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AVALIAÇÃO DO
BRINCAR INFANTIL
Material de Estudo
Professora Responsável:
Psicopedagoga Jéssica Cavalcante
www.institutoneuro.com.br
AVALIAÇÃO DO
BRINCAR
INFANTIL
Curso com carga horária de 80 horas.
Disponível em www.institutoneuro.com.br
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O psicanalista inglês Donald Winnicott (1951) considera que essa atividade criativa e de brincar
deriva de um espaço transicional, aquele que se constitui nos primeiros anos de vida, entre o fechamento em
si e a capacidade de estabelecer verdadeiras relações de objeto. A criação de uma realidade interna através
daquele espaço é a condição, inclusive, para a capacidade de estar só, o que Winnicott identifica como um
indicador de amadurecimento subjetivo.
“(...) todo indivíduo que alcançou a condição de ser uma unidade (com uma membrana limitadora entre o
exterior e o seu interior) possui uma realidade interna, um mundo interno que pode ser rico ou pobre, e que
pode estar em paz ou em estado de guerra. (...) existe uma terceira parte na vida do indivíduo, parte essa que
não podemos ignorar, uma região intermediária da experimentação, para a qual contribuem tanto a realidade
interna quanto a vida externa (...) Estou, portanto, estudando a substância da ilusão, aquela que admitimos
na criança, e que, na vida adulta, é inerente à arte e à religião.” (WINNICOTT,1951, p. 317).
Trata-se de um espaço lúdico, com potencial criativo. Diz Winnicott (1951, p. 320)
sobre o objeto transicional: O objeto é afetuosamente acariciado tanto quanto amado com
excitação e mutilado (...). Seu destino é o de poder ser gradualmente descatexizado
(desinvestido), de modo que, no decorrer dos anos, ele se torne não tanto esquecido, mas
relegado ao limbo. Com isso quero dizer que, na saúde, o objeto transicional não “vai para
dentro”, nem o sentimento a seu respeito sofre repressão necessariamente (...). Neste ponto,
meu tema amplia-se, abarcando o brincar, a criação e a apreciação da arte, o sentimento
religioso, o sonho, e também o fetiche, a mentira e o roubo, a origem e a perda dos sentimentos
de afeição, a adição a drogas, o talismã do ritual obsessivo, e assim por diante.
Silva (2016) aponta que o brincar dentro do setting terapêutico é um método de
acesso indispensável e importante para que a criança tenha acesso ao seu próprio mundo,
mostrando-se como um dispositivo de avaliação e intervenção que reforça o comportamento da
criança.
Ademais, Del Prette (2006) afirma que o brincar possibilita a construção e o
estabelecimento da aliança terapêutica, o que consequentemente diminui o risco de abandono
da terapia, “[...] pode contribuir, por essa via, para o engajamento da criança no processo e,
portanto, para a efetividade da terapia.” (p.5)
Segundo Gadelha e Menezes (2004), o uso de recursos lúdicos, embora seja algo
considerado novo pela Terapia Comportamental Infantil “[...] tem mostrado uma área de atividade
clínica que beneficia crianças e suas famílias, pois favorece a aquisição de comportamentos sociais
importantes e a melhora nas interações sociais [...]” (p.58), salientando ainda que por recursos lúdicos
podemos considerar qualquer objeto que a criança em sua leitura lúdica venha a ser considerado um
brinquedo.
Além disso, cabe salientar que na interação com a criança, é importante compreender como
o ambiente tem influenciando o comportamento, e que, portanto, as relações são fundamentais e
diante das quais apreender a função de suas expressões e como ela interioriza tais experiências, para
tanto, os recursos lúdicos buscam tornar essa comunicação terapeuta-cliente viável e fortalecida.
Dentre tais recursos, incluem desenhar ou contar histórias, fantasiar, imaginar e interpretar situações,
usar bonecos e jogos, pinturas, colagens, argila, massa plástica de modelagem, música, entre outros
instrumentos que caracterizam uma situação natural para a criança e um ambiente livre de censura
para a exposição de seus sentimentos. (GADELHA e MENEZES, 2004, p. 60)
É através das intervenções lúdicas e observações, apoiadas em um vínculo terapêutico que
torna-se possível o terapeuta acessar comportamentos mais próximos aos “naturais”, ou seja durante a
terapia é possível que a criança apresente comportamentos bem próximos aos que ela mostra em
ambientes não controlados.
Cabe ao terapeuta infantil avaliar, a priori, o repertório comportamental da criança e como a
mesma reage perante seus pares e com o profissional, identificando aspectos que estão presentes em
seu comportamento na vida cotidiana e quais intervenções serão necessárias.
