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Resumo
Este texto tem como objetivos apresentar a trajetória percorrida para a proteção
dos direitos humanos de crianças e adolescentes e o seu reconhecimento na
condição de sujeitos de direitos e analisar o Estatuto da Criança e do Adolescente
na sua relação com instrumentos internacionais de proteção à infância. Para tanto
foi desenvolvida uma investigação bibliográfica e documental mediante
levantamento de documentos e obras referentes à temática. As conclusões
sinalizam que seu texto representa um dos mais avançados mecanismos de
proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes na ordem mundial, de
forma a normatizar no âmbito interno os tratados internacionais em que o país é
signatário.
Palavras-chave: Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes. Estatuto da
Criança e do Adolescente. Instrumentos internacionais de proteção à infância.
Abstract. Human rights of children and adolescents: the path to fight for
protection. This text aims to present the path for the protection of human rights
of children and adolescents and their recognition under the condition of legal
subjects and analyze the Child and Adolescent Statute in relation to international
instruments of children protection. Therefore we have developed literature and
documentary research from the collection of documents and articles related to the
topic. The findings indicate that its text represents one of the most advanced
mechanisms for protecting human rights of children and adolescents in the world,
in order to internally standardize international treaties to which the country is
signatory.
Keywords: Human Rights of Children and Adolescents. Statute of Children and
Adolescents. International instruments of protection of children.
por ele, ou seja, os que sobrevivessem a ela Em razão do desrespeito aos direitos
entrariam no mundo adulto. humanos e da violência imposta pela Segunda
O período mais crítico estendia-se do Guerra Mundial, a comunidade internacional
nascimento até os sete anos de idade. Caso viu-se diante de um quadro devastador que
Viesse a falecer, a dor pela sua perda seria exigiu sua mobilização para encontrar
suplantada por outra criança que viria a nascer. mecanismos que visassem impedir a ocorrência
Parece-nos desumano, esta forma de agir. No de novos conflitos. Para tanto, foi criada a
entanto, não o era para outras sociedades Organização das Nações Unidas (ONU), uma
históricas, pois “[...] na mentalidade coletiva, a organização internacional constituída por
infância era, então, um tempo sem maior diversos países reunidos voluntariamente para
personalidade, um momento de transição [...]” atuar em favor do desenvolvimento e da paz
(DEL PRIORE, 2008, p. 84). mundial.
A concepção de infância defendida na A Declaração Universal dos Direitos
contemporaneidade, que preza pelo cuidado e Humanos, assinada pela ONU em 1948,
proteção da inocência infantil, foi construída apresenta a noção contemporânea dos direitos
historicamente, sendo datada “[...] do fim do humanos que os reconhece como universais e
século XVI [...] o respeito pela infância” indivisíveis. Nesse sentido, Piovesan (2003, p.
(ARIÈS, 1981, p. 83). Isso não quer dizer que as 36-37) explica:
crianças eram abandonadas ou que não fossem
cuidadas. Ariès esclarece que “[...] o sentimento Ao conjugar o valor da liberdade com o
da infância não significa o mesmo que afeição valor da igualdade, a Declaração demarca a
pelas crianças: corresponde à consciência da concepção contemporânea de direitos
particularidade infantil, essa particularidade que humanos, pela qual os direitos humanos
distingue essencialmente a criança do adulto, passam a ser concebidos como uma
mesmo jovem” (1981, p. 99). unidade interdependente, inter-relacionada
Morelli (2010, p. 51) destaca o século XX e indivisível. Assim, partindo-se do critério
“[...] como aquele em que as crianças e os metodológico que classifica os direitos
adolescentes ocuparam um amplo destaque na humanos em gerações, adota-se o
sociedade ocidental”, seja por receberem atenção entendimento de que uma geração de
direitos não substitui a outra, mas com ela
especial por parte das famílias ou pela
interage. Isto é, afasta-se a idéia da
preocupação que despertavam tanto em sucessão ‛geracional’ de direitos, na
especialistas de diferentes áreas, como no medida em que se acolhe a idéia da
Estado. expansão, cumulação e fortalecimento dos
As mudanças vivenciadas no Brasil em fins direitos humanos consagrados, todos
do século XIX com a abolição da escravidão, o essencialmente complementares e em
advento da República e as transformações no constante dinâmica de interação.
campo econômico com o início da
industrialização contribuíram para o
A Declaração Universal dos Direitos
aparecimento de preocupações sociais, em
Humanos é uma construção histórica e social
especial com relação à criança pobre.
que afirma os valores fundamentais proclamados
A normatização das ações relacionadas à
pela humanidade no século XX, diante da
infância pode ser verificada em todo o processo
necessidade de reconstrução da ordem
histórico brasileiro, seja a construção das
internacional pautada em referenciais éticos e na
políticas públicas motivadas por fatores e
valorização dos direitos humanos. Ela não se
concepções diversas acerca da prevenção e da
apresenta como documento definitivo, pois,
recuperação de “potenciais delinquentes” – os
sendo históricos os direitos do homem, estes
menores em situação irregular ou a atual
acompanham as transformações sociais
proteção de crianças e adolescentes
implementadas pela sociedade no curso de seu
reconhecidamente sujeitos de direitos.
desenvolvimento.
