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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO
HUMANA

TRABALHO FINAL DA DISCIPLINA: INFÂNCIA, SOCIEDADE E


EDUCAÇÃO

ALINE APARECIDA CAMARGOS COSTA

Belo Horizonte, agosto de 2022


Leitura e escrita na infância: entre direitos e deveres

RESUMO
O texto tem como proposta fomentar reflexões acerca dos direitos das crianças, articulado ao
direito delas à aprendizagem da leitura e da escrita na infância. Embora as crianças sejam
reconhecidas legalmente como sujeitos de direitos, observa-se que eles têm prevalecido muito
mais no discurso e no papel do que na prática. Nesse contexto, reconhecer a criança como
sujeito social e produtora de cultura, reafirma o seu direito de ampliar o seu conhecimento ao
interagir e se apropriar da cultura que a cerca. No âmbito de uma sociedade grafocêntrica, o
trabalho pedagógico com a leitura e escrita na educação infantil, passa a ser visto como um
direito das crianças e dever das instituições escolares. No entanto, salientamos que o direito
das crianças de acessarem a leitura e a escrita não deve se sobrepor ao seu direito de ser
criança, incorrendo o risco de transformar um direito em um rígido dever. Dentre as
estratégias que podem ser utilizadas para que se promova situações de aprendizagem,
envolvendo a leitura e a escrita, apontamos como possibilidade o trabalho com a literatura
infantil, por fazer parte da cultura da infância e valorizar a cultura da criança o seu
protagonismo.

Palavras Chave: Infância. Direitos da criança. Educação Infantil. Leitura e escrita

INTRODUÇÃO
O presente texto, busca analisar o contexto histórico acerca dos direitos da criança
articulado às concepções fomentadas pelos estudos da criança e da infância, a fim de
compreender os limites para a efetivação desses direitos na prática e seus impactos na
educação de infância. Diferentes documentos, em nível internacional e nacional, reconhecem
a criança como sujeito de direitos, no entanto sabemos que ao redor do mundo muitos desses
direitos da criança não são assegurados e respeitados.
O Estatuto da Criança e do adolescente (1990) está dividido em cinco direitos
fundamentais, dentre os quais nos interessa destacar o direito à educação, visando analisar as
confluências entre os aspectos jurídicos, históricos, sociológicos, políticos e pedagógicos. Do
ponto de vista educacional, está em voga se referir às crianças como sujeitos de direitos nos
discursos, documentos oficiais, em projetos, políticas públicas e estudos acadêmicos, no
entanto, pesquisas apontam que este se tornou um simples slogan, pois o discurso não se
efetiva na prática.
Tais incoerências, entre direitos e deveres, discursos e práticas saltam aos olhos nas
instituições escolares voltadas para a educação de infância, tendo como um importante desafio
romper com errôneas concepções de criança, infância e educação, construídas socialmente e
arraigadas em nosso imaginário. Precisamos vislumbrar possibilidades para uma educação de
infância que seja pensada e praticada com e para as crianças, respeitando seus direitos de
aprendizagem.
Nesse contexto, ao reconhecer a complexidade do trabalho com a leitura e escrita na
infância constituiu-se praticamente um dever, olhar para as crianças como sujeitos sociais, que
produzem cultura e que tem o direito de ampliar os conhecimentos que trazem, desde seu
ingresso no mundo, com as experiências em diferentes linguagens. A literatura infantil, por seu
caráter poético e encantador, desponta como uma possibilidade de garantir o direito das
crianças a um processo de aprendizagem da leitura e da escrita na infância, que seja potente e
significativo.

As crianças e seus direitos


Desde que o mundo é mundo que as crianças existem, no entanto, a forma como
olhamos (ou não) para elas e como conceituamos e compreendemos a infância, etapa da vida
que as compreende, vem passando por progressivas mudanças e ampliações. Por muito tempo,
as crianças foram vistas como “adultos em miniatura”, desconsiderando suas especificidades,
além de percebê-las como um devir, ou seja, elas só seriam alguém quando fossem adultas. Os
estudos, sobretudo no campo da história e da sociologia, contribuíram para lançar luz ao
conceito de criança, contribuindo para a elucidar o papel da infância na sociedade, fomentando
novos e diferentes pontos de vista, dentre eles o de infância como uma categoria social. De
acordo com Pinto e Sarmento:
Com efeito, crianças existiram sempre, desde o primeiro ser humano, e a infância
como construção social — a propósito da qual se construiu um conjunto de
representações sociais e de crenças e para a qual se estruturaram dispositivos de
socialização e controlo que a instituiram como categoria social própria (...) (p.1, 1997)

