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4 CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO DE FORMAÇÃO DOS

PROFESSORES QUE ENSINARÃO GEOGRAFIA NOS ANOS


INICIAIS DE ESCOLARIZAÇÃO

Cristina Maria Costa Leite

INTRODUÇÃO

A expressão “formação de professores”, determinante no processo de


enfrentamento das questões relativas à Educação, como um todo, e à
escolarização, em particular, carrega um elenco de possibilidades e, na
perspectiva deste estudo, expressa significativa abrangência. Nesse sentido, o
presente texto objetiva apresentar algumas considerações sobre o processo
formativo dos professores que ensinarão Geografia no contexto da Educação
Básica, especificamente nos anos iniciais de escolarização.

A primeira questão que se coloca como relevante diz respeito àquele


que irá ministrar a disciplina Geografia ao longo de todo o período do Ensino
Fundamental e Médio. Esse sujeito, que lida com o mesmo campo disciplinar,
habilita-se a tal exercício de diferentes maneiras. No âmbito do Ensino
Fundamental, existem dois processos distintos de formação para o trabalho
com a Geografia Escolar: uma licenciatura em Pedagogia, habilitação formal
para o trabalho nos anos iniciais de escolarização – 1º ao 5º – e, ainda, para a
Educação Infantil; e licenciatura em Geografia, para atuação nos anos finais do
Ensino Fundamental – 6º ao 9º– e, também, para o Ensino Médio.

No que se refere à licenciatura em Pedagogia, é interessante ressaltar


que ela é regida pelo disposto na Resolução do CNE/PC n.1, de 15 de maio de
2006, que “institui diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação
em Pedagogia, Licenciatura”. Já o Art. 2º dessa mesma resolução preconiza
que a formação do pedagogo deve ser orientada ao exercício da docência,
assim como dispõe o Art. 4º:

O curso de licenciatura em Pedagogia destina-se à formação de


professores para exercer funções de magistério na Educação Infantil
e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de ensino
Médio na modalidade Normal, e em cursos de educação Profissional
nas áreas de serviços e apoio escolar, bem como em outras áreas
nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos (BRASIL,
2014).

Em consonância com tal resolução, a docência é considerada, de acordo


com o Art. 2º; §1º, como

[...] ação educativa e processo pedagógico metódico e intencional [...]


desenvolvendo-se na articulação entre conhecimentos científicos e
culturais, valores éticos e estéticos inerentes a processos de
aprendizagem, de socialização e de construção do conhecimento, no
âmbito do diálogo entre diferentes visões do mundo (BRASIL, 2014).

Tal determinante legal, inserido no prisma desta análise, implica na


constatação de que é ao pedagogo que compete o exercício do magistério nos
anos iniciais de escolarização, nos campos disciplinares da Língua Materna,
Matemática, Geografia, História e Ciências. Assim, é exatamente nessa
perspectiva que reside o problema: ao pedagogo recai a responsabilidade de
trabalhar conteúdos de distintas áreas do conhecimento, sem que ocorra um
aprofundamento específico de cada área em sua própria formação,
notadamente no que se refere às particularidades teóricas, metodológicas e
pedagógicas dessas áreas. Não se pretende, aqui, estabelecer uma crítica à
formação do Pedagogo e às suas responsabilidades intrínsecas. Objetiva-se,
tão somente, apresentar algumas considerações sobre o processo formativo
desses professores, que terão, entre suas atribuições, a responsabilidade de
fazer o que se denomina Geografia Escolar ou, ao menos, de se habilitar a
esse pensar. E, nesse escopo, não há como desconsiderar que os anos iniciais
de escolarização têm uma importância específica na formação dos alunos,
inclusive no que se refere ao desenvolvimento de habilidades e competências,
que serão cobradas nos anos posteriores, a partir do 6º ano.

A análise dessa problemática aponta a necessidade de alguns


esclarecimentos prévios, basilares, para assinalar o contexto teórico no qual se
inserem algumas considerações, conforme poderá ser visto no item que se
segue.
A GEOGRAFIA ESCOLAR E EDUCAÇÃO

Inicialmente, e de modo preliminar e sintético, cumpre ressaltar o


entendimento referente à Geografia Escolar e à sua função na Educação.

A Geografia Escolar não é uma simplificação da Geografia Acadêmica


(CAVALCANTI, 2002,2008; CALLAI, 2010). Tem

[...]a função de estudar, analisar e buscar as explicações para o


espaço produzido pela humanidade. Enquanto matéria de ensino, cria
as condições para que o aluno se reconheça como sujeito que
participa do espaço em que vive e estuda, e que pode compreender
que os fenômenos que ali acontecem são resultado da vida e do
trabalho dos homens em sua trajetória de construção da própria
sociedade demarcada em seus espaços e tempos (CALLAI, 2010,
p.17).

Assim, é pautada pelo fazer pedagógico do professor; é o “conhecimento


geográfico efetivamente ensinado, efetivamente veiculado, trabalhado em sala
de aula” (CAVALCANTI, 2008, p. 28?). Por conseguinte, é realizada
cotidianamente, construindo-se e concretizando-se nas relações que ocorrem
no território escolar, em geral, e na sala de aula, em particular. O trabalho de
Educação Geográfica na escola implica em conduzir os alunos à consciência
da espacialidade das coisas, direta ou indiretamente vivenciada nos fenômenos
cotidianos. Então, “a finalidade da Educação Geográfica é contribuir na
construção de um pensamento geográfico, modos de pensar que envolvam a
dimensão espacial” (CALLAI, 2010, p.16). Tais considerações permitem
concluir que as práticas cotidianas são espaciais e, portanto, o conhecimento
geográfico apresenta-se como importante elemento da vida diária.