O lúdico tem como objetivo duas perspectivas: Diagnosticar e Propor Desafios. Através dos
espaços estruturados ou não estruturados para brincar podemos verificar duas possibilidades lúdicas: o
jogo espontâneo ou o jogo orientado (dirigido). Resultados teóricos importantes podem ser alcançados
através deste estudo. As descobertas investigativas sobre o brincar em espaços lúdicos podem definir
critérios tais como:
• A duração do envolvimento em um determinado jogo;
• As competências do sujeito envolvidas na ação lúdica;
• O grau de iniciativa, criatividade, autonomia e criticidade que o jogo proporciona ao participante;
• A verbalização e linguagem que acompanham o brincar;
• O grau de interesse, motivação, satisfação, tensão aparente durante o
• jogo (emoções, afetividade, etc.);
• Construção do conhecimento (raciocínio, argumentação, etc.);
• Evidências de comportamento social (cooperação, colaboração, conflito, competição, integração,
inclusão, etc.);
• Evidenciar na criança comportamento de preservação e respeito aos equipamentos e materiais
lúdicos e da democratização do uso dos mesmos;
• Verificar fatores de apropriação do espaço lúdico.
Compreender o brincar como forma de expressão individual e subjetiva da criança,
como algo importante para o desenvolvimento infantil, compreender que o brincar é
fundamental para que a criança se aproprie de conceitos que irão fundamentar suas construções
e aprendizagens. Nesse contexto, a instituição deve se preparar em sua organização, e as
professoras em suas propostas, motivando, estimulando, mediando o processo de aprendizagem
e permitindo que a criança crie, construa, brinque.
Vigotski (2007, p. 122) aponta que a brincadeira estimula processos internos de
desenvolvimento e cria a zona de desenvolvimento proximal, para o autor o brinquedo cria uma
zona de desenvolvimento proximal da criança. No brinquedo, a criança sempre se comporta além
do comportamento habitual de sua idade, além de seu comportamento diário; no brinquedo é
como se ele fosse maior do que é na realidade. Como no foco de uma lente de aumento, o
brinquedo contém todas as tendências do desenvolvimento sob forma condensada, sendo, ele
mesmo, uma grande fonte de desenvolvimento.
As investigações mais recentes sobre o cérebro produziram três conclusões
importantes. Primeiro, a capacidade de um indivíduo de aprender e se desenvolver numa série
de planos depende da interação entre natureza (seu legado genético) e a criação (o tipo de
cuidado, estímulo e ensino que recebe). Segundo, o cérebro humano está estruturado de forma a
se beneficiar da experiência e de um ensino eficaz durante os primeiros anos de vida. E, terceiro,
embora as oportunidades e os riscos sejam maiores durante os primeiros anos de vida, a
aprendizagem tem lugar ao longo de todo o ciclo da vida humana.
Do ponto de vista físico, estão, provavelmente, os benefícios do brincar ligados ao
desenvolvimento de habilidades físico-motoras da criança, ainda hoje os mais aparentes e
reconhecidos pelo público em geral. Segundo Bettelheim (1988), as crianças entram na
brincadeira porque ela é agradável em si e lhes oferece a possibilidade de exercitar seus corpos.
Ao brincar elas desenvolvem os músculos, absorvem oxigênio e realizam funções
orgânicas, crescem, deslocam-se no espaço, experimentam sua força, manifestam a capacidade
de controle, enfim, descobrem seu próprio corpo. Sobretudo para uma criança pequena,
movimentar- se é uma forma de expressão capaz de mostrar como a dimensão corporal se
integra ao desenvolvimento mental do ser humano. A motricidade humana também se
desenvolve por meio da manipulação de objetos de diferentes formas, cores, volumes, pesos e
texturas.
O brincar coletivo é visto de uma maneira especial pelos estudiosos, pois prepara o
ser humano para os enfrentamentos sociais da vida adulta. É só pela brincadeira livre com outra
crianças, dentro de um contexto apropriado, com materiais e com bons modelos culturais nos
quais possam se inspirar, que a criança conseguirá desenvolver condutas adequadas para a vida
em grupo. O brincar coletivo, quando ocorre livremente, oferece às crianças a possibilidade de
trocar ideias, estabelecer acordos, criar regras e brincar pelo tempo que acharem necessário:
ele integra a criança na cultura de seu grupo e até mesmo pode gerar uma cultura específica da
infância, que varia de acordo com o ambiente social e cultural.
Se para Freud a brincadeira é a representação da realidade, para Piaget (1978) ela
assume um papel fundamental nas etapas de desenvolvimento a criança. Foi investigando o
desenvolvimento da inteligência que Piaget aprofundou seus estudos sobre o jogo. Ele mostrou
as contribuições da atividade lúdica para a aprendizagem das regras, a socialização da criança, o
aparecimento da linguagem e, sobretudo, o desenvolvimento do raciocínio.
