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Infância e educação infantil

M arita M artins Redin


M arta Quintanilha Gomes
Paulo Sergio Fochi

EDITORA UNISINOS
2013
APRESENTAÇÃO

Para pensar a infância e a educação infantil é necessário rever algumas concepções,


algumas representações que se constituíram através dos tempos e que fazem parte do
nosso imaginário. Nossas memórias de infância também podem sinalizar elementos
importantes para pensarmos na criança que fomos, no contexto cultural em que
vivemos, ajudando a compreender que as crianças são sujeitos históricos, capazes de
fazer cultura, ricos em linguagens, curiosos e ávidos para aprender o mundo. Isso nos
faz crer que subjacente a qualquer projeto pedagógico existe uma série de concepções
que podem gerar princípios importantes para a ação docente junto às crianças,
respeitando seus direitos.
Para realizar uma prática pedagógica que respeite a criança é fundamental
compreender a complexidade da infância, pensá-la como uma ideia, uma categoria
social e cultural, reconhecendo seu aparecimento, ou construção, como decorrente de
mudanças na sociedade, nos costumes, na maneira de pensar nos diversos períodos
históricos. Com efeito, a infância não é vivida da mesma forma nos diferentes
contextos e culturas, e ser criança nem sempre garante poder desfrutar dos privilégios
associados a esse período, como brincar, fantasiar, ter sáude, ser feliz. Existem
múltiplas maneiras de construir a vida das crianças nos espaços sociais. As condições
econômicas, os lugares, as culturas são fatores que permeiam a infância, tornando-a ao
mesmo tempo única e múltipla, e sujeita às decisões adultas, aos anseios sociais e às
decisões políticas e culturais.
M as qual o lugar que a criança ocupa atualmente em nossa sociedade? As crianças
de hoje são mais inteligentes? Não têm limites? São mais estressadas e vulneráveis aos
perigos? M ais difíceis de educar?
Embora a ciência tenha avaçado muito, constata-se que o lugar da criança na
sociedade contemporânea ainda é nebuloso. Uma criança
Nunca é o que sabemos, mas é portadora de uma verdade à qual devemos nos colocar à
disposição de escutar. Nunca é aquilo apreendido pelo nosso poder, mas ao mesmo tempo
requer nossa iniciativa. Nunca está no lugar que a ela reservamos, mas devemos abrir um
lugar para recebê-la (LARROSA, 2000, p. 186).

O conhecimento produzido sobre a infância, sobre as crianças, bem como sobre a


sua educação, por muito tempo teve como referrência as ciências da saúde: pediatria,
psicologia, enfermagem etc. Quando oriundo da pedagogia, caracterizava-se ainda pelo
assistencialismo, pela ideia da formação de hábitos, de rotinas, ou pelo total
romantismo em relação à infância. Idealizamos a infância durante muito tempo;
abstraímos a criança concreta da realidade e a transformamos em discurso, ou
tentamos monitorar seu desenvovimento, seu desempenho, e prepará-la sempre para a
etapa seguinte.
Bem, mas se a infância foi “inventada” como uma ideia em um período específico
da vida e tomou forma nos discursos e nas instituições da sociedade moderna, gerando
expectativas de uma sociedade adulta mais preparada e melhor, se não tivermos
consciência dessas tranasformações, corremos o risco de ingenuamente naturalizar a
infância como um período romântico, saudoso da vida, ou como uma mera passagem
para a vida adulta. Se ela é fruto de uma construção, pode ser suprimida, desaparecer,
ser acelerada?
As pedagogias para a infância foram constituindo-se na sociedade a partir de
descobertas sobre a criança, seu modo de aprender o mundo dos adultos e as normas
para viver educadamente em sociedade. Antes do surgimento da escola moderna como
instância social, as crianças aprendiam a vida junto à sua comunidade, à cultura a que
pertenciam. Com suas descobertas sobre o desenvolvimento infantil, sua compreensão
de como se dá o conhecimento, a modernidade marcou a busca de métodos educativos
que se contrapunham à educação tradicional e algumas práticas pedagógicas estão
presentes ainda hoje nas propostas de educação para as crianças pequenas. No
decorrer da história, alguns pensadores começaram a conceber a educação da criança
pequena para além do mero cuidado materno – alguns princípios educativos, embora
abordados de maneiras distintas, são recorrentes nessas pedagogias, entre eles a
aprendizagem pela ação, o valor da brincadeira e do jogo, os materiais e ambientes
propícios para a aprendizagem, o desenvolvimento de habilidades artísticas e
expressivas, o valor das interações entre crianças e entre crianças e adultos, a
organização dos tempos e os agrupamentos, os tipos de atividades.
O presente compêndio tem como finalidade ancorar e subsidiar as reflexões sobre a
criança, a infância e a educação infantil, fornecendo pistas para a reflexão desses
conceitos no cotidiano das creches e pré-escolas.

REFERÊNCIA

LARROSA, Jorge Bondía. Pedagogia profana – Danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000.
SUMÁRIO

CAPÍTULO 1 – AS CRIANÇAS E AS INFÂNCIAS: SINGULARIDADES E


PLURALIDADES

CAPÍTULO 2 – DE INFÂNCIA E DE M EM ÓRIAS: NARRATIVAS PARA


INVENTAR UM M UNDO

CAPÍTULO 3 – INVENTÁRIO DA EXPERIÊNCIA EM DEWEY


3.1 Primeiras palavras: começando o inventário
3.2 Achados no inventário: dos princípios da experiência em John Dewey
3.3 Por fim, aquilo que poderia ser o começo

CAPÍTULO 4 – HISTÓRIA E POLÍTICAS DA E NA EDUCAÇÃO INFANTIL


4.1 As Novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação infantil
4.2 História e políticas da e na educação infantil

CAPÍTULO 5 – SOBRE A DOCÊNCIA E A EDUCAÇÃO INFANTIL

CAPÍTULO 6 – “AQUI TEM TUDO QUE EU PRECISO PRA SER FELIZ!”

SOBRE OS AUTORES
CAPÍTULO 1

AS CRIANÇAS E AS INFÂNCIAS: SINGULARIDADES E


PLURALIDADES

Este primeiro texto apresenta as singularidades e pluralidades dos conceitos de criança e


infância. Aborda, a partir de diferentes autores, como o sentimento de infância aparece na
sociedade e qual a sua implicação para a ideia de criança presente nos diferentes momentos
históricos. Além disso, o texto propõe uma reflexão sobre como esses conceitos
atravessam o cotidiano das escolas e como tais debates podem contribuir para a construção
da prática educativa.

Pensar no que é ser criança e no que é viver a infância não é tarefa fácil. Onde
começa e onde termina cada um desses conceitos? Qual a relação entre os dois termos?
O presente texto tem por objetivo refletir sobre as formas de pensar tais conceitos ao
longo dos tempos, bem como compreender suas articulações e implicações para a
prática pedagógica.
Os conceitos de criança e de infância são construções sociais. Como tais,
relacionam-se com as compreensões que temos em determinado tempo histórico, em
determinados espaços e determinadas culturas. Assim, vale destacar que “as crianças
sempre existiram como seres humanos de pouca idade, mas que as sociedades, em
momentos diferentes da história, criaram formas de pensar sobre o que é ou como
deve ser a vida nesta faixa de idade” (BRASIL, 2009, p. 22).
Por isso, talvez seja importante considerar que, ao falar de crianças, estamos
igualmente falando de seres humanos, de sujeitos concretos e, desde a Constituição de
1988, de direitos que, por sua vez, caracterizam-se por comportar semelhanças e
diferenças entre si. Por um lado, e especialmente no caso de crianças bem pequenas,
sabemos que existe uma dependência do outro, mas, ao mesmo tempo, uma enorme
competência e disposição para agir e interagir com e no mundo. Por outro lado, temos
crianças do sexo feminino ou masculino, que vivem aqui ou ali, com olhos arregalados
ou puxados, os cabelos lisos ou encaracolados, pretos, vermelhos ou dourados; temos
crianças mais magras, outras nem tanto. Ademais, tal modo que torna as crianças
semelhantes e diferentes, fazem delas mais um grupo que compõem a cultura de um
povo e, por sua vez, a complexifica e dinamiza os modos de como vão estruturando-se
as crenças e valores.
Já a definição de infância – assim como a de adolescência, de idade adulta ou de
velhice – reflete uma decisão política própria a cada cultura. Tais conceitos são
objetos de narrativas culturais que envolvem aspectos ideológicos. Assim, tanto as
construções dos tempos como as formas de vivê-los são diversas, plurais. O
entendimento de que, ao falarmos de infância, estamos nos referindo a muitos, e não a
um único modelo de viver a infância, pluraliza e envida a compreender os modos como
tais sentimentos, os das infâncias, são construídos nas distintas sociedades, nos
distintos tempos e pelos distintos sujeitos.
Por exemplo, assim como não se pensava em um tempo de infância, assim também
não se pensava em um tempo de adolescência ou – trazendo uma concepção bem mais
recente, mas também produto de formas de organização social, política e cultural – na
terceira idade. Talvez pensar nesse exemplo da terceira idade, por ser mais recente
historicamente, facilite a compreensão desses movimentos de invenção e
“desinvenção” dos tempos e das formas de estar no mundo. Até bem pouco tempo
não se falava em terceira idade. Com a ampliação da expectativa de vida humana,
contudo, houve a necessidade de um olhar especial para esses cidadãos. Isso levou à
criação de políticas específicas, espaços de atendimento diferenciados, instâncias de
mídia voltadas para essa camada da população – enfim, a uma nova configuração social
a partir da compreensão desse tempo como um tempo distinto.
Na Idade M édia não havia a compreensão de que o tempo da criança era um tempo
de infância. As crianças viviam de formas diversas, mas não surgira ainda a ideia da
infância como uma fase diferenciada. As crianças bem pequenas eram cuidadas com
certa distinção, devido ao alto risco de mortalidade. M as logo passavam a partilhar da
vida dos adultos em suas experiências de trabalho e lazer.
Na modernidade (ARIÈS, 1978) do anonimato, as crianças passam a ser notadas de
maneira diferente, emergem como categoria social a partir da manifestação dos
sentimentos de “paparicação” e da “moralização”. Um olhar afetuoso sobre a graça e
ingenuidade infantil que distraia os adultos e a necessidade de controlar, moralizar as
crianças, educá-las dentro de uma nova ordem social, emergiam nas formas de
organização do trabalho e no convívio da família.
Neil Postman (1999), ao abordar as transformações sociais e culturais que ajudaram
a inventar a infância, chama a atenção para o fato de que o mundo se organizava em
uma cultura oral.
Até a Idade M édia, segundo o autor, os mundos são comuns.
Imersa num mundo oral, vivendo na mesma esfera social dos adultos, desembaraçada de
instituições segregadoras, a criança da Idade Média tinha acesso a quase todas as formas de
comportamento comuns à cultura. O menino de sete anos era um homem em todos os
aspectos, exceto na capacidade de fazer amor e guerra (POSTMAN, 1999, p.30).

Várias invenções importantes ocorreram até a idade M édia, como o relógio


mecânico, mas nenhuma delas exigiu tamanha mudança na forma de compreender a
vida adulta como a que marcou o século XV: a criação da prensa tipográfica. A
necessidade de aprender a ler e a escrever, e de definir com que idade tal aprendizagem
deveria ser objeto de educação, leva a infância a constituir-se como imperativo.
Na modernidade, para que as crianças passassem a ter acesso às informações do
mundo dos adultos – contrariamente ao que ocorria nas sociedades medievais, quando
não havia diferença entre o que um adulto sabia e o que uma criança poderia saber pela
experiência e pela cultura oral –, foram fundamentais a expansão das instituições
educativas e o acesso à leitura e à escrita. Não havia a ideia de alfabetização infantil tal
qual a que consideramos atualmente no espaço escolar. A prensa tipográfica e a
criação da escola como dispositivo de acesso ao conhecimento são elementos
fundamentais de demarcação entre o mundo das crianças e o dos adultos. Com isso se
abre uma divisão entre os que sabem e os que não sabem e precisam ir à escola para
saber. Se antes não havia distinções entre as idades da vida, na modernidade essas
idades ficaram bem marcadas, tendo sido criados diversos artefatos e dispositivos para
distinguir os adultos das crianças. Surge assim a escola, como uma instituição
diferenciada para atender as crianças, que passam agora a ser vistas como necessárias e
importantes para a produtividade.
A sociedade se modifica econômica e socialmente a partir de um novo projeto,
solicitando pessoas com mais preparo para o novo mercado de trabalho. Ao mesmo
tempo, a família vai se reconfigurando e passando de uma organização por
agrupamentos à organização familiar nuclear.
Com isso, inventa-se a infância como um tempo especial da vida, e em torno dela
concebe-se uma série de discursos, de pesquisas que tentam identificar as
diferenças/semelhanças entre o mundo infantil e o mundo adulto, bem como os
paradigmas necessários para propor alternativas para a vida digna das crianças e
também dos adultos.
A infância é, portanto, um conceito de certa forma abstrato, mas inventado em um
tempo histórico marcado por relações sociais, culturais entre as pessoas e destas com
o mundo. M as só podemos considerar o conceito, a ideia de infância a partir dos
paradoxos em que se geram tais ideias; logo, essas mesmas contradições podem nos
mostrar que não podemos conceber uma infância única, homogênea, uniforme para
todas as crianças, mas antes refletir sobre práticas e representações presentes/ausentes
na infância da contemporaneidade.
Se considerarmos que a institucionalização da escola pública e sua expansão como
escola de massas estão “associada[s] à construção social da infância”, conforme
Sarmento (2000 p.126), e que a escola ajudou a liberar as crianças das atividades do
trabalho produtivo, em contrapartida criou-se uma nova modalidade de infância, por
meio do “ofício de aluno” (idem, p. 127), prerrogativa essa ligada diretamente à
institucionalização da infância. Elkind (2004) escreve um livro sobre a infância
estressada, em que aponta as expectativas sociais e familiares sobre as crianças,
salientando o quanto as instituições criadas na modernidade apressam a passagem da
infância para o mundo adulto.
M as como podemos pensar nas crianças e nas infâncias na contemporaneidade?
Atualmente, as crianças participam da vida social quase que em condições de
igualdade com os adultos. Vestem-se como eles, ouvem as mesmas narrativas da vida
e, paradoxalmente, possuem uma indústria de artefatos culturais voltados para o seu
“universo infantil”. Contraditoriamente, fazem parte de um mundo cada vez mais
complexo; precisam aprender a ser adultos e para isso necessitam de instituições que
as introduzam em uma cultura adultocêntrica, entre elas a escola. Kuhlmann Jr. e
Fernandes (2004, p. 24) referem-se à educação das crianças como um “progresso
cultuado”, necessidade criada pelas sociedades modernas para o progresso e o
desenvolvimento (inclui-se aqui o crescente acesso à tecnologia).
Nunca se falou tanto sobre as crianças, e tal visibilidade carrega o benefício e o
malefício. Enquanto, por um lado, vivemos o século das crianças, por outro não lhes
damos mais tempo para serem crianças, para viverem suas infâncias. A sociedade atual
é hostil à infância e nos faz abandoná-la rapidamente (KOHAN, 2003), buscando na
educação da infância a preparação para o futuro, a preparação para o mercado de
trabalho, ou para a cidadania, abandonando a possibilidade de viver a infância como
experiência.
As crianças vivem a sociedade e dela, portanto, fazem parte. São atores sociais,
embora ainda não sejam ouvidas nem respeitadas. Tiveram seus direitos anunciados na
Declaração Universal dos Direitos das Crianças, em 1959, mas ainda são vítimas de
descaso, anonimato, violência e exploração, correndo o risco de diminuir
consideravelmente como população infantil. Sarmento recorda que

a segunda modernidade radicalizou as condições em que vive a infância moderna, mas não a
dissolveu na cultura e no mundo dos adultos, nem tampouco lhe retirou a identidade plural,
nem a autonomia de ação que nos permite falar de crianças como atores sociais (2001, p. 5).

Para saber mais


Leia a Declaração Universal dos Direitos das Crianças, por meio deste link:
http://198.106.103.111/cmdca/downloads/ Declaracao_dos_Direitos_da_Crianca.pdf

Para M üller (2007, p. 27), “a infância é um fenômeno híbrido”, e para compreendê-


la não podemos retirá-la de um contexto social político, histórico e cultural. Portanto,
“a infância está em processo de mudança, mas mantém-se como categoria social, com
características próprias” (SARM ENTO, 2001, p. 5), o que nos coloca diante do
compromisso cidadão de pensar a criança, de respeitá-la como sujeito social e cultural
capaz de interpretar o mundo e criar cultura.
A universalização do acesso à escola, e mais recentemente a preocupação mundial
com a educação infantil, que passa a ser considerada como fundamental para o
desenvolvimento das potencialidades do ser humano, fazem parte dessa administração
simbólica da infância. Assim,
no interior das instituições da infância, durante os primeiros anos da vida humana, implícita
ou explicitamente, desenvolvem-se conjuntos de relações sociais, que ajudam a formar (para
não dizer formatar) a infância. Pela complexidade desses conceitos que rondam, tanto o
imaginário sobre a infância tratada com diversidade, multiplicidade, como as práticas sociais
e pedagógicas necessitamos de uma certa desconstrução paradigmática, que poderia começar
com a possibilidade de pensar o inusitado, o inesperado que tão bem caracteriza o ser criança
em qualquer cultura (REDIN; REDIN, 2008, p. 16).

Podemos pensar então na criança concreta, no seu modo de vida, no seu


sofrimento, nos seus desejos e anseios, na riqueza de suas descobertas, e buscar na
ideia de infância elementos que possam contribuir para ressignificar nossa prática
pedagógica ou educativa. “In-fans” era conhecido na história como “aquele que não
fala”.
a ausência de voz, in-fância, não é uma falta, uma carência do ser humano. Ela é condição.
Não há como abandonar a infância, não há ser humano inteiramente adulto. A humanidade
tem um soma infantil que não lhe abandona e que ela não pode abandonar. Rememorar esse
soma infantil é, segundo Agamben, o nome e a tarefa do pensamento (KOHAN, 2003, p.
245).

A escola, por meio de suas práticas cotidianas, pode devolver a palavra à infância e
transformá-la em uma anunciação do novo, da criação, da experiência, do movimento e
da vida.
A compreensão de que a chegada das crianças à escola é motivo para a exaltação do
novo, já que ela é portadora do inédito, permite-nos pensar nesse espaço institucional
como um lugar para a vida ser fecundada e compreendida, experimentada e
transformada a partir das experiências das crianças. De tal forma que seja possível
pensar nas crianças que vivem e sofrem as consequências de um mundo marcado pelas
diferenças, pelos paradoxos sociais e culturais, mas que é necessário aprender com elas
a respeito da novidade do mundo, pois, como nos fala Arendt (2007), a cada chegada
de uma criança ao mundo gera-se um novo princípio, um novo começo.
O ponto de partida para tudo isso talvez esteja em acreditar que seja emergente
gerar práticas sociais e culturais criativas em que a infância possa ser vivida e pensada
“como novidade, como experiência, como descontinuidade, como multiplicidade, como
desequilíbrio, como busca de outros territórios, como história sempre nascente, como
devir, como possibilidade de pensar o que não se pensa e de ser o que não se é, de
estar em outro mundo daquele no qual se está” (KOHAN, 2003, p. 248).

