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Table of Contents

Ficha Técnica
DIA 1 › 22 DE ABRIL - Chaves • Parada de Aguiar › 40,5 Km
DIA 2 › 23 DE ABRIL - Parada de Aguiar • Vila Real › 25 Km
DIA 3 › 24 DE ABRIL - Vila Real • Peso da Régua › 28 Km
DIA 4 › 25 DE ABRIL - Peso da Régua • Bigorne › 30 Km
DIA 5 › 26 DE ABRIL - Bigorne • Arcas › 25 Km
DIA 6 › 27 DE ABRIL - Arcas • Viseu › 25 Km
DIA 7 › 28 DE ABRIL - Viseu • Adiça › 30 Km
DIA 8 › 29 DE ABRIL - Adiça • Santa Comba Dã o › 12 Km
DIA 9 › 30 DE ABRIL - Santa Comba Dã o • Penacova › 30 Km
DIA 10 › 1 DE MAIO - Penacova • Gó is › 30 Km
DIA 11 › 2 DE MAIO - Gó is • Pedró gã o Grande › 45 Km
DIA 12 › 3 DE MAIO - Pedró gã o Grande • Sertã › 24 Km
DIA 13 › 4 DE MAIO - Sertã • Vila de Rei › 25 Km
DIA 14 › 5 DE MAIO - Vila de Rei • Abrantes › 35 Km
DIA 15 › 6 DE MAIO - Abrantes • Ponte de Sor › 32 Km
DIA 16 › 7 DE MAIO - Ponte de Sor • Mora › 45 Km
DIA 17 › 8 DE MAIO - Mora • Montemor-O-Novo › 39 Km
DIA 18 › 9 DE MAIO - Montemor-O-Novo • Alcá çovas › 34 Km
DIA 19 › 10 DE MAIO - Alcá çovas • Odivelas › 31 Km
DIA 20 › 11 DE MAIO - Odivelas • Aljustrel › 37 Km
DIA 21 › 12 DE MAIO - Aljustrel • Almodô var › 43 Km
DIA 22 › 13 DE MAIO - Almodô var • Ameixial › 23 Km
DIA 23 › 14 DE MAIO - Ameixial • Sã o Brá s de Alportel › 34 Km
DIA 24 › 15 DE MAIO - Sã o Brá s de Alportel • Faro › 16+8 Km
JÁ ESTÁ
OBRIGADO
Ficha Técnica
Título: Leva-me Contigo – Portugal a Pé pela Estrada Nacional 2
Autor: Afonso Reis Cabral
Edição: Maria do Rosá rio Pedreira
Design de capa: Maria Manuel Lacerda
Fotografias: AEQC (capa), Sílvia Silva, Luís Ferreira, João Reis Antão, José Vinagre, Carina Vinagre, Ana Bárbara Pedrosa (indicadas nas fotos). Todas as restantes
do autor.
Mapas: Ricardo Coelho
ISBN: 9789722068185

Publicaçõ es Dom Quixote


uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Có rdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01

© 2019, Afonso Reis Cabral e Publicaçõ es Dom Quixote


Todos os direitos reservados de acordo com a legislaçã o em vigor
www.dquixote.leya
com www.leya.pt

Este livro segue a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográ fico de 1990.
AFONSO REIS CABRAL

Portugal a pé pela Estrada Nacional 2


«The Road goes ever on and on
Down from the door where it began.
Now far ahead the Road has gone,
And I must follow, if I can,
Pursuing it with eager feet,
Until it joins some larger way
Where many paths and errands meet.
And whither then? I cannot say.»
J. R. R. Tolkien, O Senhor dos Anéis
Nã o me chamem Ismael. Mas há alguns anos – nã o interessa ao certo quantos –,
também presenciei a multidã o nova-iorquina caminhando para a costa. E, como Ismael,
considero que todos partilhamos os mesmos instintos em relaçã o ao mar. À volta da
cidade, pelas ruas que levam ao oceano, centenas de homens mortais fixam a á gua.
Procuram um reflexo, olham mais para dentro do que para fora, em busca do fantasma
da vida.
Isto disse-me Melville por outras palavras, as dele melhores do que as minhas, e a â nsia
de Ismael em fazer-se ao mar entrou em mim como as ideias belas que nunca se
transformam em belas coisas.
Aos treze anos, viajei de camiã o TIR até à Alemanha, mas essa boleia nã o conta porque
mal me lembro da centelha, da igniçã o que liberta os fogos íntimos, essas inquietaçõ es.
Mais tarde, aos vinte e cinco, repeti a viagem, mas também nã o conta porque pretendia
escrever um romance e, quando se pretende escrever um romance, nã o se viaja: quer-se
escrever um romance. Em tempos, sonhei partir num petroleiro, quem sabe de cá para
Angola e daí para cá . Recentemente, fiz por embarcar num submarino, mas a Marinha
impediu-me. Sempre que visito o fundo do mar socorrendo-me do equipamento de
mergulho, nã o encontro nesse reino sem silêncio o que ele tem para dar.

É que o mar também nos oferece o caminho até à costa.