De acordo com o estudioso suíço, a brincadeira surge a partir do exercício de
repetição, ou seja, da realização de uma atividade pelo prazer que ela proporciona. Através da
ação de repetição, a criança aprende, então, a imitar certos movimentos. Essa imitação é o
prolongamento da inteligência, no sentido de que, por ela, a criança consegue diferenciar novos
modelos. Com o tempo a criança aprende a estabelecer imagens mentais, que se desdobram em
imitações expressas através de desenhos, das artes plásticas, dos sons, do ritmo e da dança, dos
movimentos físicos e da linguagem. Assim, a imitação dá lugar à simbolização, quando a criança
consegue interligar a ideia de um objeto real ao próprio objeto.
A função simbólica possibilita a experimentação, forma pela qual
a criança descobre novas propriedades dos objetos em seu entorno.
Nessa perspectiva, a brincadeira infantil pode ser vista como uma
maneira de permitir às crianças que aprendam a interligar significações,
isto é, aprendam a ligar a imagem (significante) ao conceito (significado),
conseguindo representar até mesmo um objeto ausente.
Assim, Piaget mostrou que as ações de repetição, imitação e
simbolização são intrínsecas às atividades lúdicas, em particular aos
jogos passíveis de repetição e àqueles de faz de conta, que demandam
importantes processos mentais, como observação, percepção, análise,
síntese, interiorização, representação e significação. Portanto, a
brincadeira é fundamental no desenvolvimento do raciocínio.
O desenvolvimento da linguagem
Segundo o estudioso, é através da brincadeira que a criança formula os conceitos e as
palavras se tornam algo concreto. Ele mostrou, por exemplo, que o ato motor realizado durante a
brincadeira precede o ato mental, ou seja, são as interações da criança com os objetos que estão
à sua volta que fazem com que ela atribua significado à ação. Para Vygotsky, no desenvolvimento
cognitivo, a brincadeira é o momento em que os elementos da imaginação da criança se integram
aos elementos elaborados e modificados da realidade.
Nessa perspectiva, o brincar se coloca não só como uma atividade que provoca o
desenvolvimento da criança, mas também como um processo de criação que combina a
realidade e a fantasia.
A imaginação é um processo psicológico novo para a criança; representa uma forma
especificamente humana de atividade consciente, não está presente na consciência de crianças
muito pequenas e está totalmente ausente nos animais. Como todas as funções da consciência,
ela surge originalmente na ação. O velho adágio de que o brincar da criança é a imaginação em
ação deve ser invertido; podemos dizer que a imaginação (...) é o brinquedo sem ação
(VYGOTSKY, 1988, p. 106).
Portanto, a brincadeira é uma transição entre as situações da infância que são reais e o
pensamento do adulto, que pode se separar totalmente de tais situações.
Indiscutível o valor do brincar no processo de desenvolvimento da criança, pois é dessa
forma que ela aprende a “agir na esfera cognitiva”4, o que depende antes das motivações internas do
que de objetos externos. Considerando-se que o brincar é uma projeção da vida interior da criança
para o mundo, Vygotsky também pondera que ele pode ser entendido como uma força importante de
comunicação da criança.
Do ponto de vista da linguagem, o jogo é como uma projeção da vida interior para o
mundo, daí ser considerado uma forma de comunicação. Jogar é, portanto, a maneira de a criança
aprender sutilmente valores da nossa conduta. Nós apenas temos que estimulá-la, servindo-nos assim
da atividade lúdica para ensinar.
Ainda na linha psicológica, de acordo com Bettelheim (1988), ao permitir a solução de
problemas não resolvidos, o brincar gera uma sensação de bem-estar na criança e estimula sua
criatividade. Complementando essa observação, Jeammet (1994), ao tratar do papel do jogo no
desenvolvimento da criança, notou que, quando ela não brinca, fica deprimida, porque não consegue
se expressar e resolver seus problemas.
Bettelheim também mostrou que, ao brincar, as crianças aprendem que, quando perdem, o
mundo não se acaba, portanto perder não é uma demonstração de inferioridade, mas um momento
em que elas podem expressar as dificuldades. Dessa forma, o brincar se constitui em ocasião
privilegiada para que as crianças ensaiem condutas que, sob tensão, jamais seriam tentadas a
experimentar. Os estudos de Bettelheim e Jeammet, entre outros, reforçam a noção de que o brincar
é determinado por processos íntimos, desejos, problemas e ansiedades. Nessa perspectiva,
demonstram a importância do brincar no desenvolvimento emocional da criança.