Para saber mais


No Capítulo 3, que aborda a história da educação infantil e as atuais Diretrizes Curriculares
Nacionais, você poderá conhecer melhor o conceito de criança expresso nesses documentos e
relacioná-lo às reflexões expostas neste primeiro capítulo.
REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.


ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1978.
BRASIL. “ Práticas cotidianas na educação infantil – bases para reflexão sobre as orientações
curriculares”. Projeto de Cooperação Técnica MEC/Universidade Federal do Rio Grande do Sul para
Construção de Orientações Curriculares para a Educação Infantil. Brasília, MEC/Secretaria de Educação
Básica/UFRGS, 2009. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relat_seb_praticas_cotidianas.pdf>. Acesso em: 04 nov. 2011.
ELKIND, David. Sem tempo de ser criança. A infância estressada. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2004.
KOHAN, Walter O. Infância. Entre educação e filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
KUHLMANN, JR.; FERNANDES, R. Sobre a história da infância. In: FILHO, L. M. F. (org.). A
infância e sua educação: materiais, práticas e representações. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
MÜLLER, Fernanda. Retratos da infância na cidade de Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2007.
Tese (Doutorado em Educação), Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul – UFRGS, Porto Alegre, 2007.
POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.
REDIN, Euclides; REDIN, Marita Martins. Porque é de infância […] que o mundo tem precisão!
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 43, jan./jun 2008, p. 11-24.
SARMENTO, Manuel Jacinto. Os ofícios da criança. Congresso Internacional Mundos Sociais e
Culturas da Infância. (Actas: II, Volume: 125-145). Braga, Universidade do Minho, Portugal, 2000.

Este capítulo foi elaborado por Marta Quintanilha Gomes,


Marita Martins Redin e Paulo Sergio Fochi.
CAPÍTULO 2

DE INFÂNCIA E DE MEMÓRIAS: NARRATIVAS PARA


INVENTAR UM MUNDO

A possibilidade de compreender a pluralidade da infância pode ser desencadeada pelas


narrativas vinculando-as aos sentidos e significados manifestos nas representações, que se
vinculam também à memória e à imaginação. Em outras palavras, considerando-se a
memória como possibilidade de viver e narrar-se, de projetar-se a distâncias impensadas e
aparentemente inatingíveis, ou seja, como mais do que um processo de apreensão da
própria história, das experiências de identidades e subjetividades. As memórias possuem
dimensões múltiplas: controle do passado, possibilidade de realizar o contato entre
passado revisto e presente, representação e fixação de lembranças vividas.

De infância e de memórias: narrativas para inventar um mundo

Rememorar é mais do que pensar sobre: é refletir, a partir de um presente


historicizado, sobre experiências vividas/sentidas/imaginadas. Assim, a memória é
também invenção. Invenção de si. Invenção do outro. Invenção de um mundo onde
achamos que um dia vivemos. Nesse sentido, a memória não é somente a capacidade
de olhar para trás, mas também a possibilidade de projetar-se no futuro. Não
tivéssemos nossa capacidade memorística, não teríamos história, não teríamos
passado nem futuro, não seríamos humanos. Podemos lembrar factualmente,
saudosamente, fantasiosamente; de maneira mais dura (mas nunca linearmente), ou de
forma mais aberta. Quando pensamos em memórias, logo nos reportamos aos idosos,
àqueles que viveram por mais tempo e supostamente teriam muito mais o que
“guardar”. M as será que a memória também não tem uma infância? Ou, dito em outros
termos, será que as memórias de infância não têm papel importante em nossa vida?
Foi com esse intuito que me pus a investigar, suscitando experiências memorísticas
significativas, buscando nos elementos que emergem dos contados e vividos, dos
sonhados e imaginados, dos desejados e rejeitados, tanto da minha criança distante,
mas muito presente, como da infância de um grupo de jovens referindo-se à sua escola
de origem.1 Em minhas incursões memorísticas, tenho constatado que a experiência de
rememorar pode manter vivo o germe de uma mente criadora. Larrosa (2002, p. 27)
faz menção a uma forma de relação que deixamos de considerar em nossa interação
com o mundo: a experiência. A experiência como paixão, que chama o sujeito para o
centro da vida, para a “forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez
uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo)”.
Rememorar é narrar-se, dando sentidos para o vivido em um processo que é
singular, baseado na experiência pessoal, mas também coletivo, porque compartilhado
com os outros. Supõe-se que a experiência estética provoca a explicitação da riqueza
de elementos que nos aproximam da infância enquanto estado de criação. As
memórias, segundo Josso (2004, p. 263), vão além do processo de apreensão da
própria história; fazem parte do processo de formação que contempla, além dos
conhecimentos, a experiência vivida. Para a autora, a construção da narrativa da
história de vida pessoal, constitui-se num recurso de humanização que possibilita
cruzamentos de aspectos afetivos, sociais, políticos, culturais, ou seja, uma narrativa
de vida, possibilita repensar-se, narrar-se, buscar recordações que possibilitaram
escolhas, caminhos mas também ajudam “o indivíduo a compor uma visão imaginária
de si mesmo”.
Dessa forma, a memória oportuniza a conexão entre o passado e o presente, mas,
além disso, possui dimensões múltiplas que podem ajudar a ressignificar
acontecimentos vividos e suas representações. A memória não é somente história,
pois possui “a capacidade de assegurar permanências, manifestações sobreviventes de
um passado muitas vezes sepultado, sempre isolado do presente pelas muitas
transformações, pelos cortes que fragmentam o tempo” (PINTO; SARM ENTO,
1997, p. 295). Assim, a memória é persistente e insiste em viver o que não mais existe
com a ajuda da imaginação.
É nessa perspectiva, nesse campo de historicidade e subjetividade, que os enredos
memorísticos podem transformar-se em criações compartilhadas, costuradas e
remendadas, projetar passados no presente, identificando marcas, resgatando feituras
e peraltagens.2 Cada vez mais me convenço de que nossa criança não nos abandona,
pois de uma forma ou de outra, a partir de uma teoria ou outra, somos outros, mas
somos muito do que fomos e vivemos e do que nos fizeram viver e ser, do que nos
atribuíram como vivido e sentido. M ais do que um momento situado no tempo
cronológico, a memória infantil de que falo é aquela que se permite a novidade, o ainda
não dito, o que está por vir, aquilo que ainda não tem forma definida. Assim, sem ter
exatamente um atributo, o pensamento, a memória infante é “verdinha” como a orelha
de Gianni Rodari, para poder ouvir os passarinhos…

O HOM EM DA ORELHA VERDE


Gianni Rodari

Um dia num campo de ovelhas


Vi um homem de verdes orelhas
Ele era bem velho, bastante idade tinha
Só sua orelha ficava verdinha
Sentei-me então a seu lado
A fim de ver melhor, com cuidado
Senhor, desculpe minha ousadia, mas na sua idade
de uma orelha tão verde, qual a utilidade?
Ele me disse, já sou velho, mas veja que coisa linda
De um menininho tenho a orelha ainda
É uma orelha-criança que me ajuda a compreender
O que os grandes não querem mais entender
Ouço a voz de pedras e passarinhos
Nuvens passando, cascatas e riachinhos
Das conversas de crianças, obscuras ao adulto
Compreendo sem dificuldade o sentido oculto
Foi o que disse o homem de verdes orelhas
Me disse no campo de ovelhas.

M as a memória é também multicolorida, multiforme, porque feita de várias coisas


ao mesmo tempo. É também escorregadia, esburacada, deixa passar algumas coisas,
mas não todas. Parece que vai reter voluntariamente o que quer, mas deixa escapar o
que não queria, cheia de infinitos e vazios, preenchidos pelos “despropósitos e
peraltagens”, pela mente arteira das crianças e dos poetas como M anoel de Barros.
Esse tipo de memória fica por toda a vida, não envelhece, não amadurece, e também
não consegue reter o curso da água. Fica o tempo todo inventando coisas para colocar
nos vazios, por mais que eles nunca encham, mesmo que transbordem. É de natureza
brincante, inventadeira, como as crianças. É uma memória criança! É a necessidade de
infância!
Além de olhar para os objetos, os artefatos culturais prenhes de histórias que
podem intensificar a experiência em contraposição à informação, como queria
Benjamin (2002), a memória, associada à imaginação, suscita a criação. A linguagem,
que segundo Bachelard (1991, p. 6) está no posto de comando da imaginação, bebendo
no “onirismo que acompanha as tarefas materiais”, instiga uma espécie de energia para
os elementos memorísticos, que vão além do utilitário. Para o autor (idem, ibidem), “a
linguagem poética, quando traduz imagens materiais, é um verdadeiro encantamento de
energia”.
As cores da minha infância possuem muitos cheiros. Ou seria o contrário? Como
dissociar serragem, maravalha, maçã, uva, pão, polenta, fumaça, terra molhada, chuva,
brasa, cachorro molhado, poeira, mofo, livro novo, fogo, álcool, injeção, água fresca,
bife na chapa, feijão, sagu, melão, pitanga, tecido, ervas aromáticas, cinamomo,
sangue? Cores, coisas, cheiros, sabores repousam em lugares que posso visitar à hora
que quiser. Com certeza são matérias sobre as quais posso projetar uma beleza íntima,
não só com afetividade, mas com “convicções poéticas”, como bem argumenta
Bachelard (1991, p. 7). Então, não só nos bordados, ou nos quadros que resgato em
algum lugar bem distante, encontro essas “convicções poéticas”, mas também nos
devaneios de “introversão”, que para o filósofo Bachelard não podem ser separados,
pois “afinal, todas as imagens se desenvolvem entre dois pólos, vivem dialeticamente
seduções do universo e certezas da intimidade […] As imagens mais belas são amiúde
focos de ambivalência” (1991, p. 8-9).
Essa variedade de imagens ronda minhas memórias, reaparecendo com uma certa
materialidade, permeada de acontecimentos, de relações, de sentimentos e significados.
Boaventura Santos fala que “a sucessão de tempos é também uma sucessão de
espaços que percorremos e nos percorrem, deixando em nós as marcas que deixamos
neles” (2000, p. 194).
Assim como os telhados, as escadas também guardam seus mistérios. São lugares
grávidos de imaginação. O topo das árvores, esconderijos especiais, “montanhas para
escalar”, corrimãos para escorregar, ou posto de espera para ver os acontecimentos.
Bachelard me faz lembrar que a imaginação e a memória, em sua primitividade
psíquica, são processos indissociáveis.
[…] num devaneio, uma vez que nos lembramos, o passado é designado como valor de
imagem. A imaginação matiza desde a origem os quadros que gostará de rever […] Para
reviver os valores do passado, é preciso sonhar, aceitar essa grande dilatação psíquica que é o
devaneio, na paz de um grande repouso (1988, p. 99).

Objetos, imagens, memórias. Cheiros, sabores, sons, tamanhos, cores são


fragmentos de uma infância povoada e reabitada pelo meu mundo adulto. M enéres diz
que

Todas as pessoas têm uma infância e só uma. É a que em nós se escreve e se faz escrita.
Sempre povoada de lugares, de vozes, de caras, de nomes, de importantíssimos pormenores.
Por vezes voltamos a esses lugares da infância não apenas em ideia, mas em presença (1993,
p. 12).

As memórias criam imagens carregadas de sentidos, de cada lugar, de cada


acontecimento significativo de minha infância. M istérios, medos, expectativas. Os
santos e santas que habitavam as paredes dos quartos e que ajudavam a amenizar as
tempestades, o grande livro em que Deus escrevia tudo o que acontecia com cada
pessoa na terra, os gigantes e bruxas que à luz do dia se transformavam em um chapéu
pendurado em um trinco de uma janela ou em uma vassoura virada atrás da porta, o
rádio em forma de capelinha no qual ouvíamos o terço e as notícias, todos eles são
imagens mais do que efêmeras: são objetos plásticos com sentido estético, elementos
simbólicos de uma grande significação.
Fiéis às primeiras cores, cheiros, sons, a imaginação provavelmente cria imagens.
Inscritas na memória? Coisas da memória e da imaginação que, atualizadas, permitem
desejar que o mundo das crianças possa ser diferente daquele que a produtividade
adulta preconiza. Tonnucci (2005) revela os desejos das crianças para tornar a vida
mais feliz, mais interessante. Nenhuma criança, se ouvida, trocaria uma lagoa azul por
terrenos terraplenados, ruas, prédios enfileirados. As crianças necessitam de lugares
não só para se movimentarem, mas também para deixarem sua imaginação fluir.
Precisam brincar com o mundo para dar-lhe colorido e leveza; caso contrário não o
suportam. Por isso inventam, por isso invertem.

Para saber mais


Francesco Tonucci fala da infância e dos seus desejos e necessidades. Além de mostrar os
resultados de pesquisas importantes sobre as crianças, a escola e a cidade, o autor italiano utiliza
desenhos significativos para pensarmos a infância. Assita ao vídeo A cidade das crianças, no
endereço http://www.youtube.com/watch?v=zAccDbrXUh0.

Os brinquedos inventados com restos de materiais encontrados pelos lugares mais


inusitados povoam o mundo infantil. As engenhocas que eu criava quando criança não
se assemelhavam aos modelos das fábricas. Talvez se aproximassem mais dos
artefatos utilitários dos adultos.
Nos dias da minha infância, o sol ia embora depressa e, muito a contragosto,
cheirando a fumaça e capim, eu tinha de deixar a brincadeira para o outro dia e para os
outros dias.
Artefatos da infância, da minha infância, que quando identificados em algum bazar
de beira de estrada fazem ressurgir desejos de permanência e de continuidade de
criação. A infância nos escapa, dilui-se e de tempos em tempos vivifica-se e
materializa-se pelo ato criador que nos remete à nossa condição de humanos.
M as de que brincavam crianças como eu, na década de 1950? Bolita, perna de pau,
amarelinha, esconde-esconde, “M eu pai matou um porco”, diabo-rengo, passa-
passará, bilboquê, balanço de corda, coleções de pedras… Daria para encher páginas e
mais páginas, baldes de pensamentos, somente para narrar brincadeiras. Essas que ano
após ano, por décadas ou até séculos, as crianças brincam. Brincarão por muito tempo
ainda? Coleções de memórias que se misturam a objetos e a “desobjetos”, como diz
M anoel de Barros (2003). Sim, porque para as crianças os desobjetos são mais
suscetíveis à transformação. Para que serve a um adulto um pente desdentado, a não
ser para trilhar o caminho dos dejetos do consumo? Para uma criança, pode ser sempre
uma coisa nova, como expressa o poeta M anoel de Barros:
[…] Era uma coisa nova o pente. O chão teria comido logo um pouco de seus dentes.
Camadas de areia e formigas roeram seu organismo. Se é que um pente tem organismo. O
fato é que o pente estava sem costela. Não se poderia mais dizer se aquela coisa fora um
pente ou um leque. As cores e chifre de que fora feito o pente deram lugar a um esverdeado a
musgo […] E o menino deu para imaginar que o pente, naquele estado, já estaria
incorporado à natureza como um rio, um osso, um lagarto (BARROS, 2003, p. III).

Portanto, todos os desobjetos que passaram pela minha infância (e talvez pela sua)
– cacos, retalhos, pilhas de lenha, tampinhas de garrafa, ossinhos de galinha – são
fragmentos que reconstroem narrativas poéticas verdadeiras, pois “Tudo o que não
invento é falso” (BARROS, 2003, p. IV).

Para saber mais


Para deleitar-se com muitas invenções memorísticas, não deixe de ler os poemas de Manoel de
Barros, o poeta brasileiro carregado de infância. Memórias inventadas: a infância. São Paulo:
Planeta, 2003. Leia também Exercícios de ser criança, Rio de Janeiro, Salamandra, 1999, uma
obra ilustrada com bordados de Antônia Zulma Diniz, Ângela, Marilu, Martha e Sávia Dumont
sobre desenhos de Demóstenes Vargas.

Benjamin diz que as crianças atuam no mundo como se este fosse um grande
canteiro de obras. Exercitam sua curiosidade, sua relação com os objetos que estão ao
seu alcance e que lhes chamam a atenção, ou seja,
As crianças são inclinadas de modo especial a procurar todo e qualquer lugar de trabalho
onde visivelmente transcorre a atividade sobre as coisas. Sentem-se irresistivelmente atraídas
pelo resíduo que surge na construção, no trabalho de jardinagem doméstico, na costura ou na
marcenaria (BENJAMIN, 2002, p. 103).

M emórias remetem a imagens que, por sua vez, chamam histórias. Realidade? Para
Larrosa (2000, p. 160), o apelo à “realidade da realidade e à objetividade das coisas”
só faz fechar as questões, ou seja, tentar controlar um mundo de coisas e
acontecimentos como se fossem de uma mesma natureza. O autor, questionando o que
chamamos de realidade como o conjunto da totalidade das coisas, revela que essa
realidade foi primeiramente concebida pelo nosso dizer e pelo nosso agir, ou seja, pela
linguagem e pelas relações sociais.
Como se de um lado estivessem “ as coisas” e de outro “ as palavras” que as representam e as
dizem e, ainda de outro lado, “ a vida social” na qual estão as coisas e na qual funcionam as
palavras (LARROSA, 2000, p. 161).

Acabamos separando nossas experiências em campos que não deveriam ter


fronteiras. A memória, assim, borrada, misturada, muitas vezes disforme, pode ser
uma tentativa de romper com a dicotomia das palavras e das coisas, dos significados e
dos sentidos; uma aventura com diferentes narrativas, em que diversos aspectos
imagéticos e memorísticos se mesclam, formando novos desenhos, mas mantendo o
humano vivo e intenso. M ergulhar em reminiscências repletas de imagens, sensações,
sentimentos pode até causar uma certa nostalgia, mas não a crença de que o passado
era melhor ou pior do que o presente, pois a memória não é um retorno ao vivido, não
devolve a imagem do passado, como acredita Halbwachs (2004, p. 32), mas nos pode
levar a fragmentos significativos que revelam uma infância, infância às vezes presente,
às vezes distante. São muitos os disparadores de memórias que nos podem enriquecer:
fotografias, brinquedos, objetos pessoais, escritos, narrativas orais. M uito do que
“lembramos” nos foi narrado pelos outros. Buscar guardados do passado ajuda a
atualizar o presente e a suscitar narrativas, provocando encontros entre a memória e a
imaginação. Os retratos da infância, primeiras imagens, podem servir de pano de fundo
e também como elementos de identificação e de aproximação entre as pessoas,
revelando nossa humanização. Lugares e tempos nas memórias e memórias dos lugares
e tempos fazem com que a infância se torne presente e ajudam a contar uma história
que ainda não teve fim.
Os retratos dos “tempos de criança”, mais do que um recurso para a escrita, podem
ultrapassar o tempo e o espaço da sala de aula, suscitando uma aventura às vezes
dolorida, às vezes negada, outras vezes colorida, intensa, fantasiosa. No percurso do
passado, coletamos elementos que demonstram um jeito de ser criança e de viver a
infância em outra época. Às vezes os registros aparecem impregnados de saudosismo
e de constatações tais como “Naquele tempo, as crianças brincavam na rua” ou “as
crianças, antigamente, obedeciam aos mais velhos”. A procura de si ou do que
“restou” daquelas imagens nos faz compartilhar emoções, mexe com sentimentos e
sensações inesperadas.
As memórias aparecem nas narrativas como misturas do que imaginamos e do que
vivemos, mas às vezes elas se tornam tão vivas que são capazes de nos transportar no
tempo, em muitos anos, tantos quantos nunca havia acreditado sobreviver. Bachelard
diz que

Muitas vezes uma criança vem velar o nosso sono. Mas também na vida desperta, quando o
devaneio trabalha sobre a nossa história, a infância que vive em nós traz o seu benefício. É
preciso viver, por vezes é muito bom viver com a criança que fomos. Isso nos dá uma
consciência de raiz (1988, p. 21).