Em Portugal, onde basta abrirmos os braços para tocarmos com a ponta dos dedos no
Cabo da Roca e em Elvas, qualquer caminho para o mar é demasiado curto. Com a ajuda
do vento, certa vez alguém cheirou a maresia em Castelo Branco. De Bragança, nos dias
mais transparentes, puxando muito pelos olhos, avistamos o azul ao largo de Viana do
Castelo. E Lisboa é só mar, ainda que o mar seja só rio. Talvez o País, qual navio
ancestral, tenha atracado para sempre neste nosso pequeno sítio.
Embora ainda deseje perder a terra de vista – juntar-me à guarniçã o de um submarino,
partir num petroleiro, esfregar o convés de uma escuna –, por enquanto decidi-me pelo
possível, que tantas vezes se torna impossível justamente porque está ao nosso alcance:
decidi aceitar o desafio do mar indo à praia a pé, até porque nem todos os caminhos sã o
curtos.
Ouvi falar pela primeira vez do caminho que nã o é curto há três anos, quando
aumentaram as notícias sobre a identidade pró pria de uma certa Estrada Nacional 2,
concebida em 1945 pelo Plano Rodoviá rio para juntar o país num fio bem estendido
pelo interior. Quando as auto-estradas foram construídas, a Nacional perdeu-se como
via de ligaçã o mas deixou-nos o fio pendendo de Chaves a Faro. Pronto a ser
reencontrado. Nos ú ltimos tempos, motos, carros, autocaravanas e bicicletas
percorrem-na com a urgência de quem corrige um erro. Sã o onze distritos, trinta e cinco
concelhos, onze cidades, dezenas de aldeias e localidades, vá rias serras e muitos rios,
entre os quais o Douro, o Mondego e o Tejo. E também tudo o que nã o pode ser posto
em nú meros, como o canto dos pá ssaros e a vida das pessoas.
Mas só no início deste ano percebi que a Estrada Nacional 2 é o percurso mais longo,
em Portugal, para irmos à praia a pé. A dança entre a estrada e o mar estende-se por
738,5 quiló metros; ela muito quieta porque o asfalto nã o se move, ele todo ondas a
namorá -la. Ou talvez nem se conheçam, a estrada e o mar, já que a Nacional 2 acaba no
centro de Faro, antes de se avistar a ria e o oceano.
Também me ocorreu que devia saber mesmo bem mergulhar nas ondas depois de
semanas de caminho usando apenas os pés, as pernas, os mú sculos, a vontade. Nã o me
vi como masoquista, pensei ao invés no meu corpo apaziguado depois do esforço.
Quente na á gua fria.
O apelo físico juntou-se ao desejo analó gico. Os corpos da minha geraçã o têm partes
digitais. A ponta dos dedos diluída nos píxeis dos ecrã s. Certo có rtex cerebral que só
sente prazer com algoritmos. Nã o me oponho à s nossas inteligências artificiais, porém
senti-me atraído por uma experiência mais vital. Genuína por nã o depender de
monitores. Os olhos contemplando sem filtros, as pernas andando apenas por andar.
Numa sociedade em que a juventude é louvada como mérito, embora mérito seja o que
conquistamos, nã o o que nos é dado, tencionava fazer da estrada um holocausto. Um
sacrifício que marcasse a passagem da juventude para outro estado além desta mas
ainda com regalias.
No entanto, havia algo de errado no projecto. Estaria sempre acompanhado por um
gajo do qual nã o consigo descansar – eu mesmo. Por muito que caminhasse, ele daria os
mesmos passos, os meus passos, em direcçã o ao mar. Para fugir dele, propus-me
conhecer pessoas novas sempre que possível, que é como quem diz, conhecer novas
personagens. Felizmente, os muitos quiló metros da Nacional 2 levam a muitas pessoas.
Sinto que estou a justificar-me. A revelar algo só meu, íntimo e por isso escondido,
como a ostra a abdicar da pérola. Creio que nem tudo deve ser explicado, embora esta
desculpa sirva perfeitamente: decidi partir porque me apeteceu.
Algumas pessoas a quem falei do projecto chamaram-me estú pido – e eu percebo-as –,
mas estava farto de sensatez, achava que a estrada servia para nos fazermos a ela, e
entretanto até comprara o boné do Forrest Gump.
Marquei o dia 22 de Abril, logo depois da Pá scoa, como data de partida. Se nã o fosse
encontrado de bofes para fora, chegaria a Faro em menos de um mês. No final da
jornada, como o explorador Richard Byrd, talvez pudesse dizer sobre a estrada que leva
ao mar: «Deixei lá o que me restava de juventude e de presunçã o.»
Antes das coisas ú teis vêm as inú teis. Essas, as que nascem na cabeça, sã o as mais
pequenas e as maiores. No meu escritó rio trabalha também um pintor. Ocupou a
cozinha por causa da luz, que entra por uma janela diminuta, qual câ mara escura, e
trouxe com ele telas brancas e madeiras virgens e barros por moldar. Estes partem-se
muitas vezes por acidente – eu até gosto das estatuetas anatomicamente perfeitas com
cabeças e braços amputados –, mas as telas nunca ficam por preencher. Nã o sei como
nasce aquilo. Ele põ e-lhe as cores e as cores arranjam-se entre si em figuras femininas,
florestas, bailarinos e caras de espanto. Mas sei que, antes de haver tinta na ponta do
pincel, houve coisas inú teis na cabeça. Essas coisas inú teis, tratadas com o cuidado que
merecem, acabam como coisas ú teis na tela. Tudo o que é belo é ú til.
Depois de ter decidido partir, a estrada enrolou-se à volta dos meus pensamentos como
uma jibó ia de muitos quiló metros. Em vez de alcatrã o, havia o medo de nã o conseguir, a
fanfarronice de certas horas em que me achei capaz de tudo, inclusive caminhar do
Shire até Mordor, o desâ nimo por me ter comprometido com uma ideia fú til que vinha
do nada e ao nada levava. E a vontade de ver – de ir – de ser atravessado pela vida.
Agora, a estrada era a minha tela e eu fazia como o pintor, preenchia-a de coisas inú teis
esperando que as tintas se transformassem em quadro.
Um dia, em Março, dei por mim a caminhar depois do pequeno-almoço. Passei pela
mota e segui. Passei pelo carro e segui. Nã o tinha dito à s minhas pernas para irem, mas
elas devem ter achado que o cérebro já levava vá rios dias de coisas inú teis. Chegara a
hora das coisas ú teis, como amestrar o corpo. Duas horas depois, avistava o escritó rio,
que fica a oito quiló metros de casa. Abrira duas bolhas na planta do pé esquerdo – as
mesmas que mais tarde, regressado a casa, me pediram para comprar urgentemente
sapatilhas adequadas –, mas o passeio pela Nacional 2 tinha começado.
Nunca estive na casa de partida de uma corrida. Imagino os adversá rios em posiçã o, o
corpo quente e tenso, as bancadas em silêncio à espera do sinal. Esta antevisã o, que
associo a uma forma de paz, encontro-a na Decathlon. Tudo nessa loja está prestes a
partir: os equipamentos das prateleiras, as tendas alinhadas, os barcos insuflá veis, as
compressas para as dores, as bicicletas, os sacos de boxe. Ali aguardam pequenos
paraísos ou grandes torturas. Pensava nisto quando perguntei pela quinta vez à
funcioná ria: «Mas tem mesmo a certeza de que estas sapatilhas aguentam bem a
estrada?» Ela acanhou-se perante a ideia de 738 quiló metros numas sapatilhas
Redmond Columbia de sessenta e nove euros, mas, como eram as ú nicas do meu
tamanho, respondeu-me que aguentavam e eu dei-me por satisfeito. Semanas mais
tarde, na manhã em que cheguei a Faro, beijei as sapatilhas por terem suportado o que a
estrada e eu lhes fizemos.
Depois comprei a paraferná lia que serve de tá bua de salvaçã o no caminho: mochila de
quarenta litros com arejamento nas costas, bolsos vá rios e capa contra a chuva; bexiga
de plá stico para dois litros de á gua, equipada com um tubo e biberã o; kit de primeiros
socorros; colete amarelo, espécie de segunda pele; quinze pares de meias anti-bolha;
pomadas vá rias que mantêm os pés lubrificados; boné com protecçã o na zona do
pescoço; power bank para ir dando de comer ao telemó vel.
Nos treinos que se seguiram, descobri que em duas patas se vê mais do que em quatro
rodas. Pelo menos, vê-se mais lentamente.
Lisboa está bordada a hortas, antes do Parque das Naçõ es dá para perguntar aos
ú ltimos agricultores como se monda a terra. Eles à s vezes nã o respondem mas eu digo-
lhes que gostava de ter uma horta como as deles. Talvez achem que há hortas a menos
para pessoas a mais. Problemas do mercado imobiliá rio.
Na faixa da Infante Dom Henrique, de Braço de Prata a Santa Apoló nia, habita muita
gente que ali fica em barracas, tendas e caixas de cartã o. Quando lhes acenei, recuaram.
Depois acenaram eles e recuei eu. Encontrei uns a comer, outros a cantar. Debaixo do
viaduto que leva à estaçã o, perto dos carris da zona portuá ria, julguei ter visto restos de
fogueiras – portanto, de noite, nã o passam tanto frio.
Ainda assim, viviam melhor do que o Nuno, um gajo que eu conhecera dias antes e que
vende pá ssaros em Gondomar. A casa cheirava a animal morto. A cozinha a animal bem
morto. No quintal havia um pitbull manso, incomodado com tanta miséria, que nem
sequer me ladrou ou mostrou os caninos. O Nuno também nã o mostrava os dentes
porque quase nã o os tinha. «Esta é a minha cruz», disse quando lhe perguntei pela
tatuagem de Cristo que começava perto do pescoço. Falá mos da cruz: muitas horas
debaixo de á gua como soldador submarino, bastante azoto nas veias, onde também foi
juntando á lcool e uns chutos de heroína. Agora era aquilo que se via, alguém mais limpo
mas ainda nã o completamente limpo, um vendedor de pá ssaros numa casa suja. Quando
me deu a caixa com o dom-fafe, pensei libertar o pá ssaro como homenagem, houvesse
ao menos alguém livre daquela miséria, mas levei-o para casa e prendi-o no aviá rio.
Apesar de ter muitas fêmeas, recusa-se a galá -las.
Num dos treinos, cerquei Lisboa com um fio imaginá rio feito dos meus passos. Foram
quarenta e um quiló metros nos quais reparei que a cidade já nã o pertence ao lisboeta
ou ao turista: agora pertence à s trotinetas. Sã o bichos tã o frá geis, quais garças-boeiras,
que abrandei o passo sempre que me aproximei delas. Ao montá -las, o ser humano
deixa-as exaustas.
Perto das Docas, observava um grupo de raparigas bonitas, distraídas umas com as
outras, quando ouvi campainhas vindas de todas as direcçõ es. E em segundos vá rias
trotinetas cruzaram-se e rasaram as raparigas. Os rapazes em cima delas berravam
como índios a exigir escalpes. Enxameando as raparigas, os apaches aceleraram para se
exibirem enquanto perguntavam: «Estavam perdidas, as meninas?» Elas levantaram os
braços para lhes responderem: «Sem vocês, claro que está vamos.» Eu continuei o meu
caminho e nã o sei o que aconteceu depois, mas vinha a calhar se cada uma tivesse
seguido com cada um em cima das trotinetas. Em direcçã o ao pô r-do-sol ou assim.
Uns quiló metros depois, na frente ribeirinha da Expo, deparei-me com a prova de que
as trotinetas sã o mesmo aves vulnerá veis: de vinte em vinte metros, encontrei-as
afundadas no lodo da baixa-mar. Eram catorze de enfiada – e eu tenho a certeza de que a
décima quarta, ao ver os cadá veres das amigas, teve um curto-circuito de desgosto e
atirou-se ela mesma ao rio.
De Alcâ ntara a Cascais, a á gua e o sol lavavam tudo, os passeantes assemelhavam-se,
caminhavam da mesma maneira. Uns de tronco nu, outros com os bonés virados para
trá s, alguns a ouvir mú sica e uns quantos a namorar – todos tã o contentes e com ar de
quem nunca ansiou que, por momentos, o mundo ficou contido na marginal e nã o tinha
início nem fim. Enquanto via o rio tornar-se foz, aprendi que as minhas pernas sã o
mesmo irmã s: partilham a dor à vez.