Os valores defendidos no texto de 1948
Instrumentos internacionais de proteção dos
expressam o reconhecimento de um sistema
direitos humanos de crianças e adolescentes
universal, visto que aceito por quase toda a
humanidade. Bobbio destaca a relevância deste
documento porque
imputabilidade penal era alcançada aos sete anos [...] com o objetivo de buscar soluções aos
de idade” (AMIN, 2011, p. 03). problemas que vinham sendo identificados
Ainda nesse período, a ação do poder na rede de atendimento [...] Ao referido
público, no tocante à população infanto-juvenil, órgão foram transferidas as funções
concernentes à organização da assistência,
se fez
na tentativa de integrar as instituições
públicas e privadas encarregadas de
[...] por meio da criação das denominadas
receber a aludida clientela (TAVARES,
Casas de Correção, destinadas a crianças
2011, p. 393).
ou a adolescentes envolvidos em atos
ilícitos, assim como de outros internatos,
valendo destaque para o Asilo dos No entanto, devido à ineficiência e
Meninos Desvalidos, criado no ano de denúncias de irregularidades, o SAM foi
1875, com o objetivo de internar meninos substituído na década de 1960 pela Política
encontrados nas ruas em razão da miséria, Nacional de Bem-Estar do Menor (PNBEM).
do abandono ou da ausência da família Coube à Fundação Nacional do Bem-Estar do
(TAVARES, 2011, p. 390). Menor (FUNABEM) elaborar e implantar a
PNBEM “[...] mediante a avaliação dos
A assistência aos carentes ficava a cargo da problemas existentes, planejamento das
Igreja e, em “1551 foi fundada a primeira casa de soluções, bem como, a orientação, a
recolhimento de crianças no Brasil, gerida pelos coordenação e a fiscalização das entidades
jesuítas” (AMIN, 2011, p. 04). executoras dessa política” (TAVARES, 2011, p.
Durante a Primeira República, o poder 394). Alinhada à postura autoritária do regime
político esteve sob o controle da aristocracia militar, a “[...] proposta pedagógica-assistencial
rural, mas com um quadro econômico e social progressista” (AMIN, 2011, p. 06) da PNBEM
fruto da urbanização e do desenvolvimento foi inexistente na prática, uma vez que “[...] o
industrial. Em meio a essa conjuntura de Estado continuou a atuar de forma
crescimento, diversos problemas sociais, como centralizadora e repressiva” (TAVARES, 2011,
doenças, miséria e criminalidade, passaram a p. 394).
exigir do Estado ações no sentido de alterar esse Ainda durante o Regime Militar é aprovado
cenário. Nesse sentido, “foram fundadas o novo Código de Menores – Lei n. 6.697/1979
entidades assistenciais que passaram a adotar que
práticas de caridade ou medidas higienistas”
(AMIN, 2011, p. 04). [...] referendando o sistema vigente,
No início do século XX, o Estado brasileiro objetivou regrar a vida das crianças e
promulga a primeira legislação específica para a adolescentes vitimizados pela pobreza,
infância. O Código Mello Mattos, instituído pelo pela violência, pela ausência de
Decreto 17.943-A/1927, “[...] foi uma lei que representação legal, bem assim os autores
de infrações penais, todos, indistintamente,
uniu Justiça e Assistência, união necessária para
marcados com a pecha da ‛situação
que o Juiz de Menores exercesse toda sua irregular’ e, por conta disto, alvos de
autoridade centralizadora, controladora e medidas aplicáveis pela autoridade
protecionista sobre a infância pobre, judiciária (TAVARES, 2011, p. 395).
potencialmente perigosa” (AMIN, 2011, p. 05).
O fundamento desse código estava sustentado Importante destacar o significado da
expressão “menor” no contexto das legislações
[...] na categorização dos ‛menores’ entre datadas de 1927 e 1979. O “menor” constituía
‛abandonados’ e ‛delinquentes’, sendo estes
tratados, ora como vítimas, ora como um
uma categoria própria da qual faziam parte as
perigo a sociedade, conforme estivessem crianças e os adolescentes pobres, de famílias
em situação de desamparo ou se sem ascendência e que estavam fora da escola.
envolvessem em delitos (TAVARES, 2011, O alcance destes instrumentos jurídicos era
p. 392). limitado pela própria concepção de menor,
atuando desta forma, de maneira segregacionista.
