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DADOS DE ODINRIGHT

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poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a
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Copyright © Les Éditions du Cerf, Paris, 2019
Copyright da edição brasileira © 2020 É Realizações Editora
Título original: L’empire du politiquement correct
 
Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d’Aide à la Publication année
2020 Carlos Drummond de Andrade de l’Ambassade de France au Brésil,
bénéficie du soutien du Ministère de l’Europe et des Affaires étrangères.

Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação ano 2020


Carlos Drummond de Andrade da Embaixada da França no Brasil, contou com o
apoio do Ministério francês da Europa e das Relações Exteriores.
 
Editor | Edson Manoel de Oliveira Filho
Produção editorial e projeto gráfico | É Realizações Editora
Capa | J. Ontivero
Diagramação | Nine Design / Mauricio Nisi Gonçalves
Preparação de texto | Érika Nogueira
Revisão | Geisa Mathias
Produção de ebook | S2 Books
 
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução
desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica,
fotocópia,
gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do
editor.
 
ISBN: 978-65-86217-24-7
 
 
É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.
Rua França Pinto, 498 · São Paulo SP · 04016-002
Telefone: (5511) 5572 5363
atendimento@erealizacoes.com.br · www.erealizacoes.com.br
A meu pai e minha mãe,
com quem aprendi que um homem respeitável
é antes de tudo o que mantém a postura reta
e não renega suas ideias.
 

O mundo inteiro está de novo em marcha,


mas vai no outro sentido.
G. K. Chesterton
SUMÁRIO

Capa
Créditos
Folha de rosto
Dedicatória
A censura está de volta
Capítulo 1 | A democracia como pedagogia
progressista
A democracia convertida à utopia diversitária
A democracia como exercício pedagógico
Psicologia da negação do real em regime
diversitário
Capítulo 2 | 1984 é agora
Democracia e redes sociais
A guerra da narrativa ou o conflito das
interpretações
O software decifrador no cerne do sistema
midiático
Demonologia, deslizes e rotulagem
O apelo à censura estatal
Capítulo 3 | Aquilo que a esquerda chama de direita
Psicologia do esquerdista
Situação da direita “moderada”
A direita amansada
Figura da direita descomplexada e… a direita
descomplexada vista pela esquerda
Quem é de direita é de esquerda
Capítulo 4 | O progressismo e os leprosos
A democracia contraditória
A questão do povo
A neutralização da soberania popular
A democracia “iliberal” ou o poder político como
contrapoder
Capítulo 5 | Os brancos, os racizados e os outros
Reflexões sobre a “questão branca”
A celeuma da apropriação cultural
A liberdade de expressão derrubada: o espaço
público como safe space
O novo iconoclasmo e a guerra contra as estátuas
Capítulo 6 | O sentimento do fim de um mundo ou a
criminalização da nostalgia
O encanto dos escritores crepusculares
O recurso ao grande homem
A figura do pária
O mito da arca
Capítulo 7 | Como é possível ser conservador?
O conservadorismo e a modernidade
Dos neorreacionários aos conservadores
O momento Zemmour
Finkielkraut, conservador
Surgimento da questão antropológica
Psicologia de um renascimento conservador
Elogio do conflito civilizado
Agradecimentos
Notas
Mídias sociais
A censura está de volta

A palavra é a pedra angular do sistema.


Reinar sobre as mentes permite governar o país.
Czesław Miłosz
 
Deslizes, desvios, demonização: esses termos são
recorrentes no léxico político contemporâneo. Revelam a
existência de uma ortodoxia ideológica no cerne do espaço
público, à qual é melhor o indivíduo se curvar caso deseje
ganhar destaque nesse âmbito e participar da conversa
cívica. De fato, alguém só desliza numa estrada bem
demarcada e só desvia quando se afasta de um caminho já
traçado.
E, naturalmente, quem é excluído da vida pública como se
fosse indigno dela será demonizado, repelido do império do
bem e condenado às águas turvas e lamacentas de onde
vêm as ideias repulsivas – até chamadas de sulfurosas, pois
têm o odor do diabo. “Os impérios totalitários
desapareceram com seus processos sangrentos, mas o
espírito do processo permaneceu como herança, e é ele que
acerta as contas”, escreveu Milan Kundera em 1993 em Os
testamentos traídos. [ 1 ] Algo restou da “mentalidade
totalitária” [ 2 ] que reinou durante o “século das sombras”, [
3 ] para citar desta vez Jean-François Revel. Não é que os
processos por bruxaria tenham desaparecido, apenas se
modernizaram. Mesmo o mais irrepreensível dos filósofos
poderá ser alvo de uma campanha de difamação, quando
suspeito de não se conformar ao pensamento correto
segundo os militantes que se fazem seus guardiães e estão
decididos a nada ceder do terreno que imaginam lhes
pertencer. Por mais que acreditemos que o “debate público
deve obedecer às regras da controvérsia respeitosa e da
confrontação rigorosa dos argumentos”, [ 4 ] essa aspiração,
não só nobre como natural, parece corresponder cada vez
menos à maneira como se desenrolam as discórdias
públicas atuais. “Ora, não há debate intelectual onde já não
se trata de desenredar o verdadeiro do falso, mas de
denunciar o mal.” [ 5 ] A vida pública se desenrola sob a
vigilância cada vez mais agressiva de “sectários modernos” [
6 ] que põem em cena sua indignação a fim de multiplicar as
proibições ideológicas. É a nova conjuração de devotos.
Quem se permite enfrentá-los corre o risco de pagar um alto
preço. O linchamento midiático está em voga e
praticamente se banalizou no universo das redes sociais,
onde se impõe a lei do buzz e do clash. Quando
pensávamos que a tentação da censura havia sido vencida
para sempre, ei-la de volta. Homens e mulheres têm cada
vez mais a impressão de vestir um espartilho mental que
sufoca o pensamento. A democracia liberal parece ter-se
tornado alheia a si mesma e facções ideológicas
radicalizadas são capazes de se apoderar do espírito público
ou, ao menos, de submetê-lo a suas obsessões. É o que
chamamos de politicamente correto.
É claro, todos os políticos, sejam quais forem seus
respectivos partidos, tendem a se queixar da mídia, e cada
um deles se sente desfavorecido quando o faz. Em outras
palavras, cada um deles passará por maus momentos. A
vida pública tem altos e baixos para todos os que nela se
aventuram. No entanto, ao contrário daquilo em que
queremos acreditar, nem todos são vítimas na mesma
medida do politicamente correto, cujos mecanismos não se
desencadeiam arbitrariamente. Denunciado com frequência,
descrito por vezes, o politicamente correto raramente é
analisado. Isso é o que me proponho a fazer nesta obra,
interessando-me mais amplamente pelos códigos da
respeitabilidade que estruturam a vida político-midiática.
Isso porque, embora em teoria a democracia repouse na
valorização de um debate público do qual cada um é
convidado a participar e não pretenda pré-julgar as escolhas
coletivas que ela torna possíveis, concretamente ela se dá o
direito de excluir da conversa pública os que percebe como
inimigos. A pergunta suscitada, então, é a seguinte: quem
são os inimigos da democracia? E dessa pergunta deriva
outra: o que é a democracia? Segundo a definição que dela
se dá ou que acaba predominando, algumas possibilidades
surgem, outras se apagam. Uma coisa é certa: o espaço
público não é axiologicamente neutro. Desdobra-se a partir
de um regime político ancorado em sua própria
antropologia, articulado a sua própria filosofia. Nenhum
regime é absolutamente fiel ao princípio de legitimidade
instituído por ele. Sendo assim, propicia um espaço em que
várias interpretações possíveis desse princípio se
desdobram. É nesse espaço que se enfrentam os partidos,
os movimentos e os intelectuais. No entanto, os que não se
reconhecem nesse espaço e no princípio instituído por ele
se põem fora do jogo. Desqualificam-se do ponto de vista do
conjunto dos atores que aceitam o regime e dele extraem
vantagens. Embora sejam formalmente autorizados a
participar da vida pública, serão retratados como
extremistas, como párias, ainda que eles próprios se vejam
como dissidentes e proclamem sua boa-fé democrática. E,
sobretudo, serão relegados às margens e condenados a
uma existência periférica entre os pestilentos.
Em uma sociedade que se diz pluralista, nunca é fácil
identificar de uma vez por todas a ideologia dominante,
contestada, por definição, por todos os que gostariam de
substituí-la. Aliás, ela faz com que suas contradições
internas sejam assimiladas a divisões significativas, através
das quais os homens podem se enfrentar quanto ao futuro
da comunidade política. No entanto, isso não tem nada de
impossível. Ainda que o sistema político nem sempre seja
explicitamente reivindicado, ele revela seu substrato
normativo pela maneira como mapeia o espaço público,
como nomeia as forças que nele se desdobram e define as
questões a partir das quais os atores políticos e sociais
devem se posicionar. Quais posições são centrais e quais
são periféricas no âmbito da conversa pública? Conhecemos
o jogo habitual dos rótulos – esquerda, direita, extrema-
esquerda, extrema-direita, defensores da identidade,
defensores da diversidade: eles não servem apenas para
descrever as posições políticas, mas também para situar os
partidos e as famílias ideológicas no eixo da respeitabilidade
midiática. Quer um partido escolha livremente o rótulo que
o definirá, quer esse rótulo lhe seja imposto do exterior,
apesar dele e contra ele, de pronto se compreenderá seu
lugar no sistema político: ele é bem-vindo, ou é meramente
tolerado, quando não é rejeitado às claras. Não se pode
subestimar, naturalmente, quão importante é ser admitido
na conversa pública. Da mesma maneira, de acordo com o
tipo de especialista convidado a comentar este ou aquele
problema de sociedade na mídia, é determinada visão do
mundo que se expressa e se desenvolve. Em outras
palavras, o sistema midiático é indissociável do regime, no
sentido amplo. É um de seus componentes essenciais.
A mídia distribui os papéis entre os heróis e os vilões,
escolhe seus campeões, designa os que deverão sofrer de
má reputação, distingue os políticos socialmente aceitáveis
dos que não o são, os filósofos eminentes e os polemistas
de categoria inferior, os intelectuais que inspiram confiança
e aqueles cujas ideias são rançosas. Quem é respeitável e
quem não é? O que distingue um moderado de um radical,
uma pessoa socialmente aceitável de uma inaceitável? Em
quais condições alguém se torna controvertido, até muito
controvertido, ou mesmo sulfuroso? De que devemos falar
se quisermos ter boa reputação e de que assuntos devemos
fugir se quisermos evitar a má reputação? Quais temas
podem ser abordados nos debates coletivos? E,
principalmente, quais assuntos devem ser deixados de
lado? Que posição é preciso adotar para evitar as
tempestades midiáticas e outras polêmicas que, de uma só
vez, podem manchar, minar e até destruir uma reputação?
Que perigo se deve temer? O que alguém deve manter à
distância para salvaguardar sua reputação? Quem pode ser
citado e sobre qual amizade se deve calar? Essas são
perguntas formuladas em tempos políticos banais, mas
radicalizam-se quando a história volta a ser turbulenta. As
divisões políticas consagradas são perturbadas, novos
desafios aparecem, novas forças políticas deles se
apoderam e vêm à tona, novas vozes se fazem ouvir entre
os intelectuais, a fim de pôr em questão as representações
dominantes da sociedade. É um novo mundo que surge,
sejam quais forem os temas: a imigração em massa, a
grande defasagem entre metrópole e interior, as principais
mutações antropológicas – que provocam uma redefinição
das categorias mais profundamente ancoradas na natureza
humana como o masculino e o feminino –, a fragmentação
de todas as categorias identitárias ou as novas
possibilidades abertas pelas biotecnologias. A conversa
pública já não tem nada de pacato. Instaura-se uma lógica
da polarização. A querela do regime se insere no contexto
mais amplo de uma mutação civilizacional. Não pretendo
realizar aqui um estudo exaustivo do tratamento midiático
de todas as questões políticas, mas descrever e
compreender os mecanismos que regulam o que é bem
visto chamar de conversa democrática. “Aquilo que
acontecerá num lugar acontecerá em todos”, [ 7 ] escreveu
Czesław Miłosz. Selecionarei para isso exemplos que me
parecem particularmente eloquentes de ambos os lados do
Atlântico, até porque o politicamente correto neles se
desdobra com o mesmo vigor, embora nem sempre pelos
mesmos caminhos, e ainda que haja mais resistência por
parte de uns do que de outros. Com frequência se
encontrarão, ao longo da obra, certos escritores que, no
século passado, meditaram sobre a experiência totalitária.
Czesław Miłosz, Arthur Koestler e George Orwell,
especialmente, tentaram cada qual compreender de que
maneira um regime ideocrático, cuja pretensão é submeter
o mundo a uma ideia exclusiva, supostamente capaz de
libertar do mal, engendra uma dissociação da existência
que perturba as próprias condições da vida intelectual e,
mais ainda, que perturba nossa relação com o real. Por mais
estranho que isso possa parecer às nossas sociedades,
convencidas de darem admirável prosseguimento à história
da democracia liberal, elas com frequência são
reconhecíveis na obra desses escritores, como se os
esquemas de pensamento que estruturavam o imaginário
progressista do século XX se houvessem metamorfoseado e
voltassem a se desenvolver segundo os parâmetros daquilo
que denomino regime diversitário.
No primeiro capítulo, analisarei a concepção da
democracia que impulsiona o regime diversitário e, no
segundo, darei atenção aos códigos do politicamente
correto, mais amplamente, à maneira como o regime
diversitário pretende reajustar os termos do debate público
para conter o questionamento a seu respeito, um
questionamento cada vez mais vivo no interior de uma
sociedade que está longe de estar convencida de viver no
melhor dos mundos possíveis. O terceiro capítulo será
dedicado à divisão esquerda-direita que estrutura, de modo
global, a conversa pública, enquanto o quarto analisará a
relação entre democracia e populismo. O quinto capítulo
tratará da questão da liberdade de expressão na sociedade
diversitária, que tende a questioná-la, sob o pretexto de que
não se poderia concedê-la aos grupos historicamente
dominantes, que dela se serviriam para subjugar os grupos
julgados subordinados. O sexto capítulo tratará da
criminalização da nostalgia, quando surge o sentimento do
fim de um mundo e quando isso é acompanhado de certo
pesar. O sétimo se debruçará sobre a questão do
conservadorismo, aqui concebido não tanto como uma
doutrina militante, e sim à maneira de uma filosofia política
que pretende refundar os termos do debate público. Para
concluir, voltarei à necessidade de divisões políticas
criativas na democracia.
Em outras palavras, neste livro, que dá continuidade a
minhas duas obras anteriores, pretendo refletir sobre a
radicalização do regime diversitário diante do
questionamento a seu respeito. [ 8 ] A polêmica da
legitimidade está reaberta.
Capítulo 1 | A democracia como pedagogia
progressista
 
 
 
 
 
 
 
Toda política, mesmo a mais grosseira, pressupõe uma ideia do
homem, pois trata-se de dispor dele, de servir-se dele, e mesmo de
servi-lo. Quer se trate de partidos, de regimes ou de homens de Estado,
talvez fosse instrutivo buscar depreender de suas táticas ou de seus
atos as ideias do homem que eles conceberam ou concebem.
Paul Valéry
 
Será que ainda é possível debater? – perguntam com
frequência os democratas de boa-fé, que sentem
claramente que essa resposta deixou de ser óbvia. Não que
o debate público se desenrole sem que se enfrentem
campos contraditórios, progressistas e conservadores,
federalistas e soberanistas, europeístas e eurocéticos – e
poderíamos multiplicar as categorias do mesmo gênero.
Oficialmente, o pluralismo político e intelectual é respeitado,
e mesmo incentivado. O advento dos canais de informação
continua a favorecer, aliás, uma cultura do debate, que não
raro descamba para a cultura do confronto, o que pode
fazer acreditar, à primeira vista, que nunca antes as nossas
sociedades se envolveram tanto na deliberação pública,
chegando a praticá-la de maneira mais que vigorosa. No
entanto, esse pluralismo político de fachada mascara cada
vez menos uma homogeneidade ideológica de fundo, em
que com frequência os grandes partidos se mostram
intercambiáveis, contentando-se com discordâncias
circunstanciais. Embora exista uma pluralidade de pontos
de vista possíveis no interior de uma sociedade, estes se
desdobram a partir de uma ortodoxia previamente
estabelecida – e seria também possível falar de um núcleo
ideológico do regime. Aquele que determina os códigos da
respeitabilidade que estruturam o espaço público e decide
quais são as grandes proibições que fundamentam esse
espaço, sendo dotado, além disso, do poder de expelir
quem não os respeita é quem exerce a hegemonia
ideológica. Aliás, quem reúne os cidadãos para debater
sobre seu futuro costuma se dar ao trabalho de enquadrar o
debate de maneira tal que nele se revelem muitas
proibições ideológicas, implícitas na maior parte do tempo,
mas subitamente visíveis. Existem zonas às quais não se
deve ir, assuntos escorregadios, temas tabus. Isto é algo de
que nos esquecemos com facilidade, mas um debate se
caracteriza em grande medida pelos assuntos que não
serão abordados. Algumas questões são consideradas
definitivamente resolvidas.
No entanto, quando o espaço público parece divergir
demais das preocupações populares, a confiança no sistema
político-midiático se desgasta e o ceticismo toma seu lugar,
quando não a repulsa. Esse é o ponto a que chegamos. Nos
últimos cinquenta anos, aproximadamente, na maioria das
sociedades ocidentais, o sistema midiático pouco a pouco
transformou a conversa em monólogo progressista. Essa
tendência se radicalizou desde o início dos anos 1990, com
a entrada na era da civilização globalizada e diversitária.
Em razão disso, parcelas cada vez mais numerosas da
população se sentem excluídas do debate público. Não raro
elas se identificam com o povo e denunciam o advento de
uma oligarquia. Ou, ao menos, criticam as elites, acusadas
de viver numa bolha, separadas do comum dos mortais e
pouco inclinadas a se misturar com eles. A tentação natural
dos que se sentem repelidos da vida política e do discurso
público é enxergar nisso uma negação da democracia: o
que é uma democracia que seleciona com antecedência as
opções políticas que poderão ser debatidas publicamente,
que confere certificados de respeitabilidade a alguns e
multas morais a outros, além de proibir certos assuntos
sensíveis? O curioso se pergunta: o povo não é,
supostamente, o soberano? E acrescenta: será que não
tenho o direito de dar minha opinião sobre o andamento do
mundo sem ser logo julgado ou insultado? E insiste: por que
não poderíamos discordar? O que ele ignora, porém, é que
nos meios que fabricam a opinião e estabelecem os termos
da deliberação pública, o sentido atribuído à palavra
democracia modificou-se consideravelmente. Referimo-nos
aqui às elites intelectuais e midiáticas que dispõem de um
monopólio praticamente total sobre a grande narrativa
coletiva e sobre os parâmetros que a definem.
A DEMOCRACIA CONVERTIDA À UTOPIA DIVERSITÁRIA

A história da democracia é permeada por uma


controvérsia relativa a sua definição. Entre os que a veem
como um regime fundado no princípio da soberania popular
e no respeito às liberdades públicas e os que, na linhagem
de Tocqueville, mas também na de Touraine, veem-na como
um processo histórico destinado a conduzir à plena
realização da civilização igualitária, existem ao menos duas
maneiras diferentes de abordá-la, acompanhadas de
consequências políticas distintas. A primeira definição
parece hoje caída em desuso. Nos meios intelectuais, são
raros os que se declaram por ela abertamente; é como se
ela contivesse algo de primitivo, atrasado, empoeirado.
Ainda existe, mas à maneira de um resíduo simbólico na
consciência coletiva. Os que buscam reativá-la são
apresentados como populistas. A segunda predomina e
afirma sua adesão ao progressismo, como se este último
houvesse logrado anexar essa definição a si mesmo, e
assim seus destinos fossem agora indissociáveis. [ 9 ] A partir
de agora, a democracia contemporânea se julga inseparável
do desdobramento da empreitada diversitária, que se
apresenta como sua única tradução possível. A diversidade
apresentada como uma riqueza é o “grande ponto
inquestionável do momento”. [ 10 ] Duvidar dele é um
pecado. Tomando de empréstimo o vocabulário clássico da
teoria política, a democracia se apresenta como um regime
que deve possibilitar o desdobramento de um processo
histórico irrefreável de reconhecimento das categorias
sociais ou identitárias “discriminadas” que aparecem na
vida pública e fazem valer seu direito à igualdade. O
sistema midiático apresenta favoravelmente as
reivindicações que brandem o estandarte vitimista,
inserindo-as na dinâmica dos direitos humanos. Esse regime
não é isento de finalidades: da dissolução das nações à
abolição das fronteiras, da desconstrução dos
pertencimentos tradicionais à indiferenciação entre os
sexos, da desencarnação do pai e da mãe à sua
transformação em figura parental 1 e figura parental 2,
intercambiáveis, ele esboça um programa que é o de uma
mudança de civilização. O povo se torna uma população a
ser tratada de modo terapêutico, em uma “pretensão de
modificar os comportamentos privados dos homens, de
reeducá-los, de certa forma, a fim de torná-los mais
evoluídos”, observa Guillaume Perrault. [ 11 ] Aí se verá a
nova grande transformação, a passagem do homogêneo ao
heterogêneo, da identidade à diversidade, da nação ao
multiculturalismo: de um mundo, passa-se a outro. Essa
mudança de civilização é concebida não só como
aprofundamento, mas também como plena realização de
um processo diversitário que não poderia parar sem se
voltar contra si próprio. [ 12 ] Todos os países são arrastados
por essa dinâmica, ainda que ela não esteja igualmente
avançada em toda parte. É que uns são mais fervorosos que
outros.
Sob certos aspectos, a modernidade se desdobra como
um processo irresistível que desconstrói, etapa por etapa,
todas as grandes formas antropológicas e históricas e
veicula um programa de emancipação chamado a traduzir
integralmente o real em suas próprias categorias. A filosofia
da desconstrução, desse ponto de vista, é provavelmente a
que está conectada de maneira mais íntima ao núcleo
existencial da modernidade, visto que vem desqualificar
toda forma de pertencimento histórico ou natural. O homem
é intimado a se tornar um nômade: sua única liberdade
seria a de despojar-se de seus pertencimentos e lançar-se
no vasto mundo. As grandes metrópoles ocidentais são
dominadas por esse império da hibridez: nelas se pode ser
tudo e qualquer coisa sem jamais ser coisa alguma de modo
definitivo. [ 13 ] É uma nova figura da emancipação que se
impõe, sob o signo de uma transgressão militante e sempre
impelida a uma distância cada vez maior das formas
culturais tradicionais, julgadas retrógradas e dominadas por
esquemas mentais estreitos, que reprimem a livre
expressão da subjetividade, a qual deveria hoje afirmar-se
na mais completa ruptura dos códigos culturais e
simbólicos. A fantasia do autoengendramento que se aloja
no âmago da modernidade parece materializar-se nos
tempos atuais por meio das possibilidades criadas tanto
pelo direito como pela ciência. Impõe-se o ideal de uma
fluidez identitária hostil a toda forma de pertencimento
instituído. No entanto, talvez essa reivindicada fluidez nada
mais seja, no fim das contas, do que a subjetividade flácida
e neurótica de um indivíduo incapaz da menor constância
existencial e prodigamente manipulável.
Com frequência a direita gerencial tem dificuldade em
levar a sério as especulações ideológicas do progressismo,
vendo-as apenas como divertimentos teóricos ociosos por
parte de intelectuais desconectados do mundo real, alheios
às coisas concretas, isto é, às coisas relativas ao dinheiro.
Não se deveria perder demasiado tempo com adolescentes
exaltados que cedo ou tarde acabarão por aliar-se à
sociedade instituída. Ela aprecia ver a juventude aviltar-se
fazendo a experiência da radicalidade. Essa seria uma boa
escola de criatividade. Os bons esquerdistas viriam a ser os
bons burgueses. No entanto, ela deveria ter em mente a
advertência de Czesław Miłosz, que relembrou, na obra La
pensée captive [O pensamento cativo], que “somente a
burguesia, em sua tolice, acredita que as sutilezas do
pensamento são isentas de efeito. O Partido sabe que os
efeitos são consideráveis. Houve uma época em que a
Revolução nada mais era do que uma sutileza de
pensamento entre um pequeno grupo de teóricos dirigidos
por Lênin, os quais discutiam, na Suíça, em torno de uma
mesa de bar”. Ele afirmaria também: “somente em meados
do século XX os habitantes de muitos países da Europa
foram levados a constatar, em geral de modo desagradável,
que seu destino podia ser diretamente influenciado por
livros de filosofia relativos a assuntos abstrusos e quase
impenetráveis”. [ 14 ] Em outras palavras, é preciso levar a
sério as extravagâncias teóricas de que se ocupam os
seminários acadêmicos, e mais particularmente as que vêm
dos Estados Unidos. [ 15 ] As especulações ideológicas do
progressismo diversitário podem mudar o mundo. François
Furet, no início dos anos 1990, havia notado o surgimento
do politicamente correto na universidade estadunidense, “a
última, no cronograma, das utopias de regeneração da
humanidade”. Observava, no entanto, que ela estava em
posição de poder, e mesmo de crescimento. “A ideologia PC
é filha da geração dos anos 1960, hoje instalada nos postos
de responsabilidade, e não apenas nas universidades: o que
lhe confere uma caixa de ressonância.” [ 16 ] As mais radicais
teorias oriundas das ciências sociais acabam por permear a
realidade política e social.
O sistema do entretenimento, em suas grandes missas
midiáticas, não para de pôr em cena as novas figuras
incumbidas de encarnar essa mutação antropológica. E a
cada vez que uma delas emerge ou, mais exatamente, é
destacada, convém emitir sinais de entusiasmo ostensivo.
Mesmo as causas que parecem mais extravagantes, em
completa discrepância com o senso comum, passam
rapidamente das margens ao centro do espaço público,
como se viu em alguns anos com as lutas associadas à
teoria de gênero, que se tornaram emblemáticas na
América do Norte, [ 17 ] como se representassem a nova
etapa de uma empreitada de desconstrução civilizacional,
para que certas possibilidades historicamente recalcadas
nas margens da cultura e da racionalidade possam libertar-
se e manifestar-se na vida social. As lutas trans tinham a
virtude de romper uma representação “binária” da
humanidade: nos Estados Unidos, houve um envolvimento
apaixonado na causa dos banheiros mistos, e em muitos
países o terceiro sexo foi administrativamente reconhecido.
Essa fragmentação infinita da subjetividade é visível na
sigla LGBTQI+, que parece destinada a estender-se,
mobilizando todos os recursos do alfabeto e amalgamando
realidades com pouca relação entre si. A desconstrução da
identidade sexual se torna, assim, a nova etapa da
desconstrução do privilégio do homem ocidental, e é bem
possível que o antiespecismo seja a próxima – atualmente
se fala em atenuação, relativização e neutralização da
diferença entre os animais humanos e os animais não
humanos. Uma reivindicação que parecia eternamente
destinada a habitar as margens impôs-se como nova matriz
ideológica para a reflexão sobre a identidade sexual. A
figura do queer, neste ponto, é a que melhor encarna essa
modernidade em sua espiral vertiginosa. [ 18 ]
A DEMOCRACIA COMO EXERCÍCIO PEDAGÓGICO

Essa mutação diversitária não se apresenta apenas como


o desdobramento de um ideal que deseja a todo custo
remodelar politicamente o real, mas também como uma
transformação do mundo de base científica. Ao marxismo
científico de ontem corresponde a ciência diversitária de
hoje. Quando isso fica estabelecido, o que se pretende é
que o debate público seja menos contraditório e mais
pedagógico: ele aponta em certa direção, fixa um horizonte,
anuncia de antemão a boa resposta, à qual os cidadãos
esclarecidos devem aliar-se. A partir do progresso concebido
como revelação chamada a desdobrar suas consequências
na história, o progressismo diversitário se engaja na
comunidade política. Essa revelação é um saber. Se uma
grande parcela da população tarda em aliar-se à sua visão
das coisas, como ocorre com frequência, é porque o campo
progressista não a explicou o suficiente. Cumpre a este
último, portanto, conduzir uma melhor comunicação. Os que
se opõem a esse campo não o compreendem, caso
contrário se aliariam a ele, ou então não têm interesse nele,
o que os transforma em defensores de privilégios a serem
derrubados. Os piores são, evidentemente, os que
compreendem a mensagem progressista, mas recusam-na:
estes passam então à categoria dos inimigos do gênero
humano. [ 19 ]
De modo geral, as causas militantes que alimentam o
aprofundamento da dinâmica diversitária são celebradas e
apresentadas como avanços coletivos. Essas questões
deverão tomar todo o espaço e permitir que os partidos e os
movimentos sejam situados no mapa político. A questão não
é nova, ela atravessa a história do século XX e, talvez, até a
história da modernidade, mas ressurge atualmente de modo
um tanto radical: como é possível que obsessões
ideológicas de um movimento marginal, talvez até
destituído de relevância, cheguem assim a ocupar tamanho
espaço midiático e político? Acrescente-se: como é possível
que a passagem das margens radicais ao centro
institucional de nossa sociedade se realize tão
rapidamente? A teoria das minorias ativas não é nova.
Thierry Wolton já havia destacado que Lênin desenvolvera
uma estratégia particularmente eficaz para dominar o
debate e instrumentalizá-lo em seu próprio favor. Ele havia
compreendido que, para compensar sua posição
tremendamente minoritária no movimento socialista, tinha
de se distinguir por uma radicalidade ostensiva e um estilo
histriônico – e ambos lhe convinham bem. Foi capaz, assim,
de definir os termos do debate público e se posicionar no
centro do jogo: era ele quem definia a questão política a
partir da qual cada um devia se posicionar. Sem levar longe
demais a analogia histórica, a semelhança com a estratégia
da esquerda radical é impressionante: embora ela seja
incontestavelmente minoritária nas urnas, exerce uma
influência real no debate público, condicionando-o e, por
vezes, dominando-o. São em geral movimentos muito
radicais ou universitários militantes que promovem tais
temas, mas estes só se tornam obrigatórios porque se
beneficiam, depois, de um aval midiático que os arremessa
ao centro da vida pública. Seus militantes são convidados
para os debates, mimados e, além disso, tratados como
especialistas, quer provenham das associações, quer da
universidade, embora a sociologia em particular e as
ciências sociais em geral tenham adotado há muito tempo
uma concepção militante de seu próprio trabalho. É na
medida em que uma causa chega a apresentar-se como
tradução necessária do ideal diversitário que contará com
uma apresentação favorável na mídia e que, cedo ou tarde,
os políticos terão de se apropriar dela, a menos que aceitem
ser desclassificados, considerados ultrapassados ou
marginalizados. De modo mais geral, as reivindicações
radicais dos grupos minoritários são normalizadas pelo
direito ou pela publicidade, e mesmo pela administração
pública, como vimos com o governo canadense, que
solicitou aos servidores que deixassem de se dirigir aos
cidadãos com os termos “senhor”, “senhora”, visto que
poderiam melindrar alguém cuja identidade de gênero não
equivalesse a sua identidade sexual – acima de tudo, era
imprescindível não generificar [ 20 ] ninguém [ 21 ]
erroneamente.
A promoção do ideal diversitário justifica um assédio
midiático permanente, a fim de levar as populações a se
converterem a ele e de identificar os que resistem aos seus
encantos. Chega a ser necessário afrontar o senso comum,
desestabilizá-lo e fazê-lo perder todo valor de evidência,
para que sobreviva apenas como estereótipos a serem
descartados e preconceitos a serem desconstruídos – o que
permitirá desmascarar os que a eles se apegam de maneira
exagerada. É aquilo a que se chamará, pudicamente,
campanha em prol da evolução das mentalidades. Isso é o
que se constata com a questão do véu islâmico, cada vez
mais destacado na publicidade privada ou governamental.
Existe aí uma forma de provocação reiterada, que consiste
em impor, no espaço público, um símbolo identitário que
choque os costumes comuns e em denunciar vivamente, ao
mesmo tempo, os que o notam e não fingem que ele já está
normalizado. A cada vez, o que se impõe é uma grande
etapa na sensibilização das consciências à diversidade. Tudo
o que, de certa maneira, pode conter o processo diversitário
é chamado a sofrer o descrédito no espaço público e a
sobreviver apenas como uma lembrança detestável, como
se se tratasse de uma etapa superada e relegada de uma
vez por todas ao passado. Espera-se que uma campanha de
depuração midiática permanente sirva para limpar o espaço
público dos traços do mundo pretérito e dos que a ele se
apegam. Aqueles que não seguirem o ritmo serão
condenados cedo ou tarde ao descrédito cívico e tornar-se-
ão proscritos. Nada poderia resistir ao movimento da
modernidade, que sem cessar rechaça do espaço do
politicamente concebível tudo o que lhe é estranho, aí
enxergando apenas resíduos históricos, como se a
passagem do tempo devesse haver permitido que já
estivessem dissolvidos de uma vez por todas. Uma fórmula
ritualística da linguagem midiática dá testemunho dessa
mentalidade: quando se perguntou ao primeiro-ministro
canadense Justin Trudeau, no dia seguinte às eleições
federais que o levaram ao poder, por que considerava
importante formar um governo paritário, ele respondeu
assim: “porque estamos em 2015”. O argumento do
calendário faz as vezes de argumento categórico. Ele tem
outra variante, invertida, quando se faz a pergunta sobre
como esta ou aquela prática cultural, decretada retrógrada,
ainda é possível em nossos dias, como se a simples
passagem do tempo a houvesse condenado. Assim, julga-se
esta ou aquela instituição ultrapassada, sem que se
especifique exatamente por quê. Na segunda metade do
século XX, toda uma sociologia – representada em especial
por Daniel Bell – se interessou pelas relações entre a
modernidade e as práticas culturais que lhe eram anteriores
e moderavam seu desdobramento. [ 22 ] No entanto, tal
sociologia trata esse fundo cultural como resíduo de um
mundo antigo chamado um dia a desaparecer por completo,
não como permanências antropológicas a serem
retraduzidas em nossa época, em função das características
próprias desta última. Um dia, esse fundo será
completamente dissipado e a modernidade poderá então
funcionar segundo sua própria lógica, sem entraves. Um
dia, os restos esparsos do mundo pré-moderno só terão seu
lugar no interior de um museu, e serão ladeados de placas
explicativas. As pessoas se perguntarão como os homens e
as mulheres dos tempos antigos conseguiam viver nele.
A história do politicamente correto tarda a ser escrita;
com frequência ele é denunciado, mas poucas vezes
alguém se dá ao trabalho de defini-lo. Esta é a definição que
propomos aqui: o politicamente correto é um dispositivo
inibidor cuja vocação é sufocar, reprimir ou demonizar as
críticas ao regime diversitário e à herança dos Radical
Sixties e, mais amplamente, excluir do espaço público todos
os que porventura transgridam essa proibição. Ele garante
uma narrativa midiática conforme às exigências do regime
diversitário, que permite tanto ocultar as áreas do real que
tendem a desdizer suas promessas como desqualificar os
atores políticos e intelectuais que manifestam implícita ou
explicitamente seu desacordo com ele. Reivindica não
apenas o monopólio do bem, mas leva a coisa ainda mais
longe, reivindicando, além disso, o monopólio da saúde
mental, ao assimilar as resistências que suscita ao universo
da fobia. Da xenofobia à islamofobia, à homofobia, à
transfobia – e poderíamos acrescentar outras fobias à lista
–, compreende-se que toda forma de apego pronunciado ao
que é visto como o mundo do passado pertence, a partir de
agora, ao âmbito da desordem psíquica. Torna-se assim
possível realizar uma campanha associada à saúde pública,
a fim de sanear as mentalidades, para reformá-las, reeducá-
las. A tradução quase automática das discordâncias em
relação às inovações societais [ 23 ] na linguagem da fobia
tende a se acelerar. A psiquiatrização da dissidência não
deixa de evocar a gestão do desacordo político nas
democracias populares do século XX. Quem não está na
plena posse de suas faculdades mentais e é corroído por
uma obsessão neurótica evidentemente não tem lugar no
âmbito público – pois viria contaminar o debate político com
sua irracionalidade tóxica. Politicamente falando, o
conservadorismo é expulso do âmbito da racionalidade, e
todo aquele que não tamborila jovialmente com a orquestra
do progresso diversitário será classificado entre os
suspeitos. As categorias populares, que com frequência vão
devagar e podem até se tornar zombeteiras diante dos
novos ídolos midiáticos serão abertamente desprezadas. O
mau gosto não se perdoa, pois predisporia àquela forma
suprema de incivilidade que consiste em votar mal.
No entanto, o politicamente correto não tem apenas a
função de inibir a expressão, na vida pública, do desacordo
com a época, fazendo com que os eventuais culpados
compreendam que pagarão por isso com sua reputação e
serão condenados à inexistência pública. Não se contenta
com uma adesão morna, moderada, pontuada de reservas
ou matizes – a única coisa que se pode reprovar à ortodoxia
diversitária é que não vá longe o suficiente, que seja ainda
demasiado conservadora. Não apenas o ceticismo aberto é
denunciado, mesmo o silêncio se torna suspeito, pois quem
não participa das sessões de entusiasmo obrigatório emite
um sinal discreto, mas preocupante, de dissidência,
deixando transparecer inconfessáveis reservas quanto ao
espírito da época. De fato, o que o regime diversitário exige
são as marcas explícitas da adesão, como garantias de
submissão ao novo mundo. Não aceita que alguém se
contente em aceitá-lo. É preciso celebrá-lo. A modernidade
não aceita que a aceitemos. Exige que a incensemos. Exige,
acima de tudo, que cada um lhe entregue sua alma,
deixando-se arrastar por seu movimento sem jamais
agarrar-se aos velhos galhos do passado. É inadmissível
contentar-se com a situação conquistada, a situação
presente, pois sempre haverá muito caminho pela frente,
como se costuma repetir de modo ritual, por exemplo,
quando se trata da representação das minorias. É o que Élie
Halévy denominou “a organização do entusiasmo”. Cumpre
maravilhar-se com os achados ideológicos do regime e
aplaudir cada inovação societal. Philippe Muray havia
compreendido bem o modo como, ao retomar sem descanso
o “festivismo”, a modernidade põe continuamente em cena
sua autocelebração, fazendo da festa uma guerra contra o
passado para a qual todos foram alistados. Quem não
participa da festa e não sabe dar testemunho de seu
espírito festivo assume o rosto do inimigo. É um vil
reacionário. [ 24 ]
PSICOLOGIA DA NEGAÇÃO DO REAL EM REGIME DIVERSITÁRIO

As mídias de massa, a partir da segunda metade do


século XX, adquiriram um poder de condicionamento da
população absolutamente único na história, em particular o
de modelar as representações e as mentalidades coletivas e
construir o real visível ao comum dos mortais – trata-se,
precisamente, de um poder de encenação da existência,
que pretende, com o tempo, substituir o próprio real pela
criação da única realidade autorizada. E, no entanto, mil
indícios dão a entender que, embora o regime diversitário
prossiga seu empreendimento de grande transformação
social, é cada vez menor o número dos que se reconhecem
em sua narrativa encantada. Entre o real e sua
representação, a distância não para de crescer. A
globalização feliz não parece sê-lo tanto quanto se afirma, a
diversidade nem sempre se apresenta como uma riqueza e
o Outro ao qual devemos nos abrir a qualquer custo nem
sempre é destituído de hostilidade. As identidades fluidas
não passam, no fim das contas, de subjetividades frouxas, e
a grande promessa de uma humanidade não só móvel,
como migrante, traduz-se concretamente por uma
existência desenraizada. Grandes parcelas da população
reprovam o sistema midiático de modo mais ou menos
explícito, por seu viés ideológico, militante e tendencioso,
como se entre o real e sua representação só restasse uma
correspondência longínqua, quando não uma contradição
direta. “Tudo isso dá uma impressão de sonho e irrealidade;
os jornais parecem falar de um universo diferente, sem
nenhum contato com nossa vida cotidiana.” [ 25 ] Essas
palavras de Arthur Koestler sobre os jornais nas
democracias populares parecem aplicar-se diretamente à
democracia diversitária. Élisabeth Lévy faz com que
ressoem ao escrever: “o que obstrui o debate público, mais
do que os processos quanto à pureza ideológica, cuja
repetição amorteceu seu poder de prejudicar, é, portanto, a
recusa obstinada por parte de uma minoria – aquela que,
aliás, tem amplo comando ideológico da grande mídia, da
universidade ou dos corredores do poder – em admitir como
verídica a narrativa que a esmagadora maioria dos cidadãos
faz chegar aos seus ouvidos, aqueles para os quais a
coexistência das culturas não é exatamente um jantar de
gala […]”. [ 26 ] A negação do real não é algo novo,
tampouco a cegueira intelectual. Quanto mais a
representação midiática de uma sociedade se distancia de
sua experiência concreta, a ponto de se voltar contra ela,
mais se acentua um mal-estar político potencialmente
insurrecional. Na segunda metade do século XX, boa parte
do esforço dos intelectuais de esquerda consistiu em
manter a todo custo sua adesão ao socialismo, ainda que
para isso tivessem de multiplicar as contorções mentais a
fim de salvar a qualquer preço uma teoria em falência. Isso
é o que ocorre nos tempos atuais, em especial quando
chega a hora de salvar o multiculturalismo.
Quanto menor a aderência do real à doutrina, mais esta
última deve desautorizá-lo, construindo um mundo paralelo
que desdobra a sociedade existente e tem de eclipsá-la. É
próprio de um regime ideológico radicalizar-se no momento
em que é contestado. Tomando de empréstimo as palavras
de Gil Delannoi, “encontra-se aí o dogmatismo habitual de
todos os reformadores infelizes: se fracassamos, é porque
não agimos com rapidez suficiente, nem com força
suficiente”. [ 27 ] Essa psicologia é a dos devotos que entram
em luta para salvar sua religião. Arthur Koestler buscou
compreender os mecanismos mentais que levam os
intelectuais de esquerda a não ver o que está debaixo dos
seus olhos. Hipnotizados pela promessa revolucionária,
selecionavam os fatos que se apresentavam conforme estes
legitimavam ou entravavam a construção do socialismo.
Koestler deu seu testemunho, aliás, a partir de sua própria
passagem pelas fileiras comunistas e da maneira como
superou suas primeiras dúvidas diante do “choque brutal da
realidade contra a ilusão”. “Eu tinha olhos para ver, e uma
mente condicionada para eliminar o que eles viam.” [ 28 ]
Quanto mais o sistema ideológico ao qual uma pessoa adere
se decompõe, maior para ela é a tentação de salvá-lo
multiplicando as especulações filosóficas, para não perder,
no naufrágio, tudo o que nele investira existencialmente.
Foi talvez tendo em mente uma história semelhante a
essa que, nos últimos anos, um filósofo como Alain
Finkielkraut mencionou muitas vezes Charles Péguy, que
convidava não apenas a dizer o que se via, mas primeiro e
antes de tudo, a ver o que se via. No cerne dos regimes
totalitários existia um sistema de interpretação do mundo
que mais negava o real do que o punha em cena, e cumpria
aderir a ele, sob pena de ser civicamente desqualificado ou,
apenas, considerado um caso psiquiátrico. Cumpria ver
coisas, ainda que não existissem, e recusar-se a ver outras,
bem reais, que comportavam o risco de invalidar a doutrina.
Lembramo-nos de que, nas últimas páginas de 1984, de
George Orwell, o dissidente Winston Smith é finalmente
subjugado pelo Grande Irmão, que consegue fazê-lo admitir
que 2 + 2 = 5. Em outras palavras, Winston Smith, que fez
de tudo para continuar a ver o mundo por si mesmo e
resistir às mentiras, acaba por ceder a ele, oscilando para o
mundo paralelo da ideologia, ao qual é preciso mostrar
submissão, sem tentar verificar sua conformidade com o
real. Coagir um homem a repetir que 2 + 2 = 5 consiste em
esmagá-lo mentalmente, submetendo-o a uma visão do
mundo que obedece apenas ao funcionamento interno da
ideologia. É preciso obrigar o homem à mentira para
estraçalhar seus recursos morais e seus parâmetros
mentais. Ele tem de oscilar para o mundo ideologicamente
desdobrado e reconstruído, e tornar-se incapaz de sair dele.
O domínio absoluto da ideologia sobre o real, de uma
ideologia que, com o tempo, deve substituir o real, é a
característica basilar do totalitarismo. Este último trabalha
incessantemente para recondicionar as consciências, para
remodelá-las. Prosseguindo a análise dessa psicologia em
outro contexto, Philippe Muray escreveu que é “como
negação militante da realidade que o terrorismo PC se
desenvolve e é eficazmente nocivo. É até como suplente
legítimo da realidade, como seu substituto, como seu
herdeiro, que ele exerce seu poder. É no lugar da realidade
e da concretude que ele impõe seu verdadeiro e seu falso,
os quais, a partir daí, já nem precisam ser verificados. Nesse
sentido, pode-se dizer que ele é a polícia política do regime
festivo […]”. [ 29 ] Arthur Koestler chegou a assinalar, muito
corretamente, que “o espírito comunista aperfeiçoou as
técnicas de autoengano, bem como suas técnicas de
propaganda maciça. No pensamento do verdadeiro devoto,
o ‘censor interior’ consuma o trabalho do censor público;
sua autodisciplina é tão tirânica quanto a obediência
imposta pelo regime; ele aterroriza sua própria consciência
e subjuga-a”. [ 30 ] É também o que Czesław Miłosz notava,
ao falar sobre aqueles intelectuais que atuam nas
democracias populares, que tinham de dar ao regime
garantias públicas de fidelidade repetindo seus slogans,
embora no âmbito privado continuassem a criticá-lo. “A
faculdade de adaptar-se à linha política” [ 31 ] passa a ser
uma competência capital para a sobrevivência. No entanto,
a duplicação da consciência acarreta uma forma de
dilaceramento cada vez mais radical da personalidade, que
pode conduzir à esquizofrenia. O homem que está sempre
usando de astúcia com o regime para evitar ser apanhado
pelas correntes do politicamente correto condena-se assim
a uma existência dupla, em que não para de dizer em
público, com alguns matizes, o que depois contradirá com
virulência, no âmbito privado. O destino de um homem
assim é arriar. Arthur Koestler descreveu bem o ambiente
social e psicológico num clima de vigilância generalizada. “A
pressão desse meio parece irresistível. Provoca a mutilação
progressiva do pensamento […] e se acompanha de uma
erosão ainda mais fatal do espírito. Corta o homem de suas
raízes metafísicas; de sua experiência religiosa, do
‘sentimento oceânico’ em todas as suas formas. A
consciência cósmica é substituída pela vigilância social, a
percepção do absoluto, pela acrobacia cerebral. Daí resulta
uma desidratação progressiva da alma, uma penúria
espiritual mais apavorante que a fome.” [ 32 ] O totalitarismo
– essa é a grande lição de Soljenítsin – obriga o homem a
viver numa mentira institucionalizada, que ele vê, mas não
pode nomear, e que ele aprende pouco a pouco a deixar de
ver, a ponto de querer denunciar os que a veem. De fato,
quem expressa publicamente o que vê, quando os outros
cultivam a ficção ideológica prevalente, fragiliza de súbito o
dispositivo dominante. Compreendem-se, a partir daí, os
mecanismos de exclusão dos contraditores do sistema
midiático: aí não se poderia tolerar a presença de um
autêntico dissidente, senão como um pária ou um
saudosista. Existe na verdade um efeito contagiante
possível, pois quem teima em parar de fingir que adere à
ideologia dominante representa um risco: outros poderiam
ser impelidos a entrar em dissidência. Trata-se daquele
poder antiquíssimo que consiste em dizer que o rei está nu.
É bem possível que essas reflexões sobre a
desestruturação psicológica própria do totalitarismo tenham
certo valor para a reflexão sobre o papel do politicamente
correto no âmbito do regime diversitário. Embora não
possamos calcar tolamente a experiência diversitária na
experiência comunista do século XX, não deixa de ser
espantoso constatar a que ponto certos esquemas mentais
se reativam diante do tenso distanciamento entre
sociedades cada vez mais assombradas por sua
desagregação e um discurso midiático dominante que
pretende sempre intensificar a conversão do Ocidente à
civilização diversitária. O homem é assim condenado a viver
numa realidade substitutiva criada pela mídia, à qual ele
deve se referir sem jamais sair de seu âmbito nem jamais
introduzir nela elementos suscetíveis de comprometer sua
coerência ideológica. A negação da realidade assume assim
uma forma dupla: trata-se de negar a crise do regime
diversitário e, mais ainda, de negar que ele lidera uma
mudança civilizacional, expondo à execração pública os que
ousam nomear a amplitude da revolução que ele promete
em suas diferentes dimensões, quer identitárias, quer
antropológicas.
Ao longo dos anos, os exemplos se acumulam. Entre eles,
é assombrosa a negação obstinada e contínua, por meio de
um uso militante, das estatísticas da grande mutação
demográfica ocidental. [ 33 ] O raciocínio assume pouco a
pouco a seguinte forma: a mutação demográfica dos países
ocidentais é uma fantasia cultivada por ideólogos
xenófobos; ao mesmo tempo, porém, ela já ocorreu e é
preciso adaptar-se a ela, pois irá até o fim, até porque
representa uma boa notícia na escala da história. E mais, as
nações ocidentais seriam desde sempre nações de
imigração – nós seríamos todos imigrantes e não haveria
nenhum núcleo demográfico e cultural fundador em
nenhuma delas. Seria ilógico, portanto, preocupar-se com a
imigração maciça, visto que ela teria sido uma constante ao
longo da história. A própria identidade nacional não existiria
de fato, e o passado ao qual se referem os que se mostram
apegados ao romance coletivo seria uma fantasia. [ 34 ] Da
mesma maneira, constatamos que a teoria de gênero, que
se desdobra em toda parte nas sociedades ocidentais, é
negada pelos que a promovem – seus adversários são então
acusados de complô e de paranoia: lutariam contra uma
ameaça imaginária, ainda que, ao mesmo tempo, a
revolução queer não pare de se desenrolar, transformando
em transfóbicos os que expressam reservas a seu respeito.
A negação pode também dizer respeito à insegurança,
reduzida a um sentimento, ao governo dos juízes, que seria
uma ilusão cultivada pelos populistas, ao alcance dos
acordos internacionais, que deveriam imperativamente ser
assinados, mas não seriam de forma alguma coercitivos, e
assim por diante. Não se deve ver aí uma operação de
dissimulação do real conduzida conscientemente, como o
imaginam os que estão convencidos de um complô: trata-se
antes do movimento natural da ideologia de fechar-se cada
vez mais em si mesma, à medida que rompe seus últimos
laços com o real.
E quando o real aparece, tenaz, obstinado e indelével, o
regime diversitário decreta: não aceitaremos o real! Mas o
real não é meramente um discurso, tampouco uma frágil
construção mental. O real também não é uma conspiração
reacionária urdida por militantes malévolos que se
empenham em fazer a humanidade retroceder para antes
dos tempos benditos da revelação diversitária. E assim
como existe uma história da cegueira, existe uma história
da conscientização a respeito das realidades, que leva
intelectuais que até ontem eram devotos a dar testemunho,
com ardor militante, daquilo que acabaram de entender,
como se quisessem transmitir a compreensão a respeito do
sortilégio que os enfeitiçou. Perguntam-se como e,
principalmente, por que, durante tanto tempo, participaram
de um empreendimento de mistificação, quando
acreditavam estar empenhados em desmistificar o poder.
Chega a hora em que o feitiço se rompe. Eles já não querem
acreditar nas verdades oficiais do regime diversitário, que
se apresentam sob o signo do rigor científico. Já não querem
ver o mundo como alguns pretendem forçá-los a vê-lo.
Querem, então, expressá-lo, o que lhes causará
verdadeiros problemas.
Capítulo 2 | 1984 é agora
 
A refundação diversitária do espaço público
 
 
 
 
 
 
Não sei se ele é ridículo, mas sei que é preciso fazê-lo passar por
ridículo. Viste como me conduzo no fórum? Nunca lhe respondo, nunca
o refuto. Sempre afirmo que ele é ridículo. Deve ser compreendido de
uma vez por todas que nada do que ele pensa, faz ou diz tem
importância.
Acílio, a respeito de Catão, em La guerre civile, de Montherlant
 
O que incomoda na domesticação do governo por um jornalismo
episcopal, além da incultura dos que dão ordens e conselhos (o
seminário tinha algo de bom), é a imunidade de um poder sem contra-
poder, protegido de toda punição eleitoral.
Régis Debray
 
Com frequência, depois de um grande revés político que
traumatiza seus partidários e revela a fragilidade de suas
bases populares, o regime diversitário teoriza sua derrota
imaginando que não fez o suficiente para promover sua
visão do bem. Se tivesse sido capaz de promover melhor as
virtudes da diversidade, fazendo raiar em sua plenitude as
boas intenções que a animam, o comum dos mortais teria
compreendido o sentido da história. Quer-se acreditar que,
se a mídia houvesse realizado melhor seu trabalho
pedagógico, o povo não teria tido o despudor de votar mal.
Isso é esquecer aquela observação já antiga de Philippe
Muray, de que “nunca é apesar dos artistas, ou porque
estes não fizeram o suficiente nos terrenos industriais
baldios onde há tanto tempo gesticulam e exibem sua
miséria arrogante, mas justamente pelo fato de já terem
feito demais que o voto horroroso se multiplica”. [ 35 ] Vamos
traduzir muito concretamente: é provável que não haja
nada melhor do que um concerto antiTrump para gerar
novos trumpistas.
Donald Trump é provavelmente o primeiro a ter
consciência disso, pois soube tirar proveito da hostilidade
que o sistema midiático expressou contra ele,
apresentando-se como o defensor do comum dos mortais,
desprezado pelas elites intelectuais e midiáticas. [ 36 ] A
guerra contra o partido midiático agora é aberta, [ 37 ] e não
consiste numa obra exclusiva do presidente americano. A
crítica ao sistema midiático é, na realidade, uma revolta
contra seu monopólio sobre a definição da narrativa coletiva
– e essa crítica vai além daquela relativa ao preconceito
progressista geralmente reconhecido nas emissoras e rádios
públicas. O que se denuncia é o viés da mídia, o que se
ousa questionar são aqueles que formulam as perguntas, e
mesmo o riso pode ser recusado ao humorista de plantão
que faz seu editorial em tom de brincadeira. [ 38 ] A revolta é
contra o fato de que a vida pública seja reservada aos que
se movem no “círculo da razão”, a exasperação é contra o
“bem-pensar estabelecido”, [ 39 ] o processo é contra os
“senhores censores”. [ 40 ]
DEMOCRACIA E REDES SOCIAIS