Durante o dia, caminhava. À noite, lia. Palmilhei o País do Algarve ao Minho com Nuno
Ferreira, no seu Portugal de Perto. Estudei sobre a estrada no maravilhoso guia Portugal
de Norte a Sul pela Mítica Estrada Nacional 2. Subi ao Evereste com Joã o Garcia e ao
Annapurna com Herzog. Jon Krakauer apresentou-me Chris McCandless e este, por sua
vez, disse-me para ler O Apelo da Floresta, de Jack London. O livro nã o tem grande
interesse, excepto ter sido sugerido por um parceiro de caminhadas. Em Walking to
Listen, Andrew Forsthoefel descreveu-me como caminhou de costa a costa nos EUA.
Seguindo-lhe o exemplo, decidi pedir conselhos a quem encontrasse pelo caminho. E
Paulo Moura, jornalista e autor de Longe do Mar, fez-me crer que encontraria muitas
histó rias na estrada.
Entusiasmando-se com as leituras, o meu Walter Mitty quis apoderar-se de mim e isso
preocupou-me. Apesar de ter fomentado as coisas inú teis e tratado das ú teis, apesar do
equipamento e dos cento e trinta quiló metros de treino, a estrada bem podia nunca
acontecer. Resultar nas frustraçõ es de um sonhador. Para dar coça ao Walter Mitty,
tornei o projecto oficial: publiquei um texto no Facebook acompanhado de uma foto
com o boné do Forrest Gump. Agora, que gente invisível gritava «Walk, Afonso, walk!»,
nã o podia desistir.
Para além das leituras, pesquisei sobre a Nacional 2. Descobri as pessoas da estrada –
aqueles que a percorrem publicando sobre ela online. Aqueles que a amam, porque aqui
amor significa o tempo que lhe dedicam. E percebi que ainda ninguém a tinha
palmilhado.
À descoberta da estrada e das pessoas da estrada juntou-se o objectivo empolgante de
ser o primeiro, mesmo numa coisa tã o insignificante como ir de um ponto ao outro. Nas
semanas que faltavam até 22 de Abril, encolhi o caminho para que nele coubesse a
ambiçã o recém-nascida: ser o primeiro. Embora ainda nã o lhe tivesse posto os pés em
cima, a estrada já era mais minha do que de quem a fizera de carro, mota ou bicicleta.
O caminho quase tinha sumido, pequeno e mesquinho, quando descobri que um grupo
de amigos, todos com mais de sessenta anos, começara a empreitada. Segui-os pelo
Facebook, reagindo a princípio com desapontamento: que azar, a poucas semanas de
meter eu os pés no alcatrã o... Enquanto acompanhava os quiló metros e via as fotos,
comecei a conhecê-los pelos bonés, pelos bigodes, pelas expressõ es cansadas. Na
Nacional 2 há tempo para cansaço e para camaradagem. Imaginava-os amigos de
sempre, por fim reformados e com calma para as conversas que interessam. Chegaram a
Faro três semanas antes de eu partir e sã o uns gajos espectaculares. Por causa deles, o
caminho ficou de novo grande como sempre foi.
Na ú ltima noite antes da caminhada, pensava em como eu e as minhas pernas havíamos
andado mais de uma centena de quiló metros. Em como o meu cérebro e eu está vamos
decididos, melhor dizendo, conformados. E em como, na manhã seguinte, os passos mais
difíceis seriam para sair da cama.
Se conseguisse fazer a Nacional 2, talvez me tornasse andró ide e pudesse dizer «I’ve
seen things you people wouldn’t believe». Nesse momento, embora fosse caminhar
sozinho, desejei que um qualquer cã o me acompanhasse. Estaríamos bem um para o
outro: eu tã o cã o como ele rafeiro, os dois vadios da estrada.
Só esperava nã o ficar pelo caminho, o que era bem possível, embora um bom falhanço
também fosse uma boa coisa. É que o Walter Mitty podia ressurgir em qualquer etapa da
jornada; para o conter, propus-me publicar um diá rio do caminho.
Ei-lo aqui, com as paisagens e as pessoas.
DIA 1 › 22 DE ABRIL
CHAVES PARADA DE AGUIAR
40,5 km (só faltam 698)