Para os pais, a atividade lúdica é universal e se constitui em
uma maneira de a criança manter sua saúde física e mental, pois
dela os pequenos participam com todo o seu ser, sabendo
exatamente quando e o que estão jogando. É brincando que a
criança expressa vontades e desejos construídos ao longo de sua
vida, ao mesmo tempo que interage no mundo em que vive e se
integra na cultura de sua época. O jogo funciona como uma válvula
de escape, dando vazão às tendências reprimidas. Quanto mais
oportunidades a criança tiver de brincar, mais facilmente se
desenvolverá.
Dimensão Cognitiva
Segundo Piaget, na usual relação de adaptação ao mundo, a inteligência, primeiro
“acomoda” as novidades que encontra para depois conseguir “assimilá-las”, torná-las próprias,
assim como o aparato digestivo modifica as suas reações a partir do contato com alimentos
novos para poder os absorver. Na criança muito pequena, durante a fase sensório-motora
(zero−dois anos), isso significa que os esquemas de ação se modificam de acordo com os novos
objetos que são aplicados a fim de estabelecer relações com eles, “assimilá-los”: por exemplo, o
esquema de pegar se acomoda sobre um objeto redondo para conseguir pegá-lo.
Na brincadeira, a “assimilação” da realidade prevalece sobre a “acomodação”, ou seja,
o sujeito “adquire” coisas e eventos ao próprio ponto de vista, aos próprios desejos: por
exemplo, lança e pega uma bola, aplicando esquemas de ação já acomodados e consolidados,
ou finge que um prato seja um chapéu, “porque lhe convém”, sem objetivo e suspendendo
qualquer esforço de adaptação. É esse desequilíbrio a favor do processo de assimilação, de
adequação da realidade de suas próprias ações e pensamentos, o que explicaria o ponto de
vista cognitivo da brincadeira, conforme descrito por Callois, na sua natureza de atividade
finalizada, além da usual relação adaptada ao mundo, reconhecida pelo sujeito como uma
dimensão da realidade anômala, por ser limitada e adquirida ao seu querer tanto nos termos de
seu desenvolvimento quanto das suas regras.
Esse “jogo funcional” ou “de exercício” tem seu percurso evolutivo, que Piaget declina
em relação ao proceder do desenvolvimento intelectual (PIAGET, 1974, p. 129−138). Em sua
estreia, no segundo estágio da inteligência sensório-motora (um−quatro meses), em
correspondência com as reações circulares primárias (repetição de um esquema de ação com
base inata apenas “acomodado”), o jogo funcional é o jogo com o corpo. A sucção da língua ou
das mãos, os movimentos dos dedos e das mãos, as vocalizações são todos esquemas de ação
que se tornam jogo no momento em que são ativados pelo puro prazer de realizá-lo. No terceiro
estágio (quatro−oito meses), com reações circulares secundárias (os esquemas de ação repetidos
não têm bases “instintivas” e envolvem os objetos), o jogo funcional torna-se jogo com objetos,
ou seja, a aplicação de esquemas de ação sobre as “coisas” por prazer funcional e pelo “prazer
de ser causa” sem fins de compreensão (por exemplo, bater em um objeto para se “divertir”,
para vê-lo balançar depois de ter executado a mesma ação para “estudar” os efeitos) (PIAGET,
1974, p. 135).
No quarto estágio (oito−doze meses) e no quinto (doze−dezoito meses), com reações
circulares terciárias (repetições de coordenações de ações, com distinção entre meios e fins: por
exemplo, como deslocar-se em meio a um obstáculo para pegar finalmente um objeto), o jogo
funcional se desenvolve como “ativação de esquemas conhecidos em sucessão” (por exemplo,
agitar uma boneca, em seguida, juntar as mãos e agitá-las, depois pegar um travesseiro, agitá-lo
e na sequência castigá-lo) e a criação de combinações fixas de gestos, “rituais” que se mantém
no tempo, por pura diversão (PIAGET, 1974, p. 137).
Na perspectiva piagetiana a aparência do jogo simbólico é o “sintoma lúdico” do
aparecimento da capacidade representativa, que acontece por volta do segundo ano de vida
com a transição da inteligência sensório-motora (zero−dois anos) para a pré-operatória (dois−
sete anos). Essa transição é marcada pela interiorização dos esquemas de ação. Se na fase
sensório-motora os esquemas de ação são representados mentalmente apenas no momento no
qual são ativados e então percebidos, em torno de dois anos o amadurecimento das estruturas
intelectuais, produzem uma “imitação” mental dos esquemas, de maneira que possam ser
representados mentalmente também quando não são percebidos e colocados em ação. Dessa
maneira, acontece o processo de abstração do pensamento e se inicia a capacidade de refletir.
