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FÁTIMA GONÇALVES

Do Andar ao Escrever – Um Caminho


Psicomotor
A estimulação psicomotora como suporte para as aprendizagens
escolares

SÃO PAULO - SP
2008
PRÓLOGO

Resgate ao corpo vivido

Quando penso em criança, penso em brincar. Afinal, minhas memórias


mais vivas do que é ser criança, ainda são as lembranças da menina que fui. Por
isso, sempre que vou tratar de um assunto relacionado a essa fase da vida,
imediatamente sou transportada para a minha própria infância, na qual os verbos
brincar, aprender e crescer não eram dissociados.
Vivíamos tão envolvidos em nossas brincadeiras que nem distinguíamos se
brincávamos para viver ou se vivíamos para brincar. Explorávamos livremente o
mundo ao nosso redor, sem precisar nos conter. Tudo era muito natural: andar na
chuva, sujar-se na lama, correr ao vento. A gente se escondia, fugia, girava,
saltava, brigava e fazia as pazes. Podíamos brincar na rua, de mãe da rua, de
queimada; encostávamos um nos outros nas brincadeiras, nos jogos, nos tombos
e até nas relações de afeto. Era permitido sentir o universo das pessoas, dos
objetos, dos sentimentos. Nossas brincadeiras surgiam da imaginação, da
criatividade e do desejo de um grupo de crianças que se reunia para explorar um
mundo repleto de sensações, relações e movimentos. Nós nos preocupávamos
em exercitar a felicidade próxima e não um sentimento rodeado de esteriótipos.
Por que tudo mudou? Difícil saber. Talvez os espaços tenham se reduzido
devido à grande urbanização, à necessidade de segurança, ao fato dos pais
estarem mais distantes da educação de seus filhos ou à grande demanda
tecnológica, que leva as crianças a se divertirem mais com máquinas do que com
outras crianças.
Porém, sejam quais forem os responsáveis por tantas mudanças, o que não
muda é o fato de que, para crescer e aprender, a criança precisa conhecer o seu
meio e vivê-lo concretamente. Por meio das vivências corporais, da exploração
dos objetos e da relação com outros grupos é que a criança vai ter subsídios
cognitivos, motores e afetivos para suportar toda a gama de informações e
formações a que será exposta durante seu crescimento. O primeiro passo da
criança é descobrir-se e, então, perceber-se, para mais tarde, poder representar
aquilo que ela se tornou.
Piaget estudou as inter-relações entre a motricidade e a percepção,
ressaltando que a criança cria experiências para si mesma, por meio de suas
próprias ações sobre o ambiente. Wallon enfatizou as relações da criança com os
objetos e com os outros, gerando processos imitativos - o homem se constrói
vivenciando dois papéis: o de autor da ação, constituindo o meio, e o objeto da
ação, sendo constituído pelo meio. Vigotsky estudou a importância das atividades
lúdicas, que levam a criança a reproduzir muitas situações vividas em seu
cotidiano, as quais, pela imaginação e pelo “faz de conta”, são reelaboradas.
Todos esses autores (que são incessantemente estudados nos cursos de
pedagogia) já abordaram a necessidade da fase sensório-motora, isto é, do “corpo
vivido” para a formação da inteligência. Porém, tem-se a impressão de que todos
esses autores são esquecidos rapidamente pelos educadores, pois a escola está
cada vez mais empenhada no desenvolvimento cognitivo, valorizando o aspecto
mental em detrimento ao desenvolvimento motor e afetivo, e, com isso,
enfraquecendo as bases de sustentação para o desenvolvimento da inteligência.
Um ser inteligente é antes de tudo, um ser que sente, pensa e age.
O caminho não é fazer da escola a grande vilã desse processo, pois esta
também tem sofrido transformações, empurrada pelas novas necessidades das
famílias e pelas cobranças de uma sociedade que pressiona as instituições a
oferecerem sempre um diferencial, tornando-as mais competitivas. Penso que a
saída para essa dificuldade seria fazer da escola a grande aliada para o resgate
do corpo vivido, ou seja, conscientizar os educadores da necessidade de
promover formas para que as crianças resgatem esse momento da infância dentro
e fora do ambiente escolar, e criar currículos e projetos nos quais as crianças
possam utilizar essa ferramenta que é o corpo, para explorar, criar, brincar,
relacionar, imaginar, planejar, sentir e, finalmente, aprender. Por meio da
experiência concreta e do brincar, o ensino se tornará não simplesmente um
processo acomodativo, mas sim uma aprendizagem contextualizada, repleta de
significados reais e práticos que poderão auxiliar nos processos pedagógicos e
nas atividades do cotidiano dessas crianças.
A escola pode fazer essa opção e se tornar um diferencial no mercado, não
só por aquilo que pode oferecer para tornar brilhante o futuro profissional das
crianças, mas também para ajudá-las a se tornarem indivíduos plenos, críticos,
criativos e autônomos.
Introdução