A estrada começa em Chaves, que fica em Portugal, por isso começa numa rotunda. É
um sítio tã o bom como outro qualquer, embora o primeiro passo nunca seja o primeiro
porque andar é muito humano. Parece que nunca caminhamos sozinhos, vamos sempre
em companhia, ligados por uma atracçã o quase física a quem já andou.
Lá fui eu tomando o pulso à estrada, ouvindo os latidos nos quintais, fazendo jus ao
hominídeo que um dia se ergueu em duas patas. Fazer-lhe jus também é ser um pouco
macaco, arqueado sob o peso da estrada que hoje ficou real.
Antes do quiló metro 10, parei num café onde um tipo pouco mais velho do que eu me
perguntou: «Para onde vais?» Eu nã o sabia se o destino era Faro ou o mar, se nesse
momento o destino era só o descanso. Disse-lhe Faro. O gajo endireitou as costas,
apoiou-se na cadeira como quem precisa dos braços para andar e quis saber: «Mas é
promessa?» Para fugir à resposta, meti-me na casa de banho. Quando voltei, ele sorriu-
me, muito confortá vel na cadeira, e disse: «Como nã o vais conseguir, ofereço-te um
Compal.» Eu sempre gostei do barulho desse sumo quando lhe damos palmadas no rabo.
Bati-lhe bem, bebi-o até ao fim, e foi mais fá cil seguir para o mar, ou Faro, ou Vila Pouca.
Ao almoço, em Vidago, descalcei-me debaixo da mesa deixando os pés arrefecerem na
tijoleira. Lembravam comboios a vapor na boca da estaçã o, desses que só existem nos
filmes. Pedi Água das Pedras e a empregada analisou-me de cima a baixo como se, em
vez da minha cara, olhasse para os pés inchados e doridos. «Só temos á gua de Vidago»,
explicou-me baixinho, a esconder a irritaçã o. Eu fiquei mais descansado por só ter
ofendido o amor regional da senhora, mas vinguei-me na mesma. Ao beber Campilho,
imaginei que bebia Pedras. E foi como beber de uma fonte proibida.
Antes de Sobroso de Aguiar, numa subida que nã o acabava, invejei um burro velho por
ter quatro patas. O animal levava na carroça uma carga de batatas mais pesada do que a
minha mochila. Os donos, dois homens de pele esquecida ao sol, seguiam na berma
irritados porque o bicho só fazia o que queria. Eu acho que ao burro faltavam as palas,
como tantas vezes à vontade falta a disciplina. Aos donos faltava a paciência. A mim
faltava-me a força para andar mais depressa do que o burro.
Minutos depois, enquanto descansava estendido no chã o de um parque de merendas e
o vento me mostrava as nuvens, percebi que tinha de fazer mais seis quiló metros
porque o albergue fica na Parada, e nã o em Vila Pouca de Aguiar. Lá me ia arrastar nos
quiló metros a mais.
Em Vila Pouca de Aguiar, depois de trinta e cinco quiló metros em que me esqueci da
paisagem para me concentrar na gestã o do corpo, entrei bambo num supermercado
para comer qualquer coisa. Imaginei um belo pã o com chouriço, alguma refeiçã o para
levar. Nã o tinham nada. Fui buscar um iogurte líquido e a mulher da caixa nã o mo
vendeu porque só vendiam o pacote de seis. Incapaz de levar os seis, fui-me embora.
À saída, começou a chover. Vesti o impermeá vel que me deu um ar ridículo, a presilha
da mochila estrangulava o plá stico fazendo uma saia. Ri-me um bocado de mim e
recuperei um certo â nimo. Quinhentos metros depois, um carro acelerou na minha
direcçã o, apitou, o vidro desceu.
Era uma senhora que assistira à cena do supermercado. Uma senhora com um iogurte
na mã o. Apeteceu-me dar-lhe um beijo. O iogurte soube-me a banquete. Mal acabei de o
beber, outro carro com outra senhora trouxe-me outro iogurte. Apeteceu-me dar-lhe
dois beijos. O segundo iogurte também me soube a banquete. De manhã , uma menina
ruiva e com sardas, instigada pela mã e, oferecera-me uma garrafa de á gua. Qual inveja
das quatro patas do burro – estas pessoas é que sã o invejá veis.
E agora estou sozinho num albergue. Valeu a pena caminhar. Fiquei todo partido, mas
isto parece um palá cio. Só há um problema: deixei a luz acesa, nã o me consigo levantar
da cama e o interruptor fica do outro lado da camarata.
Neste primeiro dia besuntei os pés com batom Compeed anti-bolha. Não serve de
nada. O segredo é passar pomadas como Pédi Relax a cada dez quilómetros.
Vaselina também ajuda.
Fiquei várias noites em albergues. São os sítios dos caminhos cruzados. Como os
apanhei sempre vazios, para mim também foram os sítios dos caminhos imaginados.
DIA 2 › 23 DE ABRIL
PARADA DE AGUIAR VILA REAL
25 km (só faltam 673)