Tal passagem evolutiva permite que o jogo simbólico, que implica de fato a capacidade
de imaginar um elemento não percebido (por exemplo, colocar um chapéu), e de expressá-lo
utilizando um elemento presente como um substituto simbólico (por exemplo, apoiar um prato
na cabeça). A ludicidade está no fato que esse processo de substituição simbólica vê a
prevalência de assimilação sobre a acomodação. No jogo simbólico de fato, a realidade vem
“inclinada” à vontade da criança, o significado dos elementos presentes é suspenso e esses
elementos são usados como o “significante” de outros significados, somente imaginados, que a
criança deseja expressar. As razões dessa conduta são afetivas e dizem respeito principalmente
ao prazer de afirmar o próprio poder sobre a realidade.
• A perspectiva psicanalítica – As dimensões afetivas do jogo vêm aprofundadas em um âmbito
teórico bastante diverso, a psicanálise. Como nas demais, na perspectiva psicanalítica falar de
brincadeira significa falar de jogo simbólico, mas, nessa perspectiva, a simbolização lúdica vem
descrita em termos de processos afetivos mais que cognitivos. Qualquer jogo seria caracterizado
por um processo de substituição simbólica inconsciente, tal que um conteúdo manifesto estaria
inconscientemente “no lugar de” um conteúdo inconsciente latente.
O primeiro a falar sobre a brincadeira nesses termos é Freud (1977). Ao descrever um de
seus netos, que brinca de lançar para longe de si um carretel e depois o busca repetidamente. Freud
sustenta que dessa maneira a criança inconscientemente está encenando a separação da mãe. O
carretel é simultânea e inconscientemente, o substituto da criança que se sente jogada fora e da mãe
que é descartada satisfazendo a fantasia inconsciente de puni-la. Nesse caso, a simbolização se
fundamenta na analogia afetiva entre situações (o desaparecimento do carretel remete afetivamente
ao desaparecimento da mãe), e é estabelecida tanto individual quanto inconscientemente, e não
requer, como no caso de fingir conscientemente, que a capacidade cognitiva tenha representações
mentais independentes das percepções.
• A brincadeira como “mediador emocional” – A entrada para o jardim de infância, por um lado,
significa para a criança a parte dolorosa da separação das suas figuras de afeto e do contexto
familiar, por outro lado, o “assustador” e obrigatório encontro com as pessoas e ambientes
desconhecidos é um momento fundamental para o seu crescimento, porque, se enfrentado nas
melhores condições, permitirá que a criança dê os primeiros passos para a segurança afetiva o que
possibilitará que o/a menino/menina se abra ao mundo e às novas experiências estimulantes
colocadas à disposição pela creche.
Entre os vários aspectos que se combinam para criar uma “boa” separação, existe a
possibilidade da brincadeira. As considerações de Freud (1977), sobre a brincadeira do carretel,
esclarecem como esse jogo permite à criança elaborar profundas experiências relativas à
separação ao colocá-la em cena – inconscientemente em uma posição ativa – satisfazendo os
desejos de punição inconscientes e de reafirmação da conexão entre a criança e o novo espaço
que passa a ocupar, para que chegue a conhecer emotivamente em profundidade a separação
até aceitá-la. Isto é, vale para qualquer atividade lúdica centrada no desaparecer e reaparecer
(de objetos, do próprio rosto no espelho, ou do outro na brincadeira de esconde-esconde etc.)
A psicanálise reconhece a brincadeira como um instrumento, com o qual, a criança
inconscientemente coloca em cena e elabora o seu mundo interno, o conjunto de vivências
dolorosas que fizeram parte de si. Por isso, se pode afirmar que o jogo é “mediador emotivo”
também em relação às vivências na creche, enquanto ambiente desconhecido.
Diante do novo prevalecem sentimentos de incerteza, confusão, frustração,
impotência, inadequação; o conseguir afrontar e elaborar esses sentimentos permite chegar
mais perto do “desconhecido” e de iniciar a conhecê-lo, de dar espaço para a curiosidade e ao
processo de aprendizagem, que sempre, passa por meio do encontro e da familiarização com o
desconhecido.
A brincadeira como “mediador
cognitivo”
Brincadeira é o instrumento por meio do qual esses estímulos podem ser absorvidos
pela criança, aprofundados e transformados em aprendizagem e desenvolvimento. Por um lado,
no que se refere à brincadeira que envolve as “coisas” em relação às suas características físicas,
parece que se pode ir além da posição de Piaget (1974).
Como já se viu, o “jogo funcional” existe somente quando a criança repete os
esquemas de ação sobre o corpo, sobre objetos, estando já com suas articulações plenamente
adquiridas, isto é, o faz por puro divertimento. Por outro lado, parece que se pode falar de jogo
até mesmo quando a criança, fora qualquer necessidade adaptativa, de sua espontânea iniciativa
e sentindo dona da situação, experimenta novas combinações de ações para explorar as
características do mundo físico, descobrindo possibilidades inéditas.
