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Escuta Protegida de crianças e de adolescentes vítimas ou testemunhas de violências: aspectos teóricos e metodológicos
Destarte, pensar em parâmetros éticos para a realização dessa escuta é aliar procedi-
mentos cientificamente comprovados ao exercício dos direitos de crianças e adolescentes
como sujeitos em desenvolvimento. Como afirma Arantes (2009), é reconhecer e pensar
sobre a existência de uma tensão entre a condição de sujeito de direitos, cuja autonomia deve
ser preservada, e pessoa em desenvolvimento, alvo de medidas de proteção.
Além da já citada Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, para
aquilo que se propõe o presente texto, faz-se mister citar duas importantes mudanças legisla-
tivas no Brasil, as quais embasaram a doutrina da proteção integral à infância e à juventude:
a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
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Capítulo 20 – Procedimentos éticos e protocolares na entrevista com crianças e adolescentes
É importante frisar que o texto do ECA encontra-se em consonância com o que está
previsto nos Princípios Fundamentais no Código de Ética do Psicólogo, o qual estipula:
I. O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da
liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano,
apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos
Humanos.
Além da prévia manifestação sobre as condições das pessoas que recebem a ação
profissional, o ato de realizar a entrevista forense com crianças e adolescentes que figuram
como vítimas de violência sexual em processos judiciais, sob a perspectiva da doutrina da
proteção integral, deverá orientar-se pelos seguintes princípios:
1) Da contextualidade: a entrevista deve estar inserida dentro de uma
análise contextual, que compreenda os fatores individuais, familiares,
socioeconômicos e culturais presentes naquela situação.
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Capítulo 20 – Procedimentos éticos e protocolares na entrevista com crianças e adolescentes
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envolver a adesão do entrevistador em pelo menos seis princípios gerais e cinco estratégias
de questionamento, que, quando presentes, indicam a adequação à finalidade de se avaliar
de forma competente crianças suspeitas de terem sido vítimas ou testemunhas de violência.
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Capítulo 20 – Procedimentos éticos e protocolares na entrevista com crianças e adolescentes
A entrevista cognitiva
A terceira etapa estimula a livre narrativa e tem como objetivo, após a transferência
de controle, obter o relato livre da criança sem qualquer tipo de interrupção, visando ao
registro fiel da informação.
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tilhadas e discutir temas neutros com vistas a diminuir o sofrimento gerado pela abordagem
de temas emocionalmente fortes1.
O Protocolo NICHD
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Capítulo 20 – Procedimentos éticos e protocolares na entrevista com crianças e adolescentes
6. Descanso, momento em que o entrevistador se retira da sala que está com a criança
para analisar o que ouviu, revisar notas e organizar as próximas perguntas. Deve-se
dizer à criança: “Quero estar seguro de ter entendido tudo que você me contou
e se ainda há algo que necessito lhe perguntar. Vou sair por alguns minutos para
rever minhas anotações e refletir um pouco, certo?”;
8. Perguntas com conteúdos externos ao relato anterior da criança, caso essa ainda
não tenha trazido os conteúdos necessários: “Eu ouvi dizer que você falou com a
tia Maria sobre quando o papai pegou na sua florzinha. Me conte o que você contou
para a sua tia Maria”. E após o relato da criança, abra a pergunta com a frase
“Me conte tudo sobre isso”;
Cabe ressaltar que os autores desse modelo defendem que somente a partir da apli-
cação integral do protocolo é que se pode garantir a adesão às estratégias de entrevista
recomendadas pela literatura, mesmo por parte de entrevistadores experientes (LAMB e
cols., 2008).