«Tu és o tipo dos iogurtes, nã o és?» Saía da Parada quando um homem me abordou.
Primeiro nã o percebi, depois lembrei-me do banquete de ontem e respondi: «Sou eu.» O
homem tinha lido o texto partilhado nã o sei por quem e gostou de saber que ainda há
gente boa. E eu alegrei-me porque, por momentos, fui definido pela bondade de outros
para comigo.
Antes, durante o pequeno-almoço no ú nico café da aldeia, pedira a minha meia-de-
leite; mas de repente, depois de explicar ao que ia, apareceram folares, pã es com
chouriço e sumos. Se também tivessem aparecido lingotes de ouro, valeriam menos do
que pã es e sumos.
O café era gerido por uma família que descansava entre as mesas como quem está em
casa. A avó deu-me sanduíches, a filha garrafas de á gua, a neta pesquisou-me na
Internet. Vestiam pijamas e roupa larga. Eu também queria vestir-me assim em vez de
me equipar para a estrada, com colete amarelo sobre o poncho, mochila a prender tudo.
Mas cada coisa tem um sítio e andar na estrada de pijama ou roupa larga é tã o incó modo
como descansar em casa de colete amarelo, poncho e mochila.
Hoje, caminho mais curto. O frio e o vento fizeram-me bem aos mú sculos e as chuvas
constantes fizeram-me mal ao orgulho. Converso com as pessoas mas agora acanho-me:
mal percebem que me dirijo a Faro, oferecem-me de tudo. Comida, á gua, casa, conversas
e abraços. Tento pagar. Alguns dizem «Escreva antes sobre nó s», mas eu acho os textos
insuficientes para agradecer. Elis Regina cantou que «qualquer canto é menor do que a
vida de qualquer pessoa» e eu concordo. Dizem que os livros redimem, valem mais do
que gente, mas eu já vi pessoas morrerem e nenhum livro lhes deu a mã o.
Ainda nã o decidi se a chuva é boa companhia. Por um lado, mete-me muito para dentro
de mim mesmo, fico resumido ao poncho e vejo pouco mais do que a ponta das
sapatilhas; por outro, isto de estar sempre a escorrer limpa-me o corpo e o espírito. A
estrada e eu tomamos duche juntos como amantes.
Mas já decidi que o fogo é boa companhia. Almocei no restaurante Fojo do Lobo com
Vila Real lá ao longe entre as montanhas. Sequei-me numa mesa ao pé da lareira
enquanto passava um bife na pedra a escaldar. Em poucos minutos o bife e eu secá mos,
ele mais do que eu; em poucos minutos quis voltar à estrada, esquecido dela.
Entretanto estou um diplomata. Tenho tido vá rias negociaçõ es com o meu corpo.
Proponho dar-lhe um chá quente se ele aguentar mais cinco quiló metros. Ele contrapõ e
que acalma as bolhas se eu parar dentro de quatro. Chegamos sempre a um
entendimento e, até agora, ambas as partes têm cumprido o acordado.
Vou ouvindo os melros, os chapins, as aves de rapina, a Nina Simone, os Radiohead, o
Serge Regianni e os pneus dos camiõ es. Faço sempre sinal aos camionistas para
apitarem. Muitos ignoram-me, mas os que buzinam libertam trovõ es – a estrada deixa
de ser ali, nesse instante é mesmo no topo do céu.
Fiquei em casa dos meus primos Carmo e Diogo, à entrada de Vila Real. A Carmo sabia
que eu um dia caminharia pela Nacional 2, por isso o jardim dá para a estrada. Bastou-
me entrar com a chave escondida, atirar-me para o sofá e esperar que a família
chegasse.
Oito olhos de criança perguntaram-me para onde ia, quatro olhos de adulto deram-me
o jantar. À Marta pertencem dois desses olhos de criança. Tem dez anos, olhar tã o
transparente e pele tã o de boneca que devia estar num livro. E nesse livro devia
perguntar «Para onde vais?» como quem já sabe a resposta.
DIA 3 › 24 DE ABRIL
VILA REAL PESO DA RÉGUA
28 km (só faltam 645)

