a compreensão piagetiana
de que a criança é muito mais adiantada nas ações do que nas palavras, isto é, ela suplementa
a lógica pelo mecanismo da intuição.
A partir do exposto acima, podemos perceber a relevância da compreensão da obra de
Piaget para o entendimento do desenvolvimento humano. O fato da cena apresentar diversas
crianças em contextos distintos brincando de casinha, nos ajuda a refletir não só sobre seu
desenvolvimento, mas também a entender o ponto de vista do autor acerca da universalidade
dos estágios de desenvolvimento por ele propostos. Independentemente de fatores
socioculturais e ambientais, o desenvolvimento infantil passa por esses estágios, com suas
características específicas. Pode-se alterar a maneira como se desenrolam, mas fica claro que
todo ser humano percorrerá todos eles, nessa ordem, na trajetória de sua maturação e formas
de conhecer o mundo.

REFERÊNCIAS

Meirelles, R. & Reeks, D. (Diretores). (1995). Território de Brincar


[Documentário Online]. Maria Farinha Filmes; Alana. Disponível em:
Território do Brincar

PIAGET, J. (2015). Seis Estudos de Psicologia. 24ª. Edição Revista, Rio de


Janeiro: Forense Universitária.

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