O mal-estar para com a mídia não é de ontem, mas


condições tecnológicas inéditas favorecem a nova
insurreição popular. Embora o sistema midiático oficial
conserve um poder prescritivo e ainda seja capaz de
modelar a representação aceita em geral na sociedade, já
não existe necessariamente o poder de ocultar ou condenar
ao silêncio político, de maneira automática, os que não
veem o mundo a partir da mesma janelinha. No cerne dessa
mutação se encontra a revolução das mídias sociais, que
transformam os modos de acesso ao espaço público. A fala
popular pode ser expressa em seu centro, sem passar pelo
filtro forçosamente orientado dos que se autoatribuem a
missão de construir a opinião esclarecida. A figura de uma
opinião pública ativa, que se manifesta por si mesma, sem a
mediação das pesquisas encomendadas para modelá-la, é
uma figura relativamente inesperada na democracia. Sob
certos aspectos, veremos aí um retorno da multidão, nem
sempre isenta dos reflexos de linchamento, capaz de se
comportar como uma turba agressiva e buscando, de modo
cíclico, canalizar um tipo de raiva insurrecional sob a forma
de uma indignação exagerada. Em outras palavras, não se
trata de celebrar as mídias sociais em si mesmas como
meios de democratização da fala pública, sem notar que por
vezes elas contribuem para a degenerescência ou o
emprego demagógico dessa fala, ou sem reconhecer que
elas podem ser manipuladas. Trata-se menos ainda de
negar que contribuem para um embrutecimento da fala
pública, que muitos justificam em nome do espontaneísmo
democrático. No entanto, o que importa para nossa
explicação é outro ponto: tornou-se possível, para o povo,
sublevar-se contra a mídia que, tradicionalmente, tinha a
pretensão de falar por ele. O povo das redes sociais faz com
que o sistema midiático apareça não como um contrapoder,
mas como o principal poder na organização mental do
mundo. E mais, no espírito dos que nelas se envolvem
ativamente, as redes sociais não raro se tornam um
contrapoder em relação ao poder midiático, o que, aliás,
leva muitos a quererem regulá-las, para evitar que
desregrem por completo o funcionamento da democracia
oficial. Os próprios gigantes do mundo digital se mostram
favoráveis a essa regulação. O mundo das redes sociais
permite até que correntes de pensamento dissidentes ou
midiaticamente estigmatizadas sejam conhecidas pelo
público sem o rótulo difamatório que eram obrigadas a
carregar. São novas possibilidades de mobilização que se
revelam e chegam a transformar as condições da ação
política. Com as redes sociais, o espaço público se
desacopla do sistema midiático que antes estendia seu
domínio sobre ele. Concretamente, o sistema midiático
oficial perde seu monopólio na criação das narrativas da
coletividade.
Os próprios líderes políticos apostam nesse novo
ambiente tecnológico para transformar sua maneira de
interagir com o eleitorado, e mesmo com a mídia. Quando
se dedicam a isso, são recriminados por boicotarem a mídia
tradicional e se pouparem de seu filtro crítico, para criar
uma relação sem intermediários com seus simpatizantes e,
mais amplamente, com o povo – falar-se-á, no mínimo, de
uma impressão de proximidade. Tal comunicação direta será
reveladora de uma tentação plebiscitária. No entanto, essa
hipótese é um pouco limitada. Isso porque, por trás dessa
adesão à mídia social se pode ver também uma revolta
contra a deformação sistemática da fala política pelo
sistema midiático. Quando os políticos lidam diretamente
com os jornalistas políticos, veem sua fala ser destroçada.
Com frequência só têm direito a alguns segundos e se
arriscam a perder-se em declarações bombásticas, que
serão instrumentalizadas pelos jornalistas para validar sua
própria grade de análise. Sendo assim, reencontram nas
mídias sociais a possibilidade de certa autonomia da fala
política. Já não querem ficar sob o jugo de uma narrativa
que não lhes é própria, tampouco desempenhar um papel
num cenário que lhes é imposto do exterior e no qual seu
personagem é o do vilão. Querem falar sobre si mesmos tal
como se veem. Observa-se aí não tanto a mera vontade, da
parte deles, de contornar a mídia, mas sobretudo a de não
se submeter a um poder em que já não confiam. O
jornalismo político não se emancipou da mitologia do
Watergate, que não o leva a pôr em cena, da maneira mais
objetiva possível, os grandes desafios de uma sociedade,
mas a tirar sistematicamente do esconderijo o golpe ou a
armação por trás do poder. Embora essa transparência
idealizada não seja desprovida de virtudes, conduz a uma
dessacralização integral do poder e já não tolera ser
contestada. Decerto os políticos não merecem crédito
apenas pelo que dizem. Não é garantido, porém, que não se
possa afirmar o mesmo em relação à mídia. O ponto
essencial, contudo, é este: os políticos que, ao se inserirem
no espaço público, apostam não apenas no sistema
midiático tradicional, mas também na mídia social, esperam
assim recuperar o controle de sua própria narrativa.
A GUERRA DA NARRATIVA OU O CONFLITO DAS INTERPRETAÇÕES

As correntes políticas midiaticamente desfavorecidas, ou


que se opõem com clareza num aspecto ou outro ao
discurso midiático dominante, terão também a tendência a
se apoiar na internet para propor outra forma de narrar as
informações disponíveis, e acima de tudo para hierarquizá-
las de outra maneira, o que o fenômeno das newsletters nos
Estados Unidos já anunciava nos anos de 1970 e 1980. [ 41 ]
A revolta contra a mídia é acompanhada de uma vontade
cada vez mais explícita de decifrar o tratamento da
informação que ela propõe, revelando seu subtexto
ideológico. Nestes últimos anos, vimos surgir na rede
numerosos sites que pretendem inserir-se no âmbito da
informação alternativa e põem em cena outra narração dos
desafios sociais, mais conforme, segundo eles, à realidade. [
42 ] Em grande medida, a maioria deles não produz
informação própria, mas pretende hierarquizar a informação
já disponível de maneira distinta, propondo outra leitura da
atualidade a partir de outra visão de mundo – o que
consiste em dizer que o sistema midiático dominante
também tem a sua. Em outras palavras, eles contestam o
monopólio da narrativa legítima da descrição do real
reivindicado pelo sistema midiático. Não raro são associados
à “fachosfera”, o que é intrigante, pois não sabemos
exatamente por que a crítica à narrativa midiática
dominante deveria ser sintomática de um fascismo mais ou
menos confesso. Embora seja ocioso negar a dimensão
militante desse movimento, não seria judicioso inseri-lo na
história do fascismo, exceto caso se queira meramente
desqualificá-lo do ponto de vista moral, e é isso o que se
faz, aliás, quando uma informação é rejeitada sob o
pretexto de ter sido primeiramente veiculada ou destacada
por esses sites. Na medida em que a informação não é
falsa, o fato de que ela provenha desses sites não quer dizer
nada, exceto que não suscitou o interesse da grande mídia
ou foi tratada por esta última como um simples fato do
cotidiano, sem que lhe fosse reconhecido o alcance que
deveria ter. Sem nos determos nesses sites, destacaremos,
no entanto, um aspecto: eles fazem da luta pela narrativa
midiática o terreno central da guerra cultural.
Embora, é claro, devamos desconfiar de toda forma de
teoria do complô e criticar a credulidade desconcertante dos
que levam tão longe o ceticismo diante da mídia dominante
que acabam por conceder tolamente sua confiança a todas
as plataformas midiáticas alternativas, as quais não raro
jogam de modo muitas vezes grosseiro a carta da
dissidência, recusamo-nos a assimilar toda crítica sistêmica
da mídia às fabulações de cunho conspiratório. Aliás, não se
poderia fazer da crítica à mídia uma especialidade de
extremistas. Uma brevíssima história da mídia a partir da
segunda metade do século XX nos mostrará com facilidade
a que ponto algumas das grandes aventuras da imprensa
corresponderam antes de tudo a um desejo de oferecer
outra perspectiva sobre o debate público. Já não se tratava
apenas de pedir à mídia mainstream mais equidade em seu
tratamento de certas questões ou de certas correntes, mas
antes de buscar reestruturar de modo mais global o
mainstream midiático. [ 43 ] É o caso da National Review, nos
Estados Unidos, nos anos 1950, que se tornou o ponto de
aliança e o lugar de definição do movimento conservador
então em formação. Essa revista, que rapidamente
encontrou seu público, foi condenada por muito tempo
pelos títulos da grande imprensa, que só queriam enxergar
nela um panfleto de propaganda. Não lhe perdoavam que
relatasse a atualidade de outra maneira, a partir de
evidências diferentes das do progressismo pós-
rooseveltiano. [ 44 ] Poderíamos dizer o mesmo sobre a
Figaro Magazine da primeira metade dos anos 1980, que foi
ponta de lança de uma contraofensiva ideológica
conservadora que pela primeira vez contestava seriamente
a hegemonia ideológica exercida pela esquerda desde o fim
da Segunda Guerra Mundial, que havia logrado assimilar os
seus oponentes ao colaboracionismo, ao fascismo ou ao
vichyismo. [ 45 ] A Figaro Magazine também sofreu carga
cerrada: não lhe perdoavam que contestasse abertamente e
com tanto sucesso o consenso progressista, isto é, o poder
intelectual da esquerda. [ 46 ]
O domínio da narrativa midiática se tornou, é provável, o
desafio metapolítico central da vida política contemporânea.
Desse ponto de vista, a presença de intelectuais ou
comentadores que não retomam a narrativa diversitária
dominante e propõem outra interpretação dos
acontecimentos causa um problema para o novo regime. A
multiplicação deles na França, nos últimos anos, suscitou
pânico. [ 47 ] Por um lado, é necessário, ao menos de tempos
em tempos, dar a ilusão de um sistema midiático pluralista,
concedendo a palavra a oponentes mais ou menos
confirmados. Por outro, estes últimos devem ser mantidos
numa situação estruturalmente minoritária e ter sempre de
justificar sua presença na vida pública, visto que sua
presença na mídia é sempre questionada, sobretudo quando
ultrapassa as linhas traçadas por outros à sua volta. No
entanto, essa divergência tolerada é perigosa, na medida
em que pode suscitar apoios inesperados e multiplicar as
brechas na vida pública, o que poderia contribuir para a
fragilização do regime diversitário. A legitimidade deles
deve ser contestada: serão apresentados como meros
polemistas, habituados à provocação pública, mas com uma
reflexão desesperadamente frágil. Suas palavras são
perscrutadas sem descanso, em busca daquilo que o
sistema midiático denomina “deslize” ou, ao menos, de
algumas palavras controversas que justificariam o fato de
serem alvo da execração pública por alguns dias. Uma
pequena frase arrancada de seu contexto e posta em
circulação na internet é capaz de suscitar uma onda de
indignação que culminará, inevitavelmente, no apelo à
exclusão midiática do contraventor.
Esse é, talvez, o sentido da acusação incessantemente
renovada contra Éric Zemmour, a quem se recrimina não
tanto o fato de ter espírito sistemático, mas de não se
respaldar no sistema certo. Ao inserir-se durante alguns
anos no centro do sistema midiático, ele fez com que a
narrativa oficial derrapasse, formulando a políticos,
intelectuais ou artistas perguntas que em geral não lhes são
feitas. Foi acusado de desencaminhar a França. Aqueles que
lhe confiaram uma tribuna de grande audiência teriam feito
algo grave: teriam fragilizado a vida pública, autorizando
uma fala incendiária no espaço público. Por meio de seu
acesso à mídia audiovisual de massa, Zemmour teria obtido
o poder de desregular a vida pública, cultivando paixões
reprimidas e angústias negadas que não deveriam ser
passíveis de verbalização. Do próprio interior do sistema
midiático, um jornalista ecoava ideias e teses que
normalmente estariam proscritas: isso só poderia causar um
movimento de pânico. A questão fará correr muita tinta e
em numerosas ocasiões seu lugar na mídia ficará
comprometido. Ele não foi o único a sofrer essa
perseguição. Na escola de Hannah Arendt, o filósofo Alain
Finkielkraut pretende refletir sobre a história em curso
desvelando o sentido dos acontecimentos que surgem na
atualidade, o que lhe é recriminado com base na acusação
de conceder um alcance exagerado a acontecimentos
isolados, que o sistema midiático apresenta como
politicamente insignificantes. É acusado de perder-se em
conjeturas sobre fatos secundários que não mereceriam que
nos detivéssemos neles quando, na realidade, ao esclarecê-
los com sua filosofia política ele revela seu alcance e sua
significação. [ 48 ]
O SOFTWARE DECIFRADOR NO CERNE DO SISTEMA MIDIÁTICO

Assim, o regime diversitário vê em seu monopólio da


narrativa midiática uma condição essencial à sua
preservação. O surgimento de figuras públicas que atacam
diretamente seus fundamentos ideológicos suscita entre
seus partidários uma verdadeira reação de pânico. Para que
estes não se sintam sitiados, o regime diversitário precisa
retomar o controle da conversa pública e redefini-la
exclusivamente a seu favor. Suscita-se então a pergunta,
tão simples quanto complexa: como reestruturar o espaço
público para expulsar os oponentes – cada vez mais
audíveis – do regime diversitário? Como redefinir os códigos
da respeitabilidade política para garantir que as forças que
questionam o regime diversitário sejam excluídas da
conversa pública e continuem marcadas com o selo da
inconveniência? Para impedir que a situação degenere e
que a contranarrativa centrada na crítica ao
multiculturalismo alcance legitimidade midiática, a
intelligentsia pluralista se entregará a uma nova teorização
do espaço público, a fim de redefinir as condições de acesso
a ele. Inicia-se assim uma reconquista do espaço público
pelo regime diversitário, em sua busca de recuperar o
direito de decretar o que pode ou não pode aparecer na
narrativa midiática, e o que pode ser dito pelos que nela se
envolvem. Seria preciso “recuperar a razão”, [ 49 ] pontificam
os representantes da intelligentsia diversitária mais afeitos
ao tom sentencioso. Que fazer para que a maré populista
reflua? Como fazer com que os que a alimentam se calem?
Como esfriar as brasas identitárias? Foi o que vimos no
Quebec nas consequências da crise dos acordos razoáveis
de 2006 a 2008, que marcou a rejeição por boa parte da
população quebequense da ideologia multiculturalista.
Gérard Bouchard, um dos principais teóricos do
multiculturalismo à moda quebequense (que ele denomina,
juntamente com outros, interculturalismo), afirmará assim
que, num contexto de crise identitária, a conversa pública
só era cogitável se respeitasse as três condições que ele
estabelecia para o debate, isto é, que a filosofia política
realçada fosse “a) conforme às exigências da democracia e
do direito, b) adaptada aos desafios e às exigências do
nosso tempo, c) capaz de articular com eficácia a dupla
obrigação de garantir o futuro da francofonia quebequense
e respeitar a diversidade”. [ 50 ] Em outras palavras, toda
proposta política que não se inserisse primeiramente e
antes de tudo nos parâmetros da filosofia diversitária seria,
a partir daí, inaceitável. Muitos depois dele propugnaram
que o espaço público deixasse de ser aberto aos que não
fizessem do reconhecimento positivo da diversidade o
princípio de base de seu quadro de análise e recusaram-se a
considerar como interlocutores legítimos os que se
opunham à ideologia multiculturalista. Não se poderia
discutir seriamente com os que não iniciam suas
intervenções públicas com uma oração ao pluralismo
identitário.
A construção da narrativa midiática nada tem, portanto,
de aleatório. Para quem busca compreender o
funcionamento da conversa democrática, é importante ver
segundo quais critérios e qual lógica os acontecimentos são
situados no centro do espaço público, e por que alguns
deles são tratados como fatos insignificantes. Como
garantir, por exemplo, diante das tensões causadas pela
imigração maciça, que a narrativa midiática destaque a
necessária luta contra o racismo e a xenofobia das
populações nativas, e não o questionamento desses
movimentos migratórios e a necessidade de restaurar as
fronteiras para contê-los? Como garantir que a difícil
implantação do Islã nas sociedades ocidentais seja
explicada pela islamofobia que corroeria estas últimas, e
não pela vontade hegemônica do islamismo de conquistar o
espaço público para nele impor seus próprios códigos?
Como evitar que se questione a difícil coexistência de
culturas tão diferentes entre si num mesmo país? Como
garantir, diante da multiplicação das reivindicações
associadas à teoria de gênero, que aí se veja uma abertura
necessária a minorias esquecidas durante muito tempo, e
não o resultado de uma espécie de histerização das
reivindicações identitárias que acarreta uma desconstrução
dos fundamentos antropológicos da humanidade? O que
distingue um fato político relevante de uma simples
ocorrência do cotidiano? Quem tem o poder de apresentar
um fato do cotidiano como um fato político, e um fato
político como um fato do cotidiano?
O noticiário dos últimos anos confere um rosto concreto a
tais indagações. Lembramo-nos da maneira como a mídia
cobriu os acontecimentos da noite de São Silvestre em
Colônia, em janeiro de 2016, quando se assistiu a massivas
agressões sexuais contra mulheres por parte de migrantes e
homens oriundos da diversidade. Que pensar do tratamento
dado pela mídia ao escândalo de Telford, na Grã-Bretanha,
em abril de 2018, que pôs em cena a escravidão sexual de
jovens britânicas por gangues paquistanesas? Seria possível
dizer o mesmo sobre muitos “fatos do cotidiano” que
revelam, no dia a dia, a decomposição da convivência
diversitária. E quando se torna necessário reconhecer um
perigo ligado à sociedade multicultural, como no caso do
descolonialismo ou do islamismo, haverá igualmente uma
pressa em denunciar a tentação identitária que corroeria a
sociedade ocidental a partir de dentro, o que estabelece
uma equivalência que pode rapidamente tornar-se caricata. [
51 ] Da mesma maneira, a denúncia do islamismo será
acompanhada de um apelo à vigilância contra a
islamofobia. Alguns, por fim, inverterão a lógica da
denúncia, preocupando-se principalmente com o fato de
que os atentados islamistas comportam o risco de fazer o
jogo dos partidos populistas, que se alimentariam do medo
do outro. O antissemitismo, o sexismo ou a homofobia serão
condenados quando associados às sociedades ocidentais,
mas relativizados quando associados a uma civilização
estrangeira. No entanto, um acontecimento suscetível de
dar novo ímpeto à narrativa diversitária será revestido de
uma significação política e mobilizará em grau máximo a
atenção da mídia. Os aspectos positivos da diversidade
serão sublinhados, os aspectos negativos, silenciados.
Segundo a mesma mentalidade, o pudor diante da
representação do horror varia de acordo com seu potencial
para comover nossa sensibilidade humanitária ou nos
preocupar diante do choque das culturas e das civilizações
que se desenrola sob os nossos olhos. Assim, a foto
comovente do pequeno Aylan Kurdi, em setembro de 2015,
foi exposta em toda parte para convencer os ocidentais a
consentir nas ondas migratórias vindouras. Ao contrário, no
dia seguinte aos atentados de Barcelona, em agosto de
2017, muitos julgaram indecente difundir as fotos das
vítimas do islamismo. Assim se compreende que tais fotos
são julgadas em função do efeito ideológico e psicológico
que surtirão. Se comovem, serão difundidas. Se impelem à
revolta contra o multiculturalismo, serão censuradas – a
simples menção do real será então assimilada a um
empreendimento de estigmatização. É preciso neutralizar
sua significação e impedir sua politização. No cerne do
sistema midiático existe um software decifrador que serve
para politizar as notícias capazes de alimentar o
desdobramento da ideologia diversitária e para despolitizar
e insignificantizar as que poderiam entravá-lo.
É nesse contexto que precisamos compreender, por
exemplo, os inúmeros debates sobre a pós-verdade: o
universo da pós-verdade seria aquele em que se moveriam
os adversários do regime diversitário, que retransmitiriam
fake news. No entanto, esse termo, terrivelmente impreciso,
não serve para designar apenas as falsas notícias,
fabricadas de maneira consciente, que visam a perturbar a
opinião pública, ou rumores deformadores, mas também
interpretações divergentes do real, como se ele aparecesse
sob um único ângulo e não fosse portador de vários
sentidos possíveis. Em outras palavras, “um fake diz
respeito com frequência ao sentido dos fatos […]”. [ 52 ] A
figura do decodificador desempenha um papel central na
restauração do monopólio midiático sobre a narrativa
coletiva. Fundamentalmente, a multiplicação dos
decodificadores e outros fact checkers visa não tanto a
garantir uma verificação da qualidade da informação, mas
sobretudo a reivindicar para si um monopólio da
credibilidade jornalística e desqualificar as fontes de
informações que não provêm do mainstream midiático.
Trata-se de instituir-se como única fonte legítima de
informação, no próprio momento em que a credibilidade do
discurso midiático fica comprometida. Ao termo da lógica do
fact checking, chega-se, sem necessariamente haver
desejado isso, à negação do pluralismo interpretativo. O
conceito de fake news é usado de modo interesseiro pelos
poderes públicos que julgam assim combater o regime da
pós-verdade.
Quando Emmanuel Macron conclama ao estabelecimento
de uma lei contra as fake news, deve-se ver aí não tanto
uma vontade de purificar o espaço público das lendas que
poderiam deformar a deliberação pública, mas sobretudo
uma vontade de afirmar seu pleno domínio sobre o espaço
público. [ 53 ] As autoridades políticas parecem movidas pela
vontade explícita de criar o que se poderia chamar de um
real oficialmente atestado ou rotulado. Em tais
circunstâncias, trata-se não tanto de banir as balelas, mas
sobretudo de dar ao Estado o meio de controlar a narrativa
pública e, consequentemente, de desqualificar as narrativas
alternativas que apresentam, a respeito da sociedade, um
ponto de vista que não condiz com o do poder. Veremos
assim o regime diversitário buscar a retomada política do
controle da opinião, e isso de maneira explícita, e
reconstruir sua legitimidade ao reivindicar seu acesso
privilegiado à verdade, o que não deixa de evocar o Miniver
– o ministério da Verdade – de 1984. Na primavera de 2018,
soube-se que a cidade de Montreal pretendia se dotar de
uma agência destinada à luta contra os falsos rumores que
circulavam na metrópole a respeito da diversidade e da
imigração. Esse programa se inseria no âmbito da
estratégia antirrumores lançada pelo Conselho da Europa,
“cujo objetivo é sensibilizar para a importância de lutar
contra os preconceitos e os rumores ligados à diversidade
que entravam as trocas positivas e a coesão social e
favorecem atitudes discriminatórias e racistas”. [ 54 ] O
objetivo era explícito: estando o Quebec, por sua vez, sob o
impacto da imigração ilegal, era preciso evitar que se
difundisse entre a população um sentimento
exageradamente crítico sobre isso. Tratava-se, portanto,
naquelas circunstâncias, de formar agentes chamados a
vigiar as conversas dos cidadãos e, se necessário, corrigi-
las. [ 55 ] Da mesma maneira, a cidade pretendia formar
diferentes líderes de opinião, que podiam ser empresários,
colunistas de jornal ou agentes dos serviços públicos, para
que participassem desse esforço de pedagogia diversitária
por ocasião de seu uso da palavra pública. Um dos desafios,
no âmbito dessa operação, consistia especialmente em
desconstruir o “mito da imigração ilegal” – devendo os
cortejos de clandestinos que atravessam ilegalmente a
fronteira ser considerados, no máximo, como migrantes
irregulares que reivindicam a condição de refugiados. A
mídia, em sua grande maioria, retomou essa argumentação,
como se acrescentasse uma informação técnica à sua
análise: a imigração ilegal não existiria, e quem se
obstinasse em sustentar o contrário estaria difundindo uma
notícia falsa, [ 56 ] como afirmou o Conselho de Imprensa,
que veio em socorro da censura.
DEMONOLOGIA, DESLIZES E ROTULAGEM

Existe uma demonologia própria do politicamente correto.


Certos rituais midiáticos são do âmbito do exorcismo, para
afugentar o diabo da comunidade política – o diabo que
assume os traços da intolerância. Para acabar de vez com
certos políticos ou intelectuais no âmbito público e marcá-
los para sempre com o selo da inconveniência, será feita
uma associação deles com o odor do diabo: eles serão
decretados sulfurosos, ou ainda, chamados de
nauseabundos – e naturalmente, a primeira coisa a fazer
diante de um indivíduo de odores pestilentos é manter-se à
distância. [ 57 ] Basta farejá-lo, como a um miserável que
vem empestear o espaço público quando não deveria estar
ali. É o registro dos argumentos olfativos. A execução
midiática é um tratamento geralmente reservado às
personalidades que preocupam o regime diversitário. [ 58 ] O
diabo da intolerância assombraria a comunidade política, e
é preciso saber combatê-lo e exorcizar os que ele consegue
possuir. O adversário político não assume o rosto de um
oponente legítimo: representa antes um retorno ao passado
e anunciaria uma regressão histórica deplorável. Isso
porque, de modo irreprimível, o homem seria tentado por
uma recaída no mundo pretérito, como se, ao que parece,
fosse incapaz de não ceder aos demônios da nostalgia, o
que implica justamente uma vigilância constante da
conversa pública pelos guardiães da revolução diversitária.
O homem só se realiza agindo de forma violenta contra si
mesmo, recalcando sua parte mais sombria, que sempre
pode voltar à superfície, como se o homem novo, sem
preconceitos nem pertencimento, mais se assemelhasse a
uma ficção ideológica mantida de maneira autoritária por
um poder que exerce sobre o real uma pressão máxima,
para impedi-lo de ultrapassar as categorias para as quais foi
designado. É o paradoxo do progressismo: ele crê no sentido
da história e não imagina que o homem possa realizar-se de
outra maneira senão seguindo suas prescrições, mas não
para de recear um retorno ao passado, como se soubesse
que os sentimentos que reprime podem ser contidos, porém
jamais aniquilados, como se soubesse também que a
censura ao real é apenas provisória, pois este último
sempre ameaça retomar seus direitos de uma forma ou de
outra.
O dispositivo politicamente correto no centro do sistema
midiático deve verificar a conformidade ideológica dos que
passam diante dele, assegurando-se de que aderem aos
dogmas do regime diversitário. Inflige assim um teste aos
que entram no espaço público, a fim de sondar seus
pensamentos e segundas intenções. É preciso verificar se o
recém-chegado ao espaço público derroga
fundamentalmente a ortodoxia diversitária, de uma maneira
ou de outra. Também se verificará se ele é portador de
convicções suscetíveis de transformá-lo em inimigo público.
Ainda que esteja disposto a deixar uma ideia de lado,
classificando-a no âmbito das convicções pessoais e não no
dos compromissos políticos, o sistema midiático terá a
tentação, e até o reflexo, de defini-lo exclusivamente por
meio disso, acusando-o ao mesmo tempo de ser obcecado
por tal questão. É porque nele foi identificado o vírus da
dissidência. O politicamente correto repousa numa cultura
da vigilância generalizada: quem entra em contradição com
a ortodoxia diversitária é denunciado por grupelhos que se
comportam como profissionais da indignação – e trata-se aí
de uma profissão rentável. O poder de um lobby identitário
reside justamente em sua capacidade de criar um
escândalo, obrigando a todos a se indignar junto com ele a
fim de manter a sociedade vigilante contra o eterno retorno
do mundo de ontem, ainda que sob a forma aparentemente
neutralizada da nostalgia. Ele nunca baixa a guarda, jamais
quer baixá-la – e é também representado pela figura do
humorista midiático, cuja função é “cafonizar” aqueles em
relação aos quais a demonização não foi suficiente. O
universo das mídias sociais se presta bem a essa vigilância
das segundas intenções, que se justifica em nome de uma
busca de transparência cada dia mais exigente. As redes
sociais são esquadrinhadas, na busca de um comentário
passível de revelar a verdadeira natureza de uma
personalidade pública. Aquilo que em outros tempos seria
do âmbito de uma conversa de bar é retrospectivamente
considerado um pronunciamento público, que pode servir
para condenar o imprudente de ontem ou de antes de
ontem. É a cultura da captura da tela: vigia-se o outro em
busca de um deslize que poderá então ser transformado em
buzz. Assiste-se ao desenvolvimento de métodos
policialescos que acabam por corromper o espírito público,
normalizando uma cultura inquisitorial. Há menos debate
entre campos adversários, e mais procura, movida pela má
fé, do tweet que poderá ser apontado com o dedo.
Quem formula as perguntas comanda antecipadamente
as respostas. A cena é quase ritualística, e é não só
exasperante, como cansativa: um político, de passagem
num programa de assuntos públicos, será questionado
sobre o tabu do momento. Por exemplo, pergunta-se a ele
se adere à tese do racismo sistêmico. Caso ele se oponha a
ela, discreta ou frontalmente, é bem possível que se veja no
centro do noticiário, sob um título do tipo “Senhor X
contesta a existência do racismo sistêmico”, o que bastará
para transformá-lo em personalidade “controvertida”. Da
mesma maneira, se demonstra algumas reservas quanto à
teoria de gênero, ao zombar de certas inovações lexicais,
existem fortes chances de que um jornalista tome a
iniciativa de ir consultar associações militantes, que se
encarregarão de acusá-lo de transfobia, uma acusação que
depois será difundida na esfera pública e da qual ele terá de
se defender. Na mesma linha, se ele ousa criticar a
imigração maciça, será recriminado por se aventurar no
terreno da extrema-direita, o que então justificará um artigo
sobre as aproximações possíveis entre a direita republicana
e a direita populista. Ser-lhe-á perguntado se ele se sente
próximo das forças populistas, ou mais ainda, ser-lhe-á
indagado por que os populistas se sentem próximos dele.
Trata-se, na realidade, de situá-lo na escala da conveniência
ou, mais exatamente, da inconveniência.
Uma formulação reaparece ciclicamente para designar à
vendeta pública os que se distanciam de sua ortodoxia:
estes são acusados de haver cometido um deslize, um
delito que consiste em distanciar-se das balizas estreitas no
interior das quais a conversação pública deve manter-se. A
formulação merece atenção mais demorada. Revela que o
debate público é uma estrada estreita, bem balizada e,
além disso, bem patrulhada por agentes de trânsito
chamados a distribuir multas ideológicas aos que dela se
distanciam. O deslize é um escândalo: a pessoa já não se
insere nos termos do pensamento correto e torna-se assim
rapidamente inaceitável. Deixa de ser mencionada na vida
pública, à maneira de um estraga-prazeres. O mesmo vale
para deriva, que revela a existência de uma corrente central
da qual ninguém deve se afastar. Existe em política o que se
poderia chamar de sociologia da rotulagem. O jornalista,
que não raro é um militante que nem sequer se dá conta
disso, não se interessa pelo pensamento daquele a quem
conspurca, mas busca rotulá-lo de maneira tal que sua
palavra se torne inaudível ou ininteligível – não se trata de
explicar sua racionalidade própria, mas de mostrar em que
aspecto ela não é moralmente tolerável. Um rótulo colado a
um político pode encerrá-lo durante muito tempo num papel
do qual ele terá de se defender e que codificará
sistematicamente todas as suas manifestações verbais. Ele
é condenado a definir-se num espaço reduzido. Já não
poderá se dirigir a muita gente, exceto aos que, por uma
razão ou por outra, se sentem solidários com homens de má
reputação. Talvez seja até rotulado de “radical” ou
“extremista”, sem que se especifique necessariamente em
relação a qual norma ele o seria. Quando “o rotulado” se
encontrar na grande mídia, passará grande parte de seu
tempo tentando descolar-se do rótulo que o jornalista
militante lhe terá colado. Pode-se também falar de um guizo
no pescoço: quem chega com ele ao espaço público anuncia
aos outros que estão em presença de um indivíduo suspeito.
Rótulos não faltam para marcar publicamente os
contraventores. Um editorialista que manifeste demasiado
abertamente seu desacordo com o consenso diversitário
será decretado polemista, e logo corre o risco de ser julgado
controvertido, o que dissuadirá a maior parte do tempo
quem quer que zele minimamente por sua reputação de
associar-se a ele ou reivindicar seu alinhamento com ele. O
polemista seria um espírito que só existe por sua
capacidade de criar controvérsia e que buscaria, por si só, o
máximo de visibilidade midiática – o que relativiza,
convenhamos, a necessidade de ter interesse por suas
palavras. [ 59 ] O polemista busca a celeuma pela celeuma:
extrai seu mel da chicana que semeia. Também tem boas
chances de ser julgado controvertido, sem que se diga
diante de quem? Nisso se verá uma advertência contra os
que quisessem levá-lo a sério: ao associar-se a ele,
arriscam-se a ser contaminados por sua má reputação.
A democracia contemporânea não é de forma alguma
alheia à figura do pária e aos mecanismos clássicos do
ostracismo, que visam degradar simbolicamente um
cidadão que exibe sua dissidência ou sua oposição à
ideologia oficial. Não hesita em transformar em proscritos
os que resistem à sua refundação diversitária e até em
declará-los inimigos públicos, isso quando eles não se
tornam pura e simplesmente inimigos da humanidade.
Embora não possam ser destituídos de seus direitos cívicos,
podem ao menos ser excluídos, a maior parte do tempo, do
perímetro da respeitabilidade midiática. [ 60 ] Já não é raro
ouvir os guardiães da revolução diversitária conclamarem
explicitamente que seus oponentes declarados sejam
expulsos da vida pública, e isso em nome da luta contra o
ódio, que eles acreditam combater sem jamais se
acreditarem afetados por ele –, pois o “discurso de ódio”
como categoria midiática vem com frequência designar todo
discurso não consensual e afirmativo sobre as questões
identitárias e societais. Os oponentes são atados ao
pelourinho à maneira de agentes tóxicos que perturbam a
ordem social pelo simples fato de não ecoarem a ode à
diversidade. [ 61 ] Seria até necessário transformá-los em
exemplo de punição pública, expulsando-os dos programas
públicos, talvez, ou, melhor ainda, proibindo-os de aparecer
nas emissoras de rádio e televisão. O sistema midiático
pode condenar um homem à morte social por uma palavra a
mais e, sobretudo, por uma palavra antiquada, que perdeu
sua cota de popularidade. Basta que um político um pouco
desajeitado, vindo de sua região afastada, zombe da
enxurrada de fobias que deságua na vida pública para que
seja crucificado. Terá de se desculpar por muito tempo:
aquilo que ainda provoca boas risadas em sua cidadezinha
interiorana não passará no teste da vigilância midiática. Ele
não sabia disso, mas saberá: existem assuntos dos quais
não se ri e grupos que é melhor adular em quaisquer
circunstâncias, caso contrário farão com que você pague
por isso. Existem certos indivíduos, bem como certas
categorias de pessoas, sobre as quais já não se falará em
público, ou então só se falará sobre elas para advertir
contra elas. Algumas ideias só serão mencionadas para
serem conspurcadas. Uma vez expulso da vida pública
legítima, o excluído, caso espere ser reintegrado – o que
não é garantido –, deverá submeter-se a um ritual de
penitência humilhante para que se entenda que ele
compreendeu seus erros e não os cometerá de novo. Ele
serve de exemplo, e os que porventura ficassem tentados
pela dissidência logo captam a mensagem.
O politicamente correto é reconhecível por sua relação
com a linguagem. Sabemos disso desde Orwell: quem quer
controlar o pensamento controla primeiro as palavras para
expressá-lo. É próprio da novilíngua criar uma linguagem
que encolhe o espaço mental e, consequentemente, o
espaço das representações e as possibilidades de
desdobramento da imaginação. Quando a língua se
transforma em novilíngua, certas zonas da realidade se
tornam inacessíveis. As palavras para apreendê-la já não
estão disponíveis ou são decretadas radioativas. Pior: só se
pode fazer referência a elas à maneira de um escândalo
moral. Certos pensamentos também se tornam
informuláveis. A novilíngua se apresenta como um
empreendimento de manipulação – em grande escala – das
consciências e das representações da realidade. Como
notava Orwell, se o totalitarismo busca controlar
integralmente a linguagem, é porque pretende controlar as
próprias condições do pensamento. Quando se proscrevem
certas palavras, é a possibilidade de pensar que é
condenada a encolher. Syme, um personagem de 1984,
encarregado do Dicionário da novilíngua, expressa-se assim:
“Você não vê que o verdadeiro objetivo da novilíngua é
restringir os limites do pensamento? No fim, tornaremos
literalmente impossível o crime pelo pensamento, pois já
não haverá palavras para expressá-lo”. [ 62 ] Quanto o
Partido se orgulha de desbastar o dicionário a cada ano,
transforma em motivo de orgulho o fato de controlar cada
vez melhor a consciência coletiva. Poderíamos dizer que
ganha sua luta contra a polissemia das palavras e fixa-as
num sentido do qual já não é permitido desprendê-las.
“Todos os conceitos necessários serão expressos, cada qual,
precisamente, por uma única palavra, cujo sentido será
rigorosamente delimitado. Todas as significações
subsidiárias serão suprimidas ou esquecidas. […] No
entanto, o processo há de perpetuar-se até bem depois da
minha e da sua morte.” [ 63 ] E Syme termina assim sua
explicação: “a Revolução estará completa quando a
linguagem for perfeita”. [ 64 ]
Ocorre o mesmo com o progressismo contemporâneo: ele
proscreve certas palavras, que são decretadas antiquadas
ou existem apenas por meio de sua denúncia e caricatura. [
65 ] Como bem observou Guy Hermet, “a função de higiene
verbal da novilíngua consiste igualmente em reduzir o
vocabulário disponível ou aprovado, em asfixiar as palavras
cujo uso se tornou contraindicado, de tal forma que o léxico
subsistente passe a autorizar apenas a expressão de ideias
e sentimentos conformes ao sistema de valores julgado
desejável”. [ 66 ] Conforme Hermet assinalou, trata-se “de
impedir que o imprevisto seja expresso […] encobrindo com
eufemismos todos os termos que são ou venham a ser
litigiosos. As palavras novas devem matar as antigas, a fim
de gerar ‘cidadãos’ prisioneiros de um vocabulário sem elo
com o passado, semelhante a uma espécie de CD virgem
em que só resta inserir novos preconceitos, em geral
inversos aos do passado”. [ 67 ] São muitos os exemplos de
depuração do vocabulário atualmente. Quem não faz um
uso apropriado do novo léxico diversitário se apresenta,
mesmo a contragosto, como um dissidente. É uma
perseguição contínua que se inicia e, sobretudo, uma
perseguição da linguagem e das palavras em excesso. Já
não devemos ser capazes de pensar contra o regime
diversitário – é a própria possibilidade de estar em
desacordo com ele que se trata de erradicar gradualmente.
O controle da linguagem permite o rastreamento dos
desacordos implícitos, explícitos, e mesmo os traços do
antigo mundo dentro do novo – traços estes que deverão
ser apagados a fim de purificar a sociedade. Ferrero havia
adivinhado isso num outro contexto: “Esse é o destino de
todos os governos revolucionários: quanto mais estendem
seu poder e se aproximam do absolutismo totalitário, mais
se preocupam com as oposições escondidas que percebem
no fundo da opinião”. [ 68 ]
Palavras desaparecem, mas outras aparecem também. “A
influência das palavras é insidiosa”, escreve Patrick Moreau.
“Estas se inserem modestamente no discurso social, como
quem não quer nada, com certa descontração, isto é, sem
se manifestarem diretamente como ideológicas ou como
manipuladoras.” Moreau escreve também: “O léxico se
torna um campo de batalha em que apenas os atiradores
emboscados (especialistas em comunicação, publicitários,
think tanks e grupos de pressão) têm consciência de
participarem de um combate, ao passo que as pessoas
visadas (que eu chamaria de falantes ingênuos) nem
chegam a perceber os projéteis zunindo em suas orelhas
antes de serem tocados por eles e de se porem, por sua
vez, a empregá-los”. [ 69 ] A título de exemplo, basta pensar
em palavras ou expressões como “racismo sistêmico”,
“cultura do estupro”, “queer”, “fluidez identitária”,
“racizados”, “afrodescendente”, “apropriação cultural”,
“transfobia”, “populismo”, “extrema-direita” ou em todos os
termos que acabam em fobia: por intermédio deles, é uma
ideologia que se desdobra, e conforme os empregamos,
deixamos de lado ou criticamos, não seremos acolhidos da
mesma maneira no debate público. Quando surge um termo
novo, de forte conotação ideológica, não raro aparece entre
aspas. Quando delas se liberta, é porque acaba de ser
decretada sua integração ao vocabulário corrente. Tais
aspas desaparecem cada vez mais rápido, como se a
dinâmica de normalização midiática da novilíngua se
acelerasse.
O APELO À CENSURA ESTATAL

No entanto, o politicamente correto pode revelar-se


insuficiente para conter a contestação do regime
diversitário. Se a desqualificação midiática e política da
dissidência conservadora já não bastar, se a demonização
não engrenar e revelar-se incapaz de eliminar os
adversários do regime diversitário e uma parcela
significativa do eleitorado se mostrar indiferente ao fato de
que um candidato seja ou não julgado inaceitável pelo
regime diversitário, torna-se possível passar à repressão
formal do desacordo.
Foi nessa perspectiva que em 2008, no momento da crise
dos acordos razoáveis no Quebec, um relatório
especializado visando a demonstrar que o questionamento
do multiculturalismo era essencialmente um fenômeno
midiático propôs que se concedesse ao Conselho de
Imprensa o direito de suspender a publicação de jornais ou
revistas que veiculassem uma representação negativa da
diversidade. [ 70 ] “Quanto a questões que afetem
diretamente a ‘coesão social’ e a dignidade das pessoas,
punições muito mais severas de certos veículos de
informação com coberturas negativas ou de certos
jornalistas, como proibição de publicar ou de difundir
durante certo número de dias, serão consideradas ou
reforçadas pelo Conselho de Imprensa ou o CRTC, cujo
poder de regulamentação é muito maior.” [ 71 ] Sem ir tão
longe, o relatório Bouchard-Taylor – relatório oficial de uma
comissão de pesquisa encarregada de compreender o
questionamento do multiculturalismo – adotará essa
perspectiva, assinalando que “os veículos de informação
deverão aprender a se disciplinar”, sem nos dizer qual seria
o papel do prefeito de disciplina, caso os veículos não
conseguissem inibir-se o suficiente. [ 72 ] Essa disciplina será
necessária para representar adequadamente as exigências
ideológicas do multiculturalismo: “insistamos
particularmente [no trabalho] das mídias, indispensável
para difundir uma informação correta ao conjunto da
população, para desfazer falsas percepções e prevenir a
formação dos estereótipos”. [ 73 ] A mídia assumirá
explicitamente uma função ideológica para o novo regime
diversitário, que receia ver transparecerem no debate
público acontecimentos que, à maneira de bolas de neve,
pudessem provocar uma crise política. A parcela da
população que participa da insurreição populista já não
pode ter acesso a um discurso que excitaria paixões ruins,
que uma boa educação para a diversidade logo deverá
inibir. Se certas ideias forem proferidas nas horas de grande
escuta ou difundidas pelos grandes jornais, comportam o
risco de serem legitimadas e de confirmarem a sensação
dos que sentem que o regime se decompõe, mas não têm
palavras para dizê-lo ou teoria para explicá-lo. Bouchard-
Taylor não hesita, aliás, em se aventurar no caminho da
censura, propondo a inserção na Carta dos Direitos e das
Liberdades da proibição do apelo à discriminação. Essa
proposta anunciava, na prática, uma significativa regressão
da liberdade de expressão, quando se compreende que, do
ponto de vista do regime diversitário, toda defesa das
instituições sociais tradicionais, da nação ou mesmo do
universalismo liberal pode ser compreendida como um
apelo à discriminação. Aliás, as ideias têm seu próprio
ritmo, mas progridem, e em 2015, o governo do Quebec,
então dirigido por Philippe Couillard, convencido das
virtudes do multiculturalismo canadense, retomou a
proposta veiculada pela Comissão dos Direitos da Pessoa e
da Juventude, em nome da luta contra os “discursos de
ódio”, que permitia que os indivíduos que se sentissem
insultados em suas convicções identitárias processassem
seus insultantes – a Comissão se propunha, depois, conduzir
a investigação, distribuir multas e até censurar as palavras
litigiosas. Propunha, por fim, o estabelecimento de uma lista
de contraventores públicos. Embora o projeto de lei tenha
sido retirado após uma oposição popular intensa, não deixa
de revelar o estado de espírito do regime diversitário diante
dos que vê como dissidentes.
O chamado a uma forma de censura política da crítica ao
multiculturalismo passou a ser claramente assumido. A
título de exemplo, o pacto de Marrakesh, que fez muito
barulho por ocasião de sua assinatura em dezembro de
2018, formulava explicitamente essa ambição de um
domínio cada vez mais forçado dos parâmetros do debate
público, convidando os governos a parar de “alocar verbas
públicas ou fornecer apoio material aos veículos de
comunicação que propaguem sistematicamente a
intolerância, a xenofobia, o racismo e outras formas de
discriminação contra os imigrantes, em pleno respeito à
liberdade de imprensa”. O fato de que esse pacto não seja
impositivo não muda em nada o chamado que ele lança
explicitamente e a ambição que ele revela. Quando se sabe
que, do ponto de vista dos teóricos do multiculturalismo,
basta em geral que alguém critique sua doutrina para que
se torne culpado de racismo ou xenofobia, compreende-se o
alcance dessa proposta contida no Pacto. Quem fixará os
critérios que distinguem um discurso tolerante de um
discurso intolerante? Que definição de racismo será
selecionada – sobretudo quando se sabe que, do ponto de
vista dos teóricos do racismo sistemático, basta contestar a
existência do sistema que eles acreditam descrever para se
tornar seu cúmplice? Será que bastará sustentar que os que
são cidadãos e os que não o são não têm os mesmos
direitos e não devem tê-los para ser acusado de advogar
uma forma de discriminação para com os imigrantes?
Desviar a luta contra o racismo para transformá-la em luta
contra o sentimento nacional é decerto a estratégia
ideológica mais conhecida do multiculturalismo. Com o
tempo, trata-se de privar a oposição do acesso ao espaço
público, sob pretexto de lutar contra a intolerância e outros
sentimentos evidentemente condenáveis. [ 74 ]
Será que o ideal não seria, no fim das contas, privar os
dissidentes de seus direitos cívicos, destituí-los ao menos
parcialmente de sua cidadania, para excluí-los da
comunidade política? Foi isso, ao que parece, o que a França
considerou fazer, em 2017, quando alguns tentaram tornar
inelegíveis os candidatos condenados por “racismo,
antissemitismo, negacionismo, homofobia, incitação ao
terrorismo, apologia de crime contra a humanidade e toda
forma de discriminação”, no âmbito da lei sobre a
moralização da vida política – uma proposta que, por sua
vez, quando estamos minimamente conscientes da
definição desses termos na vida política contemporânea e
do uso que as associações militantes fazem deles, também
anunciava uma criminalização do conservadorismo. [ 75 ]
Embora a proposta tenha sido rejeitada pelo Conselho
Constitucional, não deixa de dar uma boa ideia do estado de
espírito do regime diversitário que, sentindo-se ameaçado,
passa a tratar seus adversários como inimigos internos
contra os quais tudo será permitido.
Capítulo 3 | Aquilo que a esquerda chama de direita
 
 
 
 
 
 
 
Canalha despudorado, sacana e orgulhoso de sê-lo: assim me parecia o
homem de direita.
Alain Finkielkraut
 
Quando percorro meus textos anteriores a 1968, dou-me conta de que
são cravejados daquelas placas de sinalização que, ao lado de posições
solidamente fundamentadas que mantenho até hoje, têm a única e
exclusiva função de proclamar aos transeuntes: “Oi! Sou de esquerda!
Sou de esquerda!”.
Jean-François Revel
 
A direita é objeto da esquerda-ventríloquo, por assim dizer.
Jean-François Revel
 
No livro En terrain miné [Em terreno minado], uma obra
epistolar apaixonante publicada em 2017, os filósofos Alain
Finkielkraut e Élisabeth de Fontenay empenharam-se em
compreender a divergência política que se agravava entre
eles, a ponto de comprometer uma antiga e preciosa
amizade. Tratava-se de explicitar as fontes de um mal-estar
crescente, que embaralhava as divisões do passado,
quando esses dois intelectuais se sentiam do mesmo lado
da barricada, algo que já não acontecia então. E não é
preciso se aventurar muito longe na obra para entender a
natureza do desacordo entre eles, cada vez mais violento de
uma carta a outra: de maneira muito clara, e não destituída
de veemência, Fontenay recrimina Finkielkraut por já não
ser de esquerda ou, pior ainda, talvez, por não tentar sê-lo e
mostrar-se indiferente aos códigos de respeitabilidade que a
esquerda prescreve. Nas palavras de Fontenay, “não hesito
em confessar a você que o fato de a esquerda havê-lo
rejeitado me assusta”, às quais logo acrescenta: “você
contraria a confiança que depositei em você […] na medida
em que se desvia para uma direita dura, ainda que, apesar
dos excessos de sua parte, algumas pessoas de esquerda
continuem a escutá-lo, e até o aprovem”. [ 76 ] Pior ainda,
Fontenay se exasperava com a proximidade entre
Finkielkraut e a “direita católica” [ 77 ] e com sua falta de
energia para denunciar “a extrema-direita”, que desejava
usar suas teses em proveito próprio. E não fazer o jogo da
extrema-direita tornou-se, ao que parece, o horizonte
insuperável da responsabilidade intelectual. Finkielkraut, por
sua vez, reconhece que se desligou desse sistema de
representação da vida intelectual e política: “aí está,
provavelmente, nossa diferença essencial: haja o que
houver, você permanece fiel à esquerda, ao passo que eu,
tendo feito a escolha do não pertencimento, recuso-me
obstinadamente a prestar contas a ela”. [ 78 ]
Se o livro logo se torna exasperante, é porque toma a
forma de um processo, algo com que Finkielkraut se irrita
abertamente, tendo a impressão de que Fontenay retoma
“por sua conta toda a argumentação do tribunal do
pensamento convencional”. [ 79 ] Finkielkraut não é
convidado a explicar suas ideias, mas a justificar o fato de
que já não se associa à esquerda, o que parece
primeiramente inconcebível, mas não só isso: parece
imperdoável. Ele não é de esquerda ou, ao menos, deixou
de sê-lo: portanto, é suspeito. Do ponto de vista de sua
amiga, é de certa forma como se ele excluísse a si mesmo
do debate público e do círculo das pessoas convenientes – e
só poderá culpar a si mesmo por ser estigmatizado, tendo
de aceitar de antemão o fato de que um dia será
abandonado pela comunidade dos intelectuais
recomendáveis. Não é possível sair do império do bem sem
pagar o preço, pois este sabe punir os que não lhe juram
fidelidade. Na melhor das hipóteses, Fontenay reconhece a
Finkielkraut o mérito de havê-la feito “compreender
claramente a diferença entre um reacionário e um
conservador, e que o conservador jamais merece que
progressistas o ataquem fisicamente” [ 80 ] – compreende-se,
portanto, que seria menos grave agredir um reacionário. A
direita, para a qual Finkielkraut estaria se dirigindo, seria o
âmbito do não pensamento ou, ao menos, do pensamento
culpado – nele não se refletiria sobre o mundo, mas se
pensaria para mascarar os próprios e inconfessáveis
preconceitos. [ 81 ] Aliás, não se passa para a direita como se
muda de campo, o que teoricamente deveria ser possível
numa democracia: deriva-se para a direção dela, como se
pouco a pouco alguém se distanciasse do campo do bem
para ir perder-se na parte maldita da humanidade, cedendo
então às suas piores pulsões e perdendo a partir daí a
capacidade de recalcá-las – voltaremos a esse vocabulário.
Perdemos a conta das manchetes de revistas que, nos
últimos anos, estampavam assombro com a traição de
intelectuais de esquerda que se haviam juntado às fileiras
dos novos reacionários ou néoréacs, [ 82 ] segundo a
terminologia em voga. [ 83 ] Regularmente, era preciso
atualizar a lista dos maus pensadores. A cada vez, espera-
se causar escândalo: quem passa da esquerda à direita se
afunda, se avilta e se renega, como se oscilasse para o lado
ruim da história, deixando-se dominar por suas paixões
mais sombrias, pelo ressentimento e, no melhor dos casos,
por uma nostalgia sintomática de uma senilidade iminente.
Fala-se a respeito de alguém assim como de uma alma
perdida, ou condenada. Sua queda será retraçada, tentar-
se-á retornar às origens do seu desvio. Uma guinada para a
direita não é tanto uma mudança política pessoal, é mais
uma queda moral, uma forma de degradação existencial,
sinal de um aviltamento da alma. Quando se trata de um
amigo, as pessoas se perguntarão: como isso pôde
acontecer? Haverá uma tentativa de compreender por que
ele acabou mal, revirarão seu passado para ver se as
sementes do extravio já não se encontravam em seus
primeiros textos, ou se este não se explicaria por um
acontecimento traumático, seja no âmbito político, seja no
âmbito biográfico. Haverá também uma preocupação com
suas novas amizades, julgadas comprometedoras. Esta
guinada para a direita deveria naturalmente conduzir à
“extrema-direita” – ou ao menos às suas fronteiras –, na
medida em que se explicaria por um desmoronamento das
inibições civilizatórias.
No entanto, o que torna a correspondência Finkielkraut-
Fontenay exasperante é também o que a torna interessante,
na medida em que faz vir à tona aquilo a que chamaríamos,
com uma formulação um pouco banal, a verdadeira
natureza da divisão esquerda-direita, que muitos
consideram morta, mas que sempre acaba por ressurgir,
sem que jamais consigamos compreender de fato o que
realmente a constitui. Como já se observou, embora
Finkielkraut seja acusado de desviar-se para a direita, ele
próprio não reivindica esse rótulo para si – e mais, ele
“recusa firmemente o rótulo […] de pensador direitista”. [ 84 ]
Em outras palavras, embora ele deixe a esquerda, não
passa para a direita, como se esta última, apesar de tudo,
continuasse a ser pouco recomendável. Ele até prefere
decretar a abolição dessa divisão em que não chega a
inserir-se ou reconhecer-se, o que é frequente entre os que
tiveram um percurso semelhante ao seu. Uma coisa é
deixar de ser de esquerda. Outra coisa é ser de direita. Para
dizê-lo em suas palavras, o pensamento político deve
“aventurar-se fora do Grande Paradigma que governa
nossas vidas desde a Revolução: a oposição entre a direita e
a esquerda”. [ 85 ]
No entanto, a esquiva é de uma eficácia relativa. Isso não
é de ontem: basta questionar a clivagem esquerda-direita e
buscar extrair-se dela para ser relegado à direita. Alain,
desde 1925, cunhou uma célebre formulação que explica
essa visão de mundo. “Quando me perguntam se o corte
entre partidos de direita e partidos de esquerda, homens de
direita e homens de esquerda, ainda faz sentido, a primeira
ideia que me vem é que o homem que formula essa
pergunta certamente não é um homem de esquerda.” Em O
ópio dos intelectuais, obra seminal publicada em 1955,
numa época em que a esquerda francesa fora acometida de
marxolatria, Raymond Aron abria seu texto com uma
pergunta explícita: “a alternativa entre esquerda e direita
ainda faz sentido?”. Lembrando-se da advertência de Alain,
Aron acrescentou: “quem faz essa pergunta se torna
imediatamente suspeito”, [ 86 ] reconhecendo assim o que se
poderia chamar de privilégio filosófico e moral da esquerda
na modernidade, contra a qual ele não hesitaria em
polemizar: era a esquerda que determinava a tendência da
época, diante da qual era preciso posicionar-se. Dois anos
depois, aliás, Aron confessará que “esquerdistas ficaram
sinceramente surpresos ou indignados que eu não tenha
reconhecido uma diferença moral entre os dois campos”. [ 87
] Ser de esquerda consiste primeiramente em aderir, de
certa forma, à divisão esquerda-direita. Quem é “acusado”
de ser de direita tem a tendência de se defender, enquanto
a classificação à esquerda equivale a um certificado de
respeitabilidade. Isso não havia escapado a Emmanuel Berl,
que elaborou algumas observações muito perspicazes sobre
a questão: “parece que a principal característica do
direitista é negar sê-lo” enquanto “o esquerdista é antes de
tudo aquele que prefere os esquerdistas”. [ 88 ] Na
correspondência já citada, Élisabeth de Fontenay retoma,
sem necessariamente ter consciência disso, a ideia de
Emmanuel Berl, acentuando sua diferença em relação a
Alain Finkielkraut: “você aceita todas as alianças quando
chega a hora de defender suas ideias e verificar a boa
fundamentação de suas teses. Quanto a mim, eu desconfio,
sempre pergunto quem assina antes de dar meu nome”. [ 89
]
PSICOLOGIA DO ESQUERDISTA