Bruner (1976) confirma essa hipótese, afirmando que no jogo a criança tem a
oportunidade de colocar à prova combinações de ações que não poderia experimentar sob a
pressão das necessidades adaptativas.
A brincadeira simbólica desenvolve a função de “mediadora cognitiva” também em um
segundo nível, entre a criança e a riqueza de estímulos oferecidos pela creche, em termos de
significados.
Como já salientamos, de acordo com Vigotski, por meio desse jogo, a criança “coloca em
cena” a função e, então, o significado socialmente atribuído aos objetos, aos papéis, às situações e
desse modo, em um contexto protegido, fora das pressões da realidade, ela se apropria. Fazer de
conta que um prato é um chapéu ou que ela é uma educadora ou que está na creche auxilia a criança
a “entender melhor” os significados do chapéu, do educador e da vida na creche. Além disso, desse
modo a criança explora os mesmos processos de atribuição do significado, experimentando a
possibilidade de destacar de um objeto um determinado significado para uni-lo a um novo (por
exemplo, o prato como objeto para comer a um prato como um chapéu) e descobrindo, então, o
caráter “construído” de tais atribuições. Então, a brincadeira simbólica como o local de elaboração e
aquisição do novo mundo de significados, propostos pela creche, mas também como uma oficina de
processos de construção de sentido que valoriza e amplifica o estímulo desse mundo.
Winnicott postula que esse encontro inicial do bebê com sua mãe seria regido por meio do
jogo primitivo intitulado playground (Winnicott, 1971/1975), o qual ele define como uma expressão
do brincar precoce do bebê que corresponderia, na realidade, a uma protorrepresentação do Espaço
Potencial – isto é, a um esboço do Espaço Transicional ou da zona intermediária, na qual a mãe não
somente se apresentaria como objeto especular, mas também introduziria à criança objetos concretos
e reais do ambiente (Winnicott, 1963/1970). É por esse viés que podemos inferir que para Winnicott,
a construção da relação objetal seria marcada, sobretudo, pela qualidade da interação com os objetos
reais do ambiente. Dito de outra forma, para ele seria através das experiências sensoriais e táteis que
os bebês passariam a organizar e a elaborar suas primeiras experiências precoces com o objeto
maternal.
Poderíamos, assim, presumir que os primeiros gestos espontâneos e criativos dos
bebês, sendo estes manifestados já nas primeiras interações dos bebês com os objetos reais do
ambiente, seriam carregados de conteúdos próprios ou de protossignificantes, os quais
revelariam o grau de maturação psicoafetiva da criança. Em outras palavras, diríamos que o
interesse do bebê em relação ao objeto que lhe é apresentado (object-presenting) – sua
curiosidade e seu interesse em manipulá-lo ou em explorá-lo – estaria intrinsecamente
associado à qualidade de suas relações precoces com o objeto materno, que, por sua vez,
traduziria seu grau de adaptação ao ambiente dito suficientemente bom.
Winnicott (1968/1989) parece reconsiderar sua teoria da construção da relação objetal
ao introduzir a ideia de que o processo de subjetivação da criança se estabeleceria graças a sua
capacidade de utilizar os objetos do ambiente (object-usage) de maneira criativa e simbólica. No
entanto, ele enfatiza que, para que a criança aceda à zona da criatividade, será necessário,
primeiramente, que ela estabeleça uma “relação de objeto” (object-relating) com o objeto
primário – a mãe suficientemente boa que, por conseguinte, perderia gradativamente seu lugar
de objeto primordial, dando espaço para o surgimento do objeto transicional, o qual
proporcionaria à criança o sentimento de uma continuidade entre ela e o objeto.
Perturbações no processo de constituição subjetiva se refletem na capacidade das
crianças para brincar. No caso de crianças autistas, é possível dizer que elas apresentam
dificuldades nesta área que vão desde um grande comprometimento e empobrecimento da
atividade imaginativa, até à incapacidade total de brincar.
Além disso, de acordo com o DSM-V (2012), essas crianças tendem a não se envolver
nos jogos de imitação e rotinas simples da infância ou o fazem fora de contexto e de modo
mecânico. Mais ainda, as crianças autistas não conseguem brincar com seus pares e fazer
amigos, carecem de criatividade e iniciativa, apresentam habilidades sociais muito limitadas e,
particularmente, fracassam no desenvolvimento da empatia. Além disso, preferem objetos a
pessoas. São os objetos que provocam interesse e podem ser manipulados por longos períodos.
Entretanto, o uso que fazem deles se mostra restrito, seja pela forma repetitiva da manipulação,
seja pela preferência de objetos com determinadas características.
