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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Disciplina: Teorias em Psicologia do Desenvolvimento


Docente: Ana Paula Soares da Silva
Discentes: Carolina Jacomini – 11297430; Lívia Carniel – 11793872;
Lucas Ramazzotto – 8754465

Atividade sobre Vigotski - Território do Brincar

O presente trabalho busca articular a teoria vigotskiana e a perspectiva sócio-histórica


com o desenvolvimento humano, ilustrado a partir de cenas de brincadeiras e interações de
crianças apresentadas no documentário Território do Brincar (Meirelles & Reeks, 2018), já
apresentado anteriormente, no trabalho desenvolvido acerca de Piaget. Contudo, como breve
introdução a esse trabalho, gostaríamos de trazer uma fala presente logo no início de outro
documentário, Quando Sinto Que Já Sei, proferida pelo educador Tião Rocha:
“No primeiro dia de aula em Ouro Preto, eu fui levar minha filha, aos sete anos,
numa escola, e teve a aula inaugural e a diretora fez o discurso inaugural assim:
‘Bem-vindos! As crianças são como uma página em branco, onde devemos escrever
um belo livro’. Falei: ‘Meu Deus, deixa eu ir embora, onde é que é a porta de saída?
Se uma diretora de escola considera uma criança de sete anos uma página em branco,
ela não entende nada de menino’(crianças).” (Sagrado et al., 2014)
Ainda que tenha sido um material indicado por outra disciplina, optamos por trazer
essa fala como abertura por ter nos levado a fazer diversas relações com o que temos
aprendido acerca da teoria vigotskiana sobre o desenvolvimento humano e, sobretudo, as
capacidades e o potencial das crianças. Como podemos ver ao longo dos trechos selecionados
do Território do Brincar, com indivíduos das mais diversas idades, inclusive por volta dos
sete anos, demonstrando habilidades e desenvoltura fascinantes para brincar de cozinhar,
construir carrinhos ou caçar bichos, crianças nunca estão “em branco”, como bem trazido por
Tião Rocha.
É possível perceber, desde uma análise muito superficial, o quanto essas crianças já
carregam uma bagagem enorme, também apresentando suas próprias potencialidades e
possibilidades particulares de desenvolvimento, marcadas pela complexidade da relação
dialética desenvolvida com o meio no qual se inserem. Atravessadas pela sociedade, pela
cultura, pela história de vida antes mesmo de seu nascimento, podemos perceber que a escola
recebe um livro que já é belo e recheado de páginas. Não cabe à escola transformá-las em
“belos livros”, mas sim explorar o rico conteúdo que já trazem e atuar para potencializá-lo,
desenvolvendo ainda mais a criança no contato com ela, sendo responsável, enquanto pessoas
em relação com outras e seu contexto, por ajudar a escrever cada vez mais páginas no livro de
cada uma delas. É interessante ainda apontar que partindo de uma perspectiva vigotskiana, o
mais importante não é o livro final, mas seu processo, nos permitindo aprender com a riqueza
do desenrolar de cada interação e cada brincadeira.
Sob a ótica do riquíssimo trabalho de Vigotski, os diversos brinquedos desenvolvidos
nas cenas escolhidas do Território do Brincar passam a ser compreendidos em diversos
aspectos. Comecemos por um comentário breve acerca dos planos genéticos do
desenvolvimento. Chama a atenção, nas cenas, a diversidade de complexidade e de elementos
envolvidos nos atos de brincar. Vemos crianças manuseando ferramentas de “adulto” para
construir carrinhos, tais como serrotes, facas, machadinhas e martelos, ao mesmo passo que
vemos crianças construindo esses brinquedos de maneira mais simples, com menos materiais
envolvidos, ou até mesmo brincando com algo já pronto. De maneira análoga, podemos ver
as mesmas situações nas brincadeiras de caça, com crianças apresentando variadas
desenvolturas em relação a seus brinquedos. Em alguns momentos vemos crianças usando
gravetos para encontrar artrópodes enquanto há outras que usam apenas as mãos. Vemos
momentos de construção de armadilhas, bem como utilização de apetrechos tais quais
estilingues, “enforcadores” e lanças improvisadas para o intento de caçada. Nas brincadeiras
de cozinhar, algumas crianças brincam com brinquedos de plásticos, outros montam seus
brinquedos e usam os mais diversos materiais para concretizá-los, sendo mostrado até a
montagem de fogareiros simples e o manuseio de fogo.
Diante dessa diversidade, nota-se também que crianças de diferentes idades eram
mostradas em atividades similares, servindo de indício que as diferenças não necessariamente
estão relacionadas a esse aspecto. Assim, podemos interpretar que essa gama de
desenvolturas e habilidades podem ser explicadas a partir da ideia do desenvolvimento como
uma interface entre os planos Filogenético, Ontogenético e Sociogenético (Programa de
Pós-Graduação em Psicologia USP-RP, 2021a). Ainda que a filogênese seja menos relevante
para a presente análise, podemos perceber acentuada relevância do desenvolvimento
individual de cada uma dessas crianças, assim como o papel mediador fundamental dos
costumes e cultura do meio em que vivem. Dessa maneira, as desenvolturas que apresentam
podem dizer respeito às possibilidades que encontram em suas vidas: é de se supor que
algumas crianças das cenas estejam inseridas em contextos mais carentes, ou que vivam em
áreas rurais, agrupamentos ou comunidades indígenas, assim tendo um contato maior e mais
antecipado com as ferramentas e os processos artesanais narrados acima, promovendo a
desenvoltura no manejo e apropriação delas. Em contrapartida, supõe-se também que
crianças de contextos urbanos não tenham as mesmas situações de aproximação. Ainda
assim, cabe ressaltar que nessa relação unitária entre contexto individual, fatores biológicos e
históricos, bem como o contexto sócio-cultural, o plano Microgenético vem como o mediador
psíquico no cruzamento desses fatores, fazendo com que não haja determinismo no
desenvolvimento por parte desses aspectos, garantindo a singularidade das experiências para
cada indivíduo.
Outro aspecto interessante de se analisar é a questão de que, ainda que algumas