Escrever sobre memórias é, de certa forma, ter o direito de conviver com a criança
que imaginamos que fomos e de nos aproximarmos do mundo das pessoas e das coisas
primeiras, de experimentar, de ousar, de inventar sem ser cientista. Não podemos
afastar o perigo da “nostalgia, que pode, ingenuamente, levar a leituras conservadoras
da realidade”, como apontam Stephanou e Bastos (2005, p. 417), pois os percursos
labirínticos da memória são capazes de querer fazer reviver elementos prazerosos com
um certo saudosismo. Se por um lado as pesquisas com memórias caminham na
contramão da história factual, tradicionalmente considerada científica, por outro lado
os caminhos da história oral abrem-se para outras leituras do mundo, inclusive para
elementos da subjetividade que na modernidade foram desconsiderados. Nesse
sentido, os estudos a partir da memória podem permitir combinar subjetividade com
referenciais coletivos, que, nesse caso, situam uma infância singular em um tempo de
concepções de infância coletiva. Pinto (1991, p. 293) refere-se à memória como
produção de sentido para os “detritos que as representações vão impondo à história
passada”, mostrando tanto sua dimensão de subjetividade quanto sua inserção no
imaginário coletivo:
Configura-se, assim, no estrangeirismo desse passado e de suas projeções no presente, o
espaço de uma poética que insiste na abordagem dos tempos idos, constituídos
individualmente, mas revelados com a textura do coletivo. Tornamo-nos memoriosos e
redefinimos, trilhando a fronteira porosa entre história e ficção, o lugar possível da memória
(PINTO, 2001, p. 294).

Refazer percursos, buscar na nossa história os sentidos para o presente e para o


futuro faz parte de um processo de criação, produção de sentidos, de culturas
interpretativas que circulam e se ressignificam, para a reinvenção dos adultos
educadores. Por isso problematizamos o nosso olhar/entendimento para e com as
diferentes formas e tempos de viver a infância como período de compartilhamento, ou
de isolamento geracional, como tempo de fantasiar, brincar, criar, em que os sentidos
do mundo não se deixam pasteurizar.
O lugar possível da memória! Será possível abrirmos espaço para que ela possa nos
reconduzir aos saberes da experiência, àqueles que nos impregnaram e que ainda
podem narrar as coisas e seus sentidos, na medida em que também nos deixamos
narrar por elas, permitindo sermos levados por caminhos onde nem sempre predomina
a lógica que o mundo empilhou nas nossas costas, anos a fio?

REFERÊNCIAS

BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.


______. A terra e os devaneios da vontade. Ensaio sobre a imaginação das forças. São Paulo: Martins
Fontes, 1991.
BARROS, M. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003.
______. Exercícios de ser criança. Bordados de Antônia Zulma Diniz, Ângela, Marilu, Martha e
Sávia Dumont sobre desenhos de Demóstenes Vargas. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.
BENJAMIN, W. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Duas cidades/Editora 34,
2002.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.
JOSSO, M-C. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.
LARROSA, J. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
______. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. Rio de
Janeiro, n. 19, jan./fev./mar./abr. 2002.
MENÉRES, Maria Alberta. Imaginação. Lisboa: Difusão Cultural, 1993.
PINTO, Júlio Pimentel. Todos os passados criados pela memória. In: LEIBING, Annette;
BENNINGHOFF-LÜHL, Sibylle (orgs.). Devorando o tempo. Brasil, o país sem memória. São
Paulo: Mandarim, 2001.
PINTO, M.; SARMENTO, M. J. (coords.). As crianças: contextos e identidades. Braga Codex,
Portugal: Bezerra, 1997.
REDIN, Marita Martins. Experiência estética e memórias de escola – “ porque é de infância […] que o
mundo tem precisão”! Tese (Doutorado em Educação), Programa de Pós-Graduação em Educação,
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo-RS, 2008.
RODARI, G. Gramática da fantasia. São Paulo: Summus, 1992.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 2.
ed. São Paulo: Cortez, 2000.
STEPHANOU, M.; BASTOS, M. H. C. (orgs.). Histórias e memórias da educação no Brasil. Vol.
III – século XX. Petrópolis: Vozes, 2005.
TONUCCI, Francesco. Quando as crianças dizem agora chega. Tradução Alba Olmi. Porto Alegre:
Artmed, 2005.
PINTO, Manuel; SARMENTO, Manuel Jacinto (coords.). As crianças: contextos e identidades.
Braga Codex, Portugal: Bezerra-Editora, 1997.
SARMENTO, Manuel Jacinto. “ Os ofícios da criança”. Congresso Internacional Mundos Sociais e
Culturas da Infância. Braga, Universidade do Minho, Portugal, 2000.
______. As culturas da infância nas encruzilhadas da segunda modernidade. Instituto de Estudos da
Criança, Universidade do Minho – Portugal, 2002. (mimeo.). Disponível em:
<http://cedic.iec.uminho.pt/Textos_de_Trabalho/textos/ encruzilhadas.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2013.

Este capítulo foi elaborado por Marita Martins Redin.

1 “ Porque é de infância […] que o mundo tem precisão!” REDIN, Marita Martins. Experiência
estética e memórias de escola. Tese de Doutorado em Educação, Programa de Pós-Graduação em
Educação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2008.
2 BARROS, Manoel. Exercícios de ser criança. Bordados de Antônia Zulma Diniz, Ângela, Marilu,
Martha e Sávia Dumont, sobre desenhos de Demóstenes Vargas. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.
CAPÍTULO 3

INVENTÁRIO DA EXPERIÊNCIA EM DEWEY

Inspirado na metáfora de Umberto Eco sobre as listas, sobre os inventários, o presente


capítulo reflete a respeito do tema da experiência na educação a partir dos preceitos de John
Dewey. Propõe-se inventariar os princípios deweyanos da experiência, iniciados neste
texto a partir da ideia da interação, da continuidade, do hábito e da estética. Assim como
as diversas listas que Eco indica em seu livro A vertigem das listas, feitas pela arte, pela
humanidade, pelos mitos e lendas, o capítulo indica sobre o começo de um tema que não
se pode indicar sobre o fim, sobre o que termina, garantindo assim o sentido do sem-fim,
do inacabado.

3.1 Primeiras palavras: começando o inventário

É fascinante o que a etimologia de algumas palavras sempre nos ensina, em especial


daquelas que com frequência utilizamos sem nos darmos conta de que em cada uma
existe um mundo submerso. O autor português Vergílio Ferreira dizia que, nas
palavras, a pergunta não chega, porque ela é um labirinto como a eternidade da noite.
Inventário, por exemplo, termo utilizado para iniciar o título deste capítulo, vem de
inventarium e é sinônimo de repertorium, “lista ou inventário”, que, por sua vez,
deriva da palavra reperire, que significa re, “intenso, mais”, e parire, uma forma
arcaica de paerere, equivalente a “produzir, trazer à luz”.1
A escolha de inventariar, de listar a respeito da ideia de experiência no pensamento
de John Dewey parte da sugestão dada por Umberto Eco em seu livro A vertigem das
listas, em que versa muito bem sobre a cultura ocidental, afirmando haver uma
infinidade de listas, elencos ou inventários. Aliás, estamos repletos deles, de modo que
parecem ser algo que compõe as formas como tentamos compreender e organizar as
nossas vidas. O homem, ao longo de sua história, buscou por meio de diferentes listas
o contável, o descritível, mas, como observa Eco (2010), esse modo primitivo de
listar, à medida que fomos compreendendo a dimensão do infinito, a forma como nos
mobilizamos para construir as listas da e na nossa vida também se modificaram,
buscando a ideia da permanência na magia daquilo que nos escapa, das listas sem
limites, mantendo, assim, um espaço para o sem-fim. Eco (2009) diria: “A lista é a
origem da cultura […] o que a cultura quer? Tornar a infinitude compreensível.”2
Conforme o autor, as listas podem ser da ordem do prático, com a particular
característica da finitude – como os catálogos de livros de uma biblioteca –, ou, ao
contrário destas, sugerir o incontável, incomodam-nos e instaurando um profundo
senso perturbador de infinitude, já que não acabam, não se concluem em uma forma.
Ao mesmo tempo, a possibilidade de uma lista sem fim é a viabilidade de
mantermos a vida; seria essa, de acordo com Eco (2009), a razão pela qual listamos:
“gostamos das listas porque não queremos morrer.”
E na experiência de não matar a experiência, listei. Listei, primeiro, perguntas que
me conduziram nas buscas e reflexões sobre a dimensão do tema da experiência.
Perguntas que estão presentes até o fim do texto e que, sem a pretensão de obter
respostas, atuam no sentido da sedução, do seducere, variação de um verbo romano,
que significa levar a um lugar afastado, sair de si, empurrar para o estranho.3
Perguntas que me seduziram na intensa reflexão a respeito da questão da
experiência e que, quanto mais me aproximava das leituras sobre o assunto, mais fora
de mim, em um longínquo lugar, sentia-me. A tentativa que aqui fiz de listar a
experiência, a lista no seu sentido infinito, foi um exercício de sedução. Precisei
afastar-me.
Não listei respostas. Comecei uma lista sobre as pistas ou, como o próprio Dewey
(2010a, 2010b) afirmava, princípios, para pensar a experiência. Os princípios servem-
nos como forma de acessar o oculto, a verdade, se pensarmos que em “grego, a
verdade pode ser dita como aletheia, que significa o ato de descobrir o oculto. […]
aqui, a verdade tem a ver com a memória” (BÁRCENA, 2005, p.17).
Listei memórias e encontrei alguns sentidos para pensar as minhas experiências. E,
com os princípios propostos por Dewey – da continuidade, da interação e do hábito
–, as listas foram prolongando-se e entrelaçando-se, sumindo os inícios, os meios e os
fins.
M as como seria listar a experiência do homem? Seria possível fazê-lo? O que define
um fenômeno, um acontecimento, um encontro para que seja nomeado como uma
experiência? É possível tornar palavras aquilo que vivemos, que experimentamos? As
palavras dão conta da experiência ou a experiência dá conta das palavras?
De Umberto Eco roubo a atração pelas diversas listas e, assim como ele, motivado
pelo desafio de fazer a curadoria de uma exposição no Louvre utilizando como mote
“as vertigens das listas” para inventariar a possibilidade da reflexão acerca do assunto
da experiência, também opto pela lista, pelo inventário, já que, dessa forma, poderei
criar meios de compreender o tema da experiência à luz do pensamento de John
Dewey, em um sentido no qual aquilo que listarei, o inventário produzido, poderá
manter seu significado de infinitude, de inacabado. E, nesse sem-fim, garantir a
primazia do termo, o seu sentido vital.

3.2 Achados no inventário: dos princípios da experiência em


John Dewey

Percorrer as listas deste inventário da experiência me dá a possibilidade de iniciar


um percurso sensível na obra de Dewey. A experiência é um dos aspectos centrais da
filosofia deweyana e tem-se mostrado ponto crucial para as discussões tão desejadas
pelo autor, ou seja, refletir a educação a partir precisamente deste conceito, o da
experiência.
Contudo, mais do que manifestar o que é ou não experiência, o presente texto
propõe-se iniciar este inventário com os mais importantes princípios deweyanos para,
a partir daí, abrir um vasto campo de reflexão acerca da temática, já que, para o
próprio Dewey (2010b), esse tema consiste em um intercâmbio ativo e contínuo com
o mundo – portanto, imediatamente transmutável: “o tempo de consumação é também
o de um recomeço” (2010a, p. 81).
Assim, para poder falar da experiência na ideia de John Dewey, busquei na leitura
da obra A arte como experiência uma iniciação ao assunto, mais ou menos como um
processo de admiração ao tema, como quando uma criança abre os olhos e começa a
enxergar o mundo, descobri-lo. Uma criança que, com sua imaturidade – não no
sentido de impotência, mas de potencialidade de crescer –, abre-se em um campo
aberto; ad mira, olha, espanta-se.
A partir dali, admirado, fui inventariando os escritos de Dewey, procurando
encontrar pistas possíveis para pensar a experiência. Além do livro citado, utilizei
como fonte Experiência e educação; a publicação portuguesa A escola e a sociedade e
a criança e o currículo; Democracia e educação: capítulos essenciais, escrita por
Dewey e comentada por M arcus Vinícius da Cunha; John Dewey e a educação
infantil: entre jardineiras e cientistas, de Ieda Abbud; além da revista História da
Pedagogia nº 6 (John Dewey) e do texto de M artin Jay constante do livro
Variaciones modernas sobre un tema universal, especificamente o capítulo “El
retorno al cuerpo mediante la experiencia estética. De Kant a Dewey”.
A partir dessas fontes, fui demarcando argumentos que permitissem pensar “a
experiência na medida em que é experiência, consiste na acentuação da vitalidade”
(DEWEY, 2010a, p. 83). Encontrar palavras para sublinhar essa “acentuação da
vitalidade” foi talvez o desafio principal, já que, desde o princípio, não procurei
reduzir tal temática a um conceito fechado, rígido e, portanto, imutável.
Nesse afã, acabei reportando-me sempre à dimensão da experiência na educação,
talvez por ser essa a pauta do próprio autor, talvez por minhas próprias experiências
na educação, acreditando em uma dimensão vital tomada por uma “troca ativa e alerta
com o mundo; […] entre o eu e o mundo dos objetos e acontecimentos” (DEWEY,
2010b, p. 83).
Por isso, na minha minúscula lista, de apenas três princípios, começo por aquilo
que, conforme Dewey, era central no que tange ao tópico da experiência, visto que,
segundo o autor,“uma experiência é sempre o que é por causa de uma transação
acontecendo entre um indivíduo e o que, no momento, constitui seu ambiente” (2010b,
p. 45).
Trago, primeiramente, a dimensão da ideia de interação em Dewey. A interação,
para o autor, forma o que ele chamaria de situação. “Situação e modos de interação são
inseparáveis. A afirmação de que os indivíduos vivem em um mundo significa,
concretamente, que eles vivem em uma série de situações” (2010b, p. 43). A partir
dessa ideia, os modos pelos quais vivemos, as situações que enfrentamos, nossa troca
aberta com tudo isso faz com que as experiências vividas provoquem transformações
no ambiente, mas também no próprio homem, uma vez que a experiência é contínua.
O homem está no mundo, está em interação constante; assim, nessa tensão dele com o
meio e do meio com ele, as emoções, as intenções e os desejos vão modificando-se e
transformando tanto quem sofre como quem provoca a experiência. Assim, “quando
dizemos que eles vivem em uma série de situações, […] isso significa que, mais uma
vez, está ocorrendo interação entre um indivíduo, objetos e outras pessoas” (DEWEY,
2010b, p. 43).
Ao situar o homem no contexto da interação, que, em Dewey, diz respeito à tensão
entre o organismo e o ambiente, o autor afirma a relação entre a esfera biológica e a
natureza essencialmente cultural do ser humano, haja vista que “[…] toda experiência
humana é fundamentalmente social, ou seja, envolve contato e comunicação”
(DEWEY, 2010b, p. 39). De acordo com o autor,

A palavra interação […] atribui direitos iguais a ambos os fatores da experiência – condições
objetivas e condições internas. Qualquer experiência normal é um intercâmbio entre esses
dois grupos de condições (2010b, p. 39).

Nessa ruptura do dualismo que produzirá tensão entre o que é cultural e o que é
biológico, Dewey traz a complementaridade desses dois fatores, retirando o “ou”, que
indica alternância, e acrescentando o “e”, que expressa adição. Portanto, para a
experiência em Dewey, é preciso levar em conta o fator interação (sujeito e
ambiente/ambiente e sujeito).
Este é o sentido novo que Dewey atribui à palavra experiência, até então estigmatizada pela
tradição filosófica. O ser biológico, com seus caracteres herdados, é moldado pelo meio
social, tendo que se acomodar a ele; tal acomodação, no entanto, nunca é passiva, pois o
homem não recebe as configurações de sua cultura como um molde que se impõe sobre ele,
mas vai modificando, adequando, pouco a pouco, na medida de suas necessidades, as
injunções que pensam sobre ele. Em suma, o que define o homem e estabelece o
conhecimento formalizado é a experiência, entendida como processo de interação entre o
organismo individual e o meio social e cultural, do qual o homem é parte integrante
(CUNHA, 2010, p. 26).

Entretanto, se por um lado esse processo de interação é contínuo e permanente,


por outro Dewey tensiona sobre a incipiência da experiência. Não há dúvida de que a
tensão está presente entre o meio e o homem; contudo, a possibilidade de tornar-se
aquela experiência vai convocar outros fatores. Quando lembramos um fato vivido, é
comum dizermos “aquilo, sim, foi experiência”, e isso tanto serve para situações de
muita relevância como para outras insignificantes, e, aqui se instaura um aspecto
fundamental para o pensamento deweyano de que nos movimentamos, nessa marcha
da vida, motivados por aquelas experiências, que nos modificam constantemente, de
modo que nunca somos os mesmos. As tais experiências estão marcadas não por um
longo tempo ou importância, mas pela fruição de cada instância, de cada parte. “Ao
mesmo tempo, não há sacrifício da identidade singular das partes” (DEWEY, 2010a,
p. 111).
Tal experiência, Dewey a chamará “experiência singular”. O autor reclamará a
necessidade de uma “fusão contínua” (2010a, p.111), mesmo compreendendo que “há
pausas, lugares de repousos, mas eles pontuam e definem a qualidade do movimento.
Resumem aquilo por que se passou e impedem sua dissipação e sua evaporação
displicente” (idem, ibidem).
A experiência singular tem uma unidade que lhe confere seu nome – aquela refeição, aquela
tempestade, aquele rompimento da amizade. A existência dessa unidade é constituída por
uma qualidade ímpar que perpassa a experiência inteira, a despeito da variação das partes que
a compõem (DEWEY, 2010a, p.112).

Conforme anotaria Dewey (2010a, p. 111), “em uma experiência, o fluxo vai de
algo para algo. À medida que uma parte leva a outra e que uma parte dá continuidade
ao que veio antes, cada uma ganha distinção em si.” Assim, o autor provoca a
continuar a lista e, a partir daí, encontro a segunda dimensão do pensamento
deweyano em torno do tema, a qual diz respeito à ideia de continuidade. Segundo o
autor, “assim como nenhum homem vive e morre para si mesmo, nenhuma experiência
vive e morre para si mesma” (DEWEY, 2010b. p. 28). Vivemos diversas experiências
ao longo de nossas vidas e cada uma delas carrega um pouco e leva um pouco para as
outras experiências.
Não se trata de uma definição em relação ao percurso do homem, já que a dimensão
humana está em constante movimento, mas de uma implicação para a nossa
constituição de vida.
A partir desse ponto de vista, o princípio da continuidade da experiência significa que toda
experiência tanto toma algo das experiências passadas quanto modifica de algum modo a
qualidade das experiências que virão (DEWEY, 2010b, p. 36).