Sob o Estado Novo, em 1941, foi criado o Isto porque, a infância atendida pela família no
Serviço de Atendimento ao Menor – SAM, espaço privado, estava fora da esfera de atuação
do Estado e, portanto, não era alcançada pelo
texto legal por não pertencer a esta categoria.
Ainda nesse sentido esclarece Morelli (2010, p. defesa dos direitos da infância, o ECA, instituído
55) que existe pela Lei nº 8069/1990, é expressão da nova
ordem constitucional inaugurada em 1988 e em
[...] diferenciação entre criança e menor – sintonia com os diplomas internacionais na luta
criança para filhos de família abastada e pela proteção especial de crianças e adolescentes.
menor para crianças de famílias A referida lei regulamenta o artigo 227 do texto
possuidoras de pouco poder aquisitivo e constitucional que apresenta a doutrina da
moradores de zonas periféricas, além de
proteção integral e o princípio da prioridade
possuir forte carga de relação com a
delinqüência. É importante salientar que o
absoluta na qualidade de política pública.
termo ‛menor’ deixou de figurar na O critério biológico é o adotado pelo ECA
legislação, com o Estatuto da Criança e do para definir a sua competência e está expresso
Adolescente, tendo como desdobramento no artigo 2º que considera “[...] criança, para os
a desaprovação de sua utilização pela carga efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade
de preconceito que possui. incompletos, e adolescente aquela entre doze e
dezoito anos de idade” (BRASIL, 1990).
A partir da década de 1980, o Brasil O ECA revolucionou o sistema jurídico
lentamente retorna ao regime democrático tendo brasileiro, ao introduzir novos paradigmas na
como ápice a promulgação da Constituição defesa dos direitos da população infanto-juvenil.
Federal de 1988, conhecida como Constituição Nesse sentido, a adoção da doutrina da proteção
Cidadã por priorizar, de modo extensivo em seu integral como princípio norteador do
texto, a garantia dos direitos fundamentais. Com documento conduz a observância de crianças e
relação à criança e ao adolescente, merece adolescentes na condição de sujeitos de direitos
destaque o artigo 227, resultado das propostas que merecem tratamento adequado e com
de emendas constitucionais apresentadas pela absoluta prioridade à sua condição de pessoas
sociedade civil em prol da proteção da infância. em desenvolvimento. Destaca Piovesan (2003, p.
Durante as vigências dos Códigos de 284) que “[...] uma das principais inovações do
Menores de 1927 e 1979, o tratamento ECA é aplicar-se a todos os indivíduos cuja
disponibilizado pelo mundo jurídico à criança e idade seja inferior a dezoito anos, ao contrário
ao adolescente foi o sistema tutelar, baseado na do antigo Código de Menores, que se aplicava
Doutrina da Situação Irregular, implícita no somente aos menores em situação irregular”.
texto de 1927 e oficializada no artigo 2º do A mudança introduzida pelo ECA, que
código de 1979. rompe com o modelo anterior, já é percebida na
Consideravam-se os menores em situação opção da nomenclatura estatuto e não mais
irregular como uma patologia social, ou seja, código. Isto porque os códigos têm como fim a
aqueles que além de praticarem infrações penais regulamentação das relações sociais, neste caso
eram vítimas de maus-tratos, abandonados, do estigmatizado menor. Ao referir-se à criança
abusados, negligenciados. Com este e ao adolescente, o texto legal deixa claro que
entendimento, a ação do Juiz de Menores, não existe nenhuma distinção, ou seja, a lei
marcada pela ausência de rigor procedimental, aplica-se a toda e a qualquer pessoa com menos
que permitia um julgamento autoritário, de dezoito anos. Mais, não se limita a definição
disfarçado de discricionaridade, uma vez que de regras aplicáveis a infância, pois como
cabia ao juiz as funções tanto jurisdicionais estatuto
como administrativas. Sua ação era, portanto,
restrita às situações que envolviam uma infância [...] traduz o conjunto de direitos
em condição de abandono ou em vias de fundamentais indispensáveis à formação
tornar-se delinquente. integral de crianças e adolescentes, mas
Importante se faz, neste momento, discutir longe está de ser apenas uma lei que se
limita a enunciar regras de direito material.
sobre o ECA, objeto deste estudo.