As discussões envolvendo a infância e as crianças ao final do século XX, provocaram


reflexões e embates de movimentos sociais, visando instituir e assegurar os direitos das
crianças. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989) foi estruturada em
três categorias, que visavam instituir direitos relativos à provisão, proteção e participação das
crianças, se configurando como um importante marco, capaz de possibilitar o
reposicionamento
do lugar das crianças na sociedade. Os direitos à participação deslocam a criança da condição
de proteção, perpassado pelo viés assistencialista, para acrescer a de sujeito ativo socialmente.
Nesse ínterim, o cenário internacional de agência das crianças e da infância repercute no
Brasil, confluindo para a ratificação da Convenção dos Direitos da Criança por meio da
promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, documento que reconhece a
criança como sujeito de direitos, sendo dever do Estado e da sociedade assegurá-los. É válido
salientar que um dos direitos da criança, previsto anteriormente na Constituição Federal
(1988), que é reafirmado pelo ECA é o direito fundamental à educação, fomentando a criação
de novas legislações e investimentos em políticas públicas e pesquisas educacionais.
Por este viés, Gisele Gonçalves (2016), ao investigar este recente reconhecimento da
criança como sujeito de direitos, aponta que, embora esta seja uma conquista de relevância
histórica, social e política, ainda ocorrem muitos entraves para que os direitos da criança se
efetivem para além do discurso. A pesquisadora afirma que “a conquista efetiva dos direitos
das crianças só se dará em articulação com questões mais amplas, relacionadas às
transformações políticas, culturais e econômicas da sociedade” (p.2, 2016), além de estarem
atreladas às concepções de criança, infância, educação e sociedade. Tais ponderações
dialogam com o que apontam Pinto e Sarmento (1997) ao analisarem de forma crítica os
direitos
estabelecidos na Convenção (1989) referentes à proteção, provisão e participação das crianças,
sinalizando uma hierarquização entre eles, deixando os direitos associados à participação, em
uma situação de controvérsia social.
Segundo uma linha de pensamento paternalista, as crianças necessitam de proteção,
exatamente porque são incapazes de agir com maturidade (ou mesmo, numa versão
mais radical do paternalismo, com capacidade racional) por si próprias, num mundo
semeado de perigos e obstáculos. Deste modo, a participação — e autonomia que lhe
é correlativa — é contraditória com a proteção necessária ao desenvolvimento da
criança. (PINTO; SARMENTO, p. 1997)

Ao entrecruzar os estudos supracitados, é possível inferir que as dificuldades para a


efetivação prática dos direitos das crianças esbarram na própria estrutura social, capitalista e
patriarcal, atreladas a concepções de criança e infância que manifestam resquícios dos
pensamentos medievais, de imaturidade inocência infantil, considerando as crianças como
incapazes de agir por si mesmas. Nesse cenário, os direitos relacionados à proteção e a
provisão se sobrepõem e anulam os de participação, desconsiderando a capacidade de agência
das crianças e o seu protagonismo cultural, social e político. É possível observar tal
incoerência, nas instituições escolares por meio das propostas e práticas pedagógicas, que
raramente garantem às crianças uma participação democrática, sobretudo na elaboração de
propostas e currículos.

A criança como sujeito de direitos e a educação


Reconhecer plenamente as crianças como sujeitos de direitos, para além de um slogan
e de um discurso vazio, significa ampliar nossos olhares em relação às crianças e romper com
uma visão colonizada e limitante. O exposto, dialoga com as pesquisas de Catarina Tomás
(2014) ao afirmar que:
A criança e a infância são construções sociais e, desta forma, é tarefa impossível a
generalização de uma ou duas imagens, ainda que elas sejam importantes e que se
tornem ingredientes fundamentais para a prática e para a ação social e profissional dos
adultos que com elas trabalham e, ainda, que tenham influência nos quotidianos
infantis. (TOMÁS, p.131, 2014)