Dewey, para manifestar esse princípio, busca, em sua ampla lista de autores e
referências, as palavras de Lord Alfred Tennyson: “toda experiência é um arco por
onde resplandece esse mundo não viajado, cuja margem desaparece toda vez que me
movo” (DEWEY, 2010b, p. 36). A distância e a proximidade de um ponto estão
imbricadas com as experiências que sofremos, pois, conforme a tensão do homem com
o meio incide e traz das outras experiências, a relação desse mesmo homem com aquilo
que vê, que sente, que pensa, já não será mais a mesma.
Por isso, Dewey dirá que a unidade da experiência só pode ser expressa pela
experiência, ou seja, “a experiência é de um material carregado de suspense e avança
para sua consumação por uma série interligada de incidentes variáveis” (2010a, p.121).
Assim, acreditando na dimensão social do homem e também ciente da experiência
do homem, inventario o pensamento de Dewey para pensar o último princípio que
inicia esta lista. M ais especialmente, o princípio que ora é anunciado, o do hábito,
surge para entrelaçar os princípios antes inventariados, o da interação e o da
continuidade. Isso porque, conforme o autor,
Vivemos do nascimento à morte em um mundo de pessoas e coisas que, em grande medida,
é o que é por causa do que vem sendo feito e transmitido a partir de atividades humanas
anteriores. Quando esse fato é ignorado, a experiência é tratada como algo que se passa
exclusivamente dentro do corpo e da mente do indivíduo (DEWEY, 2010b, p. 40).

No tocante a esse princípio, há que se declarar a forma como o hábito coloca em


relação os dois princípios antes mencionados; contudo, é necessário chamar a atenção
para o que o autor compreende por “incorporação”, já que, segundo ele, tal conceito
passa por uma dimensão da reconstrução. Incorporar, segundo Dewey, não significa
agregar ao que já se tem, ao que já existe, mas reconstruir o que se tem. Tal
reconstrução pode ser dolorosa ou prazerosa, embora, para ele, de modo geral, o
caráter da reconstrução que implica a incorporação costume ser bastante doloroso – se
não no todo, em parte.
A característica básica do hábito é a de que toda ação praticada ou sofrida em uma experiência
modifica quem a pratica e quem a sofre, ao mesmo tempo em que essa modificação afeta,
quer queiramos ou não, a qualidade das experiências subseqüentes, pois, ao ser modificada
pelas experiências anteriores, de algum modo, será outra a pessoa que passará pelas novas
experiências. Assim entendido, o princípio do hábito se torna mais amplo do que a
concepção comum de um hábito como o modo mais ou menos fixo de fazer coisas, embora
essa concepção também esteja incluída como um de seus casos especiais. A concepção ampla
de hábito envolve a formação de atitudes emocionais e intelectuais; envolve nossas
sensibilidades básicas e nossos modos de receber e responder a todas as condições com as
quais nos deparamos na vida (DEWEY, 2010b, p. 35).

O hábito deweyano, como uma ideia de incorporação, leva a compreender, por


exemplo, que os gestos, os olhares, as palavras, os ritmos e os modos de organizar a
vida das crianças pequenas configuram-se, para elas, como experiências que vão
construindo narrativas para os seus percursos de vida. Registro, nesse caso, na
dimensão tanto das experiências positivas como das experiências negativas. Porém,
não posso deixar de assinalar que essa ideia de hábito não está relacionada à
transmissão. Esse processo é uma transformação que envolve o meio e o organismo:
ambos são afetados e transformados pelas experiências.
Conforme afirma o autor, jamais a experiência se dá somente no organismo, como
tampouco é possível somente no ambiente. Além de ser necessário que essas duas
esferas estejam em relação, o “processamento” da experiência acontece no sujeito,
modificando-o, interpelando-o, transformando-o, mas também o faz, de forma
equivalente, nas condições do ambiente.
Vale destacar que o ambiente, nas premissas deweyanas, abarca os espaços, os
tempos, as materialidades, assim como a imaginação, os sonhos, as sensações.
Em outras palavras, pode-se dizer que o ambiente é “quaisquer condições em
interação com necessidades pessoais, desejos, propósitos e capacidade de criar a
experiência por que se está passando” (DEWEY, 2010b, p. 45).

3.3 Por fim, aquilo que poderia ser o começo

Nesta lista iniciada, mas infinita, sobre a dimensão da experiência em Dewey,


concluo iniciando outro aspecto importante, o da estética, ou, conforme afirma o
próprio autor, uma experiência estética, e essa “não é a contemplação passiva dos
objetos inertes; é ativa e dinâmica, um fluxo padronizado de energia – em uma palavra,
é viva” (2010a, p. 22).
Dewey defendeu a estética como um desejo, como aquilo que se espera, que não é
senão um empreendimento ético do homem no mundo. M uito embora esse conceito de
experiência estética esteja ligado “à perda de fé de um mundo inteligível de objetos
intrinsecamente belos, e a diferenciação da arte de suas funções religiosa, política,
moral e econômica” (JAY, 2009, p. 192, tradução minha).
Pensar na dimensão estética implica uma capacidade da pessoa de entrar em
ressonância com o mundo, de maneira que, na forma de conhecer, supõe incluir o gosto
pelo belo, pelo maravilhoso, entendido como experiência, e não como adorno vazio.
Por isso,
a teoria estética só pode basear-se em uma compreensão do papel central da energia. […] o
caráter ordeiro da experiência estética não é imposto de fora para dentro, mas feito das
relações das interações harmoniosas que as energias têm entre si. A arte não leva à
experiência, ela já é uma experiência (DEWEY, 2010a, p. 41).

Assim, “quanto mais definida e honestamente se acredita que a educação é um


desenvolvimento na, por e para a experiência, mais importante é que sejam claras as
concepções do que seja experiência” (DEWEY, 2010, p.29).
Isso, ou seja, a concepção do que seja experiência estética, que poderia ser o
começo, conclui este capítulo, trazendo algumas ideias inicias da experiência estética
para remontar o que, inicialmente, conduziu a escrita, a sedução e a lista. Para sair
desse lugar empobrecido de dizer o que as coisas são, para sentir-me seduzido ao
percorrer as inúmeras páginas dos livros que versam sobre a experiência, precisei, no
desejo de compreender, listar sobre a experiência. A sedução foi fatal, encontrei algo
sem fim para continuar listando. Talvez esse seja o meu desejo de manter-me vivo, ou
em um experiência viva.

REFERÊNCIAS

BÁRCENA, Fernando. La experiencia reflexiva en educacion. Barcelona: Paidós, 2005.


CUNHA, Marcus Vinicius da. John Dewey – Coleção Grandes Educadores. Atta Mídia e Educação.
2010.
______. Uma filosofia da experiência. In: CUNHA, Marcus Vinicius da. História da pedagogia –
John Dewey. São Paulo: Segmento, dez. 2010, vol. 6, p. 90.
ECO. Humberto. A vertigem das listas. Rio de Janeiro: Record, 2010.
DEWEY, John. A escola e a sociedade e a criança e o currículo. Lisboa: Relógio D’água, 2002.
______. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010a.
______. Democracia e educação: capítulos essenciais. São Paulo: Ática, 2007.
______. Experiência e educação. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2010b.
JAY, Martin. El retorno al cuerpo mediante la experiencia estética. De Kant a Dewey. In: JAY,
Martin. Cantos de experiencia. Variaciones modernas sobre un tema universal . Buenos Aires:
Paidós, 2009, p. 163-205.

Este capítulo foi elaborado por Paulo Sergio Fochi.

1 Consulta feita ao dicionário etimológico constante do endereço


http://www.prandiano.com.br/htm/fcdic.htm, em 10 jan. 2012.
2 Entrevista concedida pelo autor italiano Umberto Eco, traduzida e disponibilizada no site
<www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=119398&id_secao=11>. Acesso em: 10 jan. 2012.
3 Consulta feita ao dicionário etimológico <www.prandiano.com.br/htm/fcdic.htm>. Acesso em: 10
jan. 2012.
CAPÍTULO 4

HISTÓRIA E POLÍTICAS DA E NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Este texto aborda como o atendimento às crianças menores de seis anos de idade vai se
configurando historicamente na sociedade brasileira. Marca que as configurações de
atendimento estão diretamente relacionadas às formas de compreensão do que é ser criança
e o estatuto social conferido a esse sujeito. Apresenta as políticas que implementam o
trabalho desenvolvido com as crianças no campo da educação, políticas essas decorrentes
de transformações sociais e culturais, principalmente na vida das mulheres, e as
consequentes demandas advindas desse novo panorama. Finalmente, comenta sobre as
orientações atuais para a qualificação do trabalho na educação infantil, assinalando a
existência de Diretrizes Curriculares Nacionais para essa etapa da educação que orientam
para a singularidade do trabalho com as crianças, indicando uma organização curricular
própria que prima pela interação e pela brincadeira.

4.1 História e políticas da e na educação infantil

O atendimento às crianças com idade entre zero e seis anos nem sempre foi feito
em escolas. Aliás, pensar em crianças dessa faixa etária em escolas é algo relativamente
recente do ponto de vista histórico. As transformações sociais e culturais sustentadas
por estudos de diferentes áreas do conhecimento, sobretudo das vinculadas às ciências
humanas, indicaram a escola como um lugar para as crianças. M as se as crianças não
estiveram sempre em escolas, quem era responsável pela educação delas?
Por muitos séculos o cuidado e a educação das crianças pequenas foram entendidos
como tarefas familiares. Pela herança da família como matriz educativa é que são
inventadas as denominações dos espaços de atendimento. A denominação Escola
M aternal, por exemplo, indica que a guarda e a educação maternal serão desenvolvidas
fora da família.
Antes da institucionalização das crianças dessa faixa etária, havia arranjos
alternativos para as famílias que necessitassem de tal apoio, o que, contudo, não era
comum. O que prevalecia como forma de atendimento era o cuidado materno. Esses
arranjos aconteciam em casas de parentes, com mães mercenárias, em lares substitutos
ou nas chamadas “rodas dos expostos” ou “rodas dos enjeitados” (Figura 1). M oacyr
Scliar nos ajuda a compreender como se dava o funcionamento dessas rodas.
“ Roda dos expostos” recebia bebês rejeitados até o final dos anos 40. Feitas de madeira,
eram geralmente um cilindro oco que girava em torno de seu próprio eixo e tinha uma
portinha voltada para a rua. Sem ser identificada, a mãe deixava seu bebê e rodava o cilindro
180 graus, o que fazia a porta ficar voltada para o interior do prédio, onde alguém recolhia a
criança rejeitada. Em São Paulo, bastava a campainha soar no meio da noite para as freiras da
Santa Casa terem a certeza de que mais uma criança acabava de ser rejeitada (SCLIAR,
2006). 1

Figura 1 – Roda dos expostos, Basílica da Misericórdia, Lisboa.


Fonte: blogdafamiliacatolica.blogspot.com.

Geralmente eram filhos bastardos, de mães solteiras, os que ali eram deixados.
Ficavam sob a custódia de grupos religiosos que abrigavam tais bebês em orfanatos,
para possível adoção.
M as a vida social foi se transformando e demandando novas formas de organização.
Assim, no último século, a vida das crianças foi afetada pelo ingresso da mulher no
mundo do trabalho, o que provocou mudanças na sociedade. Nesse contexto, as
tarefas de educar e cuidar, que antes eram da esfera privada, passaram ao setor
público. Para Kuhlmann Jr. (1998) e Barbosa (2009), a partir da década de 1970 a
educação das crianças com idade entre zero e seis anos ganha um novo status nos
campos das políticas públicas e das teorias educacionais. Isso promoveu avanços
também no que diz respeito à oferta de creches e pré-escolas, conferindo novas
dimensões às lutas e militâncias promovidas pelas mulheres, sindicalistas e feministas
da época.
No que diz respeito ao ordenamento legal, pode-se dizer que a Constituição
Nacional de 1988 traz uma mudança importante de enfoque no que tange ao
atendimento à primeira infância. No princípio, a educação de crianças em espaços
coletivos consistia em um direito da família, opção dos pais, mas, com a Constituição
Federal de 1988, configurou-se como direito da criança, dever do Estado. O trabalho
desenvolvido com esse ciclo de vida é reconhecido como trabalho de educação infantil,
superando, no ordenamento legal, a visão meramente assistencialista e, com isso,
incluindo as instituições de educação infantil no Sistema de Educação Básica. Assim, o
cuidado e a educação passam a ser tratados de forma indissociável, como
complementares e constituidores da ação educativa e humana qualificada. A
Constituição amplia o que a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) havia
consagrado como direito das mulheres trabalhadoras, ou seja, o atendimento de seus
filhos em creches.

Para saber mais


Consta da CLT (decreto-lei n º 5452, de 1943) que toda empresa, nos estabelecimentos em que
trabalharem pelo menos 30 (trinta) mulheres, com mais de 16 (dezesseis) anos de idade, é
obrigada a ter local apropriado onde seja permitido às empregadas guardar sob vigilância e
assistência os seus filhos no período de amamentação.

Tratando-se ainda de regulações maiores, o Estatuto da Criança e do Adolescente,


lei nº 8.069/90, determina a criação de instrumentos que poderão influir decisivamente
no atendimento aos direitos da criança, entre os quais o direito à educação na faixa
etária do zero aos seis anos; entre esses instrumentos estão os Conselhos dos Direitos
da Criança e do Adolescente. O Estatuto reafirma a Declaração dos Direitos da
Criança, da ONU, e o determinado na Constituição Federal, dando uma nova visão
sobre a criança e o adolescente, como sujeitos de direitos.
Figura 2
Fonte: <http://www.forumdca-ma.org.br/2168/eventos/2%C2%AA-pre-conferencia-dos-direitos-da-
crianca-de-arari>.

Assim, tais fatos estabelecem um avanço na direção dos direitos da infância e,


segundo Barbosa (2010), provocam uma ampliação significativa do acesso dos bebês e
das crianças pequenas aos espaços com fins educativos, especialmente em instituições
públicas. A partir disso que se “proclama a necessidade da oferta de atendimento em
educação infantil”, gratuita, em creches e préescolas, do nascimento até os seis anos
(BARBOSA, 2009, p. 16).
Ainda de acordo com Barbosa (2009, 2010), Kuhlmann Jr. (1998) e Rocha (2001),
essa oferta desencadeou mudanças importantes no cenário social e educacional, como,
por exemplo, fazer-se menção à educação infantil, definida, na última LDB (lei n°
9.394/96), como a primeira etapa da Educação Básica, por meio de uma seção
autônoma, e não mais em posição subordinada às demais etapas.
Essa lei previu, na época de sua criação, que as instituições existentes (creches,
maternais e pré-escolas) deveriam, no prazo de três anos a contar de sua publicação,
integrar-se ao respectivo sistema de ensino. No entanto, esse processo de criação dos
Sistemas M unicipais de Ensino vem ocorrendo até hoje, extrapolando o prazo
inicialmente determinado.

Para saber mais


O que é um Sistema de Ensino? Leia o Parecer do Conselho Nacional de Educação que discute
tal conceito. PARECER N. º: CNE/CEB 30/2000, COLEGIADO: CEB, APROVADO EM: 12
set. 2000. Disponível em: /pceb030_00.pdf.
De lá para cá, é preciso ter presente que as origens do atendimento ao que hoje
compreendemos como educação infantil não são as mesmas. O imaginário social sobre
as crianças e sobre as infâncias, além de demarcar formas de atendê-las, também é
estruturante para a definição e criação das políticas públicas para tal grupo. Se para as
crianças de quatro a seis anos de idade já havia um modelo de atendimento com foco
educacional nos jardins de infância, para as crianças de zero a três anos o atendimento
era prioritariamente voltado para a assistência às mulheres trabalhadoras ou para
crianças desamparadas por serem órfãs ou abandonadas. Essas raízes trazem em suas
concepções de atendimento diferentes formas de compreensão tanto dos sujeitos
atendidos quanto do trabalho realizado e de seus profissionais.
Nessa disposição há uma visão dicotomizada de crianças e de infâncias que está
vinculada não só à faixa etária dos sujeitos, mas também às condições de vida a que
estão submetidos, gerando consequências tanto na organização do atendimento na
educação infantil, entre elas a noção de que seriam necessários profissionais para atuar
com formação e funções diferentes, quanto nas políticas propostas.
M as vamos retomar agora como historicamente se organiza o atendimento às
crianças e como essas formas de atendimento estão relacionadas às concepções de
criança predominantes nos diferentes períodos e aos projetos sociais existentes.
É importante destacar que os modelos institucionais de atendimento – creches
(zero a três anos) e pré-escolas (quatro a seis anos) – são originários da forma como na
Europa se organizou esse trabalho desde o século XIX, tendo sido disseminados para
vários países que buscaram a expansão da educação infantil. Essa ampliação,
influenciada por organizações multilaterais (Unesco, Unicef e Banco M undial), tem
como objetivos iniciais a ação contra a pobreza nos países subdesenvolvidos e a
melhoria do desempenho no ensino fundamental (ROSEM BERG, 2002).
No Brasil não foi diferente. Rizzini (2009) comenta que é durante a elaboração do
Código de M enores de 1927 – primeira lei especificamente voltada para os menores de
idade, concebida com base na assistência e na justiça, e marcada pela ideia da criança
como problema e solução social – que surge a proposta de criação de creches (Projeto
nº 94, 1912, de João Chaves). A intenção era dar conta de um grupo social que, por
circunstâncias de abandono, vulnerabilidade em matéria de saúde ou moralidade, já não
poderia estar sob a responsabilidade da família. Aliás, vale ressaltar que é dentro desse
contexto que surge o termo “família” no ordenamento legal.
Com isso fica evidenciada, na história da legislação para a infância, que a creche
originariamente atende ao que se denominava “menor”, expressão utilizada “para
designar a criança abandonada, desvalida, delinquente, viciosa, entre outras”
(RIZZINI, 2009, p. 113).
Já a origem dos jardins de infância, embora nem um pouco consensual em seu
início, por entendimentos de que poderiam ser locais de guarda, foi integrando-se no
curso da história a um projeto de desenvolvimento social que tinha entre seus
objetivos a qualificação do ensino primário. Os jardins estariam na base do sistema
escolar, a pré-escola. Zilma Ramos de Oliveira (2002) comenta que
[…] o projeto social de construção de uma nação moderna, parte do ideário liberal presente
no final do século XIX, reunia condições para que fossem assimilados, pelas elites do país,
os preceitos educacionais do Movimento das Escolas Novas, elaborados no centro das
transformações sociais ocorridas na Europa e trazidos ao Brasil pela influência americana e
européia. O jardim-de-infância, um desses “ produtos” estrangeiros, foi recebido com
entusiasmo por alguns setores sociais” (OLIVEIRA, 2002, p. 92).

A ideia de que a educação infantil tinha como função diminuir a mortalidade infantil
ou preparar os alunos do ensino fundamental, cada um desses objetivos enraizados
nos diferentes grupos etários – zero a três e quatro a seis anos, respectivamente –,
passa a ganhar complexidade, sendo matizada por outras formas de conceber o
trabalho com as crianças.
Os movimentos de atendimento às crianças menores (zero a três anos) estiveram
então, inicialmente, muito mais pautados por uma situação social de abandono e
pobreza desses sujeitos do que por uma ideia de educação para os pequenos, com uma
intencionalidade ancorada em perspectivas de desenvolvimento e aprendizagens.
Podemos dizer que sempre houve um trabalho pedagógico se considerarmos que
mesmo a falta desse olhar já denota um tipo de atendimento. Por outro lado, o
trabalho desenvolvido nas instituições que atendiam às crianças maiores (quatro a seis
anos), como os jardins de infância, por exemplo, vinculados às escolas primárias,
mantiveram características, em matéria de organização da docência, muito próximas às
da etapa subsequente. Ou seja, as formas iniciais de atendimento das crianças em idade
de educação infantil constituíam-se em ações médico-higienistas para garantir a
sobrevivência de um grupo excluído socialmente, ou se vinculavam ao modelo de
organização escolar próprio da escola primária.
O quadro a seguir apresenta as origens dos atendimentos nos diferentes grupos
etários que compõem a educação infantil.