Ao se considerar a dimensão da realidade espacial, posta pelo/no


cotidiano, é interessante ressaltar que esse recorte vem assumindo importante
lugar no contexto educativo e educacional, como aponta Strafforini (2012), ao
identificar a presença crescente da temática nas pesquisas referentes à
Geografia Escolar. A esse respeito, Ferraço (apud STRAFORINI, 2012)
corrobora com a ideia de Alves (2003), uma vez que aquele propõe um
“mergulho no cotidiano”, a fim de superar a pesquisa “sobre” o cotidiano e
avançar na direção das pesquisas “com” o cotidiano. Tal recorte, porém,
evidencia uma perspectiva do desenvolvimento sociocultural, que considera o
indivíduo em suas relações com as condições sócio-históricas, seus processos
de socialização, num contexto de permanente interação com os membros da
comunidade e do grupo cultural onde está inserido. Assim, o trabalhar com o
cotidiano possibilita a construção de significados, que se estabelecem com a
mediação dos sistemas simbólicos concretizados no lugar, por meio da cultura.

Há uma relação indissociável entre Educação e Cultura. Nessa ótica,


Bruner (2001) considera a cultura como um sistema de valores, direitos, trocas,
obrigações, oportunidades e poder, que extrapola o compartilhamento de
história e língua comuns, pois as instituições que a compõem especificam os
papéis que as pessoas desempenham. Desse modo, a vida em uma cultura
constitui-se na interação entre as versões do mundo que as pessoas formam
sob a influência institucional e aquelas que são produtos de suas histórias
individuais. Consequentemente, é por meio da interação com outros que os
indivíduos constroem o sentido de cultura e o de como interpretam a si, ao
outro e ao mundo (LEITE, 2012).

A cultura molda a mente dos indivíduos e sua expressão individual


cumpre importante papel na produção de significados, pois o situa em
encontros com o mundo, para conhecer e compreender a realidade. Desse
modo, a construção da realidade é resultado da produção de significados
moldada pelas tradições e pelo conjunto de ferramentas e formas de
pensamento de uma cultura. A realidade, nesse contexto, é representada por
simbolismos compartilhados por membros de uma comunidade cultural, na qual
uma forma técnico-social de vida é organizada e interpretada em termos
desses simbolismos. Esses modos são compartilhados, conservados,
alterados, elaborados e transmitidos a gerações sucessivas, que reinterpretam,
constroem e reconstroem a identidade da cultura e o modo de vida. Assim,
pode-se afirmar que a Educação se inicia com base na cultura: a Educação é
concebida como o meio pelo qual o ser humano aprende a utilizar as
ferramentas de produção de significado e de construção da realidade, para
mais bem se adaptar ao mundo onde vive; a Educação fornece habilidades,
formas de pensar, sentir e falar, utilizar, modificar e produzir ferramentas, assim
como formas preferenciais de usar uma sequência de estratégias e lógicas
que, posteriormente, podem ser negociadas. Ela não é neutra, existe em uma
cultura, que é diversa e desigual e, por conseguinte, plena de contradições e
conflitos (LEITE; BARBATO, 2011).

A escola, nesse contexto, constitui-se em um modo para aquisição de


conhecimentos e habilidades, num empreendimento que inculca crenças e
sentimentos, para transmitir e explicar as formas de interpretar o mundo natural
e social de sua cultura patrocinadora (BRUNER, 2001). Em consequência, a
escola e o processo de escolarização assumem relevante papel nas
interpretações que cada pessoa constrói sobre si, sobre o outro, sobre o
mundo. A experiência de escola que os alunos têm contribui com a construção
de significados que eles atribuem a ela. A experiência vivida na escola que lhe
confere um sentido particular é influenciada não só por outros grupos externos
à própria escola, mas também por outros fatores. Desse modo, a escola e a
aprendizagem expressam um caráter situacional, na medida em que sofrem
influências, a todo instante, de situações diversas e, por vezes, contraditórias.
Nesse sentido, a aprendizagem constitui-se nos processos interativos nos
quais as pessoas aprendem umas com as outras e em atuação conjunta com
outros elementos, ferramentas e dinâmicas mediacionais do professor, dos
colegas, dos instrumentos físicos, dos elementos simbólicos, entre outros
(LEITE, 2012).

Tais considerações confluem para o estabelecimento de um raciocínio


que imputa uma indicação à Geografia Escolar: orientar-se à produção de
significados com base no cotidiano vivido pelo aluno, em seu Lugar, na medida
em que serão esses os elementos que possibilitarão o entendimento acerca da
própria espacialidade e, nesse contexto, o desenvolvimento do raciocínio
espacial. Tal raciocínio, associado à especificidade dos anos iniciais de
escolarização, aumenta a responsabilidade desse campo disciplinar na
estruturação da consciência espacial, principalmente no tocante às habilidades
de letramento, que deverão ser desenvolvidas para que uma leitura do mundo
possa ser feita, à própria compreensão da espacialidade e, principalmente, à
estruturação dos modos de pensar que envolvam a dimensão espacial.

Considerando-se que Geografia Escolar vem aprofundando as


reflexões em busca de alternativas que tornem seu ensino mais adequado às
necessidades contemporâneas, a questão referente à formação se torna
relevante, uma vez que há necessidade de identificar o modo pelo qual o
professor aprende a ensinar (CALLAI, 2010). Isso porque a forma e o conteúdo
da Geografia Escolar constituem aspectos fundamentais à discussão referente
ao ensino e à aprendizagem de uma disciplina que integra o conteúdo
curricular. Entretanto, nesse movimento de pensar, ainda é incipiente a
discussão acerca dos anos iniciais de escolarização e, particularmente, da
formação/atuação do pedagogo, apesar de existirem interessantes e recentes
contribuições à tal reflexão (BORBA, OLIVEIRA, 2012; CALLAI, 2005;
MIRANDA, 2012; STRAFORINI, 2012).