A autora evidencia que os conceitos sociais de criança e infância foram construídos


socialmente como sinônimos, assim como a construção de imagens que generalizam as
crianças, o que converge com o discurso globalizante, que deve ser desmistificado para que se
avance para uma concepção de criança, infância e cultura da infância, plural e ao mesmo
tempo singular. Para tanto, se constitui um dever das instituições escolares e dos profissionais
que nelas atuam, repensarem os currículos e as práticas com e para as crianças que as
frequentam.
Diante disso, compreendemos que a concepção de criança como sujeito de direitos
constitui-se um pressuposto fundamental para a orientação e efetivação de propostas
pedagógicas relacionadas à infância. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil, definem como criança:
Sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que
vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja,
aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e
a sociedade, produzindo cultura. (BRASIL, 2009, p.12)

Reconhecer a criança como sujeito de direitos e produtora de cultura condiz com uma
concepção de criança ativa e potente, que busca se apropriar e estar no mundo à medida que
interage com a cultura, constituindo a sua própria cultura. Considerando que a criança tem um
jeito próprio de fazer essa apropriação, as DCNEI (2009) definem que a criança deve estar no
centro das propostas pedagógicas e define como eixos estruturadores do currículo as interações
e a brincadeira. A partir dessas diretrizes, a BNCC (Base Nacional Curricular Comum)
homologada em 2018, estabelece seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento que devem
ser respeitados na educação infantil, sendo eles: conviver, brincar, participar, explorar,
expressar e conhecer-se. Esses direitos estão contemplados nos cinco campos de experiência,
em uma organização curricular, os quais definem objetivos de aprendizagem e
desenvolvimento. Tais campos visam entrelaçar suas respectivas experiências que fazem parte
do cotidiano das crianças e seus saberes, ou seja, articular a cultura infantil aos conhecimentos
que fazem parte do patrimônio cultural.

A leitura e a escrita na infância; vislumbrando possibilidades


Por meio das linguagens as crianças interagem com a cultura e desejam se apropriar
dos símbolos e signos para ler o mundo. De acordo com a professora e pesquisadora Mônica
Baptista, “é importante dizer que o trabalho com a linguagem escrita deve permitir à educação
infantil assumir um papel importante na formação de leitores e de usuários competentes do
sistema de escrita, respeitando a criança como produtora de cultura. ” (2012, p.2) O trabalho
com a leitura e escrita na infância compreende uma importante forma de interação social,
cultural e de exercício da cidadania. Vivemos em uma sociedade grafocêntrica em que as
crianças buscam se apropriar da leitura e da escrita como forma de pertencimento. Elas se
interessam pela cultura letrada, antes mesmo de ingressarem na educação infantil, nos
permitindo afirmar que o trabalho com a linguagem escrita não se inicia e tampouco de finda
nesta etapa.
Discutir práticas pedagógicas que envolvam a leitura e a escrita na infância suscita
polêmicas, que por sua vez dialogam com as concepções de criança e de infância, perpassando
pelos direitos de aprendizagens. Há quem defenda que as propostas pedagógicas envolvendo a
aprendizagem da leitura e escrita não devem acontecer na Educação Infantil, e por outro lado,
surgem posicionamentos que tratam esta proposta como uma prioridade. Para além de um
posicionamento pessoal, o trabalho com a leitura e a escrita na infância, se constitui como um
direito da criança e um dever docente. Devemos também nos pautar nos documentos oficiais
em níveis federais e municipais, que orientam as propostas pedagógicas que devem ser
seguidas pelas escolas e seus docentes.
Diante disso, destacamos que a leitura e a escrita na educação infantil deve oportunizar
às crianças expandirem os seus conhecimentos sobre a língua, considerando seus interesses,
sua realidade e suas especificidades. Neste contexto, as práticas pedagógicas em leitura e a
escrita devem reconhecer a criança como eixo do processo, deslocando a ênfase de quem
ensina e como se ensina para quem aprende e como se aprende. Do ponto de vista empírico,
observo que emergem muitas dúvidas sobre como trabalhar com a leitura e escrita na
educação, respeitando e valorizando a criança e a cultura infantil, o que me remete ao trabalho
com a literatura infantil como uma possibilidade.
Conforme aponta Mônica Baptista (2010), os textos literários possuem aspectos lúdicos
e artísticos que dialogam com a cultura infantil e por meio deles a criança pode ser introduzida
no mundo da leitura. Nesse sentido, por meio da literatura infantil a criança pode se
familiarizar com os usos e funções da escrita, além de desenvolver habilidades de leitura e
produção de textos antes mesmo de dominar a técnica da leitura e da escrita. Desse modo, ao
interagir com textos literários, a criança é capaz de ler antes mesmo de saber ler
convencionalmente.
Esta estratégia se desponta como uma dentre outras possibilidades de assegurar às
crianças uma educação que respeite o seu direito à infância. Trabalhar com a literatura na
infância é reconhecer o seu caráter humanizador, o que se configura como a garantia de mais
um direito, e dado à sua complexidade evidencia a necessidades de investir em pesquisas mais
aprofundadas sobre o tema.