Bons autores demonstraram que, embora a divisão tenha


surgido com a Revolução Francesa, levou tempo para se
impor, tanto na França como em outros lugares, e para
ganhar seu sentido atual. [ 90 ] No entanto, podemos retomar
a reflexão sobre outra base, perguntando-nos a que se
referem a esquerda e a direita, na medida em que tais
conceitos, como observou Marcel Gauchet, lograram extrair-
se do contexto francês que os viu nascer, impondo-se na
escala do mundo ocidental, e talvez em escala mundial.
“Não é nada insignificante, entre os mistérios sobre o
destino dessas noções, o da fortuna mundial que
granjearam.” [ 91 ] Embora essa divisão seja frequentemente
contestada, e não raro grandes intelectuais a descartem
como uma moldura mental demasiado restritiva, ela ainda é
usada para mapear politicamente nossas sociedades. Em
toda parte se busca inserir os partidos e os movimentos
nesse espectro político que, conforme se espera, decifrará
as disputas ideológicas tornando-as inteligíveis. A que a
esquerda se relaciona? A que a direita se relaciona? Será
que existe algo como uma verdadeira esquerda e uma
verdadeira direita? Será que tais categorias existem em
estado quimicamente puro? Os estudiosos da política se
empenharam em associar um conteúdo específico a essas
duas noções: entre os mais conhecidos, Norberto Bobbio [ 92
] associou-as à disputa entre a igualdade e a liberdade, uma
análise muitas vezes retomada com mais ou menos brilho
por outros observadores igualmente ocupados em
compreender essa famosa divisão, cujo defeito, no entanto,
é inserir-se exclusivamente na questão social e deixar de
lado outras dimensões fundamentais da existência política.
A filosofia política também se empenhará em teorizar sobre
essa divisão, ancorando-a no âmbito antropológico: a direita
aderiria fundamentalmente à doutrina do pecado original e
situaria o mal no coração do homem; já a esquerda situaria
o mal na história, o que dá a entender que, depois de
muitas tentativas e erros, seria possível extraí-lo da
estrutura social e chegar a uma sociedade perfeita – a
esquerda, assim concebida, seria utopista, e a direita,
antiutopista. [ 93 ] Essa teorização da divisão esquerda-
direita, que não deixa de ser interessante, tropeça, contudo,
no fato de ser dificilmente transponível para a realidade
política e de ter fraca capacidade para catalogar e
descrever os partidos que afirmam seu pertencimento a um
ou outro desses rótulos. Não surpreende que tenham sido os
historiadores, ao menos no contexto francês, os que
levaram mais longe esse trabalho de esclarecimento,
pluralizando tais conceitos: a esquerda tornou-se as
esquerdas, e a direita tornou-se as direitas. [ 94 ] Ao serem
liberados de toda carga filosófica e concebidos como
categorias históricas num período determinado, os
conceitos de esquerda e direita correspondem aqui à vida
política concreta – impulsionada por atores que não
questionam necessariamente a categoria em que se movem
–, e assim recuperam sua pertinência.
Se é necessário retornar à natureza da divisão esquerda-
direita, é porque esta ainda pesa muito na vida pública,
mais do que se quer acreditar, e institucionaliza uma forma
de preconceito progressista no interior da democracia.
Precisamos refletir sobre o funcionamento da divisão
esquerda-direita, e esse será o objeto deste capítulo. Não
raro considerada obsoleta, ela continua a estruturar a vida
pública, ainda que se revista de outras roupagens. Nessa
linha, diremos a respeito da divisão entre a esquerda e a
direita que, na realidade, é característica do debate político-
ideológico no interior dos parâmetros da modernidade,
tendo a vocação de permitir que a modernidade vá até seus
próprios extremos ou, ao menos, relance continuamente
sua dinâmica para que esta nunca se esgote. O debate
entre a esquerda e a direita é um debate em movimento:
apresenta uma pedagogia em que a primeira pode avançar
em seu ritmo, e a segunda, pode segui-la ou, de tempos em
tempos, desacelerá-la. Em outras palavras, quem se
debruça sobre esse debate logo se permite uma primeira
observação: não existe reciprocidade entre a esquerda e a
direita. As duas categorias, que parecem responder uma à
outra, não designam a mesma realidade. Não se trata das
duas faces de uma mesma moeda política. Não existe, de
um lado, a esquerda e, do outro, a direita. Se a esquerda
existe, e não para de se questionar sobre sua identidade,
sua vocação e sua missão, o mesmo não ocorre com a
direita, que parece pouco à vontade com um rótulo que de
fato ela não escolheu e carrega como uma cruz, sem saber
muito bem por que lhe foi atribuído. De direita? Está bem,
mas não demasiadamente, por favor! Assim como
posicionar-se à esquerda, e até bem longe na esquerda, é
algo valorizado, ser associado à direita representa uma
forma de passivo, e o rótulo pode equivaler a um tipo de
acusação. Essa primeira observação não escapou aos
estudos políticos franceses. Albert Thibaudet havia notado,
em 1932, na obra Les idées politiques de la France [As
ideias políticas da França] que, não obstante sua relativa
marginalidade política, o socialismo dispunha de uma fonte
de legitimidade suplementar na dinâmica ideológica
francesa. “É […] o socialismo que cria atualmente na vida
política o arejamento das ideias, dos problemas, das
discussões. É em relação ao socialismo que se estabelecem
as posições. É em relação ao Partido que os partidos se
regulam.” [ 95 ] Stéphane Rials, em alguns estudos muito
férteis publicados no início dos anos 1980, retomará essa
intuição à sua maneira: “no fim das contas, a espinha dorsal
da vida política francesa desde a Revolução não é a
pretensa relação direita-esquerda, é a esquerda. A
esquerda, com a lógica de sua transformação. […] Os outros
(discursos), abusivamente qualificados de discursos de
direita, não fazem outra coisa senão definir-se em relação à
esquerda […]”. [ 96 ] Raymond Aron também se havia
permitido esta observação: “a esquerda tem tal
superioridade de prestígio que os partidos fazem de tudo
para retomar certos qualificativos, emprestados do
vocabulário de seus adversários”. [ 97 ] Marc Crapez
desenvolverá essa análise em seus próprios termos: “a
direita não pode de fato ser a direita, pode estar à direita,
mas não ser de direita”. [ 98 ]
Se existe uma primeira coisa a ser relembrada, é que a
esquerda faz questão de ser esquerdista e não para de se
questionar sobre o que significa estar à esquerda, em uma
forma de seminário a céu aberto que mobiliza a principal
parcela da intelligentsia. A esquerda existe porque se
nomeia como tal. Constitui-se como uma categoria política
de pleno direito, na medida em que as pessoas reivindicam
explicitamente sua adesão a ela e atribuem grande valor ao
fato de serem portadoras desse rótulo. [ 99 ] Não duvida de
sua superioridade moral. [ 100 ] A direita, por sua vez,
costuma ser direita a contragosto: assume de modo mais ou
menos sereno um rótulo concebido em primeiro lugar como
categoria que serve de contraste, à qual alguém é relegado
independentemente de sua reivindicação própria. Como já
foi observado por Denis Tillinac, “a direita em seu curso
sinuoso nunca foi o correspondente homotético da
esquerda, mas antes a descrente dos dogmas desta última,
por razões metafísicas, ou morais, ou estéticas”. [ 101 ] A
direita transmite facilmente a imagem de um ajuntamento
de proscritos. “O que há de comum entre um discípulo
liberal de Hayek, um monarquista, um conservador
anticlerical, um integrista católico, um fascista? Nada. É o
olhar da esquerda que define as direitas, e as intima a se
posicionar em sua escala de valores”. [ 102 ] A direita é
constituída primeiramente e antes de tudo por todos os que
a esquerda não quer em suas fileiras. Não quer ou… deixou
de querer. Pois não basta ser de esquerda: é preciso
continuar a sê-lo.
A esquerda é uma categoria política autoproclamada – e
movente, na medida em que está ligada de modo estreito à
mística do progresso, que jamais se deixa fixar e se define
por meio do imaginário do movimento. [ 103 ] Sua
“característica primordial é ser indiscutível”: ela se
apresenta como uma evidência absoluta. [ 104 ] A esquerda
fixa o rumo da história, determina o sentido do progresso e
jamais poderia estabilizar-se sem trair-se. Ser de esquerda é
posicionar-se na vanguarda da dinâmica da modernidade. É
o partido do movimento, mas do movimento orientado – isto
é, do progresso. Chesterton o havia dito à sua maneira:
“aqueles a quem chamamos muito especialmente de
modernos […] conceberam a história humana como uma
progressão à maneira de um cortejo. Ou seja, diziam que
algumas pessoas mais lentas poderiam ficar para trás, mas
que todas avançavam”. [ 105 ] A esquerda se constitui a
partir de um imaginário radical da emancipação: para
emancipar-se, o indivíduo deve se libertar dos
pertencimentos que lhe foram atribuídos pela sociedade e
jamais se definir positivamente a partir deles. Deve
arrancar-se deles, extrair-se deles. Não deve habituar-se a
seu mundo nem instalar-se em seus pertencimentos a ponto
de torná-los essenciais ou acreditar que sejam insuperáveis.
As mediações em que o indivíduo se apoia para alcançar o
universal são instrumentais: as que ele abraça poderiam
muito bem ser outras. A civilização deve ser compreendida
como uma construção provisória a ser desconstruída e
reconstruída. No fundo a modernidade se concebe como
busca emancipadora que, presumivelmente, fará nascer
uma sociedade igualitária e transparente para si mesma.
Pode ser concebida como uma dinâmica de horizontalização
integral da existência social: todas as instituições que
estruturavam a vida social em nome da natureza ou da
história devem ser desconstruídas, todas as identidades
substanciais devem dissolver-se. Um mundo novo tem de
sair daí, no qual a humanidade será perfeitamente
consciente de suas condições de produção e de reprodução
e capaz de controlá-las por completo. Essa lógica, contudo,
deve estar contida nos parâmetros da civilização ocidental,
a única que tem de submeter-se a ela.
Opõe-se a isso o imaginário da história ou da natureza:
aquela valoriza a obra do tempo na construção das
sociedades, esta convida o homem a aceitar sua finitude.
Compreende-se que se trata aí dos imaginários privilegiados
à direita. A direita, por contraste, é a categoria política
fundadora da modernidade: é a esquerda que a constitui ao
designá-la, e esta é então chamada a saber se reivindica
um rótulo que se voltará contra ela ou se busca posicionar-
se no exterior de uma divisão à qual, no entanto, é sempre
relegada, como se fosse de fato impossível extrair-se ou
eximir-se dela. Em regra geral, as pessoas não afirmam sua
adesão à direita, mas têm de se explicar por serem de
direita. De certa maneira, a direita se deixa definir como um
resto ou, mais exatamente, como um resíduo. Assim
concebida, a direita se associa ao que a esquerda rejeita, à
maneira de um rastro do mundo antigo que ela quer
preservar, mesmo estando ciente de que está condenado.
Isso esclarece o fenômeno, observado pela maioria dos que
se debruçaram sobre essa divisão: grande parte das direitas
são antigas esquerdas, incapazes de seguir o ritmo do
progresso impresso pelas vanguardas militantes, que
sempre atualizam o programa de emancipação da
modernidade, passando pela desconstrução da civilização
ocidental tal como esta se representou historicamente.
Basta que uma esquerda não queira seguir o ritmo indicado
pela vanguarda progressista para que seja deportada para a
direita, na maior parte do tempo a contragosto. Na
realidade, todos os que não aderem explicitamente a cada
nova etapa do desdobramento da modernidade diversitária
são passíveis de oscilar para a direita e, como
consequência, adentrar o campo dos suspeitos e proscritos.
Mesmo a mínima reserva não será tolerada: é preciso ser
um entusiasta, ou desaparecer da cena pública. É preciso
aplaudir ou aceitar a estigmatização midiática. Num mundo
que ainda se concebe sob o signo do progresso, não há
destino pior do que ser um retardatário, ou pior ainda, um
retrógrado. Para citar uma vez mais Emmanuel Berl, “quem
se agarra ao que quer que seja vira à direita, ou corre esse
risco”. [ 106 ] E para permanecer à esquerda, é preciso não
apenas seguir o campo progressista em suas diferentes
inovações, mas enviar com regularidade sinais ostentatórios
de virtude. Raros são os que oscilam para a direita e
reivindicam o novo rótulo colado neles: na realidade,
preferem defender-se dele, chegando com frequência a
dizer que permanecem fiéis à esquerda verdadeira, que
teria sido traída pela nova esquerda. Compreende-se então
o sentimento dos homens que se acreditavam de esquerda
e a partir de agora se sentem estrangeiros em seu campo:
haviam aderido a um momento particular da esquerda, sem
compreender que cedo ou tarde esse momento seria
ultrapassado pela simples lógica de renovação das
vanguardas. Não raro aqueles que passam por isso se
defendem, agarrando-se a sua definição de esquerda como
a uma tábua de salvação. Lutam para permanecer à
esquerda, como se não lhes fosse possível imaginar-se em
outro lugar. No longo prazo, porém, hão de tornar-se
estrangeiros numa família política que já não quer saber
deles e os classificará à direita independentemente de sua
vontade. Isso é visível em especial com a passagem, por
parte da esquerda, do paradigma social ao paradigma
societal: os que haviam aderido à esquerda pela
preocupação com a justiça econômica e a redistribuição
social se mostram perplexos com sua guinada diversitária e
se inquietam com a desfiguração da esquerda, à qual
julgam pertencer ainda. [ 107 ] Da mesma maneira, a
esquerda republicana, afeita ao princípio da laicidade, é
acusada de passar para a direita em razão de seu apego a
um universalismo que não aceita ser triturado pela lógica
diversitária. [ 108 ] É que a esquerda não se define antes de
tudo por um projeto, um programa ou uma série de
medidas, mas pela lógica incessantemente relançada da
desencarnação da existência social em nome da
emancipação das categorias alienadas, que sempre
deveriam ser apoiadas em sua revolta e se sucederiam
umas às outras ao longo da história. Era isso o que fazia
Raymond Aron afirmar que a esquerda defende “sobretudo
uma categoria de vítima”, aquela em que é possível apoiar
uma crítica global à ordem social. [ 109 ] É a famosa figura do
outsider, do excluído a quem se confia a missão de servir de
base social potencial para uma próxima revolução.
A divisão esquerda-direita também se renova e logra
assim permanecer no cerne da vida política, ao ser capaz de
apropriar-se dos desafios políticos que permeiam a
comunidade política e traduzi-los em seus termos. Muda
incessantemente de objeto; apodera-se incessantemente de
uma nova questão a partir da qual dividirá a sociedade em
dois, marcando um campo de modo positivo e o outro, de
modo negativo. Acima de tudo, de uma época a outra a
divisão esquerda-direita pode deslocar-se de uma temática
geral a outra, definindo-se em primeiro lugar pela
economia, pela dimensão social e, em nossos dias, pelas
dimensões identitária e societal. No mundo atual, quem é
favorável ao mais intransigente neoliberalismo, mas se
mostra adepto das conquistas no âmbito societal tem mais
chances de ser reconhecido como um homem de esquerda
do que um operário afeito aos velhos princípios da social-
democracia, crítico dos excessos das finanças globais, mas
oposto à imigração maciça e cético diante de certas
reformas societais. Por outro lado, constata-se que um
homem antes classificado como de centro-direita passará
atualmente para a direita, pelo simples deslocamento para
a esquerda do ponto ideológico de gravidade do espaço
público. Como observa Marc Crapez, enquanto nos anos
1980 a direita propunha que a imigração fosse freada, hoje
se contenta, quando toma as rédeas do assunto, em
defender a imigração seletiva. A própria direita populista
passou de um chamado à inversão dos fluxos migratórios à
simples parada da imigração. [ 110 ] De modo similar, como
boa parte da esquerda abandonou pouco a pouco a
laicidade para se converter ao multiculturalismo, a direita
recuperou esse âmbito gradualmente, passando a definir a
nação de maneira quase exclusiva na linguagem dos valores
republicanos, deixando de lado, sem, no entanto, negá-la, a
das raízes cristãs da sociedade francesa (nessa dinâmica,
uma esquerda que se mostre sensível à questão da
insegurança cultural tem boas chances de ser “direitizada”,
e mesmo “extremo-direitizada” pelos que passaram a julgar
que o progressismo culmina no multiculturalismo). Da
mesma maneira, até o início dos anos 1990, a direita se
questionava sobre as tensões civilizacionais entre o Islã e a
França, enquanto hoje ela se permite criticar o islamismo, e
isso essencialmente no plano securitário, sem de fato
refletir sobre o que se poderia chamar de choque entre
culturas e sobre a dificuldade de coabitação de duas
civilizações no mesmo território nacional. Na dinâmica
desse movimento, quem se ativer a uma definição
substancial da identidade nacional ou, de modo mais amplo,
da nação, será deportado para e extrema-direita, como se
vê na Holanda, onde mesmo uma definição substancial da
laicidade, concebida como identidade de civilização, será
rotulada da mesma maneira. Não existe aí, repito,
exclusividade francesa – esse movimento de
dessubstanciação da identidade nacional a que a direita se
refere é igualmente visível na história do conservadorismo
americano, dos anos 1950 aos dias de hoje: o new
conservatism dos dias subsequentes à guerra se constituiu
contra a Old Right, antes de ser desclassificado por um
neoconservadorismo, que por sua vez se constitui em
contraposição àquilo que virá a ser chamado de
paleoconservadorismo. [ 111 ] Enquanto antes ele se
posicionava em primeiro lugar pela defesa do que será
denominado de maneira aproximada como nação histórica
americana, com suas tradições culturais específicas, ligadas
ao núcleo cultural WASP (branco, anglo-saxônico e
protestante), ao qual as diferentes ondas de imigrantes se
teriam aculturado segundo a lógica do melting-pot, o
conservadorismo oscilará a partir dos anos 1970 – e mais
ainda a partir dos anos 1980, com a adesão dos
neoconservadores – para uma definição da nação
descentrada de seu substrato histórico e refundada
essencialmente em torno dos valores universais que
estariam no cerne da experiência americana. A nação
estadunidense já não repousaria numa cultura, mas numa
proposta filosófica, da qual seria preciso apropriar-se para
dela participar, e os que se recusassem a isso se veriam
simbolicamente excluídos. [ 112 ] Assim, os americanos
enraizados na história do país que reivindicassem uma
limitação da imigração se tornariam, por isso mesmo,
unamerican (“não americanos”). Mesmo os clandestinos
seriam, no fim das contas, mais americanos que os críticos
da imigração, visto que adeririam ao sonho americano que
estes últimos se recusariam a aprovar plenamente. [ 113 ]
Esse argumento reverbera a ideia, não raro retomada, de
que a França renegaria sua tradição de acolhida caso
restringisse a imigração, o que equivale a dizer que a única
maneira para ela de permanecer fiel à sua identidade
nacional consistiria em tornar absoluta uma espécie de
“sem-fronteirismo” – “a França não pode propagar sua visão
do universal sem experimentar, em retorno, uma sensível
diversificação de sua paisagem social”, dirá, assim, um
demógrafo diversitário. [ 114 ] A fim de permanecer fiel a sua
aspiração universalista, que seria sua única verdadeira
identidade, ela deveria se multiculturalizar, argumento este
semelhante àquele de que “a identidade está na mudança
e, mais ainda, na capacidade para a mudança”. [ 115 ] No
Canadá inglês, os conservadores, tradicionalmente ligados à
defesa da herança britânica do país, acreditaram que seria
bom realinharem-se à defesa dos “valores ocidentais do
Canadá” conjugados a um multiculturalismo moderado,
para responderem ao Partido Liberal do Canadá,
ideologicamente dominante, que se convertia ao
multiculturalismo radical. No próprio Quebec, os
soberanistas, tradicionalmente ligados a uma definição da
nação ancorada na maioria histórica francófona, sentiram-
se obrigados a redefini-la em termos de “valores
quebequenses” e de “cidadania territorial”, para passar no
teste da inclusão diversitária – uma mudança associada na
cultura política quebequense à passagem do nacionalismo
étnico ao nacionalismo cívico. [ 116 ] A questão nacional – ou,
de modo mais amplo, a questão identitária é talvez a
melhor lente pela qual observar nos tempos atuais a
mudança e a progressão do recorte esquerda-direita.
Ser de esquerda consiste em estar certo mesmo quando
se está errado, porque o engano, então, tem motivos
corretos. Ser de direita consiste em estar errado mesmo
quando se está certo, porque se está certo por razões
ideológicas inadmissíveis, intraduzíveis na lógica da
emancipação. Esse é o sentido da famosa formulação
segundo a qual seria melhor estar errado com Sartre do que
estar certo com Aron. Quem se extravia por boas razões
vale mais do que quem enxerga corretamente por más
razões. Foi o que se viu com o comunismo, no século XX.
Era preciso primeiro ter acreditado nele para depois ter o
direito de já não acreditar – aqueles que nunca haviam
acreditado, essencialmente, não mereciam nenhuma
consideração intelectual, visto que o haviam condenado por
razões reacionárias. A crítica legítima do comunismo era a
dos desencantados, que, no entanto, queriam permanecer
fiéis a seus ideais, e não a dos intelectuais e políticos que
jamais se haviam aliado a ele. O ideal era deixar de ser
comunista, mas continuar a ser de esquerda – mais ainda,
deixar de ser comunista, mas continuando a sê-lo, algo que
o trotskismo possibilitou durante certo tempo. Uma coisa,
porém, era certa: valia mais ter sido comunista para se dar
o direito de já não sê-lo. O homem que acreditou nas
virtudes do progressismo e passou a confessar seu
desencanto não aprecia encontrar os que, ainda ontem, ele
tratava de reacionários. Preferirá antes a companhia dos
outros desencantados, que ao menos têm o mérito de um
dia haver acreditado. [ 117 ] Para retomar a esclarecedora
confissão de Pascal Bruckner, a quem não poderíamos
suspeitar de sectarismo, “ainda hoje somente as tolices de
esquerda me causam indignação, as outras me deixam
indiferente. Prefiro pensar contra meu próprio campo, miná-
lo do interior, a desertá-lo”. [ 118 ] O mesmo ocorre
atualmente com o islamismo, a imigração maciça e o
multiculturalismo: [ 119 ] é quando a esquerda constata a
fragmentação da sociedade diversitária que se torna
legítimo constatá-la. Aqueles que, ao longo dos últimos
anos, se preocupam com a desnacionalização da França e
os territórios perdidos da República não o faziam, ao que
parece, pelas razões certas. Até este momento, os que a
criticavam faziam-no tão somente por ideologia, ou porque
eram impelidos por paixões baixas, nauseabundas até, o
que poderia nos fazer acreditar que a esquerda fareja, em
vez de pensar, ou ainda, que ela pensa com o nariz. [ 120 ]
Agora que a crítica é conduzida por homens que veem o
mundo a partir da esquerda, ela se torna legítima. Esse é
também o caso da liberdade de expressão, cuja defesa só
se torna legítima quando é retomada pela esquerda. [ 121 ]
Na realidade, é preciso que um tema passe para a esquerda
para que se torne legítimo, é preciso que a esquerda se
aproprie dele para que se torne digno de consideração e
seja admitido na conversa pública.
SITUAÇÃO DA DIREITA “MODERADA”

A vida democrática nos obriga a constatar, contudo, que a


direita existe politicamente, e na maior parte do tempo
aceita circular no universo de representação da divisão
esquerda-direita. De tanto lhe ser dito que ela existe, a
direita de modo geral passou a crer nisso, buscando
apropriar-se positivamente dessa categoria e defini-la em
seus próprios termos – na medida do possível, ao menos. De
que maneira ser de direita num espaço político constituído
em torno da mística progressista e num sistema midiático
de esquerda? Estruturalmente em desvantagem, a direita se
encontra diante de duas estratégias que retornam como
num circuito.
A primeira é a da respeitabilização. Nessa perspectiva, a
direita pretende constituir-se como polo sensato e
moderado da vida política. Ela se distinguiria não tanto por
suas ideias, mas por sua atitude adulta diante da existência.
Trata-se essencialmente, para ela, de dar garantias à
esquerda, provando que não está tão “à direita” como se
quer afirmar, o que é uma maneira de dizer que quanto
mais nos aproximamos da esquerda, mais nos aproximamos
da norma constitutiva das sociedades democráticas. Uma
pergunta se impõe sistematicamente a todo homem de
direita: será que ele é muito de direita? Até aonde ele vai, à
direita, na realidade? Essa pergunta costuma ser formulada
pelo jornalista de esquerda, que distingue entre os
direitistas declarados, os que merecem ser integrados à
conversa cívica e os que devem ser tratados como
suspeitos. Podem-se inverter os termos: o que significa ser
muito de direita, senão estar muito longe da esquerda?
Quando a direita adota essa estratégia, que abarca a
retórica do equilíbrio e da moderação, postulará em especial
que compartilha os mesmos objetivos de sociedade que a
esquerda, e que não se distingue dela senão pelos meios
propostos, como se fosse preciso neutralizar toda forma de
diferença substancial em relação a ela. Evitará assim,
sistematicamente, aventurar-se nos terrenos em que a
divisão esquerda-direita é mais acentuada – teme queimar-
se. Consentirá, mais do que no passado, em restringir-se ao
âmbito da economia, como se encontrasse aí um refúgio
contábil em que poderia dar testemunho de sua
competência superior nos assuntos do Estado – na
realidade, ela aí se aninhará, nem que seja assumindo a
postura régia, para marcar sua especificidade. A direita não
seria fundamentalmente diferente da esquerda, não teria
outra visão de mundo: seria apenas uma gestora melhor. A
história, a memória, a identidade seriam boas apenas para
os poetas extraviados. A direita se despolitiza para se
legitimar, neutraliza-se numa postura gestora sem conteúdo
substancial, para ter o direito de governar. A direita se torna
então o partido do homo economicus e decreta que a
economia é o único âmbito concreto do real, as questões
culturais e identitárias tendo a péssima mania de desviar o
comum dos mortais da conquista dinâmica da prosperidade.
Retraída para o terreno contábil, reivindica para si uma
competência exclusiva. Tão progressista quanto a esquerda,
pretende ultrapassá-la no terreno da modernidade,
apostando no mercado e na emancipação do indivíduo.
Procura até voltar contra a esquerda a acusação de
conservadorismo, recriminando-a por ser guardiã do status
quo e de uma ordem burocrática sufocante e historicamente
ultrapassada. O homem de direita que insiste em relembrar
sua modernidade confessa, sem sequer se dar conta disso,
sua submissão às categorias ideológicas dominantes do
progressismo.
A direita ideal seria uma esquerda pálida. A boa direita
seria uma esquerda vagarosa. A direita bem vista seria
declarada humanista: em seu âmago, desejaria ser de
esquerda, mas suas origens sociais ou sua sovinice a
impediriam de aderir plenamente ao campo do progresso. O
maior elogio que se pode fazer a um homem de direita não
é dizer-lhe que ele não é tão direitista assim? Seu sonho não
é, como o havia observado Alain Gérard Slama, ser o
direitista preferido dos esquerdistas? [ 122 ] No entanto, ele
deve ficar alerta, zelando para que afetos conservadores
recalcados desde muito tempo não voltem a emergir: deve
impedir-se de resgatar sua parte tradicional, e há um risco
de que isso aconteça quando as reformas societais se
multiplicam rápido demais, pois ele poderia oscilar para a
direita sem ter consciência disso, opondo-se por reflexo, ao
menos num primeiro momento, para então desculpar-se
denunciando vigorosamente os que ainda se opõem, ao
passo que ele teria evoluído. Para fazer-se perdoar, chegará
a tornar-se o mais feroz guardião do novo avanço
progressista, a fim de evitar ser relembrado de que ainda
ontem se contrapunha ao sentido da história. Por mais que
se tenha manifestado ou ardentemente militado contra uma
reforma societal, explicará que o país já saiu daquele ponto
e que não se deve olhar para trás, mas para frente. Ele se
legitima politicamente por sua capacidade de não se deixar
definir por seus engajamentos do dia anterior. O homem de
esquerda é admirado pela fidelidade a suas convicções, e o
de direita, pelo fato de não ter convicções – ou de saber
distanciar-se delas em nome da adaptação à modernidade.
Na realidade, a direita zelosa de respeitabilidade midiática
se transformará em guardiã da moral da esquerda em seu
próprio campo e acusará a tendência de uma parte da
direita de ir demasiado para a direita – isto é, de distanciar-
se exageradamente dos critérios de respeitabilidade ditados
pela esquerda e até de contestá-los, ao menos no plano
retórico. [ 123 ] A direita humanista é a que impede a
direitização de seu campo e a que se mostra a mais
intransigente guardiã da distinção entre a direita e a
extrema-direita. A direita humanista tem seu endosso: é a
direita dura [ 124 ] (por oposição à direita mole?),
ultraconservadora [ 125 ] (“mas primeiro seria preciso definir
o conservadorismo, antes de saber em que consiste o
ultraconservadorismo”) e até reacionária. Como esse termo,
que tradicionalmente designava quem recusa
filosoficamente a modernidade, veio a designar quem
recusa submeter-se aos decretos ideológicos das novas
vanguardas da pós-modernidade? Adivinha-se a resposta: a
modernidade está, por definição, em movimento, e os que
não seguem o movimento estão condenados a se tornar
cedo ou tarde reacionários, independentemente de sua
vontade. A direitização nada seria além de uma extrema-
direitização: quanto mais a direita se tornasse ela mesma,
mais inaceitável se tornaria. [ 126 ] A direita, quando
entregue a si mesma, quando emancipada de seus
complexos e da vigilância da esquerda – encarnação da
consciência moral da nossa civilização –, experimentaria
uma tentação culpada e sempre nos levaria de volta às
“páginas mais sombrias do século XX”. Por meio da
acusação de “direitização”, a direita é acusada de sair do
perímetro democrático e introduzir uma maneira de
conceber a política que estaria em contradição com os
“valores republicanos” (que alguns têm o direito de definir,
e aos quais os outros devem se submeter) ou os “valores
democráticos”. É a esquerda que fixa, de maneira arbitrária,
a fronteira entre a direita e a extrema-direita, e cabe à
direita “moderada” fazer com que tal fronteira seja
respeitada. Trata-se de fazer com que a direita dita
moderada seja a primeira a manter as rédeas da direita
denominada dura, que sempre será acusada de flertar com
a extrema-direita. Compreende-se a ideia: em seu âmago, a
direita seria apenas uma extrema-direita contrariada. Uma
direita sem arreios seria necessariamente selvagem. De
modo geral, a direita se direitizaria sob a influência de um
“mau gênio” vindo das margens da comunidade política
para assombrá-la, fazendo-a regressar a uma era anterior
da história. Essa direitização seria não raro a obra de um
espírito superior e diabólico, que se infiltraria entre os
democratas para corrompê-los. Patrick Buisson, [ 127 ] na
França, Steve Bannon, nos Estados Unidos, [ 128 ] ou os
nacionalistas conservadores no Quebec, que teriam
desviado o combate pela laicidade ao investi-lo de uma
carga identitária, desempenharam, cada qual, um papel
maléfico [ 129 ] – o que importa, então, é expulsar da política
democrática o demônio vindo das margens, para que ele já
não possa desviá-la de seu curso natural. Isso porque ele
não passa de uma potência maléfica oriunda das entranhas
da comunidade política e que busca hipnotizar um campo
para desviá-lo do horizonte radioso do progresso e assim
inverter o curso da história. O progressismo não é estranho
ao conspiracionismo.
A DIREITA AMANSADA

Que relação as pessoas chamadas de gente de direita


mantêm com aquele espaço político que as condena à sub-
representação sistemática? Sabemos que, de modo geral,
elas são mais sensíveis aos temas do conservadorismo
cultural do que boa parte de seus líderes. É possível,
contudo, que sejam mais fáceis de amansar do que em
geral se supõe – isso, ao menos, é o que uma rápida revisão
da vida política francesa dos últimos anos nos leva a crer.
Assim, no primeiro ano de seu quinquênio, Emmanuel
Macron foi capaz de neutralizar parcialmente um setor da
gente de direita, concedendo-lhe certas garantias culturais,
como se compreendesse bem o que impulsiona sua
psicologia e soubesse enviar-lhe certos sinais políticos
favoráveis – os quais foram muito bem acolhidos, sobretudo
por serem inesperados, vindo de um homem que de início
havia negado a existência de uma cultura francesa. Com a
restauração de certa verticalidade presidencial e a
nomeação de Jean-Michel Blanquer para a Educação
Nacional, Emmanuel Macron soube recuperar uma parte das
aspirações conservadoras que vinham se expressando na
sociedade francesa nos últimos dez anos, sabendo restaurar
por um tempo, mas apenas por um tempo, a seriedade da
palavra presidencial. [ 130 ] Emmanuel Macron também se
permitiu algumas provocações, que podemos acreditar
calculadas, como aquelas relativas ao necessário retorno de
certos imigrantes para seu país, em novembro de 2017, ou
quando destacou, de maneira bem inesperada, sua
exasperação diante do lembrete culpabilizador da memória
da guerra da Argélia em dezembro do mesmo ano. Macron
compreendia, ao que tudo indica, que basta transgredir os
códigos do politicamente correto, mesmo minimamente,
para estabelecer um vínculo com o eleitorado de direita. Da
mesma maneira, bastou que Emmanuel Macron não ficasse
de todo embevecido diante da imigração maciça para que
fosse remetido ao campo dos proscritos ou, ao menos, dos
inimigos do “humanismo”. No entanto, essa estratégia se
desdobrou plenamente e, ao mesmo tempo, se revelou
quando Macron escolheu para entrevistá-lo, em abril de
2018, Edwy Plenel. Ao confrontar Plenel, e até lhe opondo
uma resistência jocosa, recusando-se a tremer diante dele,
angariava de um lance um verdadeiro capital de simpatia
entre os eleitores de direita, sem esforço algum.
Compreende-se então que Macron esvaziou a direita no
plano simbólico, sem na prática haver-lhe concedido muito
no plano político, ainda que depois tenha perdido grande
parte dessa simpatia por sua mania de dar o mesmo lote de
garantias à esquerda cultural.
Será preciso concluir que o eleitorado de direita se
contenta com promessas vagas? Será que basta não falar
como um bobo [ 131 ] para suscitar de imediato a simpatia
dos que já não suportam o politicamente correto? Tudo
indica que sim, na medida em que qualquer
pronunciamento que divirja da ortodoxia midiática suscita,
ato contínuo, uma simpatia entre os que sentem que o real
vem sendo censurado por demasiado tempo. Há muito que
a direita já não faz política, e nem mesmo se imagina
fazendo. Palavras pomposas consolam e, no fim,
anestesiam. Sob certos aspectos, a direita se contenta em
ser respeitada em sua derrota histórica, o que não fora feito
pelos ministros de François Hollande, que não paravam de
pisotear o velho mundo, acusando os que a ele se
apegavam de racismo, sexismo ou homofobia. O eleitor de
direita não quer necessariamente ganhar: ao menos, já não
acredita em sua vitória e mostra-se surpreso quando líderes
políticos ou figuras midiáticas enfrentam de fato a
mentalidade da época e intentam recuperar o terreno
perdido por meio de polêmicas, leis e verdadeiras decisões
políticas. No entanto, quer parar de ser humilhado. Tolera
que o mundo mude: há muito tempo lhe vinham explicando
que a modernidade tinha algo de inelutável e era
unidirecional. Mas não tolera que o apresentem como a
madeira morta da humanidade, ou como sua parte
retrógrada e desprezível. Emmanuel Macron o havia
compreendido, desolando-se com o tratamento reservado
aos adversários do casamento para todos, sem se opor,
como se pode suspeitar, à medida em si, ou comparecendo
em Puy-du-Fou para exibir seu respeito por aquilo a que se
chama a outra França. Essa forma de triangulação
simbólica, para dizê-lo com as palavras da ciência política,
permitiu que Emmanuel Macron tirasse proveito dos temas
da direita sem fazer uma política de direita quanto às
questões de civilização. Ele neutraliza a direita, dando a
impressão de respeitá-la. Sem extrair disso conclusões
definitivas, pode-se assinalar um aspecto da psicologia do
eleitor de direita: ele tem expectativas bem menos elevadas
do que em geral se pensa.
FIGURA DA DIREITA DESCOMPLEXADA E…
A DIREITA DESCOMPLEXADA VISTA PELA ESQUERDA

No entanto, pode ocorrer que a direita – ou ao menos uma


parte dela – queira mudar o equilíbrio de forças e combata a
esquerda frontalmente. [ 132 ] Ela já não pretende ser boa
aluna, mas insurreta. Já não suporta viver sob vigilância,
sempre a se perguntar se não estaria indo longe demais,
além de ir na direção errada; então nasce nela um desejo
ofensivo. Ganha a convicção de que um programa morno
não interessa a ninguém, e que um corno contente não é lá
muito inspirador. Já não consegue reprimir o que pensa ou
imagina pensar – ao menos, o que tem certeza de sentir. A
direita deseja então assumir-se e emancipar-se do olhar da
esquerda. Já não pretende desculpar-se por existir. Quer
então confrontar a esquerda em seu terreno, sem deixar-lhe
o monopólio dos códigos da respeitabilidade. Revolta-se e já
não aceita viver sob sua tutela ideológica. Isso é o que se
chama a direita descomplexada. A direita deveria então
reencontrar seus valores, seu imaginário próprio, e parar de
se definir meramente como esquerda comedida. [ 133 ] Já não
se contentará com um pragmatismo gerencial, mas
formulará sua própria visão da boa sociedade. Quando se
sente audaciosa, põe-se até a ler Gramsci ou, ao menos,
assim afirma – compreendeu que Gramsci se tornou o
símbolo de uma vontade de construir uma hegemonia
ideológica. É a hora da revolução dos valores. [ 134 ] A direita
anuncia seu desejo de resgatar os temas políticos
abandonados, que em geral giram em torno da questão
identitária e, mais amplamente, da questão civilizacional,
que ela havia abandonado à direita populista. Esse
chamado ao grande impulso de uma direita liberada de seu
complexo de esquerda energiza, sem a menor dúvida, boa
parte daquela sua base eleitoral habitada por uma forte
consciência nacional e atormentada pelo sentimento do
rebaixamento da pátria.
O conservadorismo se torna então o símbolo de um
desacordo – ligado não à conjuntura, mas a princípios – com
a esquerda. No entanto, esse conservadorismo reivindicado
costuma ter dificuldade para traduzir-se politicamente. De
fato, basta fazer o histórico das numerosas ressurreições da
direita descomplexada para constatar que seu chamado
costuma permanecer no âmbito da retórica, como se a
direita descomplexada fosse antes de tudo uma direita de
fanfarronadas – nunca se viu, por exemplo, a direita reverter
uma reforma societal que a esquerda carimbou com o
sentido da história. Ainda que tonitruantes e decididos a
deixar de ser penitentes, os líderes da direita não parecem
defender um mundo, mas os resquícios de um mundo,
sabendo de antemão, na maior parte do tempo, que estarão
prontos para fazer concessões quanto à posição à qual hoje
pretendem absolutamente aderir. Fatalismo inconfesso?
Querem de fato lutar contra a mentalidade da época, mas
sabendo-se vencidos de antemão. Secretamente, o homem
de direita se pergunta se o que ele ama já não está morto
ou, ao menos, se ele não está chegando tarde demais para
salvá-lo. Será que se trata apenas de impedir o mundo de
ontem de desaparecer demasiado rápido, para que o
homem possa habituar-se ao novo mundo que surge sem
ser lançado nele de maneira precipitada? Será que se trata
de frear a evolução, de reconstruir o mundo de ontem,
fazendo uma espécie de política reacionária? Será que se
trata meramente de desacelerar o movimento da história, a
fim de conservar certas formas sociais herdadas, antes que
fiquem completamente gastas e só apareçam como
privilégios indefensáveis que devem cedo ou tarde ser
abolidos? Faz-se oposição à gestação por substituição, à
imigração maciça e às repetidas concessões ao Islã, mesmo
sabendo que, no fim, muitos capitularão, além de acusar de
radicais os que não capitulam. A direita é representada na
situação detestável de guardiã dos privilégios: ela se opõe à
marcha do mundo e, no fundo, já se sabe condenada, o que
a torna bem pouco valente quando vem a hora de defender
suas posições e suas ideias. Por mais descomplexada que
seja, a direita não parece mentalmente preparada para
retomar o terreno perdido e para fazer avançar seu próprio
programa.
A expressão “direita descomplexada” é com frequência
retomada pela esquerda, à maneira de uma acusação de
radicalização. A direita descomplexada seria uma direita
desinibida, que resgata afetos e paixões que a modernidade
havia recalcado. A direita descomplexada seria uma direita
abrutalhada e pronta para transpor a qualquer momento a
linha vermelha que a distingue da “extrema-direita” – sem
que ninguém se dê ao trabalho de saber quem traça essa
famosa linha vermelha ou, mais sobriamente, quem fixa os
critérios que distinguem a direita da extrema-direita e qual
o momento em que uma posição se torna tão radical a
ponto de oscilar para o universo dos extremos. Na
realidade, a direita descomplexada teria a intenção de
recuperar o terreno historicamente concedido à direita
populista, mas isso não é permitido. Abandonada à direita
populista, a questão da identidade já não poderia ser
recuperada pela direita republicana sem que esta se
corrompesse moralmente. A direita descomplexada faria o
jogo da direita populista ao normalizar seus temas, ao
reintegrá-los na conversa cívica. Isso porque, quando o
terreno é cedido, é de uma vez por todas: a marcha da
história passou por ali e já não é possível voltar a ele sem
oscilar para a reação e inserir-se assim na lógica da
extrema-direita. A esquerda que acusa a direita de se
descomplexar reconhece implicitamente, e com frequência
sem sequer se dar conta disso, que ela só reconhece como
direita legítima a que se encontra sob sua tutela. Uma coisa
é certa: uma direita que já não se define nos parâmetros da
esquerda é a partir daí considerada por esta última como
uma extrema-direita (ou, ao menos, como uma extrema-
direita potencial). Existe aí uma espécie de confissão da
parte da esquerda ideológica, para a qual a direita nada
mais é do que uma extrema-direita refreada, ou a extrema-
direita, nada além de uma direita desinibida. [ 135 ]
Encontramos aí um dos esquemas mentais que
estruturam o progressismo: ele não imagina o conflito
político como uma luta entre concepções relativas e
necessariamente aproximativas do bem comum, mas como
uma luta entre o império do bem e o império do mal,
enquanto a direita, na maior parte do tempo, é incapaz de
refletir sobre o conflito fundamental que a opõe à esquerda,
quando decide efetivamente se assumir como algo além de
um duplo diminuído desta última. A esquerda precisa
confrontar moralmente a extrema-direita ou os que fazem
seu jogo. Precisa de inimigos. “Não obstante seu
proclamado amor pelo gênero humano”, observa Patrick
Buisson, “a esquerda dispõe (no âmbito político) de uma
nítida vantagem psicológica. A matriz revolucionária de que
se origina torna impossível para ela viver politicamente sem
inimigos, ter acesso à esfera pública de um modo que não
seja o da polarização exacerbada em que o inimigo substitui
o adversário ou o concorrente”. [ 136 ] Philippe Muray
escreveu isso raivosamente: “foi na inquebrantável
convicção de encarnar a guerra contra o Mal que a esquerda
de hoje se constituiu, ela nada mais é do que o partido
devoto contemporâneo”, [ 137 ] enquanto Alain Finkielkraut
se preocupa com “o grande sonho progressista de nunca
lidar com problemas, mas sempre com canalhas”. [ 138 ] Isso
é o que explica a prosperidade do antifascismo num mundo
em que o fascismo foi vencido há muito tempo e só existe
por meio de alguns grupelhos sectários. [ 139 ] O antifascismo
prescinde do fascismo histórico, na medida em que este
último é reconceitualizado como a tentação da exclusão,
que seria o avesso da emancipação democrática. Basta
querer circunscrever a comunidade política de maneira um
tanto estrita para ser acusado de atualizar a tentação
fascista. A definição do fascismo será incessantemente
estendida para justificar a mobilização contra ele. Na
véspera da eleição presidencial francesa de 2017,
Christiane Taubira se dedicou, numa entrevista torrencial, a
considerações gerais sobre a direita, contra a qual mais
uma vez convidava o seu campo a se mobilizar. Sem
grandes matizes, afirmava que “a direita faz comércio da
ansiedade, da angústia, da desesperança, isto é, de um
desespero dinâmico que é renovado, cultivado. A direita faz
comércio disso lúcida e cinicamente”. [ 140 ] A acusação era
franca, clássica e sem originalidade: a humanidade se
divide entre as forças da luz e o obscurantismo. A esquerda
eleva o homem, a direita rebaixa-o: cada qual está ligada a
uma parte singular da alma humana. A primeira impele o
homem para a emancipação, a segunda, para a regressão.
A direita, em outras palavras, seria a expressão política das
baixas paixões que atravessam a natureza humana. Ela
canalizaria, na comunidade política, um espírito maligno
que impele os homens ao retraimento e à exclusão.
Consequentemente, a civilização se constituiria por meio da
repressão à direita: só seria possível tolerar, no espaço
público, sua parcela moderada, que consente em definir-se
segundo os valores progressistas e envia regularmente
sinais ostensivos de virtude. Carolin Emke, numa obra
celebrada, reduziu essa polêmica a sua dimensão mais
simples, pronunciando-se assim contra o ódio [ 141 ] – o ódio
que seria, antes de tudo, uma paixão maníaca pela pureza,
pelo homogêneo, e que se traduziria pela rejeição visceral
às diferenças. Ou o homem consente na dissolução de todos
os seus pertencimentos, ou é tomado por estremecimentos
de ódio. A psicologia do progressismo é inquisidora: não
leva a um conflito civilizado entre concepções contrastadas
do bem comum, mas a uma luta a ser terminada entre o
bem e o mal.
QUEM É DE DIREITA É DE ESQUERDA

À luz das elaborações anteriores, compreende-se por que


razão existe algo de ilusório na defesa de um debate
desapaixonado e respeitoso entre a esquerda e a direita, na
medida em que a primeira só quer debater com a segunda
enquanto tiver o controle dos códigos da vida pública e
lograr definir, exclusivamente em seu favor, os parâmetros
da conversa democrática. A divisão esquerda-direita não é
feita, de fato, para permitir a coexistência de várias
concepções do bem no centro da comunidade política, mas
para impor uma única, chamada a tomar todo o espaço,
como se conjugasse o monopólio do verdadeiro, do bem e
do justo. Existe, é claro, uma tendência a acreditar que a
divisão esquerda-direita, embora se mantenha apesar de
tudo, tenha se desradicalizado consideravelmente, o que é
defendido em especial por Jacques Julliard, quando este
afirma que “passamos de uma cultura política do mútuo
extermínio a uma cultura do enfrentamento ponderado”.
Embora não reste a menor dúvida de que a grande disputa
em torno do capitalismo tenha se amornado e que haja
inúmeros pontos de contato entre a esquerda social-liberal e
a centro-direita liberal e social, é preciso acrescentar,
contudo, que a divisão esquerda-direita já não se constitui
de fato em torno dela ou, ao menos, já não encontra nela
seu ponto de ancoragem ideológica. “O que morre”,
acrescenta Julliard, “é a concepção ideal da política como
uma gigantesca psicomaquia que opõe entidades abstratas
como o Bem e o Mal, o Justo e o Injusto; é a política como
forma secularizada do julgamento final: é a visão
erradicadora […] que não vê no adversário alguém que
pensa de outra maneira, mas um inimigo irreconciliável. Pior
que isso: um predador. Tal relativização moral só foi possível
a partir da desvinculação entre as opiniões e as classes
sociais”. [ 142 ] No entanto, é justamente a partir do
momento em que a política deixa o âmbito do ordenamento
concreto de uma sociedade imperfeita para tratar de
questões como a imigração maciça, o multiculturalismo, a
diferença sexual ou a liberdade de expressão que ela se
recarrega ideologicamente e que reaparece a tentação de
erradicar o adversário que não marcha no ritmo do
progresso diversitário. Não se trata, é claro, de dizer que, no
plano das políticas e dos programas, os dois campos não
podem formular propostas válidas, que mereçam uma
adesão sincera da parte dos que compõem o corpo político.
Em geral encontramos excelentes ideias em todos os
campos, e a inteligência política mais elementar consiste
em reconhecer isso. Quando a política se atém à escala
programática, em que os partidos propõem, cada qual,
soluções para ordenar de modo prosaico a comunidade
política, fórmulas inspiradoras serão encontradas em cada
um dos campos. Isso é o que dizem os que se pretendem
esquerdistas e direitistas, ou que buscam inspirar-se nos
dois campos para definir uma política sem exclusividades. O
encerramento doutrinal é uma força de estreitamento
mental. No entanto, quando se estende a vista à altura da
história, parece difícil negar que essa divisão, com o tempo,
tem um objetivo que vai além de uma organização
ponderada do pluralismo político: visa antes à plena
realização de uma modernidade que se terá livrado de uma
vez por todas de seus últimos entraves.
A evidência impressiona: quem é de direita é de esquerda,
na medida em que quem aceita entrar nessa divisão é
sugado por uma dinâmica que parece mais ou menos
incontrolável a partir de seu campo. Ao continuar a se
definir nessa divisão, aquilo a que chamamos direita
depende do posicionamento que será tomado pela
esquerda; ela se define sistematicamente numa linguagem
ideológica cujos códigos e cujas mutações ela não domina:
condena-se, assim, à impotência intelectual e, portanto,
política. Só pode extrair-se dessa dinâmica de abdicações
repetidas ao aceitar de antemão sua própria demonização.
No entanto, na medida em que parece ilusório despedir-se
de um sistema de representação bem implantado na cultura
política ocidental e sistematicamente renovado como grade
de análise pelo sistema midiático, é provável que seja
preciso aceitar, à maneira de uma categoria incômoda, mas
inevitável, a existência da direita. Nesse caso, ao menos,
não é de seu interesse cultivar com a política a mesma
relação cultivada pela esquerda. Não deve defender um
sistema ideológico alternativo, mas uma civilização, em
suas mil facetas. A direita não tem apenas outras ideias:
tem outra relação com as ideias. A direita não ambiciona
construir uma civilização ideal com sua própria maquete.
Não pretende racionalizar o mundo por completo,
submetendo-o a sua própria lógica – julga-se consciente, ao
menos em teoria, do caráter fundamentalmente
irreconciliável da ordem social, que jamais pode chegar a
uma síntese definitiva, em que todos os valores e todos os
interesses viriam encaixar-se num mosaico perfeito. Sua
política não pretende fundir a comunidade política numa
síntese ideal – visa antes a uma síntese prática, sempre
inacabada, sempre decepcionante, também, para os que
pretendem consumar na Terra a comunidade política
perfeita. [ 143 ] A arte política consiste em manter a coesão
de uma comunidade política particular, entretecida na
história, e que não tem a pretensão de se refundar numa
mística da transparência, confiando-se aos engenheiros
sociais convencidos das virtudes do construtivismo
absoluto. Isso foi o que Marc Crapez observou com sutileza:
“a direita não é o que a esquerda acredita que seja. O
dilema já não diz respeito à Revolução Francesa ou ao
critério religioso. Nem a valores como o individualismo
pluralista. A direita não tem nada contra a justiça, a
igualdade diante da lei ou o caráter sagrado da pessoa.
Define-se por uma coisinha de nada: uma relação
privilegiada com a história, a história como medida”. [ 144 ] A
direita, em outros termos, é o partido das mediações que
ancoram o homem numa humanidade concreta, e que
relembram à modernidade sua insuficiência antropológica. A
partir do momento em que pretende se opor a um
empreendimento de reconstrução ideológica permanente da
comunidade política, condena-se a um conflito político
receado por ela. A direita, em última instância, nunca será
respeitável o bastante para a esquerda.
Capítulo 4 | O progressismo e os leprosos
 
O populismo como desvio reacionário da democracia
 
 
 
 
 
Não prevíramos que o antigo retornaria, novinho em folha.
Régis Debray
 
Os camponeses poloneses decerto não se encontravam nos píncaros
da civilização. Talvez os que eu observava fossem até iletrados. Meu
amigo certamente teria dito que eram imbecis fedorentos e
abomináveis aos quais se precisava ensinar a pensar. No entanto, uma
semente fora preservada neles, ou nos bálticos, ou nos tchecos; e isso
foi possível porque eles não haviam sido curados à maneira do Sr.
Homais. Não estou certo de que a ternura com que as mulheres
bálticas cuidam de seus jardinzinhos, as superstições das mulheres
polonesas que colhem ervas mágicas, a tradição de deixar um prato
para um viajante antes de sentar à mesa para o jantar na véspera do
Natal, não sejam garantias de uma força benfazeja passível de ser
desenvolvida. […] Para os círculos em que meu amigo vive, supor que o
homem seja um mistério é um insulto abominável. E, no entanto, essa
gente quer erigir um homem novo – mas faz isso como o escultor que
extrai uma imagem da pedra rejeitando tudo o que é supérfluo. Parece-
me que essa gente se engana – que seu saber, por maior que seja, é
insuficiente, e que o direito de vida e de morte que detém em suas
mãos é uma usurpação.
Czesław Miłosz
 