De manhã , quente no quarto, nem quis olhar pela janela. Bastou-me ouvir a carga de
á gua. Depois de esgotadas as desculpas*, meti-me ao caminho por saber que a estrada
traz alcatrã o mas sobretudo pessoas. Parece que as nuvens me viram a sair porque a
chuva abrandou. Agora já nã o encharcava, só molhava até ao osso.
No centro de Vila Real, parei na livraria Traga-Mundos, que se mantém apesar de
inundaçõ es recorrentes e desse outro tipo de intempérie que é o desinteresse geral
pelos livros. Uns metros à frente, encontrei um amigo que conheci há uns meses, quando
visitei as escolas da regiã o. Tem uma vida triste porque um dia o proibiram de voar. Há
muita gente assim, presa à gaiola, mas o meu amigo nã o pode mesmo sair do poleiro
porque nã o só lhe cortaram as asas como o fizeram pelo sabugo das rémiges. Vive no
á trio do hotel Mira Corgo, é um papagaio-cinzento e acho que gostou de me reencontrar.
Depois da cidade, acompanhando um troço íngreme, um riacho cada vez mais
volumoso disse-me naquela voz dele que era mais fá cil descer, seguir-lhe o exemplo.
Mas eu tinha pela frente o começo das vinhas, a minha estrada, e lá prossegui.
Hoje deu-se a novidade de muitos carros me apitarem. Quando o fazem, ando mais
ligeiro por uns metros, mas depois os mú sculos ressentem-se da surpresa e abrando.
* Lista de desculpas:
Porquê andar se é mais fá cil estar parado?
Agora custa mais do que depois.
A chuva nã o cura as dores nas pernas.
Só um idiota se faz a uma estrada que talvez nã o acabe.
Ao chegar à Cumieira, uma senhora esperou que eu passasse por ela. «Se vai para
Santiago, é no sentido oposto, tenha cuidado.» Depois de perceber que era mesmo
assim, no sentido de Faro, abriu-me a porta de casa e estendeu-me duas toalhas e um
secador. Descobri na casa de banho o prazer do ar quente nas mã os enregeladas, no
cabelo molhado e por dentro das sapatilhas. Voltar a calçá -las secas foi como pisar outro
mundo, tornar-me uma pessoa melhor. Como agradecer à Maria Rosa este conforto?
Mostrou-me também o que eu nunca tinha visto: uma olaria tradicional onde
recipientes guardavam á gua acastanhada que mais parecia o hidromel daqueles montes.
Afinal, esta terra dá mais do que vinho, também se faz em barro.
Depois do almoço, a chuva intensificou-se, o vento chicoteou. Estava tã o irritado que
comecei aos gritos: «É isto, é só isto que tens para dar?» Quem gere as nuvens nã o me
ouviu por causa do barulho do vento, e eu aprendi a amar a chuva como os navios amam
o mar: com medo.
Mas interessa lá bem, o Douro das vinhas pedia para ser contemplado. Da Cumieira a
Santa Marta de Penaguiã o, a paisagem tem mais mã o de homem do que os jardins
franceses, em nenhum lugar falha a atençã o para com as vinhas.
Daí em diante, aprendi que os ditados populares nem sempre têm fundamento.
Perguntar pode ofender. Os gostos discutem-se. E a descer nenhum santo ajuda. Valeu-
me, depois de vá rios quiló metros de descida, seguirem-se vá rios quiló metros de subida.
No total, estatisticamente, isto equivale a andar na planície, nã o é assim?
Os ú ltimos cinco quiló metros para a Régua estragaram um pouco as contas: o caminho,
descendo íngreme em direcçã o ao rio Douro, deu-me cabo das pernas. A direita nã o se
queixou; a esquerda distribuiu-me pancada, provocando dores que cantavam por mim
acima. Foi como uma pequena Natá lia de Andrade em pleno concerto nas minhas
articulaçõ es.
Para enganar as guinadas, prometi à perna esquerda só mais um metro, só mais um
metro, só mais um metro. E ela, inocente como as crianças, acreditou. Nã o fossem as
dores, teria sentido um certo peso na consciência por ter enganado assim tanto uma
parte do meu corpo.
No fim da jornada, mesmo perto da ponte da Nacional 2 que eu definira como objectivo
para o dia, uma rapariga saiu do carro para me dar um pacote de bolachas. Isto e o arco-
íris reflectido na á gua fizeram-me esquecer as dores. Quanto ao Douro, é bem o rio do
vinho: mal o vi, fiquei alegre.
Dormi na Quinta do Vallado, que me ofereceu quarto e jantar. Acontece que eu agora
estou um vagabundo, um coxo, um animal roçado pelas silvas da estrada. Fiz má figura
no restaurante, onde as vá rias entradas, os talheres brilhantes e o bom vinho iam
aparecendo como se eu fosse digno.
A Câmara de Santa Marta de Penaguião está na dianteira da Estrada Nacional 2. Aí
fica a sede da Associação de Municípios da Rota da Estrada Nacional 2, que reúne os
trinta e cinco municípios atravessados pela estrada. Um feito, juntar câmaras com
diversas orientações políticas, de norte a sul do País. A partir do terceiro dia, tive a
sorte de ser apoiado por esta Associação, que me ajudou a coordenar as generosas
ofertas de dormidas e refeições que iam chegando através das redes sociais.
DIA 4 › 25 DE ABRIL
PESO DA RÉGUA BIGORNE
30 km (só faltam 615)