Nos anos iniciais do Ensino Fundamental, ocorre o primeiro contato


com o que se denomina Geografia. Seja como um campo disciplinar formal,
com conteúdos preestabelecidos por ano de escolarização, número de aulas
por semana, uso de livro didático e demais ferramentas tradicionalmente
associadas ao letramento em Geografia (mapas, globos, bússola, por
exemplo); seja associado à História, sob o rótulo de Estudos Sociais,
independentemente de qual for o caso, o fato é que, ao Pedagogo, recai a
“obrigação” de ministrar conteúdos de Geografia, sem que exista a devida
preparação para isso. De um lado, porque as diretrizes para os cursos de
licenciatura em Pedagogia não especificam as metodologias (como são
chamados os campos disciplinares aplicados aos anos iniciais). De outro, pelo
fato de tal legislação abordar, de modo muito geral, os campos disciplinares,
sem estabelecer qualquer orientação para cada um desses. Em consequência,
os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) assumem a função de
orientação às metodologias. Importante é ressaltar que não é função desses
documentos – Diretrizes e PCN’s – aprofundarem determinadas questões,
entre as quais esta. Entretanto, como se está analisando o processo formativo
do pedagogo em relação ao seu trabalho com Geografia, destaca-se tal fato
para assinalar que o PCN apresenta uma orientação geral para a Geografia
dos anos iniciais.

Os PCN’s de Geografia orientam para a formulação de conteúdos,


considerando que a compreensão do espaço geográfico se faça com
base na leitura e na análise do espaço próximo. O ensino só se faz
significativo, se relacionado à realidade do alunado e, nesse sentido,
ela deve ser ensinada junto à alfabetização, já nas séries iniciais do
ensino fundamental, por meio da alfabetização cartográfica e da
alfabetização geográfica (BORBA; OLIVEIRA, 2012, p.121).

Sem pretender efetuar uma análise crítica dos PCN’s, objeto de


discussão de alguns autores em coletânea de artigos (CARLOS; OLIVEIRA,
1999), constata-se que a orientação básica diz respeito à formulação de
conteúdos que possam conduzir à compreensão do espaço geográfico com
fundamento no espaço vivido pelo aluno e, ainda, promover a alfabetização
geográfica. Nessa perspectiva, a formação que o pedagogo recebe é
compatível com essa intenção? A resposta a essa questão perpassa pela
consideração de algumas ideias, brevemente especificadas a seguir.

ESTRUTURA DOS CURSOS DE LICENCIATURA EM PEDAGOGIA

De um modo geral, os cursos de Pedagogia no Brasil apresentam-se


com um elenco de disciplinas obrigatórias, consideradas fundamentos
(Sociologia, Filosofia, História e Psicologia da Educação, Organização da
Educação Brasileira, Didática, Psicologia da Infância, do Desenvolvimento e da
Aprendizagem, entre outras), ministradas nos semestres iniciais, seguidas das
metodologias e práticas de ensino, nos semestres posteriores. Para fins de
raciocínio, toma-se, como exemplo, um desses cursos de uma universidade
pública. Nessa instituição, a obtenção do diploma de licenciado em Pedagogia
é conquistada após a conclusão de um total mínimo de 214 créditos e
aprovação nestes, entre disciplinas obrigatórias e optativas. Entre esses
créditos, inclui-se apenas uma disciplina orientada ao ensino de Geografia,
com quatro créditos.

A questão que se aponta aqui é a magnitude da intenção tríade


estabelecida pelos PCN’s, que é formular conteúdos, compreender o espaço
geográfico, alfabetizar cartograficamente, numa perspectiva formativa que se
reduz a quatro créditos. Nessa situação, a formação para o exercício em
Geografia tende para o teórico, abrangente e, talvez, superficial.
Provavelmente, não haverá tempo disponível para o aprofundamento de
temáticas que possam subsidiar o fazer pedagógico do professor em seu
pensar de Geografia, seja no campo teórico, seja no prático. Em consequência,
recairá sobre o aluno, futuro professor, a responsabilidade de buscar
complementação em outras possibilidades formativas – disciplinas optativas,
participação em projetos de ensino, pesquisa e extensão –, de modo a
minimizar as lacunas em sua formação para a Geografia. Se a instituição de
ensino for competente na promoção de atividades (várias) que possam suprir
essas lacunas ou, ao menos, conseguir fomentar a participação dos alunos
nessas ocasiões, talvez essa dificuldade possa ser equacionada.

Além disso, a própria estrutura fragmentada das disciplinas no curso –


fundamentos no início, metodologias no meio, prática no final – corroboram
uma dissociação entre os fundamentos e as metodologias. Desse modo, por
exemplo, fundamentos teóricos da psicologia da aprendizagem e do
desenvolvimento, onde se insere (também) a perspectiva sociocultural,
distanciam-se de uma orientação metodológica socioconstrutivista para o
ensino de Geografia, como propõe Cavalcanti (1998; 2008; 2012). Nesse
sentido, constata-se que a responsabilidade pela costura teórica dos
fundamentos às metodologias recai, quase que exclusivamente, sobre o aluno.
Tal fato não pode ser considerado errado, na medida em que cabe ao aluno
buscar a direção de sua própria formação. Por outro lado, porém, a própria
instituição deve garantir que espaços formativos – que unam teoria e prática –
sejam ofertados desde o início do curso, a fim de promover as condições para
que aquela “costura” se efetive. E, mesmo que isso ocorra, não há nenhuma
garantia de formação para o exercício específico de Geografia.

QUE GEOGRAFIA É ESSA QUE O PEDAGOGO APRENDE?

De um modo geral, a formação do pedagogo contempla várias


metodologias, entre as quais, a Geografia. Nesse contexto, emerge um
questionamento: que Geografia é essa que ele aprende? Seria uma Geografia
idiográfica ou de perspectiva crítica? Aprenderia os aportes conceituais para as
subáreas da ciência geográfica ou os aportes metodológicos à transposição
didática desses? Os conteúdos seriam apreendidos na lógica da transposição
ou da reconstrução didática? Corresponderiam esses conteúdos aos
programas de ensino estipulados pelas Secretarias da Educação ou seriam
pautados pelas especificidades de cada currículo? É intuitiva ou programada?
Teórica ou prática? Inovadora ou conservadora? Técnica ou tecnológica?
Estaria o aprendizado da Geografia estabelecido em alguma perspectiva
metodológica? Configurar-se-ia como qual fundamentação filosófica? Seria
uma simplificação sintetizada dos conteúdos acadêmicos ou uma aplicação
desses? Nesse sentido, contemplaria as realidades locais? Inúmeras são as
questões que se apresentam nesse exercício de raciocínio. Entretanto, pode-se
afirmar que ainda não há nenhuma resposta conclusiva sobre o assunto. Em
outras palavras, desconhece-se não somente que Geografia é essa que os
pedagogos aprendem no contexto de sua formação, mas também o modo pelo
qual aprendem a ensinar Geografia.