A criança só sabe viver a sua infância. Conhecê-la pertence ao adulto. Mas o


que vai prevalecer nesse conhecimento: o ponto de vista do adulto ou da
criança? (Henry Wallon, 2005)

A infância de hoje é bem diferente do que foi antigamente. A partir da


necessidade de se manter em um mercado de trabalho competitivo, os pais
tornaram-se cada vez mais ausentes no processo de amadurecimento e
desenvolvimento de seus filhos, acarretando mudanças nas relações familiares. A
urbanização e a segurança também são fatores de transformação dos costumes
infantis, uma vez que geram a diminuição dos espaços e da própria liberdade para
as crianças desfrutarem do momento de brincar. Além disso, o fator da iniciação
escolar precoce torna as instituições de ensino responsáveis por grande parte da
estimulação motora, emocional, cognitiva e social. A escola transformou-se, então,
em um espaço importante para as crianças experimentarem novas vivências.
O Ensino Infantil, diante dessa nova demanda de necessidades das crianças,
passou a ter uma importância fundamental na estruturação do desenvolvimento
psicomotor, preparando a base, os alicerces que serão determinantes na aquisição
de novas aprendizagens, dentro e fora da escola.

A Psicomotricidade na teoria Walloniana encara a motricidade como um


meio privilegiado para enriquecer e ampliar as possibilidades expressivas,
afetivas e cognitivas das crianças e dos jovens, promovendo a sua
flexibilidade e a sua plasticidade (Fonseca cita Wallon, 2008, p.52).

O desafio desses novos tempos é estimular a criança dentro da


Educação Infantil, sem perder a ludicidade que envolve essa faixa etária. Como
fazer com que ela tenha as experiências necessárias a cada etapa de
desenvolvimento e, ao mesmo tempo, brinque? Como permitir que as crianças
se relacionem com o mundo dos objetos e das pessoas, partindo de suas
próprias experiências anteriores? Como nos policiar, professores, a deixar que
nossos alunos experimentem o meio ao seu redor, sem interferirmos o tempo
todo com métodos e resultados? Como fazer as aquisições se tornarem
contextualizadas para que tenham um sentido real interiorizado? Como ajudar
as crianças a serem autônomas, criativas e críticas em suas ações?
A criança deve viver o seu corpo através de uma motricidade não
condicionada, em que os grandes grupos musculares participem e
preparem os pequenos músculos, responsáveis por tarefas mais precisas
e ajustadas. Antes de pegar num lápis, a criança já deve ter, em termos
históricos, uma grande utilização da sua mão em contato com inúmeros
objetos. (Fonseca, 1993, p.89).

Foram essas questões acerca de algumas inquietações que motivaram a


realização deste trabalho, cujo objetivo é trazer uma parcela das experiências
concretas da infância para dentro da escola e utilizá-las como ferramenta
psicopedagógica, associando novamente os verbos brincar, aprender e
crescer, além de levar a criança a utilizar seu corpo como instrumento de
aprendizagem e de relação. Tem-se também o intuito de estimular o contato
com as sensações, as percepções, com o meio e com o outro, mantendo
contato com formas, espaço e tempo – um contato direto com o próprio corpo e
com o corpo do outro, com um universo de fantasia, alegria, brincadeiras e
frustrações. Enfim, quer-se facilitar a relação da criança com seu meio,
descobrindo-se como parte individualizada, porém, pertencente ao todo.

