Você está na página 1de 271

dLivros

{ Baixe Livros de forma Rápida e Gratuita }

Converted by convertEPub
Copyright © Les Éditions du Cerf, Paris, 2019
Copyright da edição brasileira © 2020 É Realizações Editora
Título original: L’empire du politiquement correct
 
Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d’Aide à la Publication
année 2020 Carlos Drummond de Andrade de l’Ambassade de France au
Brésil, bénéficie du soutien du Ministère de l’Europe et des Affaires
étrangères.

Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação ano 2020


Carlos Drummond de Andrade da Embaixada da França no Brasil, contou
com o apoio do Ministério francês da Europa e das Relações Exteriores.
 
Editor | Edson Manoel de Oliveira Filho
Produção editorial e projeto gráfico | É Realizações Editora
Capa | J. Ontivero
Diagramação | Nine Design / Mauricio Nisi Gonçalves
Preparação de texto | Érika Nogueira
Revisão | Geisa Mathias
Produção de ebook | S2 Books
 
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer
reprodução
desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica,
fotocópia,

gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa


do editor.
 
ISBN: 978-65-86217-24-7
 
 
É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.
Rua França Pinto, 498 · São Paulo SP · 04016-002
Telefone: (5511) 5572 5363
atendimento@erealizacoes.com.br · www.erealizacoes.com.br
A meu pai e minha mãe,
com quem aprendi que um homem respeitável
é antes de tudo o que mantém a postura reta
e não renega suas ideias.
 

O mundo inteiro está de novo em marcha,


mas vai no outro sentido.
G. K. Chesterton
SUMÁRIO

Capa
Créditos
Folha de rosto
Dedicatória
A censura está de volta
Capítulo 1 | A democracia como pedagogia
progressista
A democracia convertida à utopia diversitária
A democracia como exercício pedagógico
Psicologia da negação do real em regime
diversitário
Capítulo 2 | 1984 é agora
Democracia e redes sociais
A guerra da narrativa ou o conflito das
interpretações
O software decifrador no cerne do sistema
midiático
Demonologia, deslizes e rotulagem
O apelo à censura estatal
Capítulo 3 | Aquilo que a esquerda chama de
direita
Psicologia do esquerdista
Situação da direita “moderada”
A direita amansada
Figura da direita descomplexada e… a direita
descomplexada vista pela esquerda
Quem é de direita é de esquerda
Capítulo 4 | O progressismo e os leprosos
A democracia contraditória
A questão do povo
A neutralização da soberania popular
A democracia “iliberal” ou o poder político como
contrapoder
Capítulo 5 | Os brancos, os racizados e os outros
Reflexões sobre a “questão branca”
A celeuma da apropriação cultural
A liberdade de expressão derrubada: o espaço
público como safe space
O novo iconoclasmo e a guerra contra as
estátuas
Capítulo 6 | O sentimento do fim de um mundo ou
a criminalização da nostalgia
O encanto dos escritores crepusculares
O recurso ao grande homem
A figura do pária
O mito da arca
Capítulo 7 | Como é possível ser conservador?
O conservadorismo e a modernidade
Dos neorreacionários aos conservadores
O momento Zemmour
Finkielkraut, conservador
Surgimento da questão antropológica
Psicologia de um renascimento conservador
Elogio do conflito civilizado
Agradecimentos
Notas
Mídias sociais
A censura está de volta

A palavra é a pedra angular do sistema.


Reinar sobre as mentes permite governar o país.
Czesław Miłosz
 
Deslizes, desvios, demonização: esses termos são
recorrentes no léxico político contemporâneo. Revelam a
existência de uma ortodoxia ideológica no cerne do
espaço público, à qual é melhor o indivíduo se curvar
caso deseje ganhar destaque nesse âmbito e participar
da conversa cívica. De fato, alguém só desliza numa
estrada bem demarcada e só desvia quando se afasta de
um caminho já traçado.

E, naturalmente, quem é excluído da vida pública como


se fosse indigno dela será demonizado, repelido do
império do bem e condenado às águas turvas e
lamacentas de onde vêm as ideias repulsivas – até
chamadas de sulfurosas, pois têm o odor do diabo. “Os
impérios totalitários desapareceram com seus processos
sangrentos, mas o espírito do processo permaneceu
como herança, e é ele que acerta as contas”, escreveu
Milan Kundera em 1993 em Os testamentos traídos. [ 1 ]
Algo restou da “mentalidade totalitária” [ 2 ] que reinou
durante o “século das sombras”, [ 3 ] para citar desta vez
Jean-François Revel. Não é que os processos por bruxaria
tenham desaparecido, apenas se modernizaram. Mesmo
o mais irrepreensível dos filósofos poderá ser alvo de
uma campanha de difamação, quando suspeito de não se
conformar ao pensamento correto segundo os militantes
que se fazem seus guardiães e estão decididos a nada
ceder do terreno que imaginam lhes pertencer. Por mais
que acreditemos que o “debate público deve obedecer às
regras da controvérsia respeitosa e da confrontação
rigorosa dos argumentos”, [ 4 ] essa aspiração, não só
nobre como natural, parece corresponder cada vez
menos à maneira como se desenrolam as discórdias
públicas atuais. “Ora, não há debate intelectual onde já
não se trata de desenredar o verdadeiro do falso, mas de
denunciar o mal.” [ 5 ] A vida pública se desenrola sob a
vigilância cada vez mais agressiva de “sectários
modernos” [ 6 ] que põem em cena sua indignação a fim
de multiplicar as proibições ideológicas. É a nova
conjuração de devotos. Quem se permite enfrentá-los
corre o risco de pagar um alto preço. O linchamento
midiático está em voga e praticamente se banalizou no
universo das redes sociais, onde se impõe a lei do buzz e
do clash. Quando pensávamos que a tentação da
censura havia sido vencida para sempre, ei-la de volta.
Homens e mulheres têm cada vez mais a impressão de
vestir um espartilho mental que sufoca o pensamento. A
democracia liberal parece ter-se tornado alheia a si
mesma e facções ideológicas radicalizadas são capazes
de se apoderar do espírito público ou, ao menos, de
submetê-lo a suas obsessões. É o que chamamos de
politicamente correto.
É claro, todos os políticos, sejam quais forem seus
respectivos partidos, tendem a se queixar da mídia, e
cada um deles se sente desfavorecido quando o faz. Em
outras palavras, cada um deles passará por maus
momentos. A vida pública tem altos e baixos para todos
os que nela se aventuram. No entanto, ao contrário
daquilo em que queremos acreditar, nem todos são
vítimas na mesma medida do politicamente correto,
cujos mecanismos não se desencadeiam arbitrariamente.
Denunciado com frequência, descrito por vezes, o
politicamente correto raramente é analisado. Isso é o que
me proponho a fazer nesta obra, interessando-me mais
amplamente pelos códigos da respeitabilidade que
estruturam a vida político-midiática. Isso porque, embora
em teoria a democracia repouse na valorização de um
debate público do qual cada um é convidado a participar
e não pretenda pré-julgar as escolhas coletivas que ela
torna possíveis, concretamente ela se dá o direito de
excluir da conversa pública os que percebe como
inimigos. A pergunta suscitada, então, é a seguinte:
quem são os inimigos da democracia? E dessa pergunta
deriva outra: o que é a democracia? Segundo a definição
que dela se dá ou que acaba predominando, algumas
possibilidades surgem, outras se apagam. Uma coisa é
certa: o espaço público não é axiologicamente neutro.
Desdobra-se a partir de um regime político ancorado em
sua própria antropologia, articulado a sua própria
filosofia. Nenhum regime é absolutamente fiel ao
princípio de legitimidade instituído por ele. Sendo assim,
propicia um espaço em que várias interpretações
possíveis desse princípio se desdobram. É nesse espaço
que se enfrentam os partidos, os movimentos e os
intelectuais. No entanto, os que não se reconhecem
nesse espaço e no princípio instituído por ele se põem
fora do jogo. Desqualificam-se do ponto de vista do
conjunto dos atores que aceitam o regime e dele
extraem vantagens. Embora sejam formalmente
autorizados a participar da vida pública, serão retratados
como extremistas, como párias, ainda que eles próprios
se vejam como dissidentes e proclamem sua boa-fé
democrática. E, sobretudo, serão relegados às margens e
condenados a uma existência periférica entre os
pestilentos.
Em uma sociedade que se diz pluralista, nunca é fácil
identificar de uma vez por todas a ideologia dominante,
contestada, por definição, por todos os que gostariam de
substituí-la. Aliás, ela faz com que suas contradições
internas sejam assimiladas a divisões significativas,
através das quais os homens podem se enfrentar quanto
ao futuro da comunidade política. No entanto, isso não
tem nada de impossível. Ainda que o sistema político
nem sempre seja explicitamente reivindicado, ele revela
seu substrato normativo pela maneira como mapeia o
espaço público, como nomeia as forças que nele se
desdobram e define as questões a partir das quais os
atores políticos e sociais devem se posicionar. Quais
posições são centrais e quais são periféricas no âmbito
da conversa pública? Conhecemos o jogo habitual dos
rótulos – esquerda, direita, extrema-esquerda, extrema-
direita, defensores da identidade, defensores da
diversidade: eles não servem apenas para descrever as
posições políticas, mas também para situar os partidos e
as famílias ideológicas no eixo da respeitabilidade
midiática. Quer um partido escolha livremente o rótulo
que o definirá, quer esse rótulo lhe seja imposto do
exterior, apesar dele e contra ele, de pronto se
compreenderá seu lugar no sistema político: ele é bem-
vindo, ou é meramente tolerado, quando não é rejeitado
às claras. Não se pode subestimar, naturalmente, quão
importante é ser admitido na conversa pública. Da
mesma maneira, de acordo com o tipo de especialista
convidado a comentar este ou aquele problema de
sociedade na mídia, é determinada visão do mundo que
se expressa e se desenvolve. Em outras palavras, o
sistema midiático é indissociável do regime, no sentido
amplo. É um de seus componentes essenciais.
A mídia distribui os papéis entre os heróis e os vilões,
escolhe seus campeões, designa os que deverão sofrer
de má reputação, distingue os políticos socialmente
aceitáveis dos que não o são, os filósofos eminentes e os
polemistas de categoria inferior, os intelectuais que
inspiram confiança e aqueles cujas ideias são rançosas.
Quem é respeitável e quem não é? O que distingue um
moderado de um radical, uma pessoa socialmente
aceitável de uma inaceitável? Em quais condições
alguém se torna controvertido, até muito controvertido,
ou mesmo sulfuroso? De que devemos falar se quisermos
ter boa reputação e de que assuntos devemos fugir se
quisermos evitar a má reputação? Quais temas podem
ser abordados nos debates coletivos? E, principalmente,
quais assuntos devem ser deixados de lado? Que posição
é preciso adotar para evitar as tempestades midiáticas e
outras polêmicas que, de uma só vez, podem manchar,
minar e até destruir uma reputação? Que perigo se deve
temer? O que alguém deve manter à distância para
salvaguardar sua reputação? Quem pode ser citado e
sobre qual amizade se deve calar? Essas são perguntas
formuladas em tempos políticos banais, mas radicalizam-
se quando a história volta a ser turbulenta. As divisões
políticas consagradas são perturbadas, novos desafios
aparecem, novas forças políticas deles se apoderam e
vêm à tona, novas vozes se fazem ouvir entre os
intelectuais, a fim de pôr em questão as representações
dominantes da sociedade. É um novo mundo que surge,
sejam quais forem os temas: a imigração em massa, a
grande defasagem entre metrópole e interior, as
principais mutações antropológicas – que provocam uma
redefinição das categorias mais profundamente
ancoradas na natureza humana como o masculino e o
feminino –, a fragmentação de todas as categorias
identitárias ou as novas possibilidades abertas pelas
biotecnologias. A conversa pública já não tem nada de
pacato. Instaura-se uma lógica da polarização. A querela
do regime se insere no contexto mais amplo de uma
mutação civilizacional. Não pretendo realizar aqui um
estudo exaustivo do tratamento midiático de todas as
questões políticas, mas descrever e compreender os
mecanismos que regulam o que é bem visto chamar de
conversa democrática. “Aquilo que acontecerá num lugar
acontecerá em todos”, [ 7 ] escreveu Czesław Miłosz.
Selecionarei para isso exemplos que me parecem
particularmente eloquentes de ambos os lados do
Atlântico, até porque o politicamente correto neles se
desdobra com o mesmo vigor, embora nem sempre pelos
mesmos caminhos, e ainda que haja mais resistência por
parte de uns do que de outros. Com frequência se
encontrarão, ao longo da obra, certos escritores que, no
século passado, meditaram sobre a experiência
totalitária. Czesław Miłosz, Arthur Koestler e George
Orwell, especialmente, tentaram cada qual compreender
de que maneira um regime ideocrático, cuja pretensão é
submeter o mundo a uma ideia exclusiva, supostamente
capaz de libertar do mal, engendra uma dissociação da
existência que perturba as próprias condições da vida
intelectual e, mais ainda, que perturba nossa relação
com o real. Por mais estranho que isso possa parecer às
nossas sociedades, convencidas de darem admirável
prosseguimento à história da democracia liberal, elas
com frequência são reconhecíveis na obra desses
escritores, como se os esquemas de pensamento que
estruturavam o imaginário progressista do século XX se
houvessem metamorfoseado e voltassem a se
desenvolver segundo os parâmetros daquilo que
denomino regime diversitário.
No primeiro capítulo, analisarei a concepção da
democracia que impulsiona o regime diversitário e, no
segundo, darei atenção aos códigos do politicamente
correto, mais amplamente, à maneira como o regime
diversitário pretende reajustar os termos do debate
público para conter o questionamento a seu respeito, um
questionamento cada vez mais vivo no interior de uma
sociedade que está longe de estar convencida de viver
no melhor dos mundos possíveis. O terceiro capítulo será
dedicado à divisão esquerda-direita que estrutura, de
modo global, a conversa pública, enquanto o quarto
analisará a relação entre democracia e populismo. O
quinto capítulo tratará da questão da liberdade de
expressão na sociedade diversitária, que tende a
questioná-la, sob o pretexto de que não se poderia
concedê-la aos grupos historicamente dominantes, que
dela se serviriam para subjugar os grupos julgados
subordinados. O sexto capítulo tratará da criminalização
da nostalgia, quando surge o sentimento do fim de um
mundo e quando isso é acompanhado de certo pesar. O
sétimo se debruçará sobre a questão do
conservadorismo, aqui concebido não tanto como uma
doutrina militante, e sim à maneira de uma filosofia
política que pretende refundar os termos do debate
público. Para concluir, voltarei à necessidade de divisões
políticas criativas na democracia.
Em outras palavras, neste livro, que dá continuidade a
minhas duas obras anteriores, pretendo refletir sobre a
radicalização do regime diversitário diante do
questionamento a seu respeito. [ 8 ] A polêmica da
legitimidade está reaberta.
Capítulo 1 | A democracia como pedagogia
progressista
 
 
 
 
 
 
 
Toda política, mesmo a mais grosseira, pressupõe uma ideia do
homem, pois trata-se de dispor dele, de servir-se dele, e mesmo de
servi-lo. Quer se trate de partidos, de regimes ou de homens de
Estado, talvez fosse instrutivo buscar depreender de suas táticas
ou de seus atos as ideias do homem que eles conceberam ou
concebem.
Paul Valéry
 
Será que ainda é possível debater? – perguntam com
frequência os democratas de boa-fé, que sentem
claramente que essa resposta deixou de ser óbvia. Não
que o debate público se desenrole sem que se enfrentem
campos contraditórios, progressistas e conservadores,
federalistas e soberanistas, europeístas e eurocéticos – e
poderíamos multiplicar as categorias do mesmo gênero.
Oficialmente, o pluralismo político e intelectual é
respeitado, e mesmo incentivado. O advento dos canais
de informação continua a favorecer, aliás, uma cultura do
debate, que não raro descamba para a cultura do
confronto, o que pode fazer acreditar, à primeira vista,
que nunca antes as nossas sociedades se envolveram
tanto na deliberação pública, chegando a praticá-la de
maneira mais que vigorosa. No entanto, esse pluralismo
político de fachada mascara cada vez menos uma
homogeneidade ideológica de fundo, em que com
frequência os grandes partidos se mostram
intercambiáveis, contentando-se com discordâncias
circunstanciais. Embora exista uma pluralidade de pontos
de vista possíveis no interior de uma sociedade, estes se
desdobram a partir de uma ortodoxia previamente
estabelecida – e seria também possível falar de um
núcleo ideológico do regime. Aquele que determina os
códigos da respeitabilidade que estruturam o espaço
público e decide quais são as grandes proibições que
fundamentam esse espaço, sendo dotado, além disso, do
poder de expelir quem não os respeita é quem exerce a
hegemonia ideológica. Aliás, quem reúne os cidadãos
para debater sobre seu futuro costuma se dar ao
trabalho de enquadrar o debate de maneira tal que nele
se revelem muitas proibições ideológicas, implícitas na
maior parte do tempo, mas subitamente visíveis. Existem
zonas às quais não se deve ir, assuntos escorregadios,
temas tabus. Isto é algo de que nos esquecemos com
facilidade, mas um debate se caracteriza em grande
medida pelos assuntos que não serão abordados.
Algumas questões são consideradas definitivamente
resolvidas.
No entanto, quando o espaço público parece divergir
demais das preocupações populares, a confiança no
sistema político-midiático se desgasta e o ceticismo toma
seu lugar, quando não a repulsa. Esse é o ponto a que
chegamos. Nos últimos cinquenta anos,
aproximadamente, na maioria das sociedades ocidentais,
o sistema midiático pouco a pouco transformou a
conversa em monólogo progressista. Essa tendência se
radicalizou desde o início dos anos 1990, com a entrada
na era da civilização globalizada e diversitária. Em razão
disso, parcelas cada vez mais numerosas da população
se sentem excluídas do debate público. Não raro elas se
identificam com o povo e denunciam o advento de uma
oligarquia. Ou, ao menos, criticam as elites, acusadas de
viver numa bolha, separadas do comum dos mortais e
pouco inclinadas a se misturar com eles. A tentação
natural dos que se sentem repelidos da vida política e do
discurso público é enxergar nisso uma negação da
democracia: o que é uma democracia que seleciona com
antecedência as opções políticas que poderão ser
debatidas publicamente, que confere certificados de
respeitabilidade a alguns e multas morais a outros, além
de proibir certos assuntos sensíveis? O curioso se
pergunta: o povo não é, supostamente, o soberano? E
acrescenta: será que não tenho o direito de dar minha
opinião sobre o andamento do mundo sem ser logo
julgado ou insultado? E insiste: por que não poderíamos
discordar? O que ele ignora, porém, é que nos meios que
fabricam a opinião e estabelecem os termos da
deliberação pública, o sentido atribuído à palavra
democracia modificou-se consideravelmente. Referimo-
nos aqui às elites intelectuais e midiáticas que dispõem
de um monopólio praticamente total sobre a grande
narrativa coletiva e sobre os parâmetros que a definem.
A DEMOCRACIA CONVERTIDA À UTOPIA DIVERSITÁRIA

A história da democracia é permeada por uma


controvérsia relativa a sua definição. Entre os que a
veem como um regime fundado no princípio da soberania
popular e no respeito às liberdades públicas e os que, na
linhagem de Tocqueville, mas também na de Touraine,
veem-na como um processo histórico destinado a
conduzir à plena realização da civilização igualitária,
existem ao menos duas maneiras diferentes de abordá-
la, acompanhadas de consequências políticas distintas. A
primeira definição parece hoje caída em desuso. Nos
meios intelectuais, são raros os que se declaram por ela
abertamente; é como se ela contivesse algo de primitivo,
atrasado, empoeirado. Ainda existe, mas à maneira de
um resíduo simbólico na consciência coletiva. Os que
buscam reativá-la são apresentados como populistas. A
segunda predomina e afirma sua adesão ao
progressismo, como se este último houvesse logrado
anexar essa definição a si mesmo, e assim seus destinos
fossem agora indissociáveis. [ 9 ] A partir de agora, a
democracia contemporânea se julga inseparável do
desdobramento da empreitada diversitária, que se
apresenta como sua única tradução possível. A
diversidade apresentada como uma riqueza é o “grande
ponto inquestionável do momento”. [ 10 ] Duvidar dele é
um pecado. Tomando de empréstimo o vocabulário
clássico da teoria política, a democracia se apresenta
como um regime que deve possibilitar o desdobramento
de um processo histórico irrefreável de reconhecimento
das categorias sociais ou identitárias “discriminadas” que
aparecem na vida pública e fazem valer seu direito à
igualdade. O sistema midiático apresenta
favoravelmente as reivindicações que brandem o
estandarte vitimista, inserindo-as na dinâmica dos
direitos humanos. Esse regime não é isento de
finalidades: da dissolução das nações à abolição das
fronteiras, da desconstrução dos pertencimentos
tradicionais à indiferenciação entre os sexos, da
desencarnação do pai e da mãe à sua transformação em
figura parental 1 e figura parental 2, intercambiáveis, ele
esboça um programa que é o de uma mudança de
civilização. O povo se torna uma população a ser tratada
de modo terapêutico, em uma “pretensão de modificar
os comportamentos privados dos homens, de reeducá-
los, de certa forma, a fim de torná-los mais evoluídos”,
observa Guillaume Perrault. [ 11 ] Aí se verá a nova grande
transformação, a passagem do homogêneo ao
heterogêneo, da identidade à diversidade, da nação ao
multiculturalismo: de um mundo, passa-se a outro. Essa
mudança de civilização é concebida não só como
aprofundamento, mas também como plena realização de
um processo diversitário que não poderia parar sem se
voltar contra si próprio. [ 12 ] Todos os países são
arrastados por essa dinâmica, ainda que ela não esteja
igualmente avançada em toda parte. É que uns são mais
fervorosos que outros.
Sob certos aspectos, a modernidade se desdobra como
um processo irresistível que desconstrói, etapa por
etapa, todas as grandes formas antropológicas e
históricas e veicula um programa de emancipação
chamado a traduzir integralmente o real em suas
próprias categorias. A filosofia da desconstrução, desse
ponto de vista, é provavelmente a que está conectada de
maneira mais íntima ao núcleo existencial da
modernidade, visto que vem desqualificar toda forma de
pertencimento histórico ou natural. O homem é intimado
a se tornar um nômade: sua única liberdade seria a de
despojar-se de seus pertencimentos e lançar-se no vasto
mundo. As grandes metrópoles ocidentais são dominadas
por esse império da hibridez: nelas se pode ser tudo e
qualquer coisa sem jamais ser coisa alguma de modo
definitivo. [ 13 ] É uma nova figura da emancipação que se
impõe, sob o signo de uma transgressão militante e
sempre impelida a uma distância cada vez maior das
formas culturais tradicionais, julgadas retrógradas e
dominadas por esquemas mentais estreitos, que
reprimem a livre expressão da subjetividade, a qual
deveria hoje afirmar-se na mais completa ruptura dos
códigos culturais e simbólicos. A fantasia do
autoengendramento que se aloja no âmago da
modernidade parece materializar-se nos tempos atuais
por meio das possibilidades criadas tanto pelo direito
como pela ciência. Impõe-se o ideal de uma fluidez
identitária hostil a toda forma de pertencimento
instituído. No entanto, talvez essa reivindicada fluidez
nada mais seja, no fim das contas, do que a
subjetividade flácida e neurótica de um indivíduo incapaz
da menor constância existencial e prodigamente
manipulável.
Com frequência a direita gerencial tem dificuldade em
levar a sério as especulações ideológicas do
progressismo, vendo-as apenas como divertimentos
teóricos ociosos por parte de intelectuais desconectados
do mundo real, alheios às coisas concretas, isto é, às
coisas relativas ao dinheiro. Não se deveria perder
demasiado tempo com adolescentes exaltados que cedo
ou tarde acabarão por aliar-se à sociedade instituída. Ela
aprecia ver a juventude aviltar-se fazendo a experiência
da radicalidade. Essa seria uma boa escola de
criatividade. Os bons esquerdistas viriam a ser os bons
burgueses. No entanto, ela deveria ter em mente a
advertência de Czesław Miłosz, que relembrou, na obra
La pensée captive [O pensamento cativo], que “somente
a burguesia, em sua tolice, acredita que as sutilezas do
pensamento são isentas de efeito. O Partido sabe que os
efeitos são consideráveis. Houve uma época em que a
Revolução nada mais era do que uma sutileza de
pensamento entre um pequeno grupo de teóricos
dirigidos por Lênin, os quais discutiam, na Suíça, em
torno de uma mesa de bar”. Ele afirmaria também:
“somente em meados do século XX os habitantes de
muitos países da Europa foram levados a constatar, em
geral de modo desagradável, que seu destino podia ser
diretamente influenciado por livros de filosofia relativos a
assuntos abstrusos e quase impenetráveis”. [ 14 ] Em
outras palavras, é preciso levar a sério as extravagâncias
teóricas de que se ocupam os seminários acadêmicos, e
mais particularmente as que vêm dos Estados Unidos. [ 15
] As especulações ideológicas do progressismo
diversitário podem mudar o mundo. François Furet, no
início dos anos 1990, havia notado o surgimento do
politicamente correto na universidade estadunidense, “a
última, no cronograma, das utopias de regeneração da
humanidade”. Observava, no entanto, que ela estava em
posição de poder, e mesmo de crescimento. “A ideologia
PC é filha da geração dos anos 1960, hoje instalada nos
postos de responsabilidade, e não apenas nas
universidades: o que lhe confere uma caixa de
ressonância.” [ 16 ] As mais radicais teorias oriundas das
ciências sociais acabam por permear a realidade política
e social.
O sistema do entretenimento, em suas grandes missas
midiáticas, não para de pôr em cena as novas figuras
incumbidas de encarnar essa mutação antropológica. E a
cada vez que uma delas emerge ou, mais exatamente, é
destacada, convém emitir sinais de entusiasmo
ostensivo. Mesmo as causas que parecem mais
extravagantes, em completa discrepância com o senso
comum, passam rapidamente das margens ao centro do
espaço público, como se viu em alguns anos com as lutas
associadas à teoria de gênero, que se tornaram
emblemáticas na América do Norte, [ 17 ] como se
representassem a nova etapa de uma empreitada de
desconstrução civilizacional, para que certas
possibilidades historicamente recalcadas nas margens da
cultura e da racionalidade possam libertar-se e
manifestar-se na vida social. As lutas trans tinham a
virtude de romper uma representação “binária” da
humanidade: nos Estados Unidos, houve um
envolvimento apaixonado na causa dos banheiros mistos,
e em muitos países o terceiro sexo foi
administrativamente reconhecido. Essa fragmentação
infinita da subjetividade é visível na sigla LGBTQI+, que
parece destinada a estender-se, mobilizando todos os
recursos do alfabeto e amalgamando realidades com
pouca relação entre si. A desconstrução da identidade
sexual se torna, assim, a nova etapa da desconstrução
do privilégio do homem ocidental, e é bem possível que o
antiespecismo seja a próxima – atualmente se fala em
atenuação, relativização e neutralização da diferença
entre os animais humanos e os animais não humanos.
Uma reivindicação que parecia eternamente destinada a
habitar as margens impôs-se como nova matriz
ideológica para a reflexão sobre a identidade sexual. A
figura do queer, neste ponto, é a que melhor encarna
essa modernidade em sua espiral vertiginosa. [ 18 ]
A DEMOCRACIA COMO EXERCÍCIO PEDAGÓGICO

Essa mutação diversitária não se apresenta apenas


como o desdobramento de um ideal que deseja a todo
custo remodelar politicamente o real, mas também como
uma transformação do mundo de base científica. Ao
marxismo científico de ontem corresponde a ciência
diversitária de hoje. Quando isso fica estabelecido, o que
se pretende é que o debate público seja menos
contraditório e mais pedagógico: ele aponta em certa
direção, fixa um horizonte, anuncia de antemão a boa
resposta, à qual os cidadãos esclarecidos devem aliar-se.
A partir do progresso concebido como revelação
chamada a desdobrar suas consequências na história, o
progressismo diversitário se engaja na comunidade
política. Essa revelação é um saber. Se uma grande
parcela da população tarda em aliar-se à sua visão das
coisas, como ocorre com frequência, é porque o campo
progressista não a explicou o suficiente. Cumpre a este
último, portanto, conduzir uma melhor comunicação. Os
que se opõem a esse campo não o compreendem, caso
contrário se aliariam a ele, ou então não têm interesse
nele, o que os transforma em defensores de privilégios a
serem derrubados. Os piores são, evidentemente, os que
compreendem a mensagem progressista, mas recusam-
na: estes passam então à categoria dos inimigos do
gênero humano. [ 19 ]
De modo geral, as causas militantes que alimentam o
aprofundamento da dinâmica diversitária são celebradas
e apresentadas como avanços coletivos. Essas questões
deverão tomar todo o espaço e permitir que os partidos e
os movimentos sejam situados no mapa político. A
questão não é nova, ela atravessa a história do século XX
e, talvez, até a história da modernidade, mas ressurge
atualmente de modo um tanto radical: como é possível
que obsessões ideológicas de um movimento marginal,
talvez até destituído de relevância, cheguem assim a
ocupar tamanho espaço midiático e político? Acrescente-
se: como é possível que a passagem das margens
radicais ao centro institucional de nossa sociedade se
realize tão rapidamente? A teoria das minorias ativas não
é nova. Thierry Wolton já havia destacado que Lênin
desenvolvera uma estratégia particularmente eficaz para
dominar o debate e instrumentalizá-lo em seu próprio
favor. Ele havia compreendido que, para compensar sua
posição tremendamente minoritária no movimento
socialista, tinha de se distinguir por uma radicalidade
ostensiva e um estilo histriônico – e ambos lhe
convinham bem. Foi capaz, assim, de definir os termos
do debate público e se posicionar no centro do jogo: era
ele quem definia a questão política a partir da qual cada
um devia se posicionar. Sem levar longe demais a
analogia histórica, a semelhança com a estratégia da
esquerda radical é impressionante: embora ela seja
incontestavelmente minoritária nas urnas, exerce uma
influência real no debate público, condicionando-o e, por
vezes, dominando-o. São em geral movimentos muito
radicais ou universitários militantes que promovem tais
temas, mas estes só se tornam obrigatórios porque se
beneficiam, depois, de um aval midiático que os
arremessa ao centro da vida pública. Seus militantes são
convidados para os debates, mimados e, além disso,
tratados como especialistas, quer provenham das
associações, quer da universidade, embora a sociologia
em particular e as ciências sociais em geral tenham
adotado há muito tempo uma concepção militante de
seu próprio trabalho. É na medida em que uma causa
chega a apresentar-se como tradução necessária do ideal
diversitário que contará com uma apresentação
favorável na mídia e que, cedo ou tarde, os políticos
terão de se apropriar dela, a menos que aceitem ser
desclassificados, considerados ultrapassados ou
marginalizados. De modo mais geral, as reivindicações
radicais dos grupos minoritários são normalizadas pelo
direito ou pela publicidade, e mesmo pela administração
pública, como vimos com o governo canadense, que
solicitou aos servidores que deixassem de se dirigir aos
cidadãos com os termos “senhor”, “senhora”, visto que
poderiam melindrar alguém cuja identidade de gênero
não equivalesse a sua identidade sexual – acima de tudo,
era imprescindível não generificar [ 20 ] ninguém [ 21 ]
erroneamente.
A promoção do ideal diversitário justifica um assédio
midiático permanente, a fim de levar as populações a se
converterem a ele e de identificar os que resistem aos
seus encantos. Chega a ser necessário afrontar o senso
comum, desestabilizá-lo e fazê-lo perder todo valor de
evidência, para que sobreviva apenas como estereótipos
a serem descartados e preconceitos a serem
desconstruídos – o que permitirá desmascarar os que a
eles se apegam de maneira exagerada. É aquilo a que se
chamará, pudicamente, campanha em prol da evolução
das mentalidades. Isso é o que se constata com a
questão do véu islâmico, cada vez mais destacado na
publicidade privada ou governamental. Existe aí uma
forma de provocação reiterada, que consiste em impor,
no espaço público, um símbolo identitário que choque os
costumes comuns e em denunciar vivamente, ao mesmo
tempo, os que o notam e não fingem que ele já está
normalizado. A cada vez, o que se impõe é uma grande
etapa na sensibilização das consciências à diversidade.
Tudo o que, de certa maneira, pode conter o processo
diversitário é chamado a sofrer o descrédito no espaço
público e a sobreviver apenas como uma lembrança
detestável, como se se tratasse de uma etapa superada
e relegada de uma vez por todas ao passado. Espera-se
que uma campanha de depuração midiática permanente
sirva para limpar o espaço público dos traços do mundo
pretérito e dos que a ele se apegam. Aqueles que não
seguirem o ritmo serão condenados cedo ou tarde ao
descrédito cívico e tornar-se-ão proscritos. Nada poderia
resistir ao movimento da modernidade, que sem cessar
rechaça do espaço do politicamente concebível tudo o
que lhe é estranho, aí enxergando apenas resíduos
históricos, como se a passagem do tempo devesse haver
permitido que já estivessem dissolvidos de uma vez por
todas. Uma fórmula ritualística da linguagem midiática
dá testemunho dessa mentalidade: quando se perguntou
ao primeiro-ministro canadense Justin Trudeau, no dia
seguinte às eleições federais que o levaram ao poder,
por que considerava importante formar um governo
paritário, ele respondeu assim: “porque estamos em
2015”. O argumento do calendário faz as vezes de
argumento categórico. Ele tem outra variante, invertida,
quando se faz a pergunta sobre como esta ou aquela
prática cultural, decretada retrógrada, ainda é possível
em nossos dias, como se a simples passagem do tempo
a houvesse condenado. Assim, julga-se esta ou aquela
instituição ultrapassada, sem que se especifique
exatamente por quê. Na segunda metade do século XX,
toda uma sociologia – representada em especial por
Daniel Bell – se interessou pelas relações entre a
modernidade e as práticas culturais que lhe eram
anteriores e moderavam seu desdobramento. [ 22 ] No
entanto, tal sociologia trata esse fundo cultural como
resíduo de um mundo antigo chamado um dia a
desaparecer por completo, não como permanências
antropológicas a serem retraduzidas em nossa época, em
função das características próprias desta última. Um dia,
esse fundo será completamente dissipado e a
modernidade poderá então funcionar segundo sua
própria lógica, sem entraves. Um dia, os restos esparsos
do mundo pré-moderno só terão seu lugar no interior de
um museu, e serão ladeados de placas explicativas. As
pessoas se perguntarão como os homens e as mulheres
dos tempos antigos conseguiam viver nele.
A história do politicamente correto tarda a ser escrita;
com frequência ele é denunciado, mas poucas vezes
alguém se dá ao trabalho de defini-lo. Esta é a definição
que propomos aqui: o politicamente correto é um
dispositivo inibidor cuja vocação é sufocar, reprimir ou
demonizar as críticas ao regime diversitário e à herança
dos Radical Sixties e, mais amplamente, excluir do
espaço público todos os que porventura transgridam
essa proibição. Ele garante uma narrativa midiática
conforme às exigências do regime diversitário, que
permite tanto ocultar as áreas do real que tendem a
desdizer suas promessas como desqualificar os atores
políticos e intelectuais que manifestam implícita ou
explicitamente seu desacordo com ele. Reivindica não
apenas o monopólio do bem, mas leva a coisa ainda mais
longe, reivindicando, além disso, o monopólio da saúde
mental, ao assimilar as resistências que suscita ao
universo da fobia. Da xenofobia à islamofobia, à
homofobia, à transfobia – e poderíamos acrescentar
outras fobias à lista –, compreende-se que toda forma de
apego pronunciado ao que é visto como o mundo do
passado pertence, a partir de agora, ao âmbito da
desordem psíquica. Torna-se assim possível realizar uma
campanha associada à saúde pública, a fim de sanear as
mentalidades, para reformá-las, reeducá-las. A tradução
quase automática das discordâncias em relação às
inovações societais [ 23 ] na linguagem da fobia tende a se
acelerar. A psiquiatrização da dissidência não deixa de
evocar a gestão do desacordo político nas democracias
populares do século XX. Quem não está na plena posse
de suas faculdades mentais e é corroído por uma
obsessão neurótica evidentemente não tem lugar no
âmbito público – pois viria contaminar o debate político
com sua irracionalidade tóxica. Politicamente falando, o
conservadorismo é expulso do âmbito da racionalidade, e
todo aquele que não tamborila jovialmente com a
orquestra do progresso diversitário será classificado
entre os suspeitos. As categorias populares, que com
frequência vão devagar e podem até se tornar
zombeteiras diante dos novos ídolos midiáticos serão
abertamente desprezadas. O mau gosto não se perdoa,
pois predisporia àquela forma suprema de incivilidade
que consiste em votar mal.
No entanto, o politicamente correto não tem apenas a
função de inibir a expressão, na vida pública, do
desacordo com a época, fazendo com que os eventuais
culpados compreendam que pagarão por isso com sua
reputação e serão condenados à inexistência pública.
Não se contenta com uma adesão morna, moderada,
pontuada de reservas ou matizes – a única coisa que se
pode reprovar à ortodoxia diversitária é que não vá longe
o suficiente, que seja ainda demasiado conservadora.
Não apenas o ceticismo aberto é denunciado, mesmo o
silêncio se torna suspeito, pois quem não participa das
sessões de entusiasmo obrigatório emite um sinal
discreto, mas preocupante, de dissidência, deixando
transparecer inconfessáveis reservas quanto ao espírito
da época. De fato, o que o regime diversitário exige são
as marcas explícitas da adesão, como garantias de
submissão ao novo mundo. Não aceita que alguém se
contente em aceitá-lo. É preciso celebrá-lo. A
modernidade não aceita que a aceitemos. Exige que a
incensemos. Exige, acima de tudo, que cada um lhe
entregue sua alma, deixando-se arrastar por seu
movimento sem jamais agarrar-se aos velhos galhos do
passado. É inadmissível contentar-se com a situação
conquistada, a situação presente, pois sempre haverá
muito caminho pela frente, como se costuma repetir de
modo ritual, por exemplo, quando se trata da
representação das minorias. É o que Élie Halévy
denominou “a organização do entusiasmo”. Cumpre
maravilhar-se com os achados ideológicos do regime e
aplaudir cada inovação societal. Philippe Muray havia
compreendido bem o modo como, ao retomar sem
descanso o “festivismo”, a modernidade põe
continuamente em cena sua autocelebração, fazendo da
festa uma guerra contra o passado para a qual todos
foram alistados. Quem não participa da festa e não sabe
dar testemunho de seu espírito festivo assume o rosto do
inimigo. É um vil reacionário. [ 24 ]
PSICOLOGIA DA NEGAÇÃO DO REAL EM REGIME DIVERSITÁRIO

As mídias de massa, a partir da segunda metade do


século XX, adquiriram um poder de condicionamento da
população absolutamente único na história, em particular
o de modelar as representações e as mentalidades
coletivas e construir o real visível ao comum dos mortais
– trata-se, precisamente, de um poder de encenação da
existência, que pretende, com o tempo, substituir o
próprio real pela criação da única realidade autorizada. E,
no entanto, mil indícios dão a entender que, embora o
regime diversitário prossiga seu empreendimento de
grande transformação social, é cada vez menor o número
dos que se reconhecem em sua narrativa encantada.
Entre o real e sua representação, a distância não para de
crescer. A globalização feliz não parece sê-lo tanto
quanto se afirma, a diversidade nem sempre se
apresenta como uma riqueza e o Outro ao qual devemos
nos abrir a qualquer custo nem sempre é destituído de
hostilidade. As identidades fluidas não passam, no fim
das contas, de subjetividades frouxas, e a grande
promessa de uma humanidade não só móvel, como
migrante, traduz-se concretamente por uma existência
desenraizada. Grandes parcelas da população reprovam
o sistema midiático de modo mais ou menos explícito,
por seu viés ideológico, militante e tendencioso, como se
entre o real e sua representação só restasse uma
correspondência longínqua, quando não uma contradição
direta. “Tudo isso dá uma impressão de sonho e
irrealidade; os jornais parecem falar de um universo
diferente, sem nenhum contato com nossa vida
cotidiana.” [ 25 ] Essas palavras de Arthur Koestler sobre
os jornais nas democracias populares parecem aplicar-se
diretamente à democracia diversitária. Élisabeth Lévy faz
com que ressoem ao escrever: “o que obstrui o debate
público, mais do que os processos quanto à pureza
ideológica, cuja repetição amorteceu seu poder de
prejudicar, é, portanto, a recusa obstinada por parte de
uma minoria – aquela que, aliás, tem amplo comando
ideológico da grande mídia, da universidade ou dos
corredores do poder – em admitir como verídica a
narrativa que a esmagadora maioria dos cidadãos faz
chegar aos seus ouvidos, aqueles para os quais a
coexistência das culturas não é exatamente um jantar de
gala […]”. [ 26 ] A negação do real não é algo novo,
tampouco a cegueira intelectual. Quanto mais a
representação midiática de uma sociedade se distancia
de sua experiência concreta, a ponto de se voltar contra
ela, mais se acentua um mal-estar político
potencialmente insurrecional. Na segunda metade do
século XX, boa parte do esforço dos intelectuais de
esquerda consistiu em manter a todo custo sua adesão
ao socialismo, ainda que para isso tivessem de
multiplicar as contorções mentais a fim de salvar a
qualquer preço uma teoria em falência. Isso é o que
ocorre nos tempos atuais, em especial quando chega a
hora de salvar o multiculturalismo.
Quanto menor a aderência do real à doutrina, mais
esta última deve desautorizá-lo, construindo um mundo
paralelo que desdobra a sociedade existente e tem de
eclipsá-la. É próprio de um regime ideológico radicalizar-
se no momento em que é contestado. Tomando de
empréstimo as palavras de Gil Delannoi, “encontra-se aí
o dogmatismo habitual de todos os reformadores
infelizes: se fracassamos, é porque não agimos com
rapidez suficiente, nem com força suficiente”. [ 27 ] Essa
psicologia é a dos devotos que entram em luta para
salvar sua religião. Arthur Koestler buscou compreender
os mecanismos mentais que levam os intelectuais de
esquerda a não ver o que está debaixo dos seus olhos.
Hipnotizados pela promessa revolucionária,
selecionavam os fatos que se apresentavam conforme
estes legitimavam ou entravavam a construção do
socialismo. Koestler deu seu testemunho, aliás, a partir
de sua própria passagem pelas fileiras comunistas e da
maneira como superou suas primeiras dúvidas diante do
“choque brutal da realidade contra a ilusão”. “Eu tinha
olhos para ver, e uma mente condicionada para eliminar
o que eles viam.” [ 28 ] Quanto mais o sistema ideológico
ao qual uma pessoa adere se decompõe, maior para ela
é a tentação de salvá-lo multiplicando as especulações
filosóficas, para não perder, no naufrágio, tudo o que
nele investira existencialmente.
Foi talvez tendo em mente uma história semelhante a
essa que, nos últimos anos, um filósofo como Alain
Finkielkraut mencionou muitas vezes Charles Péguy, que
convidava não apenas a dizer o que se via, mas primeiro
e antes de tudo, a ver o que se via. No cerne dos regimes
totalitários existia um sistema de interpretação do
mundo que mais negava o real do que o punha em cena,
e cumpria aderir a ele, sob pena de ser civicamente
desqualificado ou, apenas, considerado um caso
psiquiátrico. Cumpria ver coisas, ainda que não
existissem, e recusar-se a ver outras, bem reais, que
comportavam o risco de invalidar a doutrina. Lembramo-
nos de que, nas últimas páginas de 1984, de George
Orwell, o dissidente Winston Smith é finalmente
subjugado pelo Grande Irmão, que consegue fazê-lo
admitir que 2 + 2 = 5. Em outras palavras, Winston
Smith, que fez de tudo para continuar a ver o mundo por
si mesmo e resistir às mentiras, acaba por ceder a ele,
oscilando para o mundo paralelo da ideologia, ao qual é
preciso mostrar submissão, sem tentar verificar sua
conformidade com o real. Coagir um homem a repetir
que 2 + 2 = 5 consiste em esmagá-lo mentalmente,
submetendo-o a uma visão do mundo que obedece
apenas ao funcionamento interno da ideologia. É preciso
obrigar o homem à mentira para estraçalhar seus
recursos morais e seus parâmetros mentais. Ele tem de
oscilar para o mundo ideologicamente desdobrado e
reconstruído, e tornar-se incapaz de sair dele. O domínio
absoluto da ideologia sobre o real, de uma ideologia que,
com o tempo, deve substituir o real, é a característica
basilar do totalitarismo. Este último trabalha
incessantemente para recondicionar as consciências,
para remodelá-las. Prosseguindo a análise dessa
psicologia em outro contexto, Philippe Muray escreveu
que é “como negação militante da realidade que o
terrorismo PC se desenvolve e é eficazmente nocivo. É
até como suplente legítimo da realidade, como seu
substituto, como seu herdeiro, que ele exerce seu poder.
É no lugar da realidade e da concretude que ele impõe
seu verdadeiro e seu falso, os quais, a partir daí, já nem
precisam ser verificados. Nesse sentido, pode-se dizer
que ele é a polícia política do regime festivo […]”. [ 29 ]
Arthur Koestler chegou a assinalar, muito corretamente,
que “o espírito comunista aperfeiçoou as técnicas de
autoengano, bem como suas técnicas de propaganda
maciça. No pensamento do verdadeiro devoto, o ‘censor
interior’ consuma o trabalho do censor público; sua
autodisciplina é tão tirânica quanto a obediência imposta
pelo regime; ele aterroriza sua própria consciência e
subjuga-a”. [ 30 ] É também o que Czesław Miłosz notava,
ao falar sobre aqueles intelectuais que atuam nas
democracias populares, que tinham de dar ao regime
garantias públicas de fidelidade repetindo seus slogans,
embora no âmbito privado continuassem a criticá-lo. “A
faculdade de adaptar-se à linha política” [ 31 ] passa a ser
uma competência capital para a sobrevivência. No
entanto, a duplicação da consciência acarreta uma forma
de dilaceramento cada vez mais radical da
personalidade, que pode conduzir à esquizofrenia. O
homem que está sempre usando de astúcia com o
regime para evitar ser apanhado pelas correntes do
politicamente correto condena-se assim a uma existência
dupla, em que não para de dizer em público, com alguns
matizes, o que depois contradirá com virulência, no
âmbito privado. O destino de um homem assim é arriar.
Arthur Koestler descreveu bem o ambiente social e
psicológico num clima de vigilância generalizada. “A
pressão desse meio parece irresistível. Provoca a
mutilação progressiva do pensamento […] e se
acompanha de uma erosão ainda mais fatal do espírito.
Corta o homem de suas raízes metafísicas; de sua
experiência religiosa, do ‘sentimento oceânico’ em todas
as suas formas. A consciência cósmica é substituída pela
vigilância social, a percepção do absoluto, pela acrobacia
cerebral. Daí resulta uma desidratação progressiva da
alma, uma penúria espiritual mais apavorante que a
fome.” [ 32 ] O totalitarismo – essa é a grande lição de
Soljenítsin – obriga o homem a viver numa mentira
institucionalizada, que ele vê, mas não pode nomear, e
que ele aprende pouco a pouco a deixar de ver, a ponto
de querer denunciar os que a veem. De fato, quem
expressa publicamente o que vê, quando os outros
cultivam a ficção ideológica prevalente, fragiliza de
súbito o dispositivo dominante. Compreendem-se, a
partir daí, os mecanismos de exclusão dos contraditores
do sistema midiático: aí não se poderia tolerar a
presença de um autêntico dissidente, senão como um
pária ou um saudosista. Existe na verdade um efeito
contagiante possível, pois quem teima em parar de fingir
que adere à ideologia dominante representa um risco:
outros poderiam ser impelidos a entrar em dissidência.
Trata-se daquele poder antiquíssimo que consiste em
dizer que o rei está nu.
É bem possível que essas reflexões sobre a
desestruturação psicológica própria do totalitarismo
tenham certo valor para a reflexão sobre o papel do
politicamente correto no âmbito do regime diversitário.
Embora não possamos calcar tolamente a experiência
diversitária na experiência comunista do século XX, não
deixa de ser espantoso constatar a que ponto certos
esquemas mentais se reativam diante do tenso
distanciamento entre sociedades cada vez mais
assombradas por sua desagregação e um discurso
midiático dominante que pretende sempre intensificar a
conversão do Ocidente à civilização diversitária. O
homem é assim condenado a viver numa realidade
substitutiva criada pela mídia, à qual ele deve se referir
sem jamais sair de seu âmbito nem jamais introduzir nela
elementos suscetíveis de comprometer sua coerência
ideológica. A negação da realidade assume assim uma
forma dupla: trata-se de negar a crise do regime
diversitário e, mais ainda, de negar que ele lidera uma
mudança civilizacional, expondo à execração pública os
que ousam nomear a amplitude da revolução que ele
promete em suas diferentes dimensões, quer identitárias,
quer antropológicas.
Ao longo dos anos, os exemplos se acumulam. Entre
eles, é assombrosa a negação obstinada e contínua, por
meio de um uso militante, das estatísticas da grande
mutação demográfica ocidental. [ 33 ] O raciocínio assume
pouco a pouco a seguinte forma: a mutação demográfica
dos países ocidentais é uma fantasia cultivada por
ideólogos xenófobos; ao mesmo tempo, porém, ela já
ocorreu e é preciso adaptar-se a ela, pois irá até o fim,
até porque representa uma boa notícia na escala da
história. E mais, as nações ocidentais seriam desde
sempre nações de imigração – nós seríamos todos
imigrantes e não haveria nenhum núcleo demográfico e
cultural fundador em nenhuma delas. Seria ilógico,
portanto, preocupar-se com a imigração maciça, visto
que ela teria sido uma constante ao longo da história. A
própria identidade nacional não existiria de fato, e o
passado ao qual se referem os que se mostram apegados
ao romance coletivo seria uma fantasia. [ 34 ] Da mesma
maneira, constatamos que a teoria de gênero, que se
desdobra em toda parte nas sociedades ocidentais, é
negada pelos que a promovem – seus adversários são
então acusados de complô e de paranoia: lutariam contra
uma ameaça imaginária, ainda que, ao mesmo tempo, a
revolução queer não pare de se desenrolar,
transformando em transfóbicos os que expressam
reservas a seu respeito. A negação pode também dizer
respeito à insegurança, reduzida a um sentimento, ao
governo dos juízes, que seria uma ilusão cultivada pelos
populistas, ao alcance dos acordos internacionais, que
deveriam imperativamente ser assinados, mas não
seriam de forma alguma coercitivos, e assim por diante.
Não se deve ver aí uma operação de dissimulação do real
conduzida conscientemente, como o imaginam os que
estão convencidos de um complô: trata-se antes do
movimento natural da ideologia de fechar-se cada vez
mais em si mesma, à medida que rompe seus últimos
laços com o real.
E quando o real aparece, tenaz, obstinado e indelével,
o regime diversitário decreta: não aceitaremos o real!
Mas o real não é meramente um discurso, tampouco uma
frágil construção mental. O real também não é uma
conspiração reacionária urdida por militantes malévolos
que se empenham em fazer a humanidade retroceder
para antes dos tempos benditos da revelação
diversitária. E assim como existe uma história da
cegueira, existe uma história da conscientização a
respeito das realidades, que leva intelectuais que até
ontem eram devotos a dar testemunho, com ardor
militante, daquilo que acabaram de entender, como se
quisessem transmitir a compreensão a respeito do
sortilégio que os enfeitiçou. Perguntam-se como e,
principalmente, por que, durante tanto tempo,
participaram de um empreendimento de mistificação,
quando acreditavam estar empenhados em desmistificar
o poder. Chega a hora em que o feitiço se rompe. Eles já
não querem acreditar nas verdades oficiais do regime
diversitário, que se apresentam sob o signo do rigor
científico. Já não querem ver o mundo como alguns
pretendem forçá-los a vê-lo.
Querem, então, expressá-lo, o que lhes causará
verdadeiros problemas.
Capítulo 2 | 1984 é agora
 
A refundação diversitária do espaço público
 
 
 
 
 
 
Não sei se ele é ridículo, mas sei que é preciso fazê-lo passar por
ridículo. Viste como me conduzo no fórum? Nunca lhe respondo,
nunca o refuto. Sempre afirmo que ele é ridículo. Deve ser
compreendido de uma vez por todas que nada do que ele pensa,
faz ou diz tem importância.
Acílio, a respeito de Catão, em La guerre civile, de Montherlant
 
O que incomoda na domesticação do governo por um jornalismo
episcopal, além da incultura dos que dão ordens e conselhos (o
seminário tinha algo de bom), é a imunidade de um poder sem
contra-poder, protegido de toda punição eleitoral.
Régis Debray
 
Com frequência, depois de um grande revés político
que traumatiza seus partidários e revela a fragilidade de
suas bases populares, o regime diversitário teoriza sua
derrota imaginando que não fez o suficiente para
promover sua visão do bem. Se tivesse sido capaz de
promover melhor as virtudes da diversidade, fazendo
raiar em sua plenitude as boas intenções que a animam,
o comum dos mortais teria compreendido o sentido da
história. Quer-se acreditar que, se a mídia houvesse
realizado melhor seu trabalho pedagógico, o povo não
teria tido o despudor de votar mal. Isso é esquecer
aquela observação já antiga de Philippe Muray, de que
“nunca é apesar dos artistas, ou porque estes não
fizeram o suficiente nos terrenos industriais baldios onde
há tanto tempo gesticulam e exibem sua miséria
arrogante, mas justamente pelo fato de já terem feito
demais que o voto horroroso se multiplica”. [ 35 ] Vamos
traduzir muito concretamente: é provável que não haja
nada melhor do que um concerto antiTrump para gerar
novos trumpistas.
Donald Trump é provavelmente o primeiro a ter
consciência disso, pois soube tirar proveito da hostilidade
que o sistema midiático expressou contra ele,
apresentando-se como o defensor do comum dos
mortais, desprezado pelas elites intelectuais e
midiáticas. [ 36 ] A guerra contra o partido midiático agora
é aberta, [ 37 ] e não consiste numa obra exclusiva do
presidente americano. A crítica ao sistema midiático é,
na realidade, uma revolta contra seu monopólio sobre a
definição da narrativa coletiva – e essa crítica vai além
daquela relativa ao preconceito progressista geralmente
reconhecido nas emissoras e rádios públicas. O que se
denuncia é o viés da mídia, o que se ousa questionar são
aqueles que formulam as perguntas, e mesmo o riso
pode ser recusado ao humorista de plantão que faz seu
editorial em tom de brincadeira. [ 38 ] A revolta é contra o
fato de que a vida pública seja reservada aos que se
movem no “círculo da razão”, a exasperação é contra o
“bem-pensar estabelecido”, [ 39 ] o processo é contra os
“senhores censores”. [ 40 ]
DEMOCRACIA E REDES SOCIAIS