Tais questões sem resposta apontam, então, para a necessidade de


elaboração de um marco situacional, um diagnóstico da situação, a fim de que
se possa avançar no enfrentamento das contradições relativas à insuficiente
formação em Geografia. A despeito de não existirem tais respostas,
notadamente no que tange a um diagnóstico da situação em escala
nacional/regional/estadual/municipal/distrital, pode-se inferir que o professor
tende a reproduzir, em seu exercício profissional, aquilo que foi construído em
sua formação. Assim, se seu processo formativo foi pautado por práticas
tradicionais, é bem provável que sua própria prática também o seja. Do mesmo
modo, se a formação ocorreu num contexto de permanente
reflexão/crítica/construção, o exercício profissional tenderá a seguir a mesma
perspectiva.

COMO O PROFESSOR APRENDE A ENSINAR GEOGRAFIA?

Partindo-se do pressuposto de que desconhecemos qual é a Geografia


que o pedagogo aprende em sua formação, emerge outra situação igualmente
peculiar, que diz respeito ao modo como o professor aprende a ensinar. Como
afirmado, os anos iniciais da licenciatura em Pedagogia contemplam um elenco
de fundamentos teóricos que, associados às metodologias, conflui para o
estabelecimento de alternativas às práticas pedagógicas. Assim, pode-se
deduzir que há uma indicação sobre os modos de ensinar, pelo menos em nível
teórico. Do ponto de vista da prática, não necessariamente aquele do espaço
do Estágio Supervisionado, tal questão se mantém? Ou seja, ao se considerar
a noção de prática estabelecida por Pimenta e Lima (2011), entendida como a
oportunidade de desenvolvimento de habilidades instrumentais necessárias à
ação docente, pode-se afirmar que existe uma orientação clara sobre os modos
de ensinar? Se tais oportunidades de prática estiverem associadas ao
movimento de pensar a própria prática, revisitá-la, à luz dos fundamentos
teóricos, conjugados às especificidades curriculares, provavelmente os futuros
professores estarão diante de alternativas sobre os modos de ensinar,
cabendo-lhes escolher aquela(s) que mais convêm a um determinado objetivo.
Ao contrário, se essas oportunidades se configurarem apenas como uma
exigência da formação, é provável que não forneçam aportes significativos ao
como ensinar.

Esse mesmo raciocínio, aplicado ao contexto da Geografia a que o


pedagogo tem contato em sua formação, constitui um fator problemático. Do
ponto de vista teórico, se não se sabe que Geografia esse professor aprende,
também se tem dificuldade em identificar o modo pelo qual ele aprende a
ensinar. Além disso, como exemplificado, não há garantia de que os aportes
teóricos adquiridos por ocasião das disciplinas de fundamentos sejam
associados às metodologias como modos de ensinar. Entretanto, são a própria
especificidade do objeto da Geografia, o espaço, e sua função na
escolarização – contribuir para o desenvolvimento do raciocínio
espacial/geográfico – que agravam a perspectiva referente ao como ensinar.
Nesse sentido, como ensinar a compreensão do espaço geográfico e como
alfabetizar cartograficamente? Seriam os espaços curriculares das
metodologias, a disciplina Geografia, adequados e suficientes ao alcance
dessa intenção?

No âmbito das pesquisas associadas à Educação Geográfica, tais


questões começam a ser respondidas e têm o potencial de subsidiar os
processos relativos ao como ensinar. Para a primeira questão, a compreensão
do espaço geográfico, há claro indicativo da utilização do conceito de Lugar,
categoria de análise do espaço geográfico (LEITE, 2012). Nesse sentido, a
própria orientação estabelecida pelos PCN’s indica que a compreensão do
espaço geográfico deve ser efetuada por meio dos espaços próximos da
criança e de elementos de sua realidade vivida, seu cotidiano, o que evidencia
aquela perspectiva conceitual. Assim, a possibilidade de estudar o lugar para
compreender o mundo, como o entende Callai (2000), apresenta-se como
alternativa procedimental à compreensão da espacialidade. Há, também, uma
proposição metodológica para o ensinar Geografia – o socioconstrutivismo
(CAVALCANTI, 1998) –, bem como a especificação da cidade como lócus de
análise do urbano, via para a compreensão do espaço geográfico
(CAVALCANTI, 2008). Importante é ressaltar que existem outras contribuições
relevantes ao tema, de outros autores, que não foram aqui especificados. A
intenção, nesse momento, é, tão somente, assinalar que as pesquisas em
Educação Geográfica começam a pontuar sugestões e a indicar alternativas
metodológicas.

No que tange ao processo de alfabetização cartográfica, também


existem avanços significativos. Primeiramente o reconhecimento de que
alfabetização e letramento cartográfico são processos distintos e
complementares, e constituem elementos fundamentais para o
estabelecimento de um modo de pensar que utilize a dimensão espacial e a
represente graficamente. Nessa perspectiva, as contribuições pioneiras de
Oliveira, Rubini e Fittipaldi (1971) e de Oliveira e Xavier (1991) e de Almeida e
Pasini (1991), que incorporam aspectos do desenvolvimento da percepção
espacial da criança no processo de iniciação em cartografia, são importantes
fundamentos para o ensinar cartografia nos anos iniciais de escolarização.
Agrega-se à temática o potencial das ferramentas multimídias, das tecnologias
de comunicação, em especial o Google Earth, as quais criam possibilidades de
aproximação e visualização do espaço em várias escalas, em tempos distintos,
assincronamente, e o representam graficamente numa perspectiva
eminentemente autoral. Nesse sentido, revistas e sites especializados, oficiais
ou não, fornecem farto material referente ao como ensinar determinados
assuntos.

