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Brincar não é brincadeira

Marcelo de Abreu Maciel

Universidade do Estado do O brincar é uma forma privilegiada para a


Rio de Janeiro, Instituto de criança habitar e lidar com o mundo. Quem convive
Psicologia. com crianças saudáveis percebe que elas brincam
Mestre em Educação pela a todo instante, afirmando que esta é a sua maneira
UFRJ, psicólogo, doutoran- de existir, de aprender e se relacionar. Andando pe-
do do curso de Pós-gradu- las praças de uma cidade, por suas áreas de lazer
ação em Psicologia Social ou simplesmente pelas ruas, onde encontrarmos
do Instituto de Psicologia da crianças, vemos rastros de brincadeiras, jogos,
Universidade do Estado do
Rio de Janeiro/ UERJ. brinquedos. A criança tem uma forma particular de
perceber, organizar e interpretar o ambiente e o faz
a partir de um registro lúdico no qual o mundo pa-
rece ser reinventado a todo instante, escapando a
uma lógica adulta pré-determinada.
Autores das mais diversas áreas de conhe-
cimento – Psicanálise, Psicologia do Desenvol-
vimento, Filosofia, Sociologia, Pedagogia – são
unânimes em afirmar, cada um a partir de sua tra-
jetória e lógica teórica, que o brincar é a linguagem
fundamental da criança, sendo o que nos permite
entrar na intimidade de suas vivências cotidianas,
desde que estejamos disponíveis e implicados em
acompanhá-la.
O brincar está presente desde os primeiros
momentos da vida de uma criança. Os primeiros
contatos da mãe com seu bebê se dão de forma lú-
dica. Ali entre a mãe e seu filho, se esboça um jogo
de reconhecimento e descoberta no qual o brincar

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é uma peça fundamental. Este jogo, escola, numa creche, nas famílias,
este espaço lúdico, isto que acon- nos ambulatórios ou nos Centros de
tece entre uma criança ainda muito Atenção Psicossocial para a infância
pequena e quem dela cuida, diz res- e juventude, o papel do brincar, como
peito à própria constituição do sujeito. uma forma de estabelecimento de
Ou seja, é graças a esse movimento uma relação/vinculação a uma crian-
inicial, a este lugar lúdico que é dado ça, é fundamental.
a uma criança logo no início, que po- Mas, especificamente ao cam-
deremos dizer que algo irá marcá-la po da saúde mental com crianças,
e começará a dar sentido a sua exis- como podemos pensar a importância
tência. O fato de um bebê ainda não do papel do brincar? Penso que três
falar, ainda não produzir um discurso, caminhos são necessários para res-
não quer dizer que um Outro não te- ponder a essa questão. O primeiro
nha que se colocar como seu interlo- diz respeito ao que foi dito até aqui.
cutor, pois é justamente este fato que O brincar não é uma técnica usada
vai permitir que essas crianças tão ou aprendida para se trabalhar com
pequenas possam ir adiante em sua crianças. Como se nós, adultos, é
constituição. Não basta que, fisiolo- que estivéssemos dizendo para uma
gicamente, a cria humana seja bem criança o que é o brincar e como ela
nascida, é preciso que alguém crie deve brincar, o que é certo, o que é
um lugar amoroso e haja um inves- errado. Uma criança chega para um
timento familiar para recebê-la. Esse tratamento trazendo o seu potencial
lugar deve garantir um nome que par- lúdico, trazendo aquilo que lhe é cons-
ticularizará a existência da criança, titutivo. Apresentar um grau maior ou
um discurso e um corpo reconhecido menor de inibição em relação ao seu
como seu, ou seja, a construção de ato de brincar é outra questão. Mas
um “sentimento de si mesmo”. Po- não se trata de ensinarmos a uma
rém, isto ainda não basta: ela terá criança o brincar. Estamos falando de
pela frente todos os desafios do mun- crianças que, a princípio, não apre-
do da cultura com seus códigos e seu sentaram nenhum tipo de interferên-
mal-estar, colocando-a na situação cia grave no curso de seu desenvol-
de ter sempre de inventar e reinven- vimento que as tenha impedido de
tar o mundo para habitá-lo. uma ação lúdica diante do mundo e
Entender o fenômeno lúdico do outro.
como algo inerente à condição huma- Perguntamos para um adulto
na é entender que o trabalho e o con- no início de um tratamento alguma
vívio com crianças passam neces- coisa do tipo o que o traz aqui? Para
sariamente pelo brincar. Seja numa uma criança, além das colocações