O mal-estar para com a mídia não é de ontem, mas


condições tecnológicas inéditas favorecem a nova
insurreição popular. Embora o sistema midiático oficial
conserve um poder prescritivo e ainda seja capaz de
modelar a representação aceita em geral na sociedade,
já não existe necessariamente o poder de ocultar ou
condenar ao silêncio político, de maneira automática, os
que não veem o mundo a partir da mesma janelinha. No
cerne dessa mutação se encontra a revolução das mídias
sociais, que transformam os modos de acesso ao espaço
público. A fala popular pode ser expressa em seu centro,
sem passar pelo filtro forçosamente orientado dos que se
autoatribuem a missão de construir a opinião
esclarecida. A figura de uma opinião pública ativa, que se
manifesta por si mesma, sem a mediação das pesquisas
encomendadas para modelá-la, é uma figura
relativamente inesperada na democracia. Sob certos
aspectos, veremos aí um retorno da multidão, nem
sempre isenta dos reflexos de linchamento, capaz de se
comportar como uma turba agressiva e buscando, de
modo cíclico, canalizar um tipo de raiva insurrecional sob
a forma de uma indignação exagerada. Em outras
palavras, não se trata de celebrar as mídias sociais em si
mesmas como meios de democratização da fala pública,
sem notar que por vezes elas contribuem para a
degenerescência ou o emprego demagógico dessa fala,
ou sem reconhecer que elas podem ser manipuladas.
Trata-se menos ainda de negar que contribuem para um
embrutecimento da fala pública, que muitos justificam
em nome do espontaneísmo democrático. No entanto, o
que importa para nossa explicação é outro ponto: tornou-
se possível, para o povo, sublevar-se contra a mídia que,
tradicionalmente, tinha a pretensão de falar por ele. O
povo das redes sociais faz com que o sistema midiático
apareça não como um contrapoder, mas como o principal
poder na organização mental do mundo. E mais, no
espírito dos que nelas se envolvem ativamente, as redes
sociais não raro se tornam um contrapoder em relação
ao poder midiático, o que, aliás, leva muitos a quererem
regulá-las, para evitar que desregrem por completo o
funcionamento da democracia oficial. Os próprios
gigantes do mundo digital se mostram favoráveis a essa
regulação. O mundo das redes sociais permite até que
correntes de pensamento dissidentes ou midiaticamente
estigmatizadas sejam conhecidas pelo público sem o
rótulo difamatório que eram obrigadas a carregar. São
novas possibilidades de mobilização que se revelam e
chegam a transformar as condições da ação política.
Com as redes sociais, o espaço público se desacopla do
sistema midiático que antes estendia seu domínio sobre
ele. Concretamente, o sistema midiático oficial perde seu
monopólio na criação das narrativas da coletividade.
Os próprios líderes políticos apostam nesse novo
ambiente tecnológico para transformar sua maneira de
interagir com o eleitorado, e mesmo com a mídia.
Quando se dedicam a isso, são recriminados por
boicotarem a mídia tradicional e se pouparem de seu
filtro crítico, para criar uma relação sem intermediários
com seus simpatizantes e, mais amplamente, com o
povo – falar-se-á, no mínimo, de uma impressão de
proximidade. Tal comunicação direta será reveladora de
uma tentação plebiscitária. No entanto, essa hipótese é
um pouco limitada. Isso porque, por trás dessa adesão à
mídia social se pode ver também uma revolta contra a
deformação sistemática da fala política pelo sistema
midiático. Quando os políticos lidam diretamente com os
jornalistas políticos, veem sua fala ser destroçada. Com
frequência só têm direito a alguns segundos e se
arriscam a perder-se em declarações bombásticas, que
serão instrumentalizadas pelos jornalistas para validar
sua própria grade de análise. Sendo assim, reencontram
nas mídias sociais a possibilidade de certa autonomia da
fala política. Já não querem ficar sob o jugo de uma
narrativa que não lhes é própria, tampouco desempenhar
um papel num cenário que lhes é imposto do exterior e
no qual seu personagem é o do vilão. Querem falar sobre
si mesmos tal como se veem. Observa-se aí não tanto a
mera vontade, da parte deles, de contornar a mídia, mas
sobretudo a de não se submeter a um poder em que já
não confiam. O jornalismo político não se emancipou da
mitologia do Watergate, que não o leva a pôr em cena,
da maneira mais objetiva possível, os grandes desafios
de uma sociedade, mas a tirar sistematicamente do
esconderijo o golpe ou a armação por trás do poder.
Embora essa transparência idealizada não seja
desprovida de virtudes, conduz a uma dessacralização
integral do poder e já não tolera ser contestada. Decerto
os políticos não merecem crédito apenas pelo que dizem.
Não é garantido, porém, que não se possa afirmar o
mesmo em relação à mídia. O ponto essencial, contudo,
é este: os políticos que, ao se inserirem no espaço
público, apostam não apenas no sistema midiático
tradicional, mas também na mídia social, esperam assim
recuperar o controle de sua própria narrativa.
A GUERRA DA NARRATIVA OU O CONFLITO DAS INTERPRETAÇÕES

As correntes políticas midiaticamente desfavorecidas,


ou que se opõem com clareza num aspecto ou outro ao
discurso midiático dominante, terão também a tendência
a se apoiar na internet para propor outra forma de narrar
as informações disponíveis, e acima de tudo para
hierarquizá-las de outra maneira, o que o fenômeno das
newsletters nos Estados Unidos já anunciava nos anos de
1970 e 1980. [ 41 ] A revolta contra a mídia é
acompanhada de uma vontade cada vez mais explícita
de decifrar o tratamento da informação que ela propõe,
revelando seu subtexto ideológico. Nestes últimos anos,
vimos surgir na rede numerosos sites que pretendem
inserir-se no âmbito da informação alternativa e põem
em cena outra narração dos desafios sociais, mais
conforme, segundo eles, à realidade. [ 42 ] Em grande
medida, a maioria deles não produz informação própria,
mas pretende hierarquizar a informação já disponível de
maneira distinta, propondo outra leitura da atualidade a
partir de outra visão de mundo – o que consiste em dizer
que o sistema midiático dominante também tem a sua.
Em outras palavras, eles contestam o monopólio da
narrativa legítima da descrição do real reivindicado pelo
sistema midiático. Não raro são associados à
“fachosfera”, o que é intrigante, pois não sabemos
exatamente por que a crítica à narrativa midiática
dominante deveria ser sintomática de um fascismo mais
ou menos confesso. Embora seja ocioso negar a
dimensão militante desse movimento, não seria judicioso
inseri-lo na história do fascismo, exceto caso se queira
meramente desqualificá-lo do ponto de vista moral, e é
isso o que se faz, aliás, quando uma informação é
rejeitada sob o pretexto de ter sido primeiramente
veiculada ou destacada por esses sites. Na medida em
que a informação não é falsa, o fato de que ela provenha
desses sites não quer dizer nada, exceto que não
suscitou o interesse da grande mídia ou foi tratada por
esta última como um simples fato do cotidiano, sem que
lhe fosse reconhecido o alcance que deveria ter. Sem nos
determos nesses sites, destacaremos, no entanto, um
aspecto: eles fazem da luta pela narrativa midiática o
terreno central da guerra cultural.
Embora, é claro, devamos desconfiar de toda forma de
teoria do complô e criticar a credulidade desconcertante
dos que levam tão longe o ceticismo diante da mídia
dominante que acabam por conceder tolamente sua
confiança a todas as plataformas midiáticas alternativas,
as quais não raro jogam de modo muitas vezes grosseiro
a carta da dissidência, recusamo-nos a assimilar toda
crítica sistêmica da mídia às fabulações de cunho
conspiratório. Aliás, não se poderia fazer da crítica à
mídia uma especialidade de extremistas. Uma brevíssima
história da mídia a partir da segunda metade do século
XX nos mostrará com facilidade a que ponto algumas das
grandes aventuras da imprensa corresponderam antes
de tudo a um desejo de oferecer outra perspectiva sobre
o debate público. Já não se tratava apenas de pedir à
mídia mainstream mais equidade em seu tratamento de
certas questões ou de certas correntes, mas antes de
buscar reestruturar de modo mais global o mainstream
midiático. [ 43 ] É o caso da National Review, nos Estados
Unidos, nos anos 1950, que se tornou o ponto de aliança
e o lugar de definição do movimento conservador então
em formação. Essa revista, que rapidamente encontrou
seu público, foi condenada por muito tempo pelos títulos
da grande imprensa, que só queriam enxergar nela um
panfleto de propaganda. Não lhe perdoavam que
relatasse a atualidade de outra maneira, a partir de
evidências diferentes das do progressismo pós-
rooseveltiano. [ 44 ] Poderíamos dizer o mesmo sobre a
Figaro Magazine da primeira metade dos anos 1980, que
foi ponta de lança de uma contraofensiva ideológica
conservadora que pela primeira vez contestava
seriamente a hegemonia ideológica exercida pela
esquerda desde o fim da Segunda Guerra Mundial, que
havia logrado assimilar os seus oponentes ao
colaboracionismo, ao fascismo ou ao vichyismo. [ 45 ] A
Figaro Magazine também sofreu carga cerrada: não lhe
perdoavam que contestasse abertamente e com tanto
sucesso o consenso progressista, isto é, o poder
intelectual da esquerda. [ 46 ]
O domínio da narrativa midiática se tornou, é provável,
o desafio metapolítico central da vida política
contemporânea. Desse ponto de vista, a presença de
intelectuais ou comentadores que não retomam a
narrativa diversitária dominante e propõem outra
interpretação dos acontecimentos causa um problema
para o novo regime. A multiplicação deles na França, nos
últimos anos, suscitou pânico. [ 47 ] Por um lado, é
necessário, ao menos de tempos em tempos, dar a ilusão
de um sistema midiático pluralista, concedendo a palavra
a oponentes mais ou menos confirmados. Por outro,
estes últimos devem ser mantidos numa situação
estruturalmente minoritária e ter sempre de justificar sua
presença na vida pública, visto que sua presença na
mídia é sempre questionada, sobretudo quando
ultrapassa as linhas traçadas por outros à sua volta. No
entanto, essa divergência tolerada é perigosa, na medida
em que pode suscitar apoios inesperados e multiplicar as
brechas na vida pública, o que poderia contribuir para a
fragilização do regime diversitário. A legitimidade deles
deve ser contestada: serão apresentados como meros
polemistas, habituados à provocação pública, mas com
uma reflexão desesperadamente frágil. Suas palavras
são perscrutadas sem descanso, em busca daquilo que o
sistema midiático denomina “deslize” ou, ao menos, de
algumas palavras controversas que justificariam o fato
de serem alvo da execração pública por alguns dias. Uma
pequena frase arrancada de seu contexto e posta em
circulação na internet é capaz de suscitar uma onda de
indignação que culminará, inevitavelmente, no apelo à
exclusão midiática do contraventor.
Esse é, talvez, o sentido da acusação incessantemente
renovada contra Éric Zemmour, a quem se recrimina não
tanto o fato de ter espírito sistemático, mas de não se
respaldar no sistema certo. Ao inserir-se durante alguns
anos no centro do sistema midiático, ele fez com que a
narrativa oficial derrapasse, formulando a políticos,
intelectuais ou artistas perguntas que em geral não lhes
são feitas. Foi acusado de desencaminhar a França.
Aqueles que lhe confiaram uma tribuna de grande
audiência teriam feito algo grave: teriam fragilizado a
vida pública, autorizando uma fala incendiária no espaço
público. Por meio de seu acesso à mídia audiovisual de
massa, Zemmour teria obtido o poder de desregular a
vida pública, cultivando paixões reprimidas e angústias
negadas que não deveriam ser passíveis de verbalização.
Do próprio interior do sistema midiático, um jornalista
ecoava ideias e teses que normalmente estariam
proscritas: isso só poderia causar um movimento de
pânico. A questão fará correr muita tinta e em numerosas
ocasiões seu lugar na mídia ficará comprometido. Ele não
foi o único a sofrer essa perseguição. Na escola de
Hannah Arendt, o filósofo Alain Finkielkraut pretende
refletir sobre a história em curso desvelando o sentido
dos acontecimentos que surgem na atualidade, o que lhe
é recriminado com base na acusação de conceder um
alcance exagerado a acontecimentos isolados, que o
sistema midiático apresenta como politicamente
insignificantes. É acusado de perder-se em conjeturas
sobre fatos secundários que não mereceriam que nos
detivéssemos neles quando, na realidade, ao esclarecê-
los com sua filosofia política ele revela seu alcance e sua
significação. [ 48 ]
O SOFTWARE DECIFRADOR NO CERNE DO SISTEMA MIDIÁTICO

Assim, o regime diversitário vê em seu monopólio da


narrativa midiática uma condição essencial à sua
preservação. O surgimento de figuras públicas que
atacam diretamente seus fundamentos ideológicos
suscita entre seus partidários uma verdadeira reação de
pânico. Para que estes não se sintam sitiados, o regime
diversitário precisa retomar o controle da conversa
pública e redefini-la exclusivamente a seu favor. Suscita-
se então a pergunta, tão simples quanto complexa: como
reestruturar o espaço público para expulsar os oponentes
– cada vez mais audíveis – do regime diversitário? Como
redefinir os códigos da respeitabilidade política para
garantir que as forças que questionam o regime
diversitário sejam excluídas da conversa pública e
continuem marcadas com o selo da inconveniência? Para
impedir que a situação degenere e que a contranarrativa
centrada na crítica ao multiculturalismo alcance
legitimidade midiática, a intelligentsia pluralista se
entregará a uma nova teorização do espaço público, a
fim de redefinir as condições de acesso a ele. Inicia-se
assim uma reconquista do espaço público pelo regime
diversitário, em sua busca de recuperar o direito de
decretar o que pode ou não pode aparecer na narrativa
midiática, e o que pode ser dito pelos que nela se
envolvem. Seria preciso “recuperar a razão”, [ 49 ]
pontificam os representantes da intelligentsia diversitária
mais afeitos ao tom sentencioso. Que fazer para que a
maré populista reflua? Como fazer com que os que a
alimentam se calem? Como esfriar as brasas identitárias?
Foi o que vimos no Quebec nas consequências da crise
dos acordos razoáveis de 2006 a 2008, que marcou a
rejeição por boa parte da população quebequense da
ideologia multiculturalista. Gérard Bouchard, um dos
principais teóricos do multiculturalismo à moda
quebequense (que ele denomina, juntamente com
outros, interculturalismo), afirmará assim que, num
contexto de crise identitária, a conversa pública só era
cogitável se respeitasse as três condições que ele
estabelecia para o debate, isto é, que a filosofia política
realçada fosse “a) conforme às exigências da democracia
e do direito, b) adaptada aos desafios e às exigências do
nosso tempo, c) capaz de articular com eficácia a dupla
obrigação de garantir o futuro da francofonia
quebequense e respeitar a diversidade”. [ 50 ] Em outras
palavras, toda proposta política que não se inserisse
primeiramente e antes de tudo nos parâmetros da
filosofia diversitária seria, a partir daí, inaceitável. Muitos
depois dele propugnaram que o espaço público deixasse
de ser aberto aos que não fizessem do reconhecimento
positivo da diversidade o princípio de base de seu quadro
de análise e recusaram-se a considerar como
interlocutores legítimos os que se opunham à ideologia
multiculturalista. Não se poderia discutir seriamente com
os que não iniciam suas intervenções públicas com uma
oração ao pluralismo identitário.
A construção da narrativa midiática nada tem,
portanto, de aleatório. Para quem busca compreender o
funcionamento da conversa democrática, é importante
ver segundo quais critérios e qual lógica os
acontecimentos são situados no centro do espaço
público, e por que alguns deles são tratados como fatos
insignificantes. Como garantir, por exemplo, diante das
tensões causadas pela imigração maciça, que a narrativa
midiática destaque a necessária luta contra o racismo e a
xenofobia das populações nativas, e não o
questionamento desses movimentos migratórios e a
necessidade de restaurar as fronteiras para contê-los?
Como garantir que a difícil implantação do Islã nas
sociedades ocidentais seja explicada pela islamofobia
que corroeria estas últimas, e não pela vontade
hegemônica do islamismo de conquistar o espaço público
para nele impor seus próprios códigos? Como evitar que
se questione a difícil coexistência de culturas tão
diferentes entre si num mesmo país? Como garantir,
diante da multiplicação das reivindicações associadas à
teoria de gênero, que aí se veja uma abertura necessária
a minorias esquecidas durante muito tempo, e não o
resultado de uma espécie de histerização das
reivindicações identitárias que acarreta uma
desconstrução dos fundamentos antropológicos da
humanidade? O que distingue um fato político relevante
de uma simples ocorrência do cotidiano? Quem tem o
poder de apresentar um fato do cotidiano como um fato
político, e um fato político como um fato do cotidiano?
O noticiário dos últimos anos confere um rosto
concreto a tais indagações. Lembramo-nos da maneira
como a mídia cobriu os acontecimentos da noite de São
Silvestre em Colônia, em janeiro de 2016, quando se
assistiu a massivas agressões sexuais contra mulheres
por parte de migrantes e homens oriundos da
diversidade. Que pensar do tratamento dado pela mídia
ao escândalo de Telford, na Grã-Bretanha, em abril de
2018, que pôs em cena a escravidão sexual de jovens
britânicas por gangues paquistanesas? Seria possível
dizer o mesmo sobre muitos “fatos do cotidiano” que
revelam, no dia a dia, a decomposição da convivência
diversitária. E quando se torna necessário reconhecer um
perigo ligado à sociedade multicultural, como no caso do
descolonialismo ou do islamismo, haverá igualmente
uma pressa em denunciar a tentação identitária que
corroeria a sociedade ocidental a partir de dentro, o que
estabelece uma equivalência que pode rapidamente
tornar-se caricata. [ 51 ] Da mesma maneira, a denúncia
do islamismo será acompanhada de um apelo à
vigilância contra a islamofobia. Alguns, por fim,
inverterão a lógica da denúncia, preocupando-se
principalmente com o fato de que os atentados
islamistas comportam o risco de fazer o jogo dos partidos
populistas, que se alimentariam do medo do outro. O
antissemitismo, o sexismo ou a homofobia serão
condenados quando associados às sociedades ocidentais,
mas relativizados quando associados a uma civilização
estrangeira. No entanto, um acontecimento suscetível de
dar novo ímpeto à narrativa diversitária será revestido de
uma significação política e mobilizará em grau máximo a
atenção da mídia. Os aspectos positivos da diversidade
serão sublinhados, os aspectos negativos, silenciados.
Segundo a mesma mentalidade, o pudor diante da
representação do horror varia de acordo com seu
potencial para comover nossa sensibilidade humanitária
ou nos preocupar diante do choque das culturas e das
civilizações que se desenrola sob os nossos olhos. Assim,
a foto comovente do pequeno Aylan Kurdi, em setembro
de 2015, foi exposta em toda parte para convencer os
ocidentais a consentir nas ondas migratórias vindouras.
Ao contrário, no dia seguinte aos atentados de
Barcelona, em agosto de 2017, muitos julgaram
indecente difundir as fotos das vítimas do islamismo.
Assim se compreende que tais fotos são julgadas em
função do efeito ideológico e psicológico que surtirão. Se
comovem, serão difundidas. Se impelem à revolta contra
o multiculturalismo, serão censuradas – a simples
menção do real será então assimilada a um
empreendimento de estigmatização. É preciso neutralizar
sua significação e impedir sua politização. No cerne do
sistema midiático existe um software decifrador que
serve para politizar as notícias capazes de alimentar o
desdobramento da ideologia diversitária e para
despolitizar e insignificantizar as que poderiam entravá-
lo.
É nesse contexto que precisamos compreender, por
exemplo, os inúmeros debates sobre a pós-verdade: o
universo da pós-verdade seria aquele em que se
moveriam os adversários do regime diversitário, que
retransmitiriam fake news. No entanto, esse termo,
terrivelmente impreciso, não serve para designar apenas
as falsas notícias, fabricadas de maneira consciente, que
visam a perturbar a opinião pública, ou rumores
deformadores, mas também interpretações divergentes
do real, como se ele aparecesse sob um único ângulo e
não fosse portador de vários sentidos possíveis. Em
outras palavras, “um fake diz respeito com frequência ao
sentido dos fatos […]”. [ 52 ] A figura do decodificador
desempenha um papel central na restauração do
monopólio midiático sobre a narrativa coletiva.
Fundamentalmente, a multiplicação dos decodificadores
e outros fact checkers visa não tanto a garantir uma
verificação da qualidade da informação, mas sobretudo a
reivindicar para si um monopólio da credibilidade
jornalística e desqualificar as fontes de informações que
não provêm do mainstream midiático. Trata-se de
instituir-se como única fonte legítima de informação, no
próprio momento em que a credibilidade do discurso
midiático fica comprometida. Ao termo da lógica do fact
checking, chega-se, sem necessariamente haver
desejado isso, à negação do pluralismo interpretativo. O
conceito de fake news é usado de modo interesseiro
pelos poderes públicos que julgam assim combater o
regime da pós-verdade.
Quando Emmanuel Macron conclama ao
estabelecimento de uma lei contra as fake news, deve-se
ver aí não tanto uma vontade de purificar o espaço
público das lendas que poderiam deformar a deliberação
pública, mas sobretudo uma vontade de afirmar seu
pleno domínio sobre o espaço público. [ 53 ] As
autoridades políticas parecem movidas pela vontade
explícita de criar o que se poderia chamar de um real
oficialmente atestado ou rotulado. Em tais
circunstâncias, trata-se não tanto de banir as balelas,
mas sobretudo de dar ao Estado o meio de controlar a
narrativa pública e, consequentemente, de desqualificar
as narrativas alternativas que apresentam, a respeito da
sociedade, um ponto de vista que não condiz com o do
poder. Veremos assim o regime diversitário buscar a
retomada política do controle da opinião, e isso de
maneira explícita, e reconstruir sua legitimidade ao
reivindicar seu acesso privilegiado à verdade, o que não
deixa de evocar o Miniver – o ministério da Verdade – de
1984. Na primavera de 2018, soube-se que a cidade de
Montreal pretendia se dotar de uma agência destinada à
luta contra os falsos rumores que circulavam na
metrópole a respeito da diversidade e da imigração. Esse
programa se inseria no âmbito da estratégia
antirrumores lançada pelo Conselho da Europa, “cujo
objetivo é sensibilizar para a importância de lutar contra
os preconceitos e os rumores ligados à diversidade que
entravam as trocas positivas e a coesão social e
favorecem atitudes discriminatórias e racistas”. [ 54 ] O
objetivo era explícito: estando o Quebec, por sua vez,
sob o impacto da imigração ilegal, era preciso evitar que
se difundisse entre a população um sentimento
exageradamente crítico sobre isso. Tratava-se, portanto,
naquelas circunstâncias, de formar agentes chamados a
vigiar as conversas dos cidadãos e, se necessário, corrigi-
las. [ 55 ] Da mesma maneira, a cidade pretendia formar
diferentes líderes de opinião, que podiam ser
empresários, colunistas de jornal ou agentes dos serviços
públicos, para que participassem desse esforço de
pedagogia diversitária por ocasião de seu uso da palavra
pública. Um dos desafios, no âmbito dessa operação,
consistia especialmente em desconstruir o “mito da
imigração ilegal” – devendo os cortejos de clandestinos
que atravessam ilegalmente a fronteira ser considerados,
no máximo, como migrantes irregulares que reivindicam
a condição de refugiados. A mídia, em sua grande
maioria, retomou essa argumentação, como se
acrescentasse uma informação técnica à sua análise: a
imigração ilegal não existiria, e quem se obstinasse em
sustentar o contrário estaria difundindo uma notícia
falsa, [ 56 ] como afirmou o Conselho de Imprensa, que
veio em socorro da censura.
DEMONOLOGIA, DESLIZES E ROTULAGEM

Existe uma demonologia própria do politicamente


correto. Certos rituais midiáticos são do âmbito do
exorcismo, para afugentar o diabo da comunidade
política – o diabo que assume os traços da intolerância.
Para acabar de vez com certos políticos ou intelectuais
no âmbito público e marcá-los para sempre com o selo
da inconveniência, será feita uma associação deles com
o odor do diabo: eles serão decretados sulfurosos, ou
ainda, chamados de nauseabundos – e naturalmente, a
primeira coisa a fazer diante de um indivíduo de odores
pestilentos é manter-se à distância. [ 57 ] Basta farejá-lo,
como a um miserável que vem empestear o espaço
público quando não deveria estar ali. É o registro dos
argumentos olfativos. A execução midiática é um
tratamento geralmente reservado às personalidades que
preocupam o regime diversitário. [ 58 ] O diabo da
intolerância assombraria a comunidade política, e é
preciso saber combatê-lo e exorcizar os que ele
consegue possuir. O adversário político não assume o
rosto de um oponente legítimo: representa antes um
retorno ao passado e anunciaria uma regressão histórica
deplorável. Isso porque, de modo irreprimível, o homem
seria tentado por uma recaída no mundo pretérito, como
se, ao que parece, fosse incapaz de não ceder aos
demônios da nostalgia, o que implica justamente uma
vigilância constante da conversa pública pelos guardiães
da revolução diversitária. O homem só se realiza agindo
de forma violenta contra si mesmo, recalcando sua parte
mais sombria, que sempre pode voltar à superfície, como
se o homem novo, sem preconceitos nem pertencimento,
mais se assemelhasse a uma ficção ideológica mantida
de maneira autoritária por um poder que exerce sobre o
real uma pressão máxima, para impedi-lo de ultrapassar
as categorias para as quais foi designado. É o paradoxo
do progressismo: ele crê no sentido da história e não
imagina que o homem possa realizar-se de outra maneira
senão seguindo suas prescrições, mas não para de
recear um retorno ao passado, como se soubesse que os
sentimentos que reprime podem ser contidos, porém
jamais aniquilados, como se soubesse também que a
censura ao real é apenas provisória, pois este último
sempre ameaça retomar seus direitos de uma forma ou
de outra.
O dispositivo politicamente correto no centro do
sistema midiático deve verificar a conformidade
ideológica dos que passam diante dele, assegurando-se
de que aderem aos dogmas do regime diversitário. Inflige
assim um teste aos que entram no espaço público, a fim
de sondar seus pensamentos e segundas intenções. É
preciso verificar se o recém-chegado ao espaço público
derroga fundamentalmente a ortodoxia diversitária, de
uma maneira ou de outra. Também se verificará se ele é
portador de convicções suscetíveis de transformá-lo em
inimigo público. Ainda que esteja disposto a deixar uma
ideia de lado, classificando-a no âmbito das convicções
pessoais e não no dos compromissos políticos, o sistema
midiático terá a tentação, e até o reflexo, de defini-lo
exclusivamente por meio disso, acusando-o ao mesmo
tempo de ser obcecado por tal questão. É porque nele foi
identificado o vírus da dissidência. O politicamente
correto repousa numa cultura da vigilância generalizada:
quem entra em contradição com a ortodoxia diversitária
é denunciado por grupelhos que se comportam como
profissionais da indignação – e trata-se aí de uma
profissão rentável. O poder de um lobby identitário reside
justamente em sua capacidade de criar um escândalo,
obrigando a todos a se indignar junto com ele a fim de
manter a sociedade vigilante contra o eterno retorno do
mundo de ontem, ainda que sob a forma aparentemente
neutralizada da nostalgia. Ele nunca baixa a guarda,
jamais quer baixá-la – e é também representado pela
figura do humorista midiático, cuja função é “cafonizar”
aqueles em relação aos quais a demonização não foi
suficiente. O universo das mídias sociais se presta bem a
essa vigilância das segundas intenções, que se justifica
em nome de uma busca de transparência cada dia mais
exigente. As redes sociais são esquadrinhadas, na busca
de um comentário passível de revelar a verdadeira
natureza de uma personalidade pública. Aquilo que em
outros tempos seria do âmbito de uma conversa de bar é
retrospectivamente considerado um pronunciamento
público, que pode servir para condenar o imprudente de
ontem ou de antes de ontem. É a cultura da captura da
tela: vigia-se o outro em busca de um deslize que poderá
então ser transformado em buzz. Assiste-se ao
desenvolvimento de métodos policialescos que acabam
por corromper o espírito público, normalizando uma
cultura inquisitorial. Há menos debate entre campos
adversários, e mais procura, movida pela má fé, do tweet
que poderá ser apontado com o dedo.
Quem formula as perguntas comanda
antecipadamente as respostas. A cena é quase
ritualística, e é não só exasperante, como cansativa: um
político, de passagem num programa de assuntos
públicos, será questionado sobre o tabu do momento. Por
exemplo, pergunta-se a ele se adere à tese do racismo
sistêmico. Caso ele se oponha a ela, discreta ou
frontalmente, é bem possível que se veja no centro do
noticiário, sob um título do tipo “Senhor X contesta a
existência do racismo sistêmico”, o que bastará para
transformá-lo em personalidade “controvertida”. Da
mesma maneira, se demonstra algumas reservas quanto
à teoria de gênero, ao zombar de certas inovações
lexicais, existem fortes chances de que um jornalista
tome a iniciativa de ir consultar associações militantes,
que se encarregarão de acusá-lo de transfobia, uma
acusação que depois será difundida na esfera pública e
da qual ele terá de se defender. Na mesma linha, se ele
ousa criticar a imigração maciça, será recriminado por se
aventurar no terreno da extrema-direita, o que então
justificará um artigo sobre as aproximações possíveis
entre a direita republicana e a direita populista. Ser-lhe-á
perguntado se ele se sente próximo das forças
populistas, ou mais ainda, ser-lhe-á indagado por que os
populistas se sentem próximos dele. Trata-se, na
realidade, de situá-lo na escala da conveniência ou, mais
exatamente, da inconveniência.
Uma formulação reaparece ciclicamente para designar
à vendeta pública os que se distanciam de sua ortodoxia:
estes são acusados de haver cometido um deslize, um
delito que consiste em distanciar-se das balizas estreitas
no interior das quais a conversação pública deve manter-
se. A formulação merece atenção mais demorada. Revela
que o debate público é uma estrada estreita, bem
balizada e, além disso, bem patrulhada por agentes de
trânsito chamados a distribuir multas ideológicas aos que
dela se distanciam. O deslize é um escândalo: a pessoa
já não se insere nos termos do pensamento correto e
torna-se assim rapidamente inaceitável. Deixa de ser
mencionada na vida pública, à maneira de um estraga-
prazeres. O mesmo vale para deriva, que revela a
existência de uma corrente central da qual ninguém deve
se afastar. Existe em política o que se poderia chamar de
sociologia da rotulagem. O jornalista, que não raro é um
militante que nem sequer se dá conta disso, não se
interessa pelo pensamento daquele a quem conspurca,
mas busca rotulá-lo de maneira tal que sua palavra se
torne inaudível ou ininteligível – não se trata de explicar
sua racionalidade própria, mas de mostrar em que
aspecto ela não é moralmente tolerável. Um rótulo
colado a um político pode encerrá-lo durante muito
tempo num papel do qual ele terá de se defender e que
codificará sistematicamente todas as suas manifestações
verbais. Ele é condenado a definir-se num espaço
reduzido. Já não poderá se dirigir a muita gente, exceto
aos que, por uma razão ou por outra, se sentem
solidários com homens de má reputação. Talvez seja até
rotulado de “radical” ou “extremista”, sem que se
especifique necessariamente em relação a qual norma
ele o seria. Quando “o rotulado” se encontrar na grande
mídia, passará grande parte de seu tempo tentando
descolar-se do rótulo que o jornalista militante lhe terá
colado. Pode-se também falar de um guizo no pescoço:
quem chega com ele ao espaço público anuncia aos
outros que estão em presença de um indivíduo suspeito.
Rótulos não faltam para marcar publicamente os
contraventores. Um editorialista que manifeste
demasiado abertamente seu desacordo com o consenso
diversitário será decretado polemista, e logo corre o risco
de ser julgado controvertido, o que dissuadirá a maior
parte do tempo quem quer que zele minimamente por
sua reputação de associar-se a ele ou reivindicar seu
alinhamento com ele. O polemista seria um espírito que
só existe por sua capacidade de criar controvérsia e que
buscaria, por si só, o máximo de visibilidade midiática – o
que relativiza, convenhamos, a necessidade de ter
interesse por suas palavras. [ 59 ] O polemista busca a
celeuma pela celeuma: extrai seu mel da chicana que
semeia. Também tem boas chances de ser julgado
controvertido, sem que se diga diante de quem? Nisso se
verá uma advertência contra os que quisessem levá-lo a
sério: ao associar-se a ele, arriscam-se a ser
contaminados por sua má reputação.
A democracia contemporânea não é de forma alguma
alheia à figura do pária e aos mecanismos clássicos do
ostracismo, que visam degradar simbolicamente um
cidadão que exibe sua dissidência ou sua oposição à
ideologia oficial. Não hesita em transformar em
proscritos os que resistem à sua refundação diversitária e
até em declará-los inimigos públicos, isso quando eles
não se tornam pura e simplesmente inimigos da
humanidade. Embora não possam ser destituídos de seus
direitos cívicos, podem ao menos ser excluídos, a maior
parte do tempo, do perímetro da respeitabilidade
midiática. [ 60 ] Já não é raro ouvir os guardiães da
revolução diversitária conclamarem explicitamente que
seus oponentes declarados sejam expulsos da vida
pública, e isso em nome da luta contra o ódio, que eles
acreditam combater sem jamais se acreditarem afetados
por ele –, pois o “discurso de ódio” como categoria
midiática vem com frequência designar todo discurso
não consensual e afirmativo sobre as questões
identitárias e societais. Os oponentes são atados ao
pelourinho à maneira de agentes tóxicos que perturbam
a ordem social pelo simples fato de não ecoarem a ode à
diversidade. [ 61 ] Seria até necessário transformá-los em
exemplo de punição pública, expulsando-os dos
programas públicos, talvez, ou, melhor ainda, proibindo-
os de aparecer nas emissoras de rádio e televisão. O
sistema midiático pode condenar um homem à morte
social por uma palavra a mais e, sobretudo, por uma
palavra antiquada, que perdeu sua cota de popularidade.
Basta que um político um pouco desajeitado, vindo de
sua região afastada, zombe da enxurrada de fobias que
deságua na vida pública para que seja crucificado. Terá
de se desculpar por muito tempo: aquilo que ainda
provoca boas risadas em sua cidadezinha interiorana não
passará no teste da vigilância midiática. Ele não sabia
disso, mas saberá: existem assuntos dos quais não se ri
e grupos que é melhor adular em quaisquer
circunstâncias, caso contrário farão com que você pague
por isso. Existem certos indivíduos, bem como certas
categorias de pessoas, sobre as quais já não se falará em
público, ou então só se falará sobre elas para advertir
contra elas. Algumas ideias só serão mencionadas para
serem conspurcadas. Uma vez expulso da vida pública
legítima, o excluído, caso espere ser reintegrado – o que
não é garantido –, deverá submeter-se a um ritual de
penitência humilhante para que se entenda que ele
compreendeu seus erros e não os cometerá de novo. Ele
serve de exemplo, e os que porventura ficassem
tentados pela dissidência logo captam a mensagem.
O politicamente correto é reconhecível por sua relação
com a linguagem. Sabemos disso desde Orwell: quem
quer controlar o pensamento controla primeiro as
palavras para expressá-lo. É próprio da novilíngua criar
uma linguagem que encolhe o espaço mental e,
consequentemente, o espaço das representações e as
possibilidades de desdobramento da imaginação. Quando
a língua se transforma em novilíngua, certas zonas da
realidade se tornam inacessíveis. As palavras para
apreendê-la já não estão disponíveis ou são decretadas
radioativas. Pior: só se pode fazer referência a elas à
maneira de um escândalo moral. Certos pensamentos
também se tornam informuláveis. A novilíngua se
apresenta como um empreendimento de manipulação –
em grande escala – das consciências e das
representações da realidade. Como notava Orwell, se o
totalitarismo busca controlar integralmente a linguagem,
é porque pretende controlar as próprias condições do
pensamento. Quando se proscrevem certas palavras, é a
possibilidade de pensar que é condenada a encolher.
Syme, um personagem de 1984, encarregado do
Dicionário da novilíngua, expressa-se assim: “Você não
vê que o verdadeiro objetivo da novilíngua é restringir os
limites do pensamento? No fim, tornaremos literalmente
impossível o crime pelo pensamento, pois já não haverá
palavras para expressá-lo”. [ 62 ] Quanto o Partido se
orgulha de desbastar o dicionário a cada ano, transforma
em motivo de orgulho o fato de controlar cada vez
melhor a consciência coletiva. Poderíamos dizer que
ganha sua luta contra a polissemia das palavras e fixa-as
num sentido do qual já não é permitido desprendê-las.
“Todos os conceitos necessários serão expressos, cada
qual, precisamente, por uma única palavra, cujo sentido
será rigorosamente delimitado. Todas as significações
subsidiárias serão suprimidas ou esquecidas. […] No
entanto, o processo há de perpetuar-se até bem depois
da minha e da sua morte.” [ 63 ] E Syme termina assim
sua explicação: “a Revolução estará completa quando a
linguagem for perfeita”. [ 64 ]
Ocorre o mesmo com o progressismo contemporâneo:
ele proscreve certas palavras, que são decretadas
antiquadas ou existem apenas por meio de sua denúncia
e caricatura. [ 65 ] Como bem observou Guy Hermet, “a
função de higiene verbal da novilíngua consiste
igualmente em reduzir o vocabulário disponível ou
aprovado, em asfixiar as palavras cujo uso se tornou
contraindicado, de tal forma que o léxico subsistente
passe a autorizar apenas a expressão de ideias e
sentimentos conformes ao sistema de valores julgado
desejável”. [ 66 ] Conforme Hermet assinalou, trata-se “de
impedir que o imprevisto seja expresso […] encobrindo
com eufemismos todos os termos que são ou venham a
ser litigiosos. As palavras novas devem matar as antigas,
a fim de gerar ‘cidadãos’ prisioneiros de um vocabulário
sem elo com o passado, semelhante a uma espécie de
CD virgem em que só resta inserir novos preconceitos,
em geral inversos aos do passado”. [ 67 ] São muitos os
exemplos de depuração do vocabulário atualmente.
Quem não faz um uso apropriado do novo léxico
diversitário se apresenta, mesmo a contragosto, como
um dissidente. É uma perseguição contínua que se inicia
e, sobretudo, uma perseguição da linguagem e das
palavras em excesso. Já não devemos ser capazes de
pensar contra o regime diversitário – é a própria
possibilidade de estar em desacordo com ele que se trata
de erradicar gradualmente. O controle da linguagem
permite o rastreamento dos desacordos implícitos,
explícitos, e mesmo os traços do antigo mundo dentro do
novo – traços estes que deverão ser apagados a fim de
purificar a sociedade. Ferrero havia adivinhado isso num
outro contexto: “Esse é o destino de todos os governos
revolucionários: quanto mais estendem seu poder e se
aproximam do absolutismo totalitário, mais se
preocupam com as oposições escondidas que percebem
no fundo da opinião”. [ 68 ]
Palavras desaparecem, mas outras aparecem também.
“A influência das palavras é insidiosa”, escreve Patrick
Moreau. “Estas se inserem modestamente no discurso
social, como quem não quer nada, com certa
descontração, isto é, sem se manifestarem diretamente
como ideológicas ou como manipuladoras.” Moreau
escreve também: “O léxico se torna um campo de
batalha em que apenas os atiradores emboscados
(especialistas em comunicação, publicitários, think tanks
e grupos de pressão) têm consciência de participarem de
um combate, ao passo que as pessoas visadas (que eu
chamaria de falantes ingênuos) nem chegam a perceber
os projéteis zunindo em suas orelhas antes de serem
tocados por eles e de se porem, por sua vez, a empregá-
los”. [ 69 ] A título de exemplo, basta pensar em palavras
ou expressões como “racismo sistêmico”, “cultura do
estupro”, “queer”, “fluidez identitária”, “racizados”,
“afrodescendente”, “apropriação cultural”, “transfobia”,
“populismo”, “extrema-direita” ou em todos os termos
que acabam em fobia: por intermédio deles, é uma
ideologia que se desdobra, e conforme os empregamos,
deixamos de lado ou criticamos, não seremos acolhidos
da mesma maneira no debate público. Quando surge um
termo novo, de forte conotação ideológica, não raro
aparece entre aspas. Quando delas se liberta, é porque
acaba de ser decretada sua integração ao vocabulário
corrente. Tais aspas desaparecem cada vez mais rápido,
como se a dinâmica de normalização midiática da
novilíngua se acelerasse.
O APELO À CENSURA ESTATAL

No entanto, o politicamente correto pode revelar-se


insuficiente para conter a contestação do regime
diversitário. Se a desqualificação midiática e política da
dissidência conservadora já não bastar, se a
demonização não engrenar e revelar-se incapaz de
eliminar os adversários do regime diversitário e uma
parcela significativa do eleitorado se mostrar indiferente
ao fato de que um candidato seja ou não julgado
inaceitável pelo regime diversitário, torna-se possível
passar à repressão formal do desacordo.
Foi nessa perspectiva que em 2008, no momento da
crise dos acordos razoáveis no Quebec, um relatório
especializado visando a demonstrar que o
questionamento do multiculturalismo era essencialmente
um fenômeno midiático propôs que se concedesse ao
Conselho de Imprensa o direito de suspender a
publicação de jornais ou revistas que veiculassem uma
representação negativa da diversidade. [ 70 ] “Quanto a
questões que afetem diretamente a ‘coesão social’ e a
dignidade das pessoas, punições muito mais severas de
certos veículos de informação com coberturas negativas
ou de certos jornalistas, como proibição de publicar ou de
difundir durante certo número de dias, serão
consideradas ou reforçadas pelo Conselho de Imprensa
ou o CRTC, cujo poder de regulamentação é muito
maior.” [ 71 ] Sem ir tão longe, o relatório Bouchard-Taylor
– relatório oficial de uma comissão de pesquisa
encarregada de compreender o questionamento do
multiculturalismo – adotará essa perspectiva,
assinalando que “os veículos de informação deverão
aprender a se disciplinar”, sem nos dizer qual seria o
papel do prefeito de disciplina, caso os veículos não
conseguissem inibir-se o suficiente. [ 72 ] Essa disciplina
será necessária para representar adequadamente as
exigências ideológicas do multiculturalismo: “insistamos
particularmente [no trabalho] das mídias, indispensável
para difundir uma informação correta ao conjunto da
população, para desfazer falsas percepções e prevenir a
formação dos estereótipos”. [ 73 ] A mídia assumirá
explicitamente uma função ideológica para o novo
regime diversitário, que receia ver transparecerem no
debate público acontecimentos que, à maneira de bolas
de neve, pudessem provocar uma crise política. A parcela
da população que participa da insurreição populista já
não pode ter acesso a um discurso que excitaria paixões
ruins, que uma boa educação para a diversidade logo
deverá inibir. Se certas ideias forem proferidas nas horas
de grande escuta ou difundidas pelos grandes jornais,
comportam o risco de serem legitimadas e de
confirmarem a sensação dos que sentem que o regime
se decompõe, mas não têm palavras para dizê-lo ou
teoria para explicá-lo. Bouchard-Taylor não hesita, aliás,
em se aventurar no caminho da censura, propondo a
inserção na Carta dos Direitos e das Liberdades da
proibição do apelo à discriminação. Essa proposta
anunciava, na prática, uma significativa regressão da
liberdade de expressão, quando se compreende que, do
ponto de vista do regime diversitário, toda defesa das
instituições sociais tradicionais, da nação ou mesmo do
universalismo liberal pode ser compreendida como um
apelo à discriminação. Aliás, as ideias têm seu próprio
ritmo, mas progridem, e em 2015, o governo do Quebec,
então dirigido por Philippe Couillard, convencido das
virtudes do multiculturalismo canadense, retomou a
proposta veiculada pela Comissão dos Direitos da Pessoa
e da Juventude, em nome da luta contra os “discursos de
ódio”, que permitia que os indivíduos que se sentissem
insultados em suas convicções identitárias processassem
seus insultantes – a Comissão se propunha, depois,
conduzir a investigação, distribuir multas e até censurar
as palavras litigiosas. Propunha, por fim, o
estabelecimento de uma lista de contraventores
públicos. Embora o projeto de lei tenha sido retirado após
uma oposição popular intensa, não deixa de revelar o
estado de espírito do regime diversitário diante dos que
vê como dissidentes.
O chamado a uma forma de censura política da crítica
ao multiculturalismo passou a ser claramente assumido.
A título de exemplo, o pacto de Marrakesh, que fez muito
barulho por ocasião de sua assinatura em dezembro de
2018, formulava explicitamente essa ambição de um
domínio cada vez mais forçado dos parâmetros do
debate público, convidando os governos a parar de
“alocar verbas públicas ou fornecer apoio material aos
veículos de comunicação que propaguem
sistematicamente a intolerância, a xenofobia, o racismo e
outras formas de discriminação contra os imigrantes, em
pleno respeito à liberdade de imprensa”. O fato de que
esse pacto não seja impositivo não muda em nada o
chamado que ele lança explicitamente e a ambição que
ele revela. Quando se sabe que, do ponto de vista dos
teóricos do multiculturalismo, basta em geral que alguém
critique sua doutrina para que se torne culpado de
racismo ou xenofobia, compreende-se o alcance dessa
proposta contida no Pacto. Quem fixará os critérios que
distinguem um discurso tolerante de um discurso
intolerante? Que definição de racismo será selecionada –
sobretudo quando se sabe que, do ponto de vista dos
teóricos do racismo sistemático, basta contestar a
existência do sistema que eles acreditam descrever para
se tornar seu cúmplice? Será que bastará sustentar que
os que são cidadãos e os que não o são não têm os
mesmos direitos e não devem tê-los para ser acusado de
advogar uma forma de discriminação para com os
imigrantes? Desviar a luta contra o racismo para
transformá-la em luta contra o sentimento nacional é
decerto a estratégia ideológica mais conhecida do
multiculturalismo. Com o tempo, trata-se de privar a
oposição do acesso ao espaço público, sob pretexto de
lutar contra a intolerância e outros sentimentos
evidentemente condenáveis. [ 74 ]
Será que o ideal não seria, no fim das contas, privar os
dissidentes de seus direitos cívicos, destituí-los ao menos
parcialmente de sua cidadania, para excluí-los da
comunidade política? Foi isso, ao que parece, o que a
França considerou fazer, em 2017, quando alguns
tentaram tornar inelegíveis os candidatos condenados
por “racismo, antissemitismo, negacionismo, homofobia,
incitação ao terrorismo, apologia de crime contra a
humanidade e toda forma de discriminação”, no âmbito
da lei sobre a moralização da vida política – uma
proposta que, por sua vez, quando estamos
minimamente conscientes da definição desses termos na
vida política contemporânea e do uso que as associações
militantes fazem deles, também anunciava uma
criminalização do conservadorismo. [ 75 ] Embora a
proposta tenha sido rejeitada pelo Conselho
Constitucional, não deixa de dar uma boa ideia do estado
de espírito do regime diversitário que, sentindo-se
ameaçado, passa a tratar seus adversários como
inimigos internos contra os quais tudo será permitido.
Capítulo 3 | Aquilo que a esquerda chama de
direita
 
 
 
 
 
 
 
Canalha despudorado, sacana e orgulhoso de sê-lo: assim me
parecia o homem de direita.
Alain Finkielkraut
 
Quando percorro meus textos anteriores a 1968, dou-me conta de
que são cravejados daquelas placas de sinalização que, ao lado de
posições solidamente fundamentadas que mantenho até hoje, têm
a única e exclusiva função de proclamar aos transeuntes: “Oi! Sou
de esquerda! Sou de esquerda!”.
Jean-François Revel
 
A direita é objeto da esquerda-ventríloquo, por assim dizer.
Jean-François Revel
 
No livro En terrain miné [Em terreno minado], uma obra
epistolar apaixonante publicada em 2017, os filósofos
Alain Finkielkraut e Élisabeth de Fontenay empenharam-
se em compreender a divergência política que se
agravava entre eles, a ponto de comprometer uma
antiga e preciosa amizade. Tratava-se de explicitar as
fontes de um mal-estar crescente, que embaralhava as
divisões do passado, quando esses dois intelectuais se
sentiam do mesmo lado da barricada, algo que já não
acontecia então. E não é preciso se aventurar muito
longe na obra para entender a natureza do desacordo
entre eles, cada vez mais violento de uma carta a outra:
de maneira muito clara, e não destituída de veemência,
Fontenay recrimina Finkielkraut por já não ser de
esquerda ou, pior ainda, talvez, por não tentar sê-lo e
mostrar-se indiferente aos códigos de respeitabilidade
que a esquerda prescreve. Nas palavras de Fontenay,
“não hesito em confessar a você que o fato de a
esquerda havê-lo rejeitado me assusta”, às quais logo
acrescenta: “você contraria a confiança que depositei em
você […] na medida em que se desvia para uma direita
dura, ainda que, apesar dos excessos de sua parte,
algumas pessoas de esquerda continuem a escutá-lo, e
até o aprovem”. [ 76 ] Pior ainda, Fontenay se exasperava
com a proximidade entre Finkielkraut e a “direita
católica” [ 77 ] e com sua falta de energia para denunciar
“a extrema-direita”, que desejava usar suas teses em
proveito próprio. E não fazer o jogo da extrema-direita
tornou-se, ao que parece, o horizonte insuperável da
responsabilidade intelectual. Finkielkraut, por sua vez,
reconhece que se desligou desse sistema de
representação da vida intelectual e política: “aí está,
provavelmente, nossa diferença essencial: haja o que
houver, você permanece fiel à esquerda, ao passo que
eu, tendo feito a escolha do não pertencimento, recuso-
me obstinadamente a prestar contas a ela”. [ 78 ]
Se o livro logo se torna exasperante, é porque toma a
forma de um processo, algo com que Finkielkraut se irrita
abertamente, tendo a impressão de que Fontenay
retoma “por sua conta toda a argumentação do tribunal
do pensamento convencional”. [ 79 ] Finkielkraut não é
convidado a explicar suas ideias, mas a justificar o fato
de que já não se associa à esquerda, o que parece
primeiramente inconcebível, mas não só isso: parece
imperdoável. Ele não é de esquerda ou, ao menos,
deixou de sê-lo: portanto, é suspeito. Do ponto de vista
de sua amiga, é de certa forma como se ele excluísse a si
mesmo do debate público e do círculo das pessoas
convenientes – e só poderá culpar a si mesmo por ser
estigmatizado, tendo de aceitar de antemão o fato de
que um dia será abandonado pela comunidade dos
intelectuais recomendáveis. Não é possível sair do
império do bem sem pagar o preço, pois este sabe punir
os que não lhe juram fidelidade. Na melhor das
hipóteses, Fontenay reconhece a Finkielkraut o mérito de
havê-la feito “compreender claramente a diferença entre
um reacionário e um conservador, e que o conservador
jamais merece que progressistas o ataquem
fisicamente” [ 80 ] – compreende-se, portanto, que seria
menos grave agredir um reacionário. A direita, para a
qual Finkielkraut estaria se dirigindo, seria o âmbito do
não pensamento ou, ao menos, do pensamento culpado –
nele não se refletiria sobre o mundo, mas se pensaria
para mascarar os próprios e inconfessáveis preconceitos.
[ 81 ] Aliás, não se passa para a direita como se muda de
campo, o que teoricamente deveria ser possível numa
democracia: deriva-se para a direção dela, como se
pouco a pouco alguém se distanciasse do campo do bem
para ir perder-se na parte maldita da humanidade,
cedendo então às suas piores pulsões e perdendo a partir
daí a capacidade de recalcá-las – voltaremos a esse
vocabulário. Perdemos a conta das manchetes de
revistas que, nos últimos anos, estampavam assombro
com a traição de intelectuais de esquerda que se haviam
juntado às fileiras dos novos reacionários ou néoréacs, [
82 ] segundo a terminologia em voga. [ 83 ] Regularmente,
era preciso atualizar a lista dos maus pensadores. A cada
vez, espera-se causar escândalo: quem passa da
esquerda à direita se afunda, se avilta e se renega, como
se oscilasse para o lado ruim da história, deixando-se
dominar por suas paixões mais sombrias, pelo
ressentimento e, no melhor dos casos, por uma nostalgia
sintomática de uma senilidade iminente. Fala-se a
respeito de alguém assim como de uma alma perdida, ou
condenada. Sua queda será retraçada, tentar-se-á
retornar às origens do seu desvio. Uma guinada para a
direita não é tanto uma mudança política pessoal, é mais
uma queda moral, uma forma de degradação existencial,
sinal de um aviltamento da alma. Quando se trata de um
amigo, as pessoas se perguntarão: como isso pôde
acontecer? Haverá uma tentativa de compreender por
que ele acabou mal, revirarão seu passado para ver se as
sementes do extravio já não se encontravam em seus
primeiros textos, ou se este não se explicaria por um
acontecimento traumático, seja no âmbito político, seja
no âmbito biográfico. Haverá também uma preocupação
com suas novas amizades, julgadas comprometedoras.
Esta guinada para a direita deveria naturalmente
conduzir à “extrema-direita” – ou ao menos às suas
fronteiras –, na medida em que se explicaria por um
desmoronamento das inibições civilizatórias.
No entanto, o que torna a correspondência Finkielkraut-
Fontenay exasperante é também o que a torna
interessante, na medida em que faz vir à tona aquilo a
que chamaríamos, com uma formulação um pouco banal,
a verdadeira natureza da divisão esquerda-direita, que
muitos consideram morta, mas que sempre acaba por
ressurgir, sem que jamais consigamos compreender de
fato o que realmente a constitui. Como já se observou,
embora Finkielkraut seja acusado de desviar-se para a
direita, ele próprio não reivindica esse rótulo para si – e
mais, ele “recusa firmemente o rótulo […] de pensador
direitista”. [ 84 ] Em outras palavras, embora ele deixe a
esquerda, não passa para a direita, como se esta última,
apesar de tudo, continuasse a ser pouco recomendável.
Ele até prefere decretar a abolição dessa divisão em que
não chega a inserir-se ou reconhecer-se, o que é
frequente entre os que tiveram um percurso semelhante
ao seu. Uma coisa é deixar de ser de esquerda. Outra
coisa é ser de direita. Para dizê-lo em suas palavras, o
pensamento político deve “aventurar-se fora do Grande
Paradigma que governa nossas vidas desde a Revolução:
a oposição entre a direita e a esquerda”. [ 85 ]
No entanto, a esquiva é de uma eficácia relativa. Isso
não é de ontem: basta questionar a clivagem esquerda-
direita e buscar extrair-se dela para ser relegado à
direita. Alain, desde 1925, cunhou uma célebre
formulação que explica essa visão de mundo. “Quando
me perguntam se o corte entre partidos de direita e
partidos de esquerda, homens de direita e homens de
esquerda, ainda faz sentido, a primeira ideia que me vem
é que o homem que formula essa pergunta certamente
não é um homem de esquerda.” Em O ópio dos
intelectuais, obra seminal publicada em 1955, numa
época em que a esquerda francesa fora acometida de
marxolatria, Raymond Aron abria seu texto com uma
pergunta explícita: “a alternativa entre esquerda e direita
ainda faz sentido?”. Lembrando-se da advertência de
Alain, Aron acrescentou: “quem faz essa pergunta se
torna imediatamente suspeito”, [ 86 ] reconhecendo assim
o que se poderia chamar de privilégio filosófico e moral
da esquerda na modernidade, contra a qual ele não
hesitaria em polemizar: era a esquerda que determinava
a tendência da época, diante da qual era preciso
posicionar-se. Dois anos depois, aliás, Aron confessará
que “esquerdistas ficaram sinceramente surpresos ou
indignados que eu não tenha reconhecido uma diferença
moral entre os dois campos”. [ 87 ] Ser de esquerda
consiste primeiramente em aderir, de certa forma, à
divisão esquerda-direita. Quem é “acusado” de ser de
direita tem a tendência de se defender, enquanto a
classificação à esquerda equivale a um certificado de
respeitabilidade. Isso não havia escapado a Emmanuel
Berl, que elaborou algumas observações muito
perspicazes sobre a questão: “parece que a principal
característica do direitista é negar sê-lo” enquanto “o
esquerdista é antes de tudo aquele que prefere os
esquerdistas”. [ 88 ] Na correspondência já citada,
Élisabeth de Fontenay retoma, sem necessariamente ter
consciência disso, a ideia de Emmanuel Berl, acentuando
sua diferença em relação a Alain Finkielkraut: “você
aceita todas as alianças quando chega a hora de
defender suas ideias e verificar a boa fundamentação de
suas teses. Quanto a mim, eu desconfio, sempre
pergunto quem assina antes de dar meu nome”. [ 89 ]
PSICOLOGIA DO ESQUERDISTA