Pelo exposto, pode-se constatar que existem contribuições


significativas ao ato de aprender a ensinar Geografia. Mas, tais contribuições
chegam aos pedagogos em formação? Alcançam seu exercício prático? Ao se
retornar ao ponto de vista de que o espaço destinado à Geografia na formação
do Pedagogo é reduzido – 4 créditos em 214, como exemplificado –, haveria
tempo hábil para conhecimento dos pressupostos teóricos específicos ao
trabalho na área, bem como para sua apropriação e reconstrução didática?
Essa carga reduzida é compatível com as responsabilidades inerentes ao fazer
pedagógico em Geografia? É importante esclarecer que não se defende um
aumento do número de créditos na formação do pedagogo para contemplar um
maior elenco de disciplinas de Geografia. Não é isso. Trata-se de promover
oportunidades de aprendizagem na área de Geografia, fora do campo
estritamente disciplinar, ou seja: ofertar projetos de pesquisa, cursos de
extensão, estágios, rodas de leitura, aumentar o número de alunos vinculados
ao Pibic e Pibid, entre outras ações, as quais se traduzam em possibilidades
concretas de aprendizagem, não somente de conteúdos de Geografia, mas,
principalmente, de formas de ensinar tal componente curricular.

Há de se ressaltar, ainda, que uma boa prática em Geografia nos anos


iniciais de escolarização não precisa, necessariamente, estar vinculada às
aulas de Geografia propriamente ditas. Desse modo, é possível que o processo
de letramento à leitura do mundo possa compor outros campos disciplinares,
como Português e Matemática, por meio de várias atividades que, direta ou
indiretamente, corroboram o processo de construção de conceitos, inclusive os
científicos. Por exemplo, para as aulas de Português, podem-se elencar
algumas ideias: atividades de observação da paisagem, exercício escrito de
descrição dessa, bem como sua representação por meio de desenhos,
interpretação e discussão de seus significados, contextualização histórica;
atividades de observação e registro das condições do tempo ao longo do ano;
jogos e atividades lúdicas orientados ao desenvolvimento de relações espaciais
projetivas e euclidianas, entre outras.

Diante dessas considerações, pode-se constatar que o modo de


ensinar Geografia traduz-se, fundamentalmente, por um processo de criação.
Processo esse que emerge daquelas oportunidades de convivência com um
grupo que estuda, discute, aplica, constrói/reconstrói uma dada prática,
negociada coletivamente à luz das especificidades de um determinado lugar,
de um público e de uma cultura. É nesse processo criativo, coletivo, construído
em métodos interativos nos quais as pessoas aprendem umas com as outras,
concomitantemente à utilização de ferramentas e de dinâmicas de mediação do
professor, dos próprios colegas, dos elementos físicos e simbólicos no espaço
presentes, que se efetiva a aprendizagem.

O PROCESSO DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO

Até o momento foram efetuadas considerações referentes às


possibilidades de prática na formação do pedagogo não se focalizando as
relativas ao processo de Estágio Supervisionado. Nesse sentido, então, a
atenção recai sobre este percurso acadêmico do futuro professor, sob o prisma
da Geografia.

O Estágio Supervisionado representa, nos dias atuais, um momento ímpar na


formação do futuro professor, configurando-se como preparação profissional e
qualificação quanto ao objetivo a que se destina, pois possibilita ao estagiário
vivenciar o ambiente escolar e refletir sobre ele. Tem a função de colocar o
futuro professor em contato com o seu campo de trabalho, levando-o a avaliar
a sua pertinência e a adequação de sua escolha profissional, bem como os
desafios que a prática apresenta e a própria satisfação com a escolha feita.
Portanto, a experiência do Estágio Supervisionado proporciona ao futuro
professor uma oportunidade única durante sua formação como docente, dando-
lhe a oportunidade de exercê-la, de vivenciar situações reais, cotidianas, enfim,
de viver a escolha profissional feita (BRITO, 2013, p.17).

Quando o aluno de Pedagogia se dirige a uma escola para realização


do estágio, ele o faz na expectativa de acompanhar a rotina de uma dada sala
de aula e não de uma disciplina em particular, pois, para cada ano de
escolarização, há apenas um professor responsável pelo letramento em todos
os campos disciplinares. Assim, ao contrário do estagiário de Geografia, que
atuará nos anos finais do Ensino Fundamental, especificamente nas aulas de
Geografia, o aluno de estágio da licenciatura em Pedagogia terá a
possibilidade de observar e refletir sobre a prática docente de todas as
disciplinas. De um lado, tal perspectiva de totalidade no processo de
observação/intervenção é interessante, pois poderá se constituir, também, em
oportunidade de identificação de possibilidades de trabalho em Geografia, fora
do contexto específico dessas aulas. De outro lado, porém, a reflexão sobre
uma prática que tem um objetivo tão abrangente, como é o caso da Geografia
nos anos iniciais – formular conteúdos, compreender o espaço geográfico,
alfabetizar cartograficamente (PCN’s) –, merece atenção especial. Ao se
considerar que o desenvolvimento do raciocínio espacial/geográfico é uma
meta a ser alcançada e que esse tem implicações em outras áreas e no futuro
escolar, conclui-se que é importante uma reflexão específica sobre a prática em
Geografia.

Contudo, se a escola campo de atuação do estagiário tiver uma grade


fixa de horários para as disciplinas no curso da semana e o estagiário cumprir
com sua carga horária sempre nos mesmos dias e horários, é provável que
tenha oportunidade de conferir a prática somente de um campo disciplinar.
Desse modo, é recomendável que esse discente de estágio tenha
conhecimento dos horários e dias das aulas da semana, a fim de que possa
participar de todas as disciplinas e não se restrinja a apenas a uma. Nesse
sentido, deverá ter a preocupação de refletir sobre cada área, entre essas a
Geografia, para aprofundar determinadas questões e, ainda, pensar na
promoção de atividades transdisciplinares.