crianças apresentem tais desenvolturas e habilidades, isso não significa que as outras que
brincavam de outras formas não possuíam a capacidade de apresentá-las. Considerando o
conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) (Zanella, 1994), podemos supor que,
dada a oportunidade de instrução por parte de um adulto, ou até mesmo uma das crianças das
cenas, todas elas seriam capazes de, também, desenvolverem-se nesse sentido. Inclusive, o
próprio fato de que em algumas cenas as crianças construíam os brinquedos e brincadeiras em
conjunto pode ser interpretado como um momento de desenvolvimento na relação com o
outro, a partir da ZDP, constituindo o ato de brincar como um importantíssimo agente no
desenvolvimento (Vigotski, 2000b). Refletimos sobre essas questões a partir das cenas de
caça em que algumas crianças apontam, dão direções, mostram como pegar, o que revela o
papel da interação entre elas propiciando seu desenvolvimento mútuo, pois ao mesmo passo
que uma desenvolve aspectos de “caçador”, outro desenvolve aspectos de “mentor”.
Além disso, mesmo quando não há uma relação diretamente mediada pela relação
com o outro, a brincadeira também se constitui como importante elemento de
desenvolvimento, em associação com a ZDP, pois acaba constituindo fator mediador na
potencialização da aprendizagem e apropriação de experiências vivenciadas pelas crianças,
porém não completamente processadas (Programa de Pós-Graduação em Psicologia USP-RP,
2021c). Tomemos o caso, no trecho da brincadeira de cozinhar, da cena em que duas crianças
brincam de cuidar e dar banho no bebê. Neste caso, as crianças não teriam, possivelmente,
desenvolvimento suficiente para cuidar de um bebê, mas quando desempenham esse papel na
brincadeira com as bonecas, em formato de imitação e graças à apropriação das relações
sociais ao seu redor (como do papel de cuidadora), tornam-se capazes de fazer coisas que em
uma situação “real” elas não fariam. Algo similar ocorre quando brincam de cozinhar e
cuidar da casa, pois são tarefas que elas socialmente tiveram contato mas não desempenham
de fato, apreendendo a partir da observação das pessoas em seu entorno e aplicando nas
brincadeiras, que passam a ser então, tarefas concretas, reais e desafiadoras.
Outro ponto importante que pode ser analisado em cenas desse trecho é dado pelo fato
de a brincadeira estar intimamente relacionada ao desenvolvimento da linguagem, elemento
essencial no desenvolvimento humano de maneira geral, uma vez que tem como unidade a
palavra enquanto signo, isto é, a capacidade de representação, de simbologia (Vigotski,
2000a). Dessa forma, quando a criança é capaz de realizar esse tipo de brincadeira, ela
começa a desenvolver de maneira inicial essa simbologia, já que a boneca, não sendo um
bebê de fato, porém sendo tratado como se fosse, na brincadeira, acaba por representar um
bebê. Também reforça-se esse aspecto no momento dessa cena em que ela diz “eu dou banho
como se fosse menina de verdade”, “a neném tem que ficar sentada porque elas podem se
afundar”. Tal fato destaca bem como a brincadeira possibilita que um objeto simbolize outro,
além de possuir regras que colaboram para a internalização de normas sociais. Por conta
disso, acaba sendo demonstrado como, para as crianças, a brincadeira é algo sério, tomando
por oposição o senso comum de que é apenas um “faz-de-conta”.
Os aspectos da simbolização também podem ser percebidos nas cenas em que as
crianças brincam com a areia e as panelas, uma vez que a areia, a água e o café são utilizados
como representantes de comida. Em outro ponto, elas utilizam pedaços de madeira para
representar bandejas e tampas de metal para representar pratos. Nota, inclusive, a gama de
elementos utilizados para construir a brincadeira, remetendo-nos ao que Profª. Virgínia relata
em sua palestra ao comentar sobre seu projeto de vivências e brincadeira com sucata
(Programa de Pós-Graduação em Psicologia USP-RP, 2021c). A palestrante comentou que ao
disponibilizar tampinhas de vários tipos, cores e tamanhos, acaba por possibilitar que o
processo de criação encontre mais saídas e seja diversificado, garantindo uma maior fluidez
para a criatividade e abrindo espaço para uma maior e melhor reprodução das suas vivências.
É possível ver, ainda, a brincadeira se tornar cada vez mais próxima às condições
reais do cozinhar. Em uma cena do primeiro trecho, as crianças acendem fogo e buscam
cozinhar feijão. Em relação ao trecho da brincadeira de caça, as crianças não só caçam um
animal, como também o cortam, preparam, cozinham e comem, ainda no contexto do brincar.
Assim, torna-se nítido, mais uma vez, que estão reproduzindo comportamentos com os quais
tiveram contato socialmente. Dessa forma, nota-se que tal representação está pautada em uma
relação dialética entre o brincar, as memórias das crianças e seus níveis de desenvolvimento
(Programa de Pós-Graduação em Psicologia USP-RP, 2021c), sendo que elas aproveitam-se
de sua criatividade durante o brincar para tornar essas vivências ainda mais significativas em
seu desenvolvimento.
Em um último comentário, gostaríamos de trazer uma reflexão produzida a partir da
palestra “Arte e drama em Vigotski e o teatro da vivência de Stanislávski” (Programa de
Pós-Graduação em Psicologia USP-RP, 2021b). Tal reflexão diz respeito ao brincar enquanto
ato dramático, pois ponderamos que quando a criança brinca, ela age segundo regras
definidas por vários papéis e relações sociais, de maneira análoga a um artista representando
no palco onde é, ao mesmo tempo, si próprio e também o seu personagem, articulando
vivências na interpretação de seu papel. Da mesma forma, o próprio sujeito é, para Vigotski,
um ser dramático, pois se constitui no emaranhado de diversos papéis sociais. Dessa forma,
quando as crianças brincam de casinha, de cozinhar, de caçar ou construir carrinhos, temos
que os aprendizados que derivam do drama se revelam para além de um “faz-de-conta”.
Assim, é dessa vivência cotidiana que se recheia o “belo livro” de cada criança, marcado por
um mundo social com o qual ela se relaciona íntima e dialeticamente durante toda a sua
existência.
REFERÊNCIAS