Bons autores demonstraram que, embora a divisão


tenha surgido com a Revolução Francesa, levou tempo
para se impor, tanto na França como em outros lugares,
e para ganhar seu sentido atual. [ 90 ] No entanto,
podemos retomar a reflexão sobre outra base,
perguntando-nos a que se referem a esquerda e a direita,
na medida em que tais conceitos, como observou Marcel
Gauchet, lograram extrair-se do contexto francês que os
viu nascer, impondo-se na escala do mundo ocidental, e
talvez em escala mundial. “Não é nada insignificante,
entre os mistérios sobre o destino dessas noções, o da
fortuna mundial que granjearam.” [ 91 ] Embora essa
divisão seja frequentemente contestada, e não raro
grandes intelectuais a descartem como uma moldura
mental demasiado restritiva, ela ainda é usada para
mapear politicamente nossas sociedades. Em toda parte
se busca inserir os partidos e os movimentos nesse
espectro político que, conforme se espera, decifrará as
disputas ideológicas tornando-as inteligíveis. A que a
esquerda se relaciona? A que a direita se relaciona? Será
que existe algo como uma verdadeira esquerda e uma
verdadeira direita? Será que tais categorias existem em
estado quimicamente puro? Os estudiosos da política se
empenharam em associar um conteúdo específico a
essas duas noções: entre os mais conhecidos, Norberto
Bobbio [ 92 ] associou-as à disputa entre a igualdade e a
liberdade, uma análise muitas vezes retomada com mais
ou menos brilho por outros observadores igualmente
ocupados em compreender essa famosa divisão, cujo
defeito, no entanto, é inserir-se exclusivamente na
questão social e deixar de lado outras dimensões
fundamentais da existência política. A filosofia política
também se empenhará em teorizar sobre essa divisão,
ancorando-a no âmbito antropológico: a direita aderiria
fundamentalmente à doutrina do pecado original e
situaria o mal no coração do homem; já a esquerda
situaria o mal na história, o que dá a entender que,
depois de muitas tentativas e erros, seria possível extraí-
lo da estrutura social e chegar a uma sociedade perfeita
– a esquerda, assim concebida, seria utopista, e a direita,
antiutopista. [ 93 ] Essa teorização da divisão esquerda-
direita, que não deixa de ser interessante, tropeça,
contudo, no fato de ser dificilmente transponível para a
realidade política e de ter fraca capacidade para
catalogar e descrever os partidos que afirmam seu
pertencimento a um ou outro desses rótulos. Não
surpreende que tenham sido os historiadores, ao menos
no contexto francês, os que levaram mais longe esse
trabalho de esclarecimento, pluralizando tais conceitos: a
esquerda tornou-se as esquerdas, e a direita tornou-se as
direitas. [ 94 ] Ao serem liberados de toda carga filosófica
e concebidos como categorias históricas num período
determinado, os conceitos de esquerda e direita
correspondem aqui à vida política concreta –
impulsionada por atores que não questionam
necessariamente a categoria em que se movem –, e
assim recuperam sua pertinência.
Se é necessário retornar à natureza da divisão
esquerda-direita, é porque esta ainda pesa muito na vida
pública, mais do que se quer acreditar, e institucionaliza
uma forma de preconceito progressista no interior da
democracia. Precisamos refletir sobre o funcionamento
da divisão esquerda-direita, e esse será o objeto deste
capítulo. Não raro considerada obsoleta, ela continua a
estruturar a vida pública, ainda que se revista de outras
roupagens. Nessa linha, diremos a respeito da divisão
entre a esquerda e a direita que, na realidade, é
característica do debate político-ideológico no interior
dos parâmetros da modernidade, tendo a vocação de
permitir que a modernidade vá até seus próprios
extremos ou, ao menos, relance continuamente sua
dinâmica para que esta nunca se esgote. O debate entre
a esquerda e a direita é um debate em movimento:
apresenta uma pedagogia em que a primeira pode
avançar em seu ritmo, e a segunda, pode segui-la ou, de
tempos em tempos, desacelerá-la. Em outras palavras,
quem se debruça sobre esse debate logo se permite uma
primeira observação: não existe reciprocidade entre a
esquerda e a direita. As duas categorias, que parecem
responder uma à outra, não designam a mesma
realidade. Não se trata das duas faces de uma mesma
moeda política. Não existe, de um lado, a esquerda e, do
outro, a direita. Se a esquerda existe, e não para de se
questionar sobre sua identidade, sua vocação e sua
missão, o mesmo não ocorre com a direita, que parece
pouco à vontade com um rótulo que de fato ela não
escolheu e carrega como uma cruz, sem saber muito
bem por que lhe foi atribuído. De direita? Está bem, mas
não demasiadamente, por favor! Assim como posicionar-
se à esquerda, e até bem longe na esquerda, é algo
valorizado, ser associado à direita representa uma forma
de passivo, e o rótulo pode equivaler a um tipo de
acusação. Essa primeira observação não escapou aos
estudos políticos franceses. Albert Thibaudet havia
notado, em 1932, na obra Les idées politiques de la
France [As ideias políticas da França] que, não obstante
sua relativa marginalidade política, o socialismo dispunha
de uma fonte de legitimidade suplementar na dinâmica
ideológica francesa. “É […] o socialismo que cria
atualmente na vida política o arejamento das ideias, dos
problemas, das discussões. É em relação ao socialismo
que se estabelecem as posições. É em relação ao Partido
que os partidos se regulam.” [ 95 ] Stéphane Rials, em
alguns estudos muito férteis publicados no início dos
anos 1980, retomará essa intuição à sua maneira: “no
fim das contas, a espinha dorsal da vida política francesa
desde a Revolução não é a pretensa relação direita-
esquerda, é a esquerda. A esquerda, com a lógica de sua
transformação. […] Os outros (discursos), abusivamente
qualificados de discursos de direita, não fazem outra
coisa senão definir-se em relação à esquerda […]”. [ 96 ]
Raymond Aron também se havia permitido esta
observação: “a esquerda tem tal superioridade de
prestígio que os partidos fazem de tudo para retomar
certos qualificativos, emprestados do vocabulário de
seus adversários”. [ 97 ] Marc Crapez desenvolverá essa
análise em seus próprios termos: “a direita não pode de
fato ser a direita, pode estar à direita, mas não ser de
direita”. [ 98 ]
Se existe uma primeira coisa a ser relembrada, é que a
esquerda faz questão de ser esquerdista e não para de
se questionar sobre o que significa estar à esquerda, em
uma forma de seminário a céu aberto que mobiliza a
principal parcela da intelligentsia. A esquerda existe
porque se nomeia como tal. Constitui-se como uma
categoria política de pleno direito, na medida em que as
pessoas reivindicam explicitamente sua adesão a ela e
atribuem grande valor ao fato de serem portadoras desse
rótulo. [ 99 ] Não duvida de sua superioridade moral. [ 100 ]
A direita, por sua vez, costuma ser direita a contragosto:
assume de modo mais ou menos sereno um rótulo
concebido em primeiro lugar como categoria que serve
de contraste, à qual alguém é relegado
independentemente de sua reivindicação própria. Como
já foi observado por Denis Tillinac, “a direita em seu
curso sinuoso nunca foi o correspondente homotético da
esquerda, mas antes a descrente dos dogmas desta
última, por razões metafísicas, ou morais, ou estéticas”. [
101 ] A direita transmite facilmente a imagem de um
ajuntamento de proscritos. “O que há de comum entre
um discípulo liberal de Hayek, um monarquista, um
conservador anticlerical, um integrista católico, um
fascista? Nada. É o olhar da esquerda que define as
direitas, e as intima a se posicionar em sua escala de
valores”. [ 102 ] A direita é constituída primeiramente e
antes de tudo por todos os que a esquerda não quer em
suas fileiras. Não quer ou… deixou de querer. Pois não
basta ser de esquerda: é preciso continuar a sê-lo.
A esquerda é uma categoria política autoproclamada –
e movente, na medida em que está ligada de modo
estreito à mística do progresso, que jamais se deixa fixar
e se define por meio do imaginário do movimento. [ 103 ]
Sua “característica primordial é ser indiscutível”: ela se
apresenta como uma evidência absoluta. [ 104 ] A
esquerda fixa o rumo da história, determina o sentido do
progresso e jamais poderia estabilizar-se sem trair-se. Ser
de esquerda é posicionar-se na vanguarda da dinâmica
da modernidade. É o partido do movimento, mas do
movimento orientado – isto é, do progresso. Chesterton o
havia dito à sua maneira: “aqueles a quem chamamos
muito especialmente de modernos […] conceberam a
história humana como uma progressão à maneira de um
cortejo. Ou seja, diziam que algumas pessoas mais lentas
poderiam ficar para trás, mas que todas avançavam”. [
105 ] A esquerda se constitui a partir de um imaginário
radical da emancipação: para emancipar-se, o indivíduo
deve se libertar dos pertencimentos que lhe foram
atribuídos pela sociedade e jamais se definir
positivamente a partir deles. Deve arrancar-se deles,
extrair-se deles. Não deve habituar-se a seu mundo nem
instalar-se em seus pertencimentos a ponto de torná-los
essenciais ou acreditar que sejam insuperáveis. As
mediações em que o indivíduo se apoia para alcançar o
universal são instrumentais: as que ele abraça poderiam
muito bem ser outras. A civilização deve ser
compreendida como uma construção provisória a ser
desconstruída e reconstruída. No fundo a modernidade
se concebe como busca emancipadora que,
presumivelmente, fará nascer uma sociedade igualitária
e transparente para si mesma. Pode ser concebida como
uma dinâmica de horizontalização integral da existência
social: todas as instituições que estruturavam a vida
social em nome da natureza ou da história devem ser
desconstruídas, todas as identidades substanciais devem
dissolver-se. Um mundo novo tem de sair daí, no qual a
humanidade será perfeitamente consciente de suas
condições de produção e de reprodução e capaz de
controlá-las por completo. Essa lógica, contudo, deve
estar contida nos parâmetros da civilização ocidental, a
única que tem de submeter-se a ela.
Opõe-se a isso o imaginário da história ou da natureza:
aquela valoriza a obra do tempo na construção das
sociedades, esta convida o homem a aceitar sua finitude.
Compreende-se que se trata aí dos imaginários
privilegiados à direita. A direita, por contraste, é a
categoria política fundadora da modernidade: é a
esquerda que a constitui ao designá-la, e esta é então
chamada a saber se reivindica um rótulo que se voltará
contra ela ou se busca posicionar-se no exterior de uma
divisão à qual, no entanto, é sempre relegada, como se
fosse de fato impossível extrair-se ou eximir-se dela. Em
regra geral, as pessoas não afirmam sua adesão à
direita, mas têm de se explicar por serem de direita. De
certa maneira, a direita se deixa definir como um resto
ou, mais exatamente, como um resíduo. Assim
concebida, a direita se associa ao que a esquerda rejeita,
à maneira de um rastro do mundo antigo que ela quer
preservar, mesmo estando ciente de que está
condenado. Isso esclarece o fenômeno, observado pela
maioria dos que se debruçaram sobre essa divisão:
grande parte das direitas são antigas esquerdas,
incapazes de seguir o ritmo do progresso impresso pelas
vanguardas militantes, que sempre atualizam o
programa de emancipação da modernidade, passando
pela desconstrução da civilização ocidental tal como esta
se representou historicamente. Basta que uma esquerda
não queira seguir o ritmo indicado pela vanguarda
progressista para que seja deportada para a direita, na
maior parte do tempo a contragosto. Na realidade, todos
os que não aderem explicitamente a cada nova etapa do
desdobramento da modernidade diversitária são
passíveis de oscilar para a direita e, como consequência,
adentrar o campo dos suspeitos e proscritos. Mesmo a
mínima reserva não será tolerada: é preciso ser um
entusiasta, ou desaparecer da cena pública. É preciso
aplaudir ou aceitar a estigmatização midiática. Num
mundo que ainda se concebe sob o signo do progresso,
não há destino pior do que ser um retardatário, ou pior
ainda, um retrógrado. Para citar uma vez mais Emmanuel
Berl, “quem se agarra ao que quer que seja vira à direita,
ou corre esse risco”. [ 106 ] E para permanecer à esquerda,
é preciso não apenas seguir o campo progressista em
suas diferentes inovações, mas enviar com regularidade
sinais ostentatórios de virtude. Raros são os que oscilam
para a direita e reivindicam o novo rótulo colado neles:
na realidade, preferem defender-se dele, chegando com
frequência a dizer que permanecem fiéis à esquerda
verdadeira, que teria sido traída pela nova esquerda.
Compreende-se então o sentimento dos homens que se
acreditavam de esquerda e a partir de agora se sentem
estrangeiros em seu campo: haviam aderido a um
momento particular da esquerda, sem compreender que
cedo ou tarde esse momento seria ultrapassado pela
simples lógica de renovação das vanguardas. Não raro
aqueles que passam por isso se defendem, agarrando-se
a sua definição de esquerda como a uma tábua de
salvação. Lutam para permanecer à esquerda, como se
não lhes fosse possível imaginar-se em outro lugar. No
longo prazo, porém, hão de tornar-se estrangeiros numa
família política que já não quer saber deles e os
classificará à direita independentemente de sua vontade.
Isso é visível em especial com a passagem, por parte da
esquerda, do paradigma social ao paradigma societal: os
que haviam aderido à esquerda pela preocupação com a
justiça econômica e a redistribuição social se mostram
perplexos com sua guinada diversitária e se inquietam
com a desfiguração da esquerda, à qual julgam pertencer
ainda. [ 107 ] Da mesma maneira, a esquerda republicana,
afeita ao princípio da laicidade, é acusada de passar para
a direita em razão de seu apego a um universalismo que
não aceita ser triturado pela lógica diversitária. [ 108 ] É
que a esquerda não se define antes de tudo por um
projeto, um programa ou uma série de medidas, mas
pela lógica incessantemente relançada da
desencarnação da existência social em nome da
emancipação das categorias alienadas, que sempre
deveriam ser apoiadas em sua revolta e se sucederiam
umas às outras ao longo da história. Era isso o que fazia
Raymond Aron afirmar que a esquerda defende
“sobretudo uma categoria de vítima”, aquela em que é
possível apoiar uma crítica global à ordem social. [ 109 ] É
a famosa figura do outsider, do excluído a quem se
confia a missão de servir de base social potencial para
uma próxima revolução.
A divisão esquerda-direita também se renova e logra
assim permanecer no cerne da vida política, ao ser capaz
de apropriar-se dos desafios políticos que permeiam a
comunidade política e traduzi-los em seus termos. Muda
incessantemente de objeto; apodera-se incessantemente
de uma nova questão a partir da qual dividirá a
sociedade em dois, marcando um campo de modo
positivo e o outro, de modo negativo. Acima de tudo, de
uma época a outra a divisão esquerda-direita pode
deslocar-se de uma temática geral a outra, definindo-se
em primeiro lugar pela economia, pela dimensão social e,
em nossos dias, pelas dimensões identitária e societal.
No mundo atual, quem é favorável ao mais intransigente
neoliberalismo, mas se mostra adepto das conquistas no
âmbito societal tem mais chances de ser reconhecido
como um homem de esquerda do que um operário afeito
aos velhos princípios da social-democracia, crítico dos
excessos das finanças globais, mas oposto à imigração
maciça e cético diante de certas reformas societais. Por
outro lado, constata-se que um homem antes classificado
como de centro-direita passará atualmente para a
direita, pelo simples deslocamento para a esquerda do
ponto ideológico de gravidade do espaço público. Como
observa Marc Crapez, enquanto nos anos 1980 a direita
propunha que a imigração fosse freada, hoje se contenta,
quando toma as rédeas do assunto, em defender a
imigração seletiva. A própria direita populista passou de
um chamado à inversão dos fluxos migratórios à simples
parada da imigração. [ 110 ] De modo similar, como boa
parte da esquerda abandonou pouco a pouco a laicidade
para se converter ao multiculturalismo, a direita
recuperou esse âmbito gradualmente, passando a definir
a nação de maneira quase exclusiva na linguagem dos
valores republicanos, deixando de lado, sem, no entanto,
negá-la, a das raízes cristãs da sociedade francesa
(nessa dinâmica, uma esquerda que se mostre sensível à
questão da insegurança cultural tem boas chances de ser
“direitizada”, e mesmo “extremo-direitizada” pelos que
passaram a julgar que o progressismo culmina no
multiculturalismo). Da mesma maneira, até o início dos
anos 1990, a direita se questionava sobre as tensões
civilizacionais entre o Islã e a França, enquanto hoje ela
se permite criticar o islamismo, e isso essencialmente no
plano securitário, sem de fato refletir sobre o que se
poderia chamar de choque entre culturas e sobre a
dificuldade de coabitação de duas civilizações no mesmo
território nacional. Na dinâmica desse movimento, quem
se ativer a uma definição substancial da identidade
nacional ou, de modo mais amplo, da nação, será
deportado para e extrema-direita, como se vê na
Holanda, onde mesmo uma definição substancial da
laicidade, concebida como identidade de civilização, será
rotulada da mesma maneira. Não existe aí, repito,
exclusividade francesa – esse movimento de
dessubstanciação da identidade nacional a que a direita
se refere é igualmente visível na história do
conservadorismo americano, dos anos 1950 aos dias de
hoje: o new conservatism dos dias subsequentes à
guerra se constituiu contra a Old Right, antes de ser
desclassificado por um neoconservadorismo, que por sua
vez se constitui em contraposição àquilo que virá a ser
chamado de paleoconservadorismo. [ 111 ] Enquanto antes
ele se posicionava em primeiro lugar pela defesa do que
será denominado de maneira aproximada como nação
histórica americana, com suas tradições culturais
específicas, ligadas ao núcleo cultural WASP (branco,
anglo-saxônico e protestante), ao qual as diferentes
ondas de imigrantes se teriam aculturado segundo a
lógica do melting-pot, o conservadorismo oscilará a partir
dos anos 1970 – e mais ainda a partir dos anos 1980,
com a adesão dos neoconservadores – para uma
definição da nação descentrada de seu substrato
histórico e refundada essencialmente em torno dos
valores universais que estariam no cerne da experiência
americana. A nação estadunidense já não repousaria
numa cultura, mas numa proposta filosófica, da qual
seria preciso apropriar-se para dela participar, e os que
se recusassem a isso se veriam simbolicamente
excluídos. [ 112 ] Assim, os americanos enraizados na
história do país que reivindicassem uma limitação da
imigração se tornariam, por isso mesmo, unamerican
(“não americanos”). Mesmo os clandestinos seriam, no
fim das contas, mais americanos que os críticos da
imigração, visto que adeririam ao sonho americano que
estes últimos se recusariam a aprovar plenamente. [ 113 ]
Esse argumento reverbera a ideia, não raro retomada, de
que a França renegaria sua tradição de acolhida caso
restringisse a imigração, o que equivale a dizer que a
única maneira para ela de permanecer fiel à sua
identidade nacional consistiria em tornar absoluta uma
espécie de “sem-fronteirismo” – “a França não pode
propagar sua visão do universal sem experimentar, em
retorno, uma sensível diversificação de sua paisagem
social”, dirá, assim, um demógrafo diversitário. [ 114 ] A
fim de permanecer fiel a sua aspiração universalista, que
seria sua única verdadeira identidade, ela deveria se
multiculturalizar, argumento este semelhante àquele de
que “a identidade está na mudança e, mais ainda, na
capacidade para a mudança”. [ 115 ] No Canadá inglês, os
conservadores, tradicionalmente ligados à defesa da
herança britânica do país, acreditaram que seria bom
realinharem-se à defesa dos “valores ocidentais do
Canadá” conjugados a um multiculturalismo moderado,
para responderem ao Partido Liberal do Canadá,
ideologicamente dominante, que se convertia ao
multiculturalismo radical. No próprio Quebec, os
soberanistas, tradicionalmente ligados a uma definição
da nação ancorada na maioria histórica francófona,
sentiram-se obrigados a redefini-la em termos de
“valores quebequenses” e de “cidadania territorial”, para
passar no teste da inclusão diversitária – uma mudança
associada na cultura política quebequense à passagem
do nacionalismo étnico ao nacionalismo cívico. [ 116 ] A
questão nacional – ou, de modo mais amplo, a questão
identitária é talvez a melhor lente pela qual observar nos
tempos atuais a mudança e a progressão do recorte
esquerda-direita.
Ser de esquerda consiste em estar certo mesmo
quando se está errado, porque o engano, então, tem
motivos corretos. Ser de direita consiste em estar errado
mesmo quando se está certo, porque se está certo por
razões ideológicas inadmissíveis, intraduzíveis na lógica
da emancipação. Esse é o sentido da famosa formulação
segundo a qual seria melhor estar errado com Sartre do
que estar certo com Aron. Quem se extravia por boas
razões vale mais do que quem enxerga corretamente por
más razões. Foi o que se viu com o comunismo, no
século XX. Era preciso primeiro ter acreditado nele para
depois ter o direito de já não acreditar – aqueles que
nunca haviam acreditado, essencialmente, não mereciam
nenhuma consideração intelectual, visto que o haviam
condenado por razões reacionárias. A crítica legítima do
comunismo era a dos desencantados, que, no entanto,
queriam permanecer fiéis a seus ideais, e não a dos
intelectuais e políticos que jamais se haviam aliado a ele.
O ideal era deixar de ser comunista, mas continuar a ser
de esquerda – mais ainda, deixar de ser comunista, mas
continuando a sê-lo, algo que o trotskismo possibilitou
durante certo tempo. Uma coisa, porém, era certa: valia
mais ter sido comunista para se dar o direito de já não
sê-lo. O homem que acreditou nas virtudes do
progressismo e passou a confessar seu desencanto não
aprecia encontrar os que, ainda ontem, ele tratava de
reacionários. Preferirá antes a companhia dos outros
desencantados, que ao menos têm o mérito de um dia
haver acreditado. [ 117 ] Para retomar a esclarecedora
confissão de Pascal Bruckner, a quem não poderíamos
suspeitar de sectarismo, “ainda hoje somente as tolices
de esquerda me causam indignação, as outras me
deixam indiferente. Prefiro pensar contra meu próprio
campo, miná-lo do interior, a desertá-lo”. [ 118 ] O mesmo
ocorre atualmente com o islamismo, a imigração maciça
e o multiculturalismo: [ 119 ] é quando a esquerda
constata a fragmentação da sociedade diversitária que
se torna legítimo constatá-la. Aqueles que, ao longo dos
últimos anos, se preocupam com a desnacionalização da
França e os territórios perdidos da República não o
faziam, ao que parece, pelas razões certas. Até este
momento, os que a criticavam faziam-no tão somente
por ideologia, ou porque eram impelidos por paixões
baixas, nauseabundas até, o que poderia nos fazer
acreditar que a esquerda fareja, em vez de pensar, ou
ainda, que ela pensa com o nariz. [ 120 ] Agora que a
crítica é conduzida por homens que veem o mundo a
partir da esquerda, ela se torna legítima. Esse é também
o caso da liberdade de expressão, cuja defesa só se torna
legítima quando é retomada pela esquerda. [ 121 ] Na
realidade, é preciso que um tema passe para a esquerda
para que se torne legítimo, é preciso que a esquerda se
aproprie dele para que se torne digno de consideração e
seja admitido na conversa pública.
SITUAÇÃO DA DIREITA “MODERADA”

A vida democrática nos obriga a constatar, contudo,


que a direita existe politicamente, e na maior parte do
tempo aceita circular no universo de representação da
divisão esquerda-direita. De tanto lhe ser dito que ela
existe, a direita de modo geral passou a crer nisso,
buscando apropriar-se positivamente dessa categoria e
defini-la em seus próprios termos – na medida do
possível, ao menos. De que maneira ser de direita num
espaço político constituído em torno da mística
progressista e num sistema midiático de esquerda?
Estruturalmente em desvantagem, a direita se encontra
diante de duas estratégias que retornam como num
circuito.
A primeira é a da respeitabilização. Nessa perspectiva,
a direita pretende constituir-se como polo sensato e
moderado da vida política. Ela se distinguiria não tanto
por suas ideias, mas por sua atitude adulta diante da
existência. Trata-se essencialmente, para ela, de dar
garantias à esquerda, provando que não está tão “à
direita” como se quer afirmar, o que é uma maneira de
dizer que quanto mais nos aproximamos da esquerda,
mais nos aproximamos da norma constitutiva das
sociedades democráticas. Uma pergunta se impõe
sistematicamente a todo homem de direita: será que ele
é muito de direita? Até aonde ele vai, à direita, na
realidade? Essa pergunta costuma ser formulada pelo
jornalista de esquerda, que distingue entre os direitistas
declarados, os que merecem ser integrados à conversa
cívica e os que devem ser tratados como suspeitos.
Podem-se inverter os termos: o que significa ser muito de
direita, senão estar muito longe da esquerda? Quando a
direita adota essa estratégia, que abarca a retórica do
equilíbrio e da moderação, postulará em especial que
compartilha os mesmos objetivos de sociedade que a
esquerda, e que não se distingue dela senão pelos meios
propostos, como se fosse preciso neutralizar toda forma
de diferença substancial em relação a ela. Evitará assim,
sistematicamente, aventurar-se nos terrenos em que a
divisão esquerda-direita é mais acentuada – teme
queimar-se. Consentirá, mais do que no passado, em
restringir-se ao âmbito da economia, como se
encontrasse aí um refúgio contábil em que poderia dar
testemunho de sua competência superior nos assuntos
do Estado – na realidade, ela aí se aninhará, nem que
seja assumindo a postura régia, para marcar sua
especificidade. A direita não seria fundamentalmente
diferente da esquerda, não teria outra visão de mundo:
seria apenas uma gestora melhor. A história, a memória,
a identidade seriam boas apenas para os poetas
extraviados. A direita se despolitiza para se legitimar,
neutraliza-se numa postura gestora sem conteúdo
substancial, para ter o direito de governar. A direita se
torna então o partido do homo economicus e decreta que
a economia é o único âmbito concreto do real, as
questões culturais e identitárias tendo a péssima mania
de desviar o comum dos mortais da conquista dinâmica
da prosperidade. Retraída para o terreno contábil,
reivindica para si uma competência exclusiva. Tão
progressista quanto a esquerda, pretende ultrapassá-la
no terreno da modernidade, apostando no mercado e na
emancipação do indivíduo. Procura até voltar contra a
esquerda a acusação de conservadorismo, recriminando-
a por ser guardiã do status quo e de uma ordem
burocrática sufocante e historicamente ultrapassada. O
homem de direita que insiste em relembrar sua
modernidade confessa, sem sequer se dar conta disso,
sua submissão às categorias ideológicas dominantes do
progressismo.
A direita ideal seria uma esquerda pálida. A boa direita
seria uma esquerda vagarosa. A direita bem vista seria
declarada humanista: em seu âmago, desejaria ser de
esquerda, mas suas origens sociais ou sua sovinice a
impediriam de aderir plenamente ao campo do
progresso. O maior elogio que se pode fazer a um
homem de direita não é dizer-lhe que ele não é tão
direitista assim? Seu sonho não é, como o havia
observado Alain Gérard Slama, ser o direitista preferido
dos esquerdistas? [ 122 ] No entanto, ele deve ficar alerta,
zelando para que afetos conservadores recalcados desde
muito tempo não voltem a emergir: deve impedir-se de
resgatar sua parte tradicional, e há um risco de que isso
aconteça quando as reformas societais se multiplicam
rápido demais, pois ele poderia oscilar para a direita sem
ter consciência disso, opondo-se por reflexo, ao menos
num primeiro momento, para então desculpar-se
denunciando vigorosamente os que ainda se opõem, ao
passo que ele teria evoluído. Para fazer-se perdoar,
chegará a tornar-se o mais feroz guardião do novo
avanço progressista, a fim de evitar ser relembrado de
que ainda ontem se contrapunha ao sentido da história.
Por mais que se tenha manifestado ou ardentemente
militado contra uma reforma societal, explicará que o
país já saiu daquele ponto e que não se deve olhar para
trás, mas para frente. Ele se legitima politicamente por
sua capacidade de não se deixar definir por seus
engajamentos do dia anterior. O homem de esquerda é
admirado pela fidelidade a suas convicções, e o de
direita, pelo fato de não ter convicções – ou de saber
distanciar-se delas em nome da adaptação à
modernidade.
Na realidade, a direita zelosa de respeitabilidade
midiática se transformará em guardiã da moral da
esquerda em seu próprio campo e acusará a tendência
de uma parte da direita de ir demasiado para a direita –
isto é, de distanciar-se exageradamente dos critérios de
respeitabilidade ditados pela esquerda e até de contestá-
los, ao menos no plano retórico. [ 123 ] A direita humanista
é a que impede a direitização de seu campo e a que se
mostra a mais intransigente guardiã da distinção entre a
direita e a extrema-direita. A direita humanista tem seu
endosso: é a direita dura [ 124 ] (por oposição à direita
mole?), ultraconservadora [ 125 ] (“mas primeiro seria
preciso definir o conservadorismo, antes de saber em
que consiste o ultraconservadorismo”) e até reacionária.
Como esse termo, que tradicionalmente designava quem
recusa filosoficamente a modernidade, veio a designar
quem recusa submeter-se aos decretos ideológicos das
novas vanguardas da pós-modernidade? Adivinha-se a
resposta: a modernidade está, por definição, em
movimento, e os que não seguem o movimento estão
condenados a se tornar cedo ou tarde reacionários,
independentemente de sua vontade. A direitização nada
seria além de uma extrema-direitização: quanto mais a
direita se tornasse ela mesma, mais inaceitável se
tornaria. [ 126 ] A direita, quando entregue a si mesma,
quando emancipada de seus complexos e da vigilância
da esquerda – encarnação da consciência moral da nossa
civilização –, experimentaria uma tentação culpada e
sempre nos levaria de volta às “páginas mais sombrias
do século XX”. Por meio da acusação de “direitização”, a
direita é acusada de sair do perímetro democrático e
introduzir uma maneira de conceber a política que
estaria em contradição com os “valores republicanos”
(que alguns têm o direito de definir, e aos quais os outros
devem se submeter) ou os “valores democráticos”. É a
esquerda que fixa, de maneira arbitrária, a fronteira
entre a direita e a extrema-direita, e cabe à direita
“moderada” fazer com que tal fronteira seja respeitada.
Trata-se de fazer com que a direita dita moderada seja a
primeira a manter as rédeas da direita denominada dura,
que sempre será acusada de flertar com a extrema-
direita. Compreende-se a ideia: em seu âmago, a direita
seria apenas uma extrema-direita contrariada. Uma
direita sem arreios seria necessariamente selvagem. De
modo geral, a direita se direitizaria sob a influência de
um “mau gênio” vindo das margens da comunidade
política para assombrá-la, fazendo-a regressar a uma era
anterior da história. Essa direitização seria não raro a
obra de um espírito superior e diabólico, que se infiltraria
entre os democratas para corrompê-los. Patrick Buisson, [
127 ] na França, Steve Bannon, nos Estados Unidos, [ 128 ]
ou os nacionalistas conservadores no Quebec, que teriam
desviado o combate pela laicidade ao investi-lo de uma
carga identitária, desempenharam, cada qual, um papel
maléfico [ 129 ] – o que importa, então, é expulsar da
política democrática o demônio vindo das margens, para
que ele já não possa desviá-la de seu curso natural. Isso
porque ele não passa de uma potência maléfica oriunda
das entranhas da comunidade política e que busca
hipnotizar um campo para desviá-lo do horizonte radioso
do progresso e assim inverter o curso da história. O
progressismo não é estranho ao conspiracionismo.
A DIREITA AMANSADA

Que relação as pessoas chamadas de gente de direita


mantêm com aquele espaço político que as condena à
sub-representação sistemática? Sabemos que, de modo
geral, elas são mais sensíveis aos temas do
conservadorismo cultural do que boa parte de seus
líderes. É possível, contudo, que sejam mais fáceis de
amansar do que em geral se supõe – isso, ao menos, é o
que uma rápida revisão da vida política francesa dos
últimos anos nos leva a crer. Assim, no primeiro ano de
seu quinquênio, Emmanuel Macron foi capaz de
neutralizar parcialmente um setor da gente de direita,
concedendo-lhe certas garantias culturais, como se
compreendesse bem o que impulsiona sua psicologia e
soubesse enviar-lhe certos sinais políticos favoráveis – os
quais foram muito bem acolhidos, sobretudo por serem
inesperados, vindo de um homem que de início havia
negado a existência de uma cultura francesa. Com a
restauração de certa verticalidade presidencial e a
nomeação de Jean-Michel Blanquer para a Educação
Nacional, Emmanuel Macron soube recuperar uma parte
das aspirações conservadoras que vinham se
expressando na sociedade francesa nos últimos dez
anos, sabendo restaurar por um tempo, mas apenas por
um tempo, a seriedade da palavra presidencial. [ 130 ]
Emmanuel Macron também se permitiu algumas
provocações, que podemos acreditar calculadas, como
aquelas relativas ao necessário retorno de certos
imigrantes para seu país, em novembro de 2017, ou
quando destacou, de maneira bem inesperada, sua
exasperação diante do lembrete culpabilizador da
memória da guerra da Argélia em dezembro do mesmo
ano. Macron compreendia, ao que tudo indica, que basta
transgredir os códigos do politicamente correto, mesmo
minimamente, para estabelecer um vínculo com o
eleitorado de direita. Da mesma maneira, bastou que
Emmanuel Macron não ficasse de todo embevecido
diante da imigração maciça para que fosse remetido ao
campo dos proscritos ou, ao menos, dos inimigos do
“humanismo”. No entanto, essa estratégia se desdobrou
plenamente e, ao mesmo tempo, se revelou quando
Macron escolheu para entrevistá-lo, em abril de 2018,
Edwy Plenel. Ao confrontar Plenel, e até lhe opondo uma
resistência jocosa, recusando-se a tremer diante dele,
angariava de um lance um verdadeiro capital de simpatia
entre os eleitores de direita, sem esforço algum.
Compreende-se então que Macron esvaziou a direita no
plano simbólico, sem na prática haver-lhe concedido
muito no plano político, ainda que depois tenha perdido
grande parte dessa simpatia por sua mania de dar o
mesmo lote de garantias à esquerda cultural.
Será preciso concluir que o eleitorado de direita se
contenta com promessas vagas? Será que basta não
falar como um bobo [ 131 ] para suscitar de imediato a
simpatia dos que já não suportam o politicamente
correto? Tudo indica que sim, na medida em que
qualquer pronunciamento que divirja da ortodoxia
midiática suscita, ato contínuo, uma simpatia entre os
que sentem que o real vem sendo censurado por
demasiado tempo. Há muito que a direita já não faz
política, e nem mesmo se imagina fazendo. Palavras
pomposas consolam e, no fim, anestesiam. Sob certos
aspectos, a direita se contenta em ser respeitada em sua
derrota histórica, o que não fora feito pelos ministros de
François Hollande, que não paravam de pisotear o velho
mundo, acusando os que a ele se apegavam de racismo,
sexismo ou homofobia. O eleitor de direita não quer
necessariamente ganhar: ao menos, já não acredita em
sua vitória e mostra-se surpreso quando líderes políticos
ou figuras midiáticas enfrentam de fato a mentalidade da
época e intentam recuperar o terreno perdido por meio
de polêmicas, leis e verdadeiras decisões políticas. No
entanto, quer parar de ser humilhado. Tolera que o
mundo mude: há muito tempo lhe vinham explicando
que a modernidade tinha algo de inelutável e era
unidirecional. Mas não tolera que o apresentem como a
madeira morta da humanidade, ou como sua parte
retrógrada e desprezível. Emmanuel Macron o havia
compreendido, desolando-se com o tratamento
reservado aos adversários do casamento para todos, sem
se opor, como se pode suspeitar, à medida em si, ou
comparecendo em Puy-du-Fou para exibir seu respeito
por aquilo a que se chama a outra França. Essa forma de
triangulação simbólica, para dizê-lo com as palavras da
ciência política, permitiu que Emmanuel Macron tirasse
proveito dos temas da direita sem fazer uma política de
direita quanto às questões de civilização. Ele neutraliza a
direita, dando a impressão de respeitá-la. Sem extrair
disso conclusões definitivas, pode-se assinalar um
aspecto da psicologia do eleitor de direita: ele tem
expectativas bem menos elevadas do que em geral se
pensa.
FIGURA DA DIREITA DESCOMPLEXADA E…

A DIREITA DESCOMPLEXADA VISTA PELA ESQUERDA

No entanto, pode ocorrer que a direita – ou ao menos


uma parte dela – queira mudar o equilíbrio de forças e
combata a esquerda frontalmente. [ 132 ] Ela já não
pretende ser boa aluna, mas insurreta. Já não suporta
viver sob vigilância, sempre a se perguntar se não
estaria indo longe demais, além de ir na direção errada;
então nasce nela um desejo ofensivo. Ganha a convicção
de que um programa morno não interessa a ninguém, e
que um corno contente não é lá muito inspirador. Já não
consegue reprimir o que pensa ou imagina pensar – ao
menos, o que tem certeza de sentir. A direita deseja
então assumir-se e emancipar-se do olhar da esquerda.
Já não pretende desculpar-se por existir. Quer então
confrontar a esquerda em seu terreno, sem deixar-lhe o
monopólio dos códigos da respeitabilidade. Revolta-se e
já não aceita viver sob sua tutela ideológica. Isso é o que
se chama a direita descomplexada. A direita deveria
então reencontrar seus valores, seu imaginário próprio, e
parar de se definir meramente como esquerda
comedida. [ 133 ] Já não se contentará com um
pragmatismo gerencial, mas formulará sua própria visão
da boa sociedade. Quando se sente audaciosa, põe-se
até a ler Gramsci ou, ao menos, assim afirma –
compreendeu que Gramsci se tornou o símbolo de uma
vontade de construir uma hegemonia ideológica. É a
hora da revolução dos valores. [ 134 ] A direita anuncia seu
desejo de resgatar os temas políticos abandonados, que
em geral giram em torno da questão identitária e, mais
amplamente, da questão civilizacional, que ela havia
abandonado à direita populista. Esse chamado ao grande
impulso de uma direita liberada de seu complexo de
esquerda energiza, sem a menor dúvida, boa parte
daquela sua base eleitoral habitada por uma forte
consciência nacional e atormentada pelo sentimento do
rebaixamento da pátria.
O conservadorismo se torna então o símbolo de um
desacordo – ligado não à conjuntura, mas a princípios –
com a esquerda. No entanto, esse conservadorismo
reivindicado costuma ter dificuldade para traduzir-se
politicamente. De fato, basta fazer o histórico das
numerosas ressurreições da direita descomplexada para
constatar que seu chamado costuma permanecer no
âmbito da retórica, como se a direita descomplexada
fosse antes de tudo uma direita de fanfarronadas – nunca
se viu, por exemplo, a direita reverter uma reforma
societal que a esquerda carimbou com o sentido da
história. Ainda que tonitruantes e decididos a deixar de
ser penitentes, os líderes da direita não parecem
defender um mundo, mas os resquícios de um mundo,
sabendo de antemão, na maior parte do tempo, que
estarão prontos para fazer concessões quanto à posição
à qual hoje pretendem absolutamente aderir. Fatalismo
inconfesso? Querem de fato lutar contra a mentalidade
da época, mas sabendo-se vencidos de antemão.
Secretamente, o homem de direita se pergunta se o que
ele ama já não está morto ou, ao menos, se ele não está
chegando tarde demais para salvá-lo. Será que se trata
apenas de impedir o mundo de ontem de desaparecer
demasiado rápido, para que o homem possa habituar-se
ao novo mundo que surge sem ser lançado nele de
maneira precipitada? Será que se trata de frear a
evolução, de reconstruir o mundo de ontem, fazendo
uma espécie de política reacionária? Será que se trata
meramente de desacelerar o movimento da história, a
fim de conservar certas formas sociais herdadas, antes
que fiquem completamente gastas e só apareçam como
privilégios indefensáveis que devem cedo ou tarde ser
abolidos? Faz-se oposição à gestação por substituição, à
imigração maciça e às repetidas concessões ao Islã,
mesmo sabendo que, no fim, muitos capitularão, além de
acusar de radicais os que não capitulam. A direita é
representada na situação detestável de guardiã dos
privilégios: ela se opõe à marcha do mundo e, no fundo,
já se sabe condenada, o que a torna bem pouco valente
quando vem a hora de defender suas posições e suas
ideias. Por mais descomplexada que seja, a direita não
parece mentalmente preparada para retomar o terreno
perdido e para fazer avançar seu próprio programa.
A expressão “direita descomplexada” é com frequência
retomada pela esquerda, à maneira de uma acusação de
radicalização. A direita descomplexada seria uma direita
desinibida, que resgata afetos e paixões que a
modernidade havia recalcado. A direita descomplexada
seria uma direita abrutalhada e pronta para transpor a
qualquer momento a linha vermelha que a distingue da
“extrema-direita” – sem que ninguém se dê ao trabalho
de saber quem traça essa famosa linha vermelha ou,
mais sobriamente, quem fixa os critérios que distinguem
a direita da extrema-direita e qual o momento em que
uma posição se torna tão radical a ponto de oscilar para
o universo dos extremos. Na realidade, a direita
descomplexada teria a intenção de recuperar o terreno
historicamente concedido à direita populista, mas isso
não é permitido. Abandonada à direita populista, a
questão da identidade já não poderia ser recuperada
pela direita republicana sem que esta se corrompesse
moralmente. A direita descomplexada faria o jogo da
direita populista ao normalizar seus temas, ao reintegrá-
los na conversa cívica. Isso porque, quando o terreno é
cedido, é de uma vez por todas: a marcha da história
passou por ali e já não é possível voltar a ele sem oscilar
para a reação e inserir-se assim na lógica da extrema-
direita. A esquerda que acusa a direita de se
descomplexar reconhece implicitamente, e com
frequência sem sequer se dar conta disso, que ela só
reconhece como direita legítima a que se encontra sob
sua tutela. Uma coisa é certa: uma direita que já não se
define nos parâmetros da esquerda é a partir daí
considerada por esta última como uma extrema-direita
(ou, ao menos, como uma extrema-direita potencial).
Existe aí uma espécie de confissão da parte da esquerda
ideológica, para a qual a direita nada mais é do que uma
extrema-direita refreada, ou a extrema-direita, nada além
de uma direita desinibida. [ 135 ]
Encontramos aí um dos esquemas mentais que
estruturam o progressismo: ele não imagina o conflito
político como uma luta entre concepções relativas e
necessariamente aproximativas do bem comum, mas
como uma luta entre o império do bem e o império do
mal, enquanto a direita, na maior parte do tempo, é
incapaz de refletir sobre o conflito fundamental que a
opõe à esquerda, quando decide efetivamente se
assumir como algo além de um duplo diminuído desta
última. A esquerda precisa confrontar moralmente a
extrema-direita ou os que fazem seu jogo. Precisa de
inimigos. “Não obstante seu proclamado amor pelo
gênero humano”, observa Patrick Buisson, “a esquerda
dispõe (no âmbito político) de uma nítida vantagem
psicológica. A matriz revolucionária de que se origina
torna impossível para ela viver politicamente sem
inimigos, ter acesso à esfera pública de um modo que
não seja o da polarização exacerbada em que o inimigo
substitui o adversário ou o concorrente”. [ 136 ] Philippe
Muray escreveu isso raivosamente: “foi na
inquebrantável convicção de encarnar a guerra contra o
Mal que a esquerda de hoje se constituiu, ela nada mais
é do que o partido devoto contemporâneo”, [ 137 ]
enquanto Alain Finkielkraut se preocupa com “o grande
sonho progressista de nunca lidar com problemas, mas
sempre com canalhas”. [ 138 ] Isso é o que explica a
prosperidade do antifascismo num mundo em que o
fascismo foi vencido há muito tempo e só existe por meio
de alguns grupelhos sectários. [ 139 ] O antifascismo
prescinde do fascismo histórico, na medida em que este
último é reconceitualizado como a tentação da exclusão,
que seria o avesso da emancipação democrática. Basta
querer circunscrever a comunidade política de maneira
um tanto estrita para ser acusado de atualizar a tentação
fascista. A definição do fascismo será incessantemente
estendida para justificar a mobilização contra ele. Na
véspera da eleição presidencial francesa de 2017,
Christiane Taubira se dedicou, numa entrevista torrencial,
a considerações gerais sobre a direita, contra a qual mais
uma vez convidava o seu campo a se mobilizar. Sem
grandes matizes, afirmava que “a direita faz comércio da
ansiedade, da angústia, da desesperança, isto é, de um
desespero dinâmico que é renovado, cultivado. A direita
faz comércio disso lúcida e cinicamente”. [ 140 ] A
acusação era franca, clássica e sem originalidade: a
humanidade se divide entre as forças da luz e o
obscurantismo. A esquerda eleva o homem, a direita
rebaixa-o: cada qual está ligada a uma parte singular da
alma humana. A primeira impele o homem para a
emancipação, a segunda, para a regressão. A direita, em
outras palavras, seria a expressão política das baixas
paixões que atravessam a natureza humana. Ela
canalizaria, na comunidade política, um espírito maligno
que impele os homens ao retraimento e à exclusão.
Consequentemente, a civilização se constituiria por meio
da repressão à direita: só seria possível tolerar, no
espaço público, sua parcela moderada, que consente em
definir-se segundo os valores progressistas e envia
regularmente sinais ostensivos de virtude. Carolin Emke,
numa obra celebrada, reduziu essa polêmica a sua
dimensão mais simples, pronunciando-se assim contra o
ódio [ 141 ] – o ódio que seria, antes de tudo, uma paixão
maníaca pela pureza, pelo homogêneo, e que se
traduziria pela rejeição visceral às diferenças. Ou o
homem consente na dissolução de todos os seus
pertencimentos, ou é tomado por estremecimentos de
ódio. A psicologia do progressismo é inquisidora: não leva
a um conflito civilizado entre concepções contrastadas
do bem comum, mas a uma luta a ser terminada entre o
bem e o mal.
QUEM É DE DIREITA É DE ESQUERDA

À luz das elaborações anteriores, compreende-se por


que razão existe algo de ilusório na defesa de um debate
desapaixonado e respeitoso entre a esquerda e a direita,
na medida em que a primeira só quer debater com a
segunda enquanto tiver o controle dos códigos da vida
pública e lograr definir, exclusivamente em seu favor, os
parâmetros da conversa democrática. A divisão
esquerda-direita não é feita, de fato, para permitir a
coexistência de várias concepções do bem no centro da
comunidade política, mas para impor uma única,
chamada a tomar todo o espaço, como se conjugasse o
monopólio do verdadeiro, do bem e do justo. Existe, é
claro, uma tendência a acreditar que a divisão esquerda-
direita, embora se mantenha apesar de tudo, tenha se
desradicalizado consideravelmente, o que é defendido
em especial por Jacques Julliard, quando este afirma que
“passamos de uma cultura política do mútuo extermínio
a uma cultura do enfrentamento ponderado”. Embora
não reste a menor dúvida de que a grande disputa em
torno do capitalismo tenha se amornado e que haja
inúmeros pontos de contato entre a esquerda social-
liberal e a centro-direita liberal e social, é preciso
acrescentar, contudo, que a divisão esquerda-direita já
não se constitui de fato em torno dela ou, ao menos, já
não encontra nela seu ponto de ancoragem ideológica.
“O que morre”, acrescenta Julliard, “é a concepção ideal
da política como uma gigantesca psicomaquia que opõe
entidades abstratas como o Bem e o Mal, o Justo e o
Injusto; é a política como forma secularizada do
julgamento final: é a visão erradicadora […] que não vê
no adversário alguém que pensa de outra maneira, mas
um inimigo irreconciliável. Pior que isso: um predador. Tal
relativização moral só foi possível a partir da
desvinculação entre as opiniões e as classes sociais”. [ 142
] No entanto, é justamente a partir do momento em que
a política deixa o âmbito do ordenamento concreto de
uma sociedade imperfeita para tratar de questões como
a imigração maciça, o multiculturalismo, a diferença
sexual ou a liberdade de expressão que ela se recarrega
ideologicamente e que reaparece a tentação de erradicar
o adversário que não marcha no ritmo do progresso
diversitário. Não se trata, é claro, de dizer que, no plano
das políticas e dos programas, os dois campos não
podem formular propostas válidas, que mereçam uma
adesão sincera da parte dos que compõem o corpo
político. Em geral encontramos excelentes ideias em
todos os campos, e a inteligência política mais elementar
consiste em reconhecer isso. Quando a política se atém à
escala programática, em que os partidos propõem, cada
qual, soluções para ordenar de modo prosaico a
comunidade política, fórmulas inspiradoras serão
encontradas em cada um dos campos. Isso é o que
dizem os que se pretendem esquerdistas e direitistas, ou
que buscam inspirar-se nos dois campos para definir uma
política sem exclusividades. O encerramento doutrinal é
uma força de estreitamento mental. No entanto, quando
se estende a vista à altura da história, parece difícil
negar que essa divisão, com o tempo, tem um objetivo
que vai além de uma organização ponderada do
pluralismo político: visa antes à plena realização de uma
modernidade que se terá livrado de uma vez por todas
de seus últimos entraves.
A evidência impressiona: quem é de direita é de
esquerda, na medida em que quem aceita entrar nessa
divisão é sugado por uma dinâmica que parece mais ou
menos incontrolável a partir de seu campo. Ao continuar
a se definir nessa divisão, aquilo a que chamamos direita
depende do posicionamento que será tomado pela
esquerda; ela se define sistematicamente numa
linguagem ideológica cujos códigos e cujas mutações ela
não domina: condena-se, assim, à impotência intelectual
e, portanto, política. Só pode extrair-se dessa dinâmica
de abdicações repetidas ao aceitar de antemão sua
própria demonização. No entanto, na medida em que
parece ilusório despedir-se de um sistema de
representação bem implantado na cultura política
ocidental e sistematicamente renovado como grade de
análise pelo sistema midiático, é provável que seja
preciso aceitar, à maneira de uma categoria incômoda,
mas inevitável, a existência da direita. Nesse caso, ao
menos, não é de seu interesse cultivar com a política a
mesma relação cultivada pela esquerda. Não deve
defender um sistema ideológico alternativo, mas uma
civilização, em suas mil facetas. A direita não tem
apenas outras ideias: tem outra relação com as ideias. A
direita não ambiciona construir uma civilização ideal com
sua própria maquete. Não pretende racionalizar o mundo
por completo, submetendo-o a sua própria lógica – julga-
se consciente, ao menos em teoria, do caráter
fundamentalmente irreconciliável da ordem social, que
jamais pode chegar a uma síntese definitiva, em que
todos os valores e todos os interesses viriam encaixar-se
num mosaico perfeito. Sua política não pretende fundir a
comunidade política numa síntese ideal – visa antes a
uma síntese prática, sempre inacabada, sempre
decepcionante, também, para os que pretendem
consumar na Terra a comunidade política perfeita. [ 143 ] A
arte política consiste em manter a coesão de uma
comunidade política particular, entretecida na história, e
que não tem a pretensão de se refundar numa mística da
transparência, confiando-se aos engenheiros sociais
convencidos das virtudes do construtivismo absoluto.
Isso foi o que Marc Crapez observou com sutileza: “a
direita não é o que a esquerda acredita que seja. O
dilema já não diz respeito à Revolução Francesa ou ao
critério religioso. Nem a valores como o individualismo
pluralista. A direita não tem nada contra a justiça, a
igualdade diante da lei ou o caráter sagrado da pessoa.
Define-se por uma coisinha de nada: uma relação
privilegiada com a história, a história como medida”. [ 144
] A direita, em outros termos, é o partido das mediações
que ancoram o homem numa humanidade concreta, e
que relembram à modernidade sua insuficiência
antropológica. A partir do momento em que pretende se
opor a um empreendimento de reconstrução ideológica
permanente da comunidade política, condena-se a um
conflito político receado por ela. A direita, em última
instância, nunca será respeitável o bastante para a
esquerda.
Capítulo 4 | O progressismo e os leprosos
 
O populismo como desvio reacionário da democracia
 
 
 
 
 
Não prevíramos que o antigo retornaria, novinho em folha.
Régis Debray
 
Os camponeses poloneses decerto não se encontravam nos
píncaros da civilização. Talvez os que eu observava fossem até
iletrados. Meu amigo certamente teria dito que eram imbecis
fedorentos e abomináveis aos quais se precisava ensinar a pensar.
No entanto, uma semente fora preservada neles, ou nos bálticos,
ou nos tchecos; e isso foi possível porque eles não haviam sido
curados à maneira do Sr. Homais. Não estou certo de que a ternura
com que as mulheres bálticas cuidam de seus jardinzinhos, as
superstições das mulheres polonesas que colhem ervas mágicas, a
tradição de deixar um prato para um viajante antes de sentar à
mesa para o jantar na véspera do Natal, não sejam garantias de
uma força benfazeja passível de ser desenvolvida. […] Para os
círculos em que meu amigo vive, supor que o homem seja um
mistério é um insulto abominável. E, no entanto, essa gente quer
erigir um homem novo – mas faz isso como o escultor que extrai
uma imagem da pedra rejeitando tudo o que é supérfluo. Parece-
me que essa gente se engana – que seu saber, por maior que seja,
é insuficiente, e que o direito de vida e de morte que detém em
suas mãos é uma usurpação.
Czesław Miłosz
 