Quadro 1 – Origem de atendimento aos grupos etários na educação infantil

Fonte: elaborado pelos autores.


Nessas duas vias, que não são únicas, mas são marcantes, encontramos um
distanciamento com o que se considera atualmente o trabalho pedagógico voltado para
o grupo etário da educação infantil. Isso se dá, respectivamente, pela prevalência de
questões de saúde no atendimento ou por manter a gramática escolar própria do
ensino fundamental. Ainda que na atualidade compreendamos como educação infantil
um trabalho que não segue esses caminhos, ela responde também a esses vínculos
históricos que se mesclam aos entendimentos possíveis que temos hoje. Ou seja, essas
tipologias de atendimento compreendem a história da educação infantil. E a
permanente explicitação desses vestígios históricos, presentes em pesquisas
acadêmicas, nas formações de professores, talvez continue sendo uma estratégia de
elaboração de um modo particular de ser na educação infantil.
Zilma Ramos de Oliveira (2002) comenta, relativamente à concepção do
atendimento às crianças nas primeiras iniciativas no país, ratificando a vocação inicial
para os mais necessitados, que
No período precedente à proclamação da República, observam-se iniciativas isoladas de
proteção à infância, muitas delas orientadas ao combate das altas taxas de mortalidade infantil
da época, com a criação de entidades de amparo (OLIVEIRA, 2002, p. 92).

A autora salienta ainda que a situação toma uma proporção maior com o abandono
das crianças filhas de escravas, “libertadas” com a abolição da escravatura, mas sem
condições de proporcionar a seus filhos uma vida com as condições básicas de
sobrevivência. Essa conjuntura de pobreza leva à criação de creches e outras
instituições semelhantes, como os orfanatos, por exemplo, para o atendimento às
crianças. Não há, nessa perspectiva, uma ideia de trabalho docente com as crianças,
mas a preocupação de garantir-lhes proteção em termos de saúde.
No século XIX, vinculado ao projeto de nação moderna e influenciado por
movimentos educacionais estrangeiros, o Brasil se ocupa com a criação de jardins de
infância, em 1875, no Rio de Janeiro, e em 1877, em São Paulo. Nesses casos, o
atendimento foi direcionado a outro extrato social, de melhores condições financeiras.
Também são criadas as escolas infantis, como demanda dos imigrantes que precisavam
ter onde deixar seus filhos para buscar um espaço no mercado de trabalho. Esses
modelos estiveram mais próximos ao que hoje concebemos como docência para a
infância. Existiam estudos sobre experiências europeias com crianças em que o olhar
pedagógico estava presente, dando contornos de um lugar de educação infantil mais
próximo do que hoje compreendemos como tal trabalho.
M as Kuhlmann Jr. (1998) critica a abordagem das escolas, que inicialmente
organizaram os jardins de infância, salientando
[…] a utilização do termo pedagógico como uma estratégia de propaganda mercadológica
para atrair as famílias abastadas como uma atribuição do jardim-de-infância para os ricos, que
não poderia ser confundido com os asilos e creches para os pobres (p. 84).
Então, mesmo que o trabalho nessas instituições não estivesse sendo pensado para
sujeitos com uma situação econômica desfavorável, ainda assim existia a preocupação
com a demarcação de que o atendimento das crianças antes da escola primária não
vinha para ocupar um lugar de abandono familiar. Além da necessidade de
desprendimento dessa concepção mais assistencial e/ou médico-higienista, havia
apreensão com a possível alteração na forma de organização das famílias e no lugar da
mulher na educação de seus filhos com o aumento dos anos escolares das crianças.
Kuhlmann argumenta que a história das instituições que atendem à infância no
Brasil ocorre na articulação de interesses jurídicos, empresariais, políticos, médicos,
pedagógicos e religiosos. M as o autor salienta também que a maternidade e o trabalho
feminino precisam ser analisados como aspectos relevantes nessa história.
Considerando essas questões propostas pelo autor, é possível depreender que o
avanço no entendimento do que seria direito para as crianças se dá na esteira da
ampliação dos direitos das mulheres.
Kramer (1987) chama a atenção para a inexistência, até a década de 1930, de ações
governamentais em relação ao atendimento da criança. A autora afirma que
Se existiam algumas alternativas provenientes de grupos privados (conjunto de médicos,
associações de damas beneficentes, etc.), faltava, de maneira geral, interesse da administração
pública pelas condições da criança brasileira, principalmente a pobre (KRAMER, 1987, p.
53).

Em 1922, com a realização do I Congresso de Proteção à Infância, passa a ser


divulgada a necessidade de ampliação das ações para o poder público. Esse congresso
é um marco na história do atendimento à infância, por recomendar atenção aos direitos
das crianças à vida e à saúde. Sugere também a extinção das rodas dos expostos e
instala a discussão sobre os direitos das mães de amamentar os filhos em seus locais
de trabalho, o que mais adiante se configura na Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT/1943) (NUNES, CORSINO e DIDONET, 2011).
Entendemos que essa situação que se coloca até a década de 1930 ancora-se nas
concepções até então existentes sobre o que é ser criança e viver a infância,
concepções balizadas por uma visão adultocêntrica de mundo. Qvortrup (2011),
comentando as ideias de Kaufmann sobre o tratamento que as crianças receberam ao
longo da história, apoia o autor quando este se refere à “indiferença estrutural em
relação às crianças”.
Qvortrup coloca a seguinte consideração:
Há, diz ele, em nossas sociedades, uma “ indiferença estrutural” em relação às crianças nos
diversos segmentos da vida política, que, como efeito cumulativo, tem conduzido à
necessidade de consideração das crianças e de suas famílias. A questão é, entretanto, que isso
não acontece em função de uma hostilidade em relação às crianças, mas, antes, em virtude de
uma tendência secular, entre os adultos em geral, de considerar prioritariamente outros fatores
da vida que não as crianças, em nossa sociedade moderna (QVORTRUP, 2011, p. 203).
À medida que as crianças “aparecem” socialmente, o atendimento dispensado a elas
vai se reconfigurando e, consequentemente, surge a necessidade profissional de tal
trabalho.
Com o movimento escolanovista, decorrente de um grupo que buscava um olhar
mais apurado para as questões pedagógicas na educação, a pré-escola passa a ser
considerada a base do sistema escolar, o que demandou formação dos profissionais
para o trabalho com as crianças. Essa formação esteve pautada por questões referentes
ao desenvolvimento infantil e focalizava os profissionais de jardim de infância. As
creches e semelhantes ainda se constituíam como espaços para minimizar as condições
de pobreza de parte da população e ainda não se inseriam na discussão do trabalho
pedagógico para as crianças.

Para saber mais


Segundo teóricos do movimento escolanovista, a educação tradicional se achava centrada no
professor e na transmissão do conhecimento. O mestre detinha o saber e a autoridade, dirigia o
processo, e, ainda mais, se apresentava como um modelo a seguir. Na escola renovada (Escola
Nova), porém, o aluno é o centro. Há uma preocupação muito grande com a sua natureza
psicológica. Dessa maneira, os conteúdos giram em torno dos interesses infantis e, como ressalta
SILVA (1986), a criança é o centro gravitacional do processo educativo. Enquanto facilitador da
aprendizagem, o professor deve esforçar-se por despertar o interesse e provocar a curiosidade.
(SANTOS; PRESTES; VALE, 2006, p. 131-149).

As mudanças decorrentes da urbanização e da industrialização do início do século


XX desencadeiam a expansão da institucionalização para as crianças e marcam uma
nova fase em relação ao atendimento infantil. O novo quadro político e econômico no
país (Estado Novo) amplia a classe média e relaciona o desenvolvimento da nação ao
investimento nas crianças. Elas significavam o futuro, dentro de uma concepção de
criança e infância únicas.
É nesse período que, diante de muitas reivindicações sociais vinculadas
principalmente ao trabalho da mulher, há o reconhecimento do direito de atendimento
aos filhos das trabalhadoras pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho/1943),
ainda em uma perspectiva vinculada à saúde dessas crianças.
O Projeto Casulo, já na década de 1970, amplia a rede de atendimento para as
crianças no Brasil. M esmo já presente a discussão quanto ao foco de trabalho dessas
instituições, se assistencial ou educativo, e já existindo um espaço no M inistério da
Educação para pensar a pré-escola, o Projeto Casulo fica sob a coordenação da LBA
(Legião Brasileira de Assistência), vinculada ao M inistério da Previdência e
Assistência Social (M PAS).
Lívia M aria Fraga Vieira (1986), analisando a concepção do atendimento às crianças
no Projeto Casulo, traz a fala do supervisor desse projeto no período de 1978 a 1980:
“Antes de pensarmos em padrão de atendimento, nós temos que oportunizar a todas
as crianças brasileiras o atendimento às suas necessidades mais prementes, às suas
necessidades físicas” (p. 272).
M as, como o projeto funcionou por meio de convênios com órgãos que tinham
princípios de trabalho próprios e muitas vezes distanciados em termos de concepção,
não é possível afirmar que no país ele se desenvolveu sob uma única concepção de
atendimento. No entanto, Kramer (1987), partindo de consulta aos poucos
documentos existentes sobre tal experiência no país, afirma que
A concretização dos objetivos educacionais do Casulo se dá através do desenvolvimento de
atividades adequadas à faixa etária das crianças, de acordo com as suas necessidades e as
características específicas de seu momento de vida. Como diretriz geral, o Projeto Casulo
não pretende, portanto, preparar para uma escolaridade futura: sua tônica se centraliza, por um
lado, no atendimento às carências nutricionais das crianças e, por outro, na realização de
atividades de cunho recreativo (KRAMER, 1987, p. 77).

Nesse projeto, quem atendia às crianças eram monitoras formadas em nível médio,
que tinham como orientação realizar atividades educacionais articuladas a ações de
combate à desnutrição (OLIVEIRA, 2002). Havia na concepção do projeto matizes de
um caráter pedagógico ao trabalho desenvolvido nas instituições, o que fica
demonstrado no livro editado pela LBA sob o título Vamos fazer uma creche, que
orientava em termos de cuidado e educação, marcando a tentativa de um programa
educacional dentro do entendimento premente na época de sua execução.
Na década de 1980, com o país em processo de abertura política, com movimentos
sociais estabelecidos para a reorganização de diferentes setores da sociedade, as
crianças passam a ocupar lugar de maior destaque nos discursos, ações, no
ordenamento legal e nas políticas de atendimento.
A elaboração da Constituição Federal de 1988 propiciou a explicitação da
necessária integração dos conceitos de criança e de menor, culminando na ideia de que
se trata de um mesmo indivíduo, a criança, atendida nas diferentes etapas da educação,
que precisam estar articuladas, e respeitando as demandas desse cidadão, aqui e agora,
sem caráter propedêutico.
Nessa década se intensifica o debate sobre os direitos das mulheres e das crianças
em uma perspectiva de democratização do país. Já havia muitos espaços de
atendimento, vinculados a diferentes instâncias, públicas e privadas, mas compondo
uma rede no país com força suficiente para legitimar as reivindicações dos movimentos
sociais pela inclusão do direito à educação em creches e pré-escolas na Constituição
Federal de 1988. A partir daí, um novo ordenamento legal (ECA/1990, LOAS/1993,
LDB/1996, DCNEI/1999, DCNEI/2010, entre outros) é organizado no país, buscando
pautar a concepção de criança como cidadã, com direitos que devem ser assegurados
pela família e pelo Estado.
Começa a haver a migração do atendimento das crianças menores, de até três anos
de idade e majoritariamente atendidas em creches vinculadas à saúde ou à assistência,
para o âmbito da educação, principalmente durante a década de 1990, demandando o
profissional de educação infantil. Os cursos de Pedagogia passam a discutir e
implantar ações a partir dessa demanda.
M aria Fernanda Nunes, Patrícia Corsino e Vital Didonet, em relatório construído
para subsidiar ações da Unesco voltadas ao atendimento da primeira infância, referem
que essa visão de criança dicotomizada só se quebra, no Brasil, com os debates
impulsionados durante a preparação da Constituição de 1988. Eles afirmam que
A cristalização desses dois “ modelos” de infância vai resultar, em meados do século XX, nas
expressões que se tornaram paradigmáticas – criança e menor. A “ criança” era a branca, bem
nutrida, de sorriso cativante, filha de família de classe média e alta, cujo futuro poderia ser
previsto como de bemestar, desenvolvimento e felicidade. O “ menor” era a criança negra,
desnutrida, de família pobre ou desestruturada, altamente vulnerável à doença e candidata a
engrossar a estatística da mortalidade infantil ou, se sobrevivesse, a marginalizar-se e tornar-
se um risco social; ou seja, o filho do proprietário (colonizador, descendente de europeu,
branco) tornou-se “ criança”, enquanto o filho do despossuído (negro, descendente de escravo,
pobre) tornou-se “ menor”… Ela só se rompeu com os debates sobre a criança brasileira e
seus direitos no período de elaboração da nova Constituição Federal e do Estatuto da Criança
e do Adolescente, nos anos entre 1986 e 1990 (NUNES, CORSINO e DIDONET, 2011, p.
18).

A origem da educação infantil no Brasil possui estas demarcações: menor/criança,


creche/pré-escola e cuidador/professor. Ainda hoje, mesmo tendo a denominação da
etapa como educação infantil, ela é constituída no âmbito da lei maior da educação, a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/96), por creche (zero a
três anos) e pré-escola (quatro a seis anos).
No entanto, a Constituição Federal é a lei maior e deve ser respeitada. As
discussões ocorridas no período de sua elaboração e organizadas principalmente pela
Comissão Nacional Criança e Constituinte2 (CNCC) desencadearam um movimento
envolvendo diversos setores da sociedade que favoreceu um olhar menos fragmentado
para a criança, colocando-a, na forma da lei, como sujeito de direitos, como cidadã.
Nesse processo, fica marcada outra concepção de criança, demandando políticas mais
igualitárias em termos de profissionais adequados aos diferentes grupos etários. A
Constituição, potencializada com a aprovação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (lei nº 8.069/1990), consagra a todas as crianças e aos adolescentes o
direito à educação integral e de qualidade.
Desde então, vários documentos legais e oficiais vêm sendo produzidos,
reverberando no aumento da oferta, na qualidade do atendimento e na formação das
profissionais.
Entre as publicações que repercutiram na área tivemos, em 1988, a “Série de
M anuais sobre Creche”, organizada pelo Conselho Nacional dos Direitos da M ulher e
apoiada pela Legião Brasileira de Assistência (LBA). Intitulada Creche urgente, a série
abordava, em sete manuais, temas importantes para a constituição desse espaço de
trabalho, assim distribuídos: “Criança: Compromisso Social”, “Organização e
Funcionamento, Espaço Físico”, “Dia-a-Dia”, “Os Profissionais”, “Fontes de Recurso
e Legislação” e “Relatos de Experiências”.
Outras publicações marcaram a história da educação infantil no Brasil e
inauguraram o espaço dessa etapa da educação no M inistério da Educação
(M EC/SEF/DPE/COEDI, 1993 a 1996). São o que chamamos de “Documentos das
Carinhas”,3 um conjunto de livros que buscou divulgar dados de pesquisa e análise de
questões pertinentes à configuração da educação básica no país, marcando a
especificidade do trabalho com crianças de zero a seis anos de idade.

Figura 3 – Imagem das publicações.


Fonte: dos autores.

Em 1998, o M EC lançou o Referencial Curricular para a Educação Infantil


(RCNEI), documento organizado em três volumes, que tinha como função
Contribuir com as políticas e programas de educação infantil, socializando informações,
discussões e pesquisas, subsidiando o trabalho educativo de técnicos, professores e demais
profissionais da educação infantil e apoiando os sistemas de ensino estaduais e municipais
(RCNEI, 1998, p.13).

M uitas discussões foram suscitadas a partir da publicação desse documento, tanto


em relação à forma de elaboração quanto à abordagem teóricometodológica
apresentada. No entanto, ainda hoje ele constitui uma referência para as redes
municipais de ensino, conforme relatório de pesquisa que documentou o mapeamento
e a análise das propostas pedagógicas municipais para a educação infantil no Brasil a
partir do Projeto de Cooperação Técnica M EC e UFRGS para a Construção de
Orientações Curriculares para a Educação Infantil (2009). Entre as 48 Propostas
Pedagógicas para a Educação Infantil de municípios brasileiros, 25 citam esse
documento oficial.
É na década de 1990 que a educação infantil passa a alicerçar-se preferencialmente
sobre as bases da educação, o que significa uma grande guinada política, social e talvez
cultural.
São publicados, nos anos 2000, documentos oficiais que orientam sobre as
Diretrizes Operacionais para a Educação Infantil (2000), bem como sobre as Políticas
Nacionais de Educação Infantil (2005), os Indicadores de Qualidade para a Educação
Infantil (2009) e as novas Diretrizes para a etapa.

Para saber mais


Acesse os links dos documentos, disponibilizados na Plataforma Moodle, da atividade acadêmica
Infância e Educação Infantil I, Módulo 6.

Todos esses documentos compõem uma série de orientações orquestradas pelo


M inistério da Educação, com o propósito de subsidiar a implementação de uma
educação infantil que reconheça a criança e seus direitos. Pressupõem que os espaços
de atendimento já não devem estar vinculados às premissas iniciais desse atendimento
apresentadas neste texto, mas que as escolas de educação infantil precisam constituir-
se como
[…] contextos de vida coletiva, […] compreendida aqui como um lugar da vida, tecido por
vários fios juntos e em conjunto, tramado e constituído pela ação do eu com o outro e do
outro, e que supõe estar em contínuo exercício de construção. Enquanto que, neste contínuo,
juntos colhem e acolhem aprendizagens e descobertas sobre si, sobre os outros e sobre o
mundo (FOCHI, 2013, p. 23).

As Diretrizes Nacionais para a Educação Infantil (documento de 2009) têm força


de lei e fornecem as principais orientações para nortear as propostas pedagógicas das
creches e pré-escolas. Como instrumento orientador da organização das atividades
cotidianas das instituições de educação infantil, apresentam dois eixos centrais na
orientação curricular para essa etapa da educação: a brincadeira e a interação. Segundo
Zilma Ramos de Oliveira (2010),
A definição de currículo defendida nas Diretrizes põe o foco na ação mediadora da instituição
de Educação infantil como articuladora das experiências e saberes das crianças e os
conhecimentos que circulam na cultura mais ampla e que despertam o interesse das crianças.
Tal definição inaugura então um importante período na área, que pode de modo inovador
avaliar e aperfeiçoar as práticas vividas pelas crianças nas unidades de Educação Infantil (p.5).
Ou seja, não falamos mais nem de um lugar de pura assistência, nem de um lugar
preparatório para os anos iniciais do ensino fundamental. Falamos de um cidadão que
tem direitos aqui e agora. De um cidadão no presente, e não de um vir a ser. Falamos
de uma escola que não segue os padrões das escolas de outras etapas, falamos de um
novo grupo profissional e, principalmente, de outro jeito de fazer educação. Um jeito
que estamos inaugurando a partir de novas compreensões sobre o que é ser criança e
viver a infância. Conhecer a história e as políticas para a educação infantil é uma forma
de compreendermos algumas marcas do que hoje ainda se manifesta no cotidiano das
escolas, ao mesmo tempo em que é uma maneira de nos fortalecermos na projeção de
uma forma mais qualificada de estar com as crianças.