No verão de 2018, em Quimper, na Bretanha, quando se
anunciou uma longa campanha pelas eleições europeias,
que então se desenhavam como um referendo sobre a
imigração maciça, Emmanuel Macron quis situar a celeuma
em escala histórica, apresentando-se como o campeão do
progressismo contra a “lepra populista” e nacionalista. [ 145 ]
A formulação dava facilmente a entender que a civilização
europeia estava prestes a reviver, num novo cenário
histórico, a luta entre a democracia e o fascismo, algo que o
presidente francês confirmou alguns meses depois,
confiando à imprensa que sentia pairar sobre o nosso tempo
a sombra dos anos 1930, uma referência que se tornou
obsessiva entre os que querem conter o retorno das nações
e até acabar com elas. Aliás, foi o imaginário do contágio
que Emmanuel Macron mobilizou para falar de seus
adversários. A lepra gera leprosos, e não se convidam
leprosos para participar da vida pública assim, como se
nada fosse. Primeiramente, eles são postos em quarentena
e, depois, na medida do possível, são tratados. A questão
aqui, naturalmente, era uma lepra política suscetível de
necrosar o corpo social. Segundo a formulação belga, seria
necessário estender um “cordão sanitário” para impedir a
contaminação do espaço público. A mobilização era
urgente. A Europa estaria no cerne do abismo. Jamais a
democracia europeia teria estado tão fragilizada desde que
pairou sobre ela a ameaça totalitária.
Nada disso era realmente novo, verdade seja dita. Desde
o início dos anos 1990 e a queda do muro de Berlim, que
por um tempo fez acreditar num fim da história que
dissolveria de uma vez por todas os enfrentamentos
políticos numa simples disputa gerencial, a vida política
europeia se repolarizou por meio do combate contra a
“extrema-direita”. Este último logo se tornou a obsessão do
sistema midiático e da ciência política. Tratava-se de
construir uma categoria de contraste que servisse a um só
tempo para descrever o fenômeno e denegri-lo. A figura do
inimigo, constitutiva da política, porém neutralizada pela
antropologia liberal, recompunha-se a partir do retorno de
um perigo esquecido. Uma força derrotada havia muito
tempo voltava a assombrar a democracia, saindo das
margens em que fora mantida encerrada. A velha extrema-
direita, há muito vencida, teria retornado com novos trajes:
é o que dá a entender a denúncia apavorada do “retorno
dos populismos”. No entanto, essa narrativa soava falsa.
Existem limites para a soada do alarme contra o eterno
retorno dos anos 1930, exceto quando se quer assimilar
toda forma de crítica da modernidade a um pensamento
desviante que conduz inevitavelmente ao fascismo e ao
nazismo. A fera sórdida nem sempre está às nossas portas e
seu ventre não é necessariamente fecundo.
Historiadores, estudiosos da política e sociólogos
buscaram formular conceitos e grades interpretativas para
explicar o que havia de fundamentalmente novo no surto
populista, sem, contudo, deixar de tratá-lo como uma
ameaça. Ao menos, tratava-se de uma ameaça
parcialmente inédita, que não renovava de maneira
simplista as disputas de ontem no mundo de hoje. Taguieff
falará assim de um movimento nacional-populista, para
esclarecer nossa compreensão de um novo objeto. “A falsa
clareza da categoria ‘extrema-direita’, substituída pela
categoria da ‘direita radical’, constituiu o principal obstáculo
às tentativas de analisar as formas emergentes de uma
contestação global, de cunho não marxista, das sociedades
contemporâneas. Conduz a postular que os neopopulismos
europeus de direita, reduzidos a rebentos de uma velha
extrema-direita, são uma ‘ameaça para a democracia’,
quando antes de tudo são um sintoma de um mal-estar
democrático […].” [ 146 ] No entanto, as elaborações
conceituais da ciência política e esse apelo para que não se
reduza o movimento histórico a um eterno retorno do
mesmo relativizam apenas em parte a encenação do perigo
populista: a democracia se redefinirá positivamente à
maneira de um programa de luta contra todas as
discriminações e, mais em particular, de luta contra o
racismo, o sexismo e a homofobia. Na democracia
contemporânea, o antifascismo se emancipou da luta contra
o fascismo histórico e converteu-se em luta contra toda
forma de conservadorismo que pretenda se opor à mutação
civilizacional associada aos Radical Sixties. O novo regime
diversitário conseguiu assim tirar proveito da lembrança
dele, para então associar seus próprios adversários ao
inimigo diabólico da democracia contra o qual tudo seria
permitido. [ 147 ] A luta contra a intolerância vem substituir a
luta contra o fascismo – esse deveria ser o projeto político
do nosso tempo, e passaria pela desconstrução dos
particularismos históricos como as culturas nacionais ou as
identidades civilizacionais mais profundas, relativas à
natureza humana –, pode-se pensar na diferença sexual. O
antifascimo saiu do enclave da experiência histórica do
fascismo: a partir de agora, sua vocação é conduzir a
batalha pela sociedade aberta, contra a sociedade fechada.
Reencontramos aqui a teoria da Escola de Frankfurt, para a
qual o fascismo outra coisa não era, no fim das contas,
senão um conservadorismo radicalizado em situação de
crise, baseado nas estruturas tradicionais da civilização
ocidental e na personalidade autoritária, que naturalmente
se lançaria para ele a fim de conter uma decadência
existente em sua fantasia. [ 148 ] “Tanta energia despendida
contra um fascismo ilusório”, observou Jean Sévillia, “tem a
função exclusiva de preservar a herança ideológica da qual
as elites são depositárias, sua utopia de um universo sem
restrições e sem barreiras”. [ 149 ]
Não resta a menor dúvida, um poderoso surto de protesto
se faz sentir, que remexe as camadas profundas da
sociedade e abala os arcabouços em geral assentes da
análise política, como se o sistema de interpretação global
que deveria tornar inteligível esta crise em grande escala
penasse para enxergar aí algo que, no entanto, é uma
mutação da vida democrática ocidental. Ele é rotulado de
populista, mas esse termo nem sempre é reivindicado,
longe disso, sobretudo porque agrega fenômenos que,
embora correspondentes em certos planos, têm pouca
relação entre si em muitos outros. [ 150 ] Em regra geral,
qualificar um adversário de populista é injuriá-lo. O
populismo também costuma ser associado a um estilo
insurrecional, quase demagógico. Se o empregamos aqui,
como se deve ter compreendido, é pela vontade de decifrar
o tratamento dado a esse surto pelo sistema político-
midiático. Em vários países, os partidos populistas
conseguiram sair da mera função demagógica da qual se
haviam apropriado, na qual constituíam politicamente o
povo numa postura insurrecional, algo que,
paradoxalmente, consagrou sua exclusão do jogo político. [
151 ] É a uma recomposição política de grande envergadura
que assistimos. Os próprios temas inseridos no cerne da
conversa cívica se transformam. Diante do surgimento da
questão identitária, a esquerda social-democrata e a direita
liberal, que durante muito tempo haviam respeitosamente
disputado entre si dentro dos parâmetros do Estado social,
encontram por fim a oportunidade de reconciliação. Quanto
às forças novas, conseguem impor-se, e até concorrer por
funções governamentais. Nos Estados Unidos, o sistema
político não foi capaz de conter a insurreição populista, que
logrou apoderar-se, por meio da campanha de Donald
Trump, de um dos dois polos do sistema político partidário,
enquanto tradicionalmente o populismo, quer de esquerda,
quer de direita, apostava na opção do terceiro partido, que,
conforme se esperava, emanciparia a política estadunidense
do combate sempre renovado entre republicanos e
democratas. Em outras palavras, embora a estratégia de
Trump seja populista, não se deve esquecer que ele não a
exerceu exclusivamente a partir das margens do jogo
político, mas apoderando-se de um dos dois grandes
partidos da política estadunidense, e isso num momento em
que os democratas escolhiam uma candidatura que
encarnava de maneira caricata um sistema cada vez mais
errático. Da mesma maneira, na Grã-Bretanha, o sistema
parlamentar, tradicionalmente capaz de conter os surtos de
protesto ou, ao menos, de neutralizá-los privando-os de seu
radicalismo, fracassou no caso do Brexit: o UKIP, partido
soberanista e conservador, foi capaz, ao apostar
essencialmente no palco político europeu, de ocupar espaço
político suficiente para forçar os grandes partidos a realizar
um referendo, o que lhes foi recriminado. Na Europa
ocidental, o populismo consegue participar das coalizões
governamentais, como se viu na Itália, enquanto na Europa
oriental conquistou o poder, fazendo inúmeros países
oscilarem para a democracia iliberal, segundo a formulação
hoje autenticada, cujo significado é menos evidente do que
se imagina. Não é garantido que se possam integrar tais
realidades num único e mesmo fenômeno global, mas a
politologia progressista que domina mentalmente o sistema
midiático ocidental de interpretação assim as apreende. [ 152
] A imagem que se costuma adotar é a do tremor de terra
global, que fragilizaria a democracia ocidental. Esse
populismo, identitário, conservador e soberanista, poria em
questão o sistema da globalização que se desdobrou desde
o início dos anos 1990, e mais ainda, a sociedade
diversitária oriunda dos Radical Sixties.
Não restam dúvidas quanto à sinceridade da cruzada
macroniana – ela é típica da psicologia política progressista,
que não concebe a comunidade política como o lugar de um
enfrentamento entre vários polos ideológicos legítimos,
cada qual traduzindo à sua maneira uma antropologia em
filosofia política, mas como uma luta a ser concluída entre o
bem e o mal. No entanto, o discurso de Emmanuel Macron
tinha também uma finalidade estratégica explícita e
representava uma forma de contra-ofensiva, em escala
global, diante do surto populista: tratava-se de configurar o
espaço político em seu próprio favor, numa luta a ser
consumada entre o progressismo e o populismo, liquidando
a direita conservadora, como se esta última não passasse
de uma quantidade negligenciável no debate público, com
suas magras tropas tendo de fundir-se na maioria
progressista e consentir na própria neutralização, ou de
aliar-se ao movimento populista e consentir em sua própria
exclusão simbólica do perímetro republicano, ou de manter
uma existência residual entre ambos, marcada pelo selo da
insignificância. O sistema político francês parecia esgotado,
e encontrou em Emmanuel Macron uma maneira de se
reconstituir sem passar por aquilo a que se denomina
“extremos”. Vindo da “esquerda”, Emmanuel Macron foi
capaz, em menos de um ano, de passar junto a uma parte
da opinião pública por um presidente de “direita”, sem, no
entanto, deixar-se circunscrever por uma identidade política
precisa. Com seu acesso ao poder, teorizou uma
representação do espaço público que lhe permite, ao menos
por um tempo, proteger-se das correntes mais agitadas da
política francesa. Para dizê-lo em termos geográficos,
Emmanuel Macron soube situar-se em posição central e
repelir seus adversários para a periferia. Assim posicionado,
esperava uma vitória quase total – essa estratégia não data
de ontem, foi elaborada primeiramente por Giscard, que
pretendia reunir dois franceses em cada três e deixar nas
margens as oposições decretadas como radicais, quer de
esquerda, quer de direita, quer se afirmem ligadas ao
comunismo, quer ao gaullismo conservador.
Macron queria se envolver num duelo com o populismo,
que ele acreditava ser vantajoso, e reeditar o cenário do
segundo turno da eleição presidencial de 2017, quando
havia liquidado a direita para ter diante de si apenas a
candidata do Front National – uma estratégia que lhe
permitiu também, no primeiro ano de sua presidência,
escolher seus oponentes privilegiados, principalmente Jean-
Luc Mélenchon, tirando proveito disso para aniquilar quase
por completo a questão identitária, quanto à qual ele se
sabia em situação desvantajosa. [ 153 ] O presidente francês
não queria representar apenas um de dois ou três campos,
mas apresentar-se como o candidato natural do conjunto
dos interesses sociais e políticos legítimos. Tratava-se,
assim, de ocupar todo o espaço da legitimidade política e
relegar ao exterior do perímetro da respeitabilidade
democrática os partidos que não se reconheciam no futuro
pós-nacional e diversitário que ele destinava ao velho
continente. Pretendia reunir todas as contradições fecundas
e razoáveis no grande partido presidencial, que seria o da
unificação das forças modernizadoras e liberais do país, e
deixar nas margens os desacordos de fundo. Ele seria o
futuro: seus adversários seriam o passado. O macronismo
seria o partido da inteligência. Aí se poderia ver, do mesmo
modo, uma reafirmação da teoria do “círculo da razão” –
proposta durante certo tempo por Alain Minc –, que
representava bem o ponto de vista das elites midiáticas e
políticas das três últimas décadas: embora possam existir
desacordos de método quando chega a hora de resolver os
problemas da comunidade política, eles não poderiam
existir quando chega a hora de definir e conceitualizar tais
problemas. A única oposição válida seria construtiva.
Haveria europeus modernos de um lado e velhos gauleses
refratários do outro. O progressismo sempre volta a esse
ponto: é preciso distinguir entre as forças vivas e a madeira
morta de uma sociedade, entre a vanguarda e os
retardatários, entre as vias do progresso e as da reação,
entre a sociedade aberta, voltada para o futuro, e a
sociedade fechada, fixada na nostalgia. Em outras palavras,
para além de uma simples manobra estratégica em
contexto eleitoral, Emmanuel Macron pretendia assim
refundar os critérios da legitimidade política europeia,
distinguindo entre os oponentes legítimos e os que não o
são, entre os que deveriam ser integrados à conversa
pública e os que deveriam ser excluídos dela, na
impossibilidade de serem formalmente expulsos, pois a
legalidade e a legitimidade democrática jamais coincidem
com perfeição. Durante algum tempo, a imprensa anglo-
saxônica erigirá Macron em herói europeu, capaz de pôr a
Europa de novo no bom caminho.
A DEMOCRACIA CONTRADITÓRIA

Eis o grande pânico das elites progressistas. Nós


entraríamos na idade da regressão, caracterizada pela volta
do foco político a dimensões como “o pertencimento
nacional, as promessas de segurança e a restauração da
grandeza de outrora”. [ 154 ] Heinrich Geiselberger, no
prefácio de uma obra internacional que reuniu intelectuais
de destaque, no intuito de refletir sobre uma réplica
ideológica ao populismo, escreverá que é um processo de
“des-civilização” que se põe “em movimento diante dos
nossos olhos”. [ 155 ] Esse comentário desolado se
acompanha de uma forma de lucidez tardia: “pode-se
afirmar que um ‘nós’ cosmopolítico convicto nunca foi
verdadeiramente capaz de tomar forma. Muito pelo
contrário, assistimos hoje a uma renovação das
diferenciações étnicas, nacionais e confessionais”. [ 156 ]
Arjun Appadurai acredita resumir assim a celeuma do nosso
tempo: “a grande pergunta suscitada em nossa época
consiste em saber se assistimos ou não a uma rejeição em
escala mundial da democracia liberal e a sua substituição
por uma ou outra forma de autoritarismo populista”. [ 157 ] A
liberação da palavra corresponderia, portanto, a um
desmoronamento dos diques que contêm a parte ruim de
uma civilização que a modernização diversitária da última
metade de século havia permitido reprimir. Como escrevia
Natacha Tatu num “elogio do politicamente correto”, “fazer
cair a barreira do pensamento convencional é correr o risco
de liberar as piores pulsões. Xenófobos, antissemitas,
islamofóbicos, misóginos, homofóbicos, maníacos armados,
extremistas de todo tipo ganham novo ímpeto”. [ 158 ] A
dissidência política em grande escala é julgada inadmissível
e, consequentemente, é preciso reconstruir o espaço
público para evitar que ela saia das margens ou chegue a
desempenhar algo além de um papel demagógico. Na
realidade, é a dinâmica ideológica dominante que é posta
em questão cada vez mais abertamente, que conjuga o
paradigma diversitário com a lógica da emancipação.
No entanto, a hipótese da rejeição da democracia liberal
merece ser examinada de mais perto. Isso porque, nessa
grande narrativa da democracia a ser salva desses novos
bárbaros constituídos pelos plebeus enraizados, tropeça-se
num grande problema: longe de excluírem a si mesmos do
imaginário democrático ou de considerar a democracia
como um regime degenerado que seria preciso derrubar
para então restaurar a potência da nação, aqueles que são
chamados populistas afirmam sua adesão a ela, e mais,
afirmam-se como seus melhores tradutores políticos, seus
melhores defensores. Os populistas não aceitam o papel de
antidemocratas, e a menos que sejam pintados
exclusivamente à maneira de manipuladores sorrateiros,
que jogam com o sentido das palavras para dissimular um
programa inconfessável, será preciso levar a sério essa
pretensão e ver como eles compreendem a democracia.
Embora eles descambem, decerto, para a demagogia, não
têm o monopólio dela, e a defesa por parte deles de um
povo sacralizado, homogêneo em sua revolta contra uma
elite conspurcada, responde em parte ao discurso de uma
elite esclarecida, que segura as rédeas de uma população
intoxicada por seus preconceitos etnocêntricos. Os
populistas julgam ser, atualmente, os restauradores, e
mesmo os salvadores de uma democracia que se tornou
alheia à sua promessa inaugural, e pretendem resgatar um
princípio esquecido, até desprezado: a soberania popular,
que promete a um povo que ele decida por si mesmo sobre
as finalidades que situará no cerne de sua existência
política e sobre as grandes decisões que lhe permitem
construir seu futuro. O populismo, ao reativar a dimensão
agonista da vida política, contribui na realidade para a
repolitização da democracia: reintroduz desacordos
substanciais lá onde só restavam desacordos secundários. O
imaginário democrático é interpretado de maneira tão
contraditória pelos progressistas e pelos populistas que
somos na realidade testemunhas de uma reabertura da
questão do regime. Já não se trata apenas de ordenar uma
sociedade cujos parâmetros são geralmente aceitos pelo
conjunto dos atores sociais, mas antes de redefinir a
formatação do poder. Em outras palavras, tanto o
progressismo como o populismo afirmam sua adesão à
democracia e acusam-se mutuamente de traí-la, o que nos
relembra seu caráter irredutivelmente polissêmico.
De maneira muito esquemática, seria possível dizer que
os progressistas se interessam pela dimensão formal da
democracia liberal, enquanto os populistas se interessam
por sua dimensão substancial, e que não se poderia
sacrificar nem uma nem outra. O movimento populista
mobiliza afetos há muito tempo despolitizados na ordem
liberal do pós-guerra, que se quis tecnocrática e passou a
definir a nação apenas por meio de uma referência
asséptica e ressequida aos valores, como se sua espessura
histórico-cultural houvesse deixado de contar. Já não parece
possível invisibilizar assim a parte carnal da comunidade
nacional. O retorno das paixões políticas é assimilado pela
politologia progressista a uma submersão da razão pela
emoção ou, pior ainda, a um simples retorno do “ódio”. [ 159 ]
Enquanto a modernidade tecnocrática havia buscado
despolitizar a coisa pública, submetendo-a à lógica
racionalista do plano ou neutralizando-a por meio da lógica
do mercado, o retorno dos tempos trágicos reposiciona a
decisão política no cerne da história – é a própria existência
da comunidade política que é reposta em questão e são
concepções contrastadas do ser humano que acabam por
surgir num enfrentamento declarado. Muito se glosou ao
longo dos últimos anos sobre o surgimento de divisões que
substituíram o enfrentamento consagrado entre a esquerda
e a direita; alguns viram os conservadores enfrentar os
progressistas, enquanto outros decretaram antes que havia
chegado o tempo do conflito aberto entre os soberanistas e
os globalistas. Tais divisões não se sobrepõem
necessariamente e tampouco enfatizam os mesmos
desafios, mas ancoram-se em terrenos sociológicos
claramente identificáveis que não poderiam ser reduzidos a
simples preferências ideológicas. [ 160 ] Uma coisa parece
certa: as categorias políticas surgidas no âmbito da
modernidade providencialista, quer se trate da esquerda
social-democrata, quer da direita neoliberal, parecem cada
vez menos operantes.
Em várias ocasiões nestes últimos anos, notou-se a
crescente dificuldade das pesquisas de opinião para
predizer de modo adequado os resultados de eleições ou
referendos, como se perscrutassem com mera
superficialidade as preferências populares. [ 161 ] É que já
não indagam nossas sociedades em profundidade. Já não
buscam decifrar as fantasias que as perpassam, os medos
mais ou menos confessos que se abrigam no inconsciente
dos eleitores. Por consequência, só exploram de modo
superficial as motivações eleitorais e, não raro, cedem a
uma explicação estritamente materialista do mundo. [ 162 ]
Quanto mais uma eleição se insere num âmbito político
estável, em que as grandes alternativas são bem
conhecidas e balizadas, mais as pesquisas de opinião são
fiáveis. No entanto, quando se trata de uma eleição num
clima insurrecional, em que as paixões ficam acaloradas e
chegam a abalar a vida política, as pesquisas falham,
quando não fracassam por completo. Seu método parece ter
ligação estreita com a definição gerencial da dimensão
política, que busca identificar as diferentes categorias de
eleitores à maneira de clientelas eleitorais; para dizê-lo de
outro modo, não vão suficientemente a fundo e têm
dificuldade para achar o povo onde ele se encontra.
A QUESTÃO DO POVO

Na esteira de Vincent Coussedière, poder-se-ia dizer que o


populismo surge quando o povo, seja qual for a definição
que dele se dê, expressa politicamente a recusa de sua
própria dissolução e se manifesta para relembrar sua
existência. [ 163 ] A democracia não poderia se separar da
figura do povo, eis o que os populistas parecem sustentar,
justamente quando esta parece difícil de recuperar. Isso
porque, com frequência – e antes de tudo – o populismo é
tido por uma forma de protesto identitário contra a
imigração maciça e, de modo mais amplo, contra uma
globalização que despoja politicamente as nações. A
revolução migratória, presente em toda parte na política
ocidental contemporânea, reabre uma questão que foi
pouco a pouco censurada na segunda metade do século XX:
a da identidade do demos. É que, sob muitos aspectos, a
democracia moderna repousa num paradoxo: em teoria ela
sacraliza a soberania popular, fazendo desta o fundamento
do poder político, mas se mostra incapaz de caracterizar o
povo que é dela depositário. E mais: demonstra manifesta
hostilidade contra os que relembram que o povo
democrático é sempre um povo particular, com sua história,
sua cultura, seus costumes, suas instituições e suas
fronteiras. Em vez disso, a dinâmica da emancipação
democrática obrigaria cada povo a se despojar de seu
particularismo para engajar-se na construção de uma
humanidade unificada, glorificada por meio da figura do
cidadão do mundo. Em nome da luta contra as
discriminações, seria preciso libertar a cidadania de todo
conteúdo identitário particular, e teoricamente os países
teriam de se tornar intercambiáveis entre si. Sob certos
aspectos, poder-se-ia dizer, sobre a democracia
contemporânea, que ela impele à invisibilização do demos:
quer-se reduzi-lo a uma pura categoria procedimental sem
substância. No entanto, as grandes migrações – que põem
populações em movimento – fazem explodir brutalmente o
paradigma do demos invisível, na medida em que essas
comunidades que se instalam nas democracias ocidentais
fazem ressurgir, no próprio seio da comunidade política, a
diferença entre o nós e o eles. A presença cada vez mais
maciça de populações culturalmente estranhas às nações
ocidentais obriga estas últimas a abrir a questão de suas
respectivas identidades e a explicitar o pano de fundo
cultural e civilizacional em que a comunidade política se
baseia. Quando alguém nelas se insere, deve se integrar ou
se assimilar a quê?
A questão migratória obriga a democracia a se questionar
sobre seus próprios fundamentos, e isso chega a conduzir a
uma reescrita da história, na tentativa de dissolver a
suposta fantasia da identidade nacional – a identidade
nacional seria um refúgio imaginário que teria de ser
desconstruído, para que, enfim, as sociedades plurais se
expressem. O rastro do povo teria de ser apagado, para que
não seja reencontrado. A fim de compreender isso, basta
relembrar a viva celeuma provocada pela publicação da
obra Histoire mondiale de la France. Alguns viram aí o sinal
de uma paixão especificamente francesa pela história. Esse
é um erro de perspectiva, ainda que, de fato, a França seja
provavelmente o lugar onde esse debate é mais
intelectualizado, e nesse aspecto ele foi instrutivo. Patrick
Boucheron explicava, para os que porventura duvidassem
disso, que, a seu ver, a história deveria lutar “contra o
encolhimento identitário que domina atualmente o debate
público”. [ 164 ] A história do mundo seria a de povos
misturando-se incessantemente, e estes teriam o dever de
recusar-se a serem fixados numa definição substancial de si
mesmos. Se nos dermos ao trabalho de traduzir
politicamente a concepção da história que ele nos propõe, a
história mestiçada teria por consequência uma dissolução
do velho país sob a pressão migratória, o que seria uma
oportunidade a ser incensada e à qual jamais se deveria
resistir. Não surpreende que o Canadá – seria possível falar
mais maldosamente de um Canadá Potenkin – desempenhe
no imaginário político contemporâneo o papel de
Disneylândia diversitária, sendo proposto à admiração de
todos como um modelo universal, por haver renunciado a
toda identidade substancial e definir-se apenas por sua
diversidade e, mais ainda, por seu desejo de levar o mais
longe possível a busca da diversidade. Sua abertura ao
niqab, por exemplo, vem confirmar a seus próprios olhos
sua própria tolerância e a superioridade de seu modelo,
capaz justamente de transcender e até de se contrapor ao
mal-estar popular em nome do direito das minorias. O
Canadá se construiria desconstruindo-se, ao deixar de
tolerar que os entraves oriundos do mundo pretérito
contenham uma mutação cada vez mais acelerada, que
parece já não ter fim. O Canadá, que reivindica o título de
superpotência moral, não apenas se apresenta, segundo a
retórica empregada por muito tempo pelo governo federal,
como o melhor país do mundo, porém mais ainda, como o
país mais avançado do mundo, como se representasse a
próxima etapa na história da humanidade. [ 165 ]
A reação identitária seria o novo rosto da
contrarrevolução: ela é que impediria a lógica universalista
da modernidade de desdobrar-se plenamente, ao
substanciar identidades que precisariam antes ser
desconstruídas. [ 166 ] Embora seja permitido, por exemplo,
opor-se frouxamente aos excessos diversitários, propondo a
proibição do véu integral no espaço público, não será
permitido afirmar que certas populações são bem mais
dificilmente assimiláveis que outras [ 167 ] – tal reflexão será
assimilada ao racismo diferencialista. Somos todos
imigrantes: esse slogan, incessantemente repetido em todo
o mundo ocidental, vem assim desqualificar a ideia de uma
população fundadora ou, se preferirmos, de um núcleo
identitário próprio de cada país, ao qual seria necessário
que alguém se agregasse a fim de integrar-se. A
desencarnação da comunidade política leva a uma ruptura
cada vez mais pronunciada entre a cidadania e a
identidade: a primeira se reinventaria com a valorização da
diversidade, a segunda seria chamada a apagar-se para
fazer esquecer o privilégio hegemônico de que gozou por
demasiado tempo. A teoria do racismo sistêmico acaba por
traduzir a existência de uma cultura histórica no interior de
um país como um sistema discriminatório que serve
exclusivamente aos nativos, e que precisaria ser
desmontado. Estes gostariam de manter a todo custo
privilégios etnoculturais ilegítimos, exclusivamente
decorrentes dos acasos da história. Tal como empregado
hoje pelo regime diversitário, o conceito de racismo tem
acima de tudo a função de neutralizar politicamente e inibir
culturalmente qualquer reação política demasiado intensa
àquilo que os povos sentem como uma submersão
migratória que, sem ser provocada, é, no entanto, tolerada
e talvez até incentivada pela parcela dominante das elites
ocidentais. A extensão infinita da definição do racismo tem
a função de deslegitimar toda particularização da cidadania
– o impulso cosmopolita que permeia a globalização deve
não apenas relativizar a noção de fronteira, como também a
própria distinção entre quem é cidadão e quem não o é; a
figura sacralizada do migrante deve ser normalizada; a do
cidadão afeito a seu país e à continuidade histórica deste
último deve ser desqualificada. Mesmo o vocabulário terá
de se adaptar: o imigrante ilegal ou clandestino será
denominado apenas de migrante irregular. A população
histórica refratária à própria desclassificação simbólica e
institucional terá de ser reeducada, para aprender a
celebrar a beleza da diferença lá onde suas categorias
mentais tradicionais a impeliam a ver um fracasso da
integração e um esfacelamento do corpo político. [ 168 ] Para
chegar a sua extensão máxima, a democracia deveria
liquidar os povos históricos e concretos e abraçar, cedo ou
tarde, a figura da humanidade reconciliada, à maneira de
um demos diversitário globalizado. E é pelo fato de que já
não haveria diferenças substanciais entre as comunidades
humanas que uma humanidade filosoficamente unificada
poderia, enfim, passar do ideal à realidade, ao menos no
plano do direito. Não estamos longe do mito do homem
novo, como se o homem devesse purgar-se de sua
existência histórica para renascer de uma matriz virginal,
sem corrupção alguma, o que o levaria a comungar numa
humanidade enfim reconciliada, porque emancipada de sua
pluralidade – pluralidade esta que não lhe seria
consubstancial, mas simplesmente a obra de sua queda na
história.
Para além da celebração da diversidade, Carolin Emke
chegará a dizer que “o recurso ao conceito de povo é
ambíguo”. [ 169 ] O povo seria tão somente uma forma vazia
e não se poderia defini-lo como um substrato demográfico e
cultural com seu próprio contexto político, conforme
sustentará, por exemplo, Pierre Rosanvallon, em sua vasta
história da democracia francesa. O povo só tomaria forma
por meio de seu trabalho de representação, e a soberania
popular teria de se livrar da mística da unidade do povo –
ou, melhor ainda, seria ao pluralizar incessantemente a
representação que se permitiria ao povo ter a experiência
de sua diversidade. [ 170 ] Yascha Mounk também se
pretende perplexo: “a democracia promete deixar o povo
governar. Isso suscita, porém, uma pergunta de falsa
simplicidade: quem, exatamente, é o povo?”. [ 171 ] Chantal
Mouffe, em sua perspectiva da democracia radical,
sustentará também que o povo é uma construção política
sem substrato socio-histórico: só existiria por meio da
mostra de reivindicações particulares que ele permitiria
sintetizar. [ 172 ] Jan-Werner Müller escreverá, por sua vez,
“que o povo se expressa no plural, que ele é polífono e que
não existe uma vox populi; de fato, seria até possível dizer
que o povo, fazendo isso, torna-se processo”. [ 173 ] Esse
processo estaria em perpétua reinvenção e deveria ampliar
incessantemente suas fronteiras e diversificar sua
composição. O povo remata aqui seu processo de
dissolução. O contratualismo, que foi antes de tudo uma
ficção filosófica necessária à sua representação do
consentimento na base da democracia moderna,
transformou-se em matriz a partir da qual repensar todos os
lugares sociais. Essa seria a próxima etapa da democracia:
o povo deveria poder fundar a si mesmo e parar de aceitar
sua definição pela história, ainda mais que a descoberta de
sua diversidade interna, possibilitada pelo trabalho das
ciências sociais, revelaria as relações de dominação que o
permeiam e que desqualificam a soberania popular,
acusada de meramente mascarar a tirania da maioria.
Werner Müller, ao mesmo tempo em que reconhece que a
democracia “não nasce do nada”, assinalará que as
democracias são “todas resultado de acasos históricos – e
sobretudo de muitas injustiças”. [ 174 ] Teríamos chegado ao
momento da história em que a democracia poderia libertar-
se do contexto que a viu nascer – na realidade, deveria
fazê-lo, e a nação, a partir de agora decretada uma velha
muleta, poderia ser abandonada. Voltamos a isso. Enquanto
o contratualismo moderno pressupunha, sem
necessariamente admiti-la, a existência de um povo
compreendido à maneira de uma comunidade político-
histórica, a modernidade tardia trabalha para sua
dissolução, primeiro e antes de tudo reduzindo o
pertencimento coletivo a uma adesão consciente a valores
universais, que seriam as únicas fundações do pacto político
– esse é, evidentemente, o modelo do patriotismo
constitucional habermassiano, [ 175 ] que corresponde de
modo mais amplo a uma neutralização da identidade nos
parâmetros da cidadania; cada comunidade política deveria
extrair-se de sua cultura e arrancar-se de sua própria
história, para então refundar-se num contratualismo
diversitário em que já não será possível reconhecer o núcleo
identitário de um povo ao qual devem assimilar-se todos os
que o encontram, pois nenhuma realidade deve manifestar-
se para além do direito à igualdade. [ 176 ]
A NEUTRALIZAÇÃO DA SOBERANIA POPULAR

Como já se terá compreendido, a referência ao povo ou à


nação como realidade histórica substancial é assimilada a
partir de agora, implícita ou explicitamente, ao racismo. É
bem verdade, no entanto, que esse chamado à nação
particular ou, caso se prefira dizer de modo mais amplo,
esse chamado ao particularismo coletivo, permanece
politicamente mobilizador. Arrasta a adesão de amplas
camadas da população. Excita o imaginário e impele à
revolta, como se correspondesse a aspirações irreprimíveis
inseridas na própria natureza do corpo político, ligadas ao
pertencimento e à identidade. Ainda que elas sejam
traduzidas midiaticamente como um surto xenófobo ligado
ao retraimento em si, grandes segmentos da população
continuam a ser animados por preocupações identitárias. A
questão, então, é esta: o que fazer com uma população
julgada indigna da promessa emancipatória da
modernidade. Surge a tentação de lançá-la na lata de lixo
da história. Se a democracia moderna concede a soberania
ao povo, é com a condição – como ela diz de modo tácito –
de que ele seja competente o bastante para votar, isto é,
para votar bem. Essa competência era tradicionalmente
associada ao senso comum, mas este último passou a ser
denegrido como outra faceta do preconceito. [ 177 ]
Como conciliar a ideia de um sentido da história, o que é
outro nome do progresso, e o poder reconhecido ao povo de
construir livremente seu futuro político, a partir de suas
preferências? Essa contradição não é apenas aparente e
está no cerne da insurreição populista. É em nome da
democracia que se condena o voto popular que pretende
restaurar o caráter nacional do Estado. E é em nome da
democracia que esse voto se expressa. Essa questão se
traduz em termos eleitorais: o que fazer com o povo,
quando ele vota mal? Que status conferir às eleições, na
medida em que elas substituem ritualmente a figura da
soberania popular no cerne da vida democrática, quando
esta última, como vimos, já não se define a partir dessa
soberania? O que fazer da soberania popular quando ela
revela seu potencial conservador, que outros chegam a
declarar reacionário, sobretudo quando põe em questão
certos avanços societais e os direitos obtidos em nome da
diversidade? Outra maneira de dizê-lo: a soberania popular
deveria exercer seu domínio sobre o quê? Quando um
grande debate é organizado, ele é autorizado a tratar de
quê? Será permitido discutir livremente as grandes decisões
coletivas ou será que a dinâmica da modernidade programa
de antemão os direitos a serem reconhecidos em nome da
diversidade? Será permitido pôr em questão certas
“evoluções” ligadas ao direito internacional? Será permitido
pôr em questão a construção europeia ou a superação da
soberania nacional? Será possível pôr em questão os
grandes avanços societais das décadas recentes ou será
que estes últimos foram protegidos da soberania popular
pelo sentido da história ou pelo sentido do progresso?
Quem, afinal, tem o imenso poder de selecionar entre as
questões que podem voltar a ser objeto da deliberação
pública e as que dela escapam? Os direitos humanos, a
menos que sejam concebidos sob o signo da revelação,
estabelecem-se necessariamente de modo político, e as
instituições que pretendem interpretar seu desenvolvimento
e desdobramento dispõem, no fim das contas, da soberania
efetiva como força de transformação social. Voltamos ao
paradoxo fundador da democracia diversitária: que fazer
quando o povo de ontem, que se obstina em não se
dissolver, vota mal, e de maneira maciça o suficiente para
entravar o que é percebido como a marcha da história? Que
fazer quando as categorias sociais que não vivem segundo
os códigos da globalização diversitária não parecem
capazes nem desejosas de adaptar-se a eles? Deve-se
conceder aos que não são julgados moralmente à altura do
ideal democrático o direito de entravar sua plena realização,
pelo fato de terem dele uma concepção primitiva?
A história da repressão na Vendeia é, sob certos aspectos,
reveladora de uma tentação recorrente da modernidade: a
da erradicação das categorias sociais julgadas retardatárias.
Uma comunidade enraizada, que se recusou a sacrificar sua
cultura e seus costumes em nome da abstração
revolucionária, foi liquidada. E mais: concebeu-se o projeto
de erradicá-la, à maneira de um resíduo histórico
desagradável, cuja mera existência retardava a marcha da
história. Várias vezes essa cena se reproduzirá, como se viu
nos gulags. Naturalmente, isso não é feito da mesma
maneira dentro dos parâmetros da democracia liberal, mas
a noção de populações retardatárias permanece no cerne
do regime diversitário. Serão destinadas à moenda histórica
as pequenas nações, cuja existência nacional será não raro
reduzida a uma forma de regionalismo egoísta. Se
deixarmos de lado a questão certamente não negligenciável
da violência, podemos reconhecer um mesmo esquema de
pensamento no modo de operação do regime diversitário.
As populações periféricas comportariam o risco, na
realidade, de desviar a democracia ou, mais exatamente, de
fazê-la passar por um desvio reacionário.
Quando a França periférica entrava o desdobramento da
França globalizada, quando os peoples of somewhere
limitam o desenvolvimento dos peoples of everywhere, é a
democracia que entra em falência. [ 178 ] Quando um velho
povo histórico restaura seus direitos contra o regime
diversitário, ele também entra em falência. É preciso ver
bem a que ponto, a partir dessa perspectiva, a votação em
favor do Brexit foi apresentada no âmbito da mídia e da
política não apenas como uma escolha política ruim, mas
como uma catástrofe moral, como se demonstrasse uma
forma de fracasso democrático.
“Acabamos de entrar em uma era na qual as ideias muito
assentadas, sobre as quais pensávamos que já não haveria
debate, voltam a ser questionadas”, como se pôde escrever
sem constrangimento no dia seguinte à vitória de Donald
Trump. “Subestimou-se a vontade de nossas sociedades de
se fecharem em si mesmas; subestimou-se aquele medo do
outro; subestimou-se a vontade de não acolher os
muçulmanos. Esses movimentos existem, e são mais fortes
do que imaginávamos.” [ 179 ] O julgamento será definitivo: o
trumpismo seria “a revanche do homem branco”. Mais
ainda, “essa política de revanchismo encontrou hoje sua
consumação absoluta numa insurreição do homem branco
comum, assustado com o fato de deixar de ser a norma e
receoso de ver outros disputando com ele sua hegemonia
cultural”. [ 180 ] Para explicar essa guinada reacionária, falar-
se-á na melhor das hipóteses da credulidade natural do
povo diante da demagogia, o que leva a um controle cada
vez mais estrito da informação em nome da luta contra as
fake news. Um jornalista renomado escreverá, ao rever os
recentes acontecimentos: “Estamos diante de um
empreendimento industrial de desinformação cujo poder foi
demonstrado pela vitória do Brexit na Grã-Bretanha e pela
de Trump na corrida à Casa Branca”. [ 181 ] Um povo bem
instruído não teria a ideia de votar mal, e um povo
reeducado muito menos, o que relembra a importância das
campanhas de sensibilização permanente e de luta contra
os preconceitos e estereótipos. Uma informação esclarecida
conduziria automaticamente a uma votação consoante ao
sentido da história. O povo não se teria enganado: teria sido
enganado e até desinformado. Conforme observa François-
Bernard Huygues, “a identificação do partido do falso ao do
fechamento político e cultural se impõe naturalmente após
o referendo britânico […]”. [ 182 ] Outros, porém, já não
querem desculpar o povo e pretendem selecionar entre os
eleitores dignos de votar e os outros, que poluiriam a
democracia com seus preconceitos. No dia seguinte à
votação, muitos analistas sustentaram a ideia de que as
categorias sociais urbanizadas, evoluídas, instruídas e
sofisticadas teriam apoiado sem sombra de dúvida a
manutenção da Grã-Bretanha na União Europeia, enquanto
os partidários do Leave seriam em sua maioria eleitores
desorientados, pouco instruídos, em reação contra a
globalização e a modernidade e encerrados em esquemas
mentais petrificados, impróprios às exigências do nosso
tempo. Esses “eleitores-fardos” já não estariam civicamente
qualificados. [ 183 ] Quando o povo vota mal, pode ser
descrito da maneira mais vil. Os eleitores do Brexit foram
retratados como representantes de categorias sociais
residuais, inadaptadas, encerradas em esquemas mentais
com prazo de validade vencido. Tratava-se de uma
população demasiado velha, demasiado branca, demasiado
homogênea, que protestaria em vão para frear a chegada
dos tempos diversitários. O eleitor médio favorável ao Brexit
seria um “homem branco de mais de cinquenta anos”
enraizado na Grã-Bretanha periférica, pouco instruído e
hostil à diversidade. A partir do outono de 2018, os coletes
amarelos, na França, foram apresentados como
desclassificados simbólicos e materiais da globalização,
apegados a um modo de vida contrário à sobrevivência do
planeta e incapazes de compreender as exigências próprias
da transição energética. Ouviríamos a mesma coisa no dia
seguinte à vitória inesperada de Donald Trump, por ocasião
da eleição presidencial americana. Hillary Clinton já havia
lançado o sinal algumas semanas antes da eleição, ao
assimilar os eleitores de seu oponente a uma “cesta de
deploráveis”, [ 184 ] em outras palavras, a um bando de
desajustados.
Por trás do chamado ao povo pelos populistas se
expressaria o sobressalto clânico da parte mais atrofiada da
civilização ocidental. A votação em favor de Trump seria
uma votação do comunitarismo branco, uma demonstração
da psicologia ansiogênica em que se inseririam os
estadunidenses de origem europeia; conscientes de perder
o controle demográfico no país, estes se retrairiam em torno
de um candidato autoritário decidido a impedir essa
desclassificação histórica e simbólica. Para retomar as
palavras de Guy Sorman, “[Trump] lhes disse o que eles
queriam ouvir, que os Estados Unidos autênticos eram eles.
‘Quando os Estados Unidos eram grandes’, para retomar o
slogan de Trump, o homem branco, senhor em casa, ditador
de sua mulher e seus filhos, em geral protestante,
trabalhando com suas próprias mãos na fazenda ou na
fábrica, imbuído de um desprezo pela gente de cor, soldado
em caso de necessidade, somente esse era um
estadunidense. Desde os anos 1960, esse homem branco
viu seu universo esfacelar-se: a liberação das mulheres, a
dominação dos músicos, dos artistas, dos esportistas
afroamericanos e latinos, a discriminação positiva, a
exaltação da diversidade cultural, o casamento
homossexual, a linguagem politicamente correta, tudo isso
foi percebido pelo homem branco como a substituição da
identidade autêntica por uma identidade nova, globalista,
cosmopolita e mestiça. Nesse despojamento, tal como foi
sentido pelo homem branco, a raça, como sempre nos
Estados Unidos, foi discriminadora”. [ 185 ] Tratava-se,
portanto, essencialmente, de uma votação racista: se
somente as duas costas e as grandes cidades houvessem
votado, a candidata democrata teria vencido. Cumpria
fabricar um novo povo – e convinha ser otimista, pois o
processo já teria sido desencadeado. Guy Sorman
escreveria também, com certa agressividade: “De fato, a
imigração, legal ou não, prosseguirá – em razão da
prosperidade americana –, a mestiçagem interior continuará
e a nova raça americana, um arco-íris, substituirá
necessariamente a resistência identitária dos homens
brancos. Essa transição poderá ser dolorosa, até violenta, se
Trump a exacerbar em vez de acompanhá-la; mas nem
sempre o pior é inevitável”. [ 186 ] A transformação da
civilização ocidental pela imigração maciça modificaria, com
o tempo, seu substrato demográfico e condenaria à
impotência as categorias sociais reacionárias que, por ora,
ainda seriam capazes de prejudicar. [ 187 ]
No entanto, a guinada reacionária da democracia continua
a ser um risco que o progresso já não poderia correr e não
se poderia esperar a plena consumação da mutação
demográfica ocidental para que só então se procurasse
proteção definitiva contra o populismo. Na impossibilidade
de abolir a democracia, seria preciso encontrar os meios de
suspender os efeitos mais nocivos da soberania popular.
Jacques Attali se dedicará a esse exercício de maneira muito
concreta após o Brexit. “Uma geração deveria pensar duas
vezes antes de modificar uma situação que terá um impacto
nas gerações seguintes. Seria preciso, depois, modificar o
procedimento da reforma constitucional, para garantir que
uma votação circunstancial não possa ter consequências
não desejadas de longo prazo. Toda decisão que tem um
pesado impacto no destino das gerações seguintes não
deveria poder ser tomada por uma maioria inferior a 60%
dos eleitores, reafirmada três vezes num prazo de no
mínimo um ano. Alguns verão nessa tomada de posição
uma tentativa desesperada de uma oligarquia obsoleta para
manter uma ordem fora de moda, num desprezo pelos
desejos dos povos. Trata-se, ao contrário, de dar aos povos
o tempo de refletir sobre as consequências de seus atos e
de evitar que uma geração, por capricho, destrua o que as
gerações anteriores quiseram deixar às seguintes.” [ 188 ]
Essa proposta, que pretende “santuarizar o progresso”, é
certamente extrema, mas revela bem o estado de espírito
geral de uma intelligentsia para a qual ou a democracia
será progressista ou deixará de existir: “admitir que
conquistas transmitidas possam ser questionadas equivale
a negar a própria noção de progresso”. O que conta, na
democracia, como já se compreendeu, não é a soberania
popular, mas a lógica do desdobramento dos direitos, que
deveria realizar-se até o fim.
Acima de tudo, o regime diversitário pretende
circunscrever a soberania popular de maneira cada vez
mais estrita, em nome do “estado de direito”, cujo império
não para de ser estendido e transformado, paradoxalmente,
em verdadeira essência do projeto democrático – já o
âmbito da soberania popular, ao contrário, encolher-se-á
sem cessar. O referendo será, em geral, mal visto, pois
possibilitaria que o povo se reunisse num grande momento
unitário, permitindo-lhe decidir sobre uma questão fora dos
parâmetros habituais do debate público. Na realidade, o
referendo permitiria que o povo se reconstituísse no
momento em que se busca dissolvê-lo, além de renovar, de
modo geral, a legitimidade do espaço nacional onde este se
mantém. Não surpreende que o referendo de iniciativa
popular (RIP), também chamado de referendo de iniciativa
cidadã, seja fundamentalmente rejeitado, na medida em
que criaria as condições institucionais para que o povo ou,
ao menos, certas categorias suficientemente mobilizadas da
população, pudesse se mobilizar e impor à agenda política
desafios que não estavam programados na matriz midiática.
Por outro lado, é inegável que o RIP pode contribuir para o
reino das facções, na medida em que as minorias mais
militantes e mais bem organizadas podem desvirtuá-lo em
seu favor, transformando a agenda política em refém, a fim
de submetê-la às suas obsessões ideológicas. Quanto mais
a história avança, mais o velho ideal do governo do povo
pelo povo se esfacela, como se o multiculturalismo, ao
chegar ao termo de sua lógica, tornasse simplesmente
escandaloso o princípio majoritário. A judiciarização da
política permite que uma tutela se estabeleça sobre a
soberania popular, a fim de evitar a multiplicação das
guinadas reacionárias. A soberania popular corresponderia à
fantasia de um povo coerente, capaz de se engajar
historicamente por meio do processo eleitoral. Essa fantasia
se dissiparia diante do advento de uma sociedade que tem
a experiência cada vez mais íntima da diversidade, a qual,
emancipada do controle popular, se desenvolveria mais sob
o signo do governo dos juízes. [ 189 ] As grandes reformas
societais costumam ser iniciadas ou encorajadas pelos
tribunais, decretados como mais esclarecidos justamente
por não estarem sujeitos àquilo a que se chamará
pejorativamente “humor popular”. Essa mutação
institucional da democracia se desdobrou “de modo
natural”, sem jamais ser formalmente avalizada por um
povo que, de todo modo, muitos querem descartar – o que
leva alguns a dizer que “os direitos humanos estão se
voltando contra o povo”. [ 190 ] O mesmo será dito sobre a
imigração maciça, que transformou o substrato demográfico
europeu e norte-americano, sem que jamais essa revolução
tenha sido endossada de modo democrático [ 191 ] – os
teóricos militantes do imigracionismo passaram a explicar
que ela seria do âmbito da simples lógica do direito. [ 192 ]
Embora a forma institucional das democracias liberais tenha
permanecido oficialmente a mesma, e embora o teatro
eleitoral se tenha mantido, ele foi dessubstanciado. Um
governo que quisesse aplicar hoje um programa de saída do
regime diversitário teria primeiro de trabalhar para
restaurar o poder democrático, isto é, para reinvestir
substancialmente a concha vazia em que o governo saído
das urnas se transformou.
A DEMOCRACIA “ILIBERAL” OU O PODER POLÍTICO COMO CONTRAPODER

É provavelmente à luz destas últimas reflexões que


poderemos compreender melhor a celeuma da democracia
iliberal, que atormenta a atualidade política, mas que talvez
não seja nada além da celeuma do populismo que alcançou
o poder. Ao comentar a presente insurreição populista
buscando situá-la na escala da modernidade, Yascha Mounk
dirá que “o povo se subleva contra a democracia”,
entendendo por aí que este se volta, sobretudo, contra o
estado de direito e de liberalismo em nome da soberania
popular – em seu vocabulário, ele falará, assim, da
democracia sem a liberdade. [ 193 ] Afinal, aqueles a quem se
chama populistas não se contentam em tirar proveito de
aspirações populares abandonadas – como aquelas ligadas
à identidade coletiva ou aquela ligada ao desejo de ser
governado por algo além dos processos impessoais que
tornam o poder incontrolável? Os populistas gostariam de
voltar a uma concepção do povo compreendida como
realidade histórica e sociológica substancial, e não apenas
como associação jurídica de cidadãos individuais. Num
mesmo espírito, Ivan Krastev falará de uma “insurreição de
amplitude mundial (que adota) a forma de uma revolta da
democracia contra o liberalismo”. [ 194 ] Essencialmente, o
que se recrimina à democracia iliberal é o fato de ela ser
uma democracia de antes de ontem – isto é, de antes da
passagem do povo histórico à sociedade diversitária e da
soberania popular ao governo dos juízes. A democracia
liberal se caracterizaria, assim, por uma supervalorização da
soberania popular e, no mesmo espírito, também pela
supervalorização de uma concepção identitária da nação,
que entravaria o surgimento e a expressão das identidades
minoritárias ou sociologicamente sufocadas. Tratar-se-ia de
uma democracia reacionária que já não busca promover a
realização do movimento histórico diversitário e que se
daria ao direito de derrubá-lo, em nome da vontade do
povo. [ 195 ]
Será que a democracia sem o progressismo é
democrática? Não obstante as pretensões temerárias de
certos líderes políticos que afirmam aderir a ela, cabe
perguntar se a democracia iliberal não seria apenas um
slogan ruim, que desvia as pessoas da maneira certa de
compreender o conflito entre o progressismo e o populismo.
Em outras palavras, estamos sob vários aspectos numa
disputa que se insere na democracia liberal, exceto se
reduzirmos esta última a um princípio evolutivo definido tão
somente pelos intérpretes oficiais e dedicados ao
movimento da história. O populismo – se o levarmos a sério
e se não supusermos que ele carrega às escondidas um
programa diferente daquele que reivindica – não pretende
abolir a democracia liberal, mas restaurar uma concepção
anterior dela, reconstruindo suas condições de exercício, o
que implica uma revalorização do povo e da soberania
popular pela qual ele se institui. Não se trata de brandir o
estandarte populista, mas de compreender que é preciso
enxergar nele não tanto um retorno da besta, e sim uma
forma de reação inserida na democracia. Existe aí, contudo,
um paradoxo, que nos leva de volta ao nosso ponto de
partida: se a democracia liberal é chamada a desdobrar-se
renegando a soberania popular, para neutralizar-se
completamente no ímpeto diversitário, ela se torna
estranha, a partir daí, não apenas a sua fundação filosófica,
mas a alguns dos momentos mais importantes de sua
história. Segundo os critérios contemporâneos, tanto De
Gaulle como Churchill deveriam ser classificados entre os
democratas iliberais mais inaceitáveis. O paradoxo do nosso
tempo é que a democracia diversitária, que julga inserir-se
na longa história da democracia liberal e de suas lutas no
século XX, combate ardentemente as virtudes e o
imaginário histórico que permitiram a esta última defender-
se contra seus inimigos. No século XX, a democracia liberal
só se salvou por seus próprios meios. Da mesma maneira, o
antitotalitarismo, no leste, inseriu-se numa visão de mundo
nacional e religiosa que é hoje desqualificada em nome da
democracia liberal. Não é garantido, aliás, que o liberalismo
mereça ser reduzido à definição dele que os promotores da
sociedade diversitária propõem: Raymond Aron, talvez o
filósofo político mais esclarecedor da segunda metade do
século XX, sabia equilibrar seus princípios com a soberania
popular na composição da comunidade política.
É a função da política que se transforma na modernidade
avançada. [ 196 ] O poder político, contanto que não pretenda
apenas adaptar a sociedade à globalização diversitária,
torna-se um contra-poder para o qual o povo ou, ao menos,
grandes categorias da população se voltam, a fim de conter
o advento de um mundo que elas não desejam; um
contrapoder que busca arduamente restaurar as condições
de seu exercício, mas encontra diante de si um capitalismo
globalizado que desterritorializa as sociedades, um poder
jurídico que tira proveito da sacralização dos direitos para
situar-se em posição dominante em relação aos que
afirmam sua adesão à soberania popular, e um poder
midiático-universitário que transforma a sociedade em
campo de experimentação social. O poder político se torna a
instância simbólica e institucional em que o povo pode
recompor-se como povo e assim aparecer para si mesmo.
No fim das contas, talvez a celeuma entre o progressismo e
o populismo represente apenas uma disputa, inserida no
imaginário democrático, entre duas interpretações
concorrentes e radicalizadas do princípio a partir do qual o
poder se constitui na modernidade. Desse ponto de vista,
para além dos inegáveis exageros retóricos de cada campo,
deveríamos buscar desprender essa questão das
controvérsias ruins e focalizar-nos uma vez mais em sua
parte essencial, qual seja, a definição da democracia que
nos serve de referência na vida pública. Temos certamente
o direito de preferir uma opção a outra, e pode-se perguntar
por que estranha razão seria preciso fazer dessa disputa
uma continuação da Segunda Guerra Mundial num outro
contexto.
Capítulo 5 | Os brancos, os racizados e os outros
 
A liberdade de expressão sob o regime diversitário
 
 
 
 
 
 
Clama-se o desejo de construir um mundo melhor. Isso, porém, não é
verdade. O futuro não passa de um vazio indiferente que não interessa
a ninguém, mas o passado é pleno de vida e seu rosto irrita, revolta,
fere, a tal ponto que queremos destruí-lo ou repintá-lo. Quando se quer
dominar o futuro, é para mudar o passado. Quando se luta para ter
acesso aos laboratórios, é para retocar as fotos e recriar as biografias e
a História.
Milan Kundera
 
O empreendimento consistirá em desfazer e refazer, em conformidade
com a razão, todos os usos, as festas, as cerimônias, os costumes, a
era, o calendário, os pesos, as medidas, os nomes das estações, os
meses, as semanas, os dias, os lugares e os monumentos, os
sobrenomes e o batismo, as formas de tratamento, o tom dos
discursos, as maneiras de saudar, de abordar outrem, de falar, de
escrever, de modo tal que o francês, como outrora o puritano ou o
quaker, refundido até em sua substância íntima, manifeste nos
mínimos detalhes e em seus modos exteriores a dominação do
onipotente princípio que o renova e da lógica inflexível que o rege.
Hippolyte Taine
 
No verão de 2018, num exercício de revisão constitucional
de grande envergadura, os deputados franceses
multiplicaram as propostas de atualização do texto fundador
da Quinta República. Muitos se imaginaram suficientemente
espertos para modificar para melhor a constituição do
general De Gaulle. Era a ocasião para brilhar e fazer valer a
ideia genial que eles acreditavam ter em suas respectivas
pastas. No entanto, entre as propostas lançadas, uma foi
particularmente esperada, sobretudo porque já havia sido
apresentada antes por François Hollande durante a
campanha presidencial de 2012: a retirada da palavra
“raça” da constituição francesa, sob o pretexto de que a
ciência já estabelecera havia muito tempo que as raças não
existiam. [ 197 ] Ele se obrigou, então, a fazer uma
declaração sem ambiguidades: “Não há lugar, na República,
para a raça. E por isso eu solicitarei ao Parlamento, no dia
seguinte às eleições presidenciais, que suprima a palavra
‘raça’ de nossa Constituição”. [ 198 ] Na realidade, a proposta
datava de 2002 e fora lançada primeiramente por Michel
Vaxes, deputado comunista de Bouches-du-Rhône. [ 199 ]
Mais de quinze anos foram necessários para que vingasse.
Durante muito tempo houvera oposição a tal proposta, pois
a supressão da referência à raça na constituição tornaria
mais difícil a luta contra o racismo. Aliás, esse argumento
fora até oposto a François Hollande. A referência à raça
manteria, no imaginário público, um conceito
desqualificado, e seria até o traço de uma era ultrapassada
da humanidade. Depois de haver desconstruído a raça como
categoria política na segunda metade do século XX e de
degradá-la simbolicamente, seria preciso fazê-la
desaparecer do vocabulário público, a fim de apagá-la
mentalmente: o desaparecimento da palavra litigiosa
consagraria, de certa forma, a abolição sociológica da coisa
em si.
A proposta poderia parecer evidente num país muito
apegado aos valores universalistas e que proíbe estatísticas
étnicas, a fim de evitar a fragmentação do corpo social
segundo uma lógica identitária: quem impele ao uso de
categorias étnico-raciais na gestão da sociedade com
certeza se distancia do ideal veiculado pelo universalismo
republicano e leva a população a reconhecer-se em tais
categorias, que acabarão por construir a dimensão social
sobre uma base étnica. O essencial, no entanto, estava em
outro lugar. No momento em que os deputados franceses
militavam ardentemente para acabar com a referência à
raça, assistia-se a uma nova racialização das relações
sociais, nascida nos Estados Unidos, mas que passava a
afetar também as sociedades europeias. Em outras
palavras, no momento em que o Estado pretende dissolver
de uma vez por todas os últimos traços da raça na vida
pública, esse conceito retorna ao cerne do pensamento
social e político, à maneira de uma categoria ofensiva que
permite desvelar a face oculta da ordem republicana. Em
quase todos os lugares do mundo ocidental, retoma-se a
classificação dos homens e das mulheres a partir de
categorias como “brancos”, “negros”, “latinos” ou
“asiáticos”, o que transforma radicalmente nossa percepção
dos fenômenos sociais. Tais categorias são não apenas
veiculadas pelas ciências sociais, mas também
normalizadas pela mídia, que as integra em sua grade de
leitura da realidade social. Inúmeras administrações
públicas as destacam, em nome da luta contra as
discriminações. Estão também no cerne da ação militante
de grupos que se mobilizam com base nelas e que
pretendem racializar explicitamente as relações sociais,
com a intenção de desvelar estruturas de dominação
invisibilizadas pela passagem dos séculos.
O fenômeno não é novo. Desde 1983, Pascal Bruckner já
havia notado o advento de uma era penitencial, por ele
designada como a era dos “soluços do homem branco”.
Essa tendência se acentuará vinte anos depois, quando ele
falará da “tirania da penitência”. [ 200 ] Esta foi normalizada,
e cada instituição busca, à sua maneira, desculpar-se por
seus pecados para com a diversidade, que ela teria tardado
em reconhecer e, mesmo, admirar. Da televisão à escola, do
museu à grande empresa, teria chegado a hora de um
exame de consciência. É bem visto o ato de confessar a
própria culpa, de acusar-se a si mesmo, de mostrar-se
intratável para consigo mesmo. Quem se denuncia se
engrandece, visto que já não desejaria viver na mentira de
um passado radioso, irrepreensível, digno de uma lenda,
digno de uma canção. O mundo deveria ser o teatro de uma
nova noite dos privilégios, a do “homem branco” que,
durante demasiado tempo, teria feito demasiado mal. As
instituições dominantes são chamadas a confessar seus
crimes contra a diversidade, como se viu de maneira um
tanto grotesca quando a revista National Geographic achou
por bem reconhecer em 2018: “durante décadas, nossas
reportagens foram racistas. Para nos desprendermos disso,
é preciso reconhecê-lo”. [ 201 ] A descolonização passaria por
uma nova onda. Aqueles que teriam sido repelidos para as
margens da existência pela expansão da civilização
europeia teriam a oportunidade de uma revanche histórica.
Velhas identidades enterradas ou recobertas renasceriam
em sua revolta contra o Ocidente. É o caso das nações
colonizadas da África e de seus cidadãos instalados na
Europa, com os conquistadores e os conquistados do
passado trocando seus papéis, numa construção
tumultuosa, porém, necessária, de uma humanidade
igualitária. “A corrida para a Europa”, para retomar a
formulação de Stephen Smith, seria uma justa reviravolta,
depois da corrida europeia rumo à África. [ 202 ] Nisso se verá
até uma maneira honrosa, para os colonizadores do
passado, de pagar sua dívida para com o colonizado. A
explicação chega a ser recorrente na sociologia
midiaticamente dominante: se os países colonizadores de
outrora têm problemas com as populações oriundas de suas
antigas colônias, essa seria uma justa ressaca pós-colonial –
que desconsidera, no entanto, o fato de que muitos países
europeus que não tiveram história colonial alguma estejam
também às voltas com reais problemas de integração das
populações de imigrantes. Seria extraindo-se de sua própria
civilização que a Europa poderia, por fim, vivenciar sua
própria redenção. Expiaria seus pecados dissolvendo-se.
Esse é também o caso das populações ameríndias do
Quebec, no Canadá, bem como dos Estados Unidos, que
passaram a criticar a presença europeia na América, com a
cumplicidade de uma parte da esquerda norte-americana,
que passou a apresentar esses países como territórios não
cedidos, que deveriam reinventar-se a partir de suas
tradições autóctones primordiais. [ 203 ] O renascimento do
militantismo ameríndio se expressa, assim, por um
chamado à caçada simbólica dos povos oriundos da
expansão europeia ou, ao menos, à coação deles a uma
contrição permanente. A parcela mais militante do
movimento autóctone incita a revisitar a história, a fim de
apresentar a descoberta da América por Cristóvão Colombo
em 1492 à maneira de uma invasão: a lembrança do
descobridor da América deveria a partir de agora ser
apagada ou maldita. [ 204 ] Seria preciso descolonizar o novo
mundo.
Uma sociologia histórica desesperada poderia sustentar
que essa racialização seja talvez favorecida pelas grandes
migrações, que trazem à tona fraturas arcaicas do gênero
humano: a miscigenação em grande escala de populações
que antes só tinham o hábito de conviver de maneira
marginal poderia contribuir para o surgimento de uma
consciência racial entre grupos humanos que não tinham o
hábito de definir-se dessa forma. As migrações maciças
impeliriam, assim, não tanto à mestiçagem generalizada
das populações do mundo, mas a um despertar de
identidades enterradas ou, ao menos, invisibilizadas pela
modernidade. Esse recalcamento chegaria atualmente a seu
termo, e o ressurgimento delas seria inevitável. Uma coisa é
certa: algumas parcelas das populações oriundas da
imigração com frequência alcançam a consciência política
por meio da consciência diversitária, que impele a racializar-
se para singularizar-se, mais que a assimilar-se para
integrar-se. Seria um erro, todavia, endossar uma
perspectiva que naturaliza a reativação da consciência
racial. Estamos, antes, diante de uma decomposição
política. A dessimbolização radical da nação impele à
tribalização dos pertencimentos. Seria possível acreditar,
contudo, que quando não se respeitam as capacidades de
integração cultural de uma sociedade, a etnicização das
relações sociais é acionada, sobretudo quando a população
se torna cada vez mais heterogênea. Essa advertência não
é de ontem: quem desconstrói as nações não resgata o
indivíduo, mas a identidade étnica e a raça. Quem dinamita
as nações favorece o renascimento dos pertencimentos
primitivos e regressivos, encerrando os indivíduos num
universo fechado do qual não podem sair e condenando-os
à asfixia clânica e tribal. [ 205 ] Uma coisa é certa, a
racialização parece nascer, sobretudo, da politização
deliberada de uma categoria por seu potencial explosivo, na
medida em que ela permite, segundo seus utilizadores,
fazer explodir o próprio fundamento da legitimidade
ocidental e explicitar as relações de dominação entre as
comunidades que seriam ocultadas pelo universalismo
republicano ou liberal. Movimentos sociais pretendem a
partir de agora fazer emergir categorias sociais a partir da
linguagem da raça. [ 206 ] Reativam-na como conceito
político e investem-na de afetos, além de trabalhar por sua
midiatização, o que a transforma em princípio eficaz de
mobilização.
Na realidade, a descolonização teria sido tão somente
uma etapa. Seria preciso prosseguir, nos antigos países
colonizadores, a luta iniciada nas antigas colônias e
descolonizar o mundo ocidental a partir do interior. De fato,
não é de ontem que a esquerda radical se realinhou com
base numa crítica radical da civilização ocidental, que seria
fundamentalmente culpada de haver construído uma ordem
planetária discriminatória e racista [ 207 ] – essa grade de
análise foi normalizada a um só tempo em filosofia política,
sociologia e história, sem esquecer o direito. A extinção da
civilização ocidental seria a condição do surgimento de uma
humanidade diversitária. A dinâmica encetada durante os
Radical Sixties impelia à crítica de toda norma social
instituída, fazendo-a aparecer numa relação de dominação a
ser abolida entre maioria e minorias. A família, a escola, a
nação, deveriam assim ser desconstruídas antes de ser
reconstruídas de acordo com os planos da maquete
diversitária, uma lógica que levaria até à desconstrução das
identidades sexuais ou da simples ideia de que é melhor
gozar de plenas capacidades mentais ou motoras do que
ser deficiente. Longe de dissolver-se nas margens, essa
crítica se radicalizou desde o início dos anos 2000. Seria
preciso desvelar integralmente as profundezas do sistema
social, sem nada conceder às categorias conceituais
dominantes da modernidade, que teriam servido
principalmente para dissimular a violência e a selvageria da
dominação sofrida pelas populações minoritárias ou
provenientes da periferia do mundo ocidental. É nesse
paradigma teórico que repousa aquilo a que chamamos “a
luta contra a discriminação” [ 208 ] que deve conduzir à
construção de uma cidadania inclusiva.
REFLEXÕES SOBRE A “QUESTÃO BRANCA”

Teria chegado a hora de refletir sobre a “questão branca”.