A oportunidade de realização do estágio supervisionado ainda confere


a possibilidade de confronto e equacionamento de um dos problemas relativos
ao ensino de Geografia: priorização das disciplinas Português e Matemática,
em detrimento da Geografia e História. O curioso, nesse caso, é que Português
e Matemática constituem, apenas, linguagens para a compreensão da
Geografia e da História. Tal inversão, justificada por alguns pela necessidade
de focar somente na alfabetização, notadamente no 1º e 2º ano, parece um
equívoco pedagógico. Primeiro porque alfabetização não significa letramento,
para o qual a leitura do mundo e seus significados intrínsecos compõem um
coadjuvante à aprendizagem significativa, pela concretude da paisagem, pelo
cotidiano vivido, pelo simbólico compartilhado no Lugar pela cultura.
Desconsiderar que tais espaços devam ser analisados e servir de base ao
próprio processo de alfabetização traduz-se em alijamento do potencial crítico
de uma criança em desenvolvimento. Mais do que isso, dificulta a construção
do senso de cidadania, na medida em que esse distanciamento resulta na
percepção de que a criança não integra aquele espaço estudado.

Ainda na defesa da paridade entre o ensino das linguagens e da


Geografia, há de se destacar uma atividade procedimental desse campo
disciplinar, que apresenta implicações no contexto da alfabetização: o desenho.
Esse, no contexto da educação em Geografia, desempenha um papel
importante no tocante ao processo de alfabetização cartográfica, por se traduzir
no modo pelo qual a criança estabelece suas primeiras representações
espaciais. Assim, significa o momento de codificação dos elementos de um
determinado espaço, por meio de símbolos e signos estabelecidos pela própria
criança. Considerando-se que o processo de codificação constitui pré-requisito
à decodificação, o desenho assume a função de habilitar, de modo paulatino e
progressivo, o raciocínio espacial por meio de sínteses espaciais, expressas
por sistemas simbólicos autorais. Desse modo, o bom leitor de mapas – aquele
que consegue decodificar suas informações – é aquele que aprendeu a fazê-
los. Tal premissa, na escolarização dos anos iniciais, momento da alfabetização
cartográfica, viabiliza-se principalmente pelos desenhos, que tendem a evoluir
de simples representações para mapas mentais mais complexos e croquis.
Deve-se, ainda, considerar que o desenho forma a gênese da escrita. Por
conseguinte, apresenta-se importante não somente para a Geografia, mas
também para o próprio processo de alfabetização na língua materna. Por
estimular o raciocínio espacial, configura-se como elemento importante na
alfabetização matemática, por possibilitar a abstração referente à
representação de volumes, áreas, distâncias, entre outros.

O LIVRO DIDÁTICO

Em quase todos os encontros de professores ocorrem queixas


referentes à utilização do livro didático. Seja porque o professor tem sua prática
pedagógica centrada, exclusivamente, na leitura e explicação dos conteúdos
do livro, seja porque tal instrumento de mediação apresenta problemas. Em
relação aos anos iniciais de escolarização, principalmente em relação às áreas
de Geografia e História, há um agravante: o professor estuda os conteúdos por
meio do livro didático de seus alunos. Ao se considerar que parte do
conhecimento que esse professor tem de Geografia é aquele que ele traz de
seu ensino médio, numa lógica bem distinta da Geografia do Ensino
Fundamental, ou, ainda, aquele advindo de uma vaga lembrança referente à
memorização de nomes, pintura de mapas, por exemplo, seu primeiro contato
formal com a temática vai ocorrer no andamento de sua própria prática
profissional. Isso porque em sua formação de pedagogo, pelo menos em tese,
ele aprende outra Geografia, muito diferente daquela que existe nos livros
didáticos. Assim, como se fosse de repente, ele se vê na obrigação de conjugar
teorias sobre o como ensinar com os conteúdos do livro. E, nessa perspectiva,
acaba por legitimar uma relação de aprendizagem pautada pela leitura dos
capítulos, seguido de explicações rasas, onde não há trocas, tampouco
reconhecimento de que os assuntos tratados se referem à realidade vivida.

No processo de escolarização do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental,


os conteúdos de Geografia caracterizam-se por considerar o espaço numa
perspectiva crescente, pois as temáticas a serem estudadas partem do espaço
mais próximo da criança para, progressivamente, atingirem os mais distantes.
Assim, a criança vai estudando sua família, sua casa, sua escola, sua
vizinhança, seu bairro, sua cidade, seu estado, sua região, seu país, até dispor
de elementos que lhe permitam compreender outras realidades, a partir de seu
próprio lugar. Nessa ótica, o lugar constitui-se em uma categoria de análise do
espaço geográfico, adequado ao processo de escolarização, uma vez que as
vivências da criança e de seu grupo social são a base dos próprios conteúdos
a serem analisados. Desse modo, estabelece-se uma oportunidade de
conhecimento e reflexão sobre a realidade, a partir do indivíduo. Em
consequência, pode-se valorizar o que é particular, específico e singular para a
criança e reafirmar seus valores, suas histórias de vida, sua memória familiar,
seu grupo social e sua cultura. Tal situação, porém, ocorre no contexto das
práticas pedagógicas em Geografia? Estão presentes no livro didático? Como
isso acontece no dia a dia de uma sala de aula? Os professores estão
preparados para isso?
A resposta a essas questões foi obtida por meio de pesquisa realizada
sobre a prática pedagógica dos professores dos anos iniciais, ao ensinar
Geografia (LEITE, 2012). Nesse sentido, algumas conclusões desse estudo
serão pontuadas para ilustrar o raciocínio e, principalmente, para ressaltar que
a prática pedagógica na Geografia continua pautada pelo livro didático. Nesse
contexto, então, o Lugar e todo o significado implícito sobre o processo de
aprendizagem numa perspectiva socioconstrutivista não aparecem. Essa
situação serve para evidenciar que o processo formativo do pedagogo no que
tange à Geografia carece de atenção, na medida em que os professores
envolvidos na pesquisa – todos pedagogos – não perceberam as
possibilidades da Geografia e, ainda, legitimaram a manutenção de uma
Geografia que nada acrescenta à formação integral do aluno.