4.2 As novas diretrizes curriculares nacionais para a educação


infantil

Nos últimos anos, a educação infantil tem vivido grandes mudanças – aliás,
importantes mudanças, se pensarmos o quanto, em tão pouco tempo, avançou-se nos
debates e no fortalecimento da oferta dessa etapa da educação básica.
Embora seja necessário avançar em muitos aspectos, como no desafio de atender a
toda uma demanda de crianças pequenas em espaços de educação, é possível afirmar
que, atualmente, acumularam-se conhecimentos sobre as crianças e sobre a
especificidade da educação infantil que podem contribuir com o trabalho pedagógico e
com as políticas públicas para as crianças.
É nesse contexto que as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil – DCNEI (2009)4 aparecem; ou seja, esse documento reitera a importância da
educação infantil já mencionada nas Leis de Diretrizes e Bases para a Educação (LDB
9.294/96), consolidando o papel dessa etapa na educação básica, além de constituir
uma revisão das antigas Diretrizes (1998), porém atendendo, e em alguma medida,
implementando, concepções atualizadas sobre criança, currículo e educação infantil.
Nesse aspecto, vale chamar a atenção para o fato de que, na década que intercala as
antigas e as atuais Diretrizes, houve um crescimento nas pesquisas de dissertações e
teses que abordam a educação infantil, assim como surgem no cenário educacional
diversas publicações em livros e revistas. Com isso, as atuais DCNEI conseguem
reunir o aparato teórico mais especializado e direcionado às demandas da educação
infantil, tornando esse documento uma importante ferramenta para a consolidação da
oferta de qualidade para as crianças com idade entre zero e cinco anos e 11 meses.

Para saber mais


Para a construção das atuais DCNEI, foram realizadas algumas pesquisas que serviram como
instrumentos referenciais na elaboração das Diretrizes. Um desses documentos refere-se à produção
acadêmica sobre a educação infantil no Brasil. Consulte no site do MEC o “ Relatório de
pesquisa: a produção acadêmica sobre orientações curriculares e práticas pedagógicas na educação
infantil brasileira”, disponível no endereço http://portal.mec.gov.br/index.php?
option=com_content&view=article&id=13453& Itemid=936.

Se nos voltarmos aos dados apresentados neste Relatório de Cooperação técnica


(Tabela 1), encomendado pelo M EC à Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) a respeito da “produção acadêmica sobre orientações curriculares e práticas
pedagógicas na educação infantil brasileira”, perceberemos que, na competência dos
anos levantados (2000 a 2007), no que diz respeito a livros, teses e dissertações,
houve uma ampliação das produções que conciliam creche ou bebês e orientações
curriculares, demonstrando que o tema tem ganhado espaço nas pautas de estudos das
academias e dos estudiosos.

Tabela 1 – Produção acadêmica na educação infantil brasileira


Fonte: Ministério da Educação (BRASIL, 2009, p. 69).

O relatório aponta também a dificuldade devida à utilização das diferentes palavras-


chave atribuídas pelos autores, pesquisadores e legisladores. Esse desencontro, além
de dificultar a interlocução entre os diferentes campos, demonstra que possivelmente,
em virtude da falta de um repertório prévio, ou mesmo por conta da ampliação do
tema e de suas teorizações e inovações, faz-se necessária a construção de meios para
colocar em relação as distintas produções sobre a área, a fim de, em conjunto,
consolidarem a produção e divulgação dos conhecimentos sobre a educação infantil.
Com isso, vale dizer que as DCNEI foram construídas a partir de um amplo debate
com pesquisadores, grupos de pesquisas, movimentos sociais e consultores da área,
com a finalidade precípua de compreender a ideia de currículo que seria importante
estabelecer para a etapa da educação infantil, tendo em vista que as DCNEI possuem
caráter mandatário, ou seja, esse documento reúne conceitos e orientações que devem
ser considerados e implementados pelas escolas de educação infantil, e, embora as
Diretrizes abram a possibilidade para que cada instituição siga com seus referenciais
teóricos, existem ideias ali expressas balizadoras para estruturar e organizar o trabalho
pedagógico nessas instituições.
No que diz respeito ao currículo, vale lembrar que no campo da educação infantil
esse tema sempre foi motivo de contradições, razão pela qual, ao integrar a educação
básica, a educação infantil obrigou-se a definir de que forma compreende a presença de
um currículo nessa etapa.
Assim, conforme expresso no artigo 3º da Resolução nº 05/09,
O currículo da Educação Infantil é concebido como um conjunto de práticas que buscam
articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do
patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o
desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos de idade (BRASIL, Parecer 05/09).

Ou seja, a ideia de currículo indicada por esse documento propõe a relação entre os
conhecimentos da humanidade e a vida da criança; dito de outro modo, a criança,
centro do processo educativo, apreende o mundo a partir das práticas cotidianas que
ela experimenta em interação com outras crianças, outros adultos e outros espaços e
materiais, bem como vivencia os conhecimentos, em sua integralidade, no dia a dia das
creches e pré-escolas, tornando-se necessário, pois, acolher as diferentes formas pelas
quais as crianças significam o mundo e a si mesmas. É por isso que nas Diretrizes não
encontramos a proposição de um currículo dividido por áreas de conhecimento, mas
sim a promoção de uma prática que compreenda o processo de subjetivação e de
construção de sujeitos que se dá no cotidiano das escolas.
Nesse sentido, podemos dizer que o currículo da educação infantil emerge nas
práticas cotidianas, como uma marca que efetivamente consolida a visão de criança
assim expressa nas DCNEI:

Art. 4º […] a criança, centro do planejamento curricular, é sujeito histórico e de direitos que,
nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e
coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e
constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura (BRASIL, Parecer
05/09).

Atualmente, é possível afirmar que as crianças, já quando nascem, são capazes de


atribuir significados às suas experiências. Assim, o período que as crianças passam na
educação infantil reúne conquistas importantes para sua vida, como a fala, a marcha, a
capacidade de fazer de conta, a vida coletiva, a representação de suas ideias por meio
de diferentes linguagens. Enfim, é nesse período que os meninos e meninas vão
percebendo e significando o mundo da qual participam.
Nas atuais DCNEI, também são abordadas questões referentes à organização das
instituições para a educação infantil, como, por exemplo, o tempo e o período de
atendimento, a idade das crianças que frequentam essa etapa, além de que, nesse
documento, reivindica-se que as propostas pedagógicas atendam às especificidades de
“crianças filhas de agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais,
ribeirinhos, assentados e acampados da reforma agrária, quilombolas, caiçaras, povos
da floresta” (BRASIL, Resolução 05/09, § 3º) e, também, da história e da cultura
africana, afro-brasileira. Para isso, sugere-se o respeito às diferentes manifestações e
saberes produzidos nesses segmentos da sociedade, bem como a valorização do papel
dessas populações na formação da identidade e da cultura de um povo.

Para saber mais


Esses temas estão sendo objeto de um amplo debate nos atuais discursos educativos. No site do
MEC é possível encontrar rico material sobre eles. Eis alguns links. Acesse!

Oferta e demanda de educação infantil no campo


http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=
12465&Itemid=

Educação infantil e práticas promotoras de igualdade racial


http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid
=11284&Itemid=

Educação infantil, igualdade racial e diversidade: aspectos políticos, jurídicos, conceituais


http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid
=11283&Itemid=

Talvez um dos pontos principais e norteadores das atuais DCNEI se encontre no


artigo 9º, quando este explicita que as práticas pedagógicas que compõem a educação
infantil devem estar estruturadas a partir de dois eixos referenciais: as interações e as
brincadeiras.
Por meio desses dois eixos, acredita-se que a criança possa construir os saberes
necessários para dar significado ao mundo. Ademais, a possibilidade da experiência
ativa durante seu processo de aprendizagem permite-lhe conhecer a si mesma, suas
preferências, suas possibilidades e impossibilidades e, nesse sentido, também torna-se
viável a tomada de conhecimento do outro.
Estar em interação com outras crianças, vivendo os desafios que esse contato
impõe, sem dúvida é uma das grandes experiências e oportunidades que todos os
meninos e meninas devem viver nos interiores das creches e pré-escolas. No entanto,
para que isso ocorra, é fundamental que os adultos, que por sua vez também
caracterizam outros modos de interação com as crianças, organizem espaços e
ofereçam condições que propiciem o contato com diferentes materialidades, a livre
circulação e deslocamento, a exploração e brincadeiras que contemplem as diferentes
faixas etárias. Cumpre criar condições que
I – promovam o conhecimento de si e do mundo por meio da ampliação de experiências
sensoriais, expressivas, corporais que possibilitem movimentação ampla, expressão da
individualidade e respeito pelos ritmos e desejos da criança;
II – favoreçam a imersão das crianças nas diferentes linguagens e o progressivo domínio por
elas de vários gêneros e formas de expressão: gestual, verbal, plástica, dramática e musical;
III – possibilitem às crianças experiências de narrativas, de apreciação e interação com a
linguagem oral e escrita, e convívio com diferentes suportes e gêneros textuais orais e
escritos;
IV – recriem, em contextos significativos para as crianças, relações quantitativas, medidas,
formas e orientações espaçotemporais;
V – ampliem a confiança e a participação das crianças nas atividades individuais e coletivas;
VI – possibilitem situações de aprendizagem mediadas para a elaboração da autonomia das
crianças nas ações de cuidado pessoal, auto-organização, saúde e bem-estar;
VII – possibilitem vivências éticas e estéticas com outras crianças e grupos culturais, que
alarguem seus padrões de referência e de identidades no diálogo e reconhecimento da
diversidade;
VIII – incentivem a curiosidade, a exploração, o encantamento, o questionamento, a
indagação e o conhecimento das crianças em relação ao mundo físico e social, ao tempo e à
natureza;
IX – promovam o relacionamento e a interação das crianças com diversificadas manifestações
de música, artes plásticas e gráficas, cinema, fotografia, dança, teatro, poesia e literatura;
X – promovam a interação, o cuidado, a preservação e o conhecimento da biodiversidade e
da sustentabilidade da vida na Terra, assim como o não desperdício dos recursos naturais;
XI – propiciem a interação e o conhecimento pelas crianças das manifestações e tradições
culturais brasileiras;
XII – possibilitem a utilização de gravadores, projetores, computadores, máquinas
fotográficas, e outros recursos tecnológicos e midiáticos.
Parágrafo único – As creches e pré-escolas, na elaboração da proposta curricular, de acordo
com suas características, identidade institucional, escolhas coletivas e particularidades
pedagógicas, estabelecerão modos de integração dessas experiências (BRASIL, Parecer
05/09, p. 4).

Nesse sentido, as DCNEI destacam a ideia de criança “como uma pessoa inteira na
qual os aspectos motores, afetivos, cognitivos e linguísticos integram-se, embora em
permanente mudança” (BRASIL, Parecer 20/09, p. 14), alertando sobre as práticas
pedagógicas que desconsiderem as crianças como protagonistas. Com isso, promove-
se um aspecto tão recorrente nos discursos e, ao mesmo tempo e na mesma medida,
tão ausente nas práticas: a não dissociação entre o cuidar e o educar.
É justamente pela compreensão de que a criança é um sujeito inteiro e que as
práticas cotidianas a vão constituindo que as dimensões de cuidado e de educação não
se separam: educar pressupõe cuidar e cuidar pressupõe educar.
Por fim, nos artigos 10 e 11, as atuais DCNEI trazem questões sobre a articulação
da educação infantil com as demais etapas da educação básica, bem como sobre a
avaliação. Sobretudo, esse segundo aspecto consiste em uma forte reivindicação ética e
política sobre o trabalho que é realizado nas escolas; ou seja, é de responsabilidade de
cada instituição criar procedimentos de avaliação e acompanhamento dos percursos
das crianças e do trabalho pedagógico realizado com ela.
Nesse mesmo sentido, a avaliação na educação infantil se dá de forma processual,
amparada pela observação sistemática e crítica de cada criança, devendo ser
compartilhada com os familiares, que, vale lembrar, têm o direito de acompanhar o
percurso e a aprendizagem de seus filhos, por intermédio de fotografias, relatórios,
pastas, portfólios, etc. Ademais, vale notar que é proibida a retenção da criança na
educação infantil; isto é, a avaliação não possui caráter de promoção, classificação ou
seleção.

Para saber mais


O tema da avaliação tem sido motivo de profundo debate. Atualmente, é possível encontrar no
site do MEC um documento que fornece subsídios para a construção de um sistema de avaliação
na educação infantil. Vale a pena conferir: http://portal.mec.gov.br/index.php?
option=com_docman&task=doc_download&gid =11990&Itemid.

No que diz respeito à articulação, desde a LDB 9.394/96 a educação infantil tem
gozado status de etapa, deixando de ser subordinada às demais. Assim, as atuais
DCNEI irão reiterar essa ideia e propor que educação infantil e ensino fundamental
articulem-se por meio de encontros e ou de outros registros que possam dar a
continuidade ao trabalho realizado com as crianças.
Por fim, fica o desejo de que esse documento possa servir aos professores e
professoras das creches e pré-escolas como um poderoso instrumento de orientação
das práticas cotidianas junto aos meninos e meninas da educação infantil. Para tanto,
reiteramos, cumpre aos sistemas de ensino e ao poder público oferecer condições
adequadas às crianças e aos adultos que constituem essa etapa da educação.
A ideia é podermos logo mais, daqui a alguns anos, sentar juntos para discutir quais
são as novas Diretrizes e olhar para elas com a certeza de que avançamos e
qualificamos o trabalho na educação para as crianças pequenas.

REFERÊNCIAS

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currículo: as múltiplas linguagens na creche. Revista Educação, Santa Maria, v. 35, jan./abr. 2010, p.
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Educação Básica/UFRGS, 2009c. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?
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Rumo à construção de um projeto educativo. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação, UFMG,
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LEGIS LAÇÃO

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______. Lei nº 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente.
______. Lei nº 9.394/1996. (Dispõe sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília:
Senado Federal.)
______. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução nº 001/ 1999. (Fixa
Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação infantil.)
______. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução nº 005/2009. (Fixa
Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação infantil.)
______. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Parecer nº 20/2009. (Diretrizes
Curriculares Nacionais para a educação infantil.)

Este capítulo foi elaborado por Marta Quintanilha Gomes e Paulo Sergio Fochi.

1 Moacyr Scliar, Folha de São Paulo [São Paulo] 6/2/2006, disponível em


http://www.academia.org.br.
2 A Comissão foi criada em 1986, por iniciativa do ministro da Educação, e tinha como integrantes
representantes dos ministérios da Educação, da Saúde, da Previdência e Assistência Social, da
Cultura, do Trabalho e do Planejamento. Havia ainda representantes de organizações sociais como
Sociedade Brasileira de Pediatria, Organização Mundial para a Educação Pré-escolar/Brasil, Pastoral
da Criança, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Ordem dos Advogados do Brasil, Federação
Nacional dos Jornalistas, Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, Movimento Nacional
Meninos e Meninas de Rua, Frente Nacional dos Direitos da Criança (NUNES, CORSINO e
DIDONET, 2011).
3 Essa denominação refere-se ao leiaute das capas, que buscavam apresentar a diversidade étnica da
população do país.
4 Para conhecer na íntegra, ler Parecer 20/09, que explicita o contexto na qual foram estruturadas e
criadas as Diretrizes e Resolução nº 05/09 na qual fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil.
CAPÍTULO 5

SOBRE A DOCÊNCIA E A EDUCAÇÃO INFANTIL

O presente capítulo aborda a questão da docência de uma forma mais ampla e as


singularidades desse trabalho na escola de educação infantil. Busca caracterizar a docência a
partir da constituição da escola em um ideário moderno, problematizando as formas de
produção desse trabalho em uma escola para as crianças. A educação infantil pautada por
princípios definidos nas Diretrizes Curriculares Nacionais exige uma nova escola, uma
nova docência, e essas transformações partem de um processo de interação que considera
os diferentes sujeitos envolvidos no processo educativo.

S obre a docência e a educação infantil

A educação infantil se encontra atualmente em um processo de afirmação de suas


especificidades. A garantia desse lugar tem implicado, paradoxalmente, tanto a
aproximação do que já temos instituído no âmbito da educação, em termos de
concepções de escola e docência, por exemplo, quanto o afastamento do que provoca a
ruptura com os princípios pautados para essa etapa da educação nas Diretrizes
Curriculares para a Educação Infantil (2009), entre eles a garantia dos direitos de
cidadão das crianças, da criticidade, da autonomia, da ludicidade, etc. O que quero
afirmar com isso é que o processo histórico de constituição de um lugar mais
qualificado de atendimento às crianças as coloca em escolas. Ao mesmo tempo, o
processo de profissionalização das professoras que atendem a essas crianças coloca
nesse trabalho a função docente. No entanto, não falamos da mesma escola, não
falamos de uma mesma docência, não falamos de uma mesma forma de constituição de
profissionalidade. A educação infantil possui uma lógica própria de funcionamento, e
a possibilidade de vivenciar os princípios desse trabalho está articulada a uma nova
docência.
A docência, pensada a partir do senso comum, está vinculada à ideia de um fazer
prescritivo, universal, tendo sua ação pautada por mecanismos homogeneizantes,
visando a atingir seu objetivo: instruir. Essa perspectiva linear de conceber o fazer
docente se situa em um ideário moderno que tem como uma de suas características
compreender os sujeitos como únicos em um processo controlado e previsível. A
marca não poderia ser outra, se considerarmos que a escola, da forma como está
organizada na contemporaneidade, origina-se justamente com a modernidade e herda
em sua estrutura processos e fins, para o bem e para o mal, mecanismos próprios
dessa forma de pensar o mundo. Os mecanismos disciplinadores próprios da
constituição das escolas nos séculos XIX e XX, cujo modelo referencial é o fabril da
produção industrial, tendem a produzir a docência como atividade fechada,
individualizada e voltada para a uniformização dos sistemas de educação. M ais do que
isso, a docência, por não estar diretamente voltada à produção material própria da
sociedade moderna, passa a ocupar um lugar secundário em relação ao chamado
trabalho produtivo.
Na atualidade, contudo, vários são os indicadores que nos chamam a atenção para a
necessidade de analisar, pesquisar e vivenciar esses processos escolares em uma outra
perspectiva, mais complexa, que nos permita compreendê-los sob diferentes olhares.
A docência, nessa perspectiva, estaria submetida a um corpo de análise
multidimensional. É o que propõem Tardif e Lessard (2007) quando investigam o
trabalho docente na perspectiva sociológica, buscando a ampliação da base de
conhecimentos para a compreensão da docência nos contextos cotidianos de atuação
dos professores. Os autores referem que já não é possível saber da docência com
abordagens normativas, sendo necessário partir para a abordagem de contextos. O que
significa analisar a docência de forma situada, como um fenômeno que ocorre em uma
situação social ímpar, produzida histórica e socialmente. Não seria possível pensar a
docência, partindo dessa inferência, de forma universal, mas plural.
Tardif e Lessard (2007) definem a docência como
Uma forma particular de trabalho sobre o humano, ou seja, uma atividade em que o
trabalhador se dedica ao seu “ objeto” de trabalho, que é justamente um outro ser humano,
no modo fundamental da interação humana (p. 8).