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dos pais ou de outros adultos que e que me diz, realmente, que ele sente
demandam um tratamento para ela, muita falta dos pais. A questão que,
esta indagação estará, muitas vezes, na fala inicial da avó, aparece como
mediada pelo espaço lúdico que se agitação e ausência de limites, na
estabelece entre paciente e terapeu- fala de Flávio aparece, após esse pe-
ta. É preciso que um espaço lúdico ríodo de real agitação, como um brin-
se instale para que algo possa advir car que permite que ele possa falar
no campo da comunicação dessa de sua saudade, da falta de seus limi-
criança. Ou seja, para além dos os tes iniciais de pai e mãe, o que Win-
adultos que circundam a criança, é nicott chamou de ambiente para uma
preciso que ela seja escutada e aí criança no início de sua vida. Consta-
poderemos trabalhar com ela, dentro tamos que o brincar dessa criança é
de suas possibilidades, a questão: o revelador das circunstâncias da sua
que a traz aqui? vida mental, ou seja, o importante
Quando a avó de Flávio, 3 anos, não é o exclusivamente o manipular
chegou ao CARIM para uma triagem de brinquedos em si mesmo, mas o
ela disse: “estou vindo aqui por que campo de escuta simbólico que se
ele é muito levado, bate nos colegas abre nesse momento.
na escola e é muito agitado, não res- Um segundo ponto na nossa
peita ninguém”. Sem contato com os questão inicial seria dizer que o brin-
pais, Flávio mora com sua irmã e a car é importante para o campo da
avó materna. Durante as primeiras saúde mental na infância, pois é um
entrevistas com Flávio, ele brincava dispositivo fundamental no que diz
pela sala avidamente, usava todos respeito ao planejamento, implemen-
os brinquedos e convocava o psicó- tação e desenvolvimento de novas
logo para brincar com ele, no que foi estratégias de cuidados para crian-
atendido na maioria das vezes. Isso ças. No momento em que se necessi-
se repetia em várias sessões até que ta de políticas públicas e espaços de
Flávio passou a apresentar um brin- acolhimento e cuidado para crianças
car mais centrado em apenas um e jovens, devemos reconhecer que
jogo e uma história. Pegava bonecos, estamos no campo do fenômeno lú-
bonecas, falava da mãe, do pai e que dico por excelência. Uma ação volta-
ele rezava para Deus para voltarem. da para esta população e que inclui o
Após algumas sessões iniciais, Flávio lúdico em sua formulação estará for-
fala da saudade da mãe, do pai e que mulando uma política que, de saída,
a coisa que ele mais quer é que eles possui um pertencimento intrínseco à
voltem para casa. A partir daí, pode- causa da infância.
se retornar a uma conversa com avó Um terceiro e último aspecto diz

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respeito à importância da atividade boneco e de soltar pipa. Talvez isso
lúdica mesmo para os quais esta não tenha permitido que a equipe estives-
se faz presente: as crianças que não se com Lucio a partir de como ele se
brincam, que estão isoladas, manipu- apresentava naquele momento, com
lando objetos, que apresentam uma suas dificuldades e defasagem etá-
extrema dificuldade de estar em jo- ria. Era preciso criar a disponibilidade
gos grupais lidando com o outro, com para entrar nesse universo que Lucio
regras, perdas e ganhos. Partindo da nos mostrava e começar um trabalho
ideia que o brincar possui um valor com ele.
estruturante para uma criança nor- A atividade lúdica deve ser um
mal, que através dele pode elaborar instrumento nas abordagens no cam-
e ressignificar situações traumáticas, po da saúde mental para crianças e
podemos concluir que: a possibilida- jovens, pois é ele que pode possibi-
de de brincar deve ser ofertada às litar um deslocamento de onde só se
crianças que possuem dificuldades vê doença para algum lugar estrutu-
psíquicas graves ou que estão pas- rante para uma criança ou um ado-
sando por um momento de desorga- lescente. O brincar é livre, até mes-
nização no que diz respeito ao seu mo supérfluo, e por isso mesmo mais
cotidiano, seu grupo ou a sua família. desejável. Surge da tensão e da in-
Através do brincar operamos com um certeza, mas tende a criar a ordem,
poderoso instrumento com potencial que é parente da beleza. Schiller -nas
constitutivo do espaço psíquico e re- Cartas sobre a educação estética do
parador da sua ruptura. homem- coloca o jogo como fenôme-
Quando Lucio chegou ao CARIM no fundamental na civilização quan-
ficou claro que ele tinha muitas difi- do afirma: “O homem joga somente
culdades para um adolescente de 16 quando é homem no pleno sentido da
anos. Ele se comportava como uma palavra, e só se torna homem plena-
criança pequena. Nada no Serviço o mente quando joga.”.
interessava e ele se sentia desloca- Presente desde as primeiras
do. Tinha dificuldades de ficar com fases de desenvolvimento infantil, a
o grupo e entender a dinâmica das possibilidade de brincar é fonte de
atividades. Contudo, só uma coisa liberdade e criatividade. Sua inibição
era fundamental e visível para Lucio é indicativa de riscos quanto à saúde
nesse espaço: o brincar. Observan- mental. Brincar é um ato seríssimo:
do esse fato, a equipe pôde brincar para as crianças condição de cres-
com ele dentro de um universo que cimento, para os adultos, ligação à
lhe era próprio. Brincava-se de puxar infância e fonte de experiências cul-
um carrinho pelo CARIM, de bola, de turais.

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