Os conceitos de brincadeira e de jogo podem ser diferenciados entre si, porém
convergem em alguns fatores importantes. Ambos estão relacionados a uma atividade que gera
prazer, que possui um fim em si mesma e que pode ter regras implícitas e explícitas. Tais regras
refletem normas apresentadas para a criança pela família, pela escola e pelos outros contextos
dos quais ela faz parte. Sendo assim, além da função lúdica, o brincar permite à criança se
apropriar de códigos culturais e de papéis sociais (Brougère & Wajskop, 1997; in Cordazzo &
Vieira, 2007). É no brincar que a criança imita, através de seus comportamentos, os aspectos da
realidade que a cerca, além de testar diferentes papéis existentes na sociedade (Vygotsky, 1991).
Na brincadeira, seja através da interação apenas com os objetos ou também com os
adultos, a criança exercita o que aprendeu no seu contexto sociocultural, cria diálogos, simula
diversas situações e assume funções diferentes das suas, revelando a complexidade dos
processos desenvolvimentais envolvidos no momento lúdico. Portanto, é no brincar que se
estimula os aspectos simbólicos de sociabilidade, linguagem e cognição (Cordazzo & Vieira,
2007). Neste processo, o adulto entra como mediador entre a criança e os fenômenos que a
cercam, introduzindo novas representações simbólicas e ampliando as capacidades cognitivas e
comunicativas da criança.
Já durante o primeiro ano de vida, explorações atípicas dos objetos podem indicar
sinais de alerta para TEA (Kaur, Srinisavan & Bhan, 2015). Através da observação de grupos de
bebês com e sem risco para o transtorno, as autoras constataram que o grupo com risco
apresentou menor exploração dos objetos no período dos 6 aos 15 meses de vida. O estudo
reforça a importância de se detectar comprometimentos na frequência e na qualidade dos
comportamentos exploratórios, considerando que a exploração dos objetos tem implicações
para aspectos do desenvolvimento como percepção, cognição e comunicação social (Kaur et al.,
2015).
Dentro do processo de avaliação, a brincadeira pode ser utilizada não apenas como
habilidade a ser avaliada, mas também como instrumento de avaliação. Isso acontece através da
hora lúdica diagnóstica, que se trata de um procedimento técnico utilizado a fim de conhecer e
compreender a realidade da criança durante a avaliação, potencializando outras técnicas como a
entrevista com os pais e os testes projetivos e psicométricos (Krug, Bandeira & Trentini, 2016).
Nos casos de crianças com suspeita de TEA, a hora lúdica diagnóstica pode ser feita de
forma livre, estruturada, ou uma combinação de ambas. Na forma livre, o avaliador apresenta
vários estímulos e o avaliando escolhe os materiais que quer explorar. Já na forma estruturada,
há uma seleção prévia de objetos com propriedades físicas e sensoriais que possam ajudar a
identificar sintomas do transtorno. Tais materiais são apresentados em uma ordem
predeterminada, com objetivos predefinidos, possibilitando a observação de diferentes aspectos
de acordo com a forma que o paciente se relaciona com cada um deles outro fator que pode ser
observado diz respeito à rigidez da criança, que pode ser testada através de interferências
cuidadosas do avaliador na brincadeira. Em casos de maior comprometimento nessa área, nos
quais a criança apresenta interesses restritos e brincadeiras estereotipadas, é possível que a
interferência do avaliador desencadeie uma desorganização comportamental característica do
TEA, que dentro de um ambiente estruturado e com manejo apropriado pode evidenciar um
sinal indicativo do transtorno.
A hora lúdica deve proporcionar um contexto favorável para a emergência de
determinados comportamentos a serem analisados, dentre os quais se busca identificar não
apenas dificuldades, mas também o potencial da criança. Para isso, é importante que o avaliador
esteja atento às necessidades da criança e possa adequar seu manejo de forma que as
potencialidades sejam manifestas. Por exemplo, se a criança não consegue se engajar em
atividades que envolvam objetos, o avaliador pode propor atividades didádicas de interação,
como dança e canto, visto que a brincadeira diádica é menos complexa do ponto de vista
desenvolvimental do que a brincadeira triádica.
Transtorno do Espectro Autista (TEA) engloba quadros relacionados à incorporação de
um grupo de déficits qualitativos e quantitativos nos aspectos sociais e comportamentais da
comunicação verbal ou não-verbal (Brunoni, Mercadante & Schwartzman, 2014), e nos padrões
de comportamentos restritos e repetitivos (American Psychiatric Association, 2013). Constata-se
que um componente significativo da caracterização do TEA envolve déficits no desenvolvimento
social.