Nesse sentido, docência é interação, e as relações entre os professores e os alunos


são relações de trabalho no ambiente escolar. Considerar que o outro é seu “objeto de
trabalho” altera toda e qualquer forma de compreensão do trabalho docente. Já não
posso prever os processos; posso, a partir do conhecimento dos alunos, objetivar
algumas ações, mas elas estarão sujeitas à subjetivação inerente ao “objeto de
trabalho” próprio do fazer docente, objeto esse que reage às minhas ações, que estão
marcadas por relações de poder, de afetividade, de ética, pela minha própria história
de vida, de vida escolar e profissional. São muitas as dimensões que nos constituem
como humanos e que são em alguma medida atenuadas nas relações fabris, em que o
objeto de trabalho é inerte, ou mais previsível em seu comportamento. Para os
autores, “ensinar é trabalhar com seres humanos, sobre seres humanos, para seres
humanos”(2007, p. 31).
Pensar na situação desses seres humanos na escola é importante para compreender
a docência. Se por um lado os professores investem em uma carreira profissional,
submetem-se a uma seleção para compor um grupo de trabalho em determinada escola,
escolhendo esse lugar como lugar de interações, por outro temos as crianças, que a
princípio não escolhem estar em uma escola e são submetidas a essa interação que nem
sempre corresponde ao que idealizam. Trata-se de uma atividade profissional que se
sustenta ou não pela possibilidade de participação ou resistência dos envolvidos. Que
precisa de improvisação e de criação, fugindo ao modelo moderno da repetição (nesse
sentido, ela se constitui como um artesanato). O que não significa deixar de ter
regularidades. As regularidades existem e compõem a docência, que não é meramente
reprodução, mas um lugar de produção de sentidos que ocorre em um cenário de
colaborações, conflitos e tensões que vão organizando o fazer docente.
A organização é compreendida aqui não com o sentido de estruturação do
pensamento, do mundo nas diversas áreas, abordagens e verdades, mas como a
possibilidade de interagir com o mundo de uma forma que não seja linear,
previsível,com início, meio e fim.
Se, em determinado momento histórico, essa forma estruturada de pensar e
organizar o trabalho docente – disciplinarizando o conhecimento, estabelecendo
fronteiras definidas em suas diversas áreas, desconsiderando as interações – repercutiu
como um avanço, percebe-se, hoje, que a possibilidade de especialização e a
racionalização dos processos carregam a perda dos vínculos naturais existentes nas
diferentes dimensões do humano. Isso ocorre tanto nos fenômenos mais simples da
vida como naqueles mais complicados. Há uma espécie de naturalização das fronteiras,
e todo o esforço está na possibilidade de garantir um olhar complexo para a realidade.
Cunha (2006) nos diz que
Precisamos assumir que a docência é uma atividade complexa, que exige tanto uma
preparação cuidadosa, como singulares condições de exercício, o que pode distingui-la de
algumas outras profissões. Ou seja, ser professor não é tarefa para neófitos, pois a
multiplicidade de saberes e conhecimentos, que estão em jogo na sua formação, exige uma
dimensão de totalidade, que se distancia da lógica das especialidades, tão cara a muitas
outras profissões, na organização taylorista do mundo do trabalho (p. 13).

Estar em uma sala de aula não garante aprendizagem. Pelo menos, não do que
formalmente está instituído e objetivado como aprendizagem. Aprender implica
aceitação do outro, a mobilidade de uma emoção e tolerância. Tal aceitação passa por
interações humanas complexas, advindas de emoções diversas, mobilizadoras de
questões éticas.
Se considerarmos a organização no sentido linear, não há espaço para a inovação. É
como o trabalho das abelhas ou das formigas, perfeitas na organização, mas
permanentes no seu modo de ser. É preciso considerar o movimento, a emoção, a
ruptura na forma de nos organizarmos para compreender o mundo, função maior da
educação.
Para isso, é importante pensarmos no lugar em que prioritariamente ocorre o
trabalho docente, a escola. Lugar esse que não consiste apenas de um espaço físico,
mas de um ambiente significado pelo grupo que ali trabalha, pelo que culturalmente se
instituiu através da história como escola, considerando os embates, as cedências
cabíveis na organização dessa instituição. Tardif e Lessard (2007) chamam a atenção
para uma espécie de afastamento da escola em relação ao seu contexto, desconectando
o trabalho docente do mundo “lá de fora”. É quando a escola se desprende do mundo,
criando muros, rotinas próprias, fazeres típicos, e disciplinarização, que ela surge
como organização. Há, a partir disso, uma mudança profunda nas formas de
relacionamento que impõem um outro ethos a esse lugar. Isso é manifestado não
apenas nos comportamentos propriamente ditos, mas na priorização de alguns
materiais em detrimento de outros, valorizando práticas sociais, em especial a escrita,
e rompendo com práticas orais, “dos saberes locais, cotidianos, informais e de
aprendizagem por ouvir-dizer e ‘ver-fazer’” (p. 58).
Por este histórico de ser a instituição que vai preparar as crianças para um mundo
produtivo, com uma seleção de saberes próprios para esse fim, e em um lugar no qual
os processos de ensino-aprendizagem têm “vida própria”, é que o trabalho docente
presente nesse mesmo processo vem adquirindo características peculiares. Uma delas
é que, com a estruturação da escola, a sala de aula passa a ser a unidade básica do
ensino, sendo caracterizada, segundo Van der M aren (1990) apud Tardif e Lessard
(2007), da seguinte forma:
(1) Uma pessoa (adulta) que se presume saber (2) tem contatos regulares (3) com um grupo
(4) de pessoas (crianças) que devem aprender, (5) cuja presença é obrigatória, (6) para ensinar-
lhes (7) um conteúdo socialmente definido (8) através de uma série de decisões tomadas em
situação de urgência (p. 63).

O trabalho docente vem sendo configurado da forma supracitada e traz em seu


cotidiano, além da responsabilidade de fazer acontecer essa sequência de ações, o
sentimento de solidão em relação aos alunos, que não são controláveis, pelo menos
não da forma como a escola originalmente pretendia. Ou seja, há um hiato nas
interações produzidas no âmbito da escola, que se coloca ainda muito presa ao
estabelecimento da ordem. Porém, mesmo com a burocrática estrutura da instituição, é
possível, na sala de aula, perceber a interação com os alunos. Assim, a personalidade
da trabalhadora-professora passa a ser considerada uma tecnologia do fazer docente, já
que ela pode facilitar ou dificultar o processo interativo. Considerar, ou não, as
crianças. Estar preparada para o olhar, o escutar, o sentir o outro. Trabalhar no
sentido de estabelecer uma relação menos assimétrica com as crianças, respeitando
outras lógicas.
O lugar profissional dessa professora pode mobilizar formas de ser docente
diferenciadas. Batallán (2007), ao investigar o trabalho docente em uma perspectiva
antropológica, percebe uma ambivalência justamente entre a autonomia exercida na
sala de aula, com as crianças, em que há uma configuração de trabalho intelectual, e
uma estrutura externa que confere aos profissionais docentes um papel subalterno e
dependente. Ou seja, há uma situação em relação ao trabalho docente que tensiona a
profissional, levando-a a cumprir papéis distintos em relação a um mesmo lugar
ocupado. A autora pesquisou a situação específica de Buenos Aires, mas talvez esse
tipo de problemática agregue-se ao que Tardif e Lessard (2007) vêm denominando de
tarefas invisíveis (preparação de materiais, de atividades) do fazer docente, as quais
têm marcas tanto no magistério como trabalho feminino quanto no fundamento
religioso da profissão. Talvez as tarefas invisíveis estejam colocadas para além da
questão material, ou da impossibilidade de ver concretamente o seu produto final. É
possível que haja um simbolismo presente Essa situação de ambiguidade pode levar ao
constrangimento público e profissional. Será que isso não está preso a uma concepção
de magistério como missão? Seria, então, como uma aura presente na configuração do
trabalho docente.
Sabe-se que na educação infantil existem múltiplas maneiras de denominar quem
realiza o trabalho docente, por motivos diversos que podem ser de ordem cultural,
política ou econômica. A docência então, nessa etapa da educação básica, vem se
configurando como um processo de rompimento de ordens estabelecidas e inovadora
nas formas de ser e estar na escola. As invisibilidades tanto do trabalho realizado
quanto das profissionalidades são ainda indícios da emergência de outro fazer docente.

REFERÊNCIAS

BATALLÁN, Graziela. Docentes de infancia: antropologia del trabajo en la escuela primaria. 1. ed.
Buenos Aires: Paidós, 2007.
BRASIL. ______. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução nº 001/
1999. (Fixa Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.)
CUNHA, Maria Isabel da. Trajetórias e lugares de formação da docência universitária: da perspectiva
individual ao espaço institucional. Projeto de Pesquisa. Programa de Pós-Graduação em Educação.
UNISINOS, 2006.
TARDIF, Maurice e LESSARD, Claude. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência
como profissão de interações humanas. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

Este capítulo foi elaborado por Marta Quintanilha Gomes.


CAPÍTULO 6

“AQUI TEM TUDO QUE EU PRECISO PARA SER


FELIZ!”1

Este ultimo texto serve como um sinalizador para a importância da brincadeira infantil;
mas não somente ressalta a importância dessa atividade para as crianças, como também
chama a atenção para a dimensão lúdica e criativa dos adultos. Apresenta uma reflexão
sobre o brinquedo, a brincadeira, o jogo e os principais atores envolvidos nessas
atividades e artefatos, especialmente na contemporaneidade. Questiona a falta de tempo e
espaço para as crianças brincarem e, nesse contexto, inclui a escola como um dos lugares
que nem sempre privilegiam as atividades lúdicas humanas.

OS GRANDES
Carlos Drummond de Andrade

E falam de negócio
De escrituras demandas hipotecas
de apólices federais
de vacas paridas
de éguas barganhadas
de café tipo 4 e tipo 7

Incessantemente falam de negócio.


Contos, contos, contos de réis saem das bocas
circulam pela sala em revoada,
forram as paredes, turvam o céu claro
perturbando meu brinquedo de pedrinhas
que vale muito mais.