[ 209 ] E é uma sociologia militante com pretensões
científicas que a conduz. Esse multiculturalismo de
pretensão científica, que institucionaliza, no plano
universitário, a crítica ao homem branco, apoia-se na
proliferação dos studies (white studies, black studies,
women’s studies, postcolonial studies, disabilities studies
etc.), em relação aos quais François Furet já se preocupava
há mais de vinte anos. Ao comentar a popularidade dos
panfletos anticolonialistas no próprio cerne da vida
universitária no início dos anos 1990, ele assinalava que
“constituíam a ponta avançada de uma denúncia dos dead
white European males, […] a tradição europeia inteira, dos
gregos ao Iluminismo, é alvo de acusação, como culpada de
sexismo (males), racismo (white) e saudosismo (dead). É
contra ela que se ergue a coalizão variada dos verdadeiros
emancipadores da humanidade contemporânea, os negros,
as mulheres, as ‘minorias’”. [ 210 ] Jean-François Revel, no
mesmo período, também se preocupava com esse
fenômeno. “As universidades estadunidenses são corroídas
por um estranho vírus: o ‘politicamente correto’. De acordo
com essa mania, para os estudantes estadunidenses, toda a
cultura ocidental, de Platão a Tolstói, passando por Dante,
Montaigne, Cervantes, Shakespeare ou Nietzsche, deveria
ser rejeitada, porque expressa exclusivamente o ponto de
vista do ‘chauvinismo masculino e branco’. Disso resulta,
nos campi, um sectarismo que, sob esse motivo de
acusação fantasmagórico, tende a banir ou ‘desconstruir’.
De acordo com o ‘politicamente correto’, qualquer
civilização, por mais bárbaras que sejam as violações aos
direitos humanos em seu interior ou por parte dela para
com outras sociedades, conforma-se com pleno direito a sua
própria identidade. É, portanto, legítima, sendo a civilização
europeia – e seu rebento estadunidense – a única exceção.
Essa é a única à qual se recusa o direito à identidade, ou,
antes, cuja identidade é acometida de ilegitimidade
congênita. Será que esse niilismo cultural alcançará seu
objetivo? Em caso afirmativo, não será a primeira vez que
teremos visto um pretenso progressismo organizar, em
nome do universalismo humanista, a autodestruição, a
intolerância e a censura.” [ 211 ] O mínimo que se pode dizer
é que a dinâmica do politicamente correto se radicalizou.
Transformou o ódio ao Ocidente em saber cientificamente
reconhecido.
A discussão pública em torno da questão racial – sugerirá
Reni Edno-Lodge, uma figura de destaque do antirracismo
racialista britânico – deveria ficar reservada aos que
reconhecem, sem discutir, a existência de um racismo
estrutural a serviço dos brancos. Aqueles que não aderirem
a essa tese e insistirem em discuti-la ou questioná-la dariam
provas de insensibilidade para com as populações não
brancas, “como se o fato de ser acusado de racismo fosse
bem pior que o verdadeiro racismo”. [ 212 ] O argumento é
mais ou menos o seguinte: o recalcamento da consciência
racial no Ocidente teria servido sobretudo para dissimular a
hegemonia branca, que, por fim, terá de ser nomeada. A
dinâmica emancipatória da modernidade já não poderia se
contentar em levar sempre adiante o ideal universalista.
Este último teria servido para dissimular a identidade
branca do Ocidente, o que permitiria legitimá-la e, ao
mesmo tempo, mascarar os processos sociais que
acarretam a subordinação e a exclusão das populações
oriundas da imigração. Pior, culpabilizaria estas últimas, na
medida em que não reconheceria sua desvantagem
sistêmica no interior da ordem social. Reni Edno-Lodge
denunciará, assim, a negação branca, “uma espécie de
política da raça onipresente, e mais eficaz ainda por ser
intrinsecamente invisível”. [ 213 ] O branco se posicionaria
como norma universal e “racizaria” as populações
diferentes – daí o emprego do termo racizado. O
universalismo, na realidade, seria uma artimanha dos
brancos para sujeitar as populações oriundas do mundo
colonial. Os racizados estariam em revolta e a partir de
agora denunciariam a impostura do universalismo ocidental,
que teria mascarado uma forma de dominação neocolonial
para com as populações de origem estrangeira. O racialismo
é teorizado a partir da lógica da inversão do estigma: o
minoritário retoma a categoria a partir da qual ele é
dominado a fim de reivindicá-la positivamente e acusar uma
ordem ilegítima que o invisibilizaria e só poderia ser
contestada por meio da autoexibição. [ 214 ] Um antirracismo
coerente deveria racializar explicitamente sua leitura das
relações sociais, para melhor combater o sistema
discriminatório que as estruturaria. O antirracismo, nos
tempos atuais, consistiria primeiramente em travar a guerra
das raças e, mais exatamente, em travar a guerra contra o
poder branco. O universalismo seria apenas a máscara de
uma dominação com pretensões virtuosas, por parte do
Ocidente: a imigração maciça teria a imensa virtude de
obrigar o mundo ocidental a confessar o fundo etnorracial
de sua representação da cidadania, para melhor realizar sua
desconstrução. [ 215 ] É o discurso do grupo Indigènes de la
République [Indígenas da República], cujo alcance supera
amplamente o círculo dos militantes que afirmam
explicitamente sua adesão a esse movimento, mas é
também o discurso das populações que se autoproclamam
racizadas na maioria das sociedades ocidentais.
Esse movimento transpõe, sem se preocupar muito com
os matizes, categorias ligadas às parcelas mais radicais do
movimento negro americano. Conceitos intimamente
ligados à dimensão traumática da experiência histórica
estadunidense são integrados numa grade de leitura que é
artificialmente colada em sociedades que lhe são
estrangeiras, como se vê no Quebec, onde a aplicação do
conceito de maioria branca torna sua história
fundamentalmente ininteligível, ao fundir numa única
categoria os francofônicos e os anglofônicos, que, no
entanto, se enfrentaram ao longo de séculos, sem ter
nenhum sentimento particular de fraternidade racial. A
esquerda racialista só quer ver aí uma sociedade branca, e
culpada de sua “brancura”. Como já se deve ter
compreendido, os povos francês, alemão, italiano, escocês
ou dinamarquês deixaram de existir: trata-se apenas de
subdivisões da civilização branca. Da mesma maneira, o
povo haitiano, os afroamericanos e os inúmeros povos
africanos estariam fundidos numa identidade “negra”
comum. O neorracialismo de pretensão progressista impele
à abolição das culturas, das identidades e das pátrias,
querendo enxergar na história apenas uma guerra das raças
entre grupos absolutamente estanques entre si. Apoiando-
se numa teoria pós-colonial – cujo postulado é que a França
só poderia consumar sua descolonização por meio da
autodesnacionalização –, contestando os privilégios da
nação francesa histórica, que passou a ser reduzida a um
comunitarismo branco e católico, o movimento dos
Indígenas da República pretende converter a sociedade
francesa a um multiculturalismo extremo. [ 216 ] A França já
não estaria autorizada a impor sua cultura às populações
imigradas que se unem a ela. Tradicionalmente, o
colonialismo consistia em querer impor sua cultura em terra
alheia. Na lógica indigenista e pós-colonial, consiste a partir
de agora em querer impor a própria cultura na própria terra.
O sentido das palavras se inverteu. Somente quando os
franceses forem definitivamente estrangeiros em sua
própria casa é que a descolonização estará consumada. Isso
também vale, é natural, para todas as nações coloniais.
Foi nesse espírito, por exemplo, que a sociologia
antidiscriminatória – que se alimenta do paradigma
diversitário – se lançou na explicitação e na desconstrução
da “brancura” das instituições sociais, isto é, de seu viés
racial não assumido. [ 217 ] Assim se denuncia, por exemplo,
o supremacismo branco daqueles que não pretendem
renunciar ao universalismo porque, por meio dele,
defenderiam justamente seu “privilégio branco”. [ 218 ] E a
desconstrução do privilégio branco deverá se traduzir em
iniciativas concretas, que se multiplicam, ao mesmo tempo
em que se normalizam: cada qual deveria mostrar-se
consciente de seus privilégios e fazer esforços para
desfazer-se deles, o que exige uma autovigilância de todos
os instantes. Uma pessoa privilegiada já não deveria se dar
ao direito de pronunciar-se sobre aqueles que, em relação a
ela, estão em situação de subordinação estrutural. Sendo
assim, passou a ser visto positivamente o ato de enumerar
os funcionários de uma organização para saber se ela é
“demasiado branca”: um cético poderia ver aí uma
reinvenção do delito de julgamento pela aparência. A
contabilidade racial torna-se indispensável à construção de
uma sociedade justa. É preciso desbranquear a sociedade.
Como se vê em certos campi estadunidenses, celebra-se o
desaparecimento dos brancos do espaço público, por meio
da organização de Dias de Ausência, em que estes não
compareceriam à universidade, a fim de se apagarem da
cena social. [ 219 ] Da mesma maneira, será justificada uma
forma de segregação por meio da multiplicação dos Dias
racizados não mistos – o que corresponde, na prática, à
organização de assembleias das quais os brancos são
proscritos. [ 220 ] A não mistura permitiria aos racizados
compartilhar sua experiência mantendo-se afastados do
grupo social dominante. Isso seria, para tomar de
empréstimo as palavras de Christine Delphy, a “não mistura
por escolha” [ 221 ] – note-se que a não mistura é mais
geralmente reivindicada por uma parte do movimento
feminista como modo de resistência ao patriarcado. [ 222 ]
Se o passado glorioso das nações ocidentais é sempre
fantasiado e imaginário, o mesmo nunca vale para o
passado sofrido dos povos antigamente colonizados, que
tem de ser aceito tal como é contado, sem jamais ser
relativizado ou matizado. Régis Debray notou essa falha
intelectual ao reexaminar seus anos de juventude: “na
França, perseguíamos a impostura por trás de toda lenda,
mas tomávamos as lendas do terceiro mundo ao pé da
letra, sem buscar a impostura”. [ 223 ] Impunha-se uma ética
da benevolência – e até da complacência – para com os
sofrimentos reivindicados e transmitidos ao longo das
gerações. [ 224 ] Em particular os brancos ou, ao menos, os
designados como tais, deveriam aceitar a narrativa desse
sofrimento sem jamais discuti-lo. Deveriam aceitar o
diagnóstico estabelecido em relação a suas sociedades,
aliar-se a ele e trabalhar para desconstruir as estruturas
discriminatórias que os favoreceriam. Tornar-se-iam aliados,
que deveriam, além disso, conceder aos racizados a
primeira posição nas lutas, submetendo-se às estratégias
que eles destacam. Assim, seria essencial reconhecer que
as sociedades ocidentais seriam determinadas por um
racismo sistêmico constitutivo das relações sociais, a ser
derrubado a fim de que uma nova sociedade se construa.
Não haveria nenhum questionamento possível da
constatação desse racismo sistêmico, e cada qual deveria
encontrar os meios de extrair-se dele. As disparidades
estatísticas relativas entre as comunidades que compõem a
sociedade seriam prova disso, e não se poderia explicá-las
de outra maneira. E aqueles que exibirem grandes reservas
diante dessa reivindicada racialização das relações sociais
serão acusados de “fragilidade branca” [ 225 ] – isto é, os
brancos se mostrariam incapazes de abordar a questão do
racismo serenamente e refugiar-se-iam em suas nobres
intenções morais, a fim de não pôr em questão uma
estrutura social que os favoreceria de maneira sistêmica.
Essa virulência leva várias pessoas a ver no antirracismo
contemporâneo uma forma de “racismo antibranco”. [ 226 ]
Tal acusação é contestada pela sociologia antirracista, que
reivindica o monopólio da legitimidade científica ao
sustentar que o racismo antibranco é uma impossibilidade
teórica, na medida em que os brancos seriam o grupo
favorecido pelo sistema discriminatório ocidental e que o
racismo não seria um simples sentimento de aversão para
com um grupo étnico, mas um dispositivo de exclusão a
serviço de um grupo dominante. [ 227 ] Basta então opor-se à
teoria do racismo sistêmico para contribuir, na prática, para
a reprodução de um sistema social racista. O racismo
antibranco seria até “uma noção que a extrema-direita
tenta popularizar desde os anos 1980 e que hoje é
amplamente retomada pela direita”. [ 228 ] Éric Fassin
poderá, assim, escrever que “para as ciências sociais, o
racismo antibrancos não existe, não faz sentido. […] Desse
ponto de vista, as ciências sociais tomam o cuidado de
dizer: se começarmos a adotar o discurso da extrema-direita
que nos diz que todos os racismos se equivalem, estaremos
negando a realidade da experiência de uma grande parte de
nossos concidadãos e concidadãs”. [ 229 ] Mais ainda, o
racismo antibranco, que por vezes se manifesta de maneira
particularmente desinibida, seria, no fim das contas, um
reflexo de autodefesa, infeliz, porém legítimo, que nada
teria de fundamentalmente condenável. [ 230 ] Essa
desindividualização do racismo permite que desse modo se
normalize o ódio racial dirigido aos brancos ou, ao menos,
que este seja desdramatizado, por meio de sua redução a
uma forma de aversão individual sem alcance coletivo. Não
nos proibiremos de assinalar um paradoxo: um indivíduo
alheio a toda forma de pensamento racista, mas afeito aos
princípios universalistas, será julgado cúmplice de um
sistema racista, enquanto um indivíduo movido pelo ódio
aos brancos – e, portanto, por uma forma de ódio racial –
será desculpado de racismo, visto que sua aversão não
seria sistêmica e não constituiria uma relação de poder. O
universalismo, que, no entanto, permitia que cada um
afirmasse sua individualidade e sua personalidade própria
sem se deixar determinar pela lógica do determinismo
etnorracial, agora é apenas coisa do passado.
A CELEUMA DA APROPRIAÇÃO CULTURAL

É preciso ter essa sociologia em mente para compreender


a pressão em favor da censura que se exerce, de maneira
cada vez mais aberta, em nome da diversidade, algo que,
manifestamente, passou a preocupar intelectuais que disso
são testemunhas e vítimas. [ 231 ] E foi no Quebec, onde
americanidade e europeidade se entretecem, que essa nova
tendência talvez se tenha revelado com mais radicalismo
em tempos recentes. No verão de 2018, enquanto a
sociedade quebequense se preparava para entrar no que
ela chama de estação dos festivais, a cidade de Montreal foi
abalada por uma dupla controvérsia pública absolutamente
impressionante. O dramaturgo Robert Lepage, que
apresentaria duas peças de teatro, foi alvo de militantes
“antirracistas” que o acusaram de racismo e apropriação
cultural. No primeiro caso, sua peça, SLAV, pretendia pôr em
cena cantos de escravos, mas um grupo racialista negro se
indignou que cantores brancos retomassem, diante do
público, cantos compostos por escravos negros – ao que
parece, assim os cantores se tornavam culpados de
apropriação cultural. No segundo caso, com a peça Kanata,
Lepage queria contar a história do Canadá do ponto de vista
dos autóctones, não dos “brancos” (a perspectiva era
estranha, na medida em que os franceses e os ingleses, por
mais brancos que sejam, não têm a mesma experiência
deste país), mas militantes ameríndios o recriminaram de
não haver incluído em sua peça artistas ameríndios.
Somente um ameríndio poderia desempenhar o papel de
um ameríndio. Lepage não tinha nada de um neocolonialista
enraivecido e costumava ser considerado homem de
esquerda. Ainda assim pareceu abalado, num primeiro
momento, por essa acusação: o homem de esquerda era
pressionado a sua esquerda e repelido, a contragosto, para
a direita, para o campo dos herdeiros impenitentes da
aventura ocidental. Lepage primeiro manifestou
publicamente sua preocupação com uma ameaça contra a
liberdade de expressão proveniente do campo progressista,
e isso parecia surpreendê-lo, visto que a esquerda cultural
tinha antes o hábito de associá-lo ao clericalismo.
No entanto, essa posição deixava Lepage manifestamente
pouco à vontade. Lepage era um homem de esquerda
decidido a continuar a sê-lo: alinhou-se, portanto, à nova
doutrina. Alguns meses depois, entre o Natal e o Ano-Novo –
depois de uma resistência de fachada –, Robert Lepage
publicou em sua página do Facebook uma longa carta em
forma de mea culpa sobre sua peça SLAV, em que pedia
desculpas a seus acusadores por não haver compreendido
desde o início que eles tinham razão em fustigá-lo.
Pateticamente, apresentou-os como “pessoas que
demonstravam grande abertura e que se revelaram muito
sensíveis, inteligentes, cultas, articuladas e pacíficas”. Em
uma autocrítica de feição soviética, acrescentará que
“nesse clima de abertura e transparência, é mais fácil para
mim admitir meus deslizes e meus erros de discernimento e
tentar explicar o fundamento de nossa iniciativa”. Melhor
ainda: confessará que “talvez não fosse por acaso que os
problemas dramatúrgicos de que o espetáculo sofria
correspondessem exatamente aos problemas éticos que lhe
eram recriminados”. A autoacusação foi completa. A falha
estética era, antes de tudo, uma falha ética, e ao alinhar-se
ideologicamente com seus acusadores Lepage conseguiria
aprimorar sua peça, por fim submetida integralmente à
nova moral diversitária, inclusive com a promessa de
garantir melhor representação no meio artístico das
comunidades oriundas da imigração e de conceder aos
militantes oriundos da diversidade um direito de vigilância
sobre sua obra. Embora a autocrítica tenha sido exemplar,
nada tinha de excepcional, pois tais controvérsias são hoje
frequentes, e mesmo banais. [ 232 ] A desventura de Lepage
teve, contudo, a imensa virtude de representar de maneira
quase caricata a nova censura que perpassa as sociedades
ocidentais, que já não é exercida antes de tudo pelo Estado,
embora este não lhe seja estranho, mas pelo sistema
midiático, que prescreve uma nova ordem moral
diversitária, à qual devem submeter-se os que pretendem
participar de uma maneira ou de outra da vida pública.
Uma definição corrente da apropriação cultural a
apresenta como o uso ou a exploração, por uma cultura
dominante, de referências culturais próprias da cultura
dominada, o que reinstauraria em relação a ela um processo
de exploração simbólica propriamente neocolonial.
Praticamente deixou de ser permitido não acreditar na
teoria da apropriação cultural. De fato, quem se recusa a
assinar embaixo participaria da perpetuação do
colonialismo. Quem confessar suas dúvidas e, mais ainda,
reconhecer que não adere a ela, será transformado em
suspeito. Será até possível despedir-se de tal pessoa e
expulsá-la da vida pública, como se viu no Canadá inglês,
antes de convidá-la a uma reeducação ideológica em que
vai ao encontro dos grupos que dela se dizem vítimas para
pedir-lhes perdão. [ 233 ] E as celeumas ligadas à apropriação
cultural se multiplicaram no espaço de alguns anos. Embora
pareçam incompreensíveis ao comum dos mortais, situam-
se, contudo, no cerne de uma radicalização do antirracismo.
Será que uma mulher branca pode interpretar canções
compostas em outros tempos por escravos negros? Será
que um branco pode dar uma oficina de yoga sem explorar,
ao mesmo tempo, uma tradição que teve de sofrer a
pressão colonialista ocidental? [ 234 ] Como alguém pode
usar uma fantasia, numa festa, sem ofender o sagrado
tradicional das diferentes comunidades que compõem uma
sociedade? [ 235 ] Um ator em plena posse de seus recursos
pode desempenhar o papel de um deficiente? [ 236 ] Uma
empresa de moda pode ou não inspirar-se nas tradições
indumentárias desta ou daquela comunidade africana e
integrar certos elementos vindos delas nas roupas que
propõe? Tais controvérsias têm impacto até nos meios
artísticos e podem acarretar, como já se observou, a
anulação de espetáculos que não respeitam os novos
códigos da sacralidade diversitária. O pior erro consistiria
em tratar tais acontecimentos como ocorrências do
cotidiano. Trata-se aí de autênticos acontecimentos
políticos. A celeuma da apropriação cultural tornou-se sua
representação simbólica mais marcante: a civilização
ocidental teria se construído por meio da pilhagem
simbólica dos povos dominados, e este seria o tempo, para
eles, de resgatar seus símbolos perdidos. A América do
Norte seria o campo de batalha exemplar para isso,
sobretudo no que tange aos povos ameríndios, dos quais
algumas figuras estereotipadas foram usadas pela cultura
popular e mesmo pela cultura de massa. É o caso de
inúmeros times esportivos, em particular. Estes são
convidados a renunciar a seu nome, mesmo quando veicula
uma longa tradição: a partir de agora, eles deveriam trocar
de nome. [ 237 ]
Foi um dispositivo ideológico singular que se instaurou no
cerne do espaço público das sociedades ocidentais, e
comprime mais do que nunca a vida democrática. O espaço
público é submetido a uma vigilância integral pelos lobbies
de indignados profissionais: todas as obras são
teoricamente chamadas a se converter à lógica diversitária,
e os próprios criadores devem aliar-se a ela para contribuir,
como se diz oficialmente, para a evolução das
mentalidades. Os lobbies estão à procura de escândalos a
serem denunciados – isto é, palavras que transgridam a
ortodoxia diversitária. E o simples fato de resistir a eles é
um escândalo. Seu grande poder, na realidade, é o de
decretar o escândalo. Os militantes do empreendimento
diversitário têm o imenso poder de definir o que pode ser
dito com toda tranquilidade, e o que não pode sê-lo, a
menos que se consinta em pagar o preço. Tomando de
empréstimo as palavras de Miłosz, “a ortodoxia não pode
relaxar sua pressão, sob pena de deixar de ser uma
ortodoxia”. [ 238 ] Contos e lendas, heróis e super-heróis
deverão submeter-se a ela, a fim de acentuar a cada vez a
cisão entre o velho mundo – associado, ao que parece, à
supremacia branca – e o novo, que permitiria aos excluídos
autoproclamados fazer valer seus direitos. Aliás, para evitar
a reprodução de estereótipos ofensivos, até mesmo a
literatura terá de passar pelo filtro da sensibilidade
identitária das diferentes categorias de ofendidos potenciais
que são publicamente conhecidas. [ 239 ]
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO DERRUBADA: O ESPAÇO PÚBLICO COMO SAFE
SPACE

A palavra pública parece comprimida, sufocada,


formatada. O pensamento correto estende seu império e
são as próprias condições da liberdade de expressão que se
transformam, no momento em que esta última é redefinida
para justificar a institucionalização de um processo
permanente contra a cultura majoritária. Os sensíveis e os
ofendidos reinventam a blasfêmia à sua maneira,
destacando o direito de não ser ofendido e, mais
amplamente, o direito fundamental de ver a ordem social
reconhecê-los tal como eles próprios se veem. As minorias
autoproclamadas, concebidas pelo regime diversitário
segundo o modo da identidade vitimária, reivindicam um
direito de veto sobre a maneira como são representadas
publicamente. Assim é que os grupos identitários oriundos
da decomposição do corpo político ficarão tentados, cada
qual, a tornar escandalosas as palavras – sobre eles ou
sobre a sociedade – que entrem em contradição com sua
sensibilidade ou sua filosofia. “De certa maneira”, escreve
Patrick Moreau, “esses grupos privatizam a censura em
benefício próprio”. [ 240 ] O direito de não ser ofendido
favorece, assim, uma cultura que conjuga censura e
autocensura: cada minoria poderá a partir daí insurgir-se,
quando não for definida em público exclusivamente nos
termos privilegiados por ela. [ 241 ] Naturalmente, não se
poderia estabelecer uma lista de critérios objetivos que
distingam as palavras ofensivas das não ofensivas: a
subjetividade de cada grupo e, provavelmente, de sua
parcela mais suscetível e mais militante, servirá de baliza.
Não surpreende que tenhamos visto o movimento islamista
buscando servir-se da censura diversitária, em particular no
intuito de proibir palavras que entrem em contradição com
o islã ou, para dizê-lo nos termos de uma militante islâmica
canadense que participou de uma consulta pública sobre os
discursos de ódio: cumpriria proibir as “alegações de que
uma confissão religiosa seja incompatível com a
democracia, dado que todos nós somos cidadãos de um
país democrático”. [ 242 ]
Essa censura se exerce em nome do conceito de safe
space, particularmente em voga na universidade
estadunidense. As novas minorias emancipadas, para se
expressarem livremente, já não deveriam ter de sentir o
olhar da maioria e devem poder se proteger contra os
discursos que potencialmente as incomodariam. Nas salas
de aula, por exemplo, será exigido que o professor advirta
seus estudantes de que ele poderá proferir palavras
susceptíveis de incomodá-los, ofendê-los ou magoá-los –
são as famosas advertências preventivas (trigger warning).
Como Géraldine Smith escreveu, ao falar sobre os
estudantes dos campi americanos, “eles absorveram a ideia
de que o ambiente deveria adaptar-se às emoções deles, e
não o contrário”. [ 243 ] Tratar-se-ia, na realidade, de liberar
espaços em que os membros das minorias poderiam
expressar-se com toda liberdade, sem correr o risco da
contradição nem do confronto e, mais amplamente, de criar
um ambiente universitário purgado dos traços do velho
mundo e liberado da presença dos que ainda aderem a ele,
o que não raro implicará impedir a vinda ao campus de
conferencistas julgados ofensivos ou passíveis de
contradizer as exigências diversitárias. Será preciso
considerar esses safe spaces como áreas livres dentro de
uma civilização racista, patriarcal e homofóbica. A
descolonização identitária e sexual de uma sociedade
liberada a um só tempo do racismo estrutural e da
heteronormatividade patriarcal estaria aí consumada. Seria
então possível lançar, a partir dessas áreas, novas lutas
intersetoriais contra as múltiplas opressões engendradas
pela civilização ocidental. Várias vezes, em toda a extensão
da América do Norte e, sobretudo, nas universidades,
conferencistas se viram desconvidados porque grupos
militantes se opunham à sua vinda; foi o caso de Jordan
Peterson, talvez o mais emblemático de todos. [ 244 ] Isso
pode ir ainda mais longe, como se viu quando uma
universidade londrina fez com que humoristas convidados a
atuar no local assinassem um contrato em que se
comprometiam a apresentar um humor não ofensivo. O
texto do contrato tinha algo de caricato: “ao assinar este
contrato, você aceita nossa política de tolerância zero em
relação ao racismo, ao sexismo, às discriminações fundadas
em classe social, idade e deficiência, bem como em
homofobia, bifobia, transfobia, xenofobia, islamofobia,
antirreligião e antiateísmo”. O contrato prossegue assim:
“todos os assuntos devem ser apresentados de maneira
respeitosa e afável. Isso não quer dizer que nem todos os
assuntos possam ser discutidos. No entanto, isso deve ser
feito de modo respeitoso, não injurioso”. [ 245 ] As palavras
que não endossarem a visão de mundo das minorias
oriundas da última etapa da descolonização das
consciências serão traduzidas como uma forma de violência
simbólica moralmente inadmissível. [ 246 ]
É a liberdade de expressão que está na mira direta e, por
meio dela, a democracia liberal, que deveria ser de uma vez
por todas desvestida de sua legitimidade usurpada. A
liberdade de expressão seria uma ficção em benefício dos
dominantes, e os que se queixassem de serem privados de
seu direito à palavra seriam privilegiados refratários à
emancipação diversitária – Reni Eddo-Lodge fala do
“contexto pernicioso da ‘liberdade de expressão’”, dando a
entender assim que ela seria alardeada atualmente para
justificar palavras racistas. [ 247 ] “Travestir a oposição aos
discursos e às manifestações antirracistas num nobre
combate pela liberdade de expressão tem um único
objetivo, que é proteger os brancos da crítica.” [ 248 ]
Enquanto a questão da liberdade de expressão nos campi se
impunha cada vez mais na sociedade quebequense, uma
intelectual militante do feminismo radical formulou à sua
maneira o que provavelmente constitui a posição dominante
de seu movimento ideológico: “não são as populações já
fragilizadas que estão a berrar que sua liberdade de
expressão está sob ataque. […] São aqueles que sempre
tiveram monopólio da fala, isto é, homens brancos em
geral”. [ 249 ] Aí se encontra o insuperável paradoxo da
tolerância política na modernidade, que primeiro sustentou
que não se devia dar liberdade de expressão aos inimigos
da liberdade e, atualmente, não pretende tolerar os
inimigos da tolerância – chega a desolar-se com o acesso
deles ao espaço público e não perde a esperança de
conseguir excluí-los desse espaço. A perturbação de uma
conferência para impedir sua realização é justamente uma
das modalidades da liberdade de expressão, sobretudo para
os que não têm tribunas públicas – haveria aí uma
admirável revolta contra a fala dos dominantes. Mais ainda:
combater as perturbações que visam causar incômodo e
impedir uma conferência, isso sim seria a verdadeira
negação da liberdade de expressão, e ela seria ainda mais
escandalosa porque pisotearia a liberdade dos sem-poder. [
250 ] Ao contrário, os que são assim “perturbados” e se
desolam com isso, pública ou discretamente, são acusados
de vitimizarem-se. O movimento diversitário denunciará “a
instrumentalização da liberdade de expressão e da
liberdade acadêmica quando esta serve para proferir
palavras opressivas”, e acrescentará que “a liberdade de
expressão não deveria ‘justificar o direito de pronunciar
discursos ou exercer ações de ódio ou degradantes,
particularmente quando estas são racistas, colonialistas,
xenófobas, transfóbicas, homofóbicas, sexistas, misóginas,
antifeministas, classistas ou capacitistas”. [ 251 ] A liberdade
de expressão não é a liberdade de dizer qualquer coisa, mas
a de ir no sentido do progresso – em outras palavras, de
conceder aos grupos minoritários em via de emancipação o
poder de expressarem-se por si mesmos sem continuar a
submeter-se às palavras do grupo que historicamente os
subordinou e definiu a partir do exterior. O verdadeiro
combate pela liberdade de expressão seria o de lutar contra
o acesso desigual à palavra pública. Uma militante feminista
de destaque a quem se perguntou “se constituiria censura o
fato de estudantes de esquerda impedirem um autor de
direita de proferir uma conferência na universidade deles”
respondeu que “a maioria das pessoas que faz alarde contra
a censura nesse tipo de caso realmente não suscita pena.
Não lhes faltam tribunas. Elas já são as que falam mais alto.
Existem tantas outras falas inaudíveis. Se quisermos
defender a liberdade de expressão, precisamos atacar as
desigualdades no acesso à palavra”, e logo acrescentou que
“o discurso que se escandaliza com o politicamente correto
foi criado à direita, por pessoas mais preocupadas em
conservar seu próprio poder do que em proteger a liberdade
de expressão e a necessidade de um debate saudável e
aberto. O discurso contra o politicamente correto – nós o
chamamos de ‘politicamente abjeto’ – interessa-se
sobretudo pelo direito de dizer horrores”. [ 252 ] O que
reivindicam os militantes daquilo que bem se poderia
chamar a extrema-esquerda identitária é, naturalmente, o
direito de definir os critérios do horror. Grosso modo, o
combate pela liberdade de expressão seria um tapa-sexo
ideológico, e ninguém deveria cair no engodo daqueles que
o travam. Esse seria, inclusive, um “tema de extrema-
direita”: [ 253 ] assim apresentado, torna-se imediatamente
repulsivo. A liberdade de expressão serviria tão somente
para normalizar o discurso dos dominantes. E é assim que a
pretensão ao livre exame de todas as crenças e à livre
expressão das diferentes maneiras de perceber a
comunidade política que embasa a deliberação democrática
se torna suspeita. É grande a tentação de estender o
conceito de safe space ao espaço público. Enquanto a
democracia liberal deveria originar uma cultura em que os
atores sociais se habituam à contradição e perdem o reflexo
de querer censurar os que a veiculam, a sociedade
diversitária impele antes à multiplicação das proibições
sociais e simbólicas, sem as quais as minorias estariam
condenadas a ouvir repetidas vezes um discurso que as
define do exterior, atribuindo-lhes uma identidade em que
elas não se reconheceriam. “Novas morais, novas
censuras”, escreveu, assim, Emmanuel Pierrat, que também
reconhece nessa tendência uma tentação higiênica exercida
pelas “ligas da virtude do terceiro milênio”, [ 254 ] que
aspiram a limpar a sociedade de todas as suas asperezas.
O NOVO ICONOCLASMO E A GUERRA CONTRA AS ESTÁTUAS

Se examinarmos com algum distanciamento o caldo


envenenado de cultura em que a universidade americana se
transformou, será preciso convir que a simples presença do
mundo antigo e de suas obras no espaço público é o que
desagrada as novas minorias emancipadas. Essa grande
revanche dos excluídos se acompanha de um furor
iconoclasta, impelido pela tentação de destruir até os
últimos traços do mundo antigo, cuja simples lembrança se
tornou intolerável. “O que sabem nossos contemporâneos
sobre os séculos que os precederam, exceto que foram
escravagistas, racistas, misóginos, sexistas e
desigualitários?”, pergunta com razão Bérénice Levet. [ 255 ]
A consciência histórica dos povos ocidentais parece referir-
se cada vez menos a suas respectivas histórias e remeter
cada vez mais à simples memória dos crimes contra a
humanidade, que deveriam se tornar sua trama comum. Eis
a trama de fundo dessa nova história: uma empreitada
exterminadora em grande escala, motivada por uma
intolerância à diferença, teria marcado a civilização
ocidental para sempre com uma mancha negra, e esta
deveria obrigar-se a um arrependimento permanente, que
seria a única via de salvação. É preciso lançar por terra o
velho mundo para então pisoteá-lo.
A cena percorreu o mundo: no mês de agosto de 2017,
manifestantes se confrontaram em Charlottesville, na
Virgínia, em torno de uma estátua do general Lee, uma das
principais figuras da guerra civil americana, que militantes
de extrema-esquerda queriam derrubar. Num país como os
Estados Unidos, que assistem a um renascimento das
tensões raciais e são permeados por paixões políticas
violentas, e onde ainda se manifesta um movimento
autenticamente racista, os simples traços da memória
confederada pareciam agora se inserir numa espécie de
patrimônio local, mais folclórico do que outra coisa. No
entanto, não se poderia esquecer que, na história
estadunidense, a guerra de Secessão se apresentou durante
muito tempo, e ainda se apresenta, sob muitos aspectos,
como a Civil War, isto é, a guerra civil; uma vez terminada,
e isso há um século e meio, as autoridades estadunidenses
se julgaram no dever de reconciliar a nação, que devia
refazer simbolicamente sua unidade, em especial ao
reconhecer a memória dos vencidos. Houve um tempo em
que a restauração da paz civil não pressupunha a
erradicação do vencido, mas, paradoxalmente, sua
reintegração na comunidade política, pela busca da
compreensão das boas razões de uns e outros. É que a paz
era concebida em termos políticos, sob o signo da concórdia
cívica, e não à maneira de um absoluto moral: era preciso
reconciliar homens – e não os campos do bem e do mal –,
homens estes que haviam tido razões inteligíveis para se
afrontarem. Nessa perspectiva histórica, o que estava em
jogo na guerra civil não era a escravidão, mas a unidade do
país. O reconhecimento da memória dos vencidos pelos
vencedores consolidava uma união que estivera sob o risco
de explodir. Numa tal perspectiva, é possível respeitar as
duas bandeiras e, ao mesmo tempo, lembrar qual delas
venceu. Compreende-se assim que, uma vez terminada a
guerra, fosse preciso reunificar o país, reconciliá-lo, levando
em conta os heróis de cada um, o que obriga a cantar sua
glória comum. Até os anos 1980, ao menos nos estados do
Sul, era possível afirmar seu pertencimento à memória do
Sul e demonstrar certa nostalgia por seu ideal, sem tropeçar
na questão da escravidão. O Sul não era um símbolo de
racismo: era associado a uma civilização hoje desaparecida,
retratada pelo filme E o vento levou, que também foi
censurado num festival, segundo a dinâmica dos
acontecimentos, visto que não lançava sobre o velho Sul um
olhar compatível com aquele que lhe é atualmente
reservado. [ 256 ] Ainda recentemente, foram muitos os que
testemunharam seu zelo pela bandeira dos confederados,
presente em todos os lugares nos estados do Sul, à maneira
de uma civilização vencida, mas não humilhada. [ 257 ]
No entanto, essa memória complexa, atenta à pluralidade
da experiência histórica americana, deixou de ser tolerável.
Do alto da história, o que estava em jogo nessa guerra já
não suscita nenhuma dúvida: tratava-se de abolir a
escravidão e foi sob esse prisma que ela entrou na história
universal. Não se poderia relativizar sua importância. É
natural: a partir do momento em que a política se agarra a
absolutos morais, transforma os adversários em inimigos e
os inimigos em monstros. Pode-se compreender o acesso de
raiva de uma juventude que constata que o racismo
estadunidense não é uma coisa do passado, e que busca
símbolos a serem combatidos para manifestar seu desejo de
outra sociedade. A partir do momento em que essa
perspectiva é invertida, a memória só pode se recompor
dividindo os adversários do passado entre representantes
do bem e do mal. Aqueles que, por uma razão ou outra, se
opuseram à supressão da estatuária confederada são
acusados de cumplicidade com aquilo que hoje lhe é
recriminado.
A grande maioria dos estadunidenses, quer dos estados
do Norte, quer do Sul, reagiu muito mal à vontade de
derrubar essa estátua, ainda mais porque foi seguida por
outras iniciativas do mesmo gênero, praticamente em todo
o território nacional. Não era apenas a ilegalidade que
chocava, mas a brutalidade de vândalos que se acreditavam
autorizados a esfacelar monumentos inseridos na paisagem
histórica de diferentes comunidades. Viam-se rapazes e
moças encarniçando-se contra velhas estátuas, em algo que
tinha toda a aparência de uma crise de histeria coletiva,
relembrando os dois minutos de ódio evocados por Orwell
em 1984. [ 258 ] Logo se compreendeu, aliás, que essa fúria
destruidora ultrapassava, e muito, a mera questão da
escravidão. Nas semanas subsequentes, assistiu-se a um
surto iconoclasta em quase toda a extensão dos Estados
Unidos e, de modo mais amplo, no mundo ocidental. O
prefeito de Nova York, Bill de Blasio, anunciou num primeiro
momento sua intenção de retirar a estátua de Cristóvão
Colombo, numa empreitada cujo objetivo era erradicar do
espaço público os símbolos de ódio, [ 259 ] pois ela seria
julgada ofensiva pelos ameríndios, ainda mais porque os
movimentos mais militantes que pretensamente os
representavam radicalizaram nos últimos anos sua crítica à
colonização europeia, a ponto de reduzi-la a uma
empreitada de extermínio étnico. Os europeus, na América,
não estariam em sua casa e teria chegado a hora de
reescrever a narrativa da colonização do novo mundo
criminalizando suas origens. Atacava-se Cristóvão Colombo,
mas era sobre a expansão europeia iniciada no fim do
século XV que a acusação recaía. [ 260 ] A América estaria na
hora da descolonização: o mínimo que se podia fazer era
contestar o papel fundador das potências coloniais na
origem dos diferentes países que surgiram no continente.
Tanto nos Estados Unidos como no Canadá e no Quebec, foi
em nome de uma abordagem descolonial que se pretendeu
criminalizar os grandes exploradores europeus, que teriam
inaugurado um genocídio cultural ininterrupto até os dias de
hoje. É a expansão europeia que está no banco dos réus, e o
mundo ocidental já não tem o direito de compreender a si
mesmo senão tomando de empréstimo o olhar dos que
teriam sido marginalizados por ele. O ocidental deve não
apenas fazer penitência, mas apagar-se por completo. Seu
ponto de vista sobre o mundo é esvaziado de toda
legitimidade. Foi também de acordo com esse espírito que
houve quem propusesse a derrubada das estátuas de John
A. Macdonald, um dos pais fundadores do Canadá, em razão
de sua política para com os ameríndios. [ 261 ] Pense-se
também no CRAN, que pretende representar os Negros da
França e quis acabar com as estátuas de Colbert, por sua
responsabilidade histórica na escravidão. [ 262 ] Para retomar
o vocabulário da prefeita de Montreal, que cede a essa visão
das coisas, sua cidade seria um “território autóctone não
cedido”, uma maneira como qualquer outra de desqualificar
moralmente os Estados nascidos da colonização europeia,
quer se trate dos Estados Unidos, quer do Canadá ou do
Quebec.
A estação foi propícia à dinamitação simbólica, como se o
dever exigisse depurar a sociedade dos traços do passado
pré-diversitário. Viu-se isso no King’s College, de Londres,
onde a estatuária na entrada do estabelecimento, em
homenagem aos pais fundadores da instituição, foi
denunciada: tratar-se-ia de uma coleção “de homens
brancos, barbados, de mais de cinquenta anos”. [ 263 ]
Dificilmente se pode imaginar recriminação pior.
Empreendeu-se a substituição por figuras oriundas da
diversidade e representantes das diferentes minorias, a fim
de construir uma estatuária conforme à iconografia
diversitária. Já não são celebradas as realizações singulares,
mas é todo o simbolismo oficial que é instrumentalizado
para que nele se projete o novo ideal da diversidade. O
partido diversitário pretende assinalar a mudança de época
marcando a ruptura absoluta com a época anterior. [ 264 ] É
claro, essa tentação não é nova: caracteriza o espírito da
modernidade, obcecada com a fantasia de um mundo
absolutamente racionalizado, arrancado da história, lavado
do passado, alheio aos limites antropológicos. Ela impele a
fazer tábua rasa, mas a cada vez se constata que o mundo
do passado deixou alguns traços e, por isso, estes são ainda
mais intoleráveis. Eles parecem, portanto, mais intoleráveis
do que nunca. Tocqueville havia teorizado isso à sua
maneira: em uma sociedade democrática, movida pelo
princípio igualitário, a menor desigualdade residual causa
escândalo. Em um mundo extraído da história, que quer
renascer na pureza virginal do autoengendramento, o
menor privilégio associado à continuidade histórica é um
símbolo que precisa ser condenado a qualquer preço. É
necessário que se compreenda: já não devem restar traços
do mundo do passado – ou, ao menos, traços ambíguos. No
fim das contas, a história só poria em cena o conflito entre o
bem e o mal, que se expressaria atualmente na luta entre a
abertura e o fechamento, por meio de um programa de
desocidentalização do mundo. A consciência histórica já não
deve ser considerada em referência às diferentes camadas
memoriais, e às significações contraditórias ou
complementares passíveis de entremear-se.
Sente-se que nossas sociedades estão hipnotizadas pelo
nada e pela possibilidade de sua própria dissolução, como
se o desmoronamento das grandes formas históricas
levasse o homem a uma espécie de indeterminação original,
a partir da qual ele poderia renascer, livre, enfim, das
restrições que o teriam alienado. Incessantemente
retomado, o empreendimento depurativo traz a esperança
de uma sociedade emancipada de seus resquícios vindos do
passado, por fim pacificada, visto que integralmente
concordante consigo mesma – é a esperança de uma
sociedade consumada, que atingiu o término de seu
processo histórico. Simplesmente já não é permitido
testemunhar uma estima qualquer por uma etapa anterior,
visto que ela entraria na categoria do passado pré-
diversitário. A esquerda diversitária é uma esquerda
religiosa, que acredita ser possível, um dia, chegar a um
sociedade emancipada de toda forma de heteronomia. Nos
termos da sociologia diversitária, tratar-se-ia de uma
sociedade integralmente destituída de hierarquia, tendo
desconstruído de uma vez por todas as antigas estruturas
de poder e o imaginário que as sustenta. Os privilégios
seriam, por fim, abolidos – do velho mundo restaria apenas
a lembrança euforizante de seu desaparecimento. No
entanto, este não poderia parar, pois a resistência do real à
utopia não é conjuntural: está inserida na realidade das
coisas. A fanatização do progressismo vem daí – do
sentimento de uma resistência que sempre vem desmentir
suas promessas. Quanto mais o real teima em não se
dobrar, mais se deve radicalizar sua desconstrução. A
tentação totalitária é irresistível. O homem não é uma
criatura absolutamente maleável, fabricada e confeccionada
em uma sociedade concebida como um laboratório. Uma
parte dele sempre se esquivará, mesmo ao planificador
social mais ambicioso, e mesmo que “a máquina e as
engrenagens” [ 265 ] sejam de uma eficácia absoluta. É que o
homem não é absolutamente transparente para si mesmo.
Miłosz, cuja figura encontramos várias vezes nestas
páginas, constatava que, para os círculos socialistas, “supor
que o homem seja um mistério é um insulto abominável”. [
266 ] De fato, quem supõe que o homem não é uma criatura
exclusivamente social invalida de antemão toda tentativa
de reprogramá-lo por completo, de reeducá-lo de maneira
tal que ele se conforme exatamente ao modelo de
sociedade ao qual o destinam.
Capítulo 6 | O sentimento do fim de um mundo ou a
criminalização da nostalgia
 
 
 
 
 
 
 
Recuso filiar-me a esse partido único do futuro, que sabe bem demais
para onde vai.
Matthieu Galey
 
Em suma, eu havia lido Peguy em demasia, o canto de glória elevado
àqueles que não se rendem, o anátema lançado àqueles que entregam
os lugares que lhes foram confiados. Queria continuar minha história
da França. Não havia compreendido que chegara ao fim do último
capítulo.
Raoul Girardet
 
Distanciando-me a contragosto das velhas plagas em que nasci…
Chateaubriand
 
Os tempos tranquilos já se foram. Somos contemporâneos
do fim da democracia apaziguada. Se a vida política
ocidental voltou a ser passional, para o melhor e para o
pior, é porque a partir de agora diz respeito à própria
existência das nações que a compõem e da civilização em
que estas se inserem. “Quando a alma da própria
comunidade política adoece, o indivíduo fica sob ameaça,
não apenas nas dimensões superiores de seu ser, mas em
sua existência imediata, em seu alicerce vital. O ‘pecado’
torna-se propriamente catastrófico quando deixa de ser
pecado: quando já não procede de uma escolha individual e
deliberada, mas de uma consciência coletiva corrompida. Já
não se limita, então, a degradar o homem: ele o destrói.” [
267 ] Ao escrever estas poucas linhas, Gustave Thibon
acreditava descrever o que ele denominou “a decadência de
um mundo cristão”. No entanto, mais fundamentalmente,
vemos aí uma meditação sobre os elos estreitos entre o
homem e a comunidade política, cada vez mais alheia à
antropologia liberal, e que tende a privatizar integralmente
a questão do Bem e teima em reduzir a vida política à sua
dimensão instrumental.
No entanto, preocupar-se com o mundo em que vive é um
dos reflexos mais naturais dos homens. Quem corta o
vínculo entre a comunidade política e a alma enfraquece a
primeira e resseca a segunda. Quem dessacraliza em
demasia a comunidade política cria as condições para um
sagrado substitutivo, que se transferirá para objetos
secundários que não merecem aproximar-se do âmbito do
absoluto. Se a comunidade política acabar arriando, o
homem arriará também, e as grandes coisas que ele
tradicionalmente esperava realizar tornar-se-ão
simplesmente inconcebíveis, sua imaginação definhará,
bem como suas esperanças. Não se vive da mesma maneira
em tempos tranquilos e quando vem a tempestade. O
homem não se desenvolve da mesma maneira se seu país é
poderoso ou se está em decomposição; duvida de si mesmo
e acaba por reconhecer-se no pior retrato que pode fazer de
si mesmo. Sob esse prisma, a filosofia política aristotélica
era mais rica que a dos modernos, que quiseram fundar a
comunidade política na neutralização simbólica e afetiva da
coisa comum. Quando as bases antropológicas da
comunidade política ficam comprometidas, e quando as
estruturas simbólicas que davam suporte à expressão da
subjetividade se esfacelam e dispersam, a pessoa custa a
se formar.
A globalização acentua essa tendência: um mundo sem
fronteiras é um mundo com mil neuroses. Aquilo que
chamamos mais ou menos adequadamente de perda de
identidade encerra o homem em uma eterna adolescência.
Ele tem dificuldade para se estabelecer como adulto. Michel
Houellebecq, melhor que qualquer um, soube de um livro a
outro retratar essa ausência de herança existencial. Seus
personagens andam errantes numa civilização em fim de
percurso, incapazes de transcender, buscando apenas
sobreviver sem saber muito bem por quê, de tempos em
tempos acometidos por um desejo de conversão religiosa,
diante da qual fracassam a cada vez. A civilização deles os
abandonou. Philippe Muray, da mesma maneira, descreve
um homem que não sabe fazer outra coisa senão perder-se
num totalitarismo do riso que se reveste de ares de festa.
Embasbacado, condenado a uma paródia de existência
numa civilização que só sabe correr atrás de um progresso
cujo sentido lhe escapa, o homem sente que o mundo do
passado, que não era destituído de infelicidade, tampouco
era destituído de grandeza. Entrega-se, então, à nostalgia: e
essa tentação não se perdoa. Já não é permitido lamentar o
desaparecimento do mundo dos nossos pais, e confessar “a
saudade do país da nossa infância se tornou um crime”. [ 268
] O sentimento de perda seria ilusório. Nada é menos
admissível na vida pública do que um homem que ouse
sustentar, mesmo em voz baixa, que antes, talvez, fosse
melhor.
A consciência contemporânea é permeada pela certeza de
uma mudança de época. Não cometeremos o erro de
enxergar aí apenas a melancolia recorrente do homem
moderno. “O exílio em terra estrangeira é um
dilaceramento. O sentimento de exílio na própria terra é um
trauma ainda maior”, [ 269 ] escrevia, com razão Alexandre
Devecchio. O medo de tornar-se estrangeiro na própria casa
é com certeza a preocupação política mais profunda, aquela
através da qual a vida política volta a desdobrar-se. Seria
um equívoco ver nisso um medo irracional alimentado por
demagogos sem escrúpulos. A imigração maciça, conjugada
à desconstrução de todas as referências antropológicas e
identitárias das nações ocidentais, suscita uma angústia
existencial que se transforma em combustível político. A
consciência pesada parece dominar atualmente, numa
civilização que cultiva o ódio de si mesma, que se deixou
convencer de que não deveria assumir sua história, mas
extrair-se dela, e que desconstrói interminavelmente suas
grandes instituições, acreditando travar uma luta para
acabar com as fobias, não raro imaginárias. Certo
perfeccionismo moral pode transformar-se com facilidade
em mórbida autoflagelação. O Ocidente se deixou converter
mentalmente a um messianismo humanitário que o faz
perder o senso político, o qual sempre constitui, seja lá o
que se pense a seu respeito, uma reflexão sobre o
particular. É a partir do momento em que o corpo político
compreende que ele não se confunde com a humanidade
que a política se desemparelha da ética e revela sua
autonomia, bem como suas próprias exigências. A
radicalização do universalismo acarreta a extinção
inevitável da política. Isso porque o universalismo bem
compreendido repousa em primeiro lugar numa consciência
das mediações que o tornam possível. É provavelmente um
sinal de declínio, para uma civilização, questionar-se em
permanência sobre seus fundamentos, em vez de assumi-
los plenamente. Se a questão da identidade é tão
apaixonante e libera as paixões políticas mais
fundamentais, é porque abre uma discussão pública sobre
os próprios fundamentos da comunidade política. No
entanto, esse pendor excessivo para a introspecção não
será um sintoma de uma profunda fragilidade? A identidade
não deveria apresentar-se tanto como um perpétuo
autoquestionamento, mas como princípio de vida. Pertence
muito menos ao âmbito do projeto racionalmente construído
do que ao da herança viva e ao da continuidade histórica, o
que não significa que ela não evolua numa tensão entre os
dois polos, o do ideal e o da memória. É na medida em que
um povo assume sua condição histórica que é capaz de
projetar-se no futuro. Se chega a duvidar de sua própria
existência, inevitavelmente declinará. Não obstante os
abusos cometidos em seu nome, o mito da tábua rasa não
cessa de renascer em formas inéditas, como se desse
testemunho da irredutível tentação demiúrgica da
humanidade. Essa liberdade evidentemente não tem
sentido. O niilismo e o utopismo compartilham o mesmo
fascínio pelo vazio: o primeiro é fascinado pelo próprio
nada, o segundo acredita ser possível extrair dele uma
ordem social perfeita.
O ENCANTO DOS ESCRITORES CREPUSCULARES

Sempre há os que desfrutam, é claro, deste fim de época.