No verão de 2018, em Quimper, na Bretanha, quando
se anunciou uma longa campanha pelas eleições
europeias, que então se desenhavam como um referendo
sobre a imigração maciça, Emmanuel Macron quis situar
a celeuma em escala histórica, apresentando-se como o
campeão do progressismo contra a “lepra populista” e
nacionalista. [ 145 ] A formulação dava facilmente a
entender que a civilização europeia estava prestes a
reviver, num novo cenário histórico, a luta entre a
democracia e o fascismo, algo que o presidente francês
confirmou alguns meses depois, confiando à imprensa
que sentia pairar sobre o nosso tempo a sombra dos
anos 1930, uma referência que se tornou obsessiva entre
os que querem conter o retorno das nações e até acabar
com elas. Aliás, foi o imaginário do contágio que
Emmanuel Macron mobilizou para falar de seus
adversários. A lepra gera leprosos, e não se convidam
leprosos para participar da vida pública assim, como se
nada fosse. Primeiramente, eles são postos em
quarentena e, depois, na medida do possível, são
tratados. A questão aqui, naturalmente, era uma lepra
política suscetível de necrosar o corpo social. Segundo a
formulação belga, seria necessário estender um “cordão
sanitário” para impedir a contaminação do espaço
público. A mobilização era urgente. A Europa estaria no
cerne do abismo. Jamais a democracia europeia teria
estado tão fragilizada desde que pairou sobre ela a
ameaça totalitária.
Nada disso era realmente novo, verdade seja dita.
Desde o início dos anos 1990 e a queda do muro de
Berlim, que por um tempo fez acreditar num fim da
história que dissolveria de uma vez por todas os
enfrentamentos políticos numa simples disputa gerencial,
a vida política europeia se repolarizou por meio do
combate contra a “extrema-direita”. Este último logo se
tornou a obsessão do sistema midiático e da ciência
política. Tratava-se de construir uma categoria de
contraste que servisse a um só tempo para descrever o
fenômeno e denegri-lo. A figura do inimigo, constitutiva
da política, porém neutralizada pela antropologia liberal,
recompunha-se a partir do retorno de um perigo
esquecido. Uma força derrotada havia muito tempo
voltava a assombrar a democracia, saindo das margens
em que fora mantida encerrada. A velha extrema-direita,
há muito vencida, teria retornado com novos trajes: é o
que dá a entender a denúncia apavorada do “retorno dos
populismos”. No entanto, essa narrativa soava falsa.
Existem limites para a soada do alarme contra o eterno
retorno dos anos 1930, exceto quando se quer assimilar
toda forma de crítica da modernidade a um pensamento
desviante que conduz inevitavelmente ao fascismo e ao
nazismo. A fera sórdida nem sempre está às nossas
portas e seu ventre não é necessariamente fecundo.
Historiadores, estudiosos da política e sociólogos
buscaram formular conceitos e grades interpretativas
para explicar o que havia de fundamentalmente novo no
surto populista, sem, contudo, deixar de tratá-lo como
uma ameaça. Ao menos, tratava-se de uma ameaça
parcialmente inédita, que não renovava de maneira
simplista as disputas de ontem no mundo de hoje.
Taguieff falará assim de um movimento nacional-
populista, para esclarecer nossa compreensão de um
novo objeto. “A falsa clareza da categoria ‘extrema-
direita’, substituída pela categoria da ‘direita radical’,
constituiu o principal obstáculo às tentativas de analisar
as formas emergentes de uma contestação global, de
cunho não marxista, das sociedades contemporâneas.
Conduz a postular que os neopopulismos europeus de
direita, reduzidos a rebentos de uma velha extrema-
direita, são uma ‘ameaça para a democracia’, quando
antes de tudo são um sintoma de um mal-estar
democrático […].” [ 146 ] No entanto, as elaborações
conceituais da ciência política e esse apelo para que não
se reduza o movimento histórico a um eterno retorno do
mesmo relativizam apenas em parte a encenação do
perigo populista: a democracia se redefinirá
positivamente à maneira de um programa de luta contra
todas as discriminações e, mais em particular, de luta
contra o racismo, o sexismo e a homofobia. Na
democracia contemporânea, o antifascismo se
emancipou da luta contra o fascismo histórico e
converteu-se em luta contra toda forma de
conservadorismo que pretenda se opor à mutação
civilizacional associada aos Radical Sixties. O novo
regime diversitário conseguiu assim tirar proveito da
lembrança dele, para então associar seus próprios
adversários ao inimigo diabólico da democracia contra o
qual tudo seria permitido. [ 147 ] A luta contra a
intolerância vem substituir a luta contra o fascismo –
esse deveria ser o projeto político do nosso tempo, e
passaria pela desconstrução dos particularismos
históricos como as culturas nacionais ou as identidades
civilizacionais mais profundas, relativas à natureza
humana –, pode-se pensar na diferença sexual. O
antifascimo saiu do enclave da experiência histórica do
fascismo: a partir de agora, sua vocação é conduzir a
batalha pela sociedade aberta, contra a sociedade
fechada. Reencontramos aqui a teoria da Escola de
Frankfurt, para a qual o fascismo outra coisa não era, no
fim das contas, senão um conservadorismo radicalizado
em situação de crise, baseado nas estruturas tradicionais
da civilização ocidental e na personalidade autoritária,
que naturalmente se lançaria para ele a fim de conter
uma decadência existente em sua fantasia. [ 148 ] “Tanta
energia despendida contra um fascismo ilusório”,
observou Jean Sévillia, “tem a função exclusiva de
preservar a herança ideológica da qual as elites são
depositárias, sua utopia de um universo sem restrições e
sem barreiras”. [ 149 ]
Não resta a menor dúvida, um poderoso surto de
protesto se faz sentir, que remexe as camadas profundas
da sociedade e abala os arcabouços em geral assentes
da análise política, como se o sistema de interpretação
global que deveria tornar inteligível esta crise em grande
escala penasse para enxergar aí algo que, no entanto, é
uma mutação da vida democrática ocidental. Ele é
rotulado de populista, mas esse termo nem sempre é
reivindicado, longe disso, sobretudo porque agrega
fenômenos que, embora correspondentes em certos
planos, têm pouca relação entre si em muitos outros. [ 150
] Em regra geral, qualificar um adversário de populista é
injuriá-lo. O populismo também costuma ser associado a
um estilo insurrecional, quase demagógico. Se o
empregamos aqui, como se deve ter compreendido, é
pela vontade de decifrar o tratamento dado a esse surto
pelo sistema político-midiático. Em vários países, os
partidos populistas conseguiram sair da mera função
demagógica da qual se haviam apropriado, na qual
constituíam politicamente o povo numa postura
insurrecional, algo que, paradoxalmente, consagrou sua
exclusão do jogo político. [ 151 ] É a uma recomposição
política de grande envergadura que assistimos. Os
próprios temas inseridos no cerne da conversa cívica se
transformam. Diante do surgimento da questão
identitária, a esquerda social-democrata e a direita
liberal, que durante muito tempo haviam
respeitosamente disputado entre si dentro dos
parâmetros do Estado social, encontram por fim a
oportunidade de reconciliação. Quanto às forças novas,
conseguem impor-se, e até concorrer por funções
governamentais. Nos Estados Unidos, o sistema político
não foi capaz de conter a insurreição populista, que
logrou apoderar-se, por meio da campanha de Donald
Trump, de um dos dois polos do sistema político
partidário, enquanto tradicionalmente o populismo, quer
de esquerda, quer de direita, apostava na opção do
terceiro partido, que, conforme se esperava, emanciparia
a política estadunidense do combate sempre renovado
entre republicanos e democratas. Em outras palavras,
embora a estratégia de Trump seja populista, não se
deve esquecer que ele não a exerceu exclusivamente a
partir das margens do jogo político, mas apoderando-se
de um dos dois grandes partidos da política
estadunidense, e isso num momento em que os
democratas escolhiam uma candidatura que encarnava
de maneira caricata um sistema cada vez mais errático.
Da mesma maneira, na Grã-Bretanha, o sistema
parlamentar, tradicionalmente capaz de conter os surtos
de protesto ou, ao menos, de neutralizá-los privando-os
de seu radicalismo, fracassou no caso do Brexit: o UKIP,
partido soberanista e conservador, foi capaz, ao apostar
essencialmente no palco político europeu, de ocupar
espaço político suficiente para forçar os grandes partidos
a realizar um referendo, o que lhes foi recriminado. Na
Europa ocidental, o populismo consegue participar das
coalizões governamentais, como se viu na Itália,
enquanto na Europa oriental conquistou o poder, fazendo
inúmeros países oscilarem para a democracia iliberal,
segundo a formulação hoje autenticada, cujo significado
é menos evidente do que se imagina. Não é garantido
que se possam integrar tais realidades num único e
mesmo fenômeno global, mas a politologia progressista
que domina mentalmente o sistema midiático ocidental
de interpretação assim as apreende. [ 152 ] A imagem que
se costuma adotar é a do tremor de terra global, que
fragilizaria a democracia ocidental. Esse populismo,
identitário, conservador e soberanista, poria em questão
o sistema da globalização que se desdobrou desde o
início dos anos 1990, e mais ainda, a sociedade
diversitária oriunda dos Radical Sixties.
Não restam dúvidas quanto à sinceridade da cruzada
macroniana – ela é típica da psicologia política
progressista, que não concebe a comunidade política
como o lugar de um enfrentamento entre vários polos
ideológicos legítimos, cada qual traduzindo à sua
maneira uma antropologia em filosofia política, mas
como uma luta a ser concluída entre o bem e o mal. No
entanto, o discurso de Emmanuel Macron tinha também
uma finalidade estratégica explícita e representava uma
forma de contra-ofensiva, em escala global, diante do
surto populista: tratava-se de configurar o espaço político
em seu próprio favor, numa luta a ser consumada entre o
progressismo e o populismo, liquidando a direita
conservadora, como se esta última não passasse de uma
quantidade negligenciável no debate público, com suas
magras tropas tendo de fundir-se na maioria progressista
e consentir na própria neutralização, ou de aliar-se ao
movimento populista e consentir em sua própria
exclusão simbólica do perímetro republicano, ou de
manter uma existência residual entre ambos, marcada
pelo selo da insignificância. O sistema político francês
parecia esgotado, e encontrou em Emmanuel Macron
uma maneira de se reconstituir sem passar por aquilo a
que se denomina “extremos”. Vindo da “esquerda”,
Emmanuel Macron foi capaz, em menos de um ano, de
passar junto a uma parte da opinião pública por um
presidente de “direita”, sem, no entanto, deixar-se
circunscrever por uma identidade política precisa. Com
seu acesso ao poder, teorizou uma representação do
espaço público que lhe permite, ao menos por um tempo,
proteger-se das correntes mais agitadas da política
francesa. Para dizê-lo em termos geográficos, Emmanuel
Macron soube situar-se em posição central e repelir seus
adversários para a periferia. Assim posicionado, esperava
uma vitória quase total – essa estratégia não data de
ontem, foi elaborada primeiramente por Giscard, que
pretendia reunir dois franceses em cada três e deixar nas
margens as oposições decretadas como radicais, quer de
esquerda, quer de direita, quer se afirmem ligadas ao
comunismo, quer ao gaullismo conservador.
Macron queria se envolver num duelo com o
populismo, que ele acreditava ser vantajoso, e reeditar o
cenário do segundo turno da eleição presidencial de
2017, quando havia liquidado a direita para ter diante de
si apenas a candidata do Front National – uma estratégia
que lhe permitiu também, no primeiro ano de sua
presidência, escolher seus oponentes privilegiados,
principalmente Jean-Luc Mélenchon, tirando proveito
disso para aniquilar quase por completo a questão
identitária, quanto à qual ele se sabia em situação
desvantajosa. [ 153 ] O presidente francês não queria
representar apenas um de dois ou três campos, mas
apresentar-se como o candidato natural do conjunto dos
interesses sociais e políticos legítimos. Tratava-se, assim,
de ocupar todo o espaço da legitimidade política e
relegar ao exterior do perímetro da respeitabilidade
democrática os partidos que não se reconheciam no
futuro pós-nacional e diversitário que ele destinava ao
velho continente. Pretendia reunir todas as contradições
fecundas e razoáveis no grande partido presidencial, que
seria o da unificação das forças modernizadoras e
liberais do país, e deixar nas margens os desacordos de
fundo. Ele seria o futuro: seus adversários seriam o
passado. O macronismo seria o partido da inteligência. Aí
se poderia ver, do mesmo modo, uma reafirmação da
teoria do “círculo da razão” – proposta durante certo
tempo por Alain Minc –, que representava bem o ponto
de vista das elites midiáticas e políticas das três últimas
décadas: embora possam existir desacordos de método
quando chega a hora de resolver os problemas da
comunidade política, eles não poderiam existir quando
chega a hora de definir e conceitualizar tais problemas. A
única oposição válida seria construtiva. Haveria europeus
modernos de um lado e velhos gauleses refratários do
outro. O progressismo sempre volta a esse ponto: é
preciso distinguir entre as forças vivas e a madeira morta
de uma sociedade, entre a vanguarda e os retardatários,
entre as vias do progresso e as da reação, entre a
sociedade aberta, voltada para o futuro, e a sociedade
fechada, fixada na nostalgia. Em outras palavras, para
além de uma simples manobra estratégica em contexto
eleitoral, Emmanuel Macron pretendia assim refundar os
critérios da legitimidade política europeia, distinguindo
entre os oponentes legítimos e os que não o são, entre
os que deveriam ser integrados à conversa pública e os
que deveriam ser excluídos dela, na impossibilidade de
serem formalmente expulsos, pois a legalidade e a
legitimidade democrática jamais coincidem com
perfeição. Durante algum tempo, a imprensa anglo-
saxônica erigirá Macron em herói europeu, capaz de pôr
a Europa de novo no bom caminho.
A DEMOCRACIA CONTRADITÓRIA

Eis o grande pânico das elites progressistas. Nós


entraríamos na idade da regressão, caracterizada pela
volta do foco político a dimensões como “o
pertencimento nacional, as promessas de segurança e a
restauração da grandeza de outrora”. [ 154 ] Heinrich
Geiselberger, no prefácio de uma obra internacional que
reuniu intelectuais de destaque, no intuito de refletir
sobre uma réplica ideológica ao populismo, escreverá
que é um processo de “des-civilização” que se põe “em
movimento diante dos nossos olhos”. [ 155 ] Esse
comentário desolado se acompanha de uma forma de
lucidez tardia: “pode-se afirmar que um ‘nós’
cosmopolítico convicto nunca foi verdadeiramente capaz
de tomar forma. Muito pelo contrário, assistimos hoje a
uma renovação das diferenciações étnicas, nacionais e
confessionais”. [ 156 ] Arjun Appadurai acredita resumir
assim a celeuma do nosso tempo: “a grande pergunta
suscitada em nossa época consiste em saber se
assistimos ou não a uma rejeição em escala mundial da
democracia liberal e a sua substituição por uma ou outra
forma de autoritarismo populista”. [ 157 ] A liberação da
palavra corresponderia, portanto, a um desmoronamento
dos diques que contêm a parte ruim de uma civilização
que a modernização diversitária da última metade de
século havia permitido reprimir. Como escrevia Natacha
Tatu num “elogio do politicamente correto”, “fazer cair a
barreira do pensamento convencional é correr o risco de
liberar as piores pulsões. Xenófobos, antissemitas,
islamofóbicos, misóginos, homofóbicos, maníacos
armados, extremistas de todo tipo ganham novo
ímpeto”. [ 158 ] A dissidência política em grande escala é
julgada inadmissível e, consequentemente, é preciso
reconstruir o espaço público para evitar que ela saia das
margens ou chegue a desempenhar algo além de um
papel demagógico. Na realidade, é a dinâmica ideológica
dominante que é posta em questão cada vez mais
abertamente, que conjuga o paradigma diversitário com
a lógica da emancipação.
No entanto, a hipótese da rejeição da democracia
liberal merece ser examinada de mais perto. Isso porque,
nessa grande narrativa da democracia a ser salva desses
novos bárbaros constituídos pelos plebeus enraizados,
tropeça-se num grande problema: longe de excluírem a si
mesmos do imaginário democrático ou de considerar a
democracia como um regime degenerado que seria
preciso derrubar para então restaurar a potência da
nação, aqueles que são chamados populistas afirmam
sua adesão a ela, e mais, afirmam-se como seus
melhores tradutores políticos, seus melhores defensores.
Os populistas não aceitam o papel de antidemocratas, e
a menos que sejam pintados exclusivamente à maneira
de manipuladores sorrateiros, que jogam com o sentido
das palavras para dissimular um programa inconfessável,
será preciso levar a sério essa pretensão e ver como eles
compreendem a democracia. Embora eles descambem,
decerto, para a demagogia, não têm o monopólio dela, e
a defesa por parte deles de um povo sacralizado,
homogêneo em sua revolta contra uma elite
conspurcada, responde em parte ao discurso de uma
elite esclarecida, que segura as rédeas de uma
população intoxicada por seus preconceitos
etnocêntricos. Os populistas julgam ser, atualmente, os
restauradores, e mesmo os salvadores de uma
democracia que se tornou alheia à sua promessa
inaugural, e pretendem resgatar um princípio esquecido,
até desprezado: a soberania popular, que promete a um
povo que ele decida por si mesmo sobre as finalidades
que situará no cerne de sua existência política e sobre as
grandes decisões que lhe permitem construir seu futuro.
O populismo, ao reativar a dimensão agonista da vida
política, contribui na realidade para a repolitização da
democracia: reintroduz desacordos substanciais lá onde
só restavam desacordos secundários. O imaginário
democrático é interpretado de maneira tão contraditória
pelos progressistas e pelos populistas que somos na
realidade testemunhas de uma reabertura da questão do
regime. Já não se trata apenas de ordenar uma
sociedade cujos parâmetros são geralmente aceitos pelo
conjunto dos atores sociais, mas antes de redefinir a
formatação do poder. Em outras palavras, tanto o
progressismo como o populismo afirmam sua adesão à
democracia e acusam-se mutuamente de traí-la, o que
nos relembra seu caráter irredutivelmente polissêmico.
De maneira muito esquemática, seria possível dizer
que os progressistas se interessam pela dimensão formal
da democracia liberal, enquanto os populistas se
interessam por sua dimensão substancial, e que não se
poderia sacrificar nem uma nem outra. O movimento
populista mobiliza afetos há muito tempo despolitizados
na ordem liberal do pós-guerra, que se quis tecnocrática
e passou a definir a nação apenas por meio de uma
referência asséptica e ressequida aos valores, como se
sua espessura histórico-cultural houvesse deixado de
contar. Já não parece possível invisibilizar assim a parte
carnal da comunidade nacional. O retorno das paixões
políticas é assimilado pela politologia progressista a uma
submersão da razão pela emoção ou, pior ainda, a um
simples retorno do “ódio”. [ 159 ] Enquanto a modernidade
tecnocrática havia buscado despolitizar a coisa pública,
submetendo-a à lógica racionalista do plano ou
neutralizando-a por meio da lógica do mercado, o retorno
dos tempos trágicos reposiciona a decisão política no
cerne da história – é a própria existência da comunidade
política que é reposta em questão e são concepções
contrastadas do ser humano que acabam por surgir num
enfrentamento declarado. Muito se glosou ao longo dos
últimos anos sobre o surgimento de divisões que
substituíram o enfrentamento consagrado entre a
esquerda e a direita; alguns viram os conservadores
enfrentar os progressistas, enquanto outros decretaram
antes que havia chegado o tempo do conflito aberto
entre os soberanistas e os globalistas. Tais divisões não
se sobrepõem necessariamente e tampouco enfatizam os
mesmos desafios, mas ancoram-se em terrenos
sociológicos claramente identificáveis que não poderiam
ser reduzidos a simples preferências ideológicas. [ 160 ]
Uma coisa parece certa: as categorias políticas surgidas
no âmbito da modernidade providencialista, quer se trate
da esquerda social-democrata, quer da direita neoliberal,
parecem cada vez menos operantes.
Em várias ocasiões nestes últimos anos, notou-se a
crescente dificuldade das pesquisas de opinião para
predizer de modo adequado os resultados de eleições ou
referendos, como se perscrutassem com mera
superficialidade as preferências populares. [ 161 ] É que já
não indagam nossas sociedades em profundidade. Já não
buscam decifrar as fantasias que as perpassam, os
medos mais ou menos confessos que se abrigam no
inconsciente dos eleitores. Por consequência, só
exploram de modo superficial as motivações eleitorais e,
não raro, cedem a uma explicação estritamente
materialista do mundo. [ 162 ] Quanto mais uma eleição se
insere num âmbito político estável, em que as grandes
alternativas são bem conhecidas e balizadas, mais as
pesquisas de opinião são fiáveis. No entanto, quando se
trata de uma eleição num clima insurrecional, em que as
paixões ficam acaloradas e chegam a abalar a vida
política, as pesquisas falham, quando não fracassam por
completo. Seu método parece ter ligação estreita com a
definição gerencial da dimensão política, que busca
identificar as diferentes categorias de eleitores à maneira
de clientelas eleitorais; para dizê-lo de outro modo, não
vão suficientemente a fundo e têm dificuldade para
achar o povo onde ele se encontra.
A QUESTÃO DO POVO

Na esteira de Vincent Coussedière, poder-se-ia dizer


que o populismo surge quando o povo, seja qual for a
definição que dele se dê, expressa politicamente a
recusa de sua própria dissolução e se manifesta para
relembrar sua existência. [ 163 ] A democracia não poderia
se separar da figura do povo, eis o que os populistas
parecem sustentar, justamente quando esta parece difícil
de recuperar. Isso porque, com frequência – e antes de
tudo – o populismo é tido por uma forma de protesto
identitário contra a imigração maciça e, de modo mais
amplo, contra uma globalização que despoja
politicamente as nações. A revolução migratória,
presente em toda parte na política ocidental
contemporânea, reabre uma questão que foi pouco a
pouco censurada na segunda metade do século XX: a da
identidade do demos. É que, sob muitos aspectos, a
democracia moderna repousa num paradoxo: em teoria
ela sacraliza a soberania popular, fazendo desta o
fundamento do poder político, mas se mostra incapaz de
caracterizar o povo que é dela depositário. E mais:
demonstra manifesta hostilidade contra os que
relembram que o povo democrático é sempre um povo
particular, com sua história, sua cultura, seus costumes,
suas instituições e suas fronteiras. Em vez disso, a
dinâmica da emancipação democrática obrigaria cada
povo a se despojar de seu particularismo para engajar-se
na construção de uma humanidade unificada, glorificada
por meio da figura do cidadão do mundo. Em nome da
luta contra as discriminações, seria preciso libertar a
cidadania de todo conteúdo identitário particular, e
teoricamente os países teriam de se tornar
intercambiáveis entre si. Sob certos aspectos, poder-se-ia
dizer, sobre a democracia contemporânea, que ela
impele à invisibilização do demos: quer-se reduzi-lo a
uma pura categoria procedimental sem substância. No
entanto, as grandes migrações – que põem populações
em movimento – fazem explodir brutalmente o
paradigma do demos invisível, na medida em que essas
comunidades que se instalam nas democracias
ocidentais fazem ressurgir, no próprio seio da
comunidade política, a diferença entre o nós e o eles. A
presença cada vez mais maciça de populações
culturalmente estranhas às nações ocidentais obriga
estas últimas a abrir a questão de suas respectivas
identidades e a explicitar o pano de fundo cultural e
civilizacional em que a comunidade política se baseia.
Quando alguém nelas se insere, deve se integrar ou se
assimilar a quê?
A questão migratória obriga a democracia a se
questionar sobre seus próprios fundamentos, e isso
chega a conduzir a uma reescrita da história, na
tentativa de dissolver a suposta fantasia da identidade
nacional – a identidade nacional seria um refúgio
imaginário que teria de ser desconstruído, para que,
enfim, as sociedades plurais se expressem. O rastro do
povo teria de ser apagado, para que não seja
reencontrado. A fim de compreender isso, basta
relembrar a viva celeuma provocada pela publicação da
obra Histoire mondiale de la France. Alguns viram aí o
sinal de uma paixão especificamente francesa pela
história. Esse é um erro de perspectiva, ainda que, de
fato, a França seja provavelmente o lugar onde esse
debate é mais intelectualizado, e nesse aspecto ele foi
instrutivo. Patrick Boucheron explicava, para os que
porventura duvidassem disso, que, a seu ver, a história
deveria lutar “contra o encolhimento identitário que
domina atualmente o debate público”. [ 164 ] A história do
mundo seria a de povos misturando-se incessantemente,
e estes teriam o dever de recusar-se a serem fixados
numa definição substancial de si mesmos. Se nos dermos
ao trabalho de traduzir politicamente a concepção da
história que ele nos propõe, a história mestiçada teria
por consequência uma dissolução do velho país sob a
pressão migratória, o que seria uma oportunidade a ser
incensada e à qual jamais se deveria resistir. Não
surpreende que o Canadá – seria possível falar mais
maldosamente de um Canadá Potenkin – desempenhe no
imaginário político contemporâneo o papel de
Disneylândia diversitária, sendo proposto à admiração de
todos como um modelo universal, por haver renunciado a
toda identidade substancial e definir-se apenas por sua
diversidade e, mais ainda, por seu desejo de levar o mais
longe possível a busca da diversidade. Sua abertura ao
niqab, por exemplo, vem confirmar a seus próprios olhos
sua própria tolerância e a superioridade de seu modelo,
capaz justamente de transcender e até de se contrapor
ao mal-estar popular em nome do direito das minorias. O
Canadá se construiria desconstruindo-se, ao deixar de
tolerar que os entraves oriundos do mundo pretérito
contenham uma mutação cada vez mais acelerada, que
parece já não ter fim. O Canadá, que reivindica o título
de superpotência moral, não apenas se apresenta,
segundo a retórica empregada por muito tempo pelo
governo federal, como o melhor país do mundo, porém
mais ainda, como o país mais avançado do mundo, como
se representasse a próxima etapa na história da
humanidade. [ 165 ]
A reação identitária seria o novo rosto da
contrarrevolução: ela é que impediria a lógica
universalista da modernidade de desdobrar-se
plenamente, ao substanciar identidades que precisariam
antes ser desconstruídas. [ 166 ] Embora seja permitido,
por exemplo, opor-se frouxamente aos excessos
diversitários, propondo a proibição do véu integral no
espaço público, não será permitido afirmar que certas
populações são bem mais dificilmente assimiláveis que
outras [ 167 ] – tal reflexão será assimilada ao racismo
diferencialista. Somos todos imigrantes: esse slogan,
incessantemente repetido em todo o mundo ocidental,
vem assim desqualificar a ideia de uma população
fundadora ou, se preferirmos, de um núcleo identitário
próprio de cada país, ao qual seria necessário que
alguém se agregasse a fim de integrar-se. A
desencarnação da comunidade política leva a uma
ruptura cada vez mais pronunciada entre a cidadania e a
identidade: a primeira se reinventaria com a valorização
da diversidade, a segunda seria chamada a apagar-se
para fazer esquecer o privilégio hegemônico de que
gozou por demasiado tempo. A teoria do racismo
sistêmico acaba por traduzir a existência de uma cultura
histórica no interior de um país como um sistema
discriminatório que serve exclusivamente aos nativos, e
que precisaria ser desmontado. Estes gostariam de
manter a todo custo privilégios etnoculturais ilegítimos,
exclusivamente decorrentes dos acasos da história. Tal
como empregado hoje pelo regime diversitário, o
conceito de racismo tem acima de tudo a função de
neutralizar politicamente e inibir culturalmente qualquer
reação política demasiado intensa àquilo que os povos
sentem como uma submersão migratória que, sem ser
provocada, é, no entanto, tolerada e talvez até
incentivada pela parcela dominante das elites ocidentais.
A extensão infinita da definição do racismo tem a função
de deslegitimar toda particularização da cidadania – o
impulso cosmopolita que permeia a globalização deve
não apenas relativizar a noção de fronteira, como
também a própria distinção entre quem é cidadão e
quem não o é; a figura sacralizada do migrante deve ser
normalizada; a do cidadão afeito a seu país e à
continuidade histórica deste último deve ser
desqualificada. Mesmo o vocabulário terá de se adaptar:
o imigrante ilegal ou clandestino será denominado
apenas de migrante irregular. A população histórica
refratária à própria desclassificação simbólica e
institucional terá de ser reeducada, para aprender a
celebrar a beleza da diferença lá onde suas categorias
mentais tradicionais a impeliam a ver um fracasso da
integração e um esfacelamento do corpo político. [ 168 ]
Para chegar a sua extensão máxima, a democracia
deveria liquidar os povos históricos e concretos e
abraçar, cedo ou tarde, a figura da humanidade
reconciliada, à maneira de um demos diversitário
globalizado. E é pelo fato de que já não haveria
diferenças substanciais entre as comunidades humanas
que uma humanidade filosoficamente unificada poderia,
enfim, passar do ideal à realidade, ao menos no plano do
direito. Não estamos longe do mito do homem novo,
como se o homem devesse purgar-se de sua existência
histórica para renascer de uma matriz virginal, sem
corrupção alguma, o que o levaria a comungar numa
humanidade enfim reconciliada, porque emancipada de
sua pluralidade – pluralidade esta que não lhe seria
consubstancial, mas simplesmente a obra de sua queda
na história.
Para além da celebração da diversidade, Carolin Emke
chegará a dizer que “o recurso ao conceito de povo é
ambíguo”. [ 169 ] O povo seria tão somente uma forma
vazia e não se poderia defini-lo como um substrato
demográfico e cultural com seu próprio contexto político,
conforme sustentará, por exemplo, Pierre Rosanvallon,
em sua vasta história da democracia francesa. O povo só
tomaria forma por meio de seu trabalho de
representação, e a soberania popular teria de se livrar da
mística da unidade do povo – ou, melhor ainda, seria ao
pluralizar incessantemente a representação que se
permitiria ao povo ter a experiência de sua diversidade. [
170 ] Yascha Mounk também se pretende perplexo: “a
democracia promete deixar o povo governar. Isso suscita,
porém, uma pergunta de falsa simplicidade: quem,
exatamente, é o povo?”. [ 171 ] Chantal Mouffe, em sua
perspectiva da democracia radical, sustentará também
que o povo é uma construção política sem substrato
socio-histórico: só existiria por meio da mostra de
reivindicações particulares que ele permitiria sintetizar. [
172 ] Jan-Werner Müller escreverá, por sua vez, “que o
povo se expressa no plural, que ele é polífono e que não
existe uma vox populi; de fato, seria até possível dizer
que o povo, fazendo isso, torna-se processo”. [ 173 ] Esse
processo estaria em perpétua reinvenção e deveria
ampliar incessantemente suas fronteiras e diversificar
sua composição. O povo remata aqui seu processo de
dissolução. O contratualismo, que foi antes de tudo uma
ficção filosófica necessária à sua representação do
consentimento na base da democracia moderna,
transformou-se em matriz a partir da qual repensar todos
os lugares sociais. Essa seria a próxima etapa da
democracia: o povo deveria poder fundar a si mesmo e
parar de aceitar sua definição pela história, ainda mais
que a descoberta de sua diversidade interna,
possibilitada pelo trabalho das ciências sociais, revelaria
as relações de dominação que o permeiam e que
desqualificam a soberania popular, acusada de
meramente mascarar a tirania da maioria. Werner Müller,
ao mesmo tempo em que reconhece que a democracia
“não nasce do nada”, assinalará que as democracias são
“todas resultado de acasos históricos – e sobretudo de
muitas injustiças”. [ 174 ] Teríamos chegado ao momento
da história em que a democracia poderia libertar-se do
contexto que a viu nascer – na realidade, deveria fazê-lo,
e a nação, a partir de agora decretada uma velha muleta,
poderia ser abandonada. Voltamos a isso. Enquanto o
contratualismo moderno pressupunha, sem
necessariamente admiti-la, a existência de um povo
compreendido à maneira de uma comunidade político-
histórica, a modernidade tardia trabalha para sua
dissolução, primeiro e antes de tudo reduzindo o
pertencimento coletivo a uma adesão consciente a
valores universais, que seriam as únicas fundações do
pacto político – esse é, evidentemente, o modelo do
patriotismo constitucional habermassiano, [ 175 ] que
corresponde de modo mais amplo a uma neutralização
da identidade nos parâmetros da cidadania; cada
comunidade política deveria extrair-se de sua cultura e
arrancar-se de sua própria história, para então refundar-
se num contratualismo diversitário em que já não será
possível reconhecer o núcleo identitário de um povo ao
qual devem assimilar-se todos os que o encontram, pois
nenhuma realidade deve manifestar-se para além do
direito à igualdade. [ 176 ]
A NEUTRALIZAÇÃO DA SOBERANIA POPULAR

Como já se terá compreendido, a referência ao povo ou


à nação como realidade histórica substancial é
assimilada a partir de agora, implícita ou explicitamente,
ao racismo. É bem verdade, no entanto, que esse
chamado à nação particular ou, caso se prefira dizer de
modo mais amplo, esse chamado ao particularismo
coletivo, permanece politicamente mobilizador. Arrasta a
adesão de amplas camadas da população. Excita o
imaginário e impele à revolta, como se correspondesse a
aspirações irreprimíveis inseridas na própria natureza do
corpo político, ligadas ao pertencimento e à identidade.
Ainda que elas sejam traduzidas midiaticamente como
um surto xenófobo ligado ao retraimento em si, grandes
segmentos da população continuam a ser animados por
preocupações identitárias. A questão, então, é esta: o
que fazer com uma população julgada indigna da
promessa emancipatória da modernidade. Surge a
tentação de lançá-la na lata de lixo da história. Se a
democracia moderna concede a soberania ao povo, é
com a condição – como ela diz de modo tácito – de que
ele seja competente o bastante para votar, isto é, para
votar bem. Essa competência era tradicionalmente
associada ao senso comum, mas este último passou a
ser denegrido como outra faceta do preconceito. [ 177 ]
Como conciliar a ideia de um sentido da história, o que
é outro nome do progresso, e o poder reconhecido ao
povo de construir livremente seu futuro político, a partir
de suas preferências? Essa contradição não é apenas
aparente e está no cerne da insurreição populista. É em
nome da democracia que se condena o voto popular que
pretende restaurar o caráter nacional do Estado. E é em
nome da democracia que esse voto se expressa. Essa
questão se traduz em termos eleitorais: o que fazer com
o povo, quando ele vota mal? Que status conferir às
eleições, na medida em que elas substituem ritualmente
a figura da soberania popular no cerne da vida
democrática, quando esta última, como vimos, já não se
define a partir dessa soberania? O que fazer da
soberania popular quando ela revela seu potencial
conservador, que outros chegam a declarar reacionário,
sobretudo quando põe em questão certos avanços
societais e os direitos obtidos em nome da diversidade?
Outra maneira de dizê-lo: a soberania popular deveria
exercer seu domínio sobre o quê? Quando um grande
debate é organizado, ele é autorizado a tratar de quê?
Será permitido discutir livremente as grandes decisões
coletivas ou será que a dinâmica da modernidade
programa de antemão os direitos a serem reconhecidos
em nome da diversidade? Será permitido pôr em questão
certas “evoluções” ligadas ao direito internacional? Será
permitido pôr em questão a construção europeia ou a
superação da soberania nacional? Será possível pôr em
questão os grandes avanços societais das décadas
recentes ou será que estes últimos foram protegidos da
soberania popular pelo sentido da história ou pelo
sentido do progresso? Quem, afinal, tem o imenso poder
de selecionar entre as questões que podem voltar a ser
objeto da deliberação pública e as que dela escapam? Os
direitos humanos, a menos que sejam concebidos sob o
signo da revelação, estabelecem-se necessariamente de
modo político, e as instituições que pretendem
interpretar seu desenvolvimento e desdobramento
dispõem, no fim das contas, da soberania efetiva como
força de transformação social. Voltamos ao paradoxo
fundador da democracia diversitária: que fazer quando o
povo de ontem, que se obstina em não se dissolver, vota
mal, e de maneira maciça o suficiente para entravar o
que é percebido como a marcha da história? Que fazer
quando as categorias sociais que não vivem segundo os
códigos da globalização diversitária não parecem
capazes nem desejosas de adaptar-se a eles? Deve-se
conceder aos que não são julgados moralmente à altura
do ideal democrático o direito de entravar sua plena
realização, pelo fato de terem dele uma concepção
primitiva?
A história da repressão na Vendeia é, sob certos
aspectos, reveladora de uma tentação recorrente da
modernidade: a da erradicação das categorias sociais
julgadas retardatárias. Uma comunidade enraizada, que
se recusou a sacrificar sua cultura e seus costumes em
nome da abstração revolucionária, foi liquidada. E mais:
concebeu-se o projeto de erradicá-la, à maneira de um
resíduo histórico desagradável, cuja mera existência
retardava a marcha da história. Várias vezes essa cena
se reproduzirá, como se viu nos gulags. Naturalmente,
isso não é feito da mesma maneira dentro dos
parâmetros da democracia liberal, mas a noção de
populações retardatárias permanece no cerne do regime
diversitário. Serão destinadas à moenda histórica as
pequenas nações, cuja existência nacional será não raro
reduzida a uma forma de regionalismo egoísta. Se
deixarmos de lado a questão certamente não
negligenciável da violência, podemos reconhecer um
mesmo esquema de pensamento no modo de operação
do regime diversitário. As populações periféricas
comportariam o risco, na realidade, de desviar a
democracia ou, mais exatamente, de fazê-la passar por
um desvio reacionário.
Quando a França periférica entrava o desdobramento
da França globalizada, quando os peoples of somewhere
limitam o desenvolvimento dos peoples of everywhere, é
a democracia que entra em falência. [ 178 ] Quando um
velho povo histórico restaura seus direitos contra o
regime diversitário, ele também entra em falência. É
preciso ver bem a que ponto, a partir dessa perspectiva,
a votação em favor do Brexit foi apresentada no âmbito
da mídia e da política não apenas como uma escolha
política ruim, mas como uma catástrofe moral, como se
demonstrasse uma forma de fracasso democrático.
“Acabamos de entrar em uma era na qual as ideias
muito assentadas, sobre as quais pensávamos que já não
haveria debate, voltam a ser questionadas”, como se
pôde escrever sem constrangimento no dia seguinte à
vitória de Donald Trump. “Subestimou-se a vontade de
nossas sociedades de se fecharem em si mesmas;
subestimou-se aquele medo do outro; subestimou-se a
vontade de não acolher os muçulmanos. Esses
movimentos existem, e são mais fortes do que
imaginávamos.” [ 179 ] O julgamento será definitivo: o
trumpismo seria “a revanche do homem branco”. Mais
ainda, “essa política de revanchismo encontrou hoje sua
consumação absoluta numa insurreição do homem
branco comum, assustado com o fato de deixar de ser a
norma e receoso de ver outros disputando com ele sua
hegemonia cultural”. [ 180 ] Para explicar essa guinada
reacionária, falar-se-á na melhor das hipóteses da
credulidade natural do povo diante da demagogia, o que
leva a um controle cada vez mais estrito da informação
em nome da luta contra as fake news. Um jornalista
renomado escreverá, ao rever os recentes
acontecimentos: “Estamos diante de um
empreendimento industrial de desinformação cujo poder
foi demonstrado pela vitória do Brexit na Grã-Bretanha e
pela de Trump na corrida à Casa Branca”. [ 181 ] Um povo
bem instruído não teria a ideia de votar mal, e um povo
reeducado muito menos, o que relembra a importância
das campanhas de sensibilização permanente e de luta
contra os preconceitos e estereótipos. Uma informação
esclarecida conduziria automaticamente a uma votação
consoante ao sentido da história. O povo não se teria
enganado: teria sido enganado e até desinformado.
Conforme observa François-Bernard Huygues, “a
identificação do partido do falso ao do fechamento
político e cultural se impõe naturalmente após o
referendo britânico […]”. [ 182 ] Outros, porém, já não
querem desculpar o povo e pretendem selecionar entre
os eleitores dignos de votar e os outros, que poluiriam a
democracia com seus preconceitos. No dia seguinte à
votação, muitos analistas sustentaram a ideia de que as
categorias sociais urbanizadas, evoluídas, instruídas e
sofisticadas teriam apoiado sem sombra de dúvida a
manutenção da Grã-Bretanha na União Europeia,
enquanto os partidários do Leave seriam em sua maioria
eleitores desorientados, pouco instruídos, em reação
contra a globalização e a modernidade e encerrados em
esquemas mentais petrificados, impróprios às exigências
do nosso tempo. Esses “eleitores-fardos” já não estariam
civicamente qualificados. [ 183 ] Quando o povo vota mal,
pode ser descrito da maneira mais vil. Os eleitores do
Brexit foram retratados como representantes de
categorias sociais residuais, inadaptadas, encerradas em
esquemas mentais com prazo de validade vencido.
Tratava-se de uma população demasiado velha,
demasiado branca, demasiado homogênea, que
protestaria em vão para frear a chegada dos tempos
diversitários. O eleitor médio favorável ao Brexit seria um
“homem branco de mais de cinquenta anos” enraizado
na Grã-Bretanha periférica, pouco instruído e hostil à
diversidade. A partir do outono de 2018, os coletes
amarelos, na França, foram apresentados como
desclassificados simbólicos e materiais da globalização,
apegados a um modo de vida contrário à sobrevivência
do planeta e incapazes de compreender as exigências
próprias da transição energética. Ouviríamos a mesma
coisa no dia seguinte à vitória inesperada de Donald
Trump, por ocasião da eleição presidencial americana.
Hillary Clinton já havia lançado o sinal algumas semanas
antes da eleição, ao assimilar os eleitores de seu
oponente a uma “cesta de deploráveis”, [ 184 ] em outras
palavras, a um bando de desajustados.
Por trás do chamado ao povo pelos populistas se
expressaria o sobressalto clânico da parte mais atrofiada
da civilização ocidental. A votação em favor de Trump
seria uma votação do comunitarismo branco, uma
demonstração da psicologia ansiogênica em que se
inseririam os estadunidenses de origem europeia;
conscientes de perder o controle demográfico no país,
estes se retrairiam em torno de um candidato autoritário
decidido a impedir essa desclassificação histórica e
simbólica. Para retomar as palavras de Guy Sorman,
“[Trump] lhes disse o que eles queriam ouvir, que os
Estados Unidos autênticos eram eles. ‘Quando os Estados
Unidos eram grandes’, para retomar o slogan de Trump, o
homem branco, senhor em casa, ditador de sua mulher e
seus filhos, em geral protestante, trabalhando com suas
próprias mãos na fazenda ou na fábrica, imbuído de um
desprezo pela gente de cor, soldado em caso de
necessidade, somente esse era um estadunidense.
Desde os anos 1960, esse homem branco viu seu
universo esfacelar-se: a liberação das mulheres, a
dominação dos músicos, dos artistas, dos esportistas
afroamericanos e latinos, a discriminação positiva, a
exaltação da diversidade cultural, o casamento
homossexual, a linguagem politicamente correta, tudo
isso foi percebido pelo homem branco como a
substituição da identidade autêntica por uma identidade
nova, globalista, cosmopolita e mestiça. Nesse
despojamento, tal como foi sentido pelo homem branco,
a raça, como sempre nos Estados Unidos, foi
discriminadora”. [ 185 ] Tratava-se, portanto,
essencialmente, de uma votação racista: se somente as
duas costas e as grandes cidades houvessem votado, a
candidata democrata teria vencido. Cumpria fabricar um
novo povo – e convinha ser otimista, pois o processo já
teria sido desencadeado. Guy Sorman escreveria
também, com certa agressividade: “De fato, a imigração,
legal ou não, prosseguirá – em razão da prosperidade
americana –, a mestiçagem interior continuará e a nova
raça americana, um arco-íris, substituirá
necessariamente a resistência identitária dos homens
brancos. Essa transição poderá ser dolorosa, até violenta,
se Trump a exacerbar em vez de acompanhá-la; mas
nem sempre o pior é inevitável”. [ 186 ] A transformação
da civilização ocidental pela imigração maciça
modificaria, com o tempo, seu substrato demográfico e
condenaria à impotência as categorias sociais
reacionárias que, por ora, ainda seriam capazes de
prejudicar. [ 187 ]
No entanto, a guinada reacionária da democracia
continua a ser um risco que o progresso já não poderia
correr e não se poderia esperar a plena consumação da
mutação demográfica ocidental para que só então se
procurasse proteção definitiva contra o populismo. Na
impossibilidade de abolir a democracia, seria preciso
encontrar os meios de suspender os efeitos mais nocivos
da soberania popular. Jacques Attali se dedicará a esse
exercício de maneira muito concreta após o Brexit. “Uma
geração deveria pensar duas vezes antes de modificar
uma situação que terá um impacto nas gerações
seguintes. Seria preciso, depois, modificar o
procedimento da reforma constitucional, para garantir
que uma votação circunstancial não possa ter
consequências não desejadas de longo prazo. Toda
decisão que tem um pesado impacto no destino das
gerações seguintes não deveria poder ser tomada por
uma maioria inferior a 60% dos eleitores, reafirmada três
vezes num prazo de no mínimo um ano. Alguns verão
nessa tomada de posição uma tentativa desesperada de
uma oligarquia obsoleta para manter uma ordem fora de
moda, num desprezo pelos desejos dos povos. Trata-se,
ao contrário, de dar aos povos o tempo de refletir sobre
as consequências de seus atos e de evitar que uma
geração, por capricho, destrua o que as gerações
anteriores quiseram deixar às seguintes.” [ 188 ] Essa
proposta, que pretende “santuarizar o progresso”, é
certamente extrema, mas revela bem o estado de
espírito geral de uma intelligentsia para a qual ou a
democracia será progressista ou deixará de existir:
“admitir que conquistas transmitidas possam ser
questionadas equivale a negar a própria noção de
progresso”. O que conta, na democracia, como já se
compreendeu, não é a soberania popular, mas a lógica
do desdobramento dos direitos, que deveria realizar-se
até o fim.
Acima de tudo, o regime diversitário pretende
circunscrever a soberania popular de maneira cada vez
mais estrita, em nome do “estado de direito”, cujo
império não para de ser estendido e transformado,
paradoxalmente, em verdadeira essência do projeto
democrático – já o âmbito da soberania popular, ao
contrário, encolher-se-á sem cessar. O referendo será,
em geral, mal visto, pois possibilitaria que o povo se
reunisse num grande momento unitário, permitindo-lhe
decidir sobre uma questão fora dos parâmetros habituais
do debate público. Na realidade, o referendo permitiria
que o povo se reconstituísse no momento em que se
busca dissolvê-lo, além de renovar, de modo geral, a
legitimidade do espaço nacional onde este se mantém.
Não surpreende que o referendo de iniciativa popular
(RIP), também chamado de referendo de iniciativa
cidadã, seja fundamentalmente rejeitado, na medida em
que criaria as condições institucionais para que o povo
ou, ao menos, certas categorias suficientemente
mobilizadas da população, pudesse se mobilizar e impor
à agenda política desafios que não estavam
programados na matriz midiática. Por outro lado, é
inegável que o RIP pode contribuir para o reino das
facções, na medida em que as minorias mais militantes e
mais bem organizadas podem desvirtuá-lo em seu favor,
transformando a agenda política em refém, a fim de
submetê-la às suas obsessões ideológicas. Quanto mais
a história avança, mais o velho ideal do governo do povo
pelo povo se esfacela, como se o multiculturalismo, ao
chegar ao termo de sua lógica, tornasse simplesmente
escandaloso o princípio majoritário. A judiciarização da
política permite que uma tutela se estabeleça sobre a
soberania popular, a fim de evitar a multiplicação das
guinadas reacionárias. A soberania popular
corresponderia à fantasia de um povo coerente, capaz de
se engajar historicamente por meio do processo eleitoral.
Essa fantasia se dissiparia diante do advento de uma
sociedade que tem a experiência cada vez mais íntima
da diversidade, a qual, emancipada do controle popular,
se desenvolveria mais sob o signo do governo dos juízes.
[ 189 ] As grandes reformas societais costumam ser
iniciadas ou encorajadas pelos tribunais, decretados
como mais esclarecidos justamente por não estarem
sujeitos àquilo a que se chamará pejorativamente
“humor popular”. Essa mutação institucional da
democracia se desdobrou “de modo natural”, sem jamais
ser formalmente avalizada por um povo que, de todo
modo, muitos querem descartar – o que leva alguns a
dizer que “os direitos humanos estão se voltando contra
o povo”. [ 190 ] O mesmo será dito sobre a imigração
maciça, que transformou o substrato demográfico
europeu e norte-americano, sem que jamais essa
revolução tenha sido endossada de modo democrático [
191 ] – os teóricos militantes do imigracionismo passaram
a explicar que ela seria do âmbito da simples lógica do
direito. [ 192 ] Embora a forma institucional das
democracias liberais tenha permanecido oficialmente a
mesma, e embora o teatro eleitoral se tenha mantido, ele
foi dessubstanciado. Um governo que quisesse aplicar
hoje um programa de saída do regime diversitário teria
primeiro de trabalhar para restaurar o poder
democrático, isto é, para reinvestir substancialmente a
concha vazia em que o governo saído das urnas se
transformou.
A DEMOCRACIA “ILIBERAL” OU O PODER POLÍTICO COMO CONTRAPODER

É provavelmente à luz destas últimas reflexões que


poderemos compreender melhor a celeuma da
democracia iliberal, que atormenta a atualidade política,
mas que talvez não seja nada além da celeuma do
populismo que alcançou o poder. Ao comentar a presente
insurreição populista buscando situá-la na escala da
modernidade, Yascha Mounk dirá que “o povo se subleva
contra a democracia”, entendendo por aí que este se
volta, sobretudo, contra o estado de direito e de
liberalismo em nome da soberania popular – em seu
vocabulário, ele falará, assim, da democracia sem a
liberdade. [ 193 ] Afinal, aqueles a quem se chama
populistas não se contentam em tirar proveito de
aspirações populares abandonadas – como aquelas
ligadas à identidade coletiva ou aquela ligada ao desejo
de ser governado por algo além dos processos
impessoais que tornam o poder incontrolável? Os
populistas gostariam de voltar a uma concepção do povo
compreendida como realidade histórica e sociológica
substancial, e não apenas como associação jurídica de
cidadãos individuais. Num mesmo espírito, Ivan Krastev
falará de uma “insurreição de amplitude mundial (que
adota) a forma de uma revolta da democracia contra o
liberalismo”. [ 194 ] Essencialmente, o que se recrimina à
democracia iliberal é o fato de ela ser uma democracia
de antes de ontem – isto é, de antes da passagem do
povo histórico à sociedade diversitária e da soberania
popular ao governo dos juízes. A democracia liberal se
caracterizaria, assim, por uma supervalorização da
soberania popular e, no mesmo espírito, também pela
supervalorização de uma concepção identitária da nação,
que entravaria o surgimento e a expressão das
identidades minoritárias ou sociologicamente sufocadas.
Tratar-se-ia de uma democracia reacionária que já não
busca promover a realização do movimento histórico
diversitário e que se daria ao direito de derrubá-lo, em
nome da vontade do povo. [ 195 ]
Será que a democracia sem o progressismo é
democrática? Não obstante as pretensões temerárias de
certos líderes políticos que afirmam aderir a ela, cabe
perguntar se a democracia iliberal não seria apenas um
slogan ruim, que desvia as pessoas da maneira certa de
compreender o conflito entre o progressismo e o
populismo.

Em outras palavras, estamos sob vários aspectos numa


disputa que se insere na democracia liberal, exceto se
reduzirmos esta última a um princípio evolutivo definido
tão somente pelos intérpretes oficiais e dedicados ao
movimento da história. O populismo – se o levarmos a
sério e se não supusermos que ele carrega às escondidas
um programa diferente daquele que reivindica – não
pretende abolir a democracia liberal, mas restaurar uma
concepção anterior dela, reconstruindo suas condições
de exercício, o que implica uma revalorização do povo e
da soberania popular pela qual ele se institui. Não se
trata de brandir o estandarte populista, mas de
compreender que é preciso enxergar nele não tanto um
retorno da besta, e sim uma forma de reação inserida na
democracia. Existe aí, contudo, um paradoxo, que nos
leva de volta ao nosso ponto de partida: se a democracia
liberal é chamada a desdobrar-se renegando a soberania
popular, para neutralizar-se completamente no ímpeto
diversitário, ela se torna estranha, a partir daí, não
apenas a sua fundação filosófica, mas a alguns dos
momentos mais importantes de sua história. Segundo os
critérios contemporâneos, tanto De Gaulle como Churchill
deveriam ser classificados entre os democratas iliberais
mais inaceitáveis. O paradoxo do nosso tempo é que a
democracia diversitária, que julga inserir-se na longa
história da democracia liberal e de suas lutas no século
XX, combate ardentemente as virtudes e o imaginário
histórico que permitiram a esta última defender-se contra
seus inimigos. No século XX, a democracia liberal só se
salvou por seus próprios meios. Da mesma maneira, o
antitotalitarismo, no leste, inseriu-se numa visão de
mundo nacional e religiosa que é hoje desqualificada em
nome da democracia liberal. Não é garantido, aliás, que o
liberalismo mereça ser reduzido à definição dele que os
promotores da sociedade diversitária propõem: Raymond
Aron, talvez o filósofo político mais esclarecedor da
segunda metade do século XX, sabia equilibrar seus
princípios com a soberania popular na composição da
comunidade política.
É a função da política que se transforma na
modernidade avançada. [ 196 ] O poder político, contanto
que não pretenda apenas adaptar a sociedade à
globalização diversitária, torna-se um contra-poder para
o qual o povo ou, ao menos, grandes categorias da
população se voltam, a fim de conter o advento de um
mundo que elas não desejam; um contrapoder que busca
arduamente restaurar as condições de seu exercício, mas
encontra diante de si um capitalismo globalizado que
desterritorializa as sociedades, um poder jurídico que tira
proveito da sacralização dos direitos para situar-se em
posição dominante em relação aos que afirmam sua
adesão à soberania popular, e um poder midiático-
universitário que transforma a sociedade em campo de
experimentação social. O poder político se torna a
instância simbólica e institucional em que o povo pode
recompor-se como povo e assim aparecer para si mesmo.
No fim das contas, talvez a celeuma entre o
progressismo e o populismo represente apenas uma
disputa, inserida no imaginário democrático, entre duas
interpretações concorrentes e radicalizadas do princípio a
partir do qual o poder se constitui na modernidade.
Desse ponto de vista, para além dos inegáveis exageros
retóricos de cada campo, deveríamos buscar desprender
essa questão das controvérsias ruins e focalizar-nos uma
vez mais em sua parte essencial, qual seja, a definição
da democracia que nos serve de referência na vida
pública. Temos certamente o direito de preferir uma
opção a outra, e pode-se perguntar por que estranha
razão seria preciso fazer dessa disputa uma continuação
da Segunda Guerra Mundial num outro contexto.
Capítulo 5 | Os brancos, os racizados e os outros
 
A liberdade de expressão sob o regime diversitário
 
 
 
 
 
 
Clama-se o desejo de construir um mundo melhor. Isso, porém, não
é verdade. O futuro não passa de um vazio indiferente que não
interessa a ninguém, mas o passado é pleno de vida e seu rosto
irrita, revolta, fere, a tal ponto que queremos destruí-lo ou repintá-
lo. Quando se quer dominar o futuro, é para mudar o passado.
Quando se luta para ter acesso aos laboratórios, é para retocar as
fotos e recriar as biografias e a História.
Milan Kundera
 
O empreendimento consistirá em desfazer e refazer, em
conformidade com a razão, todos os usos, as festas, as cerimônias,
os costumes, a era, o calendário, os pesos, as medidas, os nomes
das estações, os meses, as semanas, os dias, os lugares e os
monumentos, os sobrenomes e o batismo, as formas de
tratamento, o tom dos discursos, as maneiras de saudar, de
abordar outrem, de falar, de escrever, de modo tal que o francês,
como outrora o puritano ou o quaker, refundido até em sua
substância íntima, manifeste nos mínimos detalhes e em seus
modos exteriores a dominação do onipotente princípio que o
renova e da lógica inflexível que o rege.
Hippolyte Taine
 
No verão de 2018, num exercício de revisão
constitucional de grande envergadura, os deputados
franceses multiplicaram as propostas de atualização do
texto fundador da Quinta República. Muitos se
imaginaram suficientemente espertos para modificar
para melhor a constituição do general De Gaulle. Era a
ocasião para brilhar e fazer valer a ideia genial que eles
acreditavam ter em suas respectivas pastas. No entanto,
entre as propostas lançadas, uma foi particularmente
esperada, sobretudo porque já havia sido apresentada
antes por François Hollande durante a campanha
presidencial de 2012: a retirada da palavra “raça” da
constituição francesa, sob o pretexto de que a ciência já
estabelecera havia muito tempo que as raças não
existiam. [ 197 ] Ele se obrigou, então, a fazer uma
declaração sem ambiguidades: “Não há lugar, na
República, para a raça. E por isso eu solicitarei ao
Parlamento, no dia seguinte às eleições presidenciais,
que suprima a palavra ‘raça’ de nossa Constituição”. [ 198
] Na realidade, a proposta datava de 2002 e fora lançada
primeiramente por Michel Vaxes, deputado comunista de
Bouches-du-Rhône. [ 199 ] Mais de quinze anos foram
necessários para que vingasse. Durante muito tempo
houvera oposição a tal proposta, pois a supressão da
referência à raça na constituição tornaria mais difícil a
luta contra o racismo. Aliás, esse argumento fora até
oposto a François Hollande. A referência à raça manteria,
no imaginário público, um conceito desqualificado, e
seria até o traço de uma era ultrapassada da
humanidade. Depois de haver desconstruído a raça como
categoria política na segunda metade do século XX e de
degradá-la simbolicamente, seria preciso fazê-la
desaparecer do vocabulário público, a fim de apagá-la
mentalmente: o desaparecimento da palavra litigiosa
consagraria, de certa forma, a abolição sociológica da
coisa em si.
A proposta poderia parecer evidente num país muito
apegado aos valores universalistas e que proíbe
estatísticas étnicas, a fim de evitar a fragmentação do
corpo social segundo uma lógica identitária: quem
impele ao uso de categorias étnico-raciais na gestão da
sociedade com certeza se distancia do ideal veiculado
pelo universalismo republicano e leva a população a
reconhecer-se em tais categorias, que acabarão por
construir a dimensão social sobre uma base étnica. O
essencial, no entanto, estava em outro lugar. No
momento em que os deputados franceses militavam
ardentemente para acabar com a referência à raça,
assistia-se a uma nova racialização das relações sociais,
nascida nos Estados Unidos, mas que passava a afetar
também as sociedades europeias. Em outras palavras, no
momento em que o Estado pretende dissolver de uma
vez por todas os últimos traços da raça na vida pública,
esse conceito retorna ao cerne do pensamento social e
político, à maneira de uma categoria ofensiva que
permite desvelar a face oculta da ordem republicana. Em
quase todos os lugares do mundo ocidental, retoma-se a
classificação dos homens e das mulheres a partir de
categorias como “brancos”, “negros”, “latinos” ou
“asiáticos”, o que transforma radicalmente nossa
percepção dos fenômenos sociais. Tais categorias são
não apenas veiculadas pelas ciências sociais, mas
também normalizadas pela mídia, que as integra em sua
grade de leitura da realidade social. Inúmeras
administrações públicas as destacam, em nome da luta
contra as discriminações. Estão também no cerne da
ação militante de grupos que se mobilizam com base
nelas e que pretendem racializar explicitamente as
relações sociais, com a intenção de desvelar estruturas
de dominação invisibilizadas pela passagem dos séculos.
O fenômeno não é novo. Desde 1983, Pascal Bruckner
já havia notado o advento de uma era penitencial, por
ele designada como a era dos “soluços do homem
branco”. Essa tendência se acentuará vinte anos depois,
quando ele falará da “tirania da penitência”. [ 200 ] Esta foi
normalizada, e cada instituição busca, à sua maneira,
desculpar-se por seus pecados para com a diversidade,
que ela teria tardado em reconhecer e, mesmo, admirar.
Da televisão à escola, do museu à grande empresa, teria
chegado a hora de um exame de consciência. É bem
visto o ato de confessar a própria culpa, de acusar-se a si
mesmo, de mostrar-se intratável para consigo mesmo.
Quem se denuncia se engrandece, visto que já não
desejaria viver na mentira de um passado radioso,
irrepreensível, digno de uma lenda, digno de uma
canção. O mundo deveria ser o teatro de uma nova noite
dos privilégios, a do “homem branco” que, durante
demasiado tempo, teria feito demasiado mal. As
instituições dominantes são chamadas a confessar seus
crimes contra a diversidade, como se viu de maneira um
tanto grotesca quando a revista National Geographic
achou por bem reconhecer em 2018: “durante décadas,
nossas reportagens foram racistas. Para nos
desprendermos disso, é preciso reconhecê-lo”. [ 201 ] A
descolonização passaria por uma nova onda. Aqueles que
teriam sido repelidos para as margens da existência pela
expansão da civilização europeia teriam a oportunidade
de uma revanche histórica. Velhas identidades
enterradas ou recobertas renasceriam em sua revolta
contra o Ocidente. É o caso das nações colonizadas da
África e de seus cidadãos instalados na Europa, com os
conquistadores e os conquistados do passado trocando
seus papéis, numa construção tumultuosa, porém,
necessária, de uma humanidade igualitária. “A corrida
para a Europa”, para retomar a formulação de Stephen
Smith, seria uma justa reviravolta, depois da corrida
europeia rumo à África. [ 202 ] Nisso se verá até uma
maneira honrosa, para os colonizadores do passado, de
pagar sua dívida para com o colonizado. A explicação
chega a ser recorrente na sociologia midiaticamente
dominante: se os países colonizadores de outrora têm
problemas com as populações oriundas de suas antigas
colônias, essa seria uma justa ressaca pós-colonial – que
desconsidera, no entanto, o fato de que muitos países
europeus que não tiveram história colonial alguma
estejam também às voltas com reais problemas de
integração das populações de imigrantes. Seria
extraindo-se de sua própria civilização que a Europa
poderia, por fim, vivenciar sua própria redenção. Expiaria
seus pecados dissolvendo-se. Esse é também o caso das
populações ameríndias do Quebec, no Canadá, bem
como dos Estados Unidos, que passaram a criticar a
presença europeia na América, com a cumplicidade de
uma parte da esquerda norte-americana, que passou a
apresentar esses países como territórios não cedidos,
que deveriam reinventar-se a partir de suas tradições
autóctones primordiais. [ 203 ] O renascimento do
militantismo ameríndio se expressa, assim, por um
chamado à caçada simbólica dos povos oriundos da
expansão europeia ou, ao menos, à coação deles a uma
contrição permanente. A parcela mais militante do
movimento autóctone incita a revisitar a história, a fim
de apresentar a descoberta da América por Cristóvão
Colombo em 1492 à maneira de uma invasão: a
lembrança do descobridor da América deveria a partir de
agora ser apagada ou maldita. [ 204 ] Seria preciso
descolonizar o novo mundo.
Uma sociologia histórica desesperada poderia
sustentar que essa racialização seja talvez favorecida
pelas grandes migrações, que trazem à tona fraturas
arcaicas do gênero humano: a miscigenação em grande
escala de populações que antes só tinham o hábito de
conviver de maneira marginal poderia contribuir para o
surgimento de uma consciência racial entre grupos
humanos que não tinham o hábito de definir-se dessa
forma. As migrações maciças impeliriam, assim, não
tanto à mestiçagem generalizada das populações do
mundo, mas a um despertar de identidades enterradas
ou, ao menos, invisibilizadas pela modernidade. Esse
recalcamento chegaria atualmente a seu termo, e o
ressurgimento delas seria inevitável. Uma coisa é certa:
algumas parcelas das populações oriundas da imigração
com frequência alcançam a consciência política por meio
da consciência diversitária, que impele a racializar-se
para singularizar-se, mais que a assimilar-se para
integrar-se. Seria um erro, todavia, endossar uma
perspectiva que naturaliza a reativação da consciência
racial. Estamos, antes, diante de uma decomposição
política. A dessimbolização radical da nação impele à
tribalização dos pertencimentos. Seria possível acreditar,
contudo, que quando não se respeitam as capacidades
de integração cultural de uma sociedade, a etnicização
das relações sociais é acionada, sobretudo quando a
população se torna cada vez mais heterogênea. Essa
advertência não é de ontem: quem desconstrói as
nações não resgata o indivíduo, mas a identidade étnica
e a raça. Quem dinamita as nações favorece o
renascimento dos pertencimentos primitivos e
regressivos, encerrando os indivíduos num universo
fechado do qual não podem sair e condenando-os à
asfixia clânica e tribal. [ 205 ] Uma coisa é certa, a
racialização parece nascer, sobretudo, da politização
deliberada de uma categoria por seu potencial explosivo,
na medida em que ela permite, segundo seus
utilizadores, fazer explodir o próprio fundamento da
legitimidade ocidental e explicitar as relações de
dominação entre as comunidades que seriam ocultadas
pelo universalismo republicano ou liberal. Movimentos
sociais pretendem a partir de agora fazer emergir
categorias sociais a partir da linguagem da raça. [ 206 ]
Reativam-na como conceito político e investem-na de
afetos, além de trabalhar por sua midiatização, o que a
transforma em princípio eficaz de mobilização.
Na realidade, a descolonização teria sido tão somente
uma etapa. Seria preciso prosseguir, nos antigos países
colonizadores, a luta iniciada nas antigas colônias e
descolonizar o mundo ocidental a partir do interior. De
fato, não é de ontem que a esquerda radical se realinhou
com base numa crítica radical da civilização ocidental,
que seria fundamentalmente culpada de haver
construído uma ordem planetária discriminatória e
racista [ 207 ] – essa grade de análise foi normalizada a um
só tempo em filosofia política, sociologia e história, sem
esquecer o direito. A extinção da civilização ocidental
seria a condição do surgimento de uma humanidade
diversitária. A dinâmica encetada durante os Radical
Sixties impelia à crítica de toda norma social instituída,
fazendo-a aparecer numa relação de dominação a ser
abolida entre maioria e minorias. A família, a escola, a
nação, deveriam assim ser desconstruídas antes de ser
reconstruídas de acordo com os planos da maquete
diversitária, uma lógica que levaria até à desconstrução
das identidades sexuais ou da simples ideia de que é
melhor gozar de plenas capacidades mentais ou motoras
do que ser deficiente. Longe de dissolver-se nas
margens, essa crítica se radicalizou desde o início dos
anos 2000. Seria preciso desvelar integralmente as
profundezas do sistema social, sem nada conceder às
categorias conceituais dominantes da modernidade, que
teriam servido principalmente para dissimular a violência
e a selvageria da dominação sofrida pelas populações
minoritárias ou provenientes da periferia do mundo
ocidental. É nesse paradigma teórico que repousa aquilo
a que chamamos “a luta contra a discriminação” [ 208 ]
que deve conduzir à construção de uma cidadania
inclusiva.
REFLEXÕES SOBRE A “QUESTÃO BRANCA”