Lembram-se de quando ainda éramos Neandertais? Nessa época, pensá vamos que
sermos nó madas acabaria em breve.
Um dia, escrevi uma carta de amor de um Neandertal para uma Sapiens. Começava
assim: «Sabes, meu amor, foi há quarenta mil anos. Conhecemo-nos nos primó rdios,
antes de Adã o e Eva comerem a maçã que nã o era maçã .» Depois de namorarem
centenas de anos à distâ ncia, assentaram arraias. Ele tornou-se mais Sapiens, ela mais
Neandertal, e juntos devem ter aprendido muito, só que ele extinguiu-se e ela
prosperou.
Mas eu sou ainda bastante Neandertal e bastante nó mada, apesar de hoje ter rogado
pragas ao sair da Régua rumo a Bigorne, uma subida de trinta quiló metros durante nove
horas até aos 987 metros, o ponto mais alto da Nacional 2.
Têm-me aconselhado a usar bastõ es. Como as lojas estavam fechadas por causa do
feriado, imaginei que usava um. Durante as primeiras horas, serviu-me de placebo.
Depois da Régua, a terra começa a desistir das vinhas. Os montes crescem e surgem
á rvores, cuja espécie nã o sei identificar (talvez carvalhos), que têm os ramos cobertos
por um musgo igual ao veludo das hastes dos veados. E descobri que as pedras deitam
sangue: quando encontrava xisto resvalado de uma encosta, por baixo cresciam
papoilas.
Nos vales, centenas de andorinhas-das-chaminés cruzavam-se no ar em busca de
insectos. A mim pareceu-me que teciam um véu para o lançarem sobre as montanhas,
mas a chuva era o ú nico véu.
A meio da jornada, depois do almoço, uma caravana de motos passou por mim e quase
todas apitaram. Talvez chegassem a cinquenta: o cortejo demorou dois minutos e
deixou na estrada um rastro de ausência que apaguei caminhando.
Agora, que falei das coisas boas, posso falar das outras. O mau tempo despediu-se de
mim como aquelas pessoas que nunca mais se vã o embora no fim das festas. Até
Lamego, foi tolerá vel. Nos quinze quiló metros que se seguiram, enquanto passava por
Matancinha e por Matança, localidades perfeitas para uma luta épica com a
meteorologia, tive de improvisar guelras para respirar no meio de tanta chuva.
A á gua ensopou as sapatilhas dando-me o privilégio bíblico de caminhar sobre á gua.
Vergastado, concentrei-me em cada passo enquanto ouvia nos auriculares a banda
sonora do Blade Runner 2049, iludindo-me com a esperança de ver nevar no topo da
serra. É que eu nunca vi nevar. Canto muito mal, mas como na estrada ninguém me
ouve, canto muito bem: ir cantando foi a ú nica forma de me abstrair do temporal.
Já perto de Bigorne, os rá pidos do rio Balsemã o lembravam uma faca branca a cortar o
monte. A chegada à aldeia trouxe-me a Isabel, uma senhora que me cedeu a casa da mã e
para dormir e onde tomei o melhor duche da minha vida. De seguida, comi a melhor
feijoada, bebi o melhor vinho. Tudo graças à Isabel, que agora está a secar a minha
roupa.
Nã o cheguei a ver nevar. Num maciço distante, por entre as nuvens, vi estrias de
branco vidrado, mas ficava muito longe, por isso nã o conta.
Receita para a melhor feijoada da vida. Durante nove horas – sem esquecer a
mochila de treze quilos –, subir a pé a Serra de Bigorne debaixo de um vendaval.
Quando os dedos ficarem enregelados e perros, as pernas dormentes e a cara perder
a sensibilidade, está pronto a ir para a mesa. Qualquer feijoada serve.
DIA 5 › 26 DE ABRIL
BIGORNE ARCAS
25 km (só faltam 590)

Tenho-me lembrado muito do Principezinho porque ele andou de planeta em planeta.