Dentre repertórios importantes para o desenvolvimento, e nos quais crianças com
diagnóstico de TEA costumam apresentar déficits, destaca-se o brincar funcional (Williams, Redd
& Costall, 2001). Para a Análise do Comportamento Aplicada (ABA), o brincar é um
comportamento operante, sendo sensível às consequências que produz e selecionado por elas
(Brito, 2011). Um dos formatos de intervenção, envolvendo esse tipo de repertório em
aprendizes com desenvolvimento atípico, emprega tentativas discretas com práticas repetidas.
São administradas várias tentativas ou oportunidades para um aprendiz responder. Uma
tentativa bem-sucedida compreende início, meio e fim definidos. Em outras palavras, um
terapeuta apresenta uma instrução que fornece contexto para emissão de uma resposta pelo
aprendiz, e esta resulta em reforço o terapeuta poderia fornecer um modelo de ação de mover
um carrinho de brinquedo para frente e para trás, junto com a instrução verbal “faça igual” para
uma dada criança. Esta emite a ação de imitar o modelo com o carrinho e, em seguida, o
terapeuta elogia e permite o acesso a um estímulo reforçador arbitrário de maior preferência.
O ensino de habilidades, como o brincar funcional em crianças
com TEA, demanda procedimentos que estabeleçam o responder sob
controle de estímulo apropriado. Na ABA, estratégias que combinam
manipulação de dicas, e seu posterior esvanecimento, frequentemente
são empregadas com o propósito de estabelecer repertórios sob
controle discriminativo (Lear, 2004; Matos, 2016). Quanto ao caso do
brincar funcional mais especificamente, destaca-se na literatura
científica pesquisas que manipularam roteiros fotográficos,
representando o passo a passo de várias ações com brinquedos. Nesses
estudos, os efeitos do uso de roteiros, combinados com outros tipos de
pistas, foram medidos sobre o estabelecimento de desempenhos
independentes quanto a ações de brincar (Akers et al., 2016; Phillips &
Vollmer, 2012; Matos et al., 2018).
Ensino do brincar
O teste de cada tipo de relação foi realizado a partir da apresentação de nove tentativas
discretas. Em cada tentativa, cada criança tinha até 5s para responder. No caso do seguir instruções,
20 instruções para 20 ações motoras simples foram testadas em blocos com 20 tentativas. Em cada
tentativa, após uma instrução, cada criança tinha até 5s para responder. Durante os testes de todos
esses repertórios pré-requisitos mencionados, acertos e erros não produziam consequências
diferenciais.
Outra habilidade, considerada pré-requisito, comportamento de virar páginas dos cadernos
que continham as fotos das ações a serem realizadas com os brinquedos. Como forma de testar se a
criança consegue pegar o caderno e virar cada página, apontando para a mesma.
Terapeuta coloca a criança de frente para o caderno, que permaneceu sobre uma mesa.
Inicialmente, eram fornecidos minimamente modelos de ajuda física quanto a manipulação do
caderno, e como forma de dar alguma pista sobre o que seria esperado por parte da criança.
Posteriormente, a criança será posicionada em algumas ocasiões diante do caderno, ao mesmo
tempo que era apresentada a instrução verbal “é hora de brincar” (pistas não eram mais
apresentadas). Em cada oportunidade, a criança tem até 15s para responder. Ao longo de várias
tentativas, caso fosse constatado que a criança não apresentaria total autonomia para folhear o
caderno, apontando para cada página, essa habilidade seria ensinada. O ensino, sendo necessário,
envolveria manipulação de ajuda física quanto a folhear o caderno, com esvanecimento gradual da
ajuda e acesso a intervalos de 30s com reforçadores de preferência da criança.
• Análise Aplicada do comportamento (ABA) e o brincar
• AJUDA TOTAL
Ajuda física: guiar o aprendiz para perto do amigo, cutucar o amigo e mediar a brincadeira.
Ajuda verbal total “Que legal esta brincadeira! Posso brincar também?”
• AJUDA PARCIAL
Diga a ele o que ele deverá fazer/falar “Vá até (amigo)”; “cutuque o seu amigo”; “pergunte se
você pode brincar também”; “brinque com ele”. Dê uma instrução de cada vez, espere o
aprendiz completar a instrução para prosseguir com a próxima.
• RESPOSTA INDEPENDENTE
O aprendiz se aproxima independentemente do amigo, cutuca o amigo, fala que gosta da
brincadeira, pede para brincar junto e brinca adequadamente.
RESPOSTA INCORRETA: Caso o aprendiz não se aproximar/perguntar se pode brincar ou não
brincar com o amigo.
• Interrompa a resposta dele;
• Dê ajuda total.
Esta lista indica as respostas específicas que você ensinará e a ordem que deverão ser
ensinadas. Anote quando você começou a ensinar (linha de base), quando a resposta foi
aprendida e quando houve generalização da resposta para uma nova pessoa, lugar e dia.