Teria chegado a hora de refletir sobre a “questão


branca”. [ 209 ] E é uma sociologia militante com
pretensões científicas que a conduz. Esse
multiculturalismo de pretensão científica, que
institucionaliza, no plano universitário, a crítica ao
homem branco, apoia-se na proliferação dos studies
(white studies, black studies, women’s studies,
postcolonial studies, disabilities studies etc.), em relação
aos quais François Furet já se preocupava há mais de
vinte anos. Ao comentar a popularidade dos panfletos
anticolonialistas no próprio cerne da vida universitária no
início dos anos 1990, ele assinalava que “constituíam a
ponta avançada de uma denúncia dos dead white
European males, […] a tradição europeia inteira, dos
gregos ao Iluminismo, é alvo de acusação, como culpada
de sexismo (males), racismo (white) e saudosismo
(dead). É contra ela que se ergue a coalizão variada dos
verdadeiros emancipadores da humanidade
contemporânea, os negros, as mulheres, as ‘minorias’”. [
210 ] Jean-François Revel, no mesmo período, também se
preocupava com esse fenômeno. “As universidades
estadunidenses são corroídas por um estranho vírus: o
‘politicamente correto’. De acordo com essa mania, para
os estudantes estadunidenses, toda a cultura ocidental,
de Platão a Tolstói, passando por Dante, Montaigne,
Cervantes, Shakespeare ou Nietzsche, deveria ser
rejeitada, porque expressa exclusivamente o ponto de
vista do ‘chauvinismo masculino e branco’. Disso resulta,
nos campi, um sectarismo que, sob esse motivo de
acusação fantasmagórico, tende a banir ou
‘desconstruir’. De acordo com o ‘politicamente correto’,
qualquer civilização, por mais bárbaras que sejam as
violações aos direitos humanos em seu interior ou por
parte dela para com outras sociedades, conforma-se com
pleno direito a sua própria identidade. É, portanto,
legítima, sendo a civilização europeia – e seu rebento
estadunidense – a única exceção. Essa é a única à qual
se recusa o direito à identidade, ou, antes, cuja
identidade é acometida de ilegitimidade congênita. Será
que esse niilismo cultural alcançará seu objetivo? Em
caso afirmativo, não será a primeira vez que teremos
visto um pretenso progressismo organizar, em nome do
universalismo humanista, a autodestruição, a
intolerância e a censura.” [ 211 ] O mínimo que se pode
dizer é que a dinâmica do politicamente correto se
radicalizou. Transformou o ódio ao Ocidente em saber
cientificamente reconhecido.
A discussão pública em torno da questão racial –
sugerirá Reni Edno-Lodge, uma figura de destaque do
antirracismo racialista britânico – deveria ficar reservada
aos que reconhecem, sem discutir, a existência de um
racismo estrutural a serviço dos brancos. Aqueles que
não aderirem a essa tese e insistirem em discuti-la ou
questioná-la dariam provas de insensibilidade para com
as populações não brancas, “como se o fato de ser
acusado de racismo fosse bem pior que o verdadeiro
racismo”. [ 212 ] O argumento é mais ou menos o
seguinte: o recalcamento da consciência racial no
Ocidente teria servido sobretudo para dissimular a
hegemonia branca, que, por fim, terá de ser nomeada. A
dinâmica emancipatória da modernidade já não poderia
se contentar em levar sempre adiante o ideal
universalista. Este último teria servido para dissimular a
identidade branca do Ocidente, o que permitiria legitimá-
la e, ao mesmo tempo, mascarar os processos sociais
que acarretam a subordinação e a exclusão das
populações oriundas da imigração. Pior, culpabilizaria
estas últimas, na medida em que não reconheceria sua
desvantagem sistêmica no interior da ordem social. Reni
Edno-Lodge denunciará, assim, a negação branca, “uma
espécie de política da raça onipresente, e mais eficaz
ainda por ser intrinsecamente invisível”. [ 213 ] O branco
se posicionaria como norma universal e “racizaria” as
populações diferentes – daí o emprego do termo
racizado. O universalismo, na realidade, seria uma
artimanha dos brancos para sujeitar as populações
oriundas do mundo colonial. Os racizados estariam em
revolta e a partir de agora denunciariam a impostura do
universalismo ocidental, que teria mascarado uma forma
de dominação neocolonial para com as populações de
origem estrangeira. O racialismo é teorizado a partir da
lógica da inversão do estigma: o minoritário retoma a
categoria a partir da qual ele é dominado a fim de
reivindicá-la positivamente e acusar uma ordem ilegítima
que o invisibilizaria e só poderia ser contestada por meio
da autoexibição. [ 214 ] Um antirracismo coerente deveria
racializar explicitamente sua leitura das relações sociais,
para melhor combater o sistema discriminatório que as
estruturaria. O antirracismo, nos tempos atuais,
consistiria primeiramente em travar a guerra das raças e,
mais exatamente, em travar a guerra contra o poder
branco. O universalismo seria apenas a máscara de uma
dominação com pretensões virtuosas, por parte do
Ocidente: a imigração maciça teria a imensa virtude de
obrigar o mundo ocidental a confessar o fundo
etnorracial de sua representação da cidadania, para
melhor realizar sua desconstrução. [ 215 ] É o discurso do
grupo Indigènes de la République [Indígenas da
República], cujo alcance supera amplamente o círculo
dos militantes que afirmam explicitamente sua adesão a
esse movimento, mas é também o discurso das
populações que se autoproclamam racizadas na maioria
das sociedades ocidentais.
Esse movimento transpõe, sem se preocupar muito
com os matizes, categorias ligadas às parcelas mais
radicais do movimento negro americano. Conceitos
intimamente ligados à dimensão traumática da
experiência histórica estadunidense são integrados numa
grade de leitura que é artificialmente colada em
sociedades que lhe são estrangeiras, como se vê no
Quebec, onde a aplicação do conceito de maioria branca
torna sua história fundamentalmente ininteligível, ao
fundir numa única categoria os francofônicos e os
anglofônicos, que, no entanto, se enfrentaram ao longo
de séculos, sem ter nenhum sentimento particular de
fraternidade racial. A esquerda racialista só quer ver aí
uma sociedade branca, e culpada de sua “brancura”.
Como já se deve ter compreendido, os povos francês,
alemão, italiano, escocês ou dinamarquês deixaram de
existir: trata-se apenas de subdivisões da civilização
branca. Da mesma maneira, o povo haitiano, os
afroamericanos e os inúmeros povos africanos estariam
fundidos numa identidade “negra” comum. O
neorracialismo de pretensão progressista impele à
abolição das culturas, das identidades e das pátrias,
querendo enxergar na história apenas uma guerra das
raças entre grupos absolutamente estanques entre si.
Apoiando-se numa teoria pós-colonial – cujo postulado é
que a França só poderia consumar sua descolonização
por meio da autodesnacionalização –, contestando os
privilégios da nação francesa histórica, que passou a ser
reduzida a um comunitarismo branco e católico, o
movimento dos Indígenas da República pretende
converter a sociedade francesa a um multiculturalismo
extremo. [ 216 ] A França já não estaria autorizada a impor
sua cultura às populações imigradas que se unem a ela.
Tradicionalmente, o colonialismo consistia em querer
impor sua cultura em terra alheia. Na lógica indigenista e
pós-colonial, consiste a partir de agora em querer impor
a própria cultura na própria terra. O sentido das palavras
se inverteu. Somente quando os franceses forem
definitivamente estrangeiros em sua própria casa é que a
descolonização estará consumada. Isso também vale, é
natural, para todas as nações coloniais.
Foi nesse espírito, por exemplo, que a sociologia
antidiscriminatória – que se alimenta do paradigma
diversitário – se lançou na explicitação e na
desconstrução da “brancura” das instituições sociais, isto
é, de seu viés racial não assumido. [ 217 ] Assim se
denuncia, por exemplo, o supremacismo branco daqueles
que não pretendem renunciar ao universalismo porque,
por meio dele, defenderiam justamente seu “privilégio
branco”. [ 218 ] E a desconstrução do privilégio branco
deverá se traduzir em iniciativas concretas, que se
multiplicam, ao mesmo tempo em que se normalizam:
cada qual deveria mostrar-se consciente de seus
privilégios e fazer esforços para desfazer-se deles, o que
exige uma autovigilância de todos os instantes. Uma
pessoa privilegiada já não deveria se dar ao direito de
pronunciar-se sobre aqueles que, em relação a ela, estão
em situação de subordinação estrutural. Sendo assim,
passou a ser visto positivamente o ato de enumerar os
funcionários de uma organização para saber se ela é
“demasiado branca”: um cético poderia ver aí uma
reinvenção do delito de julgamento pela aparência. A
contabilidade racial torna-se indispensável à construção
de uma sociedade justa. É preciso desbranquear a
sociedade. Como se vê em certos campi estadunidenses,
celebra-se o desaparecimento dos brancos do espaço
público, por meio da organização de Dias de Ausência,
em que estes não compareceriam à universidade, a fim
de se apagarem da cena social. [ 219 ] Da mesma maneira,
será justificada uma forma de segregação por meio da
multiplicação dos Dias racizados não mistos – o que
corresponde, na prática, à organização de assembleias
das quais os brancos são proscritos. [ 220 ] A não mistura
permitiria aos racizados compartilhar sua experiência
mantendo-se afastados do grupo social dominante. Isso
seria, para tomar de empréstimo as palavras de Christine
Delphy, a “não mistura por escolha” [ 221 ] – note-se que a
não mistura é mais geralmente reivindicada por uma
parte do movimento feminista como modo de resistência
ao patriarcado. [ 222 ]
Se o passado glorioso das nações ocidentais é sempre
fantasiado e imaginário, o mesmo nunca vale para o
passado sofrido dos povos antigamente colonizados, que
tem de ser aceito tal como é contado, sem jamais ser
relativizado ou matizado. Régis Debray notou essa falha
intelectual ao reexaminar seus anos de juventude: “na
França, perseguíamos a impostura por trás de toda
lenda, mas tomávamos as lendas do terceiro mundo ao
pé da letra, sem buscar a impostura”. [ 223 ] Impunha-se
uma ética da benevolência – e até da complacência –
para com os sofrimentos reivindicados e transmitidos ao
longo das gerações. [ 224 ] Em particular os brancos ou, ao
menos, os designados como tais, deveriam aceitar a
narrativa desse sofrimento sem jamais discuti-lo.
Deveriam aceitar o diagnóstico estabelecido em relação
a suas sociedades, aliar-se a ele e trabalhar para
desconstruir as estruturas discriminatórias que os
favoreceriam. Tornar-se-iam aliados, que deveriam, além
disso, conceder aos racizados a primeira posição nas
lutas, submetendo-se às estratégias que eles destacam.
Assim, seria essencial reconhecer que as sociedades
ocidentais seriam determinadas por um racismo
sistêmico constitutivo das relações sociais, a ser
derrubado a fim de que uma nova sociedade se construa.
Não haveria nenhum questionamento possível da
constatação desse racismo sistêmico, e cada qual
deveria encontrar os meios de extrair-se dele. As
disparidades estatísticas relativas entre as comunidades
que compõem a sociedade seriam prova disso, e não se
poderia explicá-las de outra maneira. E aqueles que
exibirem grandes reservas diante dessa reivindicada
racialização das relações sociais serão acusados de
“fragilidade branca” [ 225 ] – isto é, os brancos se
mostrariam incapazes de abordar a questão do racismo
serenamente e refugiar-se-iam em suas nobres intenções
morais, a fim de não pôr em questão uma estrutura
social que os favoreceria de maneira sistêmica.
Essa virulência leva várias pessoas a ver no
antirracismo contemporâneo uma forma de “racismo
antibranco”. [ 226 ] Tal acusação é contestada pela
sociologia antirracista, que reivindica o monopólio da
legitimidade científica ao sustentar que o racismo
antibranco é uma impossibilidade teórica, na medida em
que os brancos seriam o grupo favorecido pelo sistema
discriminatório ocidental e que o racismo não seria um
simples sentimento de aversão para com um grupo
étnico, mas um dispositivo de exclusão a serviço de um
grupo dominante. [ 227 ] Basta então opor-se à teoria do
racismo sistêmico para contribuir, na prática, para a
reprodução de um sistema social racista. O racismo
antibranco seria até “uma noção que a extrema-direita
tenta popularizar desde os anos 1980 e que hoje é
amplamente retomada pela direita”. [ 228 ] Éric Fassin
poderá, assim, escrever que “para as ciências sociais, o
racismo antibrancos não existe, não faz sentido. […]
Desse ponto de vista, as ciências sociais tomam o
cuidado de dizer: se começarmos a adotar o discurso da
extrema-direita que nos diz que todos os racismos se
equivalem, estaremos negando a realidade da
experiência de uma grande parte de nossos concidadãos
e concidadãs”. [ 229 ] Mais ainda, o racismo antibranco,
que por vezes se manifesta de maneira particularmente
desinibida, seria, no fim das contas, um reflexo de
autodefesa, infeliz, porém legítimo, que nada teria de
fundamentalmente condenável. [ 230 ] Essa
desindividualização do racismo permite que desse modo
se normalize o ódio racial dirigido aos brancos ou, ao
menos, que este seja desdramatizado, por meio de sua
redução a uma forma de aversão individual sem alcance
coletivo. Não nos proibiremos de assinalar um paradoxo:
um indivíduo alheio a toda forma de pensamento racista,
mas afeito aos princípios universalistas, será julgado
cúmplice de um sistema racista, enquanto um indivíduo
movido pelo ódio aos brancos – e, portanto, por uma
forma de ódio racial – será desculpado de racismo, visto
que sua aversão não seria sistêmica e não constituiria
uma relação de poder. O universalismo, que, no entanto,
permitia que cada um afirmasse sua individualidade e
sua personalidade própria sem se deixar determinar pela
lógica do determinismo etnorracial, agora é apenas coisa
do passado.
A CELEUMA DA APROPRIAÇÃO CULTURAL

É preciso ter essa sociologia em mente para


compreender a pressão em favor da censura que se
exerce, de maneira cada vez mais aberta, em nome da
diversidade, algo que, manifestamente, passou a
preocupar intelectuais que disso são testemunhas e
vítimas. [ 231 ] E foi no Quebec, onde americanidade e
europeidade se entretecem, que essa nova tendência
talvez se tenha revelado com mais radicalismo em
tempos recentes. No verão de 2018, enquanto a
sociedade quebequense se preparava para entrar no que
ela chama de estação dos festivais, a cidade de Montreal
foi abalada por uma dupla controvérsia pública
absolutamente impressionante. O dramaturgo Robert
Lepage, que apresentaria duas peças de teatro, foi alvo
de militantes “antirracistas” que o acusaram de racismo
e apropriação cultural. No primeiro caso, sua peça, SLAV,
pretendia pôr em cena cantos de escravos, mas um
grupo racialista negro se indignou que cantores brancos
retomassem, diante do público, cantos compostos por
escravos negros – ao que parece, assim os cantores se
tornavam culpados de apropriação cultural. No segundo
caso, com a peça Kanata, Lepage queria contar a história
do Canadá do ponto de vista dos autóctones, não dos
“brancos” (a perspectiva era estranha, na medida em
que os franceses e os ingleses, por mais brancos que
sejam, não têm a mesma experiência deste país), mas
militantes ameríndios o recriminaram de não haver
incluído em sua peça artistas ameríndios. Somente um
ameríndio poderia desempenhar o papel de um
ameríndio. Lepage não tinha nada de um neocolonialista
enraivecido e costumava ser considerado homem de
esquerda. Ainda assim pareceu abalado, num primeiro
momento, por essa acusação: o homem de esquerda era
pressionado a sua esquerda e repelido, a contragosto,
para a direita, para o campo dos herdeiros impenitentes
da aventura ocidental. Lepage primeiro manifestou
publicamente sua preocupação com uma ameaça contra
a liberdade de expressão proveniente do campo
progressista, e isso parecia surpreendê-lo, visto que a
esquerda cultural tinha antes o hábito de associá-lo ao
clericalismo.
No entanto, essa posição deixava Lepage
manifestamente pouco à vontade. Lepage era um
homem de esquerda decidido a continuar a sê-lo:
alinhou-se, portanto, à nova doutrina. Alguns meses
depois, entre o Natal e o Ano-Novo – depois de uma
resistência de fachada –, Robert Lepage publicou em sua
página do Facebook uma longa carta em forma de mea
culpa sobre sua peça SLAV, em que pedia desculpas a
seus acusadores por não haver compreendido desde o
início que eles tinham razão em fustigá-lo.
Pateticamente, apresentou-os como “pessoas que
demonstravam grande abertura e que se revelaram
muito sensíveis, inteligentes, cultas, articuladas e
pacíficas”. Em uma autocrítica de feição soviética,
acrescentará que “nesse clima de abertura e
transparência, é mais fácil para mim admitir meus
deslizes e meus erros de discernimento e tentar explicar
o fundamento de nossa iniciativa”. Melhor ainda:
confessará que “talvez não fosse por acaso que os
problemas dramatúrgicos de que o espetáculo sofria
correspondessem exatamente aos problemas éticos que
lhe eram recriminados”. A autoacusação foi completa. A
falha estética era, antes de tudo, uma falha ética, e ao
alinhar-se ideologicamente com seus acusadores Lepage
conseguiria aprimorar sua peça, por fim submetida
integralmente à nova moral diversitária, inclusive com a
promessa de garantir melhor representação no meio
artístico das comunidades oriundas da imigração e de
conceder aos militantes oriundos da diversidade um
direito de vigilância sobre sua obra. Embora a autocrítica
tenha sido exemplar, nada tinha de excepcional, pois tais
controvérsias são hoje frequentes, e mesmo banais. [ 232 ]
A desventura de Lepage teve, contudo, a imensa virtude
de representar de maneira quase caricata a nova
censura que perpassa as sociedades ocidentais, que já
não é exercida antes de tudo pelo Estado, embora este
não lhe seja estranho, mas pelo sistema midiático, que
prescreve uma nova ordem moral diversitária, à qual
devem submeter-se os que pretendem participar de uma
maneira ou de outra da vida pública.
Uma definição corrente da apropriação cultural a
apresenta como o uso ou a exploração, por uma cultura
dominante, de referências culturais próprias da cultura
dominada, o que reinstauraria em relação a ela um
processo de exploração simbólica propriamente
neocolonial. Praticamente deixou de ser permitido não
acreditar na teoria da apropriação cultural. De fato, quem
se recusa a assinar embaixo participaria da perpetuação
do colonialismo. Quem confessar suas dúvidas e, mais
ainda, reconhecer que não adere a ela, será
transformado em suspeito. Será até possível despedir-se
de tal pessoa e expulsá-la da vida pública, como se viu
no Canadá inglês, antes de convidá-la a uma reeducação
ideológica em que vai ao encontro dos grupos que dela
se dizem vítimas para pedir-lhes perdão. [ 233 ] E as
celeumas ligadas à apropriação cultural se multiplicaram
no espaço de alguns anos. Embora pareçam
incompreensíveis ao comum dos mortais, situam-se,
contudo, no cerne de uma radicalização do antirracismo.
Será que uma mulher branca pode interpretar canções
compostas em outros tempos por escravos negros? Será
que um branco pode dar uma oficina de yoga sem
explorar, ao mesmo tempo, uma tradição que teve de
sofrer a pressão colonialista ocidental? [ 234 ] Como
alguém pode usar uma fantasia, numa festa, sem
ofender o sagrado tradicional das diferentes
comunidades que compõem uma sociedade? 235 ] Um [
ator em plena posse de seus recursos pode desempenhar
o papel de um deficiente? [ 236 ] Uma empresa de moda
pode ou não inspirar-se nas tradições indumentárias
desta ou daquela comunidade africana e integrar certos
elementos vindos delas nas roupas que propõe? Tais
controvérsias têm impacto até nos meios artísticos e
podem acarretar, como já se observou, a anulação de
espetáculos que não respeitam os novos códigos da
sacralidade diversitária. O pior erro consistiria em tratar
tais acontecimentos como ocorrências do cotidiano.
Trata-se aí de autênticos acontecimentos políticos. A
celeuma da apropriação cultural tornou-se sua
representação simbólica mais marcante: a civilização
ocidental teria se construído por meio da pilhagem
simbólica dos povos dominados, e este seria o tempo,
para eles, de resgatar seus símbolos perdidos. A América
do Norte seria o campo de batalha exemplar para isso,
sobretudo no que tange aos povos ameríndios, dos quais
algumas figuras estereotipadas foram usadas pela
cultura popular e mesmo pela cultura de massa. É o caso
de inúmeros times esportivos, em particular. Estes são
convidados a renunciar a seu nome, mesmo quando
veicula uma longa tradição: a partir de agora, eles
deveriam trocar de nome. [ 237 ]
Foi um dispositivo ideológico singular que se instaurou
no cerne do espaço público das sociedades ocidentais, e
comprime mais do que nunca a vida democrática. O
espaço público é submetido a uma vigilância integral
pelos lobbies de indignados profissionais: todas as obras
são teoricamente chamadas a se converter à lógica
diversitária, e os próprios criadores devem aliar-se a ela
para contribuir, como se diz oficialmente, para a
evolução das mentalidades. Os lobbies estão à procura
de escândalos a serem denunciados – isto é, palavras
que transgridam a ortodoxia diversitária. E o simples fato
de resistir a eles é um escândalo. Seu grande poder, na
realidade, é o de decretar o escândalo. Os militantes do
empreendimento diversitário têm o imenso poder de
definir o que pode ser dito com toda tranquilidade, e o
que não pode sê-lo, a menos que se consinta em pagar o
preço. Tomando de empréstimo as palavras de Miłosz, “a
ortodoxia não pode relaxar sua pressão, sob pena de
deixar de ser uma ortodoxia”. [ 238 ] Contos e lendas,
heróis e super-heróis deverão submeter-se a ela, a fim de
acentuar a cada vez a cisão entre o velho mundo –
associado, ao que parece, à supremacia branca – e o
novo, que permitiria aos excluídos autoproclamados fazer
valer seus direitos. Aliás, para evitar a reprodução de
estereótipos ofensivos, até mesmo a literatura terá de
passar pelo filtro da sensibilidade identitária das
diferentes categorias de ofendidos potenciais que são
publicamente conhecidas. [ 239 ]
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO DERRUBADA: O ESPAÇO PÚBLICO COMO SAFE
SPACE

A palavra pública parece comprimida, sufocada,


formatada. O pensamento correto estende seu império e
são as próprias condições da liberdade de expressão que
se transformam, no momento em que esta última é
redefinida para justificar a institucionalização de um
processo permanente contra a cultura majoritária. Os
sensíveis e os ofendidos reinventam a blasfêmia à sua
maneira, destacando o direito de não ser ofendido e,
mais amplamente, o direito fundamental de ver a ordem
social reconhecê-los tal como eles próprios se veem. As
minorias autoproclamadas, concebidas pelo regime
diversitário segundo o modo da identidade vitimária,
reivindicam um direito de veto sobre a maneira como são
representadas publicamente. Assim é que os grupos
identitários oriundos da decomposição do corpo político
ficarão tentados, cada qual, a tornar escandalosas as
palavras – sobre eles ou sobre a sociedade – que entrem
em contradição com sua sensibilidade ou sua filosofia.
“De certa maneira”, escreve Patrick Moreau, “esses
grupos privatizam a censura em benefício próprio”. [ 240 ]
O direito de não ser ofendido favorece, assim, uma
cultura que conjuga censura e autocensura: cada minoria
poderá a partir daí insurgir-se, quando não for definida
em público exclusivamente nos termos privilegiados por
ela. [ 241 ] Naturalmente, não se poderia estabelecer uma
lista de critérios objetivos que distingam as palavras
ofensivas das não ofensivas: a subjetividade de cada
grupo e, provavelmente, de sua parcela mais suscetível e
mais militante, servirá de baliza. Não surpreende que
tenhamos visto o movimento islamista buscando servir-
se da censura diversitária, em particular no intuito de
proibir palavras que entrem em contradição com o islã
ou, para dizê-lo nos termos de uma militante islâmica
canadense que participou de uma consulta pública sobre
os discursos de ódio: cumpriria proibir as “alegações de
que uma confissão religiosa seja incompatível com a
democracia, dado que todos nós somos cidadãos de um
país democrático”. [ 242 ]
Essa censura se exerce em nome do conceito de safe
space, particularmente em voga na universidade
estadunidense. As novas minorias emancipadas, para se
expressarem livremente, já não deveriam ter de sentir o
olhar da maioria e devem poder se proteger contra os
discursos que potencialmente as incomodariam. Nas
salas de aula, por exemplo, será exigido que o professor
advirta seus estudantes de que ele poderá proferir
palavras susceptíveis de incomodá-los, ofendê-los ou
magoá-los – são as famosas advertências preventivas
(trigger warning). Como Géraldine Smith escreveu, ao
falar sobre os estudantes dos campi americanos, “eles
absorveram a ideia de que o ambiente deveria adaptar-
se às emoções deles, e não o contrário”. [ 243 ] Tratar-se-
ia, na realidade, de liberar espaços em que os membros
das minorias poderiam expressar-se com toda liberdade,
sem correr o risco da contradição nem do confronto e,
mais amplamente, de criar um ambiente universitário
purgado dos traços do velho mundo e liberado da
presença dos que ainda aderem a ele, o que não raro
implicará impedir a vinda ao campus de conferencistas
julgados ofensivos ou passíveis de contradizer as
exigências diversitárias. Será preciso considerar esses
safe spaces como áreas livres dentro de uma civilização
racista, patriarcal e homofóbica. A descolonização
identitária e sexual de uma sociedade liberada a um só
tempo do racismo estrutural e da heteronormatividade
patriarcal estaria aí consumada. Seria então possível
lançar, a partir dessas áreas, novas lutas intersetoriais
contra as múltiplas opressões engendradas pela
civilização ocidental. Várias vezes, em toda a extensão
da América do Norte e, sobretudo, nas universidades,
conferencistas se viram desconvidados porque grupos
militantes se opunham à sua vinda; foi o caso de Jordan
Peterson, talvez o mais emblemático de todos. [ 244 ] Isso
pode ir ainda mais longe, como se viu quando uma
universidade londrina fez com que humoristas
convidados a atuar no local assinassem um contrato em
que se comprometiam a apresentar um humor não
ofensivo. O texto do contrato tinha algo de caricato: “ao
assinar este contrato, você aceita nossa política de
tolerância zero em relação ao racismo, ao sexismo, às
discriminações fundadas em classe social, idade e
deficiência, bem como em homofobia, bifobia, transfobia,
xenofobia, islamofobia, antirreligião e antiateísmo”. O
contrato prossegue assim: “todos os assuntos devem ser
apresentados de maneira respeitosa e afável. Isso não
quer dizer que nem todos os assuntos possam ser
discutidos. No entanto, isso deve ser feito de modo
respeitoso, não injurioso”. [ 245 ] As palavras que não
endossarem a visão de mundo das minorias oriundas da
última etapa da descolonização das consciências serão
traduzidas como uma forma de violência simbólica
moralmente inadmissível. [ 246 ]
É a liberdade de expressão que está na mira direta e,
por meio dela, a democracia liberal, que deveria ser de
uma vez por todas desvestida de sua legitimidade
usurpada. A liberdade de expressão seria uma ficção em
benefício dos dominantes, e os que se queixassem de
serem privados de seu direito à palavra seriam
privilegiados refratários à emancipação diversitária –
Reni Eddo-Lodge fala do “contexto pernicioso da
‘liberdade de expressão’”, dando a entender assim que
ela seria alardeada atualmente para justificar palavras
racistas. [ 247 ] “Travestir a oposição aos discursos e às
manifestações antirracistas num nobre combate pela
liberdade de expressão tem um único objetivo, que é
proteger os brancos da crítica.” [ 248 ] Enquanto a questão
da liberdade de expressão nos campi se impunha cada
vez mais na sociedade quebequense, uma intelectual
militante do feminismo radical formulou à sua maneira o
que provavelmente constitui a posição dominante de seu
movimento ideológico: “não são as populações já
fragilizadas que estão a berrar que sua liberdade de
expressão está sob ataque. […] São aqueles que sempre
tiveram monopólio da fala, isto é, homens brancos em
geral”. [ 249 ] Aí se encontra o insuperável paradoxo da
tolerância política na modernidade, que primeiro
sustentou que não se devia dar liberdade de expressão
aos inimigos da liberdade e, atualmente, não pretende
tolerar os inimigos da tolerância – chega a desolar-se
com o acesso deles ao espaço público e não perde a
esperança de conseguir excluí-los desse espaço. A
perturbação de uma conferência para impedir sua
realização é justamente uma das modalidades da
liberdade de expressão, sobretudo para os que não têm
tribunas públicas – haveria aí uma admirável revolta
contra a fala dos dominantes. Mais ainda: combater as
perturbações que visam causar incômodo e impedir uma
conferência, isso sim seria a verdadeira negação da
liberdade de expressão, e ela seria ainda mais
escandalosa porque pisotearia a liberdade dos sem-
poder. [ 250 ] Ao contrário, os que são assim “perturbados”
e se desolam com isso, pública ou discretamente, são
acusados de vitimizarem-se. O movimento diversitário
denunciará “a instrumentalização da liberdade de
expressão e da liberdade acadêmica quando esta serve
para proferir palavras opressivas”, e acrescentará que “a
liberdade de expressão não deveria ‘justificar o direito de
pronunciar discursos ou exercer ações de ódio ou
degradantes, particularmente quando estas são racistas,
colonialistas, xenófobas, transfóbicas, homofóbicas,
sexistas, misóginas, antifeministas, classistas ou
capacitistas”. [ 251 ] A liberdade de expressão não é a
liberdade de dizer qualquer coisa, mas a de ir no sentido
do progresso – em outras palavras, de conceder aos
grupos minoritários em via de emancipação o poder de
expressarem-se por si mesmos sem continuar a
submeter-se às palavras do grupo que historicamente os
subordinou e definiu a partir do exterior. O verdadeiro
combate pela liberdade de expressão seria o de lutar
contra o acesso desigual à palavra pública. Uma
militante feminista de destaque a quem se perguntou “se
constituiria censura o fato de estudantes de esquerda
impedirem um autor de direita de proferir uma
conferência na universidade deles” respondeu que “a
maioria das pessoas que faz alarde contra a censura
nesse tipo de caso realmente não suscita pena. Não lhes
faltam tribunas. Elas já são as que falam mais alto.
Existem tantas outras falas inaudíveis. Se quisermos
defender a liberdade de expressão, precisamos atacar as
desigualdades no acesso à palavra”, e logo acrescentou
que “o discurso que se escandaliza com o politicamente
correto foi criado à direita, por pessoas mais
preocupadas em conservar seu próprio poder do que em
proteger a liberdade de expressão e a necessidade de
um debate saudável e aberto. O discurso contra o
politicamente correto – nós o chamamos de
‘politicamente abjeto’ – interessa-se sobretudo pelo
direito de dizer horrores”. [ 252 ] O que reivindicam os
militantes daquilo que bem se poderia chamar a
extrema-esquerda identitária é, naturalmente, o direito
de definir os critérios do horror. Grosso modo, o combate
pela liberdade de expressão seria um tapa-sexo
ideológico, e ninguém deveria cair no engodo daqueles
que o travam. Esse seria, inclusive, um “tema de
extrema-direita”: [ 253 ] assim apresentado, torna-se
imediatamente repulsivo. A liberdade de expressão
serviria tão somente para normalizar o discurso dos
dominantes. E é assim que a pretensão ao livre exame
de todas as crenças e à livre expressão das diferentes
maneiras de perceber a comunidade política que embasa
a deliberação democrática se torna suspeita. É grande a
tentação de estender o conceito de safe space ao espaço
público. Enquanto a democracia liberal deveria originar
uma cultura em que os atores sociais se habituam à
contradição e perdem o reflexo de querer censurar os
que a veiculam, a sociedade diversitária impele antes à
multiplicação das proibições sociais e simbólicas, sem as
quais as minorias estariam condenadas a ouvir repetidas
vezes um discurso que as define do exterior, atribuindo-
lhes uma identidade em que elas não se reconheceriam.
“Novas morais, novas censuras”, escreveu, assim,
Emmanuel Pierrat, que também reconhece nessa
tendência uma tentação higiênica exercida pelas “ligas
da virtude do terceiro milênio”, [ 254 ] que aspiram a
limpar a sociedade de todas as suas asperezas.
O NOVO ICONOCLASMO E A GUERRA CONTRA AS ESTÁTUAS

Se examinarmos com algum distanciamento o caldo


envenenado de cultura em que a universidade americana
se transformou, será preciso convir que a simples
presença do mundo antigo e de suas obras no espaço
público é o que desagrada as novas minorias
emancipadas. Essa grande revanche dos excluídos se
acompanha de um furor iconoclasta, impelido pela
tentação de destruir até os últimos traços do mundo
antigo, cuja simples lembrança se tornou intolerável. “O
que sabem nossos contemporâneos sobre os séculos que
os precederam, exceto que foram escravagistas, racistas,
misóginos, sexistas e desigualitários?”, pergunta com
razão Bérénice Levet. [ 255 ] A consciência histórica dos
povos ocidentais parece referir-se cada vez menos a suas
respectivas histórias e remeter cada vez mais à simples
memória dos crimes contra a humanidade, que deveriam
se tornar sua trama comum. Eis a trama de fundo dessa
nova história: uma empreitada exterminadora em grande
escala, motivada por uma intolerância à diferença, teria
marcado a civilização ocidental para sempre com uma
mancha negra, e esta deveria obrigar-se a um
arrependimento permanente, que seria a única via de
salvação. É preciso lançar por terra o velho mundo para
então pisoteá-lo.
A cena percorreu o mundo: no mês de agosto de 2017,
manifestantes se confrontaram em Charlottesville, na
Virgínia, em torno de uma estátua do general Lee, uma
das principais figuras da guerra civil americana, que
militantes de extrema-esquerda queriam derrubar. Num
país como os Estados Unidos, que assistem a um
renascimento das tensões raciais e são permeados por
paixões políticas violentas, e onde ainda se manifesta um
movimento autenticamente racista, os simples traços da
memória confederada pareciam agora se inserir numa
espécie de patrimônio local, mais folclórico do que outra
coisa. No entanto, não se poderia esquecer que, na
história estadunidense, a guerra de Secessão se
apresentou durante muito tempo, e ainda se apresenta,
sob muitos aspectos, como a Civil War, isto é, a guerra
civil; uma vez terminada, e isso há um século e meio, as
autoridades estadunidenses se julgaram no dever de
reconciliar a nação, que devia refazer simbolicamente
sua unidade, em especial ao reconhecer a memória dos
vencidos. Houve um tempo em que a restauração da paz
civil não pressupunha a erradicação do vencido, mas,
paradoxalmente, sua reintegração na comunidade
política, pela busca da compreensão das boas razões de
uns e outros. É que a paz era concebida em termos
políticos, sob o signo da concórdia cívica, e não à
maneira de um absoluto moral: era preciso reconciliar
homens – e não os campos do bem e do mal –, homens
estes que haviam tido razões inteligíveis para se
afrontarem. Nessa perspectiva histórica, o que estava em
jogo na guerra civil não era a escravidão, mas a unidade
do país. O reconhecimento da memória dos vencidos
pelos vencedores consolidava uma união que estivera
sob o risco de explodir. Numa tal perspectiva, é possível
respeitar as duas bandeiras e, ao mesmo tempo, lembrar
qual delas venceu. Compreende-se assim que, uma vez
terminada a guerra, fosse preciso reunificar o país,
reconciliá-lo, levando em conta os heróis de cada um, o
que obriga a cantar sua glória comum. Até os anos 1980,
ao menos nos estados do Sul, era possível afirmar seu
pertencimento à memória do Sul e demonstrar certa
nostalgia por seu ideal, sem tropeçar na questão da
escravidão. O Sul não era um símbolo de racismo: era
associado a uma civilização hoje desaparecida, retratada
pelo filme E o vento levou, que também foi censurado
num festival, segundo a dinâmica dos acontecimentos,
visto que não lançava sobre o velho Sul um olhar
compatível com aquele que lhe é atualmente reservado. [
256 ] Ainda recentemente, foram muitos os que
testemunharam seu zelo pela bandeira dos
confederados, presente em todos os lugares nos estados
do Sul, à maneira de uma civilização vencida, mas não
humilhada. [ 257 ]
No entanto, essa memória complexa, atenta à
pluralidade da experiência histórica americana, deixou
de ser tolerável. Do alto da história, o que estava em
jogo nessa guerra já não suscita nenhuma dúvida:
tratava-se de abolir a escravidão e foi sob esse prisma
que ela entrou na história universal. Não se poderia
relativizar sua importância. É natural: a partir do
momento em que a política se agarra a absolutos morais,
transforma os adversários em inimigos e os inimigos em
monstros. Pode-se compreender o acesso de raiva de
uma juventude que constata que o racismo
estadunidense não é uma coisa do passado, e que busca
símbolos a serem combatidos para manifestar seu desejo
de outra sociedade. A partir do momento em que essa
perspectiva é invertida, a memória só pode se recompor
dividindo os adversários do passado entre representantes
do bem e do mal. Aqueles que, por uma razão ou outra,
se opuseram à supressão da estatuária confederada são
acusados de cumplicidade com aquilo que hoje lhe é
recriminado.
A grande maioria dos estadunidenses, quer dos
estados do Norte, quer do Sul, reagiu muito mal à
vontade de derrubar essa estátua, ainda mais porque foi
seguida por outras iniciativas do mesmo gênero,
praticamente em todo o território nacional. Não era
apenas a ilegalidade que chocava, mas a brutalidade de
vândalos que se acreditavam autorizados a esfacelar
monumentos inseridos na paisagem histórica de
diferentes comunidades. Viam-se rapazes e moças
encarniçando-se contra velhas estátuas, em algo que
tinha toda a aparência de uma crise de histeria coletiva,
relembrando os dois minutos de ódio evocados por
Orwell em 1984. [ 258 ] Logo se compreendeu, aliás, que
essa fúria destruidora ultrapassava, e muito, a mera
questão da escravidão. Nas semanas subsequentes,
assistiu-se a um surto iconoclasta em quase toda a
extensão dos Estados Unidos e, de modo mais amplo, no
mundo ocidental. O prefeito de Nova York, Bill de Blasio,
anunciou num primeiro momento sua intenção de retirar
a estátua de Cristóvão Colombo, numa empreitada cujo
objetivo era erradicar do espaço público os símbolos de
ódio, [ 259 ] pois ela seria julgada ofensiva pelos
ameríndios, ainda mais porque os movimentos mais
militantes que pretensamente os representavam
radicalizaram nos últimos anos sua crítica à colonização
europeia, a ponto de reduzi-la a uma empreitada de
extermínio étnico. Os europeus, na América, não
estariam em sua casa e teria chegado a hora de
reescrever a narrativa da colonização do novo mundo
criminalizando suas origens. Atacava-se Cristóvão
Colombo, mas era sobre a expansão europeia iniciada no
fim do século XV que a acusação recaía. [ 260 ] A América
estaria na hora da descolonização: o mínimo que se
podia fazer era contestar o papel fundador das potências
coloniais na origem dos diferentes países que surgiram
no continente. Tanto nos Estados Unidos como no Canadá
e no Quebec, foi em nome de uma abordagem
descolonial que se pretendeu criminalizar os grandes
exploradores europeus, que teriam inaugurado um
genocídio cultural ininterrupto até os dias de hoje. É a
expansão europeia que está no banco dos réus, e o
mundo ocidental já não tem o direito de compreender a
si mesmo senão tomando de empréstimo o olhar dos que
teriam sido marginalizados por ele. O ocidental deve não
apenas fazer penitência, mas apagar-se por completo.
Seu ponto de vista sobre o mundo é esvaziado de toda
legitimidade. Foi também de acordo com esse espírito
que houve quem propusesse a derrubada das estátuas
de John A. Macdonald, um dos pais fundadores do
Canadá, em razão de sua política para com os
ameríndios. [ 261 ] Pense-se também no CRAN, que
pretende representar os Negros da França e quis acabar
com as estátuas de Colbert, por sua responsabilidade
histórica na escravidão. [ 262 ] Para retomar o vocabulário
da prefeita de Montreal, que cede a essa visão das
coisas, sua cidade seria um “território autóctone não
cedido”, uma maneira como qualquer outra de
desqualificar moralmente os Estados nascidos da
colonização europeia, quer se trate dos Estados Unidos,
quer do Canadá ou do Quebec.
A estação foi propícia à dinamitação simbólica, como
se o dever exigisse depurar a sociedade dos traços do
passado pré-diversitário. Viu-se isso no King’s College, de
Londres, onde a estatuária na entrada do
estabelecimento, em homenagem aos pais fundadores
da instituição, foi denunciada: tratar-se-ia de uma
coleção “de homens brancos, barbados, de mais de
cinquenta anos”. [ 263 ] Dificilmente se pode imaginar
recriminação pior. Empreendeu-se a substituição por
figuras oriundas da diversidade e representantes das
diferentes minorias, a fim de construir uma estatuária
conforme à iconografia diversitária. Já não são
celebradas as realizações singulares, mas é todo o
simbolismo oficial que é instrumentalizado para que nele
se projete o novo ideal da diversidade. O partido
diversitário pretende assinalar a mudança de época
marcando a ruptura absoluta com a época anterior. [ 264 ]
É claro, essa tentação não é nova: caracteriza o espírito
da modernidade, obcecada com a fantasia de um mundo
absolutamente racionalizado, arrancado da história,
lavado do passado, alheio aos limites antropológicos. Ela
impele a fazer tábua rasa, mas a cada vez se constata
que o mundo do passado deixou alguns traços e, por
isso, estes são ainda mais intoleráveis. Eles parecem,
portanto, mais intoleráveis do que nunca. Tocqueville
havia teorizado isso à sua maneira: em uma sociedade
democrática, movida pelo princípio igualitário, a menor
desigualdade residual causa escândalo. Em um mundo
extraído da história, que quer renascer na pureza virginal
do autoengendramento, o menor privilégio associado à
continuidade histórica é um símbolo que precisa ser
condenado a qualquer preço. É necessário que se
compreenda: já não devem restar traços do mundo do
passado – ou, ao menos, traços ambíguos. No fim das
contas, a história só poria em cena o conflito entre o bem
e o mal, que se expressaria atualmente na luta entre a
abertura e o fechamento, por meio de um programa de
desocidentalização do mundo. A consciência histórica já
não deve ser considerada em referência às diferentes
camadas memoriais, e às significações contraditórias ou
complementares passíveis de entremear-se.
Sente-se que nossas sociedades estão hipnotizadas
pelo nada e pela possibilidade de sua própria dissolução,
como se o desmoronamento das grandes formas
históricas levasse o homem a uma espécie de
indeterminação original, a partir da qual ele poderia
renascer, livre, enfim, das restrições que o teriam
alienado. Incessantemente retomado, o empreendimento
depurativo traz a esperança de uma sociedade
emancipada de seus resquícios vindos do passado, por
fim pacificada, visto que integralmente concordante
consigo mesma – é a esperança de uma sociedade
consumada, que atingiu o término de seu processo
histórico. Simplesmente já não é permitido testemunhar
uma estima qualquer por uma etapa anterior, visto que
ela entraria na categoria do passado pré-diversitário. A
esquerda diversitária é uma esquerda religiosa, que
acredita ser possível, um dia, chegar a um sociedade
emancipada de toda forma de heteronomia. Nos termos
da sociologia diversitária, tratar-se-ia de uma sociedade
integralmente destituída de hierarquia, tendo
desconstruído de uma vez por todas as antigas
estruturas de poder e o imaginário que as sustenta. Os
privilégios seriam, por fim, abolidos – do velho mundo
restaria apenas a lembrança euforizante de seu
desaparecimento. No entanto, este não poderia parar,
pois a resistência do real à utopia não é conjuntural: está
inserida na realidade das coisas. A fanatização do
progressismo vem daí – do sentimento de uma
resistência que sempre vem desmentir suas promessas.
Quanto mais o real teima em não se dobrar, mais se
deve radicalizar sua desconstrução. A tentação totalitária
é irresistível. O homem não é uma criatura
absolutamente maleável, fabricada e confeccionada em
uma sociedade concebida como um laboratório. Uma
parte dele sempre se esquivará, mesmo ao planificador
social mais ambicioso, e mesmo que “a máquina e as
engrenagens” [ 265 ] sejam de uma eficácia absoluta. É
que o homem não é absolutamente transparente para si
mesmo. Miłosz, cuja figura encontramos várias vezes
nestas páginas, constatava que, para os círculos
socialistas, “supor que o homem seja um mistério é um
insulto abominável”. [ 266 ] De fato, quem supõe que o
homem não é uma criatura exclusivamente social
invalida de antemão toda tentativa de reprogramá-lo por
completo, de reeducá-lo de maneira tal que ele se
conforme exatamente ao modelo de sociedade ao qual o
destinam.
Capítulo 6 | O sentimento do fim de um mundo
ou a criminalização da nostalgia
 
 
 
 
 
 
 
Recuso filiar-me a esse partido único do futuro, que sabe bem
demais para onde vai.
Matthieu Galey
 
Em suma, eu havia lido Peguy em demasia, o canto de glória
elevado àqueles que não se rendem, o anátema lançado àqueles
que entregam os lugares que lhes foram confiados. Queria
continuar minha história da França. Não havia compreendido que
chegara ao fim do último capítulo.
Raoul Girardet
 
Distanciando-me a contragosto das velhas plagas em que nasci…
Chateaubriand
 
Os tempos tranquilos já se foram. Somos
contemporâneos do fim da democracia apaziguada. Se a
vida política ocidental voltou a ser passional, para o
melhor e para o pior, é porque a partir de agora diz
respeito à própria existência das nações que a compõem
e da civilização em que estas se inserem. “Quando a
alma da própria comunidade política adoece, o indivíduo
fica sob ameaça, não apenas nas dimensões superiores
de seu ser, mas em sua existência imediata, em seu
alicerce vital. O ‘pecado’ torna-se propriamente
catastrófico quando deixa de ser pecado: quando já não
procede de uma escolha individual e deliberada, mas de
uma consciência coletiva corrompida. Já não se limita,
então, a degradar o homem: ele o destrói.” [ 267 ] Ao
escrever estas poucas linhas, Gustave Thibon acreditava
descrever o que ele denominou “a decadência de um
mundo cristão”. No entanto, mais fundamentalmente,
vemos aí uma meditação sobre os elos estreitos entre o
homem e a comunidade política, cada vez mais alheia à
antropologia liberal, e que tende a privatizar
integralmente a questão do Bem e teima em reduzir a
vida política à sua dimensão instrumental.
No entanto, preocupar-se com o mundo em que vive é
um dos reflexos mais naturais dos homens. Quem corta o
vínculo entre a comunidade política e a alma enfraquece
a primeira e resseca a segunda. Quem dessacraliza em
demasia a comunidade política cria as condições para
um sagrado substitutivo, que se transferirá para objetos
secundários que não merecem aproximar-se do âmbito
do absoluto. Se a comunidade política acabar arriando, o
homem arriará também, e as grandes coisas que ele
tradicionalmente esperava realizar tornar-se-ão
simplesmente inconcebíveis, sua imaginação definhará,
bem como suas esperanças. Não se vive da mesma
maneira em tempos tranquilos e quando vem a
tempestade. O homem não se desenvolve da mesma
maneira se seu país é poderoso ou se está em
decomposição; duvida de si mesmo e acaba por
reconhecer-se no pior retrato que pode fazer de si
mesmo. Sob esse prisma, a filosofia política aristotélica
era mais rica que a dos modernos, que quiseram fundar
a comunidade política na neutralização simbólica e
afetiva da coisa comum. Quando as bases antropológicas
da comunidade política ficam comprometidas, e quando
as estruturas simbólicas que davam suporte à expressão
da subjetividade se esfacelam e dispersam, a pessoa
custa a se formar.
A globalização acentua essa tendência: um mundo sem
fronteiras é um mundo com mil neuroses. Aquilo que
chamamos mais ou menos adequadamente de perda de
identidade encerra o homem em uma eterna
adolescência. Ele tem dificuldade para se estabelecer
como adulto. Michel Houellebecq, melhor que qualquer
um, soube de um livro a outro retratar essa ausência de
herança existencial. Seus personagens andam errantes
numa civilização em fim de percurso, incapazes de
transcender, buscando apenas sobreviver sem saber
muito bem por quê, de tempos em tempos acometidos
por um desejo de conversão religiosa, diante da qual
fracassam a cada vez. A civilização deles os abandonou.
Philippe Muray, da mesma maneira, descreve um homem
que não sabe fazer outra coisa senão perder-se num
totalitarismo do riso que se reveste de ares de festa.
Embasbacado, condenado a uma paródia de existência
numa civilização que só sabe correr atrás de um
progresso cujo sentido lhe escapa, o homem sente que o
mundo do passado, que não era destituído de
infelicidade, tampouco era destituído de grandeza.
Entrega-se, então, à nostalgia: e essa tentação não se
perdoa. Já não é permitido lamentar o desaparecimento
do mundo dos nossos pais, e confessar “a saudade do
país da nossa infância se tornou um crime”. [ 268 ] O
sentimento de perda seria ilusório. Nada é menos
admissível na vida pública do que um homem que ouse
sustentar, mesmo em voz baixa, que antes, talvez, fosse
melhor.
A consciência contemporânea é permeada pela certeza
de uma mudança de época. Não cometeremos o erro de
enxergar aí apenas a melancolia recorrente do homem
moderno. “O exílio em terra estrangeira é um
dilaceramento. O sentimento de exílio na própria terra é
um trauma ainda maior”, [ 269 ] escrevia, com razão
Alexandre Devecchio. O medo de tornar-se estrangeiro
na própria casa é com certeza a preocupação política
mais profunda, aquela através da qual a vida política
volta a desdobrar-se. Seria um equívoco ver nisso um
medo irracional alimentado por demagogos sem
escrúpulos. A imigração maciça, conjugada à
desconstrução de todas as referências antropológicas e
identitárias das nações ocidentais, suscita uma angústia
existencial que se transforma em combustível político. A
consciência pesada parece dominar atualmente, numa
civilização que cultiva o ódio de si mesma, que se deixou
convencer de que não deveria assumir sua história, mas
extrair-se dela, e que desconstrói interminavelmente
suas grandes instituições, acreditando travar uma luta
para acabar com as fobias, não raro imaginárias. Certo
perfeccionismo moral pode transformar-se com facilidade
em mórbida autoflagelação. O Ocidente se deixou
converter mentalmente a um messianismo humanitário
que o faz perder o senso político, o qual sempre constitui,
seja lá o que se pense a seu respeito, uma reflexão sobre
o particular. É a partir do momento em que o corpo
político compreende que ele não se confunde com a
humanidade que a política se desemparelha da ética e
revela sua autonomia, bem como suas próprias
exigências. A radicalização do universalismo acarreta a
extinção inevitável da política. Isso porque o
universalismo bem compreendido repousa em primeiro
lugar numa consciência das mediações que o tornam
possível. É provavelmente um sinal de declínio, para uma
civilização, questionar-se em permanência sobre seus
fundamentos, em vez de assumi-los plenamente. Se a
questão da identidade é tão apaixonante e libera as
paixões políticas mais fundamentais, é porque abre uma
discussão pública sobre os próprios fundamentos da
comunidade política. No entanto, esse pendor excessivo
para a introspecção não será um sintoma de uma
profunda fragilidade? A identidade não deveria
apresentar-se tanto como um perpétuo
autoquestionamento, mas como princípio de vida.
Pertence muito menos ao âmbito do projeto
racionalmente construído do que ao da herança viva e ao
da continuidade histórica, o que não significa que ela não
evolua numa tensão entre os dois polos, o do ideal e o da
memória. É na medida em que um povo assume sua
condição histórica que é capaz de projetar-se no futuro.
Se chega a duvidar de sua própria existência,
inevitavelmente declinará. Não obstante os abusos
cometidos em seu nome, o mito da tábua rasa não cessa
de renascer em formas inéditas, como se desse
testemunho da irredutível tentação demiúrgica da
humanidade. Essa liberdade evidentemente não tem
sentido. O niilismo e o utopismo compartilham o mesmo
fascínio pelo vazio: o primeiro é fascinado pelo próprio
nada, o segundo acredita ser possível extrair dele uma
ordem social perfeita.
O ENCANTO DOS ESCRITORES CREPUSCULARES