CONSIDERAÇÕES FNAIS

De acordo com os estudos apresentados, foi possível elucidar que os conceitos de


criança e de infância vem sendo construídos socialmente. Nos primórdios medievais não
existia um olhar atento para as crianças, prevalecendo a ideia que elas eram adultos em
miniatura, que precisavam ser protegidas e disciplinadas até a vida adulta. Atualmente as
crianças são reconhecidas como sujeitos de direitos, tendo assegurados, (pelo menos no papel)
os direitos relacionados à provisão, proteção e participação, possibilitando uma alternância na
concepção de criança como um ser passivo e frágil para a de sujeito, capaz de participar com
autonomia da vida social.
No entanto, mesmo após toda movimentação que culminou na Declaração dos Direitos
das Crianças, e em outros documentos legais como o Estatuto da Criança e do Adolescente
(1990) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2009) o termo:
“criança como sujeito de direitos” vem sendo utilizado muito mais como um slogan, ou um
discurso vazio, do que incorporado às práticas voltadas para as crianças e as infâncias. Pinto e
Sarmento (1997), fazem uma análise crítica dos direitos das crianças e a partir dessa análise, é
possível perceber que os direitos relacionados à provisão e a proteção podem invalidar os de
participação, se nos atentarmos para a estrutura patriarcal que estamos submetidos. Tal
cenário, remete à escola como um dos espaços em que esta estrutura de controle é reproduzida
e se manifesta.
Diante disso, para que os direitos das crianças sejam assegurados, sobretudo no campo
educativo, faz-se necessário romper com imagens antigas e homogeneizantes das crianças e da
infância, a fim de ressignificar nossas concepções de criança, infância, educação e sociedade,
garantindo uma postura ética que incorpore esse discurso à prática, envolvendo também as
crianças neste processo.
A leitura e a escrita na infância, se articula com toda essa discussão, pelo fato de ser
reconhecida como um importante direito de aprendizagem, que se trabalhada assertivamente
na infância, de forma que contemple e respeite a cultura da infância, tem o potencial de
contribuir para a formação de leitores e para a apropriação da escrita como um elemento
social. Neste contexto o trabalho com a literatura infantil, emerge como uma estratégia
pedagógica possível, inclusive para a garantia do direito humano à literatura.
O presente estudo, possibilitou analisar o contexto histórico e jurídico em confluência
com o campo pedagógico, possibilitando a percepção de que a prática e demais
posicionamentos pedagógicos estão ligados à concepção de criança e de infância.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAPTISTA, Mônica Correia. A linguagem escrita e o direito à educação na primeira infância.


ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL: CURRÍCULO EM MOVIMENTO – Perspectivas
Atuais Belo Horizonte, novembro de 2010
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CEB Nº
20/2009, de 11 de novembro de 2009. Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil.
GONÇALVES, Gisele. A criança como sujeito de direitos: limites e possibilidades. XI Anped
Sul, Curitiba, 2016.
PINTO, M.; SARMENTO, M.J.(Org.). As crianças e a infância: definindo conceitos,
delimitando o campo. In: As crianças: contextos e identidades. Braga: Universidade do Minho,
1997.
TOMÁS, Catarina. As Culturas da Infância na Educação de Infância: Um Olhar a partir dos
Direitos da Criança. INTERACÇÕES NO. 32, PP. 129-144 (2014).

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