Trata-se de um verdadeiro microssistema
que cuida de todo o arcabouço necessário
Estatuto da Criança e do Adolescente para se efetivar o ditame constitucional de
ampla tutela do público infanto-juvenil. É
norma especial com extenso campo de
Reconhecido internacionalmente como um abrangência, enumerando regras
dos instrumentos legais mais avançados na processuais, instituindo tipos penais,
O artigo 4º acima citado apresenta também Este princípio orientador deve conduzir as
o formato da gestão para a proteção e efetivação ações, tanto dos aplicadores da lei integrantes do
dos direitos garantidos com o princípio da sistema de garantias, bem como, dos legisladores
cooperação, sendo a responsabilidade no caso da elaboração de novas leis.
compartilhada entre família, comunidade, Diante do caso concreto, para além dos
sociedade e o Poder Público. Nas palavras de fatos e do direito posto, o caminho a ser
Amin (2011, p. 9-10) percorrido deve tomar como base o
sua competência, tanto quanto a promoção integral ultrapasse o texto legal e que o ECA não
como de defesa, para a efetivação dos se torne apenas mais uma carta de intenções.
dispositivos normatizados. Crianças e adolescentes violados nos seus
Por ser responsável pelo controle social, a direitos reclamam a vivência dos princípios ali
sociedade civil tem importante papel como instituídos para que não tenham sua infância
agente de fiscalização para que as determinações subtraída.
não acabem por permanecer no papel,
tornando-se letra morta.
Referências
O reconhecimento da infância na qualidade
de sujeito de direitos, estabelecida em lei, marca AMIN, A. R. Doutrina da proteção integral. In:
a ruptura na noção de crianças e adolescentes MACIEL, K. (Coord.). Curso de direito da
enquanto objeto de tutela da família ou do criança e do adolescente: aspectos teóricos e
Estado. No entanto, com mais de vinte anos de práticos. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
vigência do ECA ainda percebe-se frágil a sua 2011.
aceitação perante a sociedade o que torna
urgente a sua efetivação para que o respeito e a ARIÈS, P. História social da criança e da
proteção dos mais jovens seja de fato uma família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
realidade.
BOBBIO, N. A Era dos direitos. Rio de
Janeiro: Campus, 1992.
Considerações finais
O reconhecimento da infância como BRANCHER, L. N. Organização e gestão do
categoria própria é um fenômeno recente, visto Sistema de garantias de direitos da infância e da
que apenas no “[...] fim do século XVI [...] é [...] juventude. In: KONZEN, A. A.; et al. (Coord.)
que realmente podemos datar o respeito pela Pela Justiça na Educação. Brasília: MEC:
infância” (ARIÈS, 1981, p. 83). A partir daí, se FUNDESCOLA, 2000.
firma no contexto internacional um novo
conceito relativo à infância, em que “[...] uma BRASIL. Constituição da República
noção essencial se impôs: a da inocência Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
infantil” (ARIÈS, 1981, p. 84). <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constit
O percurso traçado a partir desse período uicao/constitui%C3%A7ao.htm.>. Acesso: 14
possibilita a criação de instrumentos de defesa e mar. 2012.
garantia de proteção aos direitos humanos de
crianças e adolescentes. BRASIL. Decreto nº 17943-A de 12 de
Na análise do contexto atual da situação da outubro de 1927. Consolida as leis de
criança e do adolescente no Brasil a adoção da assistência e proteção a menores. Disponível em:
doutrina da Proteção Integral pelo ECA supera <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto
o paradigma da Situação Irregular vigente nos /1910-1929/D17943A.htm>. Acesso: 18 mai.
Códigos de Menores de 1927 e 1979. Seu texto 2012.
representa um dos mais avançados mecanismos
de proteção dos direitos humanos de crianças e BRASIL. Decreto nº 99710 de 21 de
adolescentes na ordem mundial, de forma a novembro de 1990. Promulga a Convenção
normatizar no âmbito interno os tratados sobre os Direitos da Criança. Disponível em:
internacionais em que o país é signatário. <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto
Nesse sentido, a aprovação do ECA na /1990-1994/D99710.htm>. Acesso: 18 mai.
década de 1990 corresponde à concretização dos 2012.
compromissos assumidos pelo Estado Brasileiro
frente à comunidade internacional na defesa dos BRASIL. Lei nº 6697 de 10 de outubro de
direitos humanos de crianças e adolescentes. 1979. Institui o Código de Menores. Disponível
Importa destacar que a discussão necessária em:
hoje é que o reconhecimento de crianças e <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
adolescentes como sujeitos de direitos, 1970-1979/L6697.htm>. Acesso: 18 mai. 2012.
respeitada a sua condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento e merecedores de proteção