Sempre há os que desfrutam, é claro, deste fim de


época. Se a decadência é bem real, tudo é permitido.
Tudo o que a civilização havia reprimido a fim de se
construir se libera, favorecido por uma descompressão
inesperada da ordem social. É a potência bem conhecida
do ressentimento, que domina os tempos de vingança e
corrói o próprio principio de civilização. No entanto,
embora alguns se inebriem com o perfume da
decomposição, outros são alheios às paixões mórbidas.
“Pergunto-me se não fico indignado num deserto, em
memória de um mundo enterrado, e do qual poucos se
recordam.” [ 270 ] Ao confessar tal sentimento no início
dos anos 1980, Louis Pauwels decerto não foi o primeiro,
desde Paul Valéry, a constatar que as civilizações são
mortais. Essa questão persegue o mundo desde a queda
de Roma: as formas históricas não são eternas, nem
imortais; um dia perecerão, deixando apenas belas – ou
não tão belas – ruínas. A inteligência contemplativa,
quando medita a respeito delas, busca penetrar a parcela
de eternidade que encerram. No entanto, uma coisa é
saber que todas as civilizações são destinadas a morrer,
outra é sentir que é nossa própria civilização que passa
por seus “últimos dias”. [ 271 ] “A maior revolução na
história humana é que, de maneira cada vez mais
sensível, descobrimos que não morremos no mundo em
que nascemos.” [ 272 ] O mundo que nos é caro
desmorona, e outro, feito de tudo o que aquele havia
reprimido, vem à tona. “A história é como um saco de
bolinhas de gude; os solavancos trazem à tona as
bolinhas do fundo. Nas diatribes contra a cultura e a
ordem burguesa, o imperialismo, a sociedade de
consumo etc. havia o tom dos fanatici chamando a
maldição sobre Roma. Hoje as massas são invocadas
como no passado se invocava o Messias, o Terceiro
Mundo como antes o Espírito Santo, a revolução como,
outrora, o Apocalipse e, para muitos, o pão e o ácido
substituíram o pão da comunhão. É provável que a
ardente batalha antiga fosse mais pura que a briga entre
os fanáticos de 1968 e nossa sociedade. No entanto, as
armas enferrujadas também podem ferir mortalmente. E
talvez os estouros atuais, que nos parecem
incongruentes e vulgares, venham a ter uma
desconcertante posteridade. Talvez estejamos, como os
romanos, nas primícias do nosso fim.” [ 273 ] A referência
a Roma era inequívoca; em seu romance tardio, Les
orphelins, Pauwels evocava o universo da decadência: a
de um mundo que desmorona, no qual o sagrado é
transgredido, os deuses são pisoteados, quando as
pessoas não se contentam simplesmente em deixar de
crer neles. Imaginamos que se Pauwels tivesse escrito
seu romance em meados dos anos 2010, teria haurido no
folclore de nossa época, com suas minorias
reivindicativas e histriônicas que querem acabar com o
que resta do velho Ocidente.
Pauwels é um escritor esquecido. Foi classificado na
categoria dos panfletários de segunda ordem, que são
encerrados em uma ou duas controvérsias secundárias
que supostamente revelariam sua triste natureza. Na
história das ideias, ele não conta, e quando ela se lembra
dele, é somente para se parabenizar por tê-lo esquecido
ou para relembrar que, decididamente, ele tendia muito
para a direita. No entanto, poderíamos facilmente
classificá-lo na grande família dos escritores
crepusculares: os que descrevem o fim de um mundo.
Decerto, encontram-se em suas obras muitas aberrações
e outras extravagâncias. Um mundo que morre não raro
vê sua religião morrer, e provavelmente não é sem razão
que esse grande caçador do absoluto que foi Pauwels,
depois de uma longa busca espiritual que o levou de
Gurdjieff ao paganismo indoeuropeu, passando pelos
OVNIS e pela Nova Era, retornou em seus últimos dias ao
catolicismo, como se buscasse refugiar-se no núcleo
espiritual e histórico de sua civilização moribunda. Nos
tempos atuais, não se reza muito nas igrejas, o que mais
se faz é visitá-las na condição de turista, com um guia
para explicar a história contada nas paredes. Michel de
Jaeghere soube descrever triste e divertidamente essa
desculturação em seu diário-romance, no qual relata a
visita a uma igreja. “Os grupos se sucediam diante do
Moisés de Michelangelo. Alguns anos atrás, os guias ali
contavam aos turistas as peripécias da construção da
tumba de Júlio II e a vida ardente do escultor. Tentavam
mostrar como este havia realizado um prodígio com a
figura do profeta, um retrato moral que, por sua força,
sua energia, seu ardor, era o de seu patrocinador. E, pela
inquietação inextinguível do olhar, seu autorretrato como
gigante exaurido. Hoje em dia, esforçam-se para explicar-
lhes quem é Moisés, sem reter a atenção deles por mais
de um instante.” [ 274 ] O homem desenraizado e
desculturado é, sobretudo, um estanho para si mesmo,
incapaz de ler o texto simbólico de sua própria
civilização, em que ele habita como se esta fosse um
museu, a menos que se converta à filosofia do mundo
descartável. Verá então, nos traços da história, apenas
velhas pedras insignificantes, e jamais lhe virá a ideia de
ajoelhar-se diante do que quer que seja, exceto diante do
sentido da história, que o obriga.
Não obstante as zombarias de que por vezes são
objeto, os pensadores crepusculares, obcecados pela
decadência, suscitam uma pergunta vital. Buscam captar
o que existe de precioso num mundo que, conforme
percebem, está em via de extinção. Sabem que a
civilização é uma obra frágil e que o homem cai, perde o
chão, e que as pulsões reprimidas se apoderam da
comunidade política, lançando-a no caos. É claro, por
vezes eles têm o defeito que corresponde à sua
qualidade e confundem um passo em falso com um
desvio fatal. O ridículo os espreita. O conservador tende
a acreditar que tudo vai mal, o reacionário acredita que
tudo está perdido. O primeiro acredita,
consequentemente, nas virtudes da política, enquanto o
segundo se refugia no mito de uma catástrofe redentora,
em que os homens pagariam por seus erros e
retornariam a uma civilização mais sã. Diante do
sentimento dos maiores perigos, os corações
aventurosos se rebelam e chegam a sonhar com uma
façanha, a fim de inverter o sentido dos acontecimentos.
Será que um grande gesto poderia despertar as
consciências, tirar os homens de seu torpor e criar as
condições de uma crise redentora? Sonha-se então com
um sacrifício redentor. Alguns gostariam antes de
empurrar a sociedade para os extremos, numa luta que
deixaria de lado os mornos e os moderados, para que,
por fim, se enfrentassem, de um lado e do outro, os que
estão decididos a ir ao remate de uma aventura política
transformada em busca do absoluto. É a fantasia
assustadora da guerra civil redentora, que supostamente
purificaria a comunidade política e lhe devolveria sua
juventude viril. Embora o reacionário seja por vezes um
escritor brilhante, não raro tende a se comportar, na
política, como um fanático. Nesse aspecto o reacionário
compartilha a escatologia dos revolucionários, ao mesmo
tempo em que lhe confere uma conotação negativa.
No entanto, para além dessa tentação mórbida, existe
provavelmente uma ética própria dos escritores
crepusculares. O que deve fazer alguém que sobrevive a
seu próprio mundo? Com Michel Onfray, eles nos
convidam simplesmente a morrer de pé, em nome da
honra. “A verdade cruel é que nossa civilização está
desabando. Durou 1500 anos. Já é uma grande coisa!
Diante disso, encontro-me numa perspectiva spinozista:
nem rir, nem chorar, mas compreender. Não se pode
frear a queda de uma falésia.” Onfray escreverá
também: “O barco está afundando. Não perca a
elegância, morra de pé”. [ 275 ] Que fazer quando o
mundo que nos é caro nos escapa? Nada. Essa é a moral
honrosa de um antigo romano. Pauwels, para citá-lo uma
vez mais, escreverá estoicamente: “Nas ondas de fim de
século, se tivermos de afundar, afundemos de pé”. [ 276 ]
Como o Catão da obra La guerre civile, de Montherlant,
ouvimos várias pessoas dizerem: “Algo está nascendo;
algo está morrendo. Estou com aquilo que morre. É lá
que prefiro estar”. [ 277 ] Os melhores transfigurarão seu
desespero em literatura. A tentação fatalista se
apresentará: o mundo sempre mudou e sempre mudará.
De nada adianta resistir a isso. Nada parece frear essa
onda, ela arrasta tudo, a resistência parece vã, os que se
erguem contra ela são alquebrados, ou condenados a se
moldar a ela, o que eles justificam imaginando, então,
que serão capazes de dirigi-la ou domá-la. As últimas
páginas de Memórias do Além-Túmulo , de Chateaubriand,
são provavelmente as que melhor expressam aquilo que
poderia ser um senso de apaziguamento diante da
passagem dos séculos. “É provável que passemos por
estágios árduos; o mundo não poderia mudar de rosto
sem que haja dor. No entanto, uma vez mais, já não
serão revoluções isoladas: será a grande revolução
chegando a seu termo. […] parece que o antigo mundo
está no fim, e que o novo se inicia. Vejo reflexos de uma
aurora cujo sol, em sua ascensão, eu não verei. Só me
resta sentar-me à beira de minha fossa; depois disso,
descerei ousadamente, com o Crucifixo na mão,
eternidade adentro.” [ 278 ] Existe uma beleza moral na
capacidade de um homem para fazer as pazes com o
inevitável.
O RECURSO AO GRANDE HOMEM

No entanto, nem todos querem apenas se deixar


engolir pelo novo mundo. Essa é a postura mais
admirável, a do homem que não cede. Nada é mais
natural do que acreditar que nem tudo está perdido e
que, na impossibilidade de trazer de volta o mundo do
passado, seja possível restaurar o que não deveria ter
sido sacrificado. Mesmo quando o mundo parece
desabar, a questão da política permanece central.
Contudo, em conformidade com a época em que
vivemos, a política muda de vocação. Em Memórias de
Adriano, Marguerite Yourcenar põe estas palavras na
boca do imperador: “E eu agradecia aos deuses, que me
haviam concedido viver numa época em que a tarefa que
me cabia era a de reorganizar prudentemente um
mundo, e não a de extrair do caos uma matéria ainda
informe ou a de deitar sobre um cadáver para tentar
ressuscitá-lo”. [ 279 ] Convenhamos que as elites políticas
de hoje não têm a sorte de Adriano. Bernanos, em Nous
autres, Français [Nós, franceses], escreveu: “Cada dia
perdido consolida a fratura ruim, e amanhã ela já não
terá remédio. A restauração da monarquia não pode ser
uma empreitada como outra qualquer, já é tarde demais,
é preciso que ela seja uma aventura – e, se não tivermos
medo das palavras, um milagre”. [ 280 ] Não se trata, é
claro, de restaurar a monarquia ou algo desse gênero,
mas a restauração da soberania democrática e das
condições da política, necessária à ação em tempos
turbulentos, exigiria, contudo, que falássemos uma
mesma linguagem, ou que nos inseríssemos num
imaginário semelhante. Em sua obra, Raymond Aron
considerou positivamente a figura do Grande Legislador,
capaz de refundar uma comunidade política impelida
para o abismo. Aron pensava então em De Gaulle. Essa
reflexão encontra seu eco no mundo atual. Compreende-
se então o sucesso daqueles que, diante do sentimento
geral de impotência, conseguem encarnar o voluntarismo
e a determinação. O espectro do fim de um mundo
favorece, naturalmente, o advento de líderes, não raro
demagogos, cuja pretensão é poder reverter o curso da
história pela simples força de sua vontade, como se
tivessem uma vontade prometeica, mais forte que tudo.
Os homens sonham com um grande impulso político
encarnado por um homem excepcional, dotado de uma
vontade quase providencial, que poderia reerguer a
coletividade e fixar-lhe um novo rumo.
A reflexão sobre os grandes homens – que perpassa o
pensamento político antigo, mas parece estranha à
filosofia moderna – repousa numa aposta admirável: o
homem pode mudar o curso da história e, de acordo com
este ou aquele indivíduo em posição de autoridade, o
destino poderá oscilar de uma maneira ou de outra. O
grande homem vem relembrar que a ação humana não é
um capricho. A filosofia política aprecia escarnecer da
fantasia do homem providencial, que representaria um
resquício arcaico no pensamento moderno, quando este
último já teria demonstrado tantas vezes que os
movimentos históricos escapam à vontade humana. A
história, porém, demonstrou o contrário, e não se poderia
esquecer que a vida política é uma dimensão encarnada,
em que as ideias devem assumir um rosto, a fim de
captar a atenção do homem comum e transformar a
matéria do mundo. “A história da direita é uma galeria de
retratos, a da esquerda, uma série de movimentos de
massa”, [ 281 ] escreve Régis Debray, o que poderia nos
levar a reconhecer a maior perspicácia do partido
conservador, atento à carga simbólica do âmbito político
e ciente de que uma comunidade política desencarnada
é uma visão teórica ou uma burocracia sinistra. O culto
dos grandes homens repousa numa realidade que escapa
tanto aos liberais como aos marxistas, quando estes
querem reduzir a história ao desdobramento de
processos impessoais, que faria pouco caso daquilo que
se poderia denominar a parte humana. O cientificismo
aplicado à história quer ver na ação humana apenas uma
variável menor, residual, insignificante. O que se
esquece, porém, é que a história é rica daquelas
situações em que a ação de um indivíduo excepcional ou
de alguns homens de grande valor pôde mudar o curso
dos acontecimentos. É verdade que a vontade política é
atualmente entravada pela judiciarização do âmbito
político: de um tratado internacional a outro, de uma
convenção dos direitos humanos a outra, assiste-se ao
apagamento da política e à conversão integral do vínculo
social à lógica contratualista. Uma decisão política é cada
vez mais difícil, quando entra em contradição com essa
lógica. Na realidade, é julgada reacionária. Não poderia
haver política contra o sentido da história. A partir do
momento em que a política parece esgotar-se num
processo histórico sobre o qual o homem já não tem
qualquer influência, ela se esvazia de sua substância e se
torna paródica.
Desconfiamos com razão dos indivíduos instáveis, de
ego inflado, que confundem a política com uma aventura
pessoal, o que poderia acabar pessimamente. No
entanto, não reduziremos o apelo ao homem providencial
a uma simples mística do chefe ou a uma tentação
autoritária culposa. Nem sempre sabemos
antecipadamente quem é o grande homem – não
sabemos se não se tornará um indivíduo excêntrico ou
um tirano. De todo modo, é preciso ter uma
personalidade tempestuosa para entrar em dissidência
com um regime – na maior parte do tempo, o destino que
aguarda o dissidente é o ostracismo midiático, a
demonização política, a psiquiatrização em praça pública.
É preciso, provavelmente, um caráter excêntrico e
desmedido para ser capaz de enfrentar a agressividade
extrema que o sistema pode demonstrar quando se
sente ameaçado. Por vezes é preciso um homem que
passe por excêntrico para veicular durante anos, sob as
zombarias generalizadas, uma ideia que parece
esdrúxula, mas que ele será capaz de expressar e
normalizar. Um homem que deseja permanecer
respeitável junto aos que ele contesta é condenado a
deixar de contestá-los ou a se contentar com uma
contestação de fachada. Participará da comédia dos
falsos debates que nos são comumente apresentados
como a expressão sofisticada da democracia. A história
não se escreve apenas com homens que respeitam os
códigos burgueses de bom tom, ao som de uma música
de elevador como pano de fundo. Winston Churchill
passava por louco, mas salvou o país do nazismo, antes
de contribuir para a derrota final deste último; e o
general De Gaulle desempenhou primeiro o papel de um
general sedicioso e megalômano, antes de tornar-se o
salvador da França. Não sabemos de antemão se a
desmedida de um dia não será compreendida no dia
seguinte como manifestação de uma vitalidade
excepcional.
No entanto, a esperança de uma reação pode parecer
vã. Algumas vezes, um homem vê aquilo que amou e já
não acredita ser possível salvá-lo. Para dizê-lo com as
palavras do poeta, ele chega “tarde demais a um mundo
velho demais”. Tarde demais. Essas duas palavras podem
demonstrar uma psicologia da desistência diante de uma
tarefa demasiado difícil de enfrentar ou uma forma de
lucidez superior, a de um homem que compreende que
de nada adianta teimar. Num texto que ele consagra à
morte de Catão, Montherlant escreve uma frase terrível:
“Ele olha à direita, olha à esquerda, olha para cima, olha
para baixo, e nada encontra a não ser o horrendo. Essa é,
por vezes, a tragédia de um povo, em determinado
momento: não há ninguém”. [ 282 ] A vida política da
última metade do século passado pode fazer acreditar na
ociosidade do engajamento público. Raros são os que se
debruçam sobre esse paradoxo dos anos 1960 e 1970. As
pessoas parecem esquecer, porém, que a mais
estrondosa vitória eleitoral de Richard Nixon foi
conquistada em 1972, quando este se apresentou como
o candidato da ordem contra a agitação ideológica que
convulsionava o mundo ocidental em geral, e os Estados
Unidos em particular. Essa não foi a única vitória do
campo conservador durante os anos 1970, mas,
parafraseando outra pessoa, foi uma estranha vitória. Em
outros lugares, os conservadores também venceram,
sem, contudo, serem capazes de conter o advento da
sociedade nascida do surto contracultural e da grande
inversão dos valores.
A FIGURA DO PÁRIA

Suscita-se, a partir daí, a pergunta cruel: o que se pode


salvar de uma civilização moribunda? [ 283 ] Em
Symmaque [Símaco], Jacques Bainville punha em cena,
de uma bela maneira, o triste destino daqueles que serão
denominados os vencidos da história. Seu personagem,
Símaco, escreve assim: “acredito na eternidade do
mundo, porém em sua perpétua renovação. Por isso os
conservadores estão fadados a perder sempre, pois
apegam-se às formas e às coisas, que são mutantes e
perecíveis”. [ 284 ] Não surpreende que Bainville tenha
situado os personagens na Roma tardia, que permanece
o melhor teatro para a reflexão sobre a decadência e as
paixões que ela suscita. O mais poderoso dos impérios
poderá durar muito tempo, mas não poderá durar para
sempre; no entanto, é a nobreza do homem que faz de
tudo para imortalizá-lo. A queda de Roma continua a ser,
na história universal, um acontecimento a um só tempo
improvável e inevitável. Cedo ou tarde, visto serem as
coisas assim e nada podermos fazer quanto a isso, o
mundo que nos é caro se transformará em ruínas. Para
expressá-lo com Gustave Thibon, esse é “o risco de toda
fidelidade […], o de confundir o essencial e o anacrônico”
e, no entanto, é uma aposta que vale a pena fazer, caso
contrário o homem corre o risco de dissolver-se num
fluxo sem fim. Essa fidelidade, porém, costuma ser
vacilante. Por vezes o conservador que se esforça para
defender os farrapos ainda flutuantes do mundo de
ontem está convencido, em seu âmago, de que a causa
da salvaguarda da civilização é uma causa perdida. Luta,
mas sem acreditar; agarra-se a uma posição, ciente de
que não a manterá em absoluto e saberá, quando chegar
a hora e o lugar, em nome do pragmatismo, bater em
retirada; acredita que assim reservará para si uma
posição no novo mundo. Essa desclassificação simbólica
não raro se acompanha de uma desclassificação social, e
compreendemos por que as elites, que fazem questão de
conservar suas situações, preferem se dobrar ao novo
mundo, em vez de lutar pela sobrevivência do antigo.
Estão cientes, atualmente, de que a manutenção de seu
lugar exige um alinhamento com o regime diversitário, e
adaptam-se. Poderíamos falar do instinto de
sobrevivência das burguesias. Elas não conseguem se
imaginar em outra posição que não seja o topo da
sociedade e preferem converter-se ao novo regime a
permanecerem fiéis aos valores do antigo, agora
vencidos e descaídos. São bem raras as elites obstinadas
que permanecem fiéis a um regime deposto,
acreditando-se chamadas a restaurá-lo. É muito fácil
alguém se convencer de que não quer, a qualquer custo,
morar nas ruínas. Não é fácil entusiasmar-se com um
destino na retaguarda. Alguns chegam a se convencer de
que será possível salvar o essencial pactuando com o
novo regime, e dizem a si mesmos que, afinal, o mundo
precisa prosseguir. Nos dias de hoje, os pais transmitem
aos filhos alguns valores básicos, e logo os preparam
para a globalização.
Quem recusa o novo mundo corre o risco de ter o
destino de um pária. É claro, sociedade alguma jamais é
aceita por inteiro. Roger Caillois havia assinalado isso:
uma sociedade bem estabelecida é uma sociedade
apaziguada, que valoriza a conciliação e tolera certa
mediocridade das coisas. [ 285 ] Os aventureiros
entendiam-se, mas sempre existe para eles a
possibilidade de um percurso individual, numa existência
arriscada, sem conforto, longe dos caminhos conhecidos,
nos “caminhos negros” ou instalando-se na Sibéria.
Poderão extrair disso uma obra meditativa genial, que,
no entanto, não impele à ação. O mesmo ocorre com o
dândi, que recusa a massificação e a uniformização do
mundo moderno, e busca no culto da singularidade
estética uma maneira de extrair-se, pelo alto, de uma
ordem social que ele despreza ou desdenha. Os
indivíduos em busca de absolutos políticos ou de pureza
ideológica também correm o risco de se entediar numa
sociedade que não pode viver no registro da mobilização
permanente. Logo vêm à mente os extremistas,
incapazes de aceitar uma sociedade que não seja
exclusivamente submetida a seus princípios. De fato,
existem em todas as sociedades homens que recusam o
princípio da legitimidade dominante: são repelidos para
as margens, e eles próprios em geral se concebem como
dissidentes. É que sua filosofia política simplesmente
parece incompatível com as representações sociais
dominantes. Eles não veem o mundo como este deve ser
visto quando se quer ter sucesso, não o abordam a partir
do mesmo imaginário. Essa é uma maneira entre outras
de dizer que em toda sociedade se encontra um lote de
marginais, e que estes expressarão sua sensibilidade em
todos os âmbitos da existência. Esses marginais
simplesmente não são feitos para a norma comum: é
uma questão de temperamento. Nem todos os homens
são feitos para viver dobrando-se diante da norma
dominante.
No entanto, o autêntico pária é outro. É o
desclassificado do regime anterior, que decidiu não se
aliar ao novo. Com frequência se encontrarão nas
margens os defensores das evidências de ontem, que
não se desdisseram e permanecem fiéis a um mundo
historicamente revogado, que é tido por obsoleto em
nome do progresso da simples mudança no curso das
coisas. Lá estão eles, velhos servidores, escritores
esquecidos, ex-ministros, historiadores transformados em
cafonas, militantes das causas perdidas, todos
desclassificados e a maldizer sua desclassificação; os
mais combativos urdem complôs para programar seu
retorno, que possibilitaria um milagre político e permitiria
ao menos atrasar, talvez, o fim dos tempos. Por vezes os
homens se obstinam na fidelidade a um deus morto ou,
ao menos, a um deus que sobrevive apenas por meio de
algumas tradições desbotadas. Cumpre dizer que é difícil
saber em tempo real se acabamos de oscilar para uma
nova época em que nos sentiremos estrangeiros e que
condenará à morte social os que não se aliam a ela.
Diante disso, o proscrito ficará fortemente tentado a
lançar uma última carga para conter um mundo que ele
abomina e pelo qual será esmagado. No entanto, a
política não poderia se contentar com o combate de
honra dos velhos combatentes, que reúnem à sua volta
todos os proscritos do mundo, numa tentativa
desesperada de trazer de volta o que não voltará.
O MITO DA ARCA

No entanto, diante da pergunta sobre o que fazer, a


resposta nem sempre é imediatamente política. Foi
talvez por ter recusado não apenas a aceitação da
catástrofe, mas também um voluntarismo ilusório, que
François Taillandier se envolveu num ciclo romanesco
excepcional, com o intuito de retraçar as origens de
nossa civilização no crepúsculo daquela que a precedeu.
Em parte como se quisesse libertar seus
contemporâneos da fantasia restauracionista, ele parece
dizer que por vezes é necessário deixar as coisas
seguirem seu curso, buscando, porém, conservar o que
há de melhor na civilização que morre, sem saber
exatamente qual será o resultado dessa conservação e
dessa transmissão. Adivinha-se aí a pergunta que se
fazem os que se engajaram e, um dia, já não encontram
aí o que procuram. Talvez um intelectual que fez a aposta
aroniana de uma existência no centro da comunidade
política, ou um homem que se lançou na política, mas
descobriu pouco a pouco os limites da ação pública.
Trata-se de transformar a relação com a ação. Isso é
magnificamente descrito na passagem que põe em cena
Cassiodoro, um político romano da época posterior à
queda de Roma: pouco a pouco ele se dá conta de que a
sobrevivência da civilização já não depende dos homens
de ação. “Ele não dizia adeus apenas ao tempo pessoal
de sua vida, aquele modesto apanágio em que se
inserem nossas alegrias, nossas afeições, nossos dramas,
nossos risos e nossos pesares. Despedia-se também de
uma forma coletiva do tempo, em que se haviam
exercido suas decisões e suas vontades, mescladas às
vontades e às decisões de muitos outros. Será que se
deveria chamá-lo de tempo político? O tempo da época?
Sim – algo desse tipo. […] Parecia-lhe haver
compreendido que, se algo tivesse de nascer ou renascer
dessa barafunda, não seria ao alcance da visão humana,
não da sua, em todo caso. Vem um momento inevitável
em que, quando alguém age, trabalha, deseja e
empreende ainda, já não é para si, mas para os que
virão, que por sua vez viverão quando ele já não estiver
lá. […] Isso porque, no final das contas – ele ponderava –,
existem três ritmos do tempo: o de um homem, o da
comunidade política, o de Deus, e estes são como três
cordas de um instrumento musical, que podem
harmonizar-se ou dissonar. Seu tempo de homem já não
duraria. O tempo da comunidade política só oferecia,
então, formas precárias de ordem, comprometidas por
todos os lados. Quanto ao tempo de Deus, de uma
extensão imensurável para a consciência humana,
parecia-lhe repleto de um futuro que ele vislumbrava
indistinto, grisalho, insondável, como, no entardecer, o
horizonte marinho da Calábria. No entanto, com
frequência lhe vinha à mente que esse futuro
comportava uma infinidade de possibilidades, e que cada
empreendimento humano, por mais mínimo que fosse,
podia modificar seus acontecimentos. Aquilo que lhe
restava realizar era dessa natureza.” [ 286 ]
Em outras palavras, a comunidade política que morre
não arrasta tudo consigo. Sua parte mais preciosa pode
ser conservada por homens que renunciam ao prestígio
social e político para conservar nas margens, ao abrigo
da maioria, certos tesouros preciosos. No entanto, é
preciso ter alguma ideia da transcendência para
transmitir ao longo do tempo aquilo que acreditamos ser
sagrado. Essa resposta também exige, porém, uma
forma de renúncia cívica: o homem da cultura já não
pretende fecundar o mundo comum com os princípios
fundamentais e as obras vitais. Sua intenção é
salvaguardá-los da destruição, a fim de que um dia
contribuam para um renascimento. “Os homens
verdadeiramente úteis”, acrescenta Taillandier,
“semeiam algo que não verão frutificar. A árvore que
plantaram proporcionará sombra a seus descendentes,
eles sabem disso, e resignam-se de bom grado, depois
de laborar e semear, a não estarem lá quando vier o
tempo das colheitas”. Não é proibido pensar que o
mundo ocidental seja chamado a formular tais perguntas,
quando se sabe que o tempo político não se confunde
com o da história, e que as consequências concretas de
uma ideia ou de uma ação por vezes se fazem esperar
por muito tempo antes de infletir o curso do mundo. A
ação humana tem mil rostos e mesmo a melhor
comunidade política jamais será perfeita. Não podemos
esperar, portanto, exceto quando nos contentamos com
uma ação estritamente técnica, ver todos os frutos de
nossas ações durante nosso tempo de vida. [ 287 ] Mas
será que o homem ainda sabe se projetar no mundo para
além de sua existência? Taillandier ainda é nosso guia
quando relembra que as especulações filosóficas sobre a
natureza do homem têm consequências: “Em segredo,
Cassiodoro sempre fora cético diante das disputas da
teologia. O que o homem poderia saber sobre tudo isso?
Não seria loucura alimentar tantas irritações, tantos
rancores, tantos antagonismos, a partir de tantas
alegações que ninguém podia provar? Pela primeira vez,
quem sabe, em sua vida, ele compreendeu, ao contrário,
o caráter decisivo de tudo isso. Daquilo em que o homem
aceitasse acreditar, daquilo que ele instaurasse em sua
consciência temerária e cega, dependeriam seus atos.
De início o ser humano não sabe o que é. Mal sabe que
existe. As palavras e as noções de que se dota para
examinar e compreender a si mesmo governarão sua
vida. Era importante que o fizessem perceber sua
fraqueza e sua força. Assim se edificava o homem, assim
se instituía o homem”. [ 288 ]
Allan Bloom o havia sugerido, “é na relação que uma
geração cultiva com as preocupações permanentes de
cada geração que se pode descobrir melhor sua
natureza”. [ 289 ] É preciso perguntar que parte da alma
humana permanece inacessível à modernidade e por
quais caminhos alcançá-la. Quer se aposte na política,
quer no longo trabalho da cultura, aí encontramos uma
filosofia da ação que reposiciona o homem no longo
tempo da história. Resgata-se aqui a nostalgia, cuja
criminalização é um crime, mas que tampouco
poderíamos deixar descair em mera museificação de um
passado erigido em refúgio contra o presente. A
nostalgia relembra ao homem moderno a insuficiência de
sua condição e dá testemunho, pelo sentimento de
carência que a acompanha, de possibilidades
inexploradas numa civilização condenada ao fluxo
permanente. Representa o rastro, em nossa época, de
todas as outras épocas. De nada adianta aninhar-se nela,
mas longe de rebaixar o homem, a nostalgia o educa
especialmente para a liberdade.
Capítulo 7 | Como é possível ser conservador?
 
 
 
 
 
 
 
 
Acho que cada um precisa escolher seu campo. Você é
atravessador clandestino de fronteiras. Eu sou guarda de fronteiras.
Cada qual com sua natureza.
Louis Pauwels
 
[…] basta um pequeno número de espíritos fiéis para que o vínculo
seja mantido, para que haja bom entendimento. É a permanência
de certa família de ideias, não obstante os cortes arbitrários que
estabelecemos entre as épocas, que nos assegura uma
continuidade.
François Mauriac
 
A cena já tem alguns anos de idade e, como se diz na
midiasfera, “viralizou”. Envolveu Jacques Attali e Eugénie
Bastié. O primeiro pontificava. Celebrava o mundo futuro,
que coincidia de muitas maneiras com suas fantasias. A
segunda o desafiou com uma formulação divertida: o
velho mundo está de volta, Sr. Attali! Se a cena foi tão
marcante, é porque simbolizou uma reviravolta
inesperada na ordem simbólica. O antigo participante de
1968, mesmo em sua idade avançada, não imaginava
que um dia viria a desempenhar o papel de antiquado
defensor da ordem estabelecida. A época não havia
programado o surgimento do jovem conservador: e eis
que ele se impõe nos estúdios de televisão e até assume
a aparência de uma mulher brilhante e segura de si, que
confronta um notável progressista desconcertado. Desde
então, os artigos se multiplicaram. De uma revista a
outra, muitos textos foram dedicados ao
conservadorismo renascente. Acreditou-se até que ele
encontraria um nicho político com a candidatura de
François Fillon, que se viu investido de uma missão
conservadora inesperada, tornando-se o representante
da permanência francesa. Por um breve período, ele
entusiasmou sua base, não tanto pelo que propunha,
mas principalmente pelo que se pôs a imaginar que
encarnava.
Quer-se acreditar, atualmente, que o renascimento
conservador foi abortado. Teria sido apenas uma ilusão?
Na macronia, [ 290 ] ele agora não passaria de uma
sombra, de uma lembrança empalidecida. Já se pode
adivinhar a narrativa que será feita a seu respeito: numa
sociedade em mutação, os privilegiados da antiga ordem
sempre tendem a obstinar-se uma última vez antes de
morrer. Ficam tensos, impõem algumas convulsões
sociais, depois acabam por aceitar a derrota e juntar-se
aos vencidos da história. A história marcha em seu
próprio ritmo, e os que não querem segui-lo, perecem.
Nessa matéria, seria preciso que cada um se proibisse
todo e qualquer sentimentalismo. Alguém pode muito
bem lamentar a perda do país de sua infância: mas, ao
que parece, seria uma tolice querer resgatá-lo. Outros
chegam a acusar o conservadorismo de haver lacrado a
direita, de haver causado sua derrota. Em 2012, a
acusação recaiu sobre Patrick Buisson, em 2017, sobre o
movimento Sens commun. Uma coisa é certa, o
conservadorismo teria pouco futuro. O conservadorismo
era o futuro da direita, e até o futuro da França. Com
exceção de Patrick Buisson, são raros os que adeririam a
essa profecia. Não seria apenas uma fase da vida das
ideias, uma modinha parisiense já desgastada? Estando
ele preso entre o progressismo e o populismo, não lhe foi
predito um grande futuro.
Por vezes os movimentos intelectuais custam para se
traduzir no âmbito político. A vida das ideias políticas não
coincide necessariamente com a da comunidade política.
As grandes tendências ideológicas nem sempre
encontram um partido que as veicule. No entanto, na
impossibilidade de tomar corpo politicamente, uma
corrente intelectual pode dissolver-se ou perder-se em
suas especulações estritamente teóricas. Pode também
prosseguir seu caminho sem conseguir avançar
atualidade adentro, o que não significa que jamais
conseguirá: os abalos políticos fazem cair certas
correntes ideológicas, e também trazem outras à tona. A
direita conservadora passou por um primeiro
renascimento, na primeira metade dos anos 1980, na
época da revista Figaro Magazine de Louis Pauwels: sua
ofensiva ideológica fará com que a direita se dote de um
programa firme e rigoroso, que será o da primeira
coabitação. [ 291 ] Decompor-se-á com o governo Chirac,
moralmente prostrado pelo drama de Malik Oussekine.
De acordo com os rumores, Louis Pauwels seria hoje um
proscrito, a ponto de até a lembrança dele ter sido
apagada, o que regozijará alguns. Nunca é bom ser
vencido politicamente no mundo das ideias, pois
adentramos assim o mundo dos párias, as pessoas
param de nos ler, criam para nós uma reputação de
excêntricos.
Façamos um salto para o mundo de hoje. A
recomposição política francesa – profetizada há um bom
tempo – está em curso. Não alcançou seu ponto de
consumação em 2017. A política não poderia se manter
de maneira duradoura numa forma de consensualismo
que relega às margens toda e qualquer oposição, como
posições residuais exteriores à discussão esclarecida das
elites esclarecedoras. Qual será o lugar do
conservadorismo? Será que se refugiará no que resta da
direita ou uma vez mais se deixará apanhar e reciclar
pela força chamada a substituir um Rassemblement
National desacreditado, tanto por sua linha
neomelenchonista como por seu fracasso na eleição
presidencial? Será que as pessoas simplesmente
deixarão de levá-lo a sério? Isso tampouco é impensável.
Qual será o lugar do conservadorismo? É preciso dizer
que a recomposição política não é uma exclusividade
francesa: em todo o Ocidente, o sistema político se
rompe sob o peso do real. Certa politologia bem
superficial aprecia acreditar que os determinantes
socioeconômicos são os únicos a pesar na escolha
eleitoral: o que se esquece, porém, é que as paixões
políticas despertam quando ressurge a ideia de que a
pátria está em perigo e de que é preciso salvá-la. Sem
dúvida alguma, ela ocupou as consciências nestes
últimos anos, como o demonstrou aquele sentimento,
compartilhado por muitos, de que se tratava da eleição
da última chance. Philippe de Villiers se perguntava de
maneira dramática: será que amanhã os sinos ainda
dobrarão? Ainda haverá na Terra por muito tempo um
território denominado França: mas será que ele ainda
será o país do povo francês?
O CONSERVADORISMO E A MODERNIDADE

No entanto, apesar das contrariedades políticas, o


conservador ainda intriga: é que ele se apodera das
questões vitais suscitadas pela modernidade radical e
transforma alguns pontos de exclamação em pontos de
interrogação. [ 292 ] Felizmente, o pensamento político não
é apenas uma forma de especulação ideológica com a
vocação de construir um programa para os partidos em
busca de um discurso. É uma sensibilidade que renasce,
uma maneira de habitar o mundo que se afirma. A
ebulição intelectual dos últimos anos não pertencia tanto
à lógica midiática, mas sobretudo a uma forma de
redescoberta filosófica: a modernidade radical é, de fato,
problemática. Por mais celebrada que seja, ela irrita. Por
mais que se diga às pessoas que elas vivem em uma
época maravilhosa, é um sentimento de perda que flutua
no espírito dos nossos contemporâneos, ainda que ao
mesmo tempo não se saiba definir o objeto dessa perda.
Por mais que se fale mal da nostalgia, ainda assim ela
não deixa de dar testemunho das aspirações escondidas
no coração do homem. Para retomar as palavras de
Raymond Aron, “nossa civilização é suficientemente
imperfeita para justificar os requisitórios; por que não
haveria procuradores movidos por uma nostalgia do
passado e não por uma expectativa utópica?”. [ 293 ] Uma
parte do homem considera a modernidade inabitável e
está em busca de outra coisa: não será a busca da
comunidade que a perpassa, como se ela tivesse de
encontrar sua parte faltante, e reinserir o homem no
mundo, ao invés de extraí-lo do mundo?
Desde suas origens, o conservadorismo, que
costumamos vincular a Burke, caracteriza-se
essencialmente como uma crítica à desmedida moderna.
[ 294 ] Ganharíamos muito em ver no conservadorismo
uma filosofia inserida no código genético da
modernidade, à maneira de um protesto da consciência
humana contra seus efeitos dissolventes. Foi o que
Hannah Arendt, que não o apreciava, compreendeu.
“Historicamente, o pensamento conservador e seus
movimentos reacionários haurem não apenas seus
argumentos principais e seu ímpeto, mas também sua
própria existência, do acontecimento que foi a Revolução
Francesa. Continuam derivados dela, no sentido de que
praticamente não expressaram uma única ideia, uma
única noção, que não seja antes de tudo polêmica. […]
Contrariamente ao pensamento liberal ou revolucionário,
o conservadorismo em sua origem – e, quase por
definição – é polêmico.” [ 295 ] Retenhamos aqui o
essencial, para além das alfinetadas da filósofa: o
conservadorismo em geral se concebe como uma crítica
à modernidade e à sua tentação de desconstruir e
reconstruir o real em nome de uma utopia racionalista
que se encarrega de um programa distinto segundo as
épocas.
O conservador não pretende dispensar a modernidade
– sabe, ao menos, que isso é impossível e sabe resignar-
se, ainda que nem sempre de bom grado. Não cabe ao
homem escolher a época em que viverá. A aspiração do
conservador é mais modesta e mais fundamental: ele
pretende civilizar a modernidade, contê-la e relembrá-la
de que ela pode desfigurar o ser humano em sua
intenção de libertá-lo. Não surpreende que essa
disposição existencial sempre renasça. Não é salvando o
passado que o conservadorismo bem compreendido
pretende conter a modernidade, mas restaurando
simbolicamente e reconstruindo politicamente certas
permanências antropológicas (alguns falarão de
invariantes antropológicas) cujo rastro a modernidade
perdeu. Na realidade, tão logo o conservadorismo se
deixa definir como o partido do passado, entra numa
dinâmica de renegação permanente. É dessa armadilha
em que ele se deixa capturar com muita facilidade que
ele deve sair.
Um regime raramente compreende os que o contestam
e mesmo os que não aceitam cantar seus louvores. No
entanto, por vezes a curiosidade é mais forte: em toda
parte, o conservador é acossado. Querem fazê-lo falar,
dão a entender que querem compreendê-lo. De tempos
em tempos, é tratado como um animal em exibição.
Dirigem-lhe uma pergunta etnológica: como se pode ser
conservador? Afinal, a juventude não é naturalmente
propensa a desempenhar o papel de vanguarda militante
do progressismo? Como ela poderia não querer uma
modernidade publicitária que é toda sorrisos para com
ela? No fundo, nossa época continua a assimilar o
conservador a uma espécie de retardado histórico: na
grande marcha do progresso, ele se arrasta atrás, seja
porque carece de vida, seja porque não compreende que
as formas de vida às quais é apegado são antiquadas. Na
pior das hipóteses, atribuem-lhe tristes afetos. O
conservador seria então difícil de distinguir do
reacionário que, por sua vez, seria um indigno absoluto.
Todos os regimes são fundados na exclusão por princípio
de certas correntes políticas e filosóficas que o
contradizem abertamente.
A modernidade radical conduz sempre adiante sua
empreitada de desconstrução: de uma onda a outra,
encontra novos limites a serem repelidos, novas
fronteiras a serem abolidas. A emancipação que ela
promete se distingue cada vez menos de uma
desencarnação e se volta em última instância contra a
civilização ocidental, em nome dos excluídos da história.
Talvez se trate do movimento natural da modernidade,
cujo embalo aumenta à proporção que as formas
históricas que continham seu desdobramento caem uma
após a outra. O partido do movimento não gosta de ser
contrariado e pretende espontaneamente converter toda
a realidade à sua lógica: as permanências dissolvem-se e
tornam-se fluxos, o mundo é inapreensível, está em
marcha – daí sua expressão cultural mais vulgar, qual
seja, a ideologia da mudança. Alguns querem pilotar essa
mudança e se aliam a uma ou outra forma de
planejamentismo. Outros pedem apenas que nos
adaptemos o melhor possível à mudança e reconhecem
espontaneamente no liberalismo o princípio diretor de
uma modernidade esclarecida. É fácil tornar-se
conservador, ainda que venhamos a sê-lo a contragosto:
basta não se aliar à nova etapa na história da
emancipação autoproclamada. Tornamo-nos homens de
direita porque não seguimos o ritmo da esquerda, que
não está equivocada ao apresentar-se como o partido do
movimento. A direita liberal gosta de responder-lhe
dizendo que ela é o partido da adaptação ao movimento.
Difícil é encontrar o partido da permanência.
A formulação se repete indefinidamente: o conservador
estaria hoje descomplexado, o que dá a entender que,
faz já um bom tempo, havia algo de incômodo em
afirmar-se conservador. Mas de onde vem esse
constrangimento? A palavra conservadora se liberta, mas
quem a prendia? Como se deve ter compreendido pela
leitura dos últimos capítulos, não se pode escrever a
história de uma filosofia política sem escrever ao mesmo
tempo a do espaço em que ela tem de se desdobrar, no
qual se multiplicam as obrigações ideológicas e os
critérios de respeitabilidade que lhe podem ser
estranhos. O próprio termo é reivindicado, ao passo que
há muito tempo servia de insulto. Era a marca da
dissidência: a vantagem dos rótulos que ninguém
reivindica para si é que, ao menos por um tempo,
podemos defini-lo como quisermos. Servem para situar-
nos fora das posições midiaticamente estabelecidas e
consagradas.
DOS NEORREACIONÁRIOS AOS CONSERVADORES

A renovação conservadora, no entanto, não pode ser


tão nova como se imagina. Há vários anos ela
transparecia, e não apenas no imaginário paranoico de
uma esquerda que denuncia de modo ritualístico os
novos reacionários, como se tivesse de atualizar
regularmente sua lista dos proscritos.
Por ora, definiremos o conservadorismo como uma
forma de ceticismo diante da desmedida de uma
modernidade que enlouqueceu – e não é um equívoco
vincular essa loucura, seja qual for nossa opinião a
respeito, ao imaginário de 1968. Pode ocorrer que, um
dia, já não queiramos fingir acreditar de verdade em
ideias às quais estávamos apenas submetidos. A
direitização da direita sobre a qual se falava há alguns
anos nada mais é do que a história de uma direita que já
não se submete aos códigos da respeitabilidade
ideológica do progressismo midiático. É assim chamada a
resgatar a parte de si mesma que ela vinha reprimindo
faz tempo a fim de evitar as campanhas de demonização
midiática.
No âmbito político essa corrente é detectável há um
bom tempo: corresponde à demanda popular por uma
política que não fosse tecnicizada e que se encarregaria
explicitamente do destino da coletividade. Se
preferirmos, corresponde a uma vontade de conceber a
política fora dos parâmetros de sua imposta
judiciarização e de sua burocratização. Se o populismo
tem ecoado na Europa ocidental nos últimos trinta anos é
porque não raro foi o único a fazer política. Não pretendia
apenas usar a linguagem da adaptação, que é a
linguagem antipolítica por excelência. Propunha outra
direção à marcha do mundo: era preciso que voltasse a
ser permitido pôr em questão as grandes finalidades
inseridas no cerne da vida política. O progressismo já não
devia impor-se como uma revelação, cujos efeitos
supostamente se desdobrariam até o fim dos tempos.
Esse mal-estar francês cristalizou-se durante muito
tempo em torno da questão europeia, talvez pelo simples
fato de os referendos e as eleições europeias lhe
permitirem expressar-se, visto que o sistema partidário
se mostra menos rígido por ocasião de tais consultas. De
Maastricht ao referendo de 2005, passando pelos bons
resultados do Rassemblement pour la France (RPF) em
1999 e pelo interesse suscitado por figuras como Philippe
Séguin, Charles Pasqua, Philippe de Villiers ou Jean-Pierre
Chevènement, sentia-se que, nas profundezas, certa
França buscava expressar sua revolta. Havia uma
corrente de pensamento, entalada entre a direita
modernista e a direita populista, que não conseguia sair
de seu estreito corredor e que, no entanto, se acreditava
depositária de outra direita, afirmando-se hostil ao
fundamentalismo da modernidade, ao “tudo pela
economia”, e buscando, sem assumi-lo totalmente para
si mesma, resgatar o encargo sagrado da nação, sem
tolerar a dissolução de sua soberania. Para essa direita, a
política deve comportar uma dimensão romântica.
A campanha de Nicolas Sarkozy em 2007 – e também
em 2012 – foi impelida por essa dinâmica. Sarkozy o fez
cinicamente, mas ainda assim destravou os grandes
temas da direita conservadora, extraindo-os do pequeno
espaço em que estavam confinados, retirando-os ao
mesmo tempo do Front National – que os havia
confiscado por um bom tempo –, e ele o fez ainda melhor
porque a direita republicana lhe fizera concessões. No
entanto, a esquerda midiática recusou-se a ver nisso algo
além de uma funesta estratégia pilotada por um
feiticeiro. Um mau gênio, Patrick Buisson, teria
assombrado a direita. Sem ele, ela se libertaria da
tentação identitária e voltaria a ser moderna. Como não
ver aí uma forma de teoria artificial do complô, em voga
na esquerda midiática, e uma concepção mefistofélica da
direita?

A direita só pode vencer se o diabo estiver envolvido,


libertando paixões recalcadas e ódios inconfessos: é a
grande revanche dos maldosos e, durante alguns meses,
houve um interesse apaixonado pelo trio de
conspiradores maléficos, que seria formado por Buisson,
Zemmour e De Villiers, cujo intuito teria sido desviar do
progresso o curso da história francesa, curso este que
ela, contudo, deveria seguir.
No entanto, a política não é tudo. Faltava a esses
momentos eleitorais um ímpeto intelectual conquistador.
Isso é o que a atual ebulição intelectual do
conservadorismo confere à política. Intelectuais vindos
da esquerda propõem também análises associadas ao
conservadorismo, como se vê com Jean-Pierre Le Goff
que, há vários anos, pratica uma sociologia da
desvinculação social. Le Goff, numa referência a
Kolakowsky, indaga como se pode ser conservador,
moderno e social, enquanto o filósofo polonês se
perguntava como ser socialista, conservador e liberal. [
296 ] Velhos dissidentes e novos resistentes, espíritos
coléricos ou espíritos céticos, a maioria – se não todos –
confessa uma exasperação comum. Pensadores
esquecidos, que haviam previsto esta época, são
redescobertos. O conservadorismo renascente descobre
ancestrais honrosos há muito tempo deixados de lado
pela aliança poderosa entre a tolice e a censura. Assim
se redescobrem Raymond Aron e muitas outras figuras
essenciais ligadas à tradição liberal-conservadora à
moda francesa.
Fala-se do retorno do conservadorismo: talvez se
devesse falar antes de sua desinibição. Não que ele
houvesse desaparecido do mapa, mas fazia um bom
tempo que não aparecia no radar das ciências sociais e
do discurso público, exceto por meio de uma série de
fobias. O conservadorismo era denominado “populismo”
ou confundido com “extrema-direita”. Em outras
palavras, buscava-se não tanto descrevê-lo, mas denegri-
lo.
O MOMENTO ZEMMOUR

Essa desinibição se encarnou durante um tempo em


Éric Zemmour. Seria possível falar sobre os efeitos
duradouros do fenômeno Zemmour, marco de uma
virada midiática e até política: uma parte da direita se
libertou de suas inibições progressistas. No âmago do
sistema midiático, o jornalista recusou a postura do
conservador contrito, ocupado em desculpar-se
incessantemente por existir e temeroso do rótulo sujo
colado à sua pele até o fim de seus dias. Zemmour não
pertencia àquela direita consternada, vencida de
antemão, preocupada em dar garantias de modernidade,
encerrada na economia e contando os tostões, como se
fosse naturalmente inclinada a uma filosofia contábil.
Esse homem, tratado como um animal de circo, politizou
um vasto público. Da “direita dominada” a que Marc
Crapez se referiu mais de vinte anos atrás num texto
profético, [ 297 ] passou-se a uma direita que se pretende
dominante, ainda que nem sempre se nomeie direitista.
O sistema primeiramente se divertiu com isso: quando
entrou em pânico, era tarde demais. Um mundo de
possibilidades acabava de se abrir. Zemmour não
ensinou o conservadorismo aos franceses: revelou-lhes
que era possível ser conservador publicamente – bastava
receber algumas cuspidelas. [ 298 ]
No fundo, a esquerda intelectual está numa situação
inédita: fazia quarenta anos que ela só tolerava os
debates em suas próprias fileiras ou com seus antigos
companheiros que se haviam tornado dissidentes.
Aqueles que não participavam de uma maneira ou de
outra do imaginário progressista não eram convidados
para a conversa pública; falava-se a respeito deles, mas
sem por isso lhes dar a palavra. Ela traçava um
perímetro de respeitabilidade muito estreito, e quem
quisesse incluir-se nele tinha de submeter-se a seus
códigos. Devia seguir o movimento do progressismo, sob
pena de, a contragosto, ser transformado em direitista.
No entanto, a esquerda já não está em posição de fazer
isso de modo tão eficaz quanto antes. Já não domina de
modo absoluto os códigos da respeitabilidade. É cada vez
mais difícil para ela definir sozinha seus adversários,
ainda que seus meios midiáticos e jurídicos não sejam
subestimáveis. Pode-se censurar o real, pode-se até
censurá-lo por muito tempo, mas ele sempre acaba se
infiltrando. O sistema midiático se contentará, então, em
apresentá-lo à maneira de um ressurgimento do
irracional na democracia: o famoso sentimento de
insegurança é certamente o melhor exemplo disso.
Devemos, porém, considerar os matizes: nem por isso
se pode dizer que os códigos da respeitabilidade
mudaram por completo: a esquerda midiática chega a
tornar-se cada vez mais histriônica à medida que é
contestada. Imagina perder sua hegemonia, quando está
simplesmente sendo colocada pela primeira vez em
muito tempo diante de uma filosofia diferente da sua. O
debate, no entanto, a apavora: quando se tem o
monopólio do bem, o que se faz é educar ou combater,
mas não discutir. No fundo, ela não tem dúvida de que
encarna o único rosto possível da democracia. Vamos
resumir o assunto da seguinte maneira: a esquerda foi
hegemônica durante tanto tempo que basta que seja
contestada para que acredite estar sitiada, e a direita foi
durante tanto tempo condenada ao silêncio que basta
que seja escutada para que acredite dominar.
FINKIELKRAUT, CONSERVADOR

É preciso manter-se distante das caricaturas: o


conservador que está surgindo não é brutalmente
antimoderno, ao contrário do que dizem seus
adversários. No entanto, ele recusa à modernidade sua
pretensão de definir sozinha as aspirações humanas:
uma parte da alma humana não se identifica com ela e
reivindica hoje seus direitos. Será que o conservadorismo
não poderia se definir, então, como uma busca das
permanências humanas, das invariantes antropológicas
indispensáveis para a instituição da liberdade política?
Uma coisa, no entanto, é certa: cada vez que os
fundamentos de uma sociedade são postos em questão,
as categorias políticas costumam romper-se ou, ao
menos, já não conseguem conter o debate público, que
busca para si uma nova linguagem. E embora o
conservadorismo não seja de todo estranho à divisão
esquerda-direita, na medida em que a esquerda sempre
busca reativá-la e manter seu caráter estruturador, ele
não poderia fundir-se aí por completo.
Foi primeiramente em torno da questão identitária que
a renovação conservadora tomou forma. Essa questão
não é recente e, sob muitos aspectos, foi Alain
Finkielkraut que a reintroduziu no pensamento francês, à
luz de uma meditação sobre o destino das pequenas
nações da Europa oriental, preocupadas com a
possibilidade de seu próprio desaparecimento. É próprio
da nação pequenina, quase por definição, saber que não
tem acesso imediato ao universal e representa apenas
um dos rostos possíveis da humanidade. A pequena
nação tem consciência de sua precariedade existencial:
não cessa de interessar-se pelos fundamentos da
comunidade política, além de ter de justificar com
frequência sua existência diante dos grandes discursos
universalistas que veem nela uma existência coletiva
residual e folclórica, que já não deveria entravar a
reconciliação da humanidade. A pequena nação insere no
cerne da filosofia política o caráter fundador da cultura,
entendida como mundo comum. Na escola do Messager
européen, sua revista dos anos 1990, Finkielkraut
converter-se-á a um patriotismo angustiado: foi quando
compreendeu que a França podia desaparecer que
passou realmente a amá-la. Como se pode ser croata, ele
primeiro se perguntou, antes de indagar o que significava
ser francês. Descobria então a França, não como uma
nação estritamente universalista, mas em sua
singularidade – em sua identidade. A partir daí, de um
livro a outro confessará sua preocupação diante da
“ingratidão” dos Modernos, para retomar o título de uma
obra publicada em 1999. L’Identité malheureuse [A
identidade infeliz], publicado em 2013, não foi tanto o
marco de uma virada de Finkielkraut, mas sobretudo um
remate, num contexto caracterizado pela crise do
multiculturalismo.
Seu pensamento fecundou a vida pública e por meio
dele a questão dos costumes é hoje suscitada: ser
francês não poderia constituir apenas uma realidade
jurídica. A renovação conservadora critica os limites do
pensamento contratualista, que gostaria de abolir a
dimensão da herança na constituição da comunidade
política. Não se poderia reduzir a França à república e
seus valores, o que não significa que nós a situemos em
contradição com eles. Trata-se antes de relembrar que o
homem não goza de uma universalidade direta. Precisa
de mediações. De uma língua, naturalmente. De uma
cultura, que fornecerá um universo de sentido
compartilhado aos que habitam a comunidade política.
De uma história nacional, por cujo intermédio participará
de uma aventura coletiva. De fronteiras, que delimitam
uma comunidade de responsabilidades. Em outras
palavras, o povo da democracia moderna é um povo
particular, que não é substituível por outro. Não será
sobre essa singularidade dos povos que um Régis Debray
busca refletir, por meio de sua meditação
incessantemente retomada sobre o inconsciente das
nações e a parcela do sagrado no poder?
Quanto a essa questão, Paul Ricœur já havia iniciado
algumas reflexões luminosas. “Aquilo a que chamamos
valores, portanto, é a própria substância da vida de um
povo; esta se expressa primeiramente em seus costumes
práticos, que representam, de certa forma, a inércia, a
estática dos valores. Sob essa película dos costumes
práticos, encontramos tradições que são como a
memória viva da civilização. Por fim, nas profundezas,
encontramos o que pode ser o próprio núcleo do
fenômeno civilizacional, a saber, um conjunto de
imagens e símbolos, pelos quais um grupo humano
expressa sua adaptação à realidade, aos outros grupos e
à história. Por imagens e símbolos, entendo essas
representações absolutamente concretas por cujo
intermédio um grupo concebe sua existência e seu
próprio valor. Poderíamos falar, nesse sentido, do núcleo
étnico-mítico, do núcleo a um só tempo moral e
imaginativo, que encarna o supremo poder criador de um
grupo. É nesse nível de profundidade que a diversidade
das civilizações é mais profunda.” [ 299 ] As ciências
sociais simplesmente não sabem refletir sobre os
estratos profundos que alimentam a identidade de um
povo: o contratualismo radical, indissociável da mitologia
da transparência, torna-se incapaz de refletir sobre o
núcleo mais íntimo que caracteriza e singulariza uma
civilização. O questionamento sobre a identidade
nacional é hoje o que nos permite meditar sobre o núcleo
próprio de cada cultura.
SURGIMENTO DA QUESTÃO ANTROPOLÓGICA