Se a decadência é bem real, tudo é permitido. Tudo o que a
civilização havia reprimido a fim de se construir se libera,
favorecido por uma descompressão inesperada da ordem
social. É a potência bem conhecida do ressentimento, que
domina os tempos de vingança e corrói o próprio principio
de civilização. No entanto, embora alguns se inebriem com
o perfume da decomposição, outros são alheios às paixões
mórbidas. “Pergunto-me se não fico indignado num deserto,
em memória de um mundo enterrado, e do qual poucos se
recordam.” [ 270 ] Ao confessar tal sentimento no início dos
anos 1980, Louis Pauwels decerto não foi o primeiro, desde
Paul Valéry, a constatar que as civilizações são mortais.
Essa questão persegue o mundo desde a queda de Roma:
as formas históricas não são eternas, nem imortais; um dia
perecerão, deixando apenas belas – ou não tão belas –
ruínas. A inteligência contemplativa, quando medita a
respeito delas, busca penetrar a parcela de eternidade que
encerram. No entanto, uma coisa é saber que todas as
civilizações são destinadas a morrer, outra é sentir que é
nossa própria civilização que passa por seus “últimos dias”. [
271 ] “A maior revolução na história humana é que, de
maneira cada vez mais sensível, descobrimos que não
morremos no mundo em que nascemos.” [ 272 ] O mundo que
nos é caro desmorona, e outro, feito de tudo o que aquele
havia reprimido, vem à tona. “A história é como um saco de
bolinhas de gude; os solavancos trazem à tona as bolinhas
do fundo. Nas diatribes contra a cultura e a ordem
burguesa, o imperialismo, a sociedade de consumo etc.
havia o tom dos fanatici chamando a maldição sobre Roma.
Hoje as massas são invocadas como no passado se
invocava o Messias, o Terceiro Mundo como antes o Espírito
Santo, a revolução como, outrora, o Apocalipse e, para
muitos, o pão e o ácido substituíram o pão da comunhão. É
provável que a ardente batalha antiga fosse mais pura que
a briga entre os fanáticos de 1968 e nossa sociedade. No
entanto, as armas enferrujadas também podem ferir
mortalmente. E talvez os estouros atuais, que nos parecem
incongruentes e vulgares, venham a ter uma
desconcertante posteridade. Talvez estejamos, como os
romanos, nas primícias do nosso fim.” [ 273 ] A referência a
Roma era inequívoca; em seu romance tardio, Les orphelins,
Pauwels evocava o universo da decadência: a de um mundo
que desmorona, no qual o sagrado é transgredido, os
deuses são pisoteados, quando as pessoas não se
contentam simplesmente em deixar de crer neles.
Imaginamos que se Pauwels tivesse escrito seu romance em
meados dos anos 2010, teria haurido no folclore de nossa
época, com suas minorias reivindicativas e histriônicas que
querem acabar com o que resta do velho Ocidente.
Pauwels é um escritor esquecido. Foi classificado na
categoria dos panfletários de segunda ordem, que são
encerrados em uma ou duas controvérsias secundárias que
supostamente revelariam sua triste natureza. Na história
das ideias, ele não conta, e quando ela se lembra dele, é
somente para se parabenizar por tê-lo esquecido ou para
relembrar que, decididamente, ele tendia muito para a
direita. No entanto, poderíamos facilmente classificá-lo na
grande família dos escritores crepusculares: os que
descrevem o fim de um mundo. Decerto, encontram-se em
suas obras muitas aberrações e outras extravagâncias. Um
mundo que morre não raro vê sua religião morrer, e
provavelmente não é sem razão que esse grande caçador
do absoluto que foi Pauwels, depois de uma longa busca
espiritual que o levou de Gurdjieff ao paganismo
indoeuropeu, passando pelos OVNIS e pela Nova Era,
retornou em seus últimos dias ao catolicismo, como se
buscasse refugiar-se no núcleo espiritual e histórico de sua
civilização moribunda. Nos tempos atuais, não se reza muito
nas igrejas, o que mais se faz é visitá-las na condição de
turista, com um guia para explicar a história contada nas
paredes. Michel de Jaeghere soube descrever triste e
divertidamente essa desculturação em seu diário-romance,
no qual relata a visita a uma igreja. “Os grupos se sucediam
diante do Moisés de Michelangelo. Alguns anos atrás, os
guias ali contavam aos turistas as peripécias da construção
da tumba de Júlio II e a vida ardente do escultor. Tentavam
mostrar como este havia realizado um prodígio com a figura
do profeta, um retrato moral que, por sua força, sua
energia, seu ardor, era o de seu patrocinador. E, pela
inquietação inextinguível do olhar, seu autorretrato como
gigante exaurido. Hoje em dia, esforçam-se para explicar-
lhes quem é Moisés, sem reter a atenção deles por mais de
um instante.” [ 274 ] O homem desenraizado e desculturado
é, sobretudo, um estanho para si mesmo, incapaz de ler o
texto simbólico de sua própria civilização, em que ele habita
como se esta fosse um museu, a menos que se converta à
filosofia do mundo descartável. Verá então, nos traços da
história, apenas velhas pedras insignificantes, e jamais lhe
virá a ideia de ajoelhar-se diante do que quer que seja,
exceto diante do sentido da história, que o obriga.
Não obstante as zombarias de que por vezes são objeto,
os pensadores crepusculares, obcecados pela decadência,
suscitam uma pergunta vital. Buscam captar o que existe de
precioso num mundo que, conforme percebem, está em via
de extinção. Sabem que a civilização é uma obra frágil e
que o homem cai, perde o chão, e que as pulsões
reprimidas se apoderam da comunidade política, lançando-a
no caos. É claro, por vezes eles têm o defeito que
corresponde à sua qualidade e confundem um passo em
falso com um desvio fatal. O ridículo os espreita. O
conservador tende a acreditar que tudo vai mal, o
reacionário acredita que tudo está perdido. O primeiro
acredita, consequentemente, nas virtudes da política,
enquanto o segundo se refugia no mito de uma catástrofe
redentora, em que os homens pagariam por seus erros e
retornariam a uma civilização mais sã. Diante do sentimento
dos maiores perigos, os corações aventurosos se rebelam e
chegam a sonhar com uma façanha, a fim de inverter o
sentido dos acontecimentos. Será que um grande gesto
poderia despertar as consciências, tirar os homens de seu
torpor e criar as condições de uma crise redentora? Sonha-
se então com um sacrifício redentor. Alguns gostariam antes
de empurrar a sociedade para os extremos, numa luta que
deixaria de lado os mornos e os moderados, para que, por
fim, se enfrentassem, de um lado e do outro, os que estão
decididos a ir ao remate de uma aventura política
transformada em busca do absoluto. É a fantasia
assustadora da guerra civil redentora, que supostamente
purificaria a comunidade política e lhe devolveria sua
juventude viril. Embora o reacionário seja por vezes um
escritor brilhante, não raro tende a se comportar, na
política, como um fanático. Nesse aspecto o reacionário
compartilha a escatologia dos revolucionários, ao mesmo
tempo em que lhe confere uma conotação negativa.
No entanto, para além dessa tentação mórbida, existe
provavelmente uma ética própria dos escritores
crepusculares. O que deve fazer alguém que sobrevive a
seu próprio mundo? Com Michel Onfray, eles nos convidam
simplesmente a morrer de pé, em nome da honra. “A
verdade cruel é que nossa civilização está desabando.
Durou 1500 anos. Já é uma grande coisa! Diante disso,
encontro-me numa perspectiva spinozista: nem rir, nem
chorar, mas compreender. Não se pode frear a queda de
uma falésia.” Onfray escreverá também: “O barco está
afundando. Não perca a elegância, morra de pé”. [ 275 ] Que
fazer quando o mundo que nos é caro nos escapa? Nada.
Essa é a moral honrosa de um antigo romano. Pauwels, para
citá-lo uma vez mais, escreverá estoicamente: “Nas ondas
de fim de século, se tivermos de afundar, afundemos de
pé”. [ 276 ] Como o Catão da obra La guerre civile, de
Montherlant, ouvimos várias pessoas dizerem: “Algo está
nascendo; algo está morrendo. Estou com aquilo que morre.
É lá que prefiro estar”. [ 277 ] Os melhores transfigurarão seu
desespero em literatura. A tentação fatalista se
apresentará: o mundo sempre mudou e sempre mudará. De
nada adianta resistir a isso. Nada parece frear essa onda,
ela arrasta tudo, a resistência parece vã, os que se erguem
contra ela são alquebrados, ou condenados a se moldar a
ela, o que eles justificam imaginando, então, que serão
capazes de dirigi-la ou domá-la. As últimas páginas de
Memórias do Além-Túmulo, de Chateaubriand, são
provavelmente as que melhor expressam aquilo que poderia
ser um senso de apaziguamento diante da passagem dos
séculos. “É provável que passemos por estágios árduos; o
mundo não poderia mudar de rosto sem que haja dor. No
entanto, uma vez mais, já não serão revoluções isoladas:
será a grande revolução chegando a seu termo. […] parece
que o antigo mundo está no fim, e que o novo se inicia. Vejo
reflexos de uma aurora cujo sol, em sua ascensão, eu não
verei. Só me resta sentar-me à beira de minha fossa; depois
disso, descerei ousadamente, com o Crucifixo na mão,
eternidade adentro.” [ 278 ] Existe uma beleza moral na
capacidade de um homem para fazer as pazes com o
inevitável.
O RECURSO AO GRANDE HOMEM

No entanto, nem todos querem apenas se deixar engolir


pelo novo mundo. Essa é a postura mais admirável, a do
homem que não cede. Nada é mais natural do que acreditar
que nem tudo está perdido e que, na impossibilidade de
trazer de volta o mundo do passado, seja possível restaurar
o que não deveria ter sido sacrificado. Mesmo quando o
mundo parece desabar, a questão da política permanece
central. Contudo, em conformidade com a época em que
vivemos, a política muda de vocação. Em Memórias de
Adriano, Marguerite Yourcenar põe estas palavras na boca
do imperador: “E eu agradecia aos deuses, que me haviam
concedido viver numa época em que a tarefa que me cabia
era a de reorganizar prudentemente um mundo, e não a de
extrair do caos uma matéria ainda informe ou a de deitar
sobre um cadáver para tentar ressuscitá-lo”. [ 279 ]
Convenhamos que as elites políticas de hoje não têm a
sorte de Adriano. Bernanos, em Nous autres, Français [Nós,
franceses], escreveu: “Cada dia perdido consolida a fratura
ruim, e amanhã ela já não terá remédio. A restauração da
monarquia não pode ser uma empreitada como outra
qualquer, já é tarde demais, é preciso que ela seja uma
aventura – e, se não tivermos medo das palavras, um
milagre”. [ 280 ] Não se trata, é claro, de restaurar a
monarquia ou algo desse gênero, mas a restauração da
soberania democrática e das condições da política,
necessária à ação em tempos turbulentos, exigiria, contudo,
que falássemos uma mesma linguagem, ou que nos
inseríssemos num imaginário semelhante. Em sua obra,
Raymond Aron considerou positivamente a figura do Grande
Legislador, capaz de refundar uma comunidade política
impelida para o abismo. Aron pensava então em De Gaulle.
Essa reflexão encontra seu eco no mundo atual.
Compreende-se então o sucesso daqueles que, diante do
sentimento geral de impotência, conseguem encarnar o
voluntarismo e a determinação. O espectro do fim de um
mundo favorece, naturalmente, o advento de líderes, não
raro demagogos, cuja pretensão é poder reverter o curso da
história pela simples força de sua vontade, como se
tivessem uma vontade prometeica, mais forte que tudo. Os
homens sonham com um grande impulso político encarnado
por um homem excepcional, dotado de uma vontade quase
providencial, que poderia reerguer a coletividade e fixar-lhe
um novo rumo.
A reflexão sobre os grandes homens – que perpassa o
pensamento político antigo, mas parece estranha à filosofia
moderna – repousa numa aposta admirável: o homem pode
mudar o curso da história e, de acordo com este ou aquele
indivíduo em posição de autoridade, o destino poderá
oscilar de uma maneira ou de outra. O grande homem vem
relembrar que a ação humana não é um capricho. A filosofia
política aprecia escarnecer da fantasia do homem
providencial, que representaria um resquício arcaico no
pensamento moderno, quando este último já teria
demonstrado tantas vezes que os movimentos históricos
escapam à vontade humana. A história, porém, demonstrou
o contrário, e não se poderia esquecer que a vida política é
uma dimensão encarnada, em que as ideias devem assumir
um rosto, a fim de captar a atenção do homem comum e
transformar a matéria do mundo. “A história da direita é
uma galeria de retratos, a da esquerda, uma série de
movimentos de massa”, [ 281 ] escreve Régis Debray, o que
poderia nos levar a reconhecer a maior perspicácia do
partido conservador, atento à carga simbólica do âmbito
político e ciente de que uma comunidade política
desencarnada é uma visão teórica ou uma burocracia
sinistra. O culto dos grandes homens repousa numa
realidade que escapa tanto aos liberais como aos marxistas,
quando estes querem reduzir a história ao desdobramento
de processos impessoais, que faria pouco caso daquilo que
se poderia denominar a parte humana. O cientificismo
aplicado à história quer ver na ação humana apenas uma
variável menor, residual, insignificante. O que se esquece,
porém, é que a história é rica daquelas situações em que a
ação de um indivíduo excepcional ou de alguns homens de
grande valor pôde mudar o curso dos acontecimentos. É
verdade que a vontade política é atualmente entravada pela
judiciarização do âmbito político: de um tratado
internacional a outro, de uma convenção dos direitos
humanos a outra, assiste-se ao apagamento da política e à
conversão integral do vínculo social à lógica contratualista.
Uma decisão política é cada vez mais difícil, quando entra
em contradição com essa lógica. Na realidade, é julgada
reacionária. Não poderia haver política contra o sentido da
história. A partir do momento em que a política parece
esgotar-se num processo histórico sobre o qual o homem já
não tem qualquer influência, ela se esvazia de sua
substância e se torna paródica.
Desconfiamos com razão dos indivíduos instáveis, de ego
inflado, que confundem a política com uma aventura
pessoal, o que poderia acabar pessimamente. No entanto,
não reduziremos o apelo ao homem providencial a uma
simples mística do chefe ou a uma tentação autoritária
culposa. Nem sempre sabemos antecipadamente quem é o
grande homem – não sabemos se não se tornará um
indivíduo excêntrico ou um tirano. De todo modo, é preciso
ter uma personalidade tempestuosa para entrar em
dissidência com um regime – na maior parte do tempo, o
destino que aguarda o dissidente é o ostracismo midiático,
a demonização política, a psiquiatrização em praça pública.
É preciso, provavelmente, um caráter excêntrico e
desmedido para ser capaz de enfrentar a agressividade
extrema que o sistema pode demonstrar quando se sente
ameaçado. Por vezes é preciso um homem que passe por
excêntrico para veicular durante anos, sob as zombarias
generalizadas, uma ideia que parece esdrúxula, mas que ele
será capaz de expressar e normalizar. Um homem que
deseja permanecer respeitável junto aos que ele contesta é
condenado a deixar de contestá-los ou a se contentar com
uma contestação de fachada. Participará da comédia dos
falsos debates que nos são comumente apresentados como
a expressão sofisticada da democracia. A história não se
escreve apenas com homens que respeitam os códigos
burgueses de bom tom, ao som de uma música de elevador
como pano de fundo. Winston Churchill passava por louco,
mas salvou o país do nazismo, antes de contribuir para a
derrota final deste último; e o general De Gaulle
desempenhou primeiro o papel de um general sedicioso e
megalômano, antes de tornar-se o salvador da França. Não
sabemos de antemão se a desmedida de um dia não será
compreendida no dia seguinte como manifestação de uma
vitalidade excepcional.
No entanto, a esperança de uma reação pode parecer vã.
Algumas vezes, um homem vê aquilo que amou e já não
acredita ser possível salvá-lo. Para dizê-lo com as palavras
do poeta, ele chega “tarde demais a um mundo velho
demais”. Tarde demais. Essas duas palavras podem
demonstrar uma psicologia da desistência diante de uma
tarefa demasiado difícil de enfrentar ou uma forma de
lucidez superior, a de um homem que compreende que de
nada adianta teimar. Num texto que ele consagra à morte
de Catão, Montherlant escreve uma frase terrível: “Ele olha
à direita, olha à esquerda, olha para cima, olha para baixo, e
nada encontra a não ser o horrendo. Essa é, por vezes, a
tragédia de um povo, em determinado momento: não há
ninguém”. [ 282 ] A vida política da última metade do século
passado pode fazer acreditar na ociosidade do engajamento
público. Raros são os que se debruçam sobre esse paradoxo
dos anos 1960 e 1970. As pessoas parecem esquecer,
porém, que a mais estrondosa vitória eleitoral de Richard
Nixon foi conquistada em 1972, quando este se apresentou
como o candidato da ordem contra a agitação ideológica
que convulsionava o mundo ocidental em geral, e os
Estados Unidos em particular. Essa não foi a única vitória do
campo conservador durante os anos 1970, mas,
parafraseando outra pessoa, foi uma estranha vitória. Em
outros lugares, os conservadores também venceram, sem,
contudo, serem capazes de conter o advento da sociedade
nascida do surto contracultural e da grande inversão dos
valores.
A FIGURA DO PÁRIA

Suscita-se, a partir daí, a pergunta cruel: o que se pode


salvar de uma civilização moribunda? [ 283 ] Em Symmaque
[Símaco], Jacques Bainville punha em cena, de uma bela
maneira, o triste destino daqueles que serão denominados
os vencidos da história. Seu personagem, Símaco, escreve
assim: “acredito na eternidade do mundo, porém em sua
perpétua renovação. Por isso os conservadores estão
fadados a perder sempre, pois apegam-se às formas e às
coisas, que são mutantes e perecíveis”. [ 284 ] Não
surpreende que Bainville tenha situado os personagens na
Roma tardia, que permanece o melhor teatro para a
reflexão sobre a decadência e as paixões que ela suscita. O
mais poderoso dos impérios poderá durar muito tempo, mas
não poderá durar para sempre; no entanto, é a nobreza do
homem que faz de tudo para imortalizá-lo. A queda de
Roma continua a ser, na história universal, um
acontecimento a um só tempo improvável e inevitável.
Cedo ou tarde, visto serem as coisas assim e nada
podermos fazer quanto a isso, o mundo que nos é caro se
transformará em ruínas. Para expressá-lo com Gustave
Thibon, esse é “o risco de toda fidelidade […], o de
confundir o essencial e o anacrônico” e, no entanto, é uma
aposta que vale a pena fazer, caso contrário o homem corre
o risco de dissolver-se num fluxo sem fim. Essa fidelidade,
porém, costuma ser vacilante. Por vezes o conservador que
se esforça para defender os farrapos ainda flutuantes do
mundo de ontem está convencido, em seu âmago, de que a
causa da salvaguarda da civilização é uma causa perdida.
Luta, mas sem acreditar; agarra-se a uma posição, ciente de
que não a manterá em absoluto e saberá, quando chegar a
hora e o lugar, em nome do pragmatismo, bater em
retirada; acredita que assim reservará para si uma posição
no novo mundo. Essa desclassificação simbólica não raro se
acompanha de uma desclassificação social, e
compreendemos por que as elites, que fazem questão de
conservar suas situações, preferem se dobrar ao novo
mundo, em vez de lutar pela sobrevivência do antigo. Estão
cientes, atualmente, de que a manutenção de seu lugar
exige um alinhamento com o regime diversitário, e
adaptam-se. Poderíamos falar do instinto de sobrevivência
das burguesias. Elas não conseguem se imaginar em outra
posição que não seja o topo da sociedade e preferem
converter-se ao novo regime a permanecerem fiéis aos
valores do antigo, agora vencidos e descaídos. São bem
raras as elites obstinadas que permanecem fiéis a um
regime deposto, acreditando-se chamadas a restaurá-lo. É
muito fácil alguém se convencer de que não quer, a
qualquer custo, morar nas ruínas. Não é fácil entusiasmar-se
com um destino na retaguarda. Alguns chegam a se
convencer de que será possível salvar o essencial
pactuando com o novo regime, e dizem a si mesmos que,
afinal, o mundo precisa prosseguir. Nos dias de hoje, os pais
transmitem aos filhos alguns valores básicos, e logo os
preparam para a globalização.
Quem recusa o novo mundo corre o risco de ter o destino
de um pária. É claro, sociedade alguma jamais é aceita por
inteiro. Roger Caillois havia assinalado isso: uma sociedade
bem estabelecida é uma sociedade apaziguada, que
valoriza a conciliação e tolera certa mediocridade das
coisas. [ 285 ] Os aventureiros entendiam-se, mas sempre
existe para eles a possibilidade de um percurso individual,
numa existência arriscada, sem conforto, longe dos
caminhos conhecidos, nos “caminhos negros” ou
instalando-se na Sibéria. Poderão extrair disso uma obra
meditativa genial, que, no entanto, não impele à ação. O
mesmo ocorre com o dândi, que recusa a massificação e a
uniformização do mundo moderno, e busca no culto da
singularidade estética uma maneira de extrair-se, pelo alto,
de uma ordem social que ele despreza ou desdenha. Os
indivíduos em busca de absolutos políticos ou de pureza
ideológica também correm o risco de se entediar numa
sociedade que não pode viver no registro da mobilização
permanente. Logo vêm à mente os extremistas, incapazes
de aceitar uma sociedade que não seja exclusivamente
submetida a seus princípios. De fato, existem em todas as
sociedades homens que recusam o princípio da legitimidade
dominante: são repelidos para as margens, e eles próprios
em geral se concebem como dissidentes. É que sua filosofia
política simplesmente parece incompatível com as
representações sociais dominantes. Eles não veem o mundo
como este deve ser visto quando se quer ter sucesso, não o
abordam a partir do mesmo imaginário. Essa é uma maneira
entre outras de dizer que em toda sociedade se encontra
um lote de marginais, e que estes expressarão sua
sensibilidade em todos os âmbitos da existência. Esses
marginais simplesmente não são feitos para a norma
comum: é uma questão de temperamento. Nem todos os
homens são feitos para viver dobrando-se diante da norma
dominante.
No entanto, o autêntico pária é outro. É o desclassificado
do regime anterior, que decidiu não se aliar ao novo. Com
frequência se encontrarão nas margens os defensores das
evidências de ontem, que não se desdisseram e
permanecem fiéis a um mundo historicamente revogado,
que é tido por obsoleto em nome do progresso da simples
mudança no curso das coisas. Lá estão eles, velhos
servidores, escritores esquecidos, ex-ministros,
historiadores transformados em cafonas, militantes das
causas perdidas, todos desclassificados e a maldizer sua
desclassificação; os mais combativos urdem complôs para
programar seu retorno, que possibilitaria um milagre político
e permitiria ao menos atrasar, talvez, o fim dos tempos. Por
vezes os homens se obstinam na fidelidade a um deus
morto ou, ao menos, a um deus que sobrevive apenas por
meio de algumas tradições desbotadas. Cumpre dizer que é
difícil saber em tempo real se acabamos de oscilar para
uma nova época em que nos sentiremos estrangeiros e que
condenará à morte social os que não se aliam a ela. Diante
disso, o proscrito ficará fortemente tentado a lançar uma
última carga para conter um mundo que ele abomina e pelo
qual será esmagado. No entanto, a política não poderia se
contentar com o combate de honra dos velhos
combatentes, que reúnem à sua volta todos os proscritos do
mundo, numa tentativa desesperada de trazer de volta o
que não voltará.
O MITO DA ARCA

No entanto, diante da pergunta sobre o que fazer, a


resposta nem sempre é imediatamente política. Foi talvez
por ter recusado não apenas a aceitação da catástrofe, mas
também um voluntarismo ilusório, que François Taillandier
se envolveu num ciclo romanesco excepcional, com o intuito
de retraçar as origens de nossa civilização no crepúsculo
daquela que a precedeu. Em parte como se quisesse libertar
seus contemporâneos da fantasia restauracionista, ele
parece dizer que por vezes é necessário deixar as coisas
seguirem seu curso, buscando, porém, conservar o que há
de melhor na civilização que morre, sem saber exatamente
qual será o resultado dessa conservação e dessa
transmissão. Adivinha-se aí a pergunta que se fazem os que
se engajaram e, um dia, já não encontram aí o que
procuram. Talvez um intelectual que fez a aposta aroniana
de uma existência no centro da comunidade política, ou um
homem que se lançou na política, mas descobriu pouco a
pouco os limites da ação pública. Trata-se de transformar a
relação com a ação. Isso é magnificamente descrito na
passagem que põe em cena Cassiodoro, um político romano
da época posterior à queda de Roma: pouco a pouco ele se
dá conta de que a sobrevivência da civilização já não
depende dos homens de ação. “Ele não dizia adeus apenas
ao tempo pessoal de sua vida, aquele modesto apanágio em
que se inserem nossas alegrias, nossas afeições, nossos
dramas, nossos risos e nossos pesares. Despedia-se
também de uma forma coletiva do tempo, em que se
haviam exercido suas decisões e suas vontades, mescladas
às vontades e às decisões de muitos outros. Será que se
deveria chamá-lo de tempo político? O tempo da época?
Sim – algo desse tipo. […] Parecia-lhe haver compreendido
que, se algo tivesse de nascer ou renascer dessa barafunda,
não seria ao alcance da visão humana, não da sua, em todo
caso. Vem um momento inevitável em que, quando alguém
age, trabalha, deseja e empreende ainda, já não é para si,
mas para os que virão, que por sua vez viverão quando ele
já não estiver lá. […] Isso porque, no final das contas – ele
ponderava –, existem três ritmos do tempo: o de um
homem, o da comunidade política, o de Deus, e estes são
como três cordas de um instrumento musical, que podem
harmonizar-se ou dissonar. Seu tempo de homem já não
duraria. O tempo da comunidade política só oferecia, então,
formas precárias de ordem, comprometidas por todos os
lados. Quanto ao tempo de Deus, de uma extensão
imensurável para a consciência humana, parecia-lhe repleto
de um futuro que ele vislumbrava indistinto, grisalho,
insondável, como, no entardecer, o horizonte marinho da
Calábria. No entanto, com frequência lhe vinha à mente que
esse futuro comportava uma infinidade de possibilidades, e
que cada empreendimento humano, por mais mínimo que
fosse, podia modificar seus acontecimentos. Aquilo que lhe
restava realizar era dessa natureza.” [ 286 ]
Em outras palavras, a comunidade política que morre não
arrasta tudo consigo. Sua parte mais preciosa pode ser
conservada por homens que renunciam ao prestígio social e
político para conservar nas margens, ao abrigo da maioria,
certos tesouros preciosos. No entanto, é preciso ter alguma
ideia da transcendência para transmitir ao longo do tempo
aquilo que acreditamos ser sagrado. Essa resposta também
exige, porém, uma forma de renúncia cívica: o homem da
cultura já não pretende fecundar o mundo comum com os
princípios fundamentais e as obras vitais. Sua intenção é
salvaguardá-los da destruição, a fim de que um dia
contribuam para um renascimento. “Os homens
verdadeiramente úteis”, acrescenta Taillandier, “semeiam
algo que não verão frutificar. A árvore que plantaram
proporcionará sombra a seus descendentes, eles sabem
disso, e resignam-se de bom grado, depois de laborar e
semear, a não estarem lá quando vier o tempo das
colheitas”. Não é proibido pensar que o mundo ocidental
seja chamado a formular tais perguntas, quando se sabe
que o tempo político não se confunde com o da história, e
que as consequências concretas de uma ideia ou de uma
ação por vezes se fazem esperar por muito tempo antes de
infletir o curso do mundo. A ação humana tem mil rostos e
mesmo a melhor comunidade política jamais será perfeita.
Não podemos esperar, portanto, exceto quando nos
contentamos com uma ação estritamente técnica, ver todos
os frutos de nossas ações durante nosso tempo de vida. [ 287
] Mas será que o homem ainda sabe se projetar no mundo
para além de sua existência? Taillandier ainda é nosso guia
quando relembra que as especulações filosóficas sobre a
natureza do homem têm consequências: “Em segredo,
Cassiodoro sempre fora cético diante das disputas da
teologia. O que o homem poderia saber sobre tudo isso?
Não seria loucura alimentar tantas irritações, tantos
rancores, tantos antagonismos, a partir de tantas alegações
que ninguém podia provar? Pela primeira vez, quem sabe,
em sua vida, ele compreendeu, ao contrário, o caráter
decisivo de tudo isso. Daquilo em que o homem aceitasse
acreditar, daquilo que ele instaurasse em sua consciência
temerária e cega, dependeriam seus atos. De início o ser
humano não sabe o que é. Mal sabe que existe. As palavras
e as noções de que se dota para examinar e compreender a
si mesmo governarão sua vida. Era importante que o
fizessem perceber sua fraqueza e sua força. Assim se
edificava o homem, assim se instituía o homem”. [ 288 ]
Allan Bloom o havia sugerido, “é na relação que uma
geração cultiva com as preocupações permanentes de cada
geração que se pode descobrir melhor sua natureza”. [ 289 ]
É preciso perguntar que parte da alma humana permanece
inacessível à modernidade e por quais caminhos alcançá-la.
Quer se aposte na política, quer no longo trabalho da
cultura, aí encontramos uma filosofia da ação que
reposiciona o homem no longo tempo da história. Resgata-
se aqui a nostalgia, cuja criminalização é um crime, mas
que tampouco poderíamos deixar descair em mera
museificação de um passado erigido em refúgio contra o
presente. A nostalgia relembra ao homem moderno a
insuficiência de sua condição e dá testemunho, pelo
sentimento de carência que a acompanha, de possibilidades
inexploradas numa civilização condenada ao fluxo
permanente. Representa o rastro, em nossa época, de todas
as outras épocas. De nada adianta aninhar-se nela, mas
longe de rebaixar o homem, a nostalgia o educa
especialmente para a liberdade.
Capítulo 7 | Como é possível ser conservador?
 
 
 
 
 
 
 
 
Acho que cada um precisa escolher seu campo. Você é atravessador
clandestino de fronteiras. Eu sou guarda de fronteiras. Cada qual com
sua natureza.
Louis Pauwels
 
[…] basta um pequeno número de espíritos fiéis para que o vínculo seja
mantido, para que haja bom entendimento. É a permanência de certa
família de ideias, não obstante os cortes arbitrários que estabelecemos
entre as épocas, que nos assegura uma continuidade.
François Mauriac
 
A cena já tem alguns anos de idade e, como se diz na
midiasfera, “viralizou”. Envolveu Jacques Attali e Eugénie
Bastié. O primeiro pontificava. Celebrava o mundo futuro,
que coincidia de muitas maneiras com suas fantasias. A
segunda o desafiou com uma formulação divertida: o velho
mundo está de volta, Sr. Attali! Se a cena foi tão marcante,
é porque simbolizou uma reviravolta inesperada na ordem
simbólica. O antigo participante de 1968, mesmo em sua
idade avançada, não imaginava que um dia viria a
desempenhar o papel de antiquado defensor da ordem
estabelecida. A época não havia programado o surgimento
do jovem conservador: e eis que ele se impõe nos estúdios
de televisão e até assume a aparência de uma mulher
brilhante e segura de si, que confronta um notável
progressista desconcertado. Desde então, os artigos se
multiplicaram. De uma revista a outra, muitos textos foram
dedicados ao conservadorismo renascente. Acreditou-se até
que ele encontraria um nicho político com a candidatura de
François Fillon, que se viu investido de uma missão
conservadora inesperada, tornando-se o representante da
permanência francesa. Por um breve período, ele
entusiasmou sua base, não tanto pelo que propunha, mas
principalmente pelo que se pôs a imaginar que encarnava.
Quer-se acreditar, atualmente, que o renascimento
conservador foi abortado. Teria sido apenas uma ilusão? Na
macronia, [ 290 ] ele agora não passaria de uma sombra, de
uma lembrança empalidecida. Já se pode adivinhar a
narrativa que será feita a seu respeito: numa sociedade em
mutação, os privilegiados da antiga ordem sempre tendem
a obstinar-se uma última vez antes de morrer. Ficam tensos,
impõem algumas convulsões sociais, depois acabam por
aceitar a derrota e juntar-se aos vencidos da história. A
história marcha em seu próprio ritmo, e os que não querem
segui-lo, perecem. Nessa matéria, seria preciso que cada
um se proibisse todo e qualquer sentimentalismo. Alguém
pode muito bem lamentar a perda do país de sua infância:
mas, ao que parece, seria uma tolice querer resgatá-lo.
Outros chegam a acusar o conservadorismo de haver
lacrado a direita, de haver causado sua derrota. Em 2012, a
acusação recaiu sobre Patrick Buisson, em 2017, sobre o
movimento Sens commun. Uma coisa é certa, o
conservadorismo teria pouco futuro. O conservadorismo era
o futuro da direita, e até o futuro da França. Com exceção
de Patrick Buisson, são raros os que adeririam a essa
profecia. Não seria apenas uma fase da vida das ideias, uma
modinha parisiense já desgastada? Estando ele preso entre
o progressismo e o populismo, não lhe foi predito um
grande futuro.
Por vezes os movimentos intelectuais custam para se
traduzir no âmbito político. A vida das ideias políticas não
coincide necessariamente com a da comunidade política. As
grandes tendências ideológicas nem sempre encontram um
partido que as veicule. No entanto, na impossibilidade de
tomar corpo politicamente, uma corrente intelectual pode
dissolver-se ou perder-se em suas especulações
estritamente teóricas. Pode também prosseguir seu
caminho sem conseguir avançar atualidade adentro, o que
não significa que jamais conseguirá: os abalos políticos
fazem cair certas correntes ideológicas, e também trazem
outras à tona. A direita conservadora passou por um
primeiro renascimento, na primeira metade dos anos 1980,
na época da revista Figaro Magazine de Louis Pauwels: sua
ofensiva ideológica fará com que a direita se dote de um
programa firme e rigoroso, que será o da primeira
coabitação. [ 291 ] Decompor-se-á com o governo Chirac,
moralmente prostrado pelo drama de Malik Oussekine. De
acordo com os rumores, Louis Pauwels seria hoje um
proscrito, a ponto de até a lembrança dele ter sido apagada,
o que regozijará alguns. Nunca é bom ser vencido
politicamente no mundo das ideias, pois adentramos assim
o mundo dos párias, as pessoas param de nos ler, criam
para nós uma reputação de excêntricos.
Façamos um salto para o mundo de hoje. A recomposição
política francesa – profetizada há um bom tempo – está em
curso. Não alcançou seu ponto de consumação em 2017. A
política não poderia se manter de maneira duradoura numa
forma de consensualismo que relega às margens toda e
qualquer oposição, como posições residuais exteriores à
discussão esclarecida das elites esclarecedoras. Qual será o
lugar do conservadorismo? Será que se refugiará no que
resta da direita ou uma vez mais se deixará apanhar e
reciclar pela força chamada a substituir um Rassemblement
National desacreditado, tanto por sua linha
neomelenchonista como por seu fracasso na eleição
presidencial? Será que as pessoas simplesmente deixarão
de levá-lo a sério? Isso tampouco é impensável. Qual será o
lugar do conservadorismo? É preciso dizer que a
recomposição política não é uma exclusividade francesa:
em todo o Ocidente, o sistema político se rompe sob o peso
do real. Certa politologia bem superficial aprecia acreditar
que os determinantes socioeconômicos são os únicos a
pesar na escolha eleitoral: o que se esquece, porém, é que
as paixões políticas despertam quando ressurge a ideia de
que a pátria está em perigo e de que é preciso salvá-la.
Sem dúvida alguma, ela ocupou as consciências nestes
últimos anos, como o demonstrou aquele sentimento,
compartilhado por muitos, de que se tratava da eleição da
última chance. Philippe de Villiers se perguntava de maneira
dramática: será que amanhã os sinos ainda dobrarão? Ainda
haverá na Terra por muito tempo um território denominado
França: mas será que ele ainda será o país do povo francês?
O CONSERVADORISMO E A MODERNIDADE

No entanto, apesar das contrariedades políticas, o


conservador ainda intriga: é que ele se apodera das
questões vitais suscitadas pela modernidade radical e
transforma alguns pontos de exclamação em pontos de
interrogação. [ 292 ] Felizmente, o pensamento político não é
apenas uma forma de especulação ideológica com a
vocação de construir um programa para os partidos em
busca de um discurso. É uma sensibilidade que renasce,
uma maneira de habitar o mundo que se afirma. A ebulição
intelectual dos últimos anos não pertencia tanto à lógica
midiática, mas sobretudo a uma forma de redescoberta
filosófica: a modernidade radical é, de fato, problemática.
Por mais celebrada que seja, ela irrita. Por mais que se diga
às pessoas que elas vivem em uma época maravilhosa, é
um sentimento de perda que flutua no espírito dos nossos
contemporâneos, ainda que ao mesmo tempo não se saiba
definir o objeto dessa perda. Por mais que se fale mal da
nostalgia, ainda assim ela não deixa de dar testemunho das
aspirações escondidas no coração do homem. Para retomar
as palavras de Raymond Aron, “nossa civilização é
suficientemente imperfeita para justificar os requisitórios;
por que não haveria procuradores movidos por uma
nostalgia do passado e não por uma expectativa utópica?”. [
293 ] Uma parte do homem considera a modernidade
inabitável e está em busca de outra coisa: não será a busca
da comunidade que a perpassa, como se ela tivesse de
encontrar sua parte faltante, e reinserir o homem no
mundo, ao invés de extraí-lo do mundo?
Desde suas origens, o conservadorismo, que costumamos
vincular a Burke, caracteriza-se essencialmente como uma
crítica à desmedida moderna. [ 294 ] Ganharíamos muito em
ver no conservadorismo uma filosofia inserida no código
genético da modernidade, à maneira de um protesto da
consciência humana contra seus efeitos dissolventes. Foi o
que Hannah Arendt, que não o apreciava, compreendeu.
“Historicamente, o pensamento conservador e seus
movimentos reacionários haurem não apenas seus
argumentos principais e seu ímpeto, mas também sua
própria existência, do acontecimento que foi a Revolução
Francesa. Continuam derivados dela, no sentido de que
praticamente não expressaram uma única ideia, uma única
noção, que não seja antes de tudo polêmica. […]
Contrariamente ao pensamento liberal ou revolucionário, o
conservadorismo em sua origem – e, quase por definição – é
polêmico.” [ 295 ] Retenhamos aqui o essencial, para além
das alfinetadas da filósofa: o conservadorismo em geral se
concebe como uma crítica à modernidade e à sua tentação
de desconstruir e reconstruir o real em nome de uma utopia
racionalista que se encarrega de um programa distinto
segundo as épocas.
O conservador não pretende dispensar a modernidade –
sabe, ao menos, que isso é impossível e sabe resignar-se,
ainda que nem sempre de bom grado. Não cabe ao homem
escolher a época em que viverá. A aspiração do
conservador é mais modesta e mais fundamental: ele
pretende civilizar a modernidade, contê-la e relembrá-la de
que ela pode desfigurar o ser humano em sua intenção de
libertá-lo. Não surpreende que essa disposição existencial
sempre renasça. Não é salvando o passado que o
conservadorismo bem compreendido pretende conter a
modernidade, mas restaurando simbolicamente e
reconstruindo politicamente certas permanências
antropológicas (alguns falarão de invariantes
antropológicas) cujo rastro a modernidade perdeu. Na
realidade, tão logo o conservadorismo se deixa definir como
o partido do passado, entra numa dinâmica de renegação
permanente. É dessa armadilha em que ele se deixa
capturar com muita facilidade que ele deve sair.
Um regime raramente compreende os que o contestam e
mesmo os que não aceitam cantar seus louvores. No
entanto, por vezes a curiosidade é mais forte: em toda
parte, o conservador é acossado. Querem fazê-lo falar, dão
a entender que querem compreendê-lo. De tempos em
tempos, é tratado como um animal em exibição. Dirigem-lhe
uma pergunta etnológica: como se pode ser conservador?
Afinal, a juventude não é naturalmente propensa a
desempenhar o papel de vanguarda militante do
progressismo? Como ela poderia não querer uma
modernidade publicitária que é toda sorrisos para com ela?
No fundo, nossa época continua a assimilar o conservador a
uma espécie de retardado histórico: na grande marcha do
progresso, ele se arrasta atrás, seja porque carece de vida,
seja porque não compreende que as formas de vida às quais
é apegado são antiquadas. Na pior das hipóteses, atribuem-
lhe tristes afetos. O conservador seria então difícil de
distinguir do reacionário que, por sua vez, seria um indigno
absoluto. Todos os regimes são fundados na exclusão por
princípio de certas correntes políticas e filosóficas que o
contradizem abertamente.
A modernidade radical conduz sempre adiante sua
empreitada de desconstrução: de uma onda a outra,
encontra novos limites a serem repelidos, novas fronteiras a
serem abolidas. A emancipação que ela promete se
distingue cada vez menos de uma desencarnação e se volta
em última instância contra a civilização ocidental, em nome
dos excluídos da história. Talvez se trate do movimento
natural da modernidade, cujo embalo aumenta à proporção
que as formas históricas que continham seu desdobramento
caem uma após a outra. O partido do movimento não gosta
de ser contrariado e pretende espontaneamente converter
toda a realidade à sua lógica: as permanências dissolvem-se
e tornam-se fluxos, o mundo é inapreensível, está em
marcha – daí sua expressão cultural mais vulgar, qual seja,
a ideologia da mudança. Alguns querem pilotar essa
mudança e se aliam a uma ou outra forma de
planejamentismo. Outros pedem apenas que nos
adaptemos o melhor possível à mudança e reconhecem
espontaneamente no liberalismo o princípio diretor de uma
modernidade esclarecida. É fácil tornar-se conservador,
ainda que venhamos a sê-lo a contragosto: basta não se
aliar à nova etapa na história da emancipação
autoproclamada. Tornamo-nos homens de direita porque
não seguimos o ritmo da esquerda, que não está
equivocada ao apresentar-se como o partido do movimento.
A direita liberal gosta de responder-lhe dizendo que ela é o
partido da adaptação ao movimento. Difícil é encontrar o
partido da permanência.
A formulação se repete indefinidamente: o conservador
estaria hoje descomplexado, o que dá a entender que, faz já
um bom tempo, havia algo de incômodo em afirmar-se
conservador. Mas de onde vem esse constrangimento? A
palavra conservadora se liberta, mas quem a prendia?
Como se deve ter compreendido pela leitura dos últimos
capítulos, não se pode escrever a história de uma filosofia
política sem escrever ao mesmo tempo a do espaço em que
ela tem de se desdobrar, no qual se multiplicam as
obrigações ideológicas e os critérios de respeitabilidade que
lhe podem ser estranhos. O próprio termo é reivindicado, ao
passo que há muito tempo servia de insulto. Era a marca da
dissidência: a vantagem dos rótulos que ninguém reivindica
para si é que, ao menos por um tempo, podemos defini-lo
como quisermos. Servem para situar-nos fora das posições
midiaticamente estabelecidas e consagradas.
DOS NEORREACIONÁRIOS AOS CONSERVADORES

A renovação conservadora, no entanto, não pode ser tão


nova como se imagina. Há vários anos ela transparecia, e
não apenas no imaginário paranoico de uma esquerda que
denuncia de modo ritualístico os novos reacionários, como
se tivesse de atualizar regularmente sua lista dos proscritos.
Por ora, definiremos o conservadorismo como uma forma
de ceticismo diante da desmedida de uma modernidade que
enlouqueceu – e não é um equívoco vincular essa loucura,
seja qual for nossa opinião a respeito, ao imaginário de
1968. Pode ocorrer que, um dia, já não queiramos fingir
acreditar de verdade em ideias às quais estávamos apenas
submetidos. A direitização da direita sobre a qual se falava
há alguns anos nada mais é do que a história de uma direita
que já não se submete aos códigos da respeitabilidade
ideológica do progressismo midiático. É assim chamada a
resgatar a parte de si mesma que ela vinha reprimindo faz
tempo a fim de evitar as campanhas de demonização
midiática.
No âmbito político essa corrente é detectável há um bom
tempo: corresponde à demanda popular por uma política
que não fosse tecnicizada e que se encarregaria
explicitamente do destino da coletividade. Se preferirmos,
corresponde a uma vontade de conceber a política fora dos
parâmetros de sua imposta judiciarização e de sua
burocratização. Se o populismo tem ecoado na Europa
ocidental nos últimos trinta anos é porque não raro foi o
único a fazer política. Não pretendia apenas usar a
linguagem da adaptação, que é a linguagem antipolítica por
excelência. Propunha outra direção à marcha do mundo: era
preciso que voltasse a ser permitido pôr em questão as
grandes finalidades inseridas no cerne da vida política. O
progressismo já não devia impor-se como uma revelação,
cujos efeitos supostamente se desdobrariam até o fim dos
tempos.
Esse mal-estar francês cristalizou-se durante muito tempo
em torno da questão europeia, talvez pelo simples fato de
os referendos e as eleições europeias lhe permitirem
expressar-se, visto que o sistema partidário se mostra
menos rígido por ocasião de tais consultas. De Maastricht ao
referendo de 2005, passando pelos bons resultados do
Rassemblement pour la France (RPF) em 1999 e pelo
interesse suscitado por figuras como Philippe Séguin,
Charles Pasqua, Philippe de Villiers ou Jean-Pierre
Chevènement, sentia-se que, nas profundezas, certa França
buscava expressar sua revolta. Havia uma corrente de
pensamento, entalada entre a direita modernista e a direita
populista, que não conseguia sair de seu estreito corredor e
que, no entanto, se acreditava depositária de outra direita,
afirmando-se hostil ao fundamentalismo da modernidade,
ao “tudo pela economia”, e buscando, sem assumi-lo
totalmente para si mesma, resgatar o encargo sagrado da
nação, sem tolerar a dissolução de sua soberania. Para essa
direita, a política deve comportar uma dimensão romântica.
A campanha de Nicolas Sarkozy em 2007 – e também em
2012 – foi impelida por essa dinâmica. Sarkozy o fez
cinicamente, mas ainda assim destravou os grandes temas
da direita conservadora, extraindo-os do pequeno espaço
em que estavam confinados, retirando-os ao mesmo tempo
do Front National – que os havia confiscado por um bom
tempo –, e ele o fez ainda melhor porque a direita
republicana lhe fizera concessões. No entanto, a esquerda
midiática recusou-se a ver nisso algo além de uma funesta
estratégia pilotada por um feiticeiro. Um mau gênio, Patrick
Buisson, teria assombrado a direita. Sem ele, ela se
libertaria da tentação identitária e voltaria a ser moderna.
Como não ver aí uma forma de teoria artificial do complô,
em voga na esquerda midiática, e uma concepção
mefistofélica da direita?
A direita só pode vencer se o diabo estiver envolvido,
libertando paixões recalcadas e ódios inconfessos: é a
grande revanche dos maldosos e, durante alguns meses,
houve um interesse apaixonado pelo trio de conspiradores
maléficos, que seria formado por Buisson, Zemmour e De
Villiers, cujo intuito teria sido desviar do progresso o curso
da história francesa, curso este que ela, contudo, deveria
seguir.
No entanto, a política não é tudo. Faltava a esses
momentos eleitorais um ímpeto intelectual conquistador.
Isso é o que a atual ebulição intelectual do conservadorismo
confere à política. Intelectuais vindos da esquerda propõem
também análises associadas ao conservadorismo, como se
vê com Jean-Pierre Le Goff que, há vários anos, pratica uma
sociologia da desvinculação social. Le Goff, numa referência
a Kolakowsky, indaga como se pode ser conservador,
moderno e social, enquanto o filósofo polonês se
perguntava como ser socialista, conservador e liberal. [ 296 ]
Velhos dissidentes e novos resistentes, espíritos coléricos ou
espíritos céticos, a maioria – se não todos – confessa uma
exasperação comum. Pensadores esquecidos, que haviam
previsto esta época, são redescobertos. O conservadorismo
renascente descobre ancestrais honrosos há muito tempo
deixados de lado pela aliança poderosa entre a tolice e a
censura. Assim se redescobrem Raymond Aron e muitas
outras figuras essenciais ligadas à tradição liberal-
conservadora à moda francesa.
Fala-se do retorno do conservadorismo: talvez se devesse
falar antes de sua desinibição. Não que ele houvesse
desaparecido do mapa, mas fazia um bom tempo que não
aparecia no radar das ciências sociais e do discurso público,
exceto por meio de uma série de fobias. O conservadorismo
era denominado “populismo” ou confundido com “extrema-
direita”. Em outras palavras, buscava-se não tanto
descrevê-lo, mas denegri-lo.
O MOMENTO ZEMMOUR

Essa desinibição se encarnou durante um tempo em Éric


Zemmour. Seria possível falar sobre os efeitos duradouros
do fenômeno Zemmour, marco de uma virada midiática e
até política: uma parte da direita se libertou de suas
inibições progressistas. No âmago do sistema midiático, o
jornalista recusou a postura do conservador contrito,
ocupado em desculpar-se incessantemente por existir e
temeroso do rótulo sujo colado à sua pele até o fim de seus
dias. Zemmour não pertencia àquela direita consternada,
vencida de antemão, preocupada em dar garantias de
modernidade, encerrada na economia e contando os
tostões, como se fosse naturalmente inclinada a uma
filosofia contábil. Esse homem, tratado como um animal de
circo, politizou um vasto público. Da “direita dominada” a
que Marc Crapez se referiu mais de vinte anos atrás num
texto profético, [ 297 ] passou-se a uma direita que se
pretende dominante, ainda que nem sempre se nomeie
direitista. O sistema primeiramente se divertiu com isso:
quando entrou em pânico, era tarde demais. Um mundo de
possibilidades acabava de se abrir. Zemmour não ensinou o
conservadorismo aos franceses: revelou-lhes que era
possível ser conservador publicamente – bastava receber
algumas cuspidelas. [ 298 ]
No fundo, a esquerda intelectual está numa situação
inédita: fazia quarenta anos que ela só tolerava os debates
em suas próprias fileiras ou com seus antigos companheiros
que se haviam tornado dissidentes. Aqueles que não
participavam de uma maneira ou de outra do imaginário
progressista não eram convidados para a conversa pública;
falava-se a respeito deles, mas sem por isso lhes dar a
palavra. Ela traçava um perímetro de respeitabilidade muito
estreito, e quem quisesse incluir-se nele tinha de submeter-
se a seus códigos. Devia seguir o movimento do
progressismo, sob pena de, a contragosto, ser transformado
em direitista. No entanto, a esquerda já não está em
posição de fazer isso de modo tão eficaz quanto antes. Já
não domina de modo absoluto os códigos da
respeitabilidade. É cada vez mais difícil para ela definir
sozinha seus adversários, ainda que seus meios midiáticos e
jurídicos não sejam subestimáveis. Pode-se censurar o real,
pode-se até censurá-lo por muito tempo, mas ele sempre
acaba se infiltrando. O sistema midiático se contentará,
então, em apresentá-lo à maneira de um ressurgimento do
irracional na democracia: o famoso sentimento de
insegurança é certamente o melhor exemplo disso.
Devemos, porém, considerar os matizes: nem por isso se
pode dizer que os códigos da respeitabilidade mudaram por
completo: a esquerda midiática chega a tornar-se cada vez
mais histriônica à medida que é contestada. Imagina perder
sua hegemonia, quando está simplesmente sendo colocada
pela primeira vez em muito tempo diante de uma filosofia
diferente da sua. O debate, no entanto, a apavora: quando
se tem o monopólio do bem, o que se faz é educar ou
combater, mas não discutir. No fundo, ela não tem dúvida
de que encarna o único rosto possível da democracia.
Vamos resumir o assunto da seguinte maneira: a esquerda
foi hegemônica durante tanto tempo que basta que seja
contestada para que acredite estar sitiada, e a direita foi
durante tanto tempo condenada ao silêncio que basta que
seja escutada para que acredite dominar.
FINKIELKRAUT, CONSERVADOR

É preciso manter-se distante das caricaturas: o


conservador que está surgindo não é brutalmente
antimoderno, ao contrário do que dizem seus adversários.
No entanto, ele recusa à modernidade sua pretensão de
definir sozinha as aspirações humanas: uma parte da alma
humana não se identifica com ela e reivindica hoje seus
direitos. Será que o conservadorismo não poderia se definir,
então, como uma busca das permanências humanas, das
invariantes antropológicas indispensáveis para a instituição
da liberdade política? Uma coisa, no entanto, é certa: cada
vez que os fundamentos de uma sociedade são postos em
questão, as categorias políticas costumam romper-se ou, ao
menos, já não conseguem conter o debate público, que
busca para si uma nova linguagem. E embora o
conservadorismo não seja de todo estranho à divisão
esquerda-direita, na medida em que a esquerda sempre
busca reativá-la e manter seu caráter estruturador, ele não
poderia fundir-se aí por completo.
Foi primeiramente em torno da questão identitária que a
renovação conservadora tomou forma. Essa questão não é
recente e, sob muitos aspectos, foi Alain Finkielkraut que a
reintroduziu no pensamento francês, à luz de uma
meditação sobre o destino das pequenas nações da Europa
oriental, preocupadas com a possibilidade de seu próprio
desaparecimento. É próprio da nação pequenina, quase por
definição, saber que não tem acesso imediato ao universal e
representa apenas um dos rostos possíveis da humanidade.
A pequena nação tem consciência de sua precariedade
existencial: não cessa de interessar-se pelos fundamentos
da comunidade política, além de ter de justificar com
frequência sua existência diante dos grandes discursos
universalistas que veem nela uma existência coletiva
residual e folclórica, que já não deveria entravar a
reconciliação da humanidade. A pequena nação insere no
cerne da filosofia política o caráter fundador da cultura,
entendida como mundo comum. Na escola do Messager
européen, sua revista dos anos 1990, Finkielkraut converter-
se-á a um patriotismo angustiado: foi quando compreendeu
que a França podia desaparecer que passou realmente a
amá-la. Como se pode ser croata, ele primeiro se
perguntou, antes de indagar o que significava ser francês.
Descobria então a França, não como uma nação
estritamente universalista, mas em sua singularidade – em
sua identidade. A partir daí, de um livro a outro confessará
sua preocupação diante da “ingratidão” dos Modernos, para
retomar o título de uma obra publicada em 1999. L’Identité
malheureuse [A identidade infeliz], publicado em 2013, não
foi tanto o marco de uma virada de Finkielkraut, mas
sobretudo um remate, num contexto caracterizado pela
crise do multiculturalismo.
Seu pensamento fecundou a vida pública e por meio dele
a questão dos costumes é hoje suscitada: ser francês não
poderia constituir apenas uma realidade jurídica. A
renovação conservadora critica os limites do pensamento
contratualista, que gostaria de abolir a dimensão da
herança na constituição da comunidade política. Não se
poderia reduzir a França à república e seus valores, o que
não significa que nós a situemos em contradição com eles.
Trata-se antes de relembrar que o homem não goza de uma
universalidade direta. Precisa de mediações. De uma língua,
naturalmente. De uma cultura, que fornecerá um universo
de sentido compartilhado aos que habitam a comunidade
política. De uma história nacional, por cujo intermédio
participará de uma aventura coletiva. De fronteiras, que
delimitam uma comunidade de responsabilidades. Em
outras palavras, o povo da democracia moderna é um povo
particular, que não é substituível por outro. Não será sobre
essa singularidade dos povos que um Régis Debray busca
refletir, por meio de sua meditação incessantemente
retomada sobre o inconsciente das nações e a parcela do
sagrado no poder?
Quanto a essa questão, Paul Ricœur já havia iniciado
algumas reflexões luminosas. “Aquilo a que chamamos
valores, portanto, é a própria substância da vida de um
povo; esta se expressa primeiramente em seus costumes
práticos, que representam, de certa forma, a inércia, a
estática dos valores. Sob essa película dos costumes
práticos, encontramos tradições que são como a memória
viva da civilização. Por fim, nas profundezas, encontramos o
que pode ser o próprio núcleo do fenômeno civilizacional, a
saber, um conjunto de imagens e símbolos, pelos quais um
grupo humano expressa sua adaptação à realidade, aos
outros grupos e à história. Por imagens e símbolos, entendo
essas representações absolutamente concretas por cujo
intermédio um grupo concebe sua existência e seu próprio
valor. Poderíamos falar, nesse sentido, do núcleo étnico-
mítico, do núcleo a um só tempo moral e imaginativo, que
encarna o supremo poder criador de um grupo. É nesse
nível de profundidade que a diversidade das civilizações é
mais profunda.” [ 299 ] As ciências sociais simplesmente não
sabem refletir sobre os estratos profundos que alimentam a
identidade de um povo: o contratualismo radical,
indissociável da mitologia da transparência, torna-se
incapaz de refletir sobre o núcleo mais íntimo que
caracteriza e singulariza uma civilização. O questionamento
sobre a identidade nacional é hoje o que nos permite
meditar sobre o núcleo próprio de cada cultura.
SURGIMENTO DA QUESTÃO ANTROPOLÓGICA