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Capítulo 20 – Procedimentos éticos e protocolares na entrevista com crianças e adolescentes
A Fase II, Parte Substantiva, visa favorecer o relato das experiências de violação de
direitos com o máximo de detalhamento e o mínimo de indução por parte do entrevistador
e é composta das seguintes etapas: 1) transição, que visa introduzir gradualmente o assunto
em avaliação da forma menos indutiva por meio da estratégia de “afunilamento” que es-
timula que a criança ou adolescente relate a partir perguntas abertas e o uso moderado de
questionamentos mais diretivos para avaliação de determinadas barreiras para revelar ou
evidência de relutância, 2) a descrição narrativa, que visa permitir o relato detalhado pela
criança ou adolescente sem interrupções por parte do entrevistador sobre a experiência de
violação de direitos, 3) seguimento e detalhamento, que visa permitir com que o entrevista-
dor retome alguns pontos da descrição narrativa de modo a clarificar lacunas ou esclarecer
situações ambíguas, 4) a abertura para sala de audiência, que visa permitir a interação com
a sala de audiência judicial e realizar os esclarecimentos necessários, com a possibilidade
de transformação das perguntas diretas em perguntas que estimulam a livre evocação para
diminuir o efeito da sugestionabilidade e 5) o fechamento, que visa permitir o retorno da
criança ou adolescente a um clima emocional menos estressor decorrente do fato de haver
relatado experiências de violação de direitos.
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A literatura mostra que o investimento no rapport não deve ser considerado uma
perda de tempo. Lamb et al. (2008) apontam que as entrevistas em que as crianças não foram
capazes de revelar o abuso apresentaram, em sua maioria, déficits ou falhas na construção do
vínculo com o entrevistador. Portanto, não se deve negligenciar essa etapa da entrevista fo-
rense, sem a qual corre-se o risco de não se obter as evidências necessárias para a compreensão
da experiência vivida pela criança. O principal objetivo dessa etapa é construir um ambiente
relacional acolhedor, conforme recomenda a APSAC e demais protocolos apresentados.
Nessa etapa, a criança deve ser estimulada a discutir assuntos neutros e receber explicações
sobre os objetivos da entrevista. Recomendamos que, nesse momento, a criança seja infor-
mada sobre o contexto da audiência especial, sobre os procedimentos de registro em áudio
e vídeo, bem como sobre as pessoas que estão assistindo a entrevista: quem são elas e quais
são as funções que exercem naquele momento, tendo-se o cuidado de se comunicar estes
elementos de acordo com o nível de desenvolvimento da criança.
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Muitas crianças, em razão de sua idade, podem não ser capazes de serem entrevista-
das, fato que deve ser atestado pelo profissional antes, ou em qualquer outra fase durante
a condução da entrevista forense. Além disso, o tempo de investimento da criança em cada
atividade deve ser pensado com cautela. Anderson (2010) propõe que crianças por volta de
3 anos de idade podem se engajar em atividades focais por volta de 15 minutos; as de 4 e 5
anos de idade podem se envolver, em média, por 20 a 25 minutos; as de 6 e 10 anos de idade,
entre 30 a 45 minutos e crianças com mais de 10, por volta de uma hora ou mais.
Além do planejamento do tempo, o quadro a seguir pode ser utilizado para se pre-
dizer que tipo de questão e que tipo de resposta a criança poderá fornecer, com base no
seu nível de desenvolvimento (ANDERSEN e cols., 2010). Cabe observar que o quadro é
uma referência aproximada e não deve ser utilizado como regra absoluta para se determinar
quais as perguntas que o entrevistador deve formular ou quais as respostas que as crianças
de diferentes idades podem apresentar.
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3 anos
4-6 anos
7-8 anos
9-10 anos
11-12 anos
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Conclusão
Referências bibliográficas
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leston, SC, EUA: Autor, 1997b. ____. Practice guidelines: challenges in evaluation of child
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AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. A inquirição da vítima de violência sexual in-
trafamiliar à luz do melhor interesse da criança. In: Falando sério sobre a escuta de crianças
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Psicologia. Brasília, 2009.
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Escuta Protegida de crianças e de adolescentes vítimas ou testemunhas de violências: aspectos teóricos e metodológicos
LAMB, M.; ROOY, D.; MALLOY, L.; KATZ, C. Children’s testimony: a handbook
of psychological research and forensic practice. Chichester, West Sussex, UK: Wiley, 2011.
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