À questão identitária vem somar-se a questão


antropológica, que diz respeito tanto aos novos desafios
societais como às preocupações ligadas à bioética, ao
controle dos seres vivos ou ao imperialismo do mercado.
Existe uma utopia tecnológica na modernidade, que é a
de uma manipulação integral do mundo e, nos tempos
atuais, dos seres vivos. Também se poderia falar em
tentação demiúrgica da modernidade, que ama acreditar
que tudo é possível: todas as formas históricas e naturais
são chamadas à dissolução, para que o homem possa
por fim dar livre curso à fantasia de autoengendramento
que ele carrega em si. É a mesma fantasia que anima a
teoria de gênero e o projeto do útero artificial. A
renovação conservadora está em busca de limites,
cultiva o senso da finitude. Um mundo absolutamente
controlável, em que o homem atribuiria a si mesmo a
onipotência que antes reconhecia em Deus, já não seria
um mundo humano, com sua parcela de mistério, que
obriga cada geração a retomar do zero a questão do
sentido da existência. Ela pode até cair num
antiliberalismo de combate entre os mais militantes, que
talvez encontrem aí a parcela de radicalidade necessária
a cada nova geração, para a entrada na vida pública.
Com ou sem razão, o conservadorismo antropológico é
associado a um catolicismo renascente. Sem razão,
porque não se poderia falar a sério de um catolicismo de
combate, exceto nas fantasias de alguns espíritos
perdidos: não se encontra aí nenhum projeto de devolver
um caráter confessional aos costumes e à vida pública.
Quem lança alertas contra o retorno de sabe-se lá qual
tipo de integrismo conquistador está brincando de se
assustar: as pessoas gostam de imaginar o catolicismo
francês como um monstro jamais vencido por inteiro e
sempre suscetível de levar a França de volta ao passado,
o que seria próprio de uma política diabolicamente
reacionária. Com razão, não obstante, na medida em que
o conservadorismo preconiza uma lógica do
enraizamento e, na França, não poderia deixar de
reconhecer a herança católica e de indagar o que fazer
com ela. Não é possível enraizar-se na França sem
encontrar um país marcado por um cristianismo mais que
milenário, como Denis Tillinac observou com frequência:
o catolicismo se apresenta então não apenas como uma
fé, mas como uma paisagem mental e simbólica que não
poderia ser saqueada sem que se mutilassem as fibras
mais íntimas da identidade nacional. [ 300 ] Apresenta-se
também como uma matriz antropológica que estrutura
fundamentalmente a relação com o mundo.
PSICOLOGIA DE UM RENASCIMENTO CONSERVADOR

Existe nessa renovação conservadora um autêntico


vigor, e a jovem geração tem algum papel nisso. A
dissidência conservadora dos anos 1990 e 2000 circulava
num mundo que parecia ideologicamente muito seguro
de si. Teve de driblar o politicamente correto, ainda que
para isso tenha interiorizado alguns de seus dogmas, em
especial o do sentido irreversível da história, ao qual
acabou por se dobrar. A época só tolerava a dissidência
triste ou irônica, por mais cáustica que fosse; basta
pensar na de Philippe Muray, que descrevia um mundo
pós-história. Muray permitia que se maldissesse a pós-
modernidade, ao mesmo tempo em que se resignava
diante dela: não seria possível escapar. O homem
acabara de sofrer uma nova queda: só lhe restava
estetizar seu desespero. A reflexão política tinha de
ceder seu lugar à pose do iconoclasta mordaz. Mas quem
ainda acredita no fim da história? A melancolia
democrática se dissipou. O retorno do trágico com a
violência islamista, a imigração maciça e a dissolução
das fronteiras, incapazes de contê-la, o arrependimento
transformado em dogma histórico, a desqualificação
moral da identidade nacional sob a pressão do
antirracismo, a crise da construção europeia e a
dissolução da soberania nacional, a mutação
antropológica provocada pela nova hubris [ 301 ]
tecnológica: todos esses temas alimentam o
conservadorismo renascente.
Entramos numa época altamente política e a
renovação conservadora, quando recusa reduzir-se a
uma filosofia militante, pretende reinserir o homem na
comunidade política, conectando esta última às
necessidades humanas que a antropologia liberal havia
privatizado em demasia. O mundo comum não poderia
ser exclusivamente procedimental. Os povos e as
civilizações já não podem ser definidos como puras
construções sociais de fácil desconstrução – conforme
pretendeu fazer a historiografia dominante dos anos
1980, que não parava de artificializar o mundo comum –
ou como simples identidades fantasiadas, como se diz
nos tempos atuais. A utopia da pura coexistência das
culturas em nome da convivência se desmantela:
repousava na ficção liberal de uma privatização das
identidades, como se elas não tendessem naturalmente
a estruturar o espaço público. Já não se pode definir o
homem apenas por meio dos direitos que lhe são
reconhecidos – o embalo da lógica dos direitos
corresponde, aliás, a uma concepção pós-política do
homem. Celebram-se os direitos humanos, mas de que
homem se trata? Ele é redescoberto hoje sob os traços
do herdeiro – a escola é a questão conservadora por
excelência. À figura do grande político, o progressismo
preferia a do brilhante gestor, aparentemente exigida por
tempos de calmaria. No entanto, os homens precisam ser
governados quando a história volta a ser turbulenta, e
precisam ser existencialmente envolvidos pela
comunidade política. O conservadorismo que surge é o
dos tempos trágicos, e não exige apenas virtudes
prosaicas, aquelas da common decency, que ele, por
outro lado, também celebra. Terá de sair de um juridismo
estreito e libertar-se de uma concepção do estado de
direito que representa apenas uma falsificação da
democracia liberal: de fato, o necessário não é tanto sair
desta última, e sim restaurar sua significação histórica
verdadeira. De certa forma, o que importa é restaurar as
condições da decisão política e, mais amplamente, da
ação política.
A jovem geração conservadora nasceu num mundo que
ela sentia estar devastado e cuja reconstrução ela
atribuía a si mesma como uma missão. É menos
resignada e mais conquistadora: o politicamente correto
pode cair. Não se tenta exatamente driblá-lo, o que se
quer é mais desafiá-lo. Existem necessidades
irreprimíveis da alma humana, e é justamente no
reconhecimento disso que o conservadorismo encontra a
força e os meios para não desesperançar-se. Sempre elas
ressurgem, e sempre se encontram homens para afirmar
sua adesão a elas e buscar inseri-las na cidadania. O
homem jamais se deixa arrasar por completo, mesmo
pela pior das comunidades políticas, e traz em sua
natureza a possibilidade de seu renascimento. Para
empregar as palavras de Koestler, pode-se sempre
apostar no “triunfo da substância humana indestrutível
sobre um meio desumanizador”. [ 302 ] Miłosz dizia, por
sua vez, que “o material humano parece ter um traço
particular: não aprecia ser reduzido à condição de mero
material humano”. [ 303 ] Essa é a esperança do
conservador que, à sua maneira, sabe que uma parte do
homem jamais se deixará aviltar, mesmo pela pior das
sociedades. No fim das contas, o conservadorismo
fundamenta a liberdade humana na parte eterna do
homem.
Sempre, o mundo pode renascer. De fato, como
escrevia Julien Freund, “sejam quais forem o
agrupamento e a civilização, sejam quais forem as
gerações e as circunstâncias, a perda do sentimento de
identidade coletiva é geradora e amplificadora de aflição
e de angústia. É anunciadora de uma vida indigente e
empobrecida e, no longo prazo, de uma desvitalização,
eventualmente da morte de um povo ou de uma
civilização. No entanto, por vezes, felizmente, a
identidade coletiva se refugia também num sono mais ou
menos longo com um despertar brutal se, durante esse
tempo, tiver sido demasiadamente subjugada”. [ 304 ]
Patrick Buisson, nas últimas linhas de La cause du peuple
[A causa do povo], soube responder àqueles que
reduzem o conservadorismo a um tipo de apego a formas
históricas inevitavelmente condenadas à erosão. “Amar a
França não é amar uma forma morta, mas aquilo que
essa forma encerra e manifesta de imperecível. […] Não
é o que morrerá ou o que já está morto que devemos
amar, mas antes o que não pode morrer e atravessou a
espessura dos tempos. Algo que é do âmbito do desejo,
do desejo e da vontade de imortalidade. Algo que
ultrapassa nossas pobres vidas. E que transcende nossa
baixa época. Infinitamente.” [ 305 ] Não existe, é claro,
utopia conservadora. Não existe sociedade perfeita a ser
estabelecida de uma vez por todas. Chamemos a isso de
pessimismo antropológico dos conservadores, que sabem
que tudo deve sempre ser retomado e que mesmo a
civilização mais forte e mais bela sempre terá de passar,
um dia, pela decadência. Na história, eles não esperam
eternizar-se – “visto que está na natureza das coisas que
as glórias pereçam […] e que os impérios sejam
abatidos” –, mas durar. [ 306 ] Não haverá uma grande
noite dos conservadores. Há apenas uma comunidade
política um pouco mais humana a ser reconstruída a
partir de ideais a serem redescobertos, mas com a
consciência de que as aspirações humanas mais
fundamentais são contraditórias e não poderiam ser
reconciliadas numa síntese perfeita que encontraria uma
solução tecnopolítica. O homem é condenado ao
inacabamento, e a comunidade política também. É a
velha lição relembrada por Soljenítsin: o mal está no
coração do homem e não se poderia extraí-lo de lá por
completo, embora seja possível transcendê-lo, contê-lo,
transfigurá-lo.
É na medida em que o homem é um ser espiritual,
trazendo em si aspirações que transcendem toda
comunidade política, que ele permanece um ser de
liberdade. Rapazes e moças nascem num mundo que
eles sentem estar desolado, desvitalizado, moralmente
asfixiado, e já não acreditam nas falsas promessas que
ele faz: querem resgatar uma parte do homem que foi
esquecida, desprezada, deixada de lado. A modernidade
radical continua a ser irrespirável. A jovem geração
conservadora se convenceu de que, na batalha em que
se lança, não precisa se contentar em dar testemunho
das virtudes de um mundo decaído, mas pode ganhar.
Não se insere numa longa história de causas vencidas, às
quais a tradição a vincularia contra sua vontade, mas
toma o espaço público de assalto para investi-lo com
uma filosofia política renovada. O que ela faz não é tanto
lamentar o fim de um mundo: sua intenção é reconstruir
um mundo. É provável que ela tenha a cabeça cheia de
imagens heroicas vindas de tempos que se tornaram
quase lendários, em que a França não duvidava de ser a
França – com elas, tece para si um imaginário que dá
coragem para enfrentar uma época de frieza. Talvez seja
animada pela intuição genial de Chesterton: são as
grandes inspirações vindas do passado que permitem
romper as proibições do presente e fecundar o futuro.
Elogio do conflito civilizado

O propósito da democracia não é tanto que saibamos nos entender,


mas que saibamos nos dividir.
Alfred Sauvy
 
O homem não é um anjo: o bem e o mal nele se
entremeiam. Quem se envolve na vida pública e imagina
que os homens estão destinados a uma magnífica
reconciliação final, comandada por uma doutrina que por
fim se distingue das outras por sua relação exclusiva com
a verdade, não é feito para governá-los. Não existe maior
erro moral, na democracia, do que acreditar-se em
situação de monopólio sobre o bem, o justo e o
verdadeiro. De fato, quem acredita assim sobrepairar do
alto de sua superioridade à comunidade política não
consegue enxergar muito bem por que debateria com os
simples mortais diante dele. Na melhor das hipóteses,
prescindirá das opiniões deles; na pior, sentir-se-á
autorizado a reeducá-los, psiquiatrizá-los e mesmo
encarcerá-los. A história do século XX o confirmou
amplamente. Seria preciso escrever um elogio
moderado, porém sincero, do liberalismo, que não
merece a caricatura tão ruim que se costuma fazer dele.
O espírito do liberalismo bem compreendido ensina os
homens a tolerar os que não pensam como ele, mas
vivem com ele, e relembra a cada um que suas
convicções, por mais ardentes que sejam, referem-se
apenas, do ponto de vista da economia geral da
comunidade política, a uma doutrina entre outras. Não
que tudo seja relativo. No entanto, é sempre preciso
conter em si a tentação do fanatismo. Embora a política
e a moral não sejam estranhas uma à outra, não se
poderia fundi-las numa única categoria sem adulterar a
ambas.
Isso não quer dizer que os campos políticos presentes
não buscarão exercer uma hegemonia no espaço público.
A política é conflituosa e passional, não se poderia extraí-
la por completo das relações de dominação; no entanto,
podemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para
que ela não se reduza a isso. A vida política é o âmbito
privilegiado da impureza e nela as ideias sempre se
mesclam às paixões. É também o âmbito da encarnação.
As ideias aí se confrontam por meio dos homens que as
veiculam e afirmam sua adesão a elas. Em outras
palavras, a vida política não poderia se reduzir a uma
simples oposição entre doutrinas concorrentes. A
diversidade das ideologias cruza com a dos
temperamentos, sem sobrepor-se a ela. O animal
humano não é uma criatura apaziguada, e a diversidade
irredutível dos caracteres faz com que em toda
sociedade se encontrem homens feitos para o poder e
homens feitos para a contestação, conservadores e
aventureiros, idealistas e niilistas. Forças perpassam-no,
paixões movem-no: alguns períodos históricos são frios,
outros são ardentes. Vários são mornos. Embora os
homens sejam feitos para viver juntos, não são feitos
para se entenderem.
Todas essas pessoas têm de coabitar numa
comunidade política que deve ser capaz, apesar de tudo
o que as divide, de criar um poder legítimo que as
envolva na história, mesmo que não haja adesão por
parte delas a cada uma de suas decisões. A comunidade
política deve ser legítima: deve ser aceita, ainda que
jamais seja integralmente aceita. Os homens precisam
prever mecanismos simbólicos e institucionais para
regular seus desacordos sem impedir a constituição de
um poder que seja sempre capaz de transcender os clãs
que de tempos em tempos se apropriam dele por meio
de uma conquista provisória, e isso, justamente, é o que
torna a democracia possível. Essas paixões se conjugam
com ideologias que demonstram a diversidade das visões
de mundo, mas que permitem que os homens se
engajem na cidade. A homogeneização dos
temperamentos e das personalidades para fazer nascer
uma humanidade unificada, bege, morna, programada
porque programável, entediante porque previsível,
incapaz do menor sobressalto porque mentalmente
domesticada, seria uma catástrofe moral. Não são os
mesmos tipos de homens que começam ou terminam as
revoluções, não são os mesmos tipos de homens,
tampouco, que exercem o poder ou conservam as
doutrinas. E embora um líder seja necessário, é preciso
que haja também um líder da oposição e até, é provável,
um líder populista, pois sempre, mesmo na comunidade
política mais bem integrada, uma parte do povo se sente
excluída e quer expressar isso, integrando-se à vida
cívica sob o signo do protesto fundamental.
Tampouco se poderia transformar a política em simples
parteira de uma história que teria seu próprio movimento
emancipatório, alheia à vontade dos homens, porque
animada por uma revelação que precisaria simplesmente
ser traduzida nas instituições humanas. A democracia
não é uma simples lógica chamada a desdobrar suas
consequências a partir das especulações eruditas
daqueles que têm a pretensão de desvelar seu
movimento e suas promessas. Se importa restaurar a
política como forma de existência comum, é devolvendo
aos homens a possibilidade de se envolver na história
sem que esta se defina como um movimento irreversível,
ao qual as pessoas teriam simplesmente de adaptar-se.
Em outras palavras, cumpre trazer a democracia de volta
para a terra, reconstituí-la como espaço de deliberação
cujas finalidades não são predeterminadas pelos
guardiães autoproclamados do pensável e do aceitável.
Isso porque, como relembrava Jacques Ellul, “para que
haja política é preciso haver uma escolha efetiva entre
uma pluralidade de soluções”. [ 307 ] Na medida em que
redescobrimos o pluralismo inevitável da comunidade
política, com homens em desacordo quanto às grandes
questões, é preciso repensar a deliberação política.
Nenhuma comunidade política pode prescindir de modo
duradouro de uma divisão política forte, que permita
traduzir a pluralidade irredutível que nela se expressa em
uma conversa democrática fecunda, da qual se
depreendem grandes alternativas coletivas. Essa
alternativa é necessária para conferir substância à
democracia, caso contrário ela se resseca e se
decompõe.
O debate político também não pode pôr em cena o
centro e a periferia e criar, assim, a sensação de uma
ruptura grave entre as elites e o povo. A partir daí, são
interesses que se enfrentam, e não visões. A figura do
comum se desvanece. O país se fragmenta em interesses
irreconciliáveis, como se a própria possibilidade de um
destino compartilhado se apagasse diante dos nossos
olhos. Existem numa comunidade política normalmente
constituída várias filosofias concorrentes, numerosas
antropologias contraditórias e uma diversidade de
interesses que, sem serem absolutamente
irreconciliáveis, não têm a vocação de se neutralizarem
num grande ímpeto consensual. Nenhuma dessas
filosofias tem o direito de reivindicar o monopólio do
bem, do justo e do verdadeiro, ainda que, naturalmente,
cada uma acredite ter razão quanto ao ponto essencial. A
oposição é uma necessidade existencial na democracia:
é por meio dela que uma sociedade se previne contra um
unanimismo não apenas tóxico como empobrecedor. É
por meio dela que a democracia prepara sempre um
futuro de reposição.
No entanto, como já se deve ter compreendido ao fim
desta obra, as categorias políticas a partir das quais se
concebe a divisão que estrutura o espaço político e as
que prevalecem globalmente no mundo ocidental
impedem a possibilidade de um debate político fecundo. [
308 ] Os códigos de respeitabilidade que estruturam o
sistema midiático encolhem a tal ponto o espaço de uma
deliberação oxigenada que impelem à revolta. Não se
poderia refundar a ação política sem extraí-la
mentalmente de tudo o que inibe a palavra pública, sem
uma revolta contra o sufocamento da liberdade de
expressão, sem uma revolta também contra o que
impede a ação pública. É provável que seja necessário
sair da mitologia progressista para resgatar um debate
político que não desqualifique de antemão os que
confessam seu ceticismo diante da dinâmica da
modernidade. Ou, pelo menos, o progressismo não
poderia ser concebido como o pano de fundo da
conversa cívica, e o conservadorismo, nessa perspectiva,
não poderia tampouco se definir como um simples apego
ao passado.
Para além do simples jogo dos partidos, a divisão entre
progressistas e conservadores permite, ao menos em
parte, explicar as tensões que permeiam os grandes
desafios do nosso tempo. Essa divisão remete a duas
antropologias concorrentes e, temos o direito de esperar,
complementares. O imaginário do conservadorismo é o
do enraizamento, do limite, da finitude, e dele se pode
deduzir uma concepção protetora da política. O
imaginário do progressismo é o do cosmopolitismo, da
mobilidade, da transgressão das evidências
estabelecidas. Da mesma maneira, se for necessário
continuar a falar da divisão entre esquerda e direita, será
preciso então que esta última não se defina mais em
função da primeira, mas a partir de seu próprio
imaginário. Isso implica que cada campo assuma sua
própria filosofia política, mas para isso é preciso antes
que a conheça, sem acreditar, no fundo, na
intercambialidade de todos os partidos, como se cada um
deles representasse um matiz da mesma ideologia
dominante. Toda sociedade bem organizada precisa
desses dois polos e deve saber fazê-los coabitar: nenhum
desses dois polos tem algo a ganhar buscando sufocar
ideologicamente o outro, pois eles respondem a
aspirações ancoradas no coração humano. Aspirações
contraditórias, decerto, mas o próprio coração humano é
dilacerado entre tentações contrárias que devem,
contudo, coabitar. As necessidades fundamentais da
alma humana não são harmoniosas e é utópico imaginá-
las reconciliadas. O homem é um ser intimamente
fraturado. É o que Chantal Delsol observa: “as
democracias ocidentais esquecem sua vocação
primordial, que é discutir a harmonia necessária entre os
contrários”. [ 309 ] Uma sociedade que fosse puro
conservadorismo seria sufocante e fadada à
museificação. Uma sociedade que fosse puro
progressismo seria fadada à dissolução e à liquefação. A
arte política consiste, então, em permitir uma
conflituosidade frutífera entre esses imaginários na
comunidade política. O homem precisa de liberdade e de
autoridade, de igualdade e de diferença, de
cosmopolitismo e de enraizamento, de momentos
sublimes e de momentos prosaicos: a comunidade
política bem concebida permite configurar e hierarquizar
originalmente tais aspirações, sem negar nenhuma
delas, e a deliberação pública diz respeito justamente a
essa hierarquização, à luz das exigências estabelecidas
por cada época. “Existe um uso moderado ou ponderado
dos princípios de uma sociedade que consiste em mantê-
los em equilíbrio recíproco”, [ 310 ] e este último só
poderia ser provisório, seria talvez o caso de dizer,
completando o pensamento de Julien Freund. A
contradição na comunidade política não é um momento
na história, chamada a ser superada num desenlace
longínquo, porém feliz: é uma condição irredutível da
política. Em outras palavras, a política não poderia ser
transformada em simples técnica de parto do sentido da
história. Não se trata de idealizar uma síntese perfeita
entre os polos contraditórios da comunidade política: isso
seria apenas uma maneira de despolitizá-la.
A democracia não poderia prescindir do conflito, mas
deve civilizá-lo, a fim de torná-lo criativo. A conversa
cívica não é uma simples discussão civilizada, e quem
sonha em reduzi-la a isso quer na realidade torná-la
asséptica. Alain Finkielkraut nos põe na pista correta:
“deixei de conceber a política como um face a face entre
a humanidade e seus inimigos”. [ 311 ] Toda a genialidade
da democracia liberal consiste em evitar a conversão do
adversário em inimigo. Não se deve descartá-la, e sim
restaurá-la. Seria preciso reaprender a refletir sobre um
conflito político real, substancial, e até passional, mas
emancipado do imaginário da guerra civil e capaz de
levar os homens a prosseguir, apesar de tudo, a obra
comum que torna possível a comunidade política.
Agradecimentos

Não teria sido possível, para mim, escrever este livro


sem a discussão continuamente retomada com meus
amigos e colegas do seminário da Action Nationale (Ação
Nacional). Há quinze anos prosseguimos uma reflexão
sobre a situação do Quebec e, mais amplamente, sobre
os grandes problemas da época. Agradecimentos
também a meus amigos e interlocutores do outro lado do
Atlântico. Eles sabem, espero, a que ponto a conversa
entre nós me é essencial. Agradecimentos, por fim, a
Karima, sem a qual nada disso me teria sido possível e,
sobretudo, sem a qual nada disso teria sentido.
Notas

[ 1 ] Milan Kundera, Les testaments trahis, Paris, Gallimard, 1993, p. 276.


[ 2 ] Jean-François Revel, La nouvelle censure: un exemple de la mise en
place de la mentalité totalitaire, Paris, Robert Laffont, 1977.
[ 3 ] Idem, Fin du siècle des ombres, Paris, Fayard, 1999.
[ 4 ] Coletivo, “Marcel Gauchet, victime d’une rage aveugle”, Le Monde, 17
de outubro de 2014.
[ 5 ] André Perrin, Scènes de la vie intellectuelle en France, Paris, L’Artilleur,
2016, p. 67.
[ 6 ] François-René de Chateaubriand, Les Mémoires d’Outre-Tombe , Paris,
col. Pléiade, Gallimard, 1951, p. 925.
[ 7 ] Czesław Miłosz, La pensée captive, Paris, Gallimard, 1953, p. 55.
[ 8 ] Mathieu Bock-Côté, Le multiculturalisme comme religion politique, Paris,
Éd. du Cerf, 2016 [Edição brasileira: O multiculturalismo como religião
política, São Paulo, É Realizações, 2019]. Mathieu Bock-Côté, Le nouveau
régime, Montreal, Boréal, 2017.
[ 9 ] Pierre Rosanvallon, La légitimité démocratique, Paris, Seuil, 2008.
[ 10 ] Régis Debray, Un candide à sa fenêtre, Paris, Gallimard, 2015, p. 125.
[ 11 ] Guillaume Perrault, Conservateurs, soyez fiers!, Paris, Plon, 2017, p.
198.
[ 12 ] Quanto a essa questão, tomo a liberdade de remeter às minhas duas
obras anteriores, em que me interessei pela mudança da nossa
compreensão do princípio democrático. Mathieu Bock-Côté, Le
multiculturalisme comme religion politique, Paris, Éd. du Cerf, 2016 [Edição
brasileira: O multiculturalismo como religião política, São Paulo, É
Realizações, 2019] e Mathieu Bock-Côté, Le nouveau régime, Montreal,
Boréal, 2017.
[ 13 ] O que fascina tanto em uma figura como Madonna, por exemplo, é
que ela encarna a onipotência de uma individualidade que, de uma
personalidade a outra, recria-se a si mesma integralmente. Ela é feita de
pura vontade. A liberdade imagina-se aqui como desenraizamento,
autoabolição, mutação da humanidade em vontade fantasística, livre para
encarnar-se em qualquer forma, sem no entanto ligar-se a ela,
comprometer-se com ela.
[ 14 ] Czesław Miłosz, La pensée captive, Paris, Gallimard, 1953, p. 23.
[ 15 ] Embora a direita burguesa e “moderada” em geral se mostre
indiferente às especulações ideológicas da esquerda radical, a direita
conservadora intelectual, por sua vez, é fascinada por elas, pois adivinha
que as ideias que hoje passam por burlescas serão rapidamente
normalizadas sob a pressão ideológica da universidade e da mídia. Vamos
traduzir isso concretamente: quem não levar Judith Butler a sério rápido o
suficiente acabará pensando como ela.
[ 16 ] François Furet, “L’utopie démocratique américaine”, em François Furet,
Penser le XXe siècle, Paris, Robert Laffont, coleção Bouquins, 2007, p. 427-
41.
[ 17 ] Os direitos das pessoas trans representavam a expressão mais
avançada dos direitos humanos, na medida em que eram assimilados ao
direito de se libertar de toda identidade atribuída. E isso a tal ponto que o
próprio fato de não ceder às reivindicações formuladas em nome deles podia
acarretar uma campanha midiática negativa em grande escala, como se viu
quando a Carolina do Norte quis adotar uma lei obrigando homens e
mulheres a frequentar banheiros em função do sexo registrado em sua
certidão de nascimento, sendo alvo de uma campanha da imprensa mundial
que acusava esse estado de cair na transfobia. “La Caroline du Nord et sa loi
anti-transgenre se mettent à dos de plus en plus de personnalités”,
Huffington Post, 16 de abril de 2016, http://www.huffingtonpost.fr.
[ 18 ] Nadia El-Mabrouk, “La nouvelle religion”, La Presse, 9 de maio de 2018
(www.lapresse.ca).
[ 19 ] Thierry Wolton, Une histoire mondiale du communisme: les complices,
Paris, Grasset, 2017, p. 59.
[ 20 ] No original, em itálico, mégenrer, tradução francesa do neologismo
misgender, de língua inglesa, que indica o ato de atribuir a uma pessoa um
gênero com o qual ela não se identifica subjetivamente. Para o ato de
atribuição de gênero a alguém, quer pelo uso de um pronome, quer por
outros meios, tem-se tornado usual, em português, o neologismo
generificar, ainda não dicionarizado. (N. T.)
[ 21 ] Philippe-Vincent Foisy, “‘Monsieur, madame’ désormais en option à
Service Canada”. Radio Canada, 21 de março de 2018 (www.radio-
canada.ca). Nessa mesma mentalidade, como vimos em Princeton em
fevereiro de 2019, haverá um pedido de desculpas prévio, por ocasião da
projeção da peça de teatro Monólogos da Vagina, por dar a entender assim
que todas as mulheres têm uma vagina, o que seria ofensivo para as
mulheres trans.

Noa Wollstein, “The Vagina* Monologues: A feminist production with a


necessary asterisk”, The Daily Princetonian, 16 de fevereiro de 2019.
[ 22 ] Daniel Bell, Les contradictions culturelles du capitalisme, Paris, PUF,
1979.
[ 23 ] Segundo Frédéric Worms, professor de filosofia da École Normale
Supérieure da França, o termo “societal” diz respeito à questão dos valores
e costumes adotados pelos membros de determinada sociedade, o que se
tornou objeto de debates e, não raro, de polêmicas em grande parte do
mundo ocidental moderno. Enquanto as questões sociais dizem respeito às
condições materiais da existência – nível e distribuição de renda, condições
de trabalho etc. –, as questões societais estariam ligadas à dimensão
propriamente sociocultural da vida comum. (N. T.)
[ 24 ] Philippe Muray, Festivus Festivus: conversations avec Élisabeth Lévy,
Paris, Fayard, 2005.
[ 25 ] Arthur Koestler, Hiéroglyphes. In: Œuvres autobiographiques, coleção
Bouquins, Robert Laffont, Paris, 1994, p. 438.
[ 26 ] Élisabeth Lévy, Les Rien-pensants, Paris, Éd. du Cerf, 2017, p. 21.
[ 27 ] Gil Delannoi, La nation contre le nationalisme, Paris, PUF, p. 198.
[ 28 ] Arthur Koestler, Hiéroglyphes. In: Œuvres autobiographiques, coleção
Bouquins, Robert Laffont, Paris, 1994, p. 340.
[ 29 ] Philippe Muray, Après l’histoire, Paris, Gallimard, 2000, p. 97. Chantal
Delsol faz a pergunta: “é possível que já não saibamos o que é ou não real.
[…] Depois de tantas mentiras oficiais repetitivas e impostas, o que é real,
no fim das contas?”, Chantal Delsol, La haine du monde, Paris, Éd. du Cerf,
2016. p. 208-209.
[ 30 ] Arthur Koestler, Hiéroglyphes. In: Œuvres autobiographiques, coleção
Bouquins, Robert Laffont, Paris, 1994, p. 342.
[ 31 ] Czesław Miłosz, La pensée captive, Paris, Gallimard, 1953, p. 65.
[ 32 ] Arthur Koestler, Hiéroglyphes. In: Œuvres autobiographiques, coleção
Bouquins, Robert Laffont, Paris, 1994, p. 444.
[ 33 ] Sobre essa questão: Michèle Thibalat, Immigration, les yeux grands
fermés, Paris, Denoël, 2010; e, da mesma autora, Assimilation: la fin du
modèle français, Paris, Éditions du Toucan, 2013.
[ 34 ] Hervé Le Bras, Malaise dans l’identité, Arles, Actes Sud, 2017.
[ 35 ] Philippe Muray, Festivus Festivus, Paris, Fayard, 2005, p. 180.
[ 36 ] Gilles Paris, “Avec les Fake News Awards, Donald Trump vise une
nouvelle fois la presse”, Le Monde, 18 de janeiro de 2018.
[ 37 ] Por exemplo, Brice Couturier, Macron: un président philosophe, Paris,
Éditions de l’Observatoire, 2016. Também: Alexandre Devecchio, “Brice
Couturier: le Parti des médias et l’intelligentsia méprisent la réalité”, Le
Figaro, 19 de agosto de 2016.
[ 38 ] Durante certo tempo, foi essa a postura de François Fillon, que, no
entanto, não tinha nada de populista, mas que não conseguia disfarçar seu
mal-estar diante do cobertura midiática da vida política. Vincent Trémolet de
Villers, “Fillon, l’homme qui ne s’incline pas devant les ricanements”, Le
Figaro, 22 de novembro de 2016.
[ 39 ] Consultar quanto a essa questão a edição de fevereiro-março de 2016
da Revue des deux mondes, com seu artigo especial sobre “o campo do
bem”.
[ 40 ] Élisabeth Lévy, Les maîtres censeurs: pour en finir avec la pensée
unique, Paris, Lattès, 2002.
[ 41 ] A partir dos anos 1970, as newsletters e o direct mail permitiram que
o movimento conservador estadunidense – que custava para ter acesso à
grande mídia – mobilizasse diretamente sua base, narrando a atualidade a
partir de outra perspectiva ideológica, de outra narrativa, não raro com
destaque para temas negligenciados pela grande mídia. Tornou-se assim
possível mobilizar segmentos particulares do eleitorado e agregá-los ao
movimento conservador. Desse ponto de vista, pode-se sustentar que a
formação do conservadorismo moderno ou, ao menos, do conservadorismo
americano moderno, é indissociável de uma crítica do sistema midiático,
concebido como um pilar do regime progressista. Richard A. Viguerie,
America’s Right Turn, Chicago, Bonus Books, 2004.
[ 42 ] Dominique Albertini e David Doucet, La fachosphère, Paris,
Flammarion, 2016.
[ 43 ] Para marcar sua oposição, os intelectuais dissidentes em geral
preferem fundar uma revista, que proporá, sobre as questões teóricas de
fundo, outra leitura da época, não aquela que é intelectual e midiaticamente
dominante.
[ 44 ] Jeffrey Hart, The Making of the American Conservative Mind: The
National Review and Its Times, ISI, 2005.
[ 45 ] Jean Sévillia, “40 ans du Figaro Magazine: scènes de combats”, Le
Figaro Magazine, 1º de junho de 2018.
[ 46 ] Se fizermos um salto de alguns anos no tempo, poderíamos dizer o
mesmo de Valeurs actuelles, que gozará de inegável sucesso durante os
anos de François Hollande: aí se fazia ouvir uma leitura da atualidade que,
para além das famosas manchetes ruidosas, correspondia a uma oposição
frontal ao regime socialista. Os excessos que lhe foram recriminados
deveriam ser considerados sobretudo como desvios reivindicados e
assumidos em relação à norma do politicamente correto.
[ 47 ] Pascal Durand, Le Discours “néoréactionnaire”. Transgressions
conservatrices, Paris, Éditions CNRS, 2015. No próprio Quebec a presença de
alguns cronistas críticos do multiculturalismo bastou para criar um pânico
midiático. Consulte-se o documentário militante do programa Enquête, Les
temps extrêmes, Radio Canada, 9 de março de 2017.
[ 48 ] David Le Bailly, “Qui êtes-vous monsieur Finkielkraut?”, L’Obs, 15 de
fevereiro de 2018, p. 42 a p. 47.
[ 49 ] Jocelyn Maclure, Retrouver la raison, Montreal, Québec-Amérique,
2016.
[ 50 ] Gérard Bouchard, “À propos d’un faux procès et de procédés douteux”,
Le Devoir, 12 de janeiro de 2010.
[ 51 ] Clément Pétreault, “Ceux qui poussent à la guerre civile”, Le Point, 29
de novembro de 2018.
[ 52 ] François Bernard Huygue, Fake News: la grande peur, Paris, VA
éditions, 2018, p. 37.
[ 53 ] Charlotte d’Ornellas, “‘Loi anti-fake news’, vérification de l’information:
de la démocratie dans la France de Macron”, Valeurs Actuelles, 7 de
fevereiro de 2019.
[ 54 ] A propósito do programa antirrumores: www.coe.int/fr.
[ 55 ] “Des agents antirumeurs pour briser les préjugés envers les
immigrants”, Radio Canada, 26 de abril de 2018, www.radio-canada.ca.
Alguns exemplos eram extravagantes: os representantes da cidade
apresentavam, assim, um caso em que duas pessoas, na fila de espera do
caixa no supermercado, falariam de maneira negativa da imigração. O
agente antirrumor que ouvisse essa conversa poderia então entrar na
conversa e desconstruir ao vivo os preconceitos que aí se revelassem.
[ 56 ] Consultar a decisão n. D2017-08-099 (2), de 14 de setembro de 2018,
do Conselho de Imprensa do Quebec (www.conseildepresse.qc.ca). Essa
vontade explícita de reeducar a opinião pública pode surpreender, mas
deve-se ter em mente que a instrumentalização ideológica da escola não é
de ontem e que a democracia moderna oscila entre a organização política
de um povo histórico e a criação de um povo purgado de seu particularismo.
O regime diversitário, pelo ensino da história, da literatura ou da educação
cívica, não hesita em conduzir campanhas de sensibilização e até em
endossar a educação “antirracista”. Trata-se de transformar a escola em
laboratório político-ideológico onde fabricar um povo enfim compatível com
o regime diversitário. Guy Hermet escreve, com razão: “Já zelando para
satisfazer as necessidades materiais elementares do povo, e mesmo sua
honesta felicidade, os artesãos do Estado terapêutico consideraram que
convinha preservar, além disso, seu equilíbrio mental ou, para dizê-lo sem
rodeios, sua compatibilidade mental com o sistema social e político
ambiente”. Guy Hermet, L’hiver de la démocratie, Paris, Armand Colin, 2007,
p. 90.
[ 57 ] Com razão, Pierre-André Taguieff fala sobre a demonização do
adversário como uma das características da política contemporânea. Pierre-
André Taguieff, Du diable en politique, Paris, CNRS, 2014.
[ 58 ] Philippe de Villiers relatou isso de maneira cativante na obra Mémoires
politiques: quando vivia uma fase de ascensão política no início dos anos
1990, foi recebido para entrevista no programa L’heure de vérité, o
programa político daquele momento, por um Ivan Levai que lhe perguntava
em primeiro lugar, e antes de tudo, se ele se distinguia do Marechal Pétain.
Assim formulada, observa De Villiers, a pergunta o classificava
automaticamente no campo dos suspeitos, e mais, entre os piores suspeitos
imagináveis. Em sua vida política, ele tinha de justificar sistematicamente
sua existência e explicar que não era quem a mídia dizia que era. Seria
sempre, em primeiro lugar, relegado à caixa dos acusados. Villiers
começava a sair das margens, a ganhar peso político: em outras palavras,
começava a existir. Cumpria defini-lo antes que ele próprio se definisse.
Cumpria encerrá-lo num personagem do qual não conseguiria sair. O
insurreto da Vendeia devia a partir dali passar por desqualificado, na
condição de herdeiro decretado da França de Vichy. O fato de ele se
defender não mudava o caso em nada. O essencial era que fosse acusado
disso. Não foi o único, ao longo das últimas décadas, a cair numa armadilha
midiática cuja função é transformar uma personalidade política em suspeito
ou em pessoa socialmente inaceitável. Philippe de Villiers, Le temps est
venu de dire ce que j’ai vu, Paris, Albin Michel, 2015, p. 11-19.
[ 59 ] No outono de 2017, no âmbito do congresso anual, a federação
profissional dos jornalistas do Quebec (FPJQ), sem sequer se dar conta disso,
forneceu uma imagem desse viés midiático que estrutura a vida pública, ao
dedicar um ateliê à melhor maneira de falar dos grupos de extrema-direita
para não promovê-los. Será que deve ser-lhes dada a palavra? Falar a
respeito deles sem nomeá-los? E como reagir quando esses grupos se
recusam a ser assimilados à extrema-direita? Outra coisa, também
fascinante: nunca a FPJQ formulou tais perguntas a respeito dos grupos de
extrema-esquerda, como se houvesse menos preocupação quanto à
influência destes últimos e a sua capacidade para perturbar a ordem pública
ou excitar as tensões sociais e identitárias. Sophie Durocher, “Les chiens de
garde de la Meute”, Le Journal de Montréal, 22 de novembro de 2017.
[ 60 ] Como escreve William Voegeli, “it is the power to name and shame, to
demand abject apologies, to obliterate reputation and careers. It is brought
to bear against people accused of violating rules, often vague but always
severe, about what may or may not be said, and who may or may not say”.
William Voegeli, “Racism, Revised”, Claremont Review of Books, Outono de
2008, p. 25.
[ 61 ] Raphaël Stainville, “Le retour de la censure”, Valeurs actuelles, 4 de
outubro, 2018, p. 14-16.
[ 62 ] George Orwell, 1984, Gallimard, 1950, p. 74.
[ 63 ] Ibidem.
[ 64 ] Ibidem.
[ 65 ] É o caso, por exemplo, da virilidade, um conceito que a novilíngua
traduz como “virilidade tóxica”.
[ 66 ] Guy Hermet, L’hiver de la démocratie, Paris, Armand Colin, 2007, p.
111.
[ 67 ] Guy Hermet, L’hiver de la démocratie, Paris, Armand Colin, 2007, p.
113. Miłosz por sua vez observava que “não convém, aos olhos do partido,
buscar penetrar a fundo o ser humano, especialmente na literatura e nas
artes. Isso comportaria o risco de suscitar dúvidas. ‘O homem’, no sentido
da espécie humana, não é bem visto. Qualquer um que se demore na
descrição de suas necessidades interiores, de suas aspirações, se vê
acusado de tendências burguesas. É preciso que nada ultrapasse a
descrição de seu comportamento como membro de um grupo social.
Cumpre que seja assim, pois o Partido, ao tratar o homem apenas como
uma resultante das forças sociais, considera que cada um se torna o tipo
cuja imagem ele se propõe. O homem é um macaco social. O que não é
expresso não existe. Por isso, basta proibir certos tipos de busca para abafar
automaticamente o respectivo desejo”. Czesław Miłosz, La pensée captive,
Paris, Gallimard, 1953, p. 271-272. A obra de arte, notava também Miłosz,
não tem autonomia própria: só tem valor por meio da missão que lhe é
atribuída. De acordo com essa mentalidade, as grandes obras da literatura
serão reinterpretadas, para que aí sejam retraçados os preconceitos que
entram em contradição com o novo regime. A arte contemporânea, por sua
vez, será valorizada, porque na maior parte do tempo se define apenas de
acordo com as categorias ideológicas do novo regime e impele a sua
radicalização. Trata-se, a cada vez, de renovar o mito de uma pura
plasticidade do social, de uma pura plasticidade da matéria humana. O
homem será o que a ideologia quer que ele seja. Daí a necessidade, como
se deve ter compreendido, de censurar ou de conter os discursos que a
contradizem, e que poderiam fazer com que os planos por meio dos quais se
quer formatá-lo se desviassem.
[ 68 ] Gugliemo Ferrero, Pouvoir: les génies invisibles de la cité, Montreal,
Valliquette, 1943, p. 216.
[ 69 ] Patrick Moreau, Ces mots qui pensent à notre place, Montreal, Liber,
2018, p. 17.
[ 70 ] Maryse Potvin, Les medias écrits et les accommodements
raisonnables. L’invention d’un débat, Relatório entregue ao Sr. Gérard
Bouchard e ao Sr. Charles Taylor, janeiro de 2008.
[ 71 ] Maryse Potvin, Les medias écrits et les accommodements
raisonnables. L’invention d’un débat, Relatório entregue ao Sr. Gérard
Bouchard e ao Sr. Charles Taylor, janeiro de 2008, Ibid., p. 213.
[ 72 ] Gérard Bouchard e Charles Taylor, Fonder l’avenir: le temps de la
conciliation, Commission de consultation sur les pratiques
d’accommodement reliées aux différences culturelles [Comissão de consulta
sobre as práticas de conciliação ligadas às diferenças culturais], 2008, p.
235.
[ 73 ] Ibidem,, 2008, p. 208.
[ 74 ] Cf. Pacto Global para a Migração, Assembleia Geral da ONU:
Conferência intergovernamental encarregada a adotar o Pacto global para
uma migração segura, ordenada e regular, 10 e 11 de dezembro de 2008,
Marrakesh, Marrocos (A/CONF.231/3*).
[ 75 ] Anne-Marie Le Pourrhiet, “La loi de moralisation est démagogique et
liberticide”, Le Figaro, 28 de julho de 2017; Catherine Lagrande, “Les
auteurs de propos racistes bientôt inéligibles”, Le Point, 31 de julho de 2017.
[ 76 ] Alain Finkielkraut e Élisabeth de Fontenay, En terrain miné, Paris,
Stock, p. 102.
[ 77 ] Ibidem, p. 224.
[ 78 ] Ibidem, p. 263.
[ 79 ] Ibidem, p. 107.
[ 80 ] Alain Finkielkraut e Élisabeth de Fontenay, En terrain miné, Paris,
Stock, p. 252.
[ 81 ] Não se pode negar, os intelectuais de direita que se assumem como
tais são pouco numerosos – não é raro, aliás, que se conteste sua existência,
como se um intelectual conservador fosse uma incongruência e até uma
impossibilidade lógica. Geoffroy de Lagasnerie e Édouard Louis escrevem
assim: “Na França, ‘intelectual de direita’ ainda é um oximoro, ou melhor,
uma impossibilidade. E, para nós, isso é motivo de regozijo”. Geoffroy de
Lagasnerie e Édouard Louis, “Intellectuels de gauche, réengagez-vous”, Le
Monde, 27 e 28 de setembro de 2015. Na realidade, os raros intelectuais
que se declaram abertamente de direita são em geral remetidos à extrema-
direita, o que é uma maneira de excluí-los da conversa democrática. Basta
evocar figuras intelectuais tão variadas como Raoul Girardet, Jules
Monnerot, Louis Pauwels ou Alain de Benoist para convencer-se disso. O
intelectual de direita, se essa designação tiver algum sentido, não raro se
apressará em citar o intelectual de esquerda que pensa como ele, como se o
fato de que um homem do outro campo compartilhasse suas ideias
confirmasse suas análises. Sua presteza será muito menor em citar alguém
associado a seu próprio campo, pois terá assim a impressão de se encerrar
num gueto intelectual do qual só sairá para desempenhar o papel do
rabugento de plantão ou para servir de garantia. O homem que a
contragosto foi confinado à direita espera uma única coisa: transcender a
divisão esquerda-direita em que se sente muito apertado e em má
companhia.
[ 82 ] Néoréac: neologismo composto pela aglutinação do prefixo néo (neo)
e da abreviação do vocábulo réactionnaire (reacionário). (N. T.)
[ 83 ] Élisabeth Lévy, “Néoréacs, l’éternel retour”, Causeur, nº 32, fevereiro
de 2016, p. 3; Élisabeth Lévy, “Nous sommes partout”, Causeur, nº 29,
novembro de 2015, p. 48-51. Também Élisabeth Lévy, La gauche contre le
réel, Paris, Fayard, 2012. Miłosz observava isso com sutileza, a propósito do
comunismo, e o mesmo se pode dizer sobre o novo regime diversitário, “a
ameaça mais grave é a heresia. Ela aparece em pessoas familiarizadas com
a dialética e, portanto, capazes de apresentar o materialismo dialético sob
uma nova luz: essas devem ser eliminadas com toda urgência. […] Os
pontos nevrálgicos da doutrina são a filosofia, a literatura, a história da arte
ou a crítica literária – eles estão em todo lugar onde o tema considerado é o
homem, em sua infeliz complexidade”. Czesław Miłosz, La pensée captive,
Paris, Gallimard, 1953, p. 268-269. Em outras palavras, a própria
intelligentsia progressista receia mais quem sai de suas próprias fileiras e se
volta contra ela do que os que sempre se opuseram e não têm credibilidade
alguma junto às suas bases.
[ 84 ] Alain Finkielkraut e Élisabeth de Fontenay, En terrain miné, Paris,
Stock, 2017, p. 37. Leia-se também: Nicolas Truong, “Si j’étais de droite, je le
dirais, mais ce clivage a perdu toute pertinence”, entrevista com Alain
Finkielkraut, Le Monde, 16 de janeiro de 2016. Finkielkraut afirma, no
entanto: “Assinalo que não teria vergonha alguma em me afirmar de direita,
mas a direita e a esquerda aderem ao mesmo movimento de extensão
ilimitada dos direitos, no qual não me reconheço”. Compreende-se, então,
que ele poderia, contudo, reconhecer-se numa direita que fosse
conservadora, algo que ela teria deixado de ser há muito tempo.
[ 85 ] Alain Finkielkraut e Élisabeth de Fontenay, En terrain miné, Paris,
Stock, p. 19-20.
[ 86 ] Raymond Aron, L’opium des intellectuels, Paris, Calmann-Lévy, 1955,
p. 16.
[ 87 ] Idem, Espoir et peur du siècle, Paris, Calmann-Lévy, 1957, p. 14.
[ 88 ] Emmanuel Berl, Essais, Paris, Julliard, 1985, p. 201.
[ 89 ] Alain Finkielkraut e Élisabeth de Fontenay, En terrain miné, Paris,
Stock, 2017, p. 70.
[ 90 ] Marc Crapez, Naissance de la gauche, Paris, Michalon, 1998.
[ 91 ] Marcel Gauchet, “La droite et la gauche”. In: Pierre Nora, Les lieux de
mémoire, tomo 2, Paris, Quarto, Gallimard, 1997, p. 2534.
[ 92 ] Norberto Bobbio, Direita e Esquerda. São Paulo, Editora Unesp, 2012.
[ 93 ] Entre os trabalhos recentes sobre a divisão esquerda-direita, leiam-se
em especial Jean-Louis Harquel, Droite-gauche: ce n’est pas fini, Paris,
Desclée de Brouwer, 2017, e Chantal Delsol, “La droite”, L’Incorrect,
setembro de 2017, p. 42 a 45. Leia-se também Guillaume Bernard, La guerre
à droite aura bien lieu, Paris, Desclée de Brouwer, 2016. Para uma
perspectiva estadunidense da questão, da parte de intelectuais, em sua
maioria, de orientação à direita, consulte-se o artigo especial “What is Left?
What is Right?”, na American Conservative, 28 de agosto de 2006,
(www.theamericanconservative.com).
[ 94 ] René Rémond, Les droites en France, Paris, Aubier, 1992. Consultem-
se também os trabalhos notáveis de Jean-François Sirinelli sobre a história
das direitas na França.
[ 95 ] Albert Thibaudet, Les idées politiques de la France. In: Réflexions sur la
politique, col. Bouquins, Paris, Robert Laffont, 2007, p. 245.