Caminhando pela estrada, também viajo entre planetas. Depois de alguns quiló metros
isolado, lá avisto alguém.
Quando me encontro entre pessoas, há cã es que ladram e cã es que ameaçam, além de
paisagens e de imaginaçõ es só minhas que animam a monotonia.
Perto do Mézio, uma pastora guardava quatro ovelhas, três cabras e um xaile. Aos
animais, guarda-os com os olhos e a ajuda de um podengo. Ao xaile, guarda-o nas mã os
enquanto o tricota, olhando os animais e os pontos à vez. Nasceram cordeiros mas ela
disse-me que nã o contam para o rebanho. O xaile também nã o conta. Prossegui sem lhe
pedir conselhos para a vida. Daqui em diante, nã o me esqueço.
Quiló metros depois, num café, encontrei a foto de um rapaz com a legenda «Procura-
se». Nã o a imprimiram grande nem a colaram à porta: estava pousada na caixa
registadora. Este desaparecimento discreto, em tamanho minú sculo de foto tipo passe,
acompanhou-me nas horas seguintes: o buço e a expressã o do rapaz desaparecido
surgiam nas curvas da montanha.
De seguida, passei por uma sucata onde se ouvia alto Chico Buarque – ou entã o era só
dos meus auriculares. Em duas ocasiõ es, cheguei à berma florida onde alguém morreu.
As flores continuavam frescas por haver quem as renove. Esses, sim, têm uma relaçã o
íntima com a estrada.
Entretanto, distraio-me com palhinhas. Procuro-as no mato iguais à s que o Lucky Luke
usa, já que ele agora nã o pode fumar. Ao largo de Castro Daire, mastiguei a palhinha
perfeita ao atravessar o Paiva, rio onde em tempos imaginei personagens como o Miguel
e a Luciana.
Mais à frente, antes do Vale de Azia, dois chaços amarelos ultrapassaram-se em
despique ao meu lado, ia eu apoiado a um ramo que improvisei como cajado. Uso-o com
as duas mã os em movimento de remar. Agora posso dizer, sem mentir, que um dia
remei em alcatrã o, mas também posso dizer que, em vez de bolhas nos pés, fiquei com
bolhas nas mã os.
Sempre que passo à frente dos quintais, os cã es ladram. «Cuidado que eu mordo»,
berro-lhes, e eles acanham-se. Os gansos fazem mais barulho mas nã o percebem a nossa
língua, nunca desistem de grasnar.
Depois de cinco dias, finalmente o céu sem nuvens, o calor a secar o tronco das á rvores.
E a estrada a dizer-me que hoje compensou ontem – compreendo por fim a língua dela.
DIA 6 › 27 DE ABRIL
ARCAS VISEU
25 km (só faltam 565)

Acordei de madrugada no albergue com o canto de um galo.


A julgar pela rouquidã o, o bicho nã o só é velho como sabe que se livrou da panela.
Canta impune. Ainda bem que nã o lhe deram chá s de afinar a voz, ter-me-ia acordado a
dobrar.
Tentando adormecer, senti o peso da mochila nas costas que afinal era o peso da
ansiedade. Dar-lhe um nome talvez alivie, mas, como a ansiedade nunca é apenas uma,
em alternativa vou escolher um nome para a minha mochila.
Pouco depois de retomar o passeio, debaixo do sol recém-voltado, molhei os pés num
riacho e deixei-os à deriva até os diluir na corrente fria. Tive de os tirar, assustado
porque sem pés nã o chego a Faro. Mas a dormência soube bem.
O calor excitou as cigarras, que cantam mais alto quando me aproximo. Suado,
ná ufrago da estrada, convenci-me de que se riam de mim. O alcatrã o, que detesta o sol,
devolveu-mo como presente. Eu bem lhe disse que tinha o bastante, mas ele nã o me
ouviu. Já estava anfíbio, agora urge tornar-me dromedá rio. Por enquanto, sou apenas
um anfíbio torrado na berma da estrada.
Depois de quinze quiló metros sem ver ninguém excepto os montados nas Vespas, tive
de me atracar ao alpendre de uma casa. Chamei, ninguém respondeu. Acabara de
encharcar o cabelo com a mangueira da casa quando um cã o se aproximou para me
lamber as pernas. Ao que parece, gostou do sabor das pomadas e ficou uns minutos
encostado a mim a pedir mais. Antes de partir, estú pido, deixei uma nota na torneira
por ter roubado a á gua. Decerto ter-ma-iam oferecido sem aceitarem recompensa.
Quiló metros depois, em Almargem, descobri por fim uma espelunca paradisíaca onde
um casal de peregrinos almoçava bacalhau. Sentado numa espreguiçadeira, o rei do sítio
gesticulava com um mata-moscas. Ao terminar as frases, batia com o mata-moscas na
mesa para assinalar o ponto final. Achei bonito o ceptro daquele rei.
No fim do almoço, os peregrinos e eu abraçá mo-nos com força, nó s que seguíamos em
sentidos opostos: eles para Santiago, eu para onde conseguisse chegar.
Daí em diante, até Viseu, as pessoas fugiram da estrada por causa do calor. Como eu me
convenci de que já sou dromedá rio, segui em frente até os pés, as pernas e os mú sculos
pedirem mais diplomacia, mais refresco. Mais abrigo.
Estava quase a parar quando, na curva da estrada, apareceu a Serra da Estrela – e é
preciso vê-la com tanto calor para a ver com tanta neve. Nã o sei se o meu corpo
concorda, mas bastou-me olhá -la para arrefecer.
Cheguei a Viseu escorrido em suor e enervado porque as placas anunciavam centro,
centro, centro, mas as rotundas sucediam-se, prolongando os arredores da cidade. Por
causa do cansaço, o nome da mochila ficou por escolher.
A Nacional 2 tornou-se rota de peregrinação. Percorrem-na motas, muitas vezes
agrupadas por marcas – como aconteceu neste dia, em que dezenas de Vespas
fizeram o sentido Faro-Chaves –, várias bicicletas a solo ou em grupo, e muitas
autocaravanas. Até houve quem a desafiasse de trotineta.
DIA 7 › 28 DE ABRIL
VISEU ADIÇA
30 km (só faltam