Assim, a referida pesquisa não somente analisou todos os livros


didáticos adotados pelas escolas da rede pública de ensino de uma
determinada cidade do Distrito Federal (DF), mas também o modo pelo qual os
professores os utilizavam. Nesse sentido, o estudo buscou verificar se os
professores conseguiam conjugar os conteúdos genéricos apresentados nos
livros com a realidade do local onde estavam inseridas as escolas e a
comunidade escolar. Os resultados apontaram uma preeminência do livro
didático no contexto da prática escolar. Mais grave, entretanto, foi o fato dos
conteúdos ratificarem a hegemonia da realidade de Brasília em detrimento da
realidade da própria cidade onde estavam as escolas. Os professores
participantes da pesquisa, em nenhum momento, perceberam que os
conteúdos deveriam ser aplicados tomando-se como base a sua cidade. Ao
contrário, legitimaram um processo de segregação, pela reafirmação da
centralidade de Brasília, em prejuízo das características locais, jogando fora
toda a potencialidade existente na perspectiva do Lugar.

Além disso, em relação à prática pautada pelo uso do livro didático, a


pesquisa apontou a ocorrência de duas perspectivas em relação à abordagem
de seus conteúdos: uma caracterizada pela permanência de estruturas que se
reportam a uma Geografia idiográfica, como, por exemplo, a memorização de
nomes das cidades do DF, com especificação do decreto de sua criação e
respectiva data, única menção ao conjunto das cidades que compõem o DF;
outra com inserção de métodos de ensino contemporâneos e de conteúdos
críticos, a exemplo da utilização de reportagens de jornais como ponto de
partida para discussão de assuntos que se reportam, direta ou indiretamente,
ao cotidiano das crianças.

No que se refere aos conteúdos dos livros analisados, constatou-se que


alguns são apresentados por meio de narrativas coloquiais, analogias passíveis
de compreensão das crianças, bem como elementos conhecidos de sua vida
cotidiana e estabelecimento de problematizações. Tal forma de abordagem
apresenta uma dinâmica interessante, tornando-se atrativa ao aluno e
estimulando sua capacidade intelectual, ao contextualizar historicamente os
fatos, relacionar prática à teoria, fomentar reflexões, efetuar críticas e
proposições, apontar soluções, em consonância com o uso de métodos de
ensino contemporâneo, como aqueles que incentivam a pesquisa, por exemplo.
Constatou-se, ainda, a existência de temas associados à organização do
espaço, à consideração da dimensão social, ao crescimento urbano, à
preservação ambiental, à cidadania, apenas para destacar alguns,
evidenciando uma filiação à Geografia Crítica. Foram percebidas, também,
marcas de uma Geografia Fenomenológica, pela proposição de resgate das
histórias de vida do aluno, no sentido de contextualizá-lo em relação ao DF e
até mesmo sua própria percepção acerca de determinadas situações (por
exemplo: assassinato do índio Galdino ocorrido em Brasília).

Entretanto, esse modo de apresentação dos conteúdos nos livros


analisados restringiu-se apenas a determinadas temáticas, pois, na totalidade
deles, observou-se a permanência de uma Geografia idiográfica, que enuncia
fatos e informações de forma descritiva, sem associação de causa e efeito,
sem elucidação dos porquês ou de quaisquer outras explicações que permitam
a compreensão sobre os fatos. Interessante é destacar que essa situação se
aplica não somente à caracterização dos elementos que compõem a base
física da paisagem do DF, mas também à denominação das unidades
federativas limítrofes a esse território e aos processos de representação
cartográfica, notadamente no que se refere à especificação das localidades
que compõem sua realidade socioespacial. Em consequência, os professores
acabam legitimando os processos de memorização de dados, pois os identifica
como os conteúdos importantes de Geografia.

Essa forma de apresentação dos conteúdos revelou uma narrativa


dialógica e com belas imagens associadas à Brasília, em contraposição às
demais localidades do DF, que servem para mostrar problemas urbanos ou
mediar a informação sobre os aspectos físicos da paisagem, naquela
perspectiva da Geografia idiográfica. Como consequência, as narrativas sobre
Brasília apresentadas pelos livros didáticos tendem a contribuir com o
estabelecimento de uma noção de pertencimento a esse território, que não é o
vivido pelo grupo de crianças da cidade pesquisada.

De modo contrário, aquelas narrativas relativas aos lugares que não são
Brasília, e aí se inclui a cidade da pesquisa, são vagas, imprecisas, impessoais
e não favorecem o sentimento de pertencimento. Como conteúdos de livros
didáticos, essa lacuna de informações cria uma condição desigual, uma vez
que não aparecem elementos que possam contrapor-se ao estereótipo da
segregação, imposto pelos nomes cidade-satélite, núcleo periurbano, periferia,
entorno (e aí se enquadra, também, o Entorno do DF). Desse modo, a noção
de uma identidade única e estável, estabelecida pela centralidade de Brasília,
legitima-se, em meio aos discursos escolares.

O mais grave nesse contexto é, porém, o fato de as professoras não


perceberem tal situação, tampouco efetuarem mediações no sentido de
estabelecerem o reconhecimento de sua própria cidade, no tocante à
valorização desta. Ao contrário, ao permanecerem na atividade de leitura-
explicação dos capítulos do texto, sem conexão com os aspectos vividos
cotidianamente pela comunidade ali presente, não conferiam nenhuma
significação aos conteúdos. Por conseguinte, não faziam aquela Geografia que
tem um potencial emancipador, que permite a leitura do mundo numa
perspectiva de pertencimento a esse.