À questão identitária vem somar-se a questão


antropológica, que diz respeito tanto aos novos desafios
societais como às preocupações ligadas à bioética, ao
controle dos seres vivos ou ao imperialismo do mercado.
Existe uma utopia tecnológica na modernidade, que é a de
uma manipulação integral do mundo e, nos tempos atuais,
dos seres vivos. Também se poderia falar em tentação
demiúrgica da modernidade, que ama acreditar que tudo é
possível: todas as formas históricas e naturais são
chamadas à dissolução, para que o homem possa por fim
dar livre curso à fantasia de autoengendramento que ele
carrega em si. É a mesma fantasia que anima a teoria de
gênero e o projeto do útero artificial. A renovação
conservadora está em busca de limites, cultiva o senso da
finitude. Um mundo absolutamente controlável, em que o
homem atribuiria a si mesmo a onipotência que antes
reconhecia em Deus, já não seria um mundo humano, com
sua parcela de mistério, que obriga cada geração a retomar
do zero a questão do sentido da existência. Ela pode até
cair num antiliberalismo de combate entre os mais
militantes, que talvez encontrem aí a parcela de
radicalidade necessária a cada nova geração, para a
entrada na vida pública.
Com ou sem razão, o conservadorismo antropológico é
associado a um catolicismo renascente. Sem razão, porque
não se poderia falar a sério de um catolicismo de combate,
exceto nas fantasias de alguns espíritos perdidos: não se
encontra aí nenhum projeto de devolver um caráter
confessional aos costumes e à vida pública. Quem lança
alertas contra o retorno de sabe-se lá qual tipo de
integrismo conquistador está brincando de se assustar: as
pessoas gostam de imaginar o catolicismo francês como um
monstro jamais vencido por inteiro e sempre suscetível de
levar a França de volta ao passado, o que seria próprio de
uma política diabolicamente reacionária. Com razão, não
obstante, na medida em que o conservadorismo preconiza
uma lógica do enraizamento e, na França, não poderia
deixar de reconhecer a herança católica e de indagar o que
fazer com ela. Não é possível enraizar-se na França sem
encontrar um país marcado por um cristianismo mais que
milenário, como Denis Tillinac observou com frequência: o
catolicismo se apresenta então não apenas como uma fé,
mas como uma paisagem mental e simbólica que não
poderia ser saqueada sem que se mutilassem as fibras mais
íntimas da identidade nacional. [ 300 ] Apresenta-se também
como uma matriz antropológica que estrutura
fundamentalmente a relação com o mundo.
PSICOLOGIA DE UM RENASCIMENTO CONSERVADOR

Existe nessa renovação conservadora um autêntico vigor,


e a jovem geração tem algum papel nisso. A dissidência
conservadora dos anos 1990 e 2000 circulava num mundo
que parecia ideologicamente muito seguro de si. Teve de
driblar o politicamente correto, ainda que para isso tenha
interiorizado alguns de seus dogmas, em especial o do
sentido irreversível da história, ao qual acabou por se
dobrar. A época só tolerava a dissidência triste ou irônica,
por mais cáustica que fosse; basta pensar na de Philippe
Muray, que descrevia um mundo pós-história. Muray
permitia que se maldissesse a pós-modernidade, ao mesmo
tempo em que se resignava diante dela: não seria possível
escapar. O homem acabara de sofrer uma nova queda: só
lhe restava estetizar seu desespero. A reflexão política tinha
de ceder seu lugar à pose do iconoclasta mordaz. Mas quem
ainda acredita no fim da história? A melancolia democrática
se dissipou. O retorno do trágico com a violência islamista, a
imigração maciça e a dissolução das fronteiras, incapazes
de contê-la, o arrependimento transformado em dogma
histórico, a desqualificação moral da identidade nacional
sob a pressão do antirracismo, a crise da construção
europeia e a dissolução da soberania nacional, a mutação
antropológica provocada pela nova hubris [ 301 ] tecnológica:
todos esses temas alimentam o conservadorismo
renascente.
Entramos numa época altamente política e a renovação
conservadora, quando recusa reduzir-se a uma filosofia
militante, pretende reinserir o homem na comunidade
política, conectando esta última às necessidades humanas
que a antropologia liberal havia privatizado em demasia. O
mundo comum não poderia ser exclusivamente
procedimental. Os povos e as civilizações já não podem ser
definidos como puras construções sociais de fácil
desconstrução – conforme pretendeu fazer a historiografia
dominante dos anos 1980, que não parava de artificializar o
mundo comum – ou como simples identidades fantasiadas,
como se diz nos tempos atuais. A utopia da pura
coexistência das culturas em nome da convivência se
desmantela: repousava na ficção liberal de uma
privatização das identidades, como se elas não tendessem
naturalmente a estruturar o espaço público. Já não se pode
definir o homem apenas por meio dos direitos que lhe são
reconhecidos – o embalo da lógica dos direitos corresponde,
aliás, a uma concepção pós-política do homem. Celebram-se
os direitos humanos, mas de que homem se trata? Ele é
redescoberto hoje sob os traços do herdeiro – a escola é a
questão conservadora por excelência. À figura do grande
político, o progressismo preferia a do brilhante gestor,
aparentemente exigida por tempos de calmaria. No entanto,
os homens precisam ser governados quando a história volta
a ser turbulenta, e precisam ser existencialmente
envolvidos pela comunidade política. O conservadorismo
que surge é o dos tempos trágicos, e não exige apenas
virtudes prosaicas, aquelas da common decency, que ele,
por outro lado, também celebra. Terá de sair de um
juridismo estreito e libertar-se de uma concepção do estado
de direito que representa apenas uma falsificação da
democracia liberal: de fato, o necessário não é tanto sair
desta última, e sim restaurar sua significação histórica
verdadeira. De certa forma, o que importa é restaurar as
condições da decisão política e, mais amplamente, da ação
política.
A jovem geração conservadora nasceu num mundo que
ela sentia estar devastado e cuja reconstrução ela atribuía a
si mesma como uma missão. É menos resignada e mais
conquistadora: o politicamente correto pode cair. Não se
tenta exatamente driblá-lo, o que se quer é mais desafiá-lo.
Existem necessidades irreprimíveis da alma humana, e é
justamente no reconhecimento disso que o
conservadorismo encontra a força e os meios para não
desesperançar-se. Sempre elas ressurgem, e sempre se
encontram homens para afirmar sua adesão a elas e buscar
inseri-las na cidadania. O homem jamais se deixa arrasar
por completo, mesmo pela pior das comunidades políticas, e
traz em sua natureza a possibilidade de seu renascimento.
Para empregar as palavras de Koestler, pode-se sempre
apostar no “triunfo da substância humana indestrutível
sobre um meio desumanizador”. [ 302 ] Miłosz dizia, por sua
vez, que “o material humano parece ter um traço particular:
não aprecia ser reduzido à condição de mero material
humano”. [ 303 ] Essa é a esperança do conservador que, à
sua maneira, sabe que uma parte do homem jamais se
deixará aviltar, mesmo pela pior das sociedades. No fim das
contas, o conservadorismo fundamenta a liberdade humana
na parte eterna do homem.
Sempre, o mundo pode renascer. De fato, como escrevia
Julien Freund, “sejam quais forem o agrupamento e a
civilização, sejam quais forem as gerações e as
circunstâncias, a perda do sentimento de identidade
coletiva é geradora e amplificadora de aflição e de angústia.
É anunciadora de uma vida indigente e empobrecida e, no
longo prazo, de uma desvitalização, eventualmente da
morte de um povo ou de uma civilização. No entanto, por
vezes, felizmente, a identidade coletiva se refugia também
num sono mais ou menos longo com um despertar brutal
se, durante esse tempo, tiver sido demasiadamente
subjugada”. [ 304 ] Patrick Buisson, nas últimas linhas de La
cause du peuple [A causa do povo], soube responder
àqueles que reduzem o conservadorismo a um tipo de
apego a formas históricas inevitavelmente condenadas à
erosão. “Amar a França não é amar uma forma morta, mas
aquilo que essa forma encerra e manifesta de imperecível.
[…] Não é o que morrerá ou o que já está morto que
devemos amar, mas antes o que não pode morrer e
atravessou a espessura dos tempos. Algo que é do âmbito
do desejo, do desejo e da vontade de imortalidade. Algo que
ultrapassa nossas pobres vidas. E que transcende nossa
baixa época. Infinitamente.” [ 305 ] Não existe, é claro, utopia
conservadora. Não existe sociedade perfeita a ser
estabelecida de uma vez por todas. Chamemos a isso de
pessimismo antropológico dos conservadores, que sabem
que tudo deve sempre ser retomado e que mesmo a
civilização mais forte e mais bela sempre terá de passar, um
dia, pela decadência. Na história, eles não esperam
eternizar-se – “visto que está na natureza das coisas que as
glórias pereçam […] e que os impérios sejam abatidos” –,
mas durar. [ 306 ] Não haverá uma grande noite dos
conservadores. Há apenas uma comunidade política um
pouco mais humana a ser reconstruída a partir de ideais a
serem redescobertos, mas com a consciência de que as
aspirações humanas mais fundamentais são contraditórias e
não poderiam ser reconciliadas numa síntese perfeita que
encontraria uma solução tecnopolítica. O homem é
condenado ao inacabamento, e a comunidade política
também. É a velha lição relembrada por Soljenítsin: o mal
está no coração do homem e não se poderia extraí-lo de lá
por completo, embora seja possível transcendê-lo, contê-lo,
transfigurá-lo.
É na medida em que o homem é um ser espiritual,
trazendo em si aspirações que transcendem toda
comunidade política, que ele permanece um ser de
liberdade. Rapazes e moças nascem num mundo que eles
sentem estar desolado, desvitalizado, moralmente
asfixiado, e já não acreditam nas falsas promessas que ele
faz: querem resgatar uma parte do homem que foi
esquecida, desprezada, deixada de lado. A modernidade
radical continua a ser irrespirável. A jovem geração
conservadora se convenceu de que, na batalha em que se
lança, não precisa se contentar em dar testemunho das
virtudes de um mundo decaído, mas pode ganhar. Não se
insere numa longa história de causas vencidas, às quais a
tradição a vincularia contra sua vontade, mas toma o
espaço público de assalto para investi-lo com uma filosofia
política renovada. O que ela faz não é tanto lamentar o fim
de um mundo: sua intenção é reconstruir um mundo. É
provável que ela tenha a cabeça cheia de imagens heroicas
vindas de tempos que se tornaram quase lendários, em que
a França não duvidava de ser a França – com elas, tece para
si um imaginário que dá coragem para enfrentar uma época
de frieza. Talvez seja animada pela intuição genial de
Chesterton: são as grandes inspirações vindas do passado
que permitem romper as proibições do presente e fecundar
o futuro.
Elogio do conflito civilizado

O propósito da democracia não é tanto que saibamos nos entender,


mas que saibamos nos dividir.
Alfred Sauvy
 
O homem não é um anjo: o bem e o mal nele se
entremeiam. Quem se envolve na vida pública e imagina
que os homens estão destinados a uma magnífica
reconciliação final, comandada por uma doutrina que por
fim se distingue das outras por sua relação exclusiva com a
verdade, não é feito para governá-los. Não existe maior erro
moral, na democracia, do que acreditar-se em situação de
monopólio sobre o bem, o justo e o verdadeiro. De fato,
quem acredita assim sobrepairar do alto de sua
superioridade à comunidade política não consegue enxergar
muito bem por que debateria com os simples mortais diante
dele. Na melhor das hipóteses, prescindirá das opiniões
deles; na pior, sentir-se-á autorizado a reeducá-los,
psiquiatrizá-los e mesmo encarcerá-los. A história do século
XX o confirmou amplamente. Seria preciso escrever um
elogio moderado, porém sincero, do liberalismo, que não
merece a caricatura tão ruim que se costuma fazer dele. O
espírito do liberalismo bem compreendido ensina os homens
a tolerar os que não pensam como ele, mas vivem com ele,
e relembra a cada um que suas convicções, por mais
ardentes que sejam, referem-se apenas, do ponto de vista
da economia geral da comunidade política, a uma doutrina
entre outras. Não que tudo seja relativo. No entanto, é
sempre preciso conter em si a tentação do fanatismo.
Embora a política e a moral não sejam estranhas uma à
outra, não se poderia fundi-las numa única categoria sem
adulterar a ambas.
Isso não quer dizer que os campos políticos presentes não
buscarão exercer uma hegemonia no espaço público. A
política é conflituosa e passional, não se poderia extraí-la
por completo das relações de dominação; no entanto,
podemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para
que ela não se reduza a isso. A vida política é o âmbito
privilegiado da impureza e nela as ideias sempre se
mesclam às paixões. É também o âmbito da encarnação. As
ideias aí se confrontam por meio dos homens que as
veiculam e afirmam sua adesão a elas. Em outras palavras,
a vida política não poderia se reduzir a uma simples
oposição entre doutrinas concorrentes. A diversidade das
ideologias cruza com a dos temperamentos, sem sobrepor-
se a ela. O animal humano não é uma criatura apaziguada,
e a diversidade irredutível dos caracteres faz com que em
toda sociedade se encontrem homens feitos para o poder e
homens feitos para a contestação, conservadores e
aventureiros, idealistas e niilistas. Forças perpassam-no,
paixões movem-no: alguns períodos históricos são frios,
outros são ardentes. Vários são mornos. Embora os homens
sejam feitos para viver juntos, não são feitos para se
entenderem.
Todas essas pessoas têm de coabitar numa comunidade
política que deve ser capaz, apesar de tudo o que as divide,
de criar um poder legítimo que as envolva na história,
mesmo que não haja adesão por parte delas a cada uma de
suas decisões. A comunidade política deve ser legítima:
deve ser aceita, ainda que jamais seja integralmente aceita.
Os homens precisam prever mecanismos simbólicos e
institucionais para regular seus desacordos sem impedir a
constituição de um poder que seja sempre capaz de
transcender os clãs que de tempos em tempos se apropriam
dele por meio de uma conquista provisória, e isso,
justamente, é o que torna a democracia possível. Essas
paixões se conjugam com ideologias que demonstram a
diversidade das visões de mundo, mas que permitem que
os homens se engajem na cidade. A homogeneização dos
temperamentos e das personalidades para fazer nascer
uma humanidade unificada, bege, morna, programada
porque programável, entediante porque previsível, incapaz
do menor sobressalto porque mentalmente domesticada,
seria uma catástrofe moral. Não são os mesmos tipos de
homens que começam ou terminam as revoluções, não são
os mesmos tipos de homens, tampouco, que exercem o
poder ou conservam as doutrinas. E embora um líder seja
necessário, é preciso que haja também um líder da oposição
e até, é provável, um líder populista, pois sempre, mesmo
na comunidade política mais bem integrada, uma parte do
povo se sente excluída e quer expressar isso, integrando-se
à vida cívica sob o signo do protesto fundamental.
Tampouco se poderia transformar a política em simples
parteira de uma história que teria seu próprio movimento
emancipatório, alheia à vontade dos homens, porque
animada por uma revelação que precisaria simplesmente
ser traduzida nas instituições humanas. A democracia não é
uma simples lógica chamada a desdobrar suas
consequências a partir das especulações eruditas daqueles
que têm a pretensão de desvelar seu movimento e suas
promessas. Se importa restaurar a política como forma de
existência comum, é devolvendo aos homens a
possibilidade de se envolver na história sem que esta se
defina como um movimento irreversível, ao qual as pessoas
teriam simplesmente de adaptar-se. Em outras palavras,
cumpre trazer a democracia de volta para a terra,
reconstituí-la como espaço de deliberação cujas finalidades
não são predeterminadas pelos guardiães autoproclamados
do pensável e do aceitável. Isso porque, como relembrava
Jacques Ellul, “para que haja política é preciso haver uma
escolha efetiva entre uma pluralidade de soluções”. [ 307 ] Na
medida em que redescobrimos o pluralismo inevitável da
comunidade política, com homens em desacordo quanto às
grandes questões, é preciso repensar a deliberação política.
Nenhuma comunidade política pode prescindir de modo
duradouro de uma divisão política forte, que permita
traduzir a pluralidade irredutível que nela se expressa em
uma conversa democrática fecunda, da qual se depreendem
grandes alternativas coletivas. Essa alternativa é necessária
para conferir substância à democracia, caso contrário ela se
resseca e se decompõe.
O debate político também não pode pôr em cena o centro
e a periferia e criar, assim, a sensação de uma ruptura
grave entre as elites e o povo. A partir daí, são interesses
que se enfrentam, e não visões. A figura do comum se
desvanece. O país se fragmenta em interesses
irreconciliáveis, como se a própria possibilidade de um
destino compartilhado se apagasse diante dos nossos olhos.
Existem numa comunidade política normalmente constituída
várias filosofias concorrentes, numerosas antropologias
contraditórias e uma diversidade de interesses que, sem
serem absolutamente irreconciliáveis, não têm a vocação de
se neutralizarem num grande ímpeto consensual. Nenhuma
dessas filosofias tem o direito de reivindicar o monopólio do
bem, do justo e do verdadeiro, ainda que, naturalmente,
cada uma acredite ter razão quanto ao ponto essencial. A
oposição é uma necessidade existencial na democracia: é
por meio dela que uma sociedade se previne contra um
unanimismo não apenas tóxico como empobrecedor. É por
meio dela que a democracia prepara sempre um futuro de
reposição.
No entanto, como já se deve ter compreendido ao fim
desta obra, as categorias políticas a partir das quais se
concebe a divisão que estrutura o espaço político e as que
prevalecem globalmente no mundo ocidental impedem a
possibilidade de um debate político fecundo. [ 308 ] Os
códigos de respeitabilidade que estruturam o sistema
midiático encolhem a tal ponto o espaço de uma
deliberação oxigenada que impelem à revolta. Não se
poderia refundar a ação política sem extraí-la mentalmente
de tudo o que inibe a palavra pública, sem uma revolta
contra o sufocamento da liberdade de expressão, sem uma
revolta também contra o que impede a ação pública. É
provável que seja necessário sair da mitologia progressista
para resgatar um debate político que não desqualifique de
antemão os que confessam seu ceticismo diante da
dinâmica da modernidade. Ou, pelo menos, o progressismo
não poderia ser concebido como o pano de fundo da
conversa cívica, e o conservadorismo, nessa perspectiva,
não poderia tampouco se definir como um simples apego ao
passado.
Para além do simples jogo dos partidos, a divisão entre
progressistas e conservadores permite, ao menos em parte,
explicar as tensões que permeiam os grandes desafios do
nosso tempo. Essa divisão remete a duas antropologias
concorrentes e, temos o direito de esperar,
complementares. O imaginário do conservadorismo é o do
enraizamento, do limite, da finitude, e dele se pode deduzir
uma concepção protetora da política. O imaginário do
progressismo é o do cosmopolitismo, da mobilidade, da
transgressão das evidências estabelecidas. Da mesma
maneira, se for necessário continuar a falar da divisão entre
esquerda e direita, será preciso então que esta última não
se defina mais em função da primeira, mas a partir de seu
próprio imaginário. Isso implica que cada campo assuma
sua própria filosofia política, mas para isso é preciso antes
que a conheça, sem acreditar, no fundo, na
intercambialidade de todos os partidos, como se cada um
deles representasse um matiz da mesma ideologia
dominante. Toda sociedade bem organizada precisa desses
dois polos e deve saber fazê-los coabitar: nenhum desses
dois polos tem algo a ganhar buscando sufocar
ideologicamente o outro, pois eles respondem a aspirações
ancoradas no coração humano. Aspirações contraditórias,
decerto, mas o próprio coração humano é dilacerado entre
tentações contrárias que devem, contudo, coabitar. As
necessidades fundamentais da alma humana não são
harmoniosas e é utópico imaginá-las reconciliadas. O
homem é um ser intimamente fraturado. É o que Chantal
Delsol observa: “as democracias ocidentais esquecem sua
vocação primordial, que é discutir a harmonia necessária
entre os contrários”. [ 309 ] Uma sociedade que fosse puro
conservadorismo seria sufocante e fadada à museificação.
Uma sociedade que fosse puro progressismo seria fadada à
dissolução e à liquefação. A arte política consiste, então, em
permitir uma conflituosidade frutífera entre esses
imaginários na comunidade política. O homem precisa de
liberdade e de autoridade, de igualdade e de diferença, de
cosmopolitismo e de enraizamento, de momentos sublimes
e de momentos prosaicos: a comunidade política bem
concebida permite configurar e hierarquizar originalmente
tais aspirações, sem negar nenhuma delas, e a deliberação
pública diz respeito justamente a essa hierarquização, à luz
das exigências estabelecidas por cada época. “Existe um
uso moderado ou ponderado dos princípios de uma
sociedade que consiste em mantê-los em equilíbrio
recíproco”, [ 310 ] e este último só poderia ser provisório,
seria talvez o caso de dizer, completando o pensamento de
Julien Freund. A contradição na comunidade política não é
um momento na história, chamada a ser superada num
desenlace longínquo, porém feliz: é uma condição
irredutível da política. Em outras palavras, a política não
poderia ser transformada em simples técnica de parto do
sentido da história. Não se trata de idealizar uma síntese
perfeita entre os polos contraditórios da comunidade
política: isso seria apenas uma maneira de despolitizá-la.
A democracia não poderia prescindir do conflito, mas deve
civilizá-lo, a fim de torná-lo criativo. A conversa cívica não é
uma simples discussão civilizada, e quem sonha em reduzi-
la a isso quer na realidade torná-la asséptica. Alain
Finkielkraut nos põe na pista correta: “deixei de conceber a
política como um face a face entre a humanidade e seus
inimigos”. [ 311 ] Toda a genialidade da democracia liberal
consiste em evitar a conversão do adversário em inimigo.
Não se deve descartá-la, e sim restaurá-la. Seria preciso
reaprender a refletir sobre um conflito político real,
substancial, e até passional, mas emancipado do imaginário
da guerra civil e capaz de levar os homens a prosseguir,
apesar de tudo, a obra comum que torna possível a
comunidade política.
Agradecimentos

Não teria sido possível, para mim, escrever este livro sem
a discussão continuamente retomada com meus amigos e
colegas do seminário da Action Nationale (Ação Nacional).
Há quinze anos prosseguimos uma reflexão sobre a situação
do Quebec e, mais amplamente, sobre os grandes
problemas da época. Agradecimentos também a meus
amigos e interlocutores do outro lado do Atlântico. Eles
sabem, espero, a que ponto a conversa entre nós me é
essencial. Agradecimentos, por fim, a Karima, sem a qual
nada disso me teria sido possível e, sobretudo, sem a qual
nada disso teria sentido.
Notas

[ 1 ] Milan Kundera, Les testaments trahis, Paris, Gallimard, 1993, p. 276.


[ 2 ] Jean-François Revel, La nouvelle censure: un exemple de la mise en place
de la mentalité totalitaire, Paris, Robert Laffont, 1977.
[ 3 ] Idem, Fin du siècle des ombres, Paris, Fayard, 1999.
[ 4 ] Coletivo, “Marcel Gauchet, victime d’une rage aveugle”, Le Monde, 17 de
outubro de 2014.
[ 5 ] André Perrin, Scènes de la vie intellectuelle en France, Paris, L’Artilleur,
2016, p. 67.
[ 6 ] François-René de Chateaubriand, Les Mémoires d’Outre-Tombe, Paris, col.
Pléiade, Gallimard, 1951, p. 925.
[ 7 ] Czesław Miłosz, La pensée captive, Paris, Gallimard, 1953, p. 55.
[ 8 ] Mathieu Bock-Côté, Le multiculturalisme comme religion politique, Paris, Éd.
du Cerf, 2016 [Edição brasileira: O multiculturalismo como religião política, São
Paulo, É Realizações, 2019]. Mathieu Bock-Côté, Le nouveau régime, Montreal,
Boréal, 2017.
[ 9 ] Pierre Rosanvallon, La légitimité démocratique, Paris, Seuil, 2008.
[ 10 ] Régis Debray, Un candide à sa fenêtre, Paris, Gallimard, 2015, p. 125.
[ 11 ] Guillaume Perrault, Conservateurs, soyez fiers!, Paris, Plon, 2017, p. 198.
[ 12 ] Quanto a essa questão, tomo a liberdade de remeter às minhas duas
obras anteriores, em que me interessei pela mudança da nossa compreensão do
princípio democrático. Mathieu Bock-Côté, Le multiculturalisme comme religion
politique, Paris, Éd. du Cerf, 2016 [Edição brasileira: O multiculturalismo como
religião política, São Paulo, É Realizações, 2019] e Mathieu Bock-Côté, Le
nouveau régime, Montreal, Boréal, 2017.
[ 13 ] O que fascina tanto em uma figura como Madonna, por exemplo, é que ela
encarna a onipotência de uma individualidade que, de uma personalidade a
outra, recria-se a si mesma integralmente. Ela é feita de pura vontade. A
liberdade imagina-se aqui como desenraizamento, autoabolição, mutação da
humanidade em vontade fantasística, livre para encarnar-se em qualquer forma,
sem no entanto ligar-se a ela, comprometer-se com ela.
[ 14 ] Czesław Miłosz, La pensée captive, Paris, Gallimard, 1953, p. 23.
[ 15 ] Embora a direita burguesa e “moderada” em geral se mostre indiferente
às especulações ideológicas da esquerda radical, a direita conservadora
intelectual, por sua vez, é fascinada por elas, pois adivinha que as ideias que
hoje passam por burlescas serão rapidamente normalizadas sob a pressão
ideológica da universidade e da mídia. Vamos traduzir isso concretamente:
quem não levar Judith Butler a sério rápido o suficiente acabará pensando como
ela.
[ 16 ] François Furet, “L’utopie démocratique américaine”, em François Furet,
Penser le XXe siècle, Paris, Robert Laffont, coleção Bouquins, 2007, p. 427-41.
[ 17 ] Os direitos das pessoas trans representavam a expressão mais avançada
dos direitos humanos, na medida em que eram assimilados ao direito de se
libertar de toda identidade atribuída. E isso a tal ponto que o próprio fato de não
ceder às reivindicações formuladas em nome deles podia acarretar uma
campanha midiática negativa em grande escala, como se viu quando a Carolina
do Norte quis adotar uma lei obrigando homens e mulheres a frequentar
banheiros em função do sexo registrado em sua certidão de nascimento, sendo
alvo de uma campanha da imprensa mundial que acusava esse estado de cair
na transfobia. “La Caroline du Nord et sa loi anti-transgenre se mettent à dos de
plus en plus de personnalités”, Huffington Post, 16 de abril de 2016,
http://www.huffingtonpost.fr.
[ 18 ] Nadia El-Mabrouk, “La nouvelle religion”, La Presse, 9 de maio de 2018
(www.lapresse.ca).
[ 19 ] Thierry Wolton, Une histoire mondiale du communisme: les complices,
Paris, Grasset, 2017, p. 59.
[ 20 ] No original, em itálico, mégenrer, tradução francesa do neologismo
misgender, de língua inglesa, que indica o ato de atribuir a uma pessoa um
gênero com o qual ela não se identifica subjetivamente. Para o ato de atribuição
de gênero a alguém, quer pelo uso de um pronome, quer por outros meios, tem-
se tornado usual, em português, o neologismo generificar, ainda não
dicionarizado. (N. T.)
[ 21 ] Philippe-Vincent Foisy, “‘Monsieur, madame’ désormais en option à
Service Canada”. Radio Canada, 21 de março de 2018 (www.radio-canada.ca).
Nessa mesma mentalidade, como vimos em Princeton em fevereiro de 2019,
haverá um pedido de desculpas prévio, por ocasião da projeção da peça de
teatro Monólogos da Vagina, por dar a entender assim que todas as mulheres
têm uma vagina, o que seria ofensivo para as mulheres trans.
Noa Wollstein, “The Vagina* Monologues: A feminist production with a necessary
asterisk”, The Daily Princetonian, 16 de fevereiro de 2019.
[ 22 ] Daniel Bell, Les contradictions culturelles du capitalisme, Paris, PUF, 1979.
[ 23 ] Segundo Frédéric Worms, professor de filosofia da École Normale
Supérieure da França, o termo “societal” diz respeito à questão dos valores e
costumes adotados pelos membros de determinada sociedade, o que se tornou
objeto de debates e, não raro, de polêmicas em grande parte do mundo
ocidental moderno. Enquanto as questões sociais dizem respeito às condições
materiais da existência – nível e distribuição de renda, condições de trabalho
etc. –, as questões societais estariam ligadas à dimensão propriamente
sociocultural da vida comum. (N. T.)
[ 24 ] Philippe Muray, Festivus Festivus: conversations avec Élisabeth Lévy,
Paris, Fayard, 2005.
[ 25 ] Arthur Koestler, Hiéroglyphes. In: Œuvres autobiographiques, coleção
Bouquins, Robert Laffont, Paris, 1994, p. 438.
[ 26 ] Élisabeth Lévy, Les Rien-pensants, Paris, Éd. du Cerf, 2017, p. 21.
[ 27 ] Gil Delannoi, La nation contre le nationalisme, Paris, PUF, p. 198.
[ 28 ] Arthur Koestler, Hiéroglyphes. In: Œuvres autobiographiques, coleção
Bouquins, Robert Laffont, Paris, 1994, p. 340.
[ 29 ] Philippe Muray, Après l’histoire, Paris, Gallimard, 2000, p. 97. Chantal
Delsol faz a pergunta: “é possível que já não saibamos o que é ou não real. […]
Depois de tantas mentiras oficiais repetitivas e impostas, o que é real, no fim
das contas?”, Chantal Delsol, La haine du monde, Paris, Éd. du Cerf, 2016. p.
208-209.
[ 30 ] Arthur Koestler, Hiéroglyphes. In: Œuvres autobiographiques, coleção
Bouquins, Robert Laffont, Paris, 1994, p. 342.
[ 31 ] Czesław Miłosz, La pensée captive, Paris, Gallimard, 1953, p. 65.
[ 32 ] Arthur Koestler, Hiéroglyphes. In: Œuvres autobiographiques, coleção
Bouquins, Robert Laffont, Paris, 1994, p. 444.
[ 33 ] Sobre essa questão: Michèle Thibalat, Immigration, les yeux grands
fermés, Paris, Denoël, 2010; e, da mesma autora, Assimilation: la fin du modèle
français, Paris, Éditions du Toucan, 2013.
[ 34 ] Hervé Le Bras, Malaise dans l’identité, Arles, Actes Sud, 2017.
[ 35 ] Philippe Muray, Festivus Festivus, Paris, Fayard, 2005, p. 180.
[ 36 ] Gilles Paris, “Avec les Fake News Awards, Donald Trump vise une nouvelle
fois la presse”, Le Monde, 18 de janeiro de 2018.
[ 37 ] Por exemplo, Brice Couturier, Macron: un président philosophe, Paris,
Éditions de l’Observatoire, 2016. Também: Alexandre Devecchio, “Brice
Couturier: le Parti des médias et l’intelligentsia méprisent la réalité”, Le Figaro,
19 de agosto de 2016.
[ 38 ] Durante certo tempo, foi essa a postura de François Fillon, que, no
entanto, não tinha nada de populista, mas que não conseguia disfarçar seu mal-
estar diante do cobertura midiática da vida política. Vincent Trémolet de Villers,
“Fillon, l’homme qui ne s’incline pas devant les ricanements”, Le Figaro, 22 de
novembro de 2016.
[ 39 ] Consultar quanto a essa questão a edição de fevereiro-março de 2016 da
Revue des deux mondes, com seu artigo especial sobre “o campo do bem”.
[ 40 ] Élisabeth Lévy, Les maîtres censeurs: pour en finir avec la pensée unique,
Paris, Lattès, 2002.
[ 41 ] A partir dos anos 1970, as newsletters e o direct mail permitiram que o
movimento conservador estadunidense – que custava para ter acesso à grande
mídia – mobilizasse diretamente sua base, narrando a atualidade a partir de
outra perspectiva ideológica, de outra narrativa, não raro com destaque para
temas negligenciados pela grande mídia. Tornou-se assim possível mobilizar
segmentos particulares do eleitorado e agregá-los ao movimento conservador.
Desse ponto de vista, pode-se sustentar que a formação do conservadorismo
moderno ou, ao menos, do conservadorismo americano moderno, é
indissociável de uma crítica do sistema midiático, concebido como um pilar do
regime progressista. Richard A. Viguerie, America’s Right Turn, Chicago, Bonus
Books, 2004.
[ 42 ] Dominique Albertini e David Doucet, La fachosphère, Paris, Flammarion,
2016.
[ 43 ] Para marcar sua oposição, os intelectuais dissidentes em geral preferem
fundar uma revista, que proporá, sobre as questões teóricas de fundo, outra
leitura da época, não aquela que é intelectual e midiaticamente dominante.
[ 44 ] Jeffrey Hart, The Making of the American Conservative Mind: The National
Review and Its Times, ISI, 2005.
[ 45 ] Jean Sévillia, “40 ans du Figaro Magazine: scènes de combats”, Le Figaro
Magazine, 1º de junho de 2018.
[ 46 ] Se fizermos um salto de alguns anos no tempo, poderíamos dizer o
mesmo de Valeurs actuelles, que gozará de inegável sucesso durante os anos
de François Hollande: aí se fazia ouvir uma leitura da atualidade que, para além
das famosas manchetes ruidosas, correspondia a uma oposição frontal ao
regime socialista. Os excessos que lhe foram recriminados deveriam ser
considerados sobretudo como desvios reivindicados e assumidos em relação à
norma do politicamente correto.
[ 47 ] Pascal Durand, Le Discours “néoréactionnaire”. Transgressions
conservatrices, Paris, Éditions CNRS, 2015. No próprio Quebec a presença de
alguns cronistas críticos do multiculturalismo bastou para criar um pânico
midiático. Consulte-se o documentário militante do programa Enquête, Les
temps extrêmes, Radio Canada, 9 de março de 2017.
[ 48 ] David Le Bailly, “Qui êtes-vous monsieur Finkielkraut?”, L’Obs, 15 de
fevereiro de 2018, p. 42 a p. 47.
[ 49 ] Jocelyn Maclure, Retrouver la raison, Montreal, Québec-Amérique, 2016.
[ 50 ] Gérard Bouchard, “À propos d’un faux procès et de procédés douteux”, Le
Devoir, 12 de janeiro de 2010.
[ 51 ] Clément Pétreault, “Ceux qui poussent à la guerre civile”, Le Point, 29 de
novembro de 2018.
[ 52 ] François Bernard Huygue, Fake News: la grande peur, Paris, VA éditions,
2018, p. 37.
[ 53 ] Charlotte d’Ornellas, “‘Loi anti-fake news’, vérification de l’information: de
la démocratie dans la France de Macron”, Valeurs Actuelles, 7 de fevereiro de
2019.
[ 54 ] A propósito do programa antirrumores: www.coe.int/fr.
[ 55 ] “Des agents antirumeurs pour briser les préjugés envers les immigrants”,
Radio Canada, 26 de abril de 2018, www.radio-canada.ca. Alguns exemplos
eram extravagantes: os representantes da cidade apresentavam, assim, um
caso em que duas pessoas, na fila de espera do caixa no supermercado,
falariam de maneira negativa da imigração. O agente antirrumor que ouvisse
essa conversa poderia então entrar na conversa e desconstruir ao vivo os
preconceitos que aí se revelassem.
[ 56 ] Consultar a decisão n. D2017-08-099 (2), de 14 de setembro de 2018, do
Conselho de Imprensa do Quebec (www.conseildepresse.qc.ca). Essa vontade
explícita de reeducar a opinião pública pode surpreender, mas deve-se ter em
mente que a instrumentalização ideológica da escola não é de ontem e que a
democracia moderna oscila entre a organização política de um povo histórico e
a criação de um povo purgado de seu particularismo. O regime diversitário, pelo
ensino da história, da literatura ou da educação cívica, não hesita em conduzir
campanhas de sensibilização e até em endossar a educação “antirracista”.
Trata-se de transformar a escola em laboratório político-ideológico onde fabricar
um povo enfim compatível com o regime diversitário. Guy Hermet escreve, com
razão: “Já zelando para satisfazer as necessidades materiais elementares do
povo, e mesmo sua honesta felicidade, os artesãos do Estado terapêutico
consideraram que convinha preservar, além disso, seu equilíbrio mental ou,
para dizê-lo sem rodeios, sua compatibilidade mental com o sistema social e
político ambiente”. Guy Hermet, L’hiver de la démocratie, Paris, Armand Colin,
2007, p. 90.
[ 57 ] Com razão, Pierre-André Taguieff fala sobre a demonização do adversário
como uma das características da política contemporânea. Pierre-André Taguieff,
Du diable en politique, Paris, CNRS, 2014.
[ 58 ] Philippe de Villiers relatou isso de maneira cativante na obra Mémoires
politiques: quando vivia uma fase de ascensão política no início dos anos 1990,
foi recebido para entrevista no programa L’heure de vérité, o programa político
daquele momento, por um Ivan Levai que lhe perguntava em primeiro lugar, e
antes de tudo, se ele se distinguia do Marechal Pétain. Assim formulada,
observa De Villiers, a pergunta o classificava automaticamente no campo dos
suspeitos, e mais, entre os piores suspeitos imagináveis. Em sua vida política,
ele tinha de justificar sistematicamente sua existência e explicar que não era
quem a mídia dizia que era. Seria sempre, em primeiro lugar, relegado à caixa
dos acusados. Villiers começava a sair das margens, a ganhar peso político: em
outras palavras, começava a existir. Cumpria defini-lo antes que ele próprio se
definisse. Cumpria encerrá-lo num personagem do qual não conseguiria sair. O
insurreto da Vendeia devia a partir dali passar por desqualificado, na condição
de herdeiro decretado da França de Vichy. O fato de ele se defender não
mudava o caso em nada. O essencial era que fosse acusado disso. Não foi o
único, ao longo das últimas décadas, a cair numa armadilha midiática cuja
função é transformar uma personalidade política em suspeito ou em pessoa
socialmente inaceitável. Philippe de Villiers, Le temps est venu de dire ce que
j’ai vu, Paris, Albin Michel, 2015, p. 11-19.
[ 59 ] No outono de 2017, no âmbito do congresso anual, a federação
profissional dos jornalistas do Quebec (FPJQ), sem sequer se dar conta disso,
forneceu uma imagem desse viés midiático que estrutura a vida pública, ao
dedicar um ateliê à melhor maneira de falar dos grupos de extrema-direita para
não promovê-los. Será que deve ser-lhes dada a palavra? Falar a respeito deles
sem nomeá-los? E como reagir quando esses grupos se recusam a ser
assimilados à extrema-direita? Outra coisa, também fascinante: nunca a FPJQ
formulou tais perguntas a respeito dos grupos de extrema-esquerda, como se
houvesse menos preocupação quanto à influência destes últimos e a sua
capacidade para perturbar a ordem pública ou excitar as tensões sociais e
identitárias. Sophie Durocher, “Les chiens de garde de la Meute”, Le Journal de
Montréal, 22 de novembro de 2017.
[ 60 ] Como escreve William Voegeli, “it is the power to name and shame, to
demand abject apologies, to obliterate reputation and careers. It is brought to
bear against people accused of violating rules, often vague but always severe,
about what may or may not be said, and who may or may not say”. William
Voegeli, “Racism, Revised”, Claremont Review of Books, Outono de 2008, p. 25.
[ 61 ] Raphaël Stainville, “Le retour de la censure”, Valeurs actuelles, 4 de
outubro, 2018, p. 14-16.
[ 62 ] George Orwell, 1984, Gallimard, 1950, p. 74.
[ 63 ] Ibidem.
[ 64 ] Ibidem.
[ 65 ] É o caso, por exemplo, da virilidade, um conceito que a novilíngua traduz
como “virilidade tóxica”.
[ 66 ] Guy Hermet, L’hiver de la démocratie, Paris, Armand Colin, 2007, p. 111.
[ 67 ] Guy Hermet, L’hiver de la démocratie, Paris, Armand Colin, 2007, p. 113.
Miłosz por sua vez observava que “não convém, aos olhos do partido, buscar
penetrar a fundo o ser humano, especialmente na literatura e nas artes. Isso
comportaria o risco de suscitar dúvidas. ‘O homem’, no sentido da espécie
humana, não é bem visto. Qualquer um que se demore na descrição de suas
necessidades interiores, de suas aspirações, se vê acusado de tendências
burguesas. É preciso que nada ultrapasse a descrição de seu comportamento
como membro de um grupo social. Cumpre que seja assim, pois o Partido, ao
tratar o homem apenas como uma resultante das forças sociais, considera que
cada um se torna o tipo cuja imagem ele se propõe. O homem é um macaco
social. O que não é expresso não existe. Por isso, basta proibir certos tipos de
busca para abafar automaticamente o respectivo desejo”. Czesław Miłosz, La
pensée captive, Paris, Gallimard, 1953, p. 271-272. A obra de arte, notava
também Miłosz, não tem autonomia própria: só tem valor por meio da missão
que lhe é atribuída. De acordo com essa mentalidade, as grandes obras da
literatura serão reinterpretadas, para que aí sejam retraçados os preconceitos
que entram em contradição com o novo regime. A arte contemporânea, por sua
vez, será valorizada, porque na maior parte do tempo se define apenas de
acordo com as categorias ideológicas do novo regime e impele a sua
radicalização. Trata-se, a cada vez, de renovar o mito de uma pura plasticidade
do social, de uma pura plasticidade da matéria humana. O homem será o que a
ideologia quer que ele seja. Daí a necessidade, como se deve ter compreendido,
de censurar ou de conter os discursos que a contradizem, e que poderiam fazer
com que os planos por meio dos quais se quer formatá-lo se desviassem.
[ 68 ] Gugliemo Ferrero, Pouvoir: les génies invisibles de la cité, Montreal,
Valliquette, 1943, p. 216.
[ 69 ] Patrick Moreau, Ces mots qui pensent à notre place, Montreal, Liber, 2018,
p. 17.
[ 70 ] Maryse Potvin, Les medias écrits et les accommodements raisonnables.
L’invention d’un débat, Relatório entregue ao Sr. Gérard Bouchard e ao Sr.
Charles Taylor, janeiro de 2008.
[ 71 ] Maryse Potvin, Les medias écrits et les accommodements raisonnables.
L’invention d’un débat, Relatório entregue ao Sr. Gérard Bouchard e ao Sr.
Charles Taylor, janeiro de 2008, Ibid., p. 213.
[ 72 ] Gérard Bouchard e Charles Taylor, Fonder l’avenir: le temps de la
conciliation, Commission de consultation sur les pratiques d’accommodement
reliées aux différences culturelles [Comissão de consulta sobre as práticas de
conciliação ligadas às diferenças culturais], 2008, p. 235.
[ 73 ] Ibidem,, 2008, p. 208.
[ 74 ] Cf. Pacto Global para a Migração, Assembleia Geral da ONU: Conferência
intergovernamental encarregada a adotar o Pacto global para uma migração
segura, ordenada e regular, 10 e 11 de dezembro de 2008, Marrakesh, Marrocos
(A/CONF.231/3*).
[ 75 ] Anne-Marie Le Pourrhiet, “La loi de moralisation est démagogique et
liberticide”, Le Figaro, 28 de julho de 2017; Catherine Lagrande, “Les auteurs de
propos racistes bientôt inéligibles”, Le Point, 31 de julho de 2017.
[ 76 ] Alain Finkielkraut e Élisabeth de Fontenay, En terrain miné, Paris, Stock, p.
102.
[ 77 ] Ibidem, p. 224.
[ 78 ] Ibidem, p. 263.
[ 79 ] Ibidem, p. 107.
[ 80 ] Alain Finkielkraut e Élisabeth de Fontenay, En terrain miné, Paris, Stock, p.
252.
[ 81 ] Não se pode negar, os intelectuais de direita que se assumem como tais
são pouco numerosos – não é raro, aliás, que se conteste sua existência, como
se um intelectual conservador fosse uma incongruência e até uma
impossibilidade lógica. Geoffroy de Lagasnerie e Édouard Louis escrevem assim:
“Na França, ‘intelectual de direita’ ainda é um oximoro, ou melhor, uma
impossibilidade. E, para nós, isso é motivo de regozijo”. Geoffroy de Lagasnerie
e Édouard Louis, “Intellectuels de gauche, réengagez-vous”, Le Monde, 27 e 28
de setembro de 2015. Na realidade, os raros intelectuais que se declaram
abertamente de direita são em geral remetidos à extrema-direita, o que é uma
maneira de excluí-los da conversa democrática. Basta evocar figuras
intelectuais tão variadas como Raoul Girardet, Jules Monnerot, Louis Pauwels ou
Alain de Benoist para convencer-se disso. O intelectual de direita, se essa
designação tiver algum sentido, não raro se apressará em citar o intelectual de
esquerda que pensa como ele, como se o fato de que um homem do outro
campo compartilhasse suas ideias confirmasse suas análises. Sua presteza será
muito menor em citar alguém associado a seu próprio campo, pois terá assim a
impressão de se encerrar num gueto intelectual do qual só sairá para
desempenhar o papel do rabugento de plantão ou para servir de garantia. O
homem que a contragosto foi confinado à direita espera uma única coisa:
transcender a divisão esquerda-direita em que se sente muito apertado e em
má companhia.
[ 82 ] Néoréac: neologismo composto pela aglutinação do prefixo néo (neo) e da
abreviação do vocábulo réactionnaire (reacionário). (N. T.)
[ 83 ] Élisabeth Lévy, “Néoréacs, l’éternel retour”, Causeur, nº 32, fevereiro de
2016, p. 3; Élisabeth Lévy, “Nous sommes partout”, Causeur, nº 29, novembro
de 2015, p. 48-51. Também Élisabeth Lévy, La gauche contre le réel, Paris,
Fayard, 2012. Miłosz observava isso com sutileza, a propósito do comunismo, e
o mesmo se pode dizer sobre o novo regime diversitário, “a ameaça mais grave
é a heresia. Ela aparece em pessoas familiarizadas com a dialética e, portanto,
capazes de apresentar o materialismo dialético sob uma nova luz: essas devem
ser eliminadas com toda urgência. […] Os pontos nevrálgicos da doutrina são a
filosofia, a literatura, a história da arte ou a crítica literária – eles estão em todo
lugar onde o tema considerado é o homem, em sua infeliz complexidade”.
Czesław Miłosz, La pensée captive, Paris, Gallimard, 1953, p. 268-269. Em
outras palavras, a própria intelligentsia progressista receia mais quem sai de
suas próprias fileiras e se volta contra ela do que os que sempre se opuseram e
não têm credibilidade alguma junto às suas bases.
[ 84 ] Alain Finkielkraut e Élisabeth de Fontenay, En terrain miné, Paris, Stock,
2017, p. 37. Leia-se também: Nicolas Truong, “Si j’étais de droite, je le dirais,
mais ce clivage a perdu toute pertinence”, entrevista com Alain Finkielkraut, Le
Monde, 16 de janeiro de 2016. Finkielkraut afirma, no entanto: “Assinalo que não
teria vergonha alguma em me afirmar de direita, mas a direita e a esquerda
aderem ao mesmo movimento de extensão ilimitada dos direitos, no qual não
me reconheço”. Compreende-se, então, que ele poderia, contudo, reconhecer-se
numa direita que fosse conservadora, algo que ela teria deixado de ser há muito
tempo.
[ 85 ] Alain Finkielkraut e Élisabeth de Fontenay, En terrain miné, Paris, Stock, p.
19-20.
[ 86 ] Raymond Aron, L’opium des intellectuels, Paris, Calmann-Lévy, 1955, p.
16.
[ 87 ] Idem, Espoir et peur du siècle, Paris, Calmann-Lévy, 1957, p. 14.
[ 88 ] Emmanuel Berl, Essais, Paris, Julliard, 1985, p. 201.
[ 89 ] Alain Finkielkraut e Élisabeth de Fontenay, En terrain miné, Paris, Stock,
2017, p. 70.
[ 90 ] Marc Crapez, Naissance de la gauche, Paris, Michalon, 1998.
[ 91 ] Marcel Gauchet, “La droite et la gauche”. In: Pierre Nora, Les lieux de
mémoire, tomo 2, Paris, Quarto, Gallimard, 1997, p. 2534.
[ 92 ] Norberto Bobbio, Direita e Esquerda. São Paulo, Editora Unesp, 2012.
[ 93 ] Entre os trabalhos recentes sobre a divisão esquerda-direita, leiam-se em
especial Jean-Louis Harquel, Droite-gauche: ce n’est pas fini, Paris, Desclée de
Brouwer, 2017, e Chantal Delsol, “La droite”, L’Incorrect, setembro de 2017, p.
42 a 45. Leia-se também Guillaume Bernard, La guerre à droite aura bien lieu,
Paris, Desclée de Brouwer, 2016. Para uma perspectiva estadunidense da
questão, da parte de intelectuais, em sua maioria, de orientação à direita,
consulte-se o artigo especial “What is Left? What is Right?”, na American
Conservative, 28 de agosto de 2006, (www.theamericanconservative.com).
[ 94 ] René Rémond, Les droites en France, Paris, Aubier, 1992. Consultem-se
também os trabalhos notáveis de Jean-François Sirinelli sobre a história das
direitas na França.
[ 95 ] Albert Thibaudet, Les idées politiques de la France. In: Réflexions sur la
politique, col. Bouquins, Paris, Robert Laffont, 2007, p. 245.