O corpo surge, portanto, mais uma vez, como o componente material


do ser humano, que, por isso mesmo, contém o sentido concreto de
todo o comportamento sócio-histórico da humanidade. O corpo não é,
assim, o caixote da alma, mas o endereço da inteligência. O ser
humano habita o mundo exterior pelo seu corpo, que surge como um
componente espacial e existencial, corticalmente organizado, no qual
e a partir do qual o ser humano concentra e dirige todas as suas
experiências e vivências. (Fonseca, 2008, p.410)

Ao longo de uma experiência pedagógica dentro da Educação Infantil,


pode-se perceber que a psicomotricidade constitui um meio auxiliar na
estruturação do desenvolvimento das crianças, ligando às experiências
motoras, cognitivas e sócio-afetivas indispensáveis a formação do sujeito. Além
disso, a psicomotricidade pode favorecer um trabalho preventivo adequado
para equacionar possíveis lacunas deixadas durante o processo maturacional
das crianças, compensando déficits atribuídos à privação de movimento e da
experiência lúdico-espacial, comuns nessa infância contemporânea.
Psicomotricidade - Do Andar ao Escrever pontua os caminhos
psicomotores que a criança percorre desde o momento em que se equilibra,
fica em pé, locomove-se e torna-se um ser apto a explorar o mundo ao seu
redor, até a escrita, considerando todas as aquisições complexas que a
levaram a esse sistema simbólico de comunicação humana extremamente
refinado.
Este trabalho propõe uma fundamentação teórica resumida, com uma
linguagem acessível, porém, de grande importância para auxiliar pais,
pedagogos, educadores físicos e demais profissionais da área de formação,
para que entendam os conceitos da psicomotricidade, as bases psicomotoras e
sua aplicabilidade no processo de aprendizagem das crianças. Quer-se,
também, oferecer exemplos de prática pedagógica, divididas por objetivos
pertinentes a cada faixa etária. A prática, constante neste trabalho, tem por
finalidade facilitar o entendimento dos conceitos teóricos, bem como ser
referência para auxiliar em planejamentos escolares, incluindo a
psicomotricidade nos currículos de alfabetização na Educação Infantil.
Consta, neste trabalho, um capítulo dedicado às atividades sensório-
perceptivas-motoras, pois acredita-se que são de vital importância no processo
de formação da criança, no que concerne à aquisição dos sistemas simbólicos
humanos. A utilização dos canais sensoriais e perceptivos leva a criança ao
conhecimento do meio em que vive e ao autoconhecimento, trabalhando como
um recrutador de informações que alimenta o cérebro em desenvolvimento.
O anexo deste trabalho foi elaborado com a intenção de facilitar a
consulta em relação às aquisições da criança, sob o ponto de vista funcional,
relacional e cognitivo, apoiadas na estruturação e integração das bases
psicomotoras.
Enfim, tem-se o intuito de contribuir com pais e profissionais
interessados, oferecendo uma nova ferramenta para auxiliar no processo de
formação das crianças, trazendo a psicomotricidade sob um olhar pedagógico
e preventivo. Valer-se dessa ciência, que se utiliza do movimento para estudar
a complexidade humana, enxergando o indivíduo com uma visão global e,
considerando os aspectos corporais, cognitivos e sócio-afetivos que interferem
no seu desenvolvimento, é devolver às crianças a possibilidade de utilizar o
corpo, o seu veículo mais próximo de aprendizagem, por meio dos seus
movimentos e de todo o significado que deles emana.

O movimento e o seu fim são uma unidade; desde a motricidade fetal até a
maturidade plena, passando pelo momento do parto e pelas sucessivas
evoluções, o movimento é sempre projetado face a uma satisfação de uma
necessidade relacional. A relação entre o movimento e o seu fim aperfeiçoa-
se cada vez mais, como resultado de uma diferenciação progressiva das
estruturas integrativas do ser humano (Fonseca,1993).

A AUTORA

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