[ 96 ] Stéphane Rials, Révolution et contre-révolution au XIIème, Albatroz,


siècle, P. 49.
[ 97 ] Raymond Aron, L’opium des intellectuels, Paris, Calmann-Lévy, 1955,
p. 16.
[ 98 ] Marc Crapez, Naissance de la gauche, Paris, Michalon, 1998, p. 201.
[ 99 ] A cobertura midiática reservada ao movimento Antifa é um bom
exemplo disso. Embora fosse possível e até imperativo falar de extrema-
esquerda violenta, anarquista, ele é inserido na história gloriosa da luta
contra o fascismo, como se esta prosseguisse nas batalhas de rua mais de
setenta anos depois da queda dos regimes que se afirmaram como tais. Não
é surpresa que o movimento de extrema-direita enfrentado por ele não goze
de idêntico tratamento favorável, mesmo quando se proíbe de recorrer à
violência, por estratégia ou por escolha.
[ 100 ] Isso se vê no tratamento reservado aos “extremos”. A esquerda
radical é geralmente bem-vista: talvez lhe sejam censurados o entusiasmo,
a falta de prudência, a desmedida, mas raramente se contesta a nobreza de
suas intenções: é-lhe atribuído um papel de esclarecimento na descoberta
das dominações por ora invisíveis e na formulação dos novos direitos que
permitirão derrubá-las. Sua missão é explorar o futuro, desenhar-lhe os
primeiros contornos. Mesmo quando ela é violenta, isso poderia ser-lhe
perdoado: é que ela sonha com uma sociedade melhor e se mostra
impaciente em alcançá-la. Já a extrema-direita é acusada de se agarrar por
nostalgia a todas as dominações passadas, de buscar conservar a todo
custo seus privilégios ilegítimos. Não tem, portanto, legitimidade alguma,
como se pode pressupor. Não se define numa relação de reciprocidade com
a extrema-esquerda: encarna antes a figura da abjeção, a parcela do mal
irredutível no cerne da comunidade política.
[ 101 ] Denis Tillinac, “Comment définir la droite?”, Valeurs actuelles, 7 de
junho de 2018, p. 98.
[ 102 ] Denis Tillinac, Le venin de la mélancolie, Paris, La Table Ronde, 2004,
p. 35.
[ 103 ] Sobre o imaginário do movimento na modernidade, leia-se François-
Xavier Bellamy, Demeure, Paris, Grasset, 2018.
[ 104 ] Élisabeth Lévy, em Philippe Muray, Festivus Festivus: conversations
avec Élisabeth Lévy, Paris, Fayard, 2005, p. 169.
[ 105 ] G.K. Chesterton, Les puits et les bas-fonds [no original The Well and
the Shallows], Paris, Desclée de Brouwer, 2016, p. 126.
[ 106 ] Emmanuel Berl, Essais, Paris, Julliard, 1985, p. 203.
[ 107 ] É de grande interesse a leitura de uma entrevista recente com
Jacques Julliard na revista Le Point, como bom exemplo dessa aflição
intelectual. Convidado a comentar sua mudança política por Saïd Mahrane,
que lhe pergunta se ele passou para a direita, Julliard respondeu assim: “se
mudança houve, não foi obra minha. Veio daquela esquerda quase ausente
no povo, para falar a verdade, mas muito presente entre os esquerdistas de
classe média alta. Acho um pouco violento ser obrigado a me justificar por
ter permanecido fiel às minhas ideias. São os islamo-esquerdistas, e não eu,
que se distanciam da esquerda. […] Em todo caso, tenho realmente a
intenção de permanecer fiel aos valores da esquerda e até de defender seu
candidato por ocasião da próxima eleição presidencial”. Diante da pergunta
seguinte sobre o que o aproximaria dos “neorreacionários”, Julliard
responde: “que alguém seja qualificado de neorreacionário por defender
Kamel Daoud, Boualem Sansal e tantos outros, isso me parece
extravagante. […] Que me digam se renunciei às ideias esquerdistas.
Quanto à escola… Você tem noção do motivo pelo qual sou recriminado? Por
defender a escola da República”. Saïd Mahrane, “Jacques Julliard, será que
ele é de direita?”. Le Point, 26 de maio de 2016, p. 91-95. Alain Finkielkraut
dirá, nessa mesma perspectiva: “é por ser de esquerda que deixei de sê-lo”.
Alain Finkielkraut, “C’est parce que je suis de gauche que je ne suis plus de
gauche”. Causeur, outubro de 2017. Em outra passagem, ele definirá assim
sua relação com a esquerda: “a esquerda, para mim, é primeiramente a
promessa de abrir para a maioria o tesouro das ciências humanas e a
herança da nobreza do mundo. Ora, o que faz a esquerda atual? No
momento em que a direita gerencial abandona essa herança em nome da
utilidade e da adaptação ao mundo vindouro, a esquerda a substitui pelo
catecismo antirracista e, à guisa de igualdade, fixa-se na mediocridade de
todos como objetivo supremo”. Alain Finkielkraut, La seule exactitude, Paris,
Stock, 2015, p. 270.
[ 108 ] Como exemplo dessa demonização por parte da esquerda, leia-se
Joan W. Scott, La religion de la laïcité, Paris, Climats, 2018.
[ 109 ] Raymond Aron, Espoir et peur du siècle, Paris, Calmann-Lévy, 1957,
p. 14-15.
[ 110 ] Marc Crapez, Éloge de la pensée de droite, Paris, Jean-Cyrille
Godefroy, 2016.
[ 111 ] Quanto a essa questão, consulte-se George H. Nash, The
Conservative Intellectual Movement in America, Wilmington, ISI, 1996;
George H. Nash, Reappraising the Right, ISI, Welmington, 2009; Gary
Dorrien, The Neoconservative Mind. Philadelphia, Temple University Press,
1993.
[ 112 ] Essa forma de imperialismo democrático que pretende implantar em
todos os lugares do mundo os princípios originários da experiência
estadunidense repousava numa fascinante negação das culturas, como se
estas últimas se resumissem a um folclore e a alguns costumes rituais
passíveis de serem exclusivamente privados, o que corresponde, aliás, à
maneira como os Estados Unidos neutralizaram a diversidade interna. No
entanto, as culturas não podem ser reduzidas a estoques de costumes
insignificantes: elas são politicamente fundadoras.
[ 113 ] AFP, “Le discours anti-immigrants n’est pas américain”, Publicado no
La Presse (www.lapresse.ca) em 14 de setembro de 2015:
https://www.lapresse.ca/international/etats-unis/201509/14/01-4900476-
obama-le-discours-anti-immigrants-nest-pasamericain.php”. Quanto à
transformação da identidade estadunidense, leia-se Samuel Huntington,
Who Are We? The Challenges to America’s National Identity, New York,
Simon & Schuster, 2004. O neoconservadorismo de segunda geração levará
essa tese ainda mais longe e pretenderá globalizar a experiência
democrática, se necessário exportando-a militarmente, como se viu por
ocasião da invasão do Iraque em 2003.
[ 114 ] François Héran, Migrations et sociétés, Paris, Collège de
France/Fayard, 2018, p. 74.
[ 115 ] Hervé Le Bras, Malaise dans l’identité, Paris, Acte Sud, 2017, p. 94.
[ 116 ] Mathieu Bock-Côté, La dénationalisation tranquille, Montreal, Boréal,
2007.
[ 117 ] Arthur Koestler, Le yogi et le commissaire, Paris, Calmann-Lévy,
1954, p. 136.
[ 118 ] Pascal Bruckner, Un bon fils, Paris, Grasset, p. 136.
[ 119 ] A título de exemplo, Jean Birnbaum, Un silence religieux: la gauche
face au djihadisme, Paris, Seuil, 2016. No Reino Unido, lembramos que Tony
Blair, no momento em que se distanciou do multiculturalismo, após os
atentados de 2005, sentiu a necessidade de cantar seus louvores,
celebrando suas virtudes que transformaram o país. O multiculturalismo não
havia desestruturado o país, apenas fora longe demais.
[ 120 ] Foi o que se compreendeu com o lançamento de Inch’Allah, de
Gérard Davet e Fabrice L’homme. Os dois repórteres do Le Monde
descobriram, depois de todo o mundo, a islamização da região de Seine-
Saint-Denis e, a partir daí, era preciso levar essa preocupação a sério. No
microfone de Léa Salamé, Gérard Davet diz assim: “nós não somos
Zemmour, apenas relatamos fatos”. Quanto a essa questão, consulte-se o
número de novembro de 2018 da revista mensal Causeur. Nessa mesma
perspectiva, quando Emmanuel Macron se recusou a condenar a noção de
“submersão migratória”, o furor midiático foi bem morno. Zoé Lastennet,
“Macron sur BFMTV et Mediapart: les 8 annonces à retenir”, Le Journal du
dimanche, 15 de abril de 2018. O mesmo ocorreu em menor escala, desta
vez, quando Olivier Faure se preocupou com uma “colonização às avessas”;
sua observação suscitou uma reação mínima, sem causar demasiado
escândalo. Loris Boichot, “Immigration: Faure (PS) évoque le sentiment
d’une ‘colonisation à l’envers’ dans certains quartiers”, Le Figaro, 26 de
outubro de 2018.
[ 121 ] Marco Fortier, “Mise en garde d’un homme de gauche contra la
censure qu’exerce la gauche”, Le Devoir, 31 de janeiro de 2019.
[ 122 ] Alain-Gérard Slama, “Portrait de l’homme de droite”. In: Jean-François
Sirinelli (dir.), Histoire des droites en France, tomo 3, Paris, Gallimard, 1992,
p. 807.
[ 123 ] Um bom exemplo dessa tentação pode ser encontrado em Maël de
Calan, La tentation populiste, Paris, Éditions de l’Observatoire, 2018.
[ 124 ] Matthieu Goar e Olivier Faye, “Aux ‘ateliers de la refondation’ des
Républicains, la droite dure a la parole”, Le Monde, 4 de setembro de 2017.
[ 125 ] Matthieu Goar e Olivier Faye, “Sens commun, l’encombrant ami des
Républicains”, Le Monde, 14 de outubro de 2017.
[ 126 ] Guillaume Perrault, “Fillon appelé à comparaître au tribunal de la
gauche”, Le Figaro, 24 de novembro de 2016.
[ 127 ] Para um exemplo desse tipo de interpretação, Ariane Chemin e
Vanessa Schneider, Le mauvais génie, Paris, Fayard, 2015.
[ 128 ] Joshua Green, Devil’s Bargain, Nova York, Penguin Press, 2017.
Consulte-se também Laure Mandeville, “Steve Bannon est-il le Dark Vador
de la politique américaine?”, Le Figaro, 15 de setembro de 2017.
[ 129 ] Vincent Marissal, “Le choc, la charge, la charte”, La Presse, 31 de
março de 2014.
[ 130 ] Vimos também o presidente encontrar as palavras certas por ocasião
da morte de Johnny Halliday e de Jean d’Ormesson, quando foi capaz de
corporificar, por meio deles, a questão da identidade francesa. Não se trata
de dizer, evidentemente, que esses dois discursos foram de direita, o que
seria redutor e tolo, mas sim que tocaram, por razões nobres, aliás, a
sensibilidade cultural da França popular e da França conservadora,
dissociando-se dos códigos da modernidade obrigatória que em geral
estruturam a fala política e não raro sufocam as aspirações nobres,
aspirações estas que, no entanto, têm a vocação de se expressar na
comunidade política. Da mesma maneira, por ocasião do falecimento de
Arnaud Beltrame, Emmanuel Macron soube restituir a parte sagrada da
nação. De certa forma, ele sabe dirigir-se à França como nação literária, a
qual se sentia privada, já há alguns anos, de um presidente que soubesse
encarnar essa parte da função.
[ 131 ] Bobo: aglutinação abreviada das palavras “bourgeois bohème”
(burguês boêmio), termo pejorativo que designa uma pessoa de classe
média alta, geralmente jovem, que cultiva ideias esquerdistas e vagamente
ecologistas. (N. T.)
[ 132 ] A título de exemplo, leia-se “L’appel des quatre mousquetaires pour
sauver la droite”. Valeurs actuelles, 26 de junho de 2014.
[ 133 ] Assim, sucessivamente, Nicolas Sarkozy, François Fillon e Laurent
Wauquiez foram associados ao grupo da direita descomplexada. AFP,
“Cambadélis: Sarkozy est entre la droite décomplexée et l’extrême-droite”,
Le Point, 27 de agosto de 2016; Carole Barjon, “François Fillon: la vraie droite
décomplexée, c’est lui”, L’Obs, 24 de novembro de 2016; Alexandre Lemarié
e Matthieu Goar, “Comment Laurent Wauquiez est devenu le chantre de la
droite décomplexée”, Le Monde, 11 de setembro de 2017. Jean-François
Copé, por sua vez, chegará a compor um manifesto, em que defenderá
“uma direita republicana, moderna, liberada do politicamente correto, essa
ordem estabelecida pela esquerda convencional para garantir sua
dominação. Em suma, uma direita descomplexada”. Jean-François Copé,
Manifeste pour une droite décomplexée, Paris, Fayard, 2012.
[ 134 ] Jérôme Sgard, “Nicolas Sarkozy, lecteur de Gramsci. La tentation
hégémonique du nouveau pouvoir”, Esprit, julho de 2007.
[ 135 ] Na escala da história, seria possível dizer que o progressismo oscila
entre duas interpretações: algumas veem no fascismo um conservadorismo
radicalizado, outras veem no conservadorismo um fascismo com arreios.
[ 136 ] Patrick Buisson, La cause du peuple, Paris, Perrin, 2016, p. 158.
[ 137 ] Philippe Muray, Festivus Festivus: conversations avec Élisabeth Lévy,
Paris, Fayard, 2005, p. 168.
[ 138 ] Alain Finkielkraut, La seule exactitude, Paris, Stock, 2015, p. 95.
[ 139 ] Raymond Aron, com sua admirável lucidez, escreveu, em meados
dos anos 1950: “Um reflexo de antifascismo aproxima as esquerdas, um
reflexo de defesa social, as direitas”. Raymond Aron, Espoir et peur du
siècle, Paris, Calmann-Lévy, 1957, p. 13. Em outras palavras, a esquerda se
mobilizaria ardentemente contra o mal a ser vencido, a direita se mobilizaria
para defender seus interesses ameaçados.
[ 140 ] Christiane Taubira: “La gauche risque de disparaître, et pour un
moment”, Libération, 11 de setembro de 2016.
[ 141 ] Carolin Emke, Contre la haine, Paris, Seuil, 2016.
[ 142 ] Jacques Julliard, Les gauches françaises, Paris, Flammarion, 2012, p.
857-858.
[ 143 ] Leszek Kolakowski, Comment être socialiste+conservateur+libéral,
Paris, Belles Lettres, 2017.
[ 144 ] Marc Crapez, Naissance de la gauche, Paris, Michalon, 199, p. 215.
[ 145 ] Arthur Berdah, “Migrants: Macron défend ses choix et fustige la
‘lèpre’ populiste en Europe”, Le Figaro, 22 de junho de 2018.
[ 146 ] Pierre-André Taguieff, Le nouveau national-populisme, Paris, CNRS,
2012, p. 17. Philippe Raynaud dirá, ele também, sobre as correntes
populistas, “que representam algo além de um simples renascimento dos
antigos extremismos”. Philippe Raynaud, Emmanuel Macron: une révolution
bien temperée, Paris, Desclée de Brouwer, 2018, p. 91.
[ 147 ] A história intelectual do século XX assim reduziu a questão do regime
ao enfrentamento entre democracia e totalitarismo, enquanto,
historicamente, ela era muito mais complexa.
[ 148 ] Quanto a essa questão, consulte-se T.W. Adorno, The Autoritarian
Personality, Nova York, Harper & Brothers, 1950.
[ 149 ] Jean Sévillia, Le terrorisme intellectuel, Paris, Perrin, 2004, p. 192.
[ 150 ] A maneira como as mídias francesa e europeia cobriram as eleições
quebequenses de 1º de outubro de 2018 dá um ótimo exemplo dos limites
de uma assimilação global ao populismo de tudo o que não é progressista. O
Coalition Avenir Québec, um partido autonomista de centro-direita, de um
nacionalismo moderado, foi apresentado como um partido populista, a ser
classificado na mesma categoria que os partidos qualificados como extrema-
direita na Europa ocidental.
[ 151 ] Nem todos os partidos populistas, aliás, são herdeiros dos partidos
históricos de extrema-direita.
[ 152 ] Para reencontrar uma série de estudos realizados por politólogos
progressistas que se preocupam com o surto populista, leia-se: Heinrich
Geisel-Berger (dir.), L’âge de la régression, Paris, Premier Parallèle, 2017.
[ 153 ] Esse ciclo político consagrado à questão social não poderia deixar de
favorecer, ao menos por um tempo, Jean-Luc Mélenchon, que soube tirar
proveito da aniquilação do Partido Socialista para reconferir certo vigor à
radicalidade ideológica, ao usar em proveito próprio uma função
demagógica que o Front National já não conseguia desempenhar, tendo sua
presidente fracassado, por outro lado, em credibilizar seu grupo partidário
como um grupo de governo. É preciso dizer que esse papel convém
particularmente bem à personalidade do chefe do partido La France
Insoumise. O discurso mélenchonista, que impele à revolta social, repousa
em declarações incendiárias que acabam quase inevitavelmente pondo em
causa a legitimidade de Emmanuel Macron, uma postura que já transparecia
no período intermediário entre os dois turnos, quando o líder do partido La
France Insoumise se havia recusado a reconhecer a validade da escolha
entre os candidatos que lá se encontravam. Mélenchon, à sua maneira,
desvalorizava então a eleição presidencial, que produzira tão somente uma
falsa alternativa política, descaracterizando a vontade popular, da qual ele
se considerava, manifestamente, o único intérprete. Justificava de antemão
uma prática política que o levaria a querer sair, ao menos retoricamente,
dos parâmetros da legitimidade republicana. Isso foi o que se viu em maio
de 2018: ao tentar impelir o maior número possível de franceses para as
ruas, a fim de que se desdobrasse uma “maré popular”, foi o resultado das
urnas que a esquerda radical quis invalidar ou, ao menos, desqualificar,
como se o povo em luta desqualificasse o povo eleitoral. Quanto a essa
questão: Jean-Luc Mélenchon, “Un peu de bienveillance, est-ce possible?”,
Libération, 26 a 27 de maio de 2018, p. 3-7. O populismo de esquerda
teorizado por Chantal Mouffe serve aqui de contexto intelectual para
justificar uma retórica insurrecional. Tampouco se pode excluir a hipótese de
que uma grande parcela do sistema midiático tenha se regozijado com esse
retorno à questão social, eclipsada havia alguns anos pela questão
identitária, globalmente mal vista por um grupo de comentaristas que
aderem com espantosa obstinação à fantasia da convivência e se recusam a
ver na insegurança cultural algo além de um medo mórbido, cultivado por
certos ideólogos que cultivam cinicamente tais preocupações. É quase
inevitável que esses desafios, quando retornam ao centro do jogo político,
favoreçam a direita, quando esta quer se apoderar deles, ou a direita
populista, quando esta é capaz de apoderar-se deles. Macron e Mélenchon,
em tais circunstâncias, escolheram-se mutuamente. Entre o liberal
globalizado e o populista de esquerda enraivecido, a celeuma era bela
demais para não ser encampada. Poderia até ser traduzida nas categorias
próprias da cultura política francesa: Macron seria o liberal orleanista,
Mélenchon, o jacobino insurgente. Cada qual seria belo em seu respectivo
papel.
[ 154 ] Heinrich Geiselberger, “Préface” in: Heinrich Geiselberger (dir.), L’âge
de la régression, Paris, Premier Parallèle, 2017, p. 8-9.
[ 155 ] Ibidem, p. 10.
[ 156 ] Ibidem, p. 13.
[ 157 ] Ibidem, p. 17.
[ 158 ] Natacha Tatu, “Éloge du politiquemente correct”, L’Obs, 1º de
novembro de 2018, p. 5.
[ 159 ] Raphaël Liogier, “Populisme liquide dans les démocraties
occidentales” in: Bertrand Badie e Dominique Vidal (dir.), Le retour des
populismes, Paris, La Découverte, 2018, p. 39-48. Também: Caroline Emke,
Contre la haine, Paris, Seuil, 2018.
[ 160 ] Jérôme Fourquet, Le nouveau clivage, Paris, Éd. du Cerf, 2018. Nessa
mesma perspectiva, consultem-se os trabalhos de Christophe Guilluy.
[ 161 ] “Élections provinciales: l’échec des sondages électoraux”, Radio
Canada, 2 de outubro de 2018.
[ 162 ] Dominique Reynié relembrou, em seu estudo do populismo, a
necessidade de evitar toda forma de reducionismo econômico ou
materialista na análise da demanda política. Seria preciso levar igualmente
em conta a dimensão patrimonial da política. Dominique Reynié, Populisme:
la pente fatale, Paris, Plon, 2011.
[ 163 ] Vincent Coussedière, Éloge du populisme, Paris, Élya, 2012.
[ 164 ] Patrick Boucheron, “Ouverture” in: Patrick Boucheron (dir.), Histoire
mondiale de la France, Paris, Seuil, 2017, p. 7. Não deveria nos surpreender
que o ouvíssemos criticar a política migratória de Emmanuel Macron
sustentando que: “a triagem entre os migrantes econômicos e os
solicitantes de asilo é imoral”, antes de acrescentar que “os migrantes serão
cada vez mais numerosos, devemos acolhê-los, é um dever e é uma
oportunidade”. De fato, ainda de acordo com Boucheron, “o país seria mais
forte se fosse mais livre e mais aberto, se soltasse as amarras do velho
mundo, se deixasse de se comprazer em seus rancores requentados”.
Patrick Boucheron, “Jamais le gouvernement actuel n’a été aussi loin dans le
mépris des droits humains”, L’Obs, 11 de janeiro de 2018.
[ 165 ] Mathieu Bock-Côté, “L’idéologie canadienne de Justin Trudeau”, Le
Journal de Montréal, 21 de dezembro de 2015.
[ 166 ] Éric Dupin, La France identitaire, Paris, La Découverte, 2017.
[ 167 ] Arjun Appadurai assimilará essa reafirmação identitária a uma busca
da “soberania cultural”, que se desdobraria por meio de “narrativas
destinadas às camadas da população, por vezes majoritárias, às voltas com
o ressentimento. Essas narrativas são centradas em torno da ideia de vitória
racial, de pureza étnica nacional e também de grandeza nacional. […] Esse
substrato cultural comum dissimula profundas contradições, como as que
resultam do hiato entre as políticas econômicas neoliberais da maioria
desses líderes […]. Temos aí o terreno de uma nova política de exclusão,
cujos alvos são os migrantes, ou as minorias étnicas, ou ambos”. Arjun
Appadurai, “Une fatigue de la démocratie” in: Heinrich Geiselberger (dir.),
L’âge de la régression, Paris, Premier Parallèle, 2017, p. 28-29.
[ 168 ] Tivemos um exemplo no Quebec em 2008, enquanto ele era
permeado por aquilo a que se chamou a crise dos acordos razoáveis. Para
compreender a crise e encontrar uma resposta adequada para ela, dois
intelectuais de destaque, Gérard Bouchard e Charles Taylor, foram
chamados para dirigir uma comissão que circularia pelo Quebec a fim de
esclarecer as populações consideradas recalcitrantes em relação à
diversidade. No momento de publicar o relatório, a interpretação dominante
não deixava margem a dúvida: se havia crise, era fruto essencialmente das
expectativas exageradas em matéria de integração por parte do povo
quebequense, que seria alérgico à diferença e exigiria uma forma de
privilégio simbólico na composição da identidade nacional. Para combater
essa tentação hegemônica, seria necessário reeducar a população,
sensibilizando-a para as vantagens da diversidade, impondo-lhe um novo
paradigma político em que a dissolução da identidade nacional será
estabelecida como nova representação do progresso. Mathieu Bock-Côté, “À
défaut de convaincre le peuple, en fabriquer un nouveau”, L’Action
nationale, setembro de 2008.
[ 169 ] Carolin Emke, Contre la haine, Paris, Seuil, 2017, p. 122.
[ 170 ] Pierre Rosanvallon, Le peuple introuvable, Paris, Gallimard, 1998;
Pierre Rosanvallon, La légitimité démocratique, Paris, Seuil, 2008; Pierre
Rosanvallon, Notre histoire intellectuelle et politique, Paris, Seuil, 2018.
[ 171 ] Yascha Mounk, Le peuple contre la démocratie, Paris, Éditions de
l’Observatoire, 2018, p. 231.
[ 172 ] Chantal Mouffe e Inigo Errejon, Construire un peuple, Paris, Éd. du
Cerf, 2017. A teoria da democracia radical pretende concretizar-se hoje por
meio do populismo de esquerda. O populismo de esquerda dispõe
geralmente de um tratamento midiático menos caricato, na medida em que
pretenderia definir o povo como um puro demos, sem substrato histórico
particular, sem núcleo identitário distintivo. Assim concebido, extraído da
história e desencarnado, o povo voltaria a ser uma categoria legítima, capaz
de agregar todos os que pretendem situar-se sob sua referência.
[ 173 ] Jan-Werner Müller, Qu’est-ce que le populisme?, Paris, Gallimard,
2016. p. 168.
[ 174 ] Jan-Werner Müller, Qu’est-ce que le populisme?, Paris, Gallimard,
2016. p. 168.
[ 175 ] Jurgen Habermas, que não esconde sua admiração por Emmanuel
Macron. Jurgen Habermas, “Ce fascinant Monsieur Macron”, L’Obs, 25 de
outubro de 2017.
[ 176 ] Sem nos demorarmos nisso, notemos aqui, porém, que a filosofia
política moderna tampouco é alheia à questão da identidade do povo, de
sua caracterização: em outras palavras, de sua singularidade. Ela não
escapou a Rousseau em suas Considerações sobre o governo da Polônia. “Se
não conhecermos a fundo a Nação para a qual trabalhamos, a obra que
faremos por ela, por mais excelente que possa ser em si mesma, sempre
pecará pela aplicação, e mais ainda quando se tratar de uma nação já toda
instituída, cujos gostos, costumes, preconceitos e vícios são demasiado
enraizados para poderem ser facilmente sufocados por sementes novas.
Uma boa instituição para a Polônia só pode ser obra dos poloneses ou de
alguém que tenha estudado bem, no local, a nação polonesa e as que lhe
são vizinhas.” Jean-Jacques ROUSSEAU, Considérations sur le gouvernement
de Pologne, in: Du contrat social et autres écrits politiques, Paris, col.
Pléiade, 1964, p. 953.
[ 177 ] Marc Crapez, Défense du bon sens, Monaco, Éditions du Rocher,
2004.
[ 178 ] David Goodhart, The Road to Somewhere, Penguin Books, 2017.
[ 179 ] Frédérick Gagnon, citado em Guillaume Bourgault-Côté, “Une leçon
électorale pour les experts”, Le Devoir, 9 de novembro de 2016. Um
argumento que frequentemente se ouviu sobre a derrota de Hillary Clinton
foi este: “a sociedade estadunidense não está pronta para uma mulher
presidente”, o que significa que ela teria vencido naturalmente se o sistema
patriarcal não a houvesse entravado. Em outras palavras, a estrutura social
profunda dos Estados Unidos seria ainda fundamentalmente desigual e
hostil à emancipação feminina em suas consequências políticas.
[ 180 ] Marie Lemonnier, “La revanche de l’homme blanc: entretien avec
Sylvie Laurent”, L’Obs, 17 de novembro de 2016, p. 62-63.
[ 181 ] Éric Fottorino, “Lutter, résister, combattre”, Le 1 hebdo, 19 décembre
2018.
[ 182 ] François-Bernard Huygue, Fake News: la grande peur, Paris, VA
éditions, 2018, p. 23.
[ 183 ] Guillaume Bourgault-Côté, “Une leçon électorale pour les experts”,
Le Devoir, 9 de novembro de 2016.
[ 184 ] Ben Jacob, “Hillary Clinton regrets ‘basket of deplorables’ remark as
Trump attacks”, The Guardian, 11 de setembro de 2016.
[ 185 ] Guy Sorman, “La revanche du mâle blanc”, Le Monde, 11 de
novembro de 2016. Essa é também a tese que Guy Sorman defenderá
explicitamente depois das eleições de meados de mandato. “Aquilo a que
chamamos populismo ou ainda o nacionalismo étnico não é um movimento
ideológico, mas uma reação tribal. As recentes eleições nos Estados Unidos
o demonstram amplamente. Donald Trump e, de modo geral, os candidatos
republicanos que afirmam sua adesão a ele só obtiveram votos dos brancos
nas zonas eleitorais brancas. […] Os estadunidenses votam, hoje, ou pelos
brancos ou pelos democratas; o Partido Republicano se tornou,
predominantemente, em seu cerne, o partido dos brancos, e o Partido
Democrata, uma grande tenda que abriga todos os partidários da sociedade
aberta e do progressismo, da direita liberal à esquerda socialista. Sob essa
tenda se refugiaram os Estados Unidos de amanhã: as candidaturas
femininas oriundas da diversidade – índias, muçulmanas, negras – são todas
democratas. […] Não resta dúvida, os brancos trumpistas (nem todos os
brancos são pró-Trump, mas todos os partidários de Trump são brancos) se
percebem como uma comunidade sitiada: diante da diversidade étnica
crescente de seu país, da globalização econômica e da mudança radical dos
costumes, adotam reflexos tribais de autodefesa. Trump joga, no fundo, com
esse sentimento de insegurança; explora-o e, além disso, agrava-o. Suas
agressões vociferadas contra os imigrantes ecoam o temor por parte dos
brancos de perder sua antiga dominação sobre a sociedade estadunidense.”
Guy Sorman, “Midterms: le crépuscule de Donald Trump”, Le Point, 8 de
novembro de 2018.
[ 186 ] Guy Sorman, “La revanche du mâle blanc”, Le Monde, 11 de
novembro de 2016.
[ 187 ] Alguns levarão o raciocínio mais longe: para isso é necessário,
justamente, acelerar a transformação demográfica das sociedades
ocidentais, a fim de acabar com o núcleo que resiste à transição diversitária;
Daniel Weinstock chegou a postular, tendo em mente a esperança de
consumar a conversão do Quebec ao multiculturalismo, que “quando
Montreal tiver uma porcentagem tão elevada de imigrantes quanto Toronto,
essas perguntas já não serão formuladas com tanta acuidade. E menos
ainda quando se constatar que não é possível prescindir, por exemplo, de
uma enfermeira, com ou sem hijab”. Citado em Louise Leduc, “Les
Québecois restent opposés aux accommodements”, La Presse, 27 de
outubro de 2009. Em vez de ter de convencer uma população
manifestamente crítica do multiculturalismo, o que se prefere, portanto, é
uma solução demográfica que neutralize a pretensão da maioria histórica de
se constituir como norma identitária para a sociedade quebequense. A
imigração maciça se apresenta, por conseguinte, como um método
privilegiado para neutralizar o substrato demográfico do Quebec histórico. O
Canadá apresentará isso com ambição ainda maior, anunciando seu desejo
de chegar a 100 milhões de cidadãos no fim do século, o que
corresponderia, para fins práticos, à submersão do fato francês em uma
população nova, que olharia para ele como se olha para um resíduo
identitário insignificante, chamado a apagar-se na lógica do novo mundo.
Andy Blatchford, “Objectif: 100 millions de Canadiens d’ici 2100”, La Presse,
23 de outubro de 2016.
[ 188 ] Jacques Attali, “Sanctuariser le progrès”, 20 de junho de 2016
(www.attali.com).
[ 189 ] Anne-Marie Le Pourhiet, “Juges partout, démocratie nulle part”,
Causeur, nº 3, 3 de junho de 2013, p. 45-46.
[ 190 ] Jean-Louis Harouel, Les droits de l’homme contre le peuple, Paris,
Desclée de Brouwer, 2016.
[ 191 ] Esse defeito de fabricação do novo regime foi reconhecido por
Antonio Lamer, antigo juiz principal da suprema corte do Canadá, quando
analisou as origens, na história política canadense, da oscilação da
soberania parlamentar, a partir de 1982, para o governo dos juízes. Pondo-
se na pele de Pierre Elliot Trudeau, o primeiro-ministro da época, afirmou:
“depois de um debate profundo junto à população, em que se lhe explicasse
o alcance de uma Carta assim e a mudança no equilíbrio de poderes que
existiam até então; talvez eu tivesse até realizado um referendo sobre o
assunto. Eu mesmo teria votado no referendo, mas se a maioria dos
canadenses tivesse votado contra, eu me teria dobrado aos desejos da
maioria. Se eu estivesse no lugar do Sr. Trudeau naquela época, teria
procedido a uma grande consulta pública”. Antonio Lamer, em Alain-Robert
Nadeau, “Trudeau aurait dû consulter la population, dit Lamer”. Le Devoir,
11 de janeiro de 2000. Em outras palavras, Antonio Lamer reconhecia
claramente que uma mudança de regime havia ocorrido com a refundação
constitucional de 1982, mas que tal mudança jamais havia sido aprovada
pelo povo. Pode-se levar a reflexão mais longe do que ele teria desejado e
considerar que a legitimidade do regime diversitário é muito relativa, e que
é legítimo, de uma maneira ou de outra, trabalhar para reconstruir a
soberania parlamentar, bem como a soberania popular. Em outras palavras,
o Estado de direito tal como se apresenta, como um ponto de consumação
histórica absolutamente admirável, não goza da legitimidade do direito
divino, mas resulta de uma escolha política, à qual se pode preferir outra
escolha política.
[ 192 ] François Héran, Migrations et sociétés, Paris, Collège de
France/Fayard, 2018.
[ 193 ] Yascha Mounk, Le peuple contre la démocratie, Paris, Éditions de
l’Observatoire, 2018.
[ 194 ] Ivan Krastev, “Le retour des régimes majoritaires” in: Heinrich
Geiselberger (dir.), L’âge de la régression, Paris, Premier Parallèle, 2017, p.
97.
[ 195 ] Vale a pena notar, ainda assim, que o surgimento do trumpismo é
indissociável de uma reintegração na vida política de um nacionalismo
econômica e culturalmente protecionista, que fora excluído da vida política
estadunidense desde a expulsão de Patrick J. Buchanan da coalizão
conservadora. Compreende-se melhor o trumpismo reinserindo-o na longa
história do conservadorismo estadunidense.
[ 196 ] Simon-Pierre Savard-Tremblay, Despotisme sans-frontières, Montreal,
VLB, 2018.
[ 197 ] “Hollande propose de supprimer le mot ‘race’ dans la Constitution”,
Le Monde, 11 de março de 2011, consultado em 1º de agosto de 2018 no
site lemonde.fr.
[ 198 ] Sophie de Ravinel, “Retrait du mot ‘race’ de la Constitution: quinze
années de revendications”, Le Figaro, 27 de junho de 2018.
[ 199 ] Daniel Martin, “Suppression du mot race de la constitution: enfin!”,
Médiapart, 28 de junho de 2018.
[ 200 ] Pascal Bruckner, Le sanglot de l’homme blanc, Paris, Seuil, 1983;
Pascal Bruckner, La tyrannie de la pénitence, Paris, Grasset, 2006.
[ 201 ] “Pendant des décennies, nos reportages étaient racistes. Pour nous
en détacher, il nous faut le reconnaître”, National Geographic, março de
2018.
[ 202 ] Stephen Smith, La ruée vers l’Europe, Paris, Grasset, 2018.
[ 203 ] Cf. Réconciliation avec les Peuples autochtones : La Ville de Montréal
célèbre le 10e anniversaire de la Déclaration des Nations Unies sur les droits
des Peuples autochtones, [Reconciliação com os povos autóctones: a cidade
de Montreal celebra o 10º aniversário da Declaração das Nações Unidas
sobre os direitos dos povos autóctones], 13 de setembro de 2017
(www.ville.montreal.qc.ca).
[ 204 ] Agence France Presse, “Une université américaine va recouvrir des
fresques dépeignant Christophe Colomb”, Le Figaro, 24 de janeiro de 2019.
[ 205 ] Desde o fim dos anos 1980, Julien Freund havia antecipado à sua
maneira esse ressurgimento, preocupando-se com as consequências
políticas e ideológicas de uma generalização do fenômeno de diáspora
acarretado pela imigração maciça. “É um fenômeno mundial e ninguém
reflete a respeito. Se ainda existe uma multiplicação das diásporas, a
estabilidade das sociedades pode ser posta em causa. Será que evoluirão
para a integração na segunda geração ou para um integrismo religioso, a
fim de preservar sua identidade?” Seria possível acrescentar, nesse espírito,
que a reivindicação de uma identidade racial em certas populações oriundas
da imigração se relaciona, como o integrismo, a uma forma de reflexo de
conservação identitária que demonstra uma recusa da integração. Julien
Freund, L’aventure du politique, Paris, Critérion, 1991, p. 60.
[ 206 ] Pierre-André Taguieff, Race: um mot de trop?, Paris, CNRS, 2018.
[ 207 ] Immanuel Wallerstein e Étienne Balibar, Race, nation, classe, Paris,
La Découverte, 2007.
[ 208 ] Permito-me aqui uma remissão à minha obra Le multiculturalisme
comme religion politique, Paris, Éd. du Cerf, 2016 [Edição brasileira: O
multiculturalismo como religião política, São Paulo, É Realizações, 2019].
[ 209 ] Franz Durupt, “À l’EHESS, réflexions sur la question blanche”,
Libération, 8 de julho de 2018.

[ 210 ] François Furet, Penser le XXe siècle, Paris, Robert Laffont, 2007, p.
480.
[ 211 ] Jean-François Revel, Fin du siècle des ombres, Paris, Fayard, 1999, p.
392-93.
[ 212 ] Reni Eddo-Lodge, Le racisme est un problème de Blancs, Paris,
Autrement, 2018, p. 161.
[ 213 ] Reni Eddo-Lodge, Le racisme est un problème de Blancs, Paris,
Autrement, 2018, p. 11.
[ 214 ] Algumas obras representam bem essa tendência: Sadri Khiari, Pour
une politique de la racaille, Paris, Textuel, 2006; Houria Bouteldja, Les
Blancs, Les Juifs et nous, Paris, La Fabrique, 2016.
[ 215 ] Imagina-se a reação da velha direita racialista, desaparecida do
mapa político e obrigada a retrair-se nas margens da vida social e política,
que jamais havia duvidado da persistência do fator racial e se desolava com
o fato de já não ser possível mencioná-lo: ela verá aí um retorno do
recalcado, e mesmo um retorno do real. A filosofia política ocidental quis
desconstruir politicamente toda referência possível à raça: redescobrimos, e
nos perguntamos por que isso causaria surpresa, que quanto mais os
pertencimentos históricos são liquefeitos, mais os pertencimentos primitivos
vêm à tona.
[ 216 ] Solange Bied-Chareton, “Rokhaya Diallo et les aventuriers de la race
perdue”, Valeurs actuelles, 30 de julho de 2018,
(www.valeursactuelles.com).
[ 217 ] Ta-Nehisi Coates, Un colère noire, Paris, Autrement, 2017.
[ 218 ] Idem, Le procès de l’Amérique, Paris, Autrement, 2017. Para uma
breve história do conceito de privilégio branco, leia-se William Ray,
“‘Privilège blanc’: ce qui se cache derrière ce slogan”, Le Point, 30 de
setembro de 2018.
[ 219 ] Bari Weiss, “When the Left Turns on Its Own”, New York Times, 1º de
junho de 2017.
[ 220 ] “Les ateliers ‘en non-mixité raciale’ du syndicat SUD-Education 93
créent une polémique”, Le Monde, 21 de novembro de 2017.
[ 221 ] Véronique Chagnon, “Se libérer sans vous, se libérer de vous”, Le
Devoir, 5 de dezembro de 2015.
[ 222 ] Sophie Chartier, “À nous notre lutte”, Le Devoir, 5 de dezembro de
2015; Patricia Hill Collins, La pensée feministe noire, Montreal, Éditions du
Remue-Menage, 2016.
[ 223 ] Régis Debray, À demain de Gaulle, Paris, Gallimard, 1990, p. 64.
[ 224 ] Para um exemplo dessa reescrita fantasística da história em contexto
canadense, leia-se Robyn Mayard, Noires sans surveillance, Montreal,
Mémoire d’encrier, 2018.
[ 225 ] Robin Di Angelo, White Fragility: Why It’s So Hard for White People to
Talk About Racism, Beacon Press, 2018. Uma associação antirracista
quebequense proporá a seguinte definição: “Estado emocional intenso em
que se encontram as pessoas brancas quando uma pessoa racizada critica
alguns de seus comportamentos julgados racistas. Esse estado se
caracteriza por reações vivas, defensivas, até violentas. Isso se traduz em
emoções como medo, raiva, sentimento de culpa ou comportamentos como
argumentar, minimizar ou interromper a conversa. É próprio dessas
interações ressaltar os sentimentos negativos provocados pela crítica, e não
a experiência vivida de racismo”. Alexandra Pierre, “Mots choisis pour
réfléchir au racisme et à l’antiracisme”, Droits et libertés, outono de 2016, p.
15.
[ 226 ] Gilles-William Goldnadel, “Face au racisme antiblanc, le ‘déni
aveugle’ des médias”, FigaroVox, 1º de outubro de 2018.
[ 227 ] Reni Eddo-Lodge, Le racisme est une affaire de blancs, Paris,
Autrement, 2018.
[ 228 ] Elsa Mourgue, “Le racisme antiblanc existe-t-il? Entretien avec Éric
Fassin”, France Culture, 10 de outubro de 2018.
[ 229 ] Éric Fassin, citado em Elsa Mourgue, “Le racisme antiblanc existe-t-il?
Entretiens avec Éric Fassin”, France culture, 10 de outubro de 2018.
[ 230 ] William Voegeli, “Racism, Revised”, Claremont Review of Books, Fall,
2008.
[ 231 ] “Le ‘décolonialisme’, une stratégie hégémonique: l’appel de 80
intellectuels”, Le Point, 4 de dezembro de 2018, (www.lepoint.fr).
[ 232 ] Vale a pena citar também o caso de Louis-Jean Cormier, certamente
um dos cantores quebequenses mais talentosos, que teve de desculpar-se,
depois de se haver declarado desfavorável à paridade homens-mulheres no
mundo da música, porque não queria escolher seus técnicos com base no
sexo, mas na competência. Por isso, foi alvo de uma tempestade midiática
da qual tentou sair formulando pedidos públicos de desculpas que
relembraram as horas mais vermelhas do século passado. Louis-Jean
Cormier, “MEA-CULPA ‘Que despertar, esta manhã! Depois de haver lido o
artigo ‘Pour ou Contre’ no La Presse, em que discuto várias questões com a
jornalista Josée Lapointe, uma sensação de mal-estar me invadiu. Por mais
que eu releia mil vezes a resposta à pergunta: Por ou contra a paridade
homem-mulher nos festivais, mesmo sabendo quais frases foram suprimidas
e quais foram tiradas do contexto, pareço um tiozinho idiota e atrasado.
Dois dias depois de 8 de março. Slow clap! Todos os que me conhecem
sabem que não sou esse tipo de cara, que sou favorável à igualdade
homem-mulher, ponto final. E, portanto, também na música, tanto debaixo
dos holofotes como na sombra. Sim, conheço experientes técnicas de
música; sim, tenho a sorte de contar entre os meus amigos uma plêiade de
cantoras, autoras e compositoras que têm muito mais experiência que eu.
Mulheres da minha idade, que brilham tanto aqui como em outros lugares,
bem como jovens que aparecem, cujo talento me dá uma sova, artistas e
musicistas que tenho vontade de convidar para a primeira parte dos meus
shows ou mesmo para programas de TV dos quais participo. Mas subestimo
a que ponto faço parte dos mais privilegiados deste mundo: sou um homem
branco heterossexual. Que tem a sorte de ter certo sucesso e uma voz
pública. Uma responsabilidade. Tomo uma página do grande livro de David
Byrne que, ao comentar a desigualdade homem-mulher no meio da música
ainda esta semana, lamentava fazer parte do problema. Não é hora para
sutilezas, e sinto muito por haver decepcionado e ofendido tantas pessoas
ao tentar aludir a uma delas. Aceito a mão estendida das irmãs Boulay e de
Laurence Nerbonne, que se propõem a me ensinar um pouco mais sobre o
sexismo sistêmico com que elas, minhas colegas, se confrontam. Parece
claro que tenho um exercício de consciência a fazer e isso cai bem, pois
estou em ano sabático”. Louis-Jean Cormier, “Mea-Culpa”, Página do
Facebook do autor, 10 de março de 2018.
[ 233 ] “Controverse sur l’appropriation culturelle: un rédacteur en chef de
CBC écarté”, Radio Canada, 17 de maio de 2017. Também, “‘I invited these
indigenous writers… and then I insulted them’: Hal Niedzviecki on
appropriation uproar”, CBC News, 16 de maio de 2017.
[ 234 ] Philippe Teisceira-Lessard, “Université d’Ottawa: yoga annulé pour
‘appropriation culturelle’”, La Presse, 23 de novembro de 2015.
[ 235 ] Camille Feireisen, “Halloween et appropriation culturelle: un guide
pour se costumer à l’école”, Radio Canada, 31 de outubro de 2018.
[ 236 ] Nesse caso, fala-se antes de apropriação corporal. “Appropriation
corporelle: comment représenter les personnes handicapées à l’écran?”,
Radio Canada, 14 de janeiro de 2019.
[ 237 ] Laurence Niosi, “Le nom des Redmen de McGill jugé raciste et
dépassé”, Radio Canada, 15 de outubro de 2018.
[ 238 ] Czesław Miłosz, La pensée captive, Paris, Gallimard, 1953, p. 276.
[ 239 ] Romain Jeanticou, “Les ‘sensitivity readers’ dans l’édition américaine,
garde-fous ou derniers avatars du politiquement correct?”, Télérama, 18 de
setembro de 2018.
[ 240 ] Patrick Moreau, “L’ombre de la censure”, Argument, vol. 21, nº 1,
outono-inverno 2018-2019, p. 72.
[ 241 ] Saïd Mahrane, “La tyrannie des susceptibles”, Le Point, 6 de junho de
2018.
[ 242 ] Samira Laouni, “Évitons le cercle vicieux de la haine! Mémoires du
COR”, agosto de 2015.
[ 243 ] Géraldine Smith, Vu en Amérique, bientôt en France, Paris, Stock,
2018, p. 53.
[ 244 ] Sophia Buono, “After Charles Murray Fiasco, Middlebury College
Launches Civil Discourse Program”, The Weekly Standard, 13 de novembro
de 2018. Quanto ao caso de Jordan Peterson, leia-se Paul Journet, “Taisez-
vous, on débat!”, La Presse, 26 de novembro de 2017. Sob a mesma
perspectiva, leia-se Julie Levasseur, “Conférence annulée pour propos
transphobes”, Montréal Campus, 18 de novembro de 2016. Mais
amplamente sobre essa questão, leia-se Normand Baillargeon (dir.), Liberté
surveillée, Montreal, Léméac, 2019.
[ 245 ] Claire Levenson, “En Angleterre, des humoristes sommés de garantir
par écrit qu’ils n’offenseront personne”, Slate.fr, 13 de dezembro de 2018.
[ 246 ] Dominique Scali, “La radicalisation anarchiste à l’université inquiète”,
Le Journal de Montréal, 7 de maio de 2017.
[ 247 ] Reni Eddo-Lodge, Le racisme est un problème de Blancs, Paris,
Autrement, 2018, p. 158.
[ 248 ] Ibidem, p. 161.
[ 249 ] Martine Delvaux, citada em Dominique Scali, “La radicalisation
anarchiste à l’université inquiète”, Journal de Montréal, 7 de maio de 2017.
[ 250 ] Para citar Alain Savard, que afirma sua adesão a esses métodos,
“perturbar uma conferência é um meio de expressão para os que não têm
acesso à fala pública. Um meio pelo qual podem enfrentar uma elite que não
tem interesse algum no diálogo, no acordo e na democracia. […] Não seria
preferível tirar proveito dessas conferências para nelas oferecer um contra-
discurso? Uma vez mais, depende. Em muitas conferências, o tempo
alocado às perguntas do público é curto e o conferencista sempre tem a
última palavra. Quando é o caso de comparecer, por vezes é mais
estratégico perturbar o evento e aproveitar para conversar com as pessoas
presentes”. Alain Savard, “Lettre à Normando Baillargeon: on ne défend pas
la démocratie en défendant le droit de parole des puissants”, Ricochet, 13
de março de 2017.
[ 251 ] Essas palavras foram publicadas num manifesto de uma associação
de estudantes universitários quebequenses (Afesh-UQAM), e ainda constam
na sua página do Facebook. Cf. La censure, c’est la liberté d’expression.
Apparemment. Retour sur la controverse de l'UQAM, Mathieu Bock-Cote, Le
Journal de Montréal, 16 de março de 2017 (www.journaldemontreal.com).
[ 252 ] Stéphane Bailargeon, “Protester contre la parole des puissants:
entretien avec Valérie Lefebvre-Faucher”, Le Devoir, 1º de abril de 2017.
[ 253 ] Emmett Macfarlane, citado em Shaw Jefford, “Ford exige politiques
de liberté d’expression dans les universités”, 30 de agosto de 2018.
[ 254 ] Emmanuel Pierrat, Nouvelles morales, nouvelles censures, Paris,
Gallimard, 2018, p. 11.
[ 255 ] Bérénice Levet, “Dans la prison du présent”, L’Incorrect, 2 de outubro
de 2017, p. 39.
[ 256 ] “À Memphis, le film Autant en emporte le vent n’est plus le
bienvenu”, Radio Canada, 28 de agosto de 2017.
[ 257 ] Consulte-se sobre essa questão o artigo “La guerre de Sécession: la
véritable histoire”, in: Le Figaro Histoire, nº 35, dezembro de 2017-janeiro de
2018.
[ 258 ] George Orwell, 1984, Paris, Folio, 1950, p. 21-28.
[ 259 ] Arnaud Leparmentier, “A New York, la statue de Christophe Colomb
fait polémique”, Le Monde, 7 de outubro de 2017.
[ 260 ] Foi justamente para banir da vida pública tudo o que a representasse
que a Universidade de Notre-Dame em Indiana decidiu recobrir os afrescos,
feitos nos século XIX, que a celebravam. Agência France Presse, “Une
université américaine va recouvrir des fresques dépeignant Christophe
Colomb”, Le Figaro, 24 de janeiro de 2019.
[ 261 ] Natasha MacDonald-Dupuis, Des enseignants veulent rebaptiser les
écoles portant le nom de John A. Macdonald, Radio Canada, 25 de agosto de
2017.
[ 262 ] Louis-Georges Tin et al., “Mémoire de l’esclavage: ‘Débaptisons les
collèges et les lycées Colbert!’”, Le Monde, 16 de setembro de 2017.
[ 263 ] Xantha Leatham, “King’s College ‘substituirá bustos e retratos de
seus pais fundadores por minorias étnicas após pressão estudantil’”, Daily
Mail, 14 de julho de 2017.
[ 264 ] Desse ponto de vista, a comparação com o islamismo merece ser
feita, na medida em que nos lembramos da destruição do museu de Mossul
ou das ruínas de Palmira. Existe aí um niilismo destruidor, de homens que
pretendem apagar da superfície do planeta tudo o que não entra em seu
estreito sistema de crenças. Eles confirmam o que sabíamos: alguns homens
sentem uma fruição perversa quando se entregam à destruição, à ação de
destruir o que outros homens respeitam. Justificam seu niilismo absoluto
com a pretensão de servir ao Absoluto. Quanto mais destroem, mais
desfrutam. Quanto mais pisoteiam o homem, mais se sentem inflados de
poder.
[ 265 ] Michel Heller, La machine et les rouages, Paris, Calmann-Lévy, 1985.
[ 266 ] Czesław Miłosz, La pensée captive, Paris, Gallimard, 1953.
[ 267 ] Gustave Thibon, Parodies et mirages, ou La décadence d’un monde
chrétien, Paris, Édition du Rocher, 2011, p. 21-22.
[ 268 ] Guillaume Perrault, Conservateurs, soyez fiers!, Paris, Plon, 2017, p.
137.
[ 269 ] Alexandre Devecchio, Les nouveaux enfants du siècle, Paris, Éd. du
Cerf, 2016, p. 309.
[ 270 ] Louis Pauwels, “Dieu a-t-il lu ce sondage?”, Le Figaro Magazine, 9 de
abril de 1983.
[ 271 ] Michel de Jaeghere, Les dernier jours, Paris, Les Belles Lettres, 2014.
[ 272 ] Louis Pauwels, Dix ans de silence, Paris, Fayard, 1989.
[ 273 ] Louis Pauwels, Les orphelins, Paris, Éditions de Fallois, 1994, p. 90.
[ 274 ] Michel de Jaeguere, Un automne romain, Paris, Les Belles Lettres,
2018, p. 74.
[ 275 ] Michel Onfray e François-Xavier Bellamy, “Vivons-nous la fin de notre
civilisation?”, Le Figaro, 25 de março de 2015.
[ 276 ] Louis Pauwels, Dix ans de silence, Paris, Grasset, 1989, p. 22.
[ 277 ] Henry de Montherlant, La guerre civile, in: Théâtre, Gallimard, col.
Pléiade, 1972, p. 1268.
[ 278 ] Chateaubriand, Mémoires d’Outre-Tombe , Paris, Gallimard, col.
Pléiade, 1952, p. 938-39.
[ 279 ] Marguerite Yourcenar, Mémoires d’Hadrien, Paris, Gallimard, 1974, p.
126.
[ 280 ] Georges Bernanos, Nous autres Français, in: Essais et écrits de
combat, t. 1, coleção Pléiade, Gallimard, Paris, 1971, p. 679.
[ 281 ] Régis Debray, À demain de Gaulle, Paris, Gallimard, 1990, p. 61.
[ 282 ] Henry de Montherlant, Le treizième César, Paris, Gallimard, 1970.
[ 283 ] Nietzsche, em O Crepúsculo dos Ídolos, autorizou-se uma observação
que ele queria sussurrar na orelha dos conservadores: “O que não sabíamos
outrora, o que sabemos hoje, o que poderíamos saber é que uma involução,
uma regressão, num sentido qualquer, seja em que grau for, não é possível
em absoluto. […] Mesmo os políticos imitaram, nesse aspecto, os
pregadores de virtudes: existem ainda hoje partidos que sonham em fazer
as coisas andarem recuando, à maneira de caranguejos. Nada se pode fazer
a respeito: é preciso ir adiante, quero dizer, avançar passo a passo
decadência adentro – essa é minha definição do ‘progresso’ moderno…
Pode-se entravar esse desenvolvimento e, ao entravá-lo, represar a
degenerescência em si, acumulá-la, torná-la mais veemente e mais súbita:
isso é tudo o que se pode fazer”. Nietzsche, Le crépuscule des idoles, in:
Friedrich Nietzsche Œuvres, t. 2, Collections Bouquins, Robert Laffont, 1993,
p. 1017.
[ 284 ] Jacques Bainville, La tasse de Saxe, in: Jacques Bainville, La
monarchie des Lettres: histoire, politique et littérature, Paris, Collections
Bouquins, Robert Laffont, 2011, p. 852.
[ 285 ] Roger Caillois, Instincts et société, Paris, Éditions Gonthier, 1964, p.
61-114.
[ 286 ] François Taillandier, L’écriture du monde, Paris, Stock, 2013, p. 14-15.
[ 287 ] Em seu discurso no colégio dos Bernardinos, Bento XVI havia
meditado sobre as condições do renascimento da civilização ocidental,
estando ela mergulhada nos tempos mais obscuros. “Ao considerar os frutos
históricos do monaquismo, podemos dizer que ao longo da grande ruptura
cultural, provocada pelas migrações dos povos e pela formação das novas
ordens de Estado, os mosteiros foram espaços onde os tesouros da antiga
cultura sobreviveram e uma nova cultura, haurindo nestes últimos, pouco a
pouco se formou. Como isso ocorreu? Qual era a motivação das pessoas que
se reuniam nestes locais? Quais eram seus desejos? Como viveram? Antes
de tudo, é preciso reconhecer com muito realismo que sua vontade não era
criar uma cultura nova nem conservar uma cultura do passado. Sua
motivação era muito mais simples. Seu objetivo era buscar Deus, quaerere
Deum. Em meio à confusão daqueles tempos em que nada parecia resistir,
os monges desejavam a coisa mais importante: dedicarem-se a encontrar o
que tem valor e sempre perdura, encontrar a própria Vida. Eles estavam em
busca de Deus.” Bento XVI, “Discours des Bernardins”, 12 de setembro de
2008. Em termos seculares, não era a devoção à memória ou ao mundo de
ontem que estava na base de sua ação, mas a busca da transcendência.
[ 288 ] François Taillandier, L’écriture du monde, Paris, Stock, 2013, p. 71-72.
[ 289 ] Allan Bloom, L’âme désarmée, Paris, Julliard, 1987, p. 17.
[ 290 ] Macronie, no original: neologismo de cunho pejorativo, que designa
Emmanuel Macron, presidente da França, seu entorno e sua forma de
governo à maneira de um território, com ideias e modus operandi
característicos. (N. T.)
[ 291 ] No vocabulário político francês, o termo cohabitation designa uma
configuração de poder em que o chefe de Estado e o chefe de governo
pertencem a correntes políticas antagônicas. (N. T.)
[ 292 ] Pascale Tournier, Le vieux monde est de retour, Paris, Stock, 2018.
[ 293 ] Raymond Aron, Espoir et peur du siècle, Paris, Calmann-Lévy, p. 121.
[ 294 ] Em uma belíssima obra, Guillaume Perrault mostrou de fato que ele
possuía também uma genealogia especificamente francesa, pois a história
da direita não é passível de redução à celeuma entre liberais e reacionários.
Guillaume Perrault, Conservateurs, soyez fiers!, Paris, Plon, 2017.
[ 295 ] Hannah Arendt, De la révolution, em L'Humaine Condition, Paris,
Gallimard, coleção Quarto, 2012, p. 337.
[ 296 ] Jean-Pierre Le Goff, entrevista com Laetitia Strauch-Bonart,
“Comment être à la fois conservateur, moderne et social”. Le Débat, janeiro-
fevereiro 2016, número 188, p. 145-56.
[ 297 ] Marc Crapez, Naissance de la gauche, Paris, Michalon, 1998.
[ 298 ] É preciso dizer que Zemmour, contrariamente ao que dizem seus
detratores, é um escritor político autêntico, e que da obra Livre noir de la
droite, em 1998, à obra Un quinquennat pour rien, em 2016, ele aprofundou
uma crítica do progressismo visando seus fundamentos. Foi-lhe atribuída
uma injusta reputação de polemista, uma maneira de transformar seu
pensamento em pura provocação.
[ 299 ] Paul Ricœur, “Tâche de l’éducateur politique”. Esprit, julho/agosto de
1985, p. 84-85. Quanto a Patrice Gueniffey, relembrou que os melhores
historiadores, até muito recentemente, não se proibiam de falar do caráter
de uma nação ou mesmo de seu gênio próprio, ao mesmo tempo em que
reconheciam que “a doutrina dos temperamentos nacionais é um pouco
suspeita atualmente […]”. Ele não estava longe, porém, de recorrer a ela.
“Durante muito tempo se chamou ‘gênio’ àqueles traços próprios de cada
povo, mas que, embora estejam gravados em cada um de modo indelével e
ofereçam um princípio de distinção entre nós e eles, não constituem um
ferrolho do qual jamais se poderia escapar ou um dado tão fundamental que
nada jamais pudesse alterar ou modificar […]”, Patrice Gueniffey, Napoléon
et De Gaulle: deux héros français, Paris, Perrin, 2017, p. 136-37.
[ 300 ] Denis Tillinac, Le Dieu de nos pères, Paris, Bayard, 2004.
[ 301 ] Hubris, no original: conceito oriundo da cultura grega que remete à
desmedida no âmbito do comportamento humano, principalmente na
relação entre o homem e os deuses. De acordo com a cosmovisão da Grécia
antiga, a arrogância, uma das facetas dessa desmedida, acaba sempre por
atrair alguma forma de punição, que impõe ao homem o reconhecimento de
seus limites. (N. T.)
[ 302 ] Arthur Koestler, Hiéroglyphes, in: Œuvres autobiographiques, coleção
Bouquins, Robert Laffont, Paris, 1994, p. 444.
[ 303 ] Czesław Miłosz, La pensée captive, Paris, Gallimard, 1953, p. 303.
[ 304 ] Julien Freund, Politique et impolitique, Paris, Sirey, 1987, p. 139.
[ 305 ] Patrick Buisson, La cause du peuple, Paris, Perrin, 2016, p. 442-43.
[ 306 ] Michel de Jaeghere, La compagnie des ombres, Paris, Les Belles
Lettres, 2016, p. 392.
[ 307 ] Jacques Ellul, L’illusion politique, Paris, Robert Laffont, 1965, p. 31.
[ 308 ] Philippe Maxence, “Il est temps de refermer le cycle des Lumières:
notre entretien exclusif avec Patrick Buisson”, L’homme nouveau, 10 de
novembro de 2016.
[ 309 ] Chantal Delsol, La haine du monde, Paris, Éd. du Cerf, 2016.
[ 310 ] Julien Freund, La fin de la renaissance, Paris, PUF, 1980, p. 110.
[ 311 ] Alain Finkielkraut e Élisabeth de Fontenay, En terrain miné, Paris,
Stock, 2017, p. 18.

facebook.com/erealizacoeseditora

issuu.com/editora_e

twitter.com/erealizacoes

erealizacoes.com.br

instagram.com/erealizacoes

atendimento@erealizacoes.com.br

youtube.com/editorae
A Vida Intelectual
Sertillanges, A.-D.
9788580332476
190 p�ginas

Compre agora e leia

O livro do padre Sertillanges surpreende por sua


abrangência. Quais virtudes são necessárias à vida
intelectual? É necessário disciplinar o corpo? Como
ordenar o tempo de estudo? Qual a relação entre
alimentação e inteligência? Como lidar com a
necessidade de solidão e de participar de uma
comunidade? Tudo isso e muito mais você
encontra neste livro inspirador.

Compre agora e leia


O Trivium
Joseph, Irmã Miriam
9788580333190
295 p�ginas

Compre agora e leia

O Trivium, da Irmã Miriam Joseph, resgata a


abordagem integrada dos componentes da ciência
da linguagem praticada na Idade Média e conduz o
leitor por uma esclarecedora exposição da lógica,
da gramática e da retórica. Mais importante do
que o domínio estes assuntos, este livro pretende
fornecer as ferramentas necessárias para o
aperfeiçoamento da inteligência.

Compre agora e leia


As Moradas do Castelo Interior
d'Ávila, Santa Teresa
9788580332483
192 p�ginas

Compre agora e leia

Surpreende que um livro escrito há tanto tempo


tenha tanto que nos dizer ainda hoje. A surpresa
se desfaz, no entanto, quando nos damos conta de
que As Moradas do Castelo Interior é um convite à
vida interior e à comunhão com Deus, bem como
um longo encorajamento diante das dificuldades
encontradas neste caminho. Este verdadeiro
clássico da espiritualidade cristã e da literatura
espanhola vem a público próximo das
comemorações dos 500 anos do nascimento de
Santa Teresa.

Compre agora e leia


O Liberalismo - Antigo e Moderno
Merquior, José Guilherme
9788580332599
318 p�ginas

Compre agora e leia

José Guilherme Merquior faz uma pesquisa


estimulante sobre a história e evolução da teoria
liberal desde o século XVII até o tempo presente.
Combina uma enorme riqueza de informações –
surpreendentemente condensada – com
penetrante apresentação dos temas centrais do
liberalismo. Esta edição é enriquecida por vasta
fortuna crítica e documentos do arquivo pessoal do
autor.

Compre agora e leia


Mapas do Significado
Peterson, Jordan B.
9788580333817
944 p�ginas

Compre agora e leia

Os milhões de espectadores das entrevistas de


Jordan Peterson no YouTube são unânimes em
reconhecer a sua serenidade e a sua perspicácia. A
pergunta que, diante disso, os mais inteligentes
dos seus admiradores se fazem é qual visão de
mundo, quais posições teóricas, quais influências
intelectuais proveem suporte a tal postura e a tais
opiniões. E a resposta está em uma teoria original
sobre as próprias visões de mundo: Mapas do
Significado, a obra-prima do psicólogo canadense,
é um tratado multidisciplinar sobre como surgem
as crenças humanas e sobre como elas
influenciam nosso comportamento diário.

Compre agora e leia

Você também pode gostar