Interessante é observar, também, a designação do lugar DF. O conceito


de lugar é aquele que permite uma compreensão acerca dos processos que
produzem o espaço em escala mundial, por meio das referências concretas da
vida cotidiana. É, por conseguinte, conhecido, vivido, concreto. Considerando-
se que a vida das pessoas se concretiza, fundamentalmente, nos seus lugares
de moradia e trabalho e que esses são partes do território, mas não o território
em si, a noção de DF apresenta uma concretude relativa. Em outras palavras,
o lugar – vivido e, por isso, concreto – corresponde às cidades que compõem o
DF, aos locais dessas cidades ou, ainda, a alguns locais nas Regiões
Administrativas (RA’s) do DF. Ao se considerar que, nas trinta RA’s existentes
no território do DF, existem lugares específicos que não se encontram dentro
dos limites do sítio urbano da cidade (cujo nome corresponde à RA e a
identifica), pode-se constatar que os lugares/as cidades extrapolam o número
de RA’s.

Nessa linha de raciocínio, a proposta dos livros didáticos de estudar o


lugar DF é passível de questionamento. Em primeiro lugar porque a concretude
do lugar DF se manifesta por Brasília e isso consolida a hegemonia desse lugar
em detrimento dos demais. A esse respeito, é importante lembrar que 90% da
população do DF não mora em Brasília. De acordo com o último censo (IBGE,
2010), o DF dispõe de uma população total de 2.570.160 pessoas e, em dados
desagregados, Brasília dispõe de 209.855. Esses dados atestam que, do total
de moradores do DF, 2.364.305 pessoas vivem em outras RA’s, que não
Brasília. Em termos percentuais, esse montante equivale a 91,99% da
população total do DF, sendo inconcebível considerar que esse quantitativo,
expressivo, seja equivalente e/ou reduzido ao de Brasília. Assim, estudar o DF
reduzindo-o à Brasília significa suprimir a diversidade de suas populações e
histórias. As definições de Brasília que se apresentam nos livros analisados
ratificam essa concepção, corroboram a consolidação da hegemonia da
identidade brasiliense sobre as demais e apresentam informações
equivocadas, que podem gerar preconceitos.

Importante é ressaltar que não se trata de desconsiderarem a história e


a importância de Brasília, mas sim de se analisarem a construção da
autonomia e a formação da cidadania dos sujeitos de um território, que se
conformou espacialmente em lógicas muito diferentes daquelas que
produziram a capital da República. Em se tratando de Educação e, sobretudo,
de conteúdos em livros didáticos, a inserção do conteúdo Brasília deveria ser
efetuada na perspectiva das cidades que compõem o DF. Nesse sentido, a
história desses lugares deveria ser um ponto a ser considerado para a inserção
da temática Brasília, num confronto de tempos no espaço, para evidenciar o
modo como os lugares são produzidos e, principalmente, o papel de cada um
nesse contexto.

Tal abordagem expressa a dimensão da territorialidade estritamente


vinculada ao processo de formação da cidadania. Assim, trata-se de inverter a
ordem de abordagem dos conteúdos: em vez de estabelecer Brasília como o
ponto de referência para a marcação tempo-espaço e como único referencial
identitário, situá-la na perspectiva da história e memória dos lugares do DF, de
cada lugar, do lugar da criança. Nas escolas pesquisadas, trata-se de contar a
história do lugar e, a partir daí, situar Brasília e as demais localidades. Com
isso, seria possível minimizar a centralidade e a hegemonia de Brasília nas
referências identitárias da população do DF, para conferir oportunidade de
reconhecimento e valorização de sua diversidade ou daquilo que é diferente
em relação à imagem simbólica de Brasília. Nessa perspectiva, a centralidade
de Brasília seria redimensionada pelo fortalecimento das referências locais de
identificação, importante elemento para a formação da cidadania. Desse modo,
talvez se estabeleça uma via efetiva de formação para a cidadania por meio do
ensino de Geografia.

Para isso, é necessário o estabelecimento de um diálogo sobre a cidade


e, depois, sobre a região, sobre o local-global, que permita a consideração de
suas características intrínsecas como conteúdo em Geografia; que possibilite a
apropriação da informação e cultura que a cidade oferece; que viabilize a
formação de um olhar crítico sobre as cidades em geral. Esse diálogo não
somente é possível de ser implementado no contexto do ensino de Geografia,
mas também fundamental à formação da cidadania, notadamente num território
cuja dinâmica de desenvolvimento vem se intensificando nas últimas décadas,
pressionando as cidades “não Brasília”, aumentando as tensões referentes à
moradia, ao emprego, à renda, à mobilidade intra e interurbana, aos
equipamentos e bens públicos de um modo geral. Desse ponto de vista,
conhecer as características intrínsecas desse território e de seus lugares
traduz-se, também, em estratégia de sobrevivência.

As considerações efetuadas até o momento, referentes aos resultados


de uma pesquisa sobre a prática pedagógica em Geografia de professores dos
anos iniciais de escolarização, permitem a conclusão de que a base obtida por
esses professores em sua formação em Pedagogia não os habilitou ao efetivo
exercício de Geografia, pois não foram capazes de articular os conteúdos dos
livros didáticos à sua realidade vivida. Nesse sentido, além de conferirem
pouca importância à Geografia, não souberam criar a partir dela ou com base
nela.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As questões apresentadas neste texto pretenderam reforçar a ideia de


que a formação de professores para o exercício de Geografia nos anos iniciais
de escolarização necessita de atenção.

Essa área do conhecimento tem um importante papel a cumprir no


contexto do desenvolvimento integral do ser, pela possibilidade de produção de
significados construídos coletivamente pelo cotidiano do aluno, em seu Lugar.
Considerando-se que tal exercício conduz ao entendimento da própria
espacialidade e, por conseguinte, ao desenvolvimento do raciocínio espacial,
constata-se que a especificidade dos anos iniciais de escolarização aumenta a
responsabilidade desse campo disciplinar na estruturação da consciência
espacial, notadamente no que se refere ao desenvolvimento de habilidades
que permitirão não somente uma leitura crítica do mundo da vida, mas também
a estruturação dos modos de pensar que envolvam a dimensão espacial.

Diante dessa responsabilidade, é necessário que o processo formativo


do pedagogo ou, ainda, sua própria formação continuada lhe possibilite
oportunidades compatíveis com a magnitude dessas intenções.
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