[ 96 ] Stéphane Rials, Révolution et contre-révolution au XIIème, Albatroz, siècle,


P. 49.
[ 97 ] Raymond Aron, L’opium des intellectuels, Paris, Calmann-Lévy, 1955, p.
16.
[ 98 ] Marc Crapez, Naissance de la gauche, Paris, Michalon, 1998, p. 201.
[ 99 ] A cobertura midiática reservada ao movimento Antifa é um bom exemplo
disso. Embora fosse possível e até imperativo falar de extrema-esquerda
violenta, anarquista, ele é inserido na história gloriosa da luta contra o fascismo,
como se esta prosseguisse nas batalhas de rua mais de setenta anos depois da
queda dos regimes que se afirmaram como tais. Não é surpresa que o
movimento de extrema-direita enfrentado por ele não goze de idêntico
tratamento favorável, mesmo quando se proíbe de recorrer à violência, por
estratégia ou por escolha.
[ 100 ] Isso se vê no tratamento reservado aos “extremos”. A esquerda radical é
geralmente bem-vista: talvez lhe sejam censurados o entusiasmo, a falta de
prudência, a desmedida, mas raramente se contesta a nobreza de suas
intenções: é-lhe atribuído um papel de esclarecimento na descoberta das
dominações por ora invisíveis e na formulação dos novos direitos que permitirão
derrubá-las. Sua missão é explorar o futuro, desenhar-lhe os primeiros
contornos. Mesmo quando ela é violenta, isso poderia ser-lhe perdoado: é que
ela sonha com uma sociedade melhor e se mostra impaciente em alcançá-la. Já
a extrema-direita é acusada de se agarrar por nostalgia a todas as dominações
passadas, de buscar conservar a todo custo seus privilégios ilegítimos. Não tem,
portanto, legitimidade alguma, como se pode pressupor. Não se define numa
relação de reciprocidade com a extrema-esquerda: encarna antes a figura da
abjeção, a parcela do mal irredutível no cerne da comunidade política.
[ 101 ] Denis Tillinac, “Comment définir la droite?”, Valeurs actuelles, 7 de junho
de 2018, p. 98.
[ 102 ] Denis Tillinac, Le venin de la mélancolie, Paris, La Table Ronde, 2004, p.
35.
[ 103 ] Sobre o imaginário do movimento na modernidade, leia-se François-
Xavier Bellamy, Demeure, Paris, Grasset, 2018.
[ 104 ] Élisabeth Lévy, em Philippe Muray, Festivus Festivus: conversations avec
Élisabeth Lévy, Paris, Fayard, 2005, p. 169.
[ 105 ] G.K. Chesterton, Les puits et les bas-fonds [no original The Well and the
Shallows], Paris, Desclée de Brouwer, 2016, p. 126.
[ 106 ] Emmanuel Berl, Essais, Paris, Julliard, 1985, p. 203.
[ 107 ] É de grande interesse a leitura de uma entrevista recente com Jacques
Julliard na revista Le Point, como bom exemplo dessa aflição intelectual.
Convidado a comentar sua mudança política por Saïd Mahrane, que lhe
pergunta se ele passou para a direita, Julliard respondeu assim: “se mudança
houve, não foi obra minha. Veio daquela esquerda quase ausente no povo, para
falar a verdade, mas muito presente entre os esquerdistas de classe média alta.
Acho um pouco violento ser obrigado a me justificar por ter permanecido fiel às
minhas ideias. São os islamo-esquerdistas, e não eu, que se distanciam da
esquerda. […] Em todo caso, tenho realmente a intenção de permanecer fiel aos
valores da esquerda e até de defender seu candidato por ocasião da próxima
eleição presidencial”. Diante da pergunta seguinte sobre o que o aproximaria
dos “neorreacionários”, Julliard responde: “que alguém seja qualificado de
neorreacionário por defender Kamel Daoud, Boualem Sansal e tantos outros,
isso me parece extravagante. […] Que me digam se renunciei às ideias
esquerdistas. Quanto à escola… Você tem noção do motivo pelo qual sou
recriminado? Por defender a escola da República”. Saïd Mahrane, “Jacques
Julliard, será que ele é de direita?”. Le Point, 26 de maio de 2016, p. 91-95. Alain
Finkielkraut dirá, nessa mesma perspectiva: “é por ser de esquerda que deixei
de sê-lo”. Alain Finkielkraut, “C’est parce que je suis de gauche que je ne suis
plus de gauche”. Causeur, outubro de 2017. Em outra passagem, ele definirá
assim sua relação com a esquerda: “a esquerda, para mim, é primeiramente a
promessa de abrir para a maioria o tesouro das ciências humanas e a herança
da nobreza do mundo. Ora, o que faz a esquerda atual? No momento em que a
direita gerencial abandona essa herança em nome da utilidade e da adaptação
ao mundo vindouro, a esquerda a substitui pelo catecismo antirracista e, à guisa
de igualdade, fixa-se na mediocridade de todos como objetivo supremo”. Alain
Finkielkraut, La seule exactitude, Paris, Stock, 2015, p. 270.
[ 108 ] Como exemplo dessa demonização por parte da esquerda, leia-se Joan
W. Scott, La religion de la laïcité, Paris, Climats, 2018.
[ 109 ] Raymond Aron, Espoir et peur du siècle, Paris, Calmann-Lévy, 1957, p.
14-15.
[ 110 ] Marc Crapez, Éloge de la pensée de droite, Paris, Jean-Cyrille Godefroy,
2016.
[ 111 ] Quanto a essa questão, consulte-se George H. Nash, The Conservative
Intellectual Movement in America, Wilmington, ISI, 1996; George H. Nash,
Reappraising the Right, ISI, Welmington, 2009; Gary Dorrien, The
Neoconservative Mind. Philadelphia, Temple University Press, 1993.
[ 112 ] Essa forma de imperialismo democrático que pretende implantar em
todos os lugares do mundo os princípios originários da experiência
estadunidense repousava numa fascinante negação das culturas, como se estas
últimas se resumissem a um folclore e a alguns costumes rituais passíveis de
serem exclusivamente privados, o que corresponde, aliás, à maneira como os
Estados Unidos neutralizaram a diversidade interna. No entanto, as culturas não
podem ser reduzidas a estoques de costumes insignificantes: elas são
politicamente fundadoras.
[ 113 ] AFP, “Le discours anti-immigrants n’est pas américain”, Publicado no La
Presse (www.lapresse.ca) em 14 de setembro de 2015:
https://www.lapresse.ca/international/etats-unis/201509/14/01-4900476-obama-
le-discours-anti-immigrants-nest-pasamericain.php”. Quanto à transformação da
identidade estadunidense, leia-se Samuel Huntington, Who Are We? The
Challenges to America’s National Identity, New York, Simon & Schuster, 2004. O
neoconservadorismo de segunda geração levará essa tese ainda mais longe e
pretenderá globalizar a experiência democrática, se necessário exportando-a
militarmente, como se viu por ocasião da invasão do Iraque em 2003.
[ 114 ] François Héran, Migrations et sociétés, Paris, Collège de France/Fayard,
2018, p. 74.
[ 115 ] Hervé Le Bras, Malaise dans l’identité, Paris, Acte Sud, 2017, p. 94.
[ 116 ] Mathieu Bock-Côté, La dénationalisation tranquille, Montreal, Boréal,
2007.
[ 117 ] Arthur Koestler, Le yogi et le commissaire, Paris, Calmann-Lévy, 1954, p.
136.
[ 118 ] Pascal Bruckner, Un bon fils, Paris, Grasset, p. 136.
[ 119 ] A título de exemplo, Jean Birnbaum, Un silence religieux: la gauche face
au djihadisme, Paris, Seuil, 2016. No Reino Unido, lembramos que Tony Blair, no
momento em que se distanciou do multiculturalismo, após os atentados de
2005, sentiu a necessidade de cantar seus louvores, celebrando suas virtudes
que transformaram o país. O multiculturalismo não havia desestruturado o país,
apenas fora longe demais.
[ 120 ] Foi o que se compreendeu com o lançamento de Inch’Allah, de Gérard
Davet e Fabrice L’homme. Os dois repórteres do Le Monde descobriram, depois
de todo o mundo, a islamização da região de Seine-Saint-Denis e, a partir daí,
era preciso levar essa preocupação a sério. No microfone de Léa Salamé, Gérard
Davet diz assim: “nós não somos Zemmour, apenas relatamos fatos”. Quanto a
essa questão, consulte-se o número de novembro de 2018 da revista mensal
Causeur. Nessa mesma perspectiva, quando Emmanuel Macron se recusou a
condenar a noção de “submersão migratória”, o furor midiático foi bem morno.
Zoé Lastennet, “Macron sur BFMTV et Mediapart: les 8 annonces à retenir”, Le
Journal du dimanche, 15 de abril de 2018. O mesmo ocorreu em menor escala,
desta vez, quando Olivier Faure se preocupou com uma “colonização às
avessas”; sua observação suscitou uma reação mínima, sem causar demasiado
escândalo. Loris Boichot, “Immigration: Faure (PS) évoque le sentiment d’une
‘colonisation à l’envers’ dans certains quartiers”, Le Figaro, 26 de outubro de
2018.
[ 121 ] Marco Fortier, “Mise en garde d’un homme de gauche contra la censure
qu’exerce la gauche”, Le Devoir, 31 de janeiro de 2019.
[ 122 ] Alain-Gérard Slama, “Portrait de l’homme de droite”. In: Jean-François
Sirinelli (dir.), Histoire des droites en France, tomo 3, Paris, Gallimard, 1992, p.
807.
[ 123 ] Um bom exemplo dessa tentação pode ser encontrado em Maël de
Calan, La tentation populiste, Paris, Éditions de l’Observatoire, 2018.
[ 124 ] Matthieu Goar e Olivier Faye, “Aux ‘ateliers de la refondation’ des
Républicains, la droite dure a la parole”, Le Monde, 4 de setembro de 2017.
[ 125 ] Matthieu Goar e Olivier Faye, “Sens commun, l’encombrant ami des
Républicains”, Le Monde, 14 de outubro de 2017.
[ 126 ] Guillaume Perrault, “Fillon appelé à comparaître au tribunal de la
gauche”, Le Figaro, 24 de novembro de 2016.
[ 127 ] Para um exemplo desse tipo de interpretação, Ariane Chemin e Vanessa
Schneider, Le mauvais génie, Paris, Fayard, 2015.
[ 128 ] Joshua Green, Devil’s Bargain, Nova York, Penguin Press, 2017. Consulte-
se também Laure Mandeville, “Steve Bannon est-il le Dark Vador de la politique
américaine?”, Le Figaro, 15 de setembro de 2017.
[ 129 ] Vincent Marissal, “Le choc, la charge, la charte”, La Presse, 31 de março
de 2014.
[ 130 ] Vimos também o presidente encontrar as palavras certas por ocasião da
morte de Johnny Halliday e de Jean d’Ormesson, quando foi capaz de
corporificar, por meio deles, a questão da identidade francesa. Não se trata de
dizer, evidentemente, que esses dois discursos foram de direita, o que seria
redutor e tolo, mas sim que tocaram, por razões nobres, aliás, a sensibilidade
cultural da França popular e da França conservadora, dissociando-se dos códigos
da modernidade obrigatória que em geral estruturam a fala política e não raro
sufocam as aspirações nobres, aspirações estas que, no entanto, têm a vocação
de se expressar na comunidade política. Da mesma maneira, por ocasião do
falecimento de Arnaud Beltrame, Emmanuel Macron soube restituir a parte
sagrada da nação. De certa forma, ele sabe dirigir-se à França como nação
literária, a qual se sentia privada, já há alguns anos, de um presidente que
soubesse encarnar essa parte da função.
[ 131 ] Bobo: aglutinação abreviada das palavras “bourgeois bohème” (burguês
boêmio), termo pejorativo que designa uma pessoa de classe média alta,
geralmente jovem, que cultiva ideias esquerdistas e vagamente ecologistas. (N.
T.)
[ 132 ] A título de exemplo, leia-se “L’appel des quatre mousquetaires pour
sauver la droite”. Valeurs actuelles, 26 de junho de 2014.
[ 133 ] Assim, sucessivamente, Nicolas Sarkozy, François Fillon e Laurent
Wauquiez foram associados ao grupo da direita descomplexada. AFP,
“Cambadélis: Sarkozy est entre la droite décomplexée et l’extrême-droite”, Le
Point, 27 de agosto de 2016; Carole Barjon, “François Fillon: la vraie droite
décomplexée, c’est lui”, L’Obs, 24 de novembro de 2016; Alexandre Lemarié e
Matthieu Goar, “Comment Laurent Wauquiez est devenu le chantre de la droite
décomplexée”, Le Monde, 11 de setembro de 2017. Jean-François Copé, por sua
vez, chegará a compor um manifesto, em que defenderá “uma direita
republicana, moderna, liberada do politicamente correto, essa ordem
estabelecida pela esquerda convencional para garantir sua dominação. Em
suma, uma direita descomplexada”. Jean-François Copé, Manifeste pour une
droite décomplexée, Paris, Fayard, 2012.
[ 134 ] Jérôme Sgard, “Nicolas Sarkozy, lecteur de Gramsci. La tentation
hégémonique du nouveau pouvoir”, Esprit, julho de 2007.
[ 135 ] Na escala da história, seria possível dizer que o progressismo oscila entre
duas interpretações: algumas veem no fascismo um conservadorismo
radicalizado, outras veem no conservadorismo um fascismo com arreios.
[ 136 ] Patrick Buisson, La cause du peuple, Paris, Perrin, 2016, p. 158.
[ 137 ] Philippe Muray, Festivus Festivus: conversations avec Élisabeth Lévy,
Paris, Fayard, 2005, p. 168.
[ 138 ] Alain Finkielkraut, La seule exactitude, Paris, Stock, 2015, p. 95.
[ 139 ] Raymond Aron, com sua admirável lucidez, escreveu, em meados dos
anos 1950: “Um reflexo de antifascismo aproxima as esquerdas, um reflexo de
defesa social, as direitas”. Raymond Aron, Espoir et peur du siècle, Paris,
Calmann-Lévy, 1957, p. 13. Em outras palavras, a esquerda se mobilizaria
ardentemente contra o mal a ser vencido, a direita se mobilizaria para defender
seus interesses ameaçados.
[ 140 ] Christiane Taubira: “La gauche risque de disparaître, et pour un
moment”, Libération, 11 de setembro de 2016.
[ 141 ] Carolin Emke, Contre la haine, Paris, Seuil, 2016.
[ 142 ] Jacques Julliard, Les gauches françaises, Paris, Flammarion, 2012, p. 857-
858.
[ 143 ] Leszek Kolakowski, Comment être socialiste+conservateur+libéral, Paris,
Belles Lettres, 2017.
[ 144 ] Marc Crapez, Naissance de la gauche, Paris, Michalon, 199, p. 215.
[ 145 ] Arthur Berdah, “Migrants: Macron défend ses choix et fustige la ‘lèpre’
populiste en Europe”, Le Figaro, 22 de junho de 2018.
[ 146 ] Pierre-André Taguieff, Le nouveau national-populisme, Paris, CNRS, 2012,
p. 17. Philippe Raynaud dirá, ele também, sobre as correntes populistas, “que
representam algo além de um simples renascimento dos antigos extremismos”.
Philippe Raynaud, Emmanuel Macron: une révolution bien temperée, Paris,
Desclée de Brouwer, 2018, p. 91.
[ 147 ] A história intelectual do século XX assim reduziu a questão do regime ao
enfrentamento entre democracia e totalitarismo, enquanto, historicamente, ela
era muito mais complexa.
[ 148 ] Quanto a essa questão, consulte-se T.W. Adorno, The Autoritarian
Personality, Nova York, Harper & Brothers, 1950.
[ 149 ] Jean Sévillia, Le terrorisme intellectuel, Paris, Perrin, 2004, p. 192.
[ 150 ] A maneira como as mídias francesa e europeia cobriram as eleições
quebequenses de 1º de outubro de 2018 dá um ótimo exemplo dos limites de
uma assimilação global ao populismo de tudo o que não é progressista. O
Coalition Avenir Québec, um partido autonomista de centro-direita, de um
nacionalismo moderado, foi apresentado como um partido populista, a ser
classificado na mesma categoria que os partidos qualificados como extrema-
direita na Europa ocidental.
[ 151 ] Nem todos os partidos populistas, aliás, são herdeiros dos partidos
históricos de extrema-direita.
[ 152 ] Para reencontrar uma série de estudos realizados por politólogos
progressistas que se preocupam com o surto populista, leia-se: Heinrich Geisel-
Berger (dir.), L’âge de la régression, Paris, Premier Parallèle, 2017.
[ 153 ] Esse ciclo político consagrado à questão social não poderia deixar de
favorecer, ao menos por um tempo, Jean-Luc Mélenchon, que soube tirar
proveito da aniquilação do Partido Socialista para reconferir certo vigor à
radicalidade ideológica, ao usar em proveito próprio uma função demagógica
que o Front National já não conseguia desempenhar, tendo sua presidente
fracassado, por outro lado, em credibilizar seu grupo partidário como um grupo
de governo. É preciso dizer que esse papel convém particularmente bem à
personalidade do chefe do partido La France Insoumise. O discurso
mélenchonista, que impele à revolta social, repousa em declarações
incendiárias que acabam quase inevitavelmente pondo em causa a legitimidade
de Emmanuel Macron, uma postura que já transparecia no período intermediário
entre os dois turnos, quando o líder do partido La France Insoumise se havia
recusado a reconhecer a validade da escolha entre os candidatos que lá se
encontravam. Mélenchon, à sua maneira, desvalorizava então a eleição
presidencial, que produzira tão somente uma falsa alternativa política,
descaracterizando a vontade popular, da qual ele se considerava,
manifestamente, o único intérprete. Justificava de antemão uma prática política
que o levaria a querer sair, ao menos retoricamente, dos parâmetros da
legitimidade republicana. Isso foi o que se viu em maio de 2018: ao tentar
impelir o maior número possível de franceses para as ruas, a fim de que se
desdobrasse uma “maré popular”, foi o resultado das urnas que a esquerda
radical quis invalidar ou, ao menos, desqualificar, como se o povo em luta
desqualificasse o povo eleitoral. Quanto a essa questão: Jean-Luc Mélenchon,
“Un peu de bienveillance, est-ce possible?”, Libération, 26 a 27 de maio de
2018, p. 3-7. O populismo de esquerda teorizado por Chantal Mouffe serve aqui
de contexto intelectual para justificar uma retórica insurrecional. Tampouco se
pode excluir a hipótese de que uma grande parcela do sistema midiático tenha
se regozijado com esse retorno à questão social, eclipsada havia alguns anos
pela questão identitária, globalmente mal vista por um grupo de comentaristas
que aderem com espantosa obstinação à fantasia da convivência e se recusam
a ver na insegurança cultural algo além de um medo mórbido, cultivado por
certos ideólogos que cultivam cinicamente tais preocupações. É quase
inevitável que esses desafios, quando retornam ao centro do jogo político,
favoreçam a direita, quando esta quer se apoderar deles, ou a direita populista,
quando esta é capaz de apoderar-se deles. Macron e Mélenchon, em tais
circunstâncias, escolheram-se mutuamente. Entre o liberal globalizado e o
populista de esquerda enraivecido, a celeuma era bela demais para não ser
encampada. Poderia até ser traduzida nas categorias próprias da cultura política
francesa: Macron seria o liberal orleanista, Mélenchon, o jacobino insurgente.
Cada qual seria belo em seu respectivo papel.
[ 154 ] Heinrich Geiselberger, “Préface” in: Heinrich Geiselberger (dir.), L’âge de
la régression, Paris, Premier Parallèle, 2017, p. 8-9.
[ 155 ] Ibidem, p. 10.
[ 156 ] Ibidem, p. 13.
[ 157 ] Ibidem, p. 17.
[ 158 ] Natacha Tatu, “Éloge du politiquemente correct”, L’Obs, 1º de novembro
de 2018, p. 5.
[ 159 ] Raphaël Liogier, “Populisme liquide dans les démocraties occidentales”
in: Bertrand Badie e Dominique Vidal (dir.), Le retour des populismes, Paris, La
Découverte, 2018, p. 39-48. Também: Caroline Emke, Contre la haine, Paris,
Seuil, 2018.
[ 160 ] Jérôme Fourquet, Le nouveau clivage, Paris, Éd. du Cerf, 2018. Nessa
mesma perspectiva, consultem-se os trabalhos de Christophe Guilluy.
[ 161 ] “Élections provinciales: l’échec des sondages électoraux”, Radio Canada,
2 de outubro de 2018.
[ 162 ] Dominique Reynié relembrou, em seu estudo do populismo, a
necessidade de evitar toda forma de reducionismo econômico ou materialista na
análise da demanda política. Seria preciso levar igualmente em conta a
dimensão patrimonial da política. Dominique Reynié, Populisme: la pente fatale,
Paris, Plon, 2011.
[ 163 ] Vincent Coussedière, Éloge du populisme, Paris, Élya, 2012.
[ 164 ] Patrick Boucheron, “Ouverture” in: Patrick Boucheron (dir.), Histoire
mondiale de la France, Paris, Seuil, 2017, p. 7. Não deveria nos surpreender que
o ouvíssemos criticar a política migratória de Emmanuel Macron sustentando
que: “a triagem entre os migrantes econômicos e os solicitantes de asilo é
imoral”, antes de acrescentar que “os migrantes serão cada vez mais
numerosos, devemos acolhê-los, é um dever e é uma oportunidade”. De fato,
ainda de acordo com Boucheron, “o país seria mais forte se fosse mais livre e
mais aberto, se soltasse as amarras do velho mundo, se deixasse de se
comprazer em seus rancores requentados”. Patrick Boucheron, “Jamais le
gouvernement actuel n’a été aussi loin dans le mépris des droits humains”,
L’Obs, 11 de janeiro de 2018.
[ 165 ] Mathieu Bock-Côté, “L’idéologie canadienne de Justin Trudeau”, Le
Journal de Montréal, 21 de dezembro de 2015.
[ 166 ] Éric Dupin, La France identitaire, Paris, La Découverte, 2017.
[ 167 ] Arjun Appadurai assimilará essa reafirmação identitária a uma busca da
“soberania cultural”, que se desdobraria por meio de “narrativas destinadas às
camadas da população, por vezes majoritárias, às voltas com o ressentimento.
Essas narrativas são centradas em torno da ideia de vitória racial, de pureza
étnica nacional e também de grandeza nacional. […] Esse substrato cultural
comum dissimula profundas contradições, como as que resultam do hiato entre
as políticas econômicas neoliberais da maioria desses líderes […]. Temos aí o
terreno de uma nova política de exclusão, cujos alvos são os migrantes, ou as
minorias étnicas, ou ambos”. Arjun Appadurai, “Une fatigue de la démocratie”
in: Heinrich Geiselberger (dir.), L’âge de la régression, Paris, Premier Parallèle,
2017, p. 28-29.
[ 168 ] Tivemos um exemplo no Quebec em 2008, enquanto ele era permeado
por aquilo a que se chamou a crise dos acordos razoáveis. Para compreender a
crise e encontrar uma resposta adequada para ela, dois intelectuais de
destaque, Gérard Bouchard e Charles Taylor, foram chamados para dirigir uma
comissão que circularia pelo Quebec a fim de esclarecer as populações
consideradas recalcitrantes em relação à diversidade. No momento de publicar
o relatório, a interpretação dominante não deixava margem a dúvida: se havia
crise, era fruto essencialmente das expectativas exageradas em matéria de
integração por parte do povo quebequense, que seria alérgico à diferença e
exigiria uma forma de privilégio simbólico na composição da identidade
nacional. Para combater essa tentação hegemônica, seria necessário reeducar a
população, sensibilizando-a para as vantagens da diversidade, impondo-lhe um
novo paradigma político em que a dissolução da identidade nacional será
estabelecida como nova representação do progresso. Mathieu Bock-Côté, “À
défaut de convaincre le peuple, en fabriquer un nouveau”, L’Action nationale,
setembro de 2008.
[ 169 ] Carolin Emke, Contre la haine, Paris, Seuil, 2017, p. 122.
[ 170 ] Pierre Rosanvallon, Le peuple introuvable, Paris, Gallimard, 1998; Pierre
Rosanvallon, La légitimité démocratique, Paris, Seuil, 2008; Pierre Rosanvallon,
Notre histoire intellectuelle et politique, Paris, Seuil, 2018.
[ 171 ] Yascha Mounk, Le peuple contre la démocratie, Paris, Éditions de
l’Observatoire, 2018, p. 231.
[ 172 ] Chantal Mouffe e Inigo Errejon, Construire un peuple, Paris, Éd. du Cerf,
2017. A teoria da democracia radical pretende concretizar-se hoje por meio do
populismo de esquerda. O populismo de esquerda dispõe geralmente de um
tratamento midiático menos caricato, na medida em que pretenderia definir o
povo como um puro demos, sem substrato histórico particular, sem núcleo
identitário distintivo. Assim concebido, extraído da história e desencarnado, o
povo voltaria a ser uma categoria legítima, capaz de agregar todos os que
pretendem situar-se sob sua referência.
[ 173 ] Jan-Werner Müller, Qu’est-ce que le populisme?, Paris, Gallimard, 2016. p.
168.
[ 174 ] Jan-Werner Müller, Qu’est-ce que le populisme?, Paris, Gallimard, 2016. p.
168.
[ 175 ] Jurgen Habermas, que não esconde sua admiração por Emmanuel
Macron. Jurgen Habermas, “Ce fascinant Monsieur Macron”, L’Obs, 25 de outubro
de 2017.
[ 176 ] Sem nos demorarmos nisso, notemos aqui, porém, que a filosofia política
moderna tampouco é alheia à questão da identidade do povo, de sua
caracterização: em outras palavras, de sua singularidade. Ela não escapou a
Rousseau em suas Considerações sobre o governo da Polônia. “Se não
conhecermos a fundo a Nação para a qual trabalhamos, a obra que faremos por
ela, por mais excelente que possa ser em si mesma, sempre pecará pela
aplicação, e mais ainda quando se tratar de uma nação já toda instituída, cujos
gostos, costumes, preconceitos e vícios são demasiado enraizados para
poderem ser facilmente sufocados por sementes novas. Uma boa instituição
para a Polônia só pode ser obra dos poloneses ou de alguém que tenha
estudado bem, no local, a nação polonesa e as que lhe são vizinhas.” Jean-
Jacques ROUSSEAU, Considérations sur le gouvernement de Pologne, in: Du
contrat social et autres écrits politiques, Paris, col. Pléiade, 1964, p. 953.
[ 177 ] Marc Crapez, Défense du bon sens, Monaco, Éditions du Rocher, 2004.
[ 178 ] David Goodhart, The Road to Somewhere, Penguin Books, 2017.
[ 179 ] Frédérick Gagnon, citado em Guillaume Bourgault-Côté, “Une leçon
électorale pour les experts”, Le Devoir, 9 de novembro de 2016. Um argumento
que frequentemente se ouviu sobre a derrota de Hillary Clinton foi este: “a
sociedade estadunidense não está pronta para uma mulher presidente”, o que
significa que ela teria vencido naturalmente se o sistema patriarcal não a
houvesse entravado. Em outras palavras, a estrutura social profunda dos
Estados Unidos seria ainda fundamentalmente desigual e hostil à emancipação
feminina em suas consequências políticas.
[ 180 ] Marie Lemonnier, “La revanche de l’homme blanc: entretien avec Sylvie
Laurent”, L’Obs, 17 de novembro de 2016, p. 62-63.
[ 181 ] Éric Fottorino, “Lutter, résister, combattre”, Le 1 hebdo, 19 décembre
2018.
[ 182 ] François-Bernard Huygue, Fake News: la grande peur, Paris, VA éditions,
2018, p. 23.
[ 183 ] Guillaume Bourgault-Côté, “Une leçon électorale pour les experts”, Le
Devoir, 9 de novembro de 2016.
[ 184 ] Ben Jacob, “Hillary Clinton regrets ‘basket of deplorables’ remark as
Trump attacks”, The Guardian, 11 de setembro de 2016.
[ 185 ] Guy Sorman, “La revanche du mâle blanc”, Le Monde, 11 de novembro
de 2016. Essa é também a tese que Guy Sorman defenderá explicitamente
depois das eleições de meados de mandato. “Aquilo a que chamamos populismo
ou ainda o nacionalismo étnico não é um movimento ideológico, mas uma
reação tribal. As recentes eleições nos Estados Unidos o demonstram
amplamente. Donald Trump e, de modo geral, os candidatos republicanos que
afirmam sua adesão a ele só obtiveram votos dos brancos nas zonas eleitorais
brancas. […] Os estadunidenses votam, hoje, ou pelos brancos ou pelos
democratas; o Partido Republicano se tornou, predominantemente, em seu
cerne, o partido dos brancos, e o Partido Democrata, uma grande tenda que
abriga todos os partidários da sociedade aberta e do progressismo, da direita
liberal à esquerda socialista. Sob essa tenda se refugiaram os Estados Unidos de
amanhã: as candidaturas femininas oriundas da diversidade – índias,
muçulmanas, negras – são todas democratas. […] Não resta dúvida, os brancos
trumpistas (nem todos os brancos são pró-Trump, mas todos os partidários de
Trump são brancos) se percebem como uma comunidade sitiada: diante da
diversidade étnica crescente de seu país, da globalização econômica e da
mudança radical dos costumes, adotam reflexos tribais de autodefesa. Trump
joga, no fundo, com esse sentimento de insegurança; explora-o e, além disso,
agrava-o. Suas agressões vociferadas contra os imigrantes ecoam o temor por
parte dos brancos de perder sua antiga dominação sobre a sociedade
estadunidense.” Guy Sorman, “Midterms: le crépuscule de Donald Trump”, Le
Point, 8 de novembro de 2018.
[ 186 ] Guy Sorman, “La revanche du mâle blanc”, Le Monde, 11 de novembro
de 2016.
[ 187 ] Alguns levarão o raciocínio mais longe: para isso é necessário,
justamente, acelerar a transformação demográfica das sociedades ocidentais, a
fim de acabar com o núcleo que resiste à transição diversitária; Daniel
Weinstock chegou a postular, tendo em mente a esperança de consumar a
conversão do Quebec ao multiculturalismo, que “quando Montreal tiver uma
porcentagem tão elevada de imigrantes quanto Toronto, essas perguntas já não
serão formuladas com tanta acuidade. E menos ainda quando se constatar que
não é possível prescindir, por exemplo, de uma enfermeira, com ou sem hijab”.
Citado em Louise Leduc, “Les Québecois restent opposés aux
accommodements”, La Presse, 27 de outubro de 2009. Em vez de ter de
convencer uma população manifestamente crítica do multiculturalismo, o que se
prefere, portanto, é uma solução demográfica que neutralize a pretensão da
maioria histórica de se constituir como norma identitária para a sociedade
quebequense. A imigração maciça se apresenta, por conseguinte, como um
método privilegiado para neutralizar o substrato demográfico do Quebec
histórico. O Canadá apresentará isso com ambição ainda maior, anunciando seu
desejo de chegar a 100 milhões de cidadãos no fim do século, o que
corresponderia, para fins práticos, à submersão do fato francês em uma
população nova, que olharia para ele como se olha para um resíduo identitário
insignificante, chamado a apagar-se na lógica do novo mundo. Andy Blatchford,
“Objectif: 100 millions de Canadiens d’ici 2100”, La Presse, 23 de outubro de
2016.
[ 188 ] Jacques Attali, “Sanctuariser le progrès”, 20 de junho de 2016
(www.attali.com).
[ 189 ] Anne-Marie Le Pourhiet, “Juges partout, démocratie nulle part”, Causeur,
nº 3, 3 de junho de 2013, p. 45-46.
[ 190 ] Jean-Louis Harouel, Les droits de l’homme contre le peuple, Paris,
Desclée de Brouwer, 2016.
[ 191 ] Esse defeito de fabricação do novo regime foi reconhecido por Antonio
Lamer, antigo juiz principal da suprema corte do Canadá, quando analisou as
origens, na história política canadense, da oscilação da soberania parlamentar,
a partir de 1982, para o governo dos juízes. Pondo-se na pele de Pierre Elliot
Trudeau, o primeiro-ministro da época, afirmou: “depois de um debate profundo
junto à população, em que se lhe explicasse o alcance de uma Carta assim e a
mudança no equilíbrio de poderes que existiam até então; talvez eu tivesse até
realizado um referendo sobre o assunto. Eu mesmo teria votado no referendo,
mas se a maioria dos canadenses tivesse votado contra, eu me teria dobrado
aos desejos da maioria. Se eu estivesse no lugar do Sr. Trudeau naquela época,
teria procedido a uma grande consulta pública”. Antonio Lamer, em Alain-Robert
Nadeau, “Trudeau aurait dû consulter la population, dit Lamer”. Le Devoir, 11 de
janeiro de 2000. Em outras palavras, Antonio Lamer reconhecia claramente que
uma mudança de regime havia ocorrido com a refundação constitucional de
1982, mas que tal mudança jamais havia sido aprovada pelo povo. Pode-se levar
a reflexão mais longe do que ele teria desejado e considerar que a legitimidade
do regime diversitário é muito relativa, e que é legítimo, de uma maneira ou de
outra, trabalhar para reconstruir a soberania parlamentar, bem como a
soberania popular. Em outras palavras, o Estado de direito tal como se
apresenta, como um ponto de consumação histórica absolutamente admirável,
não goza da legitimidade do direito divino, mas resulta de uma escolha política,
à qual se pode preferir outra escolha política.
[ 192 ] François Héran, Migrations et sociétés, Paris, Collège de France/Fayard,
2018.
[ 193 ] Yascha Mounk, Le peuple contre la démocratie, Paris, Éditions de
l’Observatoire, 2018.
[ 194 ] Ivan Krastev, “Le retour des régimes majoritaires” in: Heinrich
Geiselberger (dir.), L’âge de la régression, Paris, Premier Parallèle, 2017, p. 97.
[ 195 ] Vale a pena notar, ainda assim, que o surgimento do trumpismo é
indissociável de uma reintegração na vida política de um nacionalismo
econômica e culturalmente protecionista, que fora excluído da vida política
estadunidense desde a expulsão de Patrick J. Buchanan da coalizão
conservadora. Compreende-se melhor o trumpismo reinserindo-o na longa
história do conservadorismo estadunidense.
[ 196 ] Simon-Pierre Savard-Tremblay, Despotisme sans-frontières, Montreal,
VLB, 2018.
[ 197 ] “Hollande propose de supprimer le mot ‘race’ dans la Constitution”, Le
Monde, 11 de março de 2011, consultado em 1º de agosto de 2018 no site
lemonde.fr.
[ 198 ] Sophie de Ravinel, “Retrait du mot ‘race’ de la Constitution: quinze
années de revendications”, Le Figaro, 27 de junho de 2018.
[ 199 ] Daniel Martin, “Suppression du mot race de la constitution: enfin!”,
Médiapart, 28 de junho de 2018.
[ 200 ] Pascal Bruckner, Le sanglot de l’homme blanc, Paris, Seuil, 1983; Pascal
Bruckner, La tyrannie de la pénitence, Paris, Grasset, 2006.
[ 201 ] “Pendant des décennies, nos reportages étaient racistes. Pour nous en
détacher, il nous faut le reconnaître”, National Geographic, março de 2018.
[ 202 ] Stephen Smith, La ruée vers l’Europe, Paris, Grasset, 2018.
[ 203 ] Cf. Réconciliation avec les Peuples autochtones : La Ville de Montréal
célèbre le 10e anniversaire de la Déclaration des Nations Unies sur les droits des
Peuples autochtones, [Reconciliação com os povos autóctones: a cidade de
Montreal celebra o 10º aniversário da Declaração das Nações Unidas sobre os
direitos dos povos autóctones], 13 de setembro de 2017
(www.ville.montreal.qc.ca).
[ 204 ] Agence France Presse, “Une université américaine va recouvrir des
fresques dépeignant Christophe Colomb”, Le Figaro, 24 de janeiro de 2019.
[ 205 ] Desde o fim dos anos 1980, Julien Freund havia antecipado à sua
maneira esse ressurgimento, preocupando-se com as consequências políticas e
ideológicas de uma generalização do fenômeno de diáspora acarretado pela
imigração maciça. “É um fenômeno mundial e ninguém reflete a respeito. Se
ainda existe uma multiplicação das diásporas, a estabilidade das sociedades
pode ser posta em causa. Será que evoluirão para a integração na segunda
geração ou para um integrismo religioso, a fim de preservar sua identidade?”
Seria possível acrescentar, nesse espírito, que a reivindicação de uma
identidade racial em certas populações oriundas da imigração se relaciona,
como o integrismo, a uma forma de reflexo de conservação identitária que
demonstra uma recusa da integração. Julien Freund, L’aventure du politique,
Paris, Critérion, 1991, p. 60.
[ 206 ] Pierre-André Taguieff, Race: um mot de trop?, Paris, CNRS, 2018.
[ 207 ] Immanuel Wallerstein e Étienne Balibar, Race, nation, classe, Paris, La
Découverte, 2007.
[ 208 ] Permito-me aqui uma remissão à minha obra Le multiculturalisme
comme religion politique, Paris, Éd. du Cerf, 2016 [Edição brasileira: O
multiculturalismo como religião política, São Paulo, É Realizações, 2019].
[ 209 ] Franz Durupt, “À l’EHESS, réflexions sur la question blanche”, Libération,
8 de julho de 2018.

[ 210 ] François Furet, Penser le XXe siècle, Paris, Robert Laffont, 2007, p. 480.
[ 211 ] Jean-François Revel, Fin du siècle des ombres, Paris, Fayard, 1999, p.
392-93.
[ 212 ] Reni Eddo-Lodge, Le racisme est un problème de Blancs, Paris,
Autrement, 2018, p. 161.
[ 213 ] Reni Eddo-Lodge, Le racisme est un problème de Blancs, Paris,
Autrement, 2018, p. 11.
[ 214 ] Algumas obras representam bem essa tendência: Sadri Khiari, Pour une
politique de la racaille, Paris, Textuel, 2006; Houria Bouteldja, Les Blancs, Les
Juifs et nous, Paris, La Fabrique, 2016.
[ 215 ] Imagina-se a reação da velha direita racialista, desaparecida do mapa
político e obrigada a retrair-se nas margens da vida social e política, que jamais
havia duvidado da persistência do fator racial e se desolava com o fato de já
não ser possível mencioná-lo: ela verá aí um retorno do recalcado, e mesmo um
retorno do real. A filosofia política ocidental quis desconstruir politicamente toda
referência possível à raça: redescobrimos, e nos perguntamos por que isso
causaria surpresa, que quanto mais os pertencimentos históricos são liquefeitos,
mais os pertencimentos primitivos vêm à tona.
[ 216 ] Solange Bied-Chareton, “Rokhaya Diallo et les aventuriers de la race
perdue”, Valeurs actuelles, 30 de julho de 2018, (www.valeursactuelles.com).
[ 217 ] Ta-Nehisi Coates, Un colère noire, Paris, Autrement, 2017.
[ 218 ] Idem, Le procès de l’Amérique, Paris, Autrement, 2017. Para uma breve
história do conceito de privilégio branco, leia-se William Ray, “‘Privilège blanc’:
ce qui se cache derrière ce slogan”, Le Point, 30 de setembro de 2018.
[ 219 ] Bari Weiss, “When the Left Turns on Its Own”, New York Times, 1º de
junho de 2017.
[ 220 ] “Les ateliers ‘en non-mixité raciale’ du syndicat SUD-Education 93 créent
une polémique”, Le Monde, 21 de novembro de 2017.
[ 221 ] Véronique Chagnon, “Se libérer sans vous, se libérer de vous”, Le Devoir,
5 de dezembro de 2015.
[ 222 ] Sophie Chartier, “À nous notre lutte”, Le Devoir, 5 de dezembro de 2015;
Patricia Hill Collins, La pensée feministe noire, Montreal, Éditions du Remue-
Menage, 2016.
[ 223 ] Régis Debray, À demain de Gaulle, Paris, Gallimard, 1990, p. 64.
[ 224 ] Para um exemplo dessa reescrita fantasística da história em contexto
canadense, leia-se Robyn Mayard, Noires sans surveillance, Montreal, Mémoire
d’encrier, 2018.
[ 225 ] Robin Di Angelo, White Fragility: Why It’s So Hard for White People to
Talk About Racism, Beacon Press, 2018. Uma associação antirracista
quebequense proporá a seguinte definição: “Estado emocional intenso em que
se encontram as pessoas brancas quando uma pessoa racizada critica alguns de
seus comportamentos julgados racistas. Esse estado se caracteriza por reações
vivas, defensivas, até violentas. Isso se traduz em emoções como medo, raiva,
sentimento de culpa ou comportamentos como argumentar, minimizar ou
interromper a conversa. É próprio dessas interações ressaltar os sentimentos
negativos provocados pela crítica, e não a experiência vivida de racismo”.
Alexandra Pierre, “Mots choisis pour réfléchir au racisme et à l’antiracisme”,
Droits et libertés, outono de 2016, p. 15.
[ 226 ] Gilles-William Goldnadel, “Face au racisme antiblanc, le ‘déni aveugle’
des médias”, FigaroVox, 1º de outubro de 2018.
[ 227 ] Reni Eddo-Lodge, Le racisme est une affaire de blancs, Paris, Autrement,
2018.
[ 228 ] Elsa Mourgue, “Le racisme antiblanc existe-t-il? Entretien avec Éric
Fassin”, France Culture, 10 de outubro de 2018.
[ 229 ] Éric Fassin, citado em Elsa Mourgue, “Le racisme antiblanc existe-t-il?
Entretiens avec Éric Fassin”, France culture, 10 de outubro de 2018.
[ 230 ] William Voegeli, “Racism, Revised”, Claremont Review of Books, Fall,
2008.
[ 231 ] “Le ‘décolonialisme’, une stratégie hégémonique: l’appel de 80
intellectuels”, Le Point, 4 de dezembro de 2018, (www.lepoint.fr).
[ 232 ] Vale a pena citar também o caso de Louis-Jean Cormier, certamente um
dos cantores quebequenses mais talentosos, que teve de desculpar-se, depois
de se haver declarado desfavorável à paridade homens-mulheres no mundo da
música, porque não queria escolher seus técnicos com base no sexo, mas na
competência. Por isso, foi alvo de uma tempestade midiática da qual tentou sair
formulando pedidos públicos de desculpas que relembraram as horas mais
vermelhas do século passado. Louis-Jean Cormier, “MEA-CULPA ‘Que despertar,
esta manhã! Depois de haver lido o artigo ‘Pour ou Contre’ no La Presse, em que
discuto várias questões com a jornalista Josée Lapointe, uma sensação de mal-
estar me invadiu. Por mais que eu releia mil vezes a resposta à pergunta: Por ou
contra a paridade homem-mulher nos festivais, mesmo sabendo quais frases
foram suprimidas e quais foram tiradas do contexto, pareço um tiozinho idiota e
atrasado. Dois dias depois de 8 de março. Slow clap! Todos os que me conhecem
sabem que não sou esse tipo de cara, que sou favorável à igualdade homem-
mulher, ponto final. E, portanto, também na música, tanto debaixo dos holofotes
como na sombra. Sim, conheço experientes técnicas de música; sim, tenho a
sorte de contar entre os meus amigos uma plêiade de cantoras, autoras e
compositoras que têm muito mais experiência que eu. Mulheres da minha idade,
que brilham tanto aqui como em outros lugares, bem como jovens que
aparecem, cujo talento me dá uma sova, artistas e musicistas que tenho
vontade de convidar para a primeira parte dos meus shows ou mesmo para
programas de TV dos quais participo. Mas subestimo a que ponto faço parte dos
mais privilegiados deste mundo: sou um homem branco heterossexual. Que tem
a sorte de ter certo sucesso e uma voz pública. Uma responsabilidade. Tomo
uma página do grande livro de David Byrne que, ao comentar a desigualdade
homem-mulher no meio da música ainda esta semana, lamentava fazer parte do
problema. Não é hora para sutilezas, e sinto muito por haver decepcionado e
ofendido tantas pessoas ao tentar aludir a uma delas. Aceito a mão estendida
das irmãs Boulay e de Laurence Nerbonne, que se propõem a me ensinar um
pouco mais sobre o sexismo sistêmico com que elas, minhas colegas, se
confrontam. Parece claro que tenho um exercício de consciência a fazer e isso
cai bem, pois estou em ano sabático”. Louis-Jean Cormier, “Mea-Culpa”, Página
do Facebook do autor, 10 de março de 2018.
[ 233 ] “Controverse sur l’appropriation culturelle: un rédacteur en chef de CBC
écarté”, Radio Canada, 17 de maio de 2017. Também, “‘I invited these
indigenous writers… and then I insulted them’: Hal Niedzviecki on appropriation
uproar”, CBC News, 16 de maio de 2017.
[ 234 ] Philippe Teisceira-Lessard, “Université d’Ottawa: yoga annulé pour
‘appropriation culturelle’”, La Presse, 23 de novembro de 2015.
[ 235 ] Camille Feireisen, “Halloween et appropriation culturelle: un guide pour
se costumer à l’école”, Radio Canada, 31 de outubro de 2018.
[ 236 ] Nesse caso, fala-se antes de apropriação corporal. “Appropriation
corporelle: comment représenter les personnes handicapées à l’écran?”, Radio
Canada, 14 de janeiro de 2019.
[ 237 ] Laurence Niosi, “Le nom des Redmen de McGill jugé raciste et dépassé”,
Radio Canada, 15 de outubro de 2018.
[ 238 ] Czesław Miłosz, La pensée captive, Paris, Gallimard, 1953, p. 276.
[ 239 ] Romain Jeanticou, “Les ‘sensitivity readers’ dans l’édition américaine,
garde-fous ou derniers avatars du politiquement correct?”, Télérama, 18 de
setembro de 2018.
[ 240 ] Patrick Moreau, “L’ombre de la censure”, Argument, vol. 21, nº 1, outono-
inverno 2018-2019, p. 72.
[ 241 ] Saïd Mahrane, “La tyrannie des susceptibles”, Le Point, 6 de junho de
2018.
[ 242 ] Samira Laouni, “Évitons le cercle vicieux de la haine! Mémoires du COR”,
agosto de 2015.
[ 243 ] Géraldine Smith, Vu en Amérique, bientôt en France, Paris, Stock, 2018,
p. 53.
[ 244 ] Sophia Buono, “After Charles Murray Fiasco, Middlebury College Launches
Civil Discourse Program”, The Weekly Standard, 13 de novembro de 2018.
Quanto ao caso de Jordan Peterson, leia-se Paul Journet, “Taisez-vous, on
débat!”, La Presse, 26 de novembro de 2017. Sob a mesma perspectiva, leia-se
Julie Levasseur, “Conférence annulée pour propos transphobes”, Montréal
Campus, 18 de novembro de 2016. Mais amplamente sobre essa questão, leia-
se Normand Baillargeon (dir.), Liberté surveillée, Montreal, Léméac, 2019.
[ 245 ] Claire Levenson, “En Angleterre, des humoristes sommés de garantir par
écrit qu’ils n’offenseront personne”, Slate.fr, 13 de dezembro de 2018.
[ 246 ] Dominique Scali, “La radicalisation anarchiste à l’université inquiète”, Le
Journal de Montréal, 7 de maio de 2017.
[ 247 ] Reni Eddo-Lodge, Le racisme est un problème de Blancs, Paris,
Autrement, 2018, p. 158.
[ 248 ] Ibidem, p. 161.
[ 249 ] Martine Delvaux, citada em Dominique Scali, “La radicalisation
anarchiste à l’université inquiète”, Journal de Montréal, 7 de maio de 2017.
[ 250 ] Para citar Alain Savard, que afirma sua adesão a esses métodos,
“perturbar uma conferência é um meio de expressão para os que não têm
acesso à fala pública. Um meio pelo qual podem enfrentar uma elite que não
tem interesse algum no diálogo, no acordo e na democracia. […] Não seria
preferível tirar proveito dessas conferências para nelas oferecer um contra-
discurso? Uma vez mais, depende. Em muitas conferências, o tempo alocado às
perguntas do público é curto e o conferencista sempre tem a última palavra.
Quando é o caso de comparecer, por vezes é mais estratégico perturbar o
evento e aproveitar para conversar com as pessoas presentes”. Alain Savard,
“Lettre à Normando Baillargeon: on ne défend pas la démocratie en défendant le
droit de parole des puissants”, Ricochet, 13 de março de 2017.
[ 251 ] Essas palavras foram publicadas num manifesto de uma associação de
estudantes universitários quebequenses (Afesh-UQAM), e ainda constam na sua
página do Facebook. Cf. La censure, c’est la liberté d’expression. Apparemment.
Retour sur la controverse de l'UQAM, Mathieu Bock-Cote, Le Journal de Montréal,
16 de março de 2017 (www.journaldemontreal.com).
[ 252 ] Stéphane Bailargeon, “Protester contre la parole des puissants: entretien
avec Valérie Lefebvre-Faucher”, Le Devoir, 1º de abril de 2017.
[ 253 ] Emmett Macfarlane, citado em Shaw Jefford, “Ford exige politiques de
liberté d’expression dans les universités”, 30 de agosto de 2018.
[ 254 ] Emmanuel Pierrat, Nouvelles morales, nouvelles censures, Paris,
Gallimard, 2018, p. 11.
[ 255 ] Bérénice Levet, “Dans la prison du présent”, L’Incorrect, 2 de outubro de
2017, p. 39.
[ 256 ] “À Memphis, le film Autant en emporte le vent n’est plus le bienvenu”,
Radio Canada, 28 de agosto de 2017.
[ 257 ] Consulte-se sobre essa questão o artigo “La guerre de Sécession: la
véritable histoire”, in: Le Figaro Histoire, nº 35, dezembro de 2017-janeiro de
2018.
[ 258 ] George Orwell, 1984, Paris, Folio, 1950, p. 21-28.
[ 259 ] Arnaud Leparmentier, “A New York, la statue de Christophe Colomb fait
polémique”, Le Monde, 7 de outubro de 2017.
[ 260 ] Foi justamente para banir da vida pública tudo o que a representasse
que a Universidade de Notre-Dame em Indiana decidiu recobrir os afrescos,
feitos nos século XIX, que a celebravam. Agência France Presse, “Une université
américaine va recouvrir des fresques dépeignant Christophe Colomb”, Le Figaro,
24 de janeiro de 2019.
[ 261 ] Natasha MacDonald-Dupuis, Des enseignants veulent rebaptiser les
écoles portant le nom de John A. Macdonald, Radio Canada, 25 de agosto de
2017.
[ 262 ] Louis-Georges Tin et al., “Mémoire de l’esclavage: ‘Débaptisons les
collèges et les lycées Colbert!’”, Le Monde, 16 de setembro de 2017.
[ 263 ] Xantha Leatham, “King’s College ‘substituirá bustos e retratos de seus
pais fundadores por minorias étnicas após pressão estudantil’”, Daily Mail, 14 de
julho de 2017.
[ 264 ] Desse ponto de vista, a comparação com o islamismo merece ser feita,
na medida em que nos lembramos da destruição do museu de Mossul ou das
ruínas de Palmira. Existe aí um niilismo destruidor, de homens que pretendem
apagar da superfície do planeta tudo o que não entra em seu estreito sistema
de crenças. Eles confirmam o que sabíamos: alguns homens sentem uma fruição
perversa quando se entregam à destruição, à ação de destruir o que outros
homens respeitam. Justificam seu niilismo absoluto com a pretensão de servir
ao Absoluto. Quanto mais destroem, mais desfrutam. Quanto mais pisoteiam o
homem, mais se sentem inflados de poder.
[ 265 ] Michel Heller, La machine et les rouages, Paris, Calmann-Lévy, 1985.
[ 266 ] Czesław Miłosz, La pensée captive, Paris, Gallimard, 1953.
[ 267 ] Gustave Thibon, Parodies et mirages, ou La décadence d’un monde
chrétien, Paris, Édition du Rocher, 2011, p. 21-22.
[ 268 ] Guillaume Perrault, Conservateurs, soyez fiers!, Paris, Plon, 2017, p. 137.
[ 269 ] Alexandre Devecchio, Les nouveaux enfants du siècle, Paris, Éd. du Cerf,
2016, p. 309.
[ 270 ] Louis Pauwels, “Dieu a-t-il lu ce sondage?”, Le Figaro Magazine, 9 de abril
de 1983.
[ 271 ] Michel de Jaeghere, Les dernier jours, Paris, Les Belles Lettres, 2014.
[ 272 ] Louis Pauwels, Dix ans de silence, Paris, Fayard, 1989.
[ 273 ] Louis Pauwels, Les orphelins, Paris, Éditions de Fallois, 1994, p. 90.
[ 274 ] Michel de Jaeguere, Un automne romain, Paris, Les Belles Lettres, 2018,
p. 74.
[ 275 ] Michel Onfray e François-Xavier Bellamy, “Vivons-nous la fin de notre
civilisation?”, Le Figaro, 25 de março de 2015.
[ 276 ] Louis Pauwels, Dix ans de silence, Paris, Grasset, 1989, p. 22.
[ 277 ] Henry de Montherlant, La guerre civile, in: Théâtre, Gallimard, col.
Pléiade, 1972, p. 1268.
[ 278 ] Chateaubriand, Mémoires d’Outre-Tombe, Paris, Gallimard, col. Pléiade,
1952, p. 938-39.
[ 279 ] Marguerite Yourcenar, Mémoires d’Hadrien, Paris, Gallimard, 1974, p.
126.
[ 280 ] Georges Bernanos, Nous autres Français, in: Essais et écrits de combat, t.
1, coleção Pléiade, Gallimard, Paris, 1971, p. 679.
[ 281 ] Régis Debray, À demain de Gaulle, Paris, Gallimard, 1990, p. 61.
[ 282 ] Henry de Montherlant, Le treizième César, Paris, Gallimard, 1970.
[ 283 ] Nietzsche, em O Crepúsculo dos Ídolos, autorizou-se uma observação
que ele queria sussurrar na orelha dos conservadores: “O que não sabíamos
outrora, o que sabemos hoje, o que poderíamos saber é que uma involução,
uma regressão, num sentido qualquer, seja em que grau for, não é possível em
absoluto. […] Mesmo os políticos imitaram, nesse aspecto, os pregadores de
virtudes: existem ainda hoje partidos que sonham em fazer as coisas andarem
recuando, à maneira de caranguejos. Nada se pode fazer a respeito: é preciso ir
adiante, quero dizer, avançar passo a passo decadência adentro – essa é minha
definição do ‘progresso’ moderno… Pode-se entravar esse desenvolvimento e,
ao entravá-lo, represar a degenerescência em si, acumulá-la, torná-la mais
veemente e mais súbita: isso é tudo o que se pode fazer”. Nietzsche, Le
crépuscule des idoles, in: Friedrich Nietzsche Œuvres, t. 2, Collections Bouquins,
Robert Laffont, 1993, p. 1017.
[ 284 ] Jacques Bainville, La tasse de Saxe, in: Jacques Bainville, La monarchie
des Lettres: histoire, politique et littérature, Paris, Collections Bouquins, Robert
Laffont, 2011, p. 852.
[ 285 ] Roger Caillois, Instincts et société, Paris, Éditions Gonthier, 1964, p. 61-
114.
[ 286 ] François Taillandier, L’écriture du monde, Paris, Stock, 2013, p. 14-15.
[ 287 ] Em seu discurso no colégio dos Bernardinos, Bento XVI havia meditado
sobre as condições do renascimento da civilização ocidental, estando ela
mergulhada nos tempos mais obscuros. “Ao considerar os frutos históricos do
monaquismo, podemos dizer que ao longo da grande ruptura cultural,
provocada pelas migrações dos povos e pela formação das novas ordens de
Estado, os mosteiros foram espaços onde os tesouros da antiga cultura
sobreviveram e uma nova cultura, haurindo nestes últimos, pouco a pouco se
formou. Como isso ocorreu? Qual era a motivação das pessoas que se reuniam
nestes locais? Quais eram seus desejos? Como viveram? Antes de tudo, é
preciso reconhecer com muito realismo que sua vontade não era criar uma
cultura nova nem conservar uma cultura do passado. Sua motivação era muito
mais simples. Seu objetivo era buscar Deus, quaerere Deum. Em meio à
confusão daqueles tempos em que nada parecia resistir, os monges desejavam
a coisa mais importante: dedicarem-se a encontrar o que tem valor e sempre
perdura, encontrar a própria Vida. Eles estavam em busca de Deus.” Bento XVI,
“Discours des Bernardins”, 12 de setembro de 2008. Em termos seculares, não
era a devoção à memória ou ao mundo de ontem que estava na base de sua
ação, mas a busca da transcendência.
[ 288 ] François Taillandier, L’écriture du monde, Paris, Stock, 2013, p. 71-72.
[ 289 ] Allan Bloom, L’âme désarmée, Paris, Julliard, 1987, p. 17.
[ 290 ] Macronie, no original: neologismo de cunho pejorativo, que designa
Emmanuel Macron, presidente da França, seu entorno e sua forma de governo à
maneira de um território, com ideias e modus operandi característicos. (N. T.)
[ 291 ] No vocabulário político francês, o termo cohabitation designa uma
configuração de poder em que o chefe de Estado e o chefe de governo
pertencem a correntes políticas antagônicas. (N. T.)
[ 292 ] Pascale Tournier, Le vieux monde est de retour, Paris, Stock, 2018.
[ 293 ] Raymond Aron, Espoir et peur du siècle, Paris, Calmann-Lévy, p. 121.
[ 294 ] Em uma belíssima obra, Guillaume Perrault mostrou de fato que ele
possuía também uma genealogia especificamente francesa, pois a história da
direita não é passível de redução à celeuma entre liberais e reacionários.
Guillaume Perrault, Conservateurs, soyez fiers!, Paris, Plon, 2017.
[ 295 ] Hannah Arendt, De la révolution, em L'Humaine Condition, Paris,
Gallimard, coleção Quarto, 2012, p. 337.
[ 296 ] Jean-Pierre Le Goff, entrevista com Laetitia Strauch-Bonart, “Comment
être à la fois conservateur, moderne et social”. Le Débat, janeiro-fevereiro 2016,
número 188, p. 145-56.
[ 297 ] Marc Crapez, Naissance de la gauche, Paris, Michalon, 1998.
[ 298 ] É preciso dizer que Zemmour, contrariamente ao que dizem seus
detratores, é um escritor político autêntico, e que da obra Livre noir de la droite,
em 1998, à obra Un quinquennat pour rien, em 2016, ele aprofundou uma
crítica do progressismo visando seus fundamentos. Foi-lhe atribuída uma injusta
reputação de polemista, uma maneira de transformar seu pensamento em pura
provocação.
[ 299 ] Paul Ricœur, “Tâche de l’éducateur politique”. Esprit, julho/agosto de
1985, p. 84-85. Quanto a Patrice Gueniffey, relembrou que os melhores
historiadores, até muito recentemente, não se proibiam de falar do caráter de
uma nação ou mesmo de seu gênio próprio, ao mesmo tempo em que
reconheciam que “a doutrina dos temperamentos nacionais é um pouco
suspeita atualmente […]”. Ele não estava longe, porém, de recorrer a ela.
“Durante muito tempo se chamou ‘gênio’ àqueles traços próprios de cada povo,
mas que, embora estejam gravados em cada um de modo indelével e ofereçam
um princípio de distinção entre nós e eles, não constituem um ferrolho do qual
jamais se poderia escapar ou um dado tão fundamental que nada jamais
pudesse alterar ou modificar […]”, Patrice Gueniffey, Napoléon et De Gaulle:
deux héros français, Paris, Perrin, 2017, p. 136-37.
[ 300 ] Denis Tillinac, Le Dieu de nos pères, Paris, Bayard, 2004.
[ 301 ] Hubris, no original: conceito oriundo da cultura grega que remete à
desmedida no âmbito do comportamento humano, principalmente na relação
entre o homem e os deuses. De acordo com a cosmovisão da Grécia antiga, a
arrogância, uma das facetas dessa desmedida, acaba sempre por atrair alguma
forma de punição, que impõe ao homem o reconhecimento de seus limites. (N.
T.)
[ 302 ] Arthur Koestler, Hiéroglyphes, in: Œuvres autobiographiques, coleção
Bouquins, Robert Laffont, Paris, 1994, p. 444.
[ 303 ] Czesław Miłosz, La pensée captive, Paris, Gallimard, 1953, p. 303.
[ 304 ] Julien Freund, Politique et impolitique, Paris, Sirey, 1987, p. 139.
[ 305 ] Patrick Buisson, La cause du peuple, Paris, Perrin, 2016, p. 442-43.
[ 306 ] Michel de Jaeghere, La compagnie des ombres, Paris, Les Belles Lettres,
2016, p. 392.
[ 307 ] Jacques Ellul, L’illusion politique, Paris, Robert Laffont, 1965, p. 31.
[ 308 ] Philippe Maxence, “Il est temps de refermer le cycle des Lumières: notre
entretien exclusif avec Patrick Buisson”, L’homme nouveau, 10 de novembro de
2016.
[ 309 ] Chantal Delsol, La haine du monde, Paris, Éd. du Cerf, 2016.
[ 310 ] Julien Freund, La fin de la renaissance, Paris, PUF, 1980, p. 110.
[ 311 ] Alain Finkielkraut e Élisabeth de Fontenay, En terrain miné, Paris, Stock,
2017, p. 18.
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O Trivium
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