Meirelles, R. & Reeks, D. (Diretores). (2018). Território do Brincar


[Documentário Online]. Maria Farinha Filmes; Alana. Disponível em:
Território do Brincar

Programa de Pós-Graduação em Psicologia USP-RP. (2021a, 16 de Setembro).


IV Círculo Vigotskiano: Vivência e a pesquisa com bebês e crianças:
topogênese e interespacialidades [Vídeo]. YouTube.
https://www.youtube.com/watch?v=AYlpFephgSo

Programa de Pós-Graduação em Psicologia USP-RP. (2021b, 7 de Outubro).


IV Círculo Vigotskiano: Arte e drama em Vigotski e o teatro da
vivência de Stanislávski [Vídeo]. YouTube.
https://youtu.be/qd7W9eu0_vg

Programa de Pós-Graduação em Psicologia USP-RP. (2021c, 21 de Outubro).


IV Círculo Vigotskiano: Vivência de Brincadeiras com Sucata: um
projeto de extensão [Vídeo]. YouTube.
https://www.youtube.com/watch?v=CxooPYEXvl0

Sagrado, A., Perez, R. & Lima, A (Dir.s). (2014). Quando sinto que já sei.
Despertar Filmes. Vekante Educação e Cultura.

Vigotski, L. S. (2000a). Internalização das funções psicológicas superiores (p.


68-76). Em: A formação social da mente. Martins Fontes.

Vigotski, L. S. (2000b). O papel do brinquedo no desenvolvimento (p.


121-137). Em: A formação social da mente. Martins Fontes.

Zanella, A. V. (1994). Zona de desenvolvimento proximal: análise teórica de


um conceito em algumas situações variadas. Temas em Psicologia, 2, p.
97-110.

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