A brincadeira e o jogo, apesar das dificuldades e da massificação, ainda estão


presentes. São naturalmente importantes para o desenvolvimento da pessoa. É preciso
garanti-lhes tempo, espaço e condições. Nossas crianças teimosamente conquistam
essas condições; nossos adultos precisam reconquistar esse espaço, perdido pelas
exigências da vida, para garantir seu equilíbrio ou evitar a fuga para compensações.
Felizmente nossas crianças ainda brincam, apesar das dificuldades de tempo, de
espaço, de objetos e da massificação da indústria do brinquedo e do lazer.
Em qualquer esquina, em qualquer calçada, em qualquer resto de espaço urbano
e/ou rural, há crianças se envolvendo em atividades lúdicas, às vezes com apelo a
milagres da imaginação, a qual consegue ultrapassar os limites do cotidiano e os
desafios da sobrevivência.
Isso, indiscutivelmente, é sinal de psiquismos sadios e das energias indomáveis da
vida. M esmo nas situações mais trágicas aparecem manifestações gratuitas de ações
lúdicas que nos fazem constatar que a vida exige soluções que somente a imaginação
nos dá condições de enfrentar. Brock, Dodds, Jarvis e Olusoga (2011) referem-se ao
brincar como “uma aprendizagem para a vida”. Lydia Hortélio, uma das maiores
especialistas brasileiras em culturas lúdicas infantis, insiste que “é preciso brincar para
afirmar a vida […] Não se deve brincar para aprender. Deve-se brincar para ser feliz”
(2008, p. 23).
Para falar de brinquedo, brincadeira, jogo, precisamos falar dos principais atores
envolvidos nessas atividades e artefatos, especialmente na contemporaneidade: as
crianças. M as será que o ato de brincar é somente uma atividade do humano infantil?
Os adultos não brincam? E os animais, não são os filhotes grandes brincalhões? Pensar
e pesquisar a atividade lúdica humana implica investigar os contextos sociais,
culturais, históricos, que engendram olhares distintos sobre o brincar e sobre os
sujeitos que brincam.
Podemos perceber que, por trás da criança concreta que brinca, que trabalha, que
“estuda”, existe uma cultura de infância que não pode ser descolada dos aspectos
econômicos, políticos, culturais, religiosos, educacionais, sociais… Sabemos também
que nunca tivemos tantos conhecimentos sobre a infância – sua história, suas
concepções nas diferentes culturas – e também sobre suas práticas pedagógicas, sobre
os avanços teóricos nos processos de ensino e aprendizagem. Os estudos nas áreas da
saúde (corpo, crescimento, movimento, motricidade), e em especial na área da
psicologia e da psicanálise, contribuíram com uma vasta fonte inspiradora para
constituirmos nossas representações sobre a infância nas suas diferentes dimensões.
Quando se “inventa” a infância, ou seja, quando, na modernidade, voltam-se os
olhares para esses seres, que até então eram tratados como imitações do adulto,
participando da vida da sua comunidade, realizando tarefas nem sempre condizentes
com sua força física, pode-se dizer que se cria uma categoria social com lugar marcado.
O “in-fans”, aquele que não fala, começa a ser visto como o futuro cidadão, como a
possibilidade do “homem”, do sujeito adulto, capaz, produtivo, inteligente (desde que
tenha condições para se desenvolver, crescer e aprender). Essa modernidade nos lega
muitas crenças, entre elas a de que a infância é uma “idade” áurea, feliz, plena de
expectativas para o futuro. M ostra-nos também que a criança é um ser inocente,
espontâneo, brincante, que, enquanto se prepara para a futura profissão, deve ter o
direito de sonhar de brincar e aprender. Essa imagem de infância tende a ser universal,
naturalizada, ou seja, desconsidera as diversidades infantis presentes nas diferentes
culturas, contextos sociais e econômicos. M ostra uma única maneira de ser criança,
que precisa ser preservada na sua inocência e ingenuidade e moralizada nas suas
formas de ser/agir, para aproximar-se cada vez mais do modo de ser adulto,
preferencialmente sem desvios desse idealizado cidadão. Para isso, prima-se pela boa
educação, aquela que equilibra horas de brincar com horas de estudar, prazer e dever,
acionando as potencialidades infantis para a formação das competências tão
necessárias no mundo do trabalho.
Uma outra infância se descortina diante de nossos olhos, na contemporaneidade.
Várias culturas, mundo globalizado. Se não podemos conviver com povos diferentes,
temos acesso, pela proliferação de informações, às formas de vida das crianças do
mundo inteiro. Não precisamos ir longe para deduzir que aquele modelo universal,
aquelas características pensadas para definir o que é ser criança, já não bastam para
elucidar o complexo mundo das infâncias. Os atores da sociedade não são mais
somente os adultos, aqueles que têm o poder de discernir o bem do mal, o certo do
errado, ou o que é melhor para as crianças. Os novos atores sociais, as crianças, estão
dizendo de sua indignação com esse mundo anunciado na modernidade, que lhes
acenava com a possibilidade de direitos, de liberdade, de expressão, de um futuro
promissor. Dizem-no pelas suas expressões em seu cotidiano, por seus corpos
erotizados precocemente, pela força do seu trabalho, pelos inúmeros afazeres fúteis
que lhes impõe o mundo dos adultos. Dizem-no pela sua marginalização, que as priva
de bens culturais, e até mesmo de alimentos, medicação, cuidados com a saúde.
M ostram suas frustrações por não conseguir acompanhar os ditames da escola,
tornando-se alunos dispersos, “hiperativos”, com “disfunções”. M ostram sua
indignação por não poder mais brincar com os adultos, usar os espaços da cidade para
se deslocar livremente, indo e vindo. M ostram-na pela falta de companheiros para
brincar, para explorar o mundo, para partilhar invenções e engenhocas.
Esses atores sociais compõem infâncias, diversas, plurais, muito distantes daquela
infância anunciada, naturalizada e de certa forma engessada. Romper com esses
paradigmas, recolocar a necessidade de uma infância multidimensional, implica rever
nossa postura adultocêntrica. Parar e ouvir o clamor dessa parcela da população (que
ultimamente tem diminuído), penetrando em suas culturas, reconhecendo sua
capacidade de produzir sentidos, de dar significado ao mundo, organizando suas
crenças, gostos, representações, sentimentos, ideias, em um tempo e espaço que é
marcado socialmente.
Entre as atividades especificamente humanas existem algumas que são
predominantes e prioritárias em determinadas etapas da vida e outras que são
fundamentais por toda a existência.
Por hipótese, o trabalho é a atividade fundamental, constitutiva do humano e
permanente como condição para a satisfação de suas necessidades. Essas necessidades
podem ser naturais, imediatas, como aquelas que garantem a sobrevivência, ou
mediatas e sociais, as que são construídas historicamente, de acordo com a evolução
dos tempos e dos recursos disponíveis em cada tempo e em cada situação. Assim
considerado, o trabalho mantém-se sempre dentro do reino da necessidade. Quando,
porém, essas necessidades já não são meramente naturais e se amplia o campo das
necessidades criadas, elas também compõem o campo da liberdade de escolha da
atividade humana não essencial para a sobrevivência, mas importante para uma vida
digna.
Quando o trabalho constitui um meio de satisfazer as necessidades naturais ou
sociais, pode representar tanto um elemento de liberdade como o seu contrário, a
depender do modo como a sociedade se organiza para satisfazê-las – o que fica claro
se comparamos o modo de produção capitalista com outro modo de produção mais
cooperativo.
No modo de produção capitalista, o trabalho, como elemento livre e libertador do
trabalhador, individual ou coletivo, reduz-se ao mínimo. As novas necessidades
humanas, globais, e sobretudo sua satisfação, distribuem-se de forma muito desigual
entre as diferentes classes sociais. Na organização do trabalho assalariado, a liberdade,
no sentido pleno do termo, tem seu campo de possível desenvolvimento fora do
trabalho, no tempo de não trabalho, no tempo livre, que nos dias atuais se reduz
também ao mínimo – apenas suficiente para recompor as forças do trabalhador, a fim
de que possa retornar ao trabalho. Assim, o tempo livre, apenas parcialmente, faz
parte do tempo de liberdade do trabalhador.
Já que não há como desatrelar totalmente o trabalho da possibilidade de satisfação
das necessidades, as naturais e as criadas historicamente, de modo que sempre fará
parte do reino da necessidade, é preciso que ele, o trabalho, tenha sua duração cada
vez mais reduzida, seus resultados sejam reapropriados pelo trabalhador e seu
processo seja reorganizado para que haja espaço para o reino da liberdade – esta
também essencial para o desenvolvimento especificamente humano.
O que constituirá então o reino da liberdade?
O reino da liberdade será constituído por aquele espaço em que o homem possa
envolver-se em todas as outras atividades que lhe dão prazer e o gratificam, não
porque sejam produtivas para o modo da atividade do trabalho, mas porque são
gratuitas. Nesse campo estão todas as outras múltiplas dimensões de realização
humana, desde as atividades intelectuais até as atividades artísticas, culturais, lúdicas
e, eventualmente, até aquelas situações em que não fazer nada se torna uma fonte de
prazer: a ociosidade, a “preguiça”.
A modernidade separou as atividades humanas dando-lhes lugares e
especificidades, retirando o brinquedo e a brincadeira de um estado social comum a
crianças, jovens e adultos, para confiná-los às crianças e aos tempos e espaços
específicos para o jogo.
A rua e os quintais deixaram de ser lugares privilegiados para a invenção, para as
brincadeiras. A institucionalização da infância está cada vez mais marcada pela
sociedade e pelo mercado. M uito além da escola, as pedagogias estão em todos os
espaços – nos shoppings, na mídia, nas lojas, nos parques, nos clubes, no acesso às
tecnologias. As brincadeiras com poucos recursos, mas com muita liberdade, são
atualmente imagens que perduram na memória de muitos adultos e estão cedendo lugar
a outras modalidades de brincar e de satisfazer desejos criados por uma indústria
cultural que tenta atrair, seduzir, induzir ao consumo.
Além disso, a descoberta da infância abre um caminho para produtos e produtores
que se beneficiam com a capacidade de simbolizar, de fantasiar dos pequenos. O
tempo de infância é curto e cada vez mais abarrotado por novas ocupações e
exigências. A dimensão lúdica humana, caracterizada pela liberdade de imaginar,
fantasiar, poetizar o mundo, base de todo o processo de criação, está cada vez mais
restrita e institucionalizada.
M as por que o brinquedo é tão importante? Porque brincar é importante para a
formação humana. Uma das características essenciais das crianças ainda é o brincar,
fundamental para seu equilíbrio e vitalidade. A sociedade contemporânea,
caracterizada por modos de trabalho competitivos, pela vida acelerada e distante da
natureza, muitas vezes marcada por relações meramente virtuais, faz com que a
ludicidade, entendida como atividade prazerosa e gratuita, perca a sua dimensão
humanista. Vivemos em uma sociedade que dicotomiza trabalho e lazer, criatividade e
fruição da produtividade, lucro e competência. As consequências dessa divisão são
cada vez mais visíveis, tanto na sociedade como nos espaços das crianças, as escolas.
Temos adultos estressados e crianças medicadas, “sem limites”, irritadas, realizando
tarefas e participando de uma vida de adultos problemáticos e muitas vezes
insensíveis às causas infantis.
A capacidade humana de ação e simbolização é o princípio da criação, da invenção.
O homem só se diferencia dos animais pela capacidade de criar. Somos seres
simbólicos. Somos seres brincantes e podemos ser adultos criativos e inovadores,
capazes de criar soluções novas para problemas antigos. É na infância, no seu
decorrer, que estruturamos capacidades de ação e simbolização, sendo o brinquedo a
forma mais completa de lidar com elas.
Por meio da brincadeira, a criança mergulha na vida, criando um espaço que
expressa, que atribui sentido e significado a uma realidade, inventado formas de lidar
com as dificuldades, de se relacionar com os outros, de compreender situações
complexas. Brincar, portanto, deixa de ser somente um direito para se tornar um
espaço de liberdade, de criação. Brincando, a criança se reequilibra, lidando com
emoções, desenvolvendo a atenção, a concentração, o convívio. Brincar permite ao ser
humano conhecer e reinventar. Pelo brinquedo, a criança tem acesso ao passado e ao
futuro, revitalizando a cultura e inventando o mundo que almeja. Por isso, a atividade
lúdica não pode ser pensada fora do contexto social, cultural da infância.
Existem dimensões que certamente, por mais que se esforce, a escola convencional
não conseguirá resgatar ou assegurar em seu todo. Por exemplo, a dimensão lúdica, o
prazer da descoberta, o cômico, a leveza do pensamento, a simplicidade da natureza…
Na discussão sobre jogos e brincadeiras, encontramos autores como Kishimoto
(2001), que distingue o termo jogo dos termos brincadeiras e brinquedos. Para ela,
brinquedo é o objeto, o suporte para a brincadeira que supõe uma relação íntima com a
criança e uma indeterminação quanto ao seu uso, ou seja, a ausência de um sistema de
regras que organizam sua utilização. Já brincadeira pressupõe a descrição de uma
conduta estruturada, com regras; e jogo descreve uma ação lúdica envolvendo situações
estruturadas pelo tipo de material escolhido.
A brincadeira é também cultura, pois por meio dela a criança se relaciona com os
conteúdos culturais produzidos, dos quais se apropria e confere significado,
transformando-os (BROUGÈRE, 2004). Isso significa que, embora tenha uma
dimensão histórica, de transmissão entre gerações, e uma dimensão cultural, com
conteúdos referentes aos contextos específicos, a brincadeira possui sempre um
caráter original, de intervenção e apropriação feito pela própria criança e/ou pelo
grupo.
Podemos dizer que brincar é Brincar é em si uma atividade que não necessita de
explicações lógicas. Brincar se aprende na cultura, nas formas como são
disponibilizados e alimentados os elementos com os quais convivemos. Se for na rua,
na nossa casa, é lá que iremos constituir a nossa cultura lúdica. Se for na favela, na
cidade, em frente à televisão, ou nos campos de guerra, é lá que nos deixaremos
atravessar pelos elementos simbólicos do brincar. Fonte de desejo e realizações,
espaço de magia e encantamento, lugar de elaborar conflitos e frustrações, fonte de
conhecimento e trocas sociais, a capacidade de brincar ultrapassa idades, tempos e
espaços. Reproduzir, significar, transformar. Brincar é uma atividade completa:
linguagem, imaginação, decisão, organização, movimento, tempo, espaço, afetividade
estão presentes nesse ato. Vigotsky (1988) chegou a afirmar que a atividade lúdica é
uma condição de humanização. A representação simbólica, o imaginário possui a
liberdade de conduzir o pensamento, transformando a realidade de acordo com os
nossos desejos. Nesse sentido, brincar e criar são equivalentes.
M as e acriança? É preciso buscar a criança no brincar, no brinquedo e na
brincadeira. Se existem tantas infâncias quanto as realidades sociais e culturais, há
também algo que é específico da criança, desse tempo chamado infância: seu poder de
imaginação, de fantasia, de criação.
As crianças, em diferentes culturas e contextos, transitam com muita propriedade
entre a fantasia e a realidade. Sarmento (2003) identificou alguns elementos da cultura
lúdica que permeiam a vida das crianças, conferindo especificidade a esse tempo de
infância Fantasiar o real, ir e vir, repetir ações prazerosas, exercitar a ação lúdica,
interagir com os outros são necessidades apontadas nessas culturas do brincar.
A história da humanização está intimamente ligada à capacidade de ação e
simbolização. A ação, a representação e a significação se constroem gradativamente em
níveis cada vez mais complexos, mas conjuntamente.
Na criança, a ação, a interação com o meio, com os objetos e com os outros se faz
graças ao movimento, à atividade que na idade infantil toma forma de brincadeiras. Em
um primeiro momento, o ser infantil age, movimenta-se, tateia, entra em contato com
o mundo por meio dos sentidos, pelo impulso da vida que se apoia em dois eixos
inseparáveis: o interno e o externo. De par com o movimento vai se formando a
linguagem. Tanto esse processo é conjunto que a criança já não age sem
concomitantemente emitir sinais de linguagem, mesmo que indistintos e
incompreensíveis para os outros. Até porque, nesse momento, a linguagem não visa à
comunicação, mas à organização da ação. Aos poucos, porém, e muito vagarosamente,
ela interioriza a ação e pode precedê-la.
Na existência infantil, cercada de dificuldades e limitações, a ação, sua expressão e
seu projeto vão de encontro à opacidade do real. Pelo fato de a criança não ter ainda
maiores compromissos com o real, ela possui a capacidade de desrespeitá-lo e
ultrapassá-lo pela imaginação. Ela pode dar-se o direito de sonhar todo um mundo
fantástico que tem pouco a ver com seu cotidiano imediato, sem por isso ser
responsabilizada – e nesse mundo ela divaga, constrói e destrói castelos e heróis,
podendo ela mesma erigir-se como o grande herói, fada ou monstro.
A nós, adultos, cheios de preocupações e responsabilidades, isso pode tudo
parecer passatempo ou perda de tempo – especialmente quando nos dizem “tempo é
dinheiro”.
Para a teoria psicogenética, o pensamento abstrato é construído por meio da ação,
da interação, do movimento, iniciando por aspectos simplesmente sensório-motores,
depois representações e simbolizações do concreto, e então operações concretas.
Em todas essas etapas, a maneira não formal de organização é, em todas as crianças,
a brincadeira.
Na brincadeira, a criança já opera; isto é, age em uma esfera cognitiva, porque sua
contribuição sobre o real parte tanto do seu interior quanto das propriedades dos
objetos. Na brincadeira, o pensamento, as elaborações psíquicas têm alguma relação
com o real; mas o ultrapassam, criando dimensões, imagens, regras, significados que
passam a predominar sobre o real. Esse processo elabora as estruturas fundamentais
do pensamento abstrato.
Pela atividade, pela imaginação, pela fantasia, pela interação com os outros, a
criança passa a viver situações novas, que solicitam elaborações novas, gradativamente
mais complexas. Isso explica também a mudança das brincadeiras, que de início estão
mais ligadas ao imediato e à imitação, passando posteriormente a incorporar regras, as
quais atingem níveis bastante rígidos que disciplinam a aquisição dos desejos, embora
fictícios, mas desafiam e introduzem a criança em uma zona de “desenvolvimento
potencial” (VIGOTZKY, 1988) altamente construtivo.
A criação de uma situação imaginária que enriquece o real próximo é a primeira
emancipação da criança em relação às restrições situacionais.
Há outro aspecto importante na brincadeira para o desenvolvimento infantil: a
conquista da autonomia. Podendo a criança criar seu mundo fictício, estabelecer suas
regras, projetar sua ação, ela está livre dos autoritarismos da situação real, fazendo um
exercício de tomada de decisões que, posteriormente, comporão sua identidade política
como cidadã.
A brincadeira, assim considerada, vale por si, por sua gratuidade, por sua
“inutilidade”. Qualquer adjetivação – por exemplo, brinquedos educativos, ou de
gênero, ou de violência, ou de competição – é desnecessária e pode ser uma armadilha,
atribuindo-lhes uma importância ou um condicionamento dispensáveis.
A criança é capaz de coordenar, em uma só brincadeira, os mais variados materiais,
mas também gerar diferentes significados e sentidos para os mais simples objetos. Ela
pode, por meio da imaginação, criar e recriar o mundo, subvertendo a ordem das
coisas. Portanto, acima de tudo, brincar significa libertar-se das coisas postas e
imaginar, criar um mundo próprio, em que realidade e fantasia se entrecruzam e não
possuem nenhum compromisso com a racionalidade. É o espaço da criação, da
poética, das metáforas, da fruição, tão presentes nos processos artísticos. É poder ver,
nos objetos e nas relações, outras possibilidades, outras combinações. Uma cadeira
não servirá somente para sentar-se, mas poderá ser transformada em uma nave
espacial ou mesmo em um cavalo, ou até em um unicórnio, ações que ocorrem em um
tempo e espaço fictícios, diferentes do tempo e do espaço marcados pelo relógio ou
pela lógica adulta. Brincar é uma atividade protagonizada pela própria criança, e é ela
quem determina quando começar e quando parar, ou quando simplesmente
interromper a diversão para recomeçá-la dali a pouco, e mesmo de que ponto
recomeçá-la… São as crianças que fazem os enredos, imaginam, combinam, constroem,
desfazem regras, pensam e não são pensadas.

Os brinquedos como objetos da cultura

Em um mundo contemporâneo, perguntamo-nos se as crianças ainda brincam e


deparamos com o ato de brincar ainda presente, mas com outras roupagens. As
crianças brincam com os objetos culturais que o mundo dos adultos lhes oferece.
Imitações de eletroeletrônicos e a diversidade de entretenimento oferecida pelas novas
tecnologia digitais geram outras necessidades, outras maneiras de brincar. Produzimos
coisas para as crianças sempre a partir do ponto de vista do adulto, da cultura na qual
estamos inseridos, a partir do modo como interpretamos o possível sentido que as
crianças dão ao mundo.
Os brinquedos já vêm carregados de significados culturais, porém as relações de
afetividade, as interações só poderão ser criadas no ritual do brincar. Brincar, entre
crianças ou junto com os adultos, torna-se um ato cultural, uma inserção na cultura
lúdica, ao mesmo tempo que possibilita a transformação dessa cultura a partir da
criação e da imaginação da criança que se envolve com o brinquedo. Por outro lado, o
ato de construir os objetos para brincar amplia a possibilidade de criação, de
descobertas de procedimentos e materiais, algo muito próximo da arte.
Os brinquedos educativos, introduzidos rigorosamente na escola por M aria
M ontessori, podem ser proveitosos por seu caráter pedagógico, mas perdem, em
parte, sua natureza lúdica e sua dimensão maior de criação e imaginação. O mesmo se
pode dizer de alguns brinquedos eletrônicos, com dois agravantes: o
comprometimento integral do jogador com as normas e regras preestabelecidas no
programa, as quais a criança deve previamente assumir; e a relação fria com a
“máquina”: os outros, os objetos do mundo, a cultura e a existência humana apenas
são elaborados na sua forma estereotipada e “desistorizada”. Há, nesses tipos de
brinquedo, a vantagem de desenvolver-se a agilidade intelectual de perceber os
esquemas do programa, adiantando-se à sua lógica, bem como a habilidade de
manipular botões, teclas, controles, mais ou menos mecânicos. Em contrapartida, não
há espaço para diálogos, questionamentos e reflexões; a criação, em especial, é
incompatível com esse tipo de jogo.
Para ser educativa, a brincadeira deve antes de tudo ser jogo; deve ser uma atividade
que traga a marca e a expressão natural do ser e do eu da criança, que garanta a ela o
tempo e as condições de jogo como um direito.
Para o adulto que está em contato com a criança, é fundamental recuperar o lúdico
em sua vida. Hortélio (2008 ), pesquisadora das brincadeiras populares no interior do
Brasil, dos “vestígios de infância”, (p. 23) insiste em dizer que o mundo pode ser
ressignificado por meio da infância que está “guardada dentro de cada um”. (p 24)
As brincadeiras e os jogos, assim considerados, trazem em seu processo a história
da cultura de uma coletividade e, por isso, tanto são importantes para mediar a
construção da identidade de um grupo humano quanto para indicar as características
específicas desse grupo. Os grupos, porém, não são homogêneos. Em cada grupo
humano há jogos e jogos, atividades e atividades, com valorações pessoais e históricas
significativas e características. Pode-se estudar a história da humanidade por meio da
história dos brinquedos.
Em geral, os brinquedos do mundo contemporâneo são alienados, não são
construídos, são comprados, não são mais feitos por adultos e crianças em espaços e
tempos de interação e aprendizagem geracional. O que a sociedade do consumo,
oferecendo produtos atrativos reforçados pelos apelos midiáticos, desperta na criança
é a possibilidade de possuir o brinquedo, sendo isso mais importante do que o prazer
de inventar e construir.
Os brinquedos, além de serem produzidos com materiais cada vez mais
sofisticados, cada vez mais tentam imitar a realidade; porém, quanto mais definido o
brinquedo, menor a elaboração da criança e mais limitada a sua ação, a sua imaginação.
É comum encontrarmos o desencanto das crianças com um brinquedo sofisticado ou o
tédio daquelas que possuem uma infinidade de objetos ao seu dispor. Diante de tantas
opções, a criança se cansa facilmente, pois esses produtos culturais, os brinquedos,
são projetados pelos adultos, que estão sempre levando em conta o seu ponto de vista
utilitário. Brinquedo deve ser como arte. Para que serve? Para fruir, para imaginar,
para potencializar a criação de significados. No mundo dos adultos, as coisas já vêm
pensadas, imaginadas, prontas. No mundo das crianças, as coisas e as palavras se
transformam, tomam feições diferentes, comandadas pela imaginação.
M esmo com dificuldades, vale a pena valorizar o lúdico presente em nossas
crianças e reconquistar o lúdico perdido ou compensado de nossos educadores.
Conseguir brincar é aproveitar uma situação privilegiada para o desenvolvimento e um
sinal de equilíbrio.
E então, por que você não curte a brincadeira das crianças e não vai você também
brincar?

O lúdico é uma dimensão especificamente humana e o direito ao lazer e está incluído, pelas
nações, entre os direitos humanos.
Euclides Redin

Para saber mais


Assista ao vídeo A importância do brincar, de Tizuko Morchida Kishimoto, disponível no site
YouTube.

REFERÊNCIAS

BROCK, Avril; DODDS, Sylvia; JARVIS, Pam; OLUSOGA, Yinka. Brincar: aprendizagem para a
vida. Porto Alegre: Penso, 2011.
BROUGÈRE, Gilles. Brinquedos e companhia. São Paulo: Cortez, 2004.
HORTÉLIO, Lydia. É preciso brincar para afirmar a vida. In: BRASIL, Almanaque de cultura
popular. Ano 10, n. 114, out. 2008, p. 23-25
KISHIMOTO, Tizuko Morchida. O jogo, a criança e a educação. 8. ed. Petrópolis: RJ: Vozes,
2001.
REDIN, Euclides. Se der tempo a gente brinca: o espaço e o tempo da criança. 5. ed. Porto Alegre:
Mediação, 2004.
REDIN, Marita Martins. Crianças e suas culturas singulares. In: MÜLLER, F.; CARVALHO, A. M.
A. (orgs.) Teoria e prática na pesquisa com crianças – Diálogos com William Corsaro. São Paulo,
Cortez Editora, 2009.
SARMENTO. Manuel Jacinto. Imaginário e culturas da infância. In: Cadernos de Educação
Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Ano 12, n. 21, jul./dez. 2003.
VIGOTZKY; LEONTIEV. Os princípios psicológicos da brincadeira pré-escolar. In: VIGOTSKY, L.
S.; LURIA, A. R; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo:
Ícone, 1988.
Este capítulo foi elaborado por Marita Martins Redin,
com colaboração de Euclides Redin2 .

1 Exclamação de uma criança visitante assídua da Unibrinc, brinquedoteca da UNISINOS, local onde
estão disponíveis brinquedos e materiais que possibilitam a experiência lúdica e estética.
2 Dr. em Educação, pesquisador e autor de artigos e livros sobre infância, ludicidade e educação.
SOBRE OS AUTORES

MARITA MARTINS R EDIN


Doutora e mestre em Educação pela UNISINOS. Especialista em Educação Pré-escolar pela
Universidade de Sergipe. Licenciada em Pedagogia pela UNIJUÍ. Atua como coordenadora do curso de
Especialização em Educação Infantil e como professora na UNISINOS, em São Leopoldo, Rio Grande
do Sul.

MARTA QUINTANILHA GOMES


Doutora e mestre em Educação pela UFRGS. Especialista em Administração da Educação pela
Universidade de Brasília. Licenciada em Pedagogia pela UFRGS. Atua como professora na UNISINOS
e na rede municipal de ensino de Porto Alegre.

P AULO S ERGIO F OCHI


Mestre em Educação pela UFRGS. Especialista em Educação Infantil pela UNISINOS e especialista
em Gestão e Organização de Escola pela Unopar. Licenciado em Pedagogia pela Unopar. Atua como
coordenador pedagógico em escola privada de Porto Alegre e como professor convidado e coordenador
do curso de Especialização em Educação Infantil da UNISINOS.
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Redin, Marita Martins, 1952-.


Infância e educação infantil / Marita Martins Redin, Marta Quintanilha Gomes,
P aulo Sergio Fochi. – São Leopoldo: UNISINOS, 2013.
72 p. – (EaD)
R317i
ISBN 978-85-7431-584-3

1. Educação de crianças. 2. Ensino à distância. I. Gomes, Marta Quintanilha. II.


Fochi, P aulo Sergio. III. Título. IV. Série.

CDD 372.21
CDU 373.2

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(Bibliotecário: Flávio Nunes – CRB 10/1298)

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Editor
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Impressão, inverno de 2013.

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Edição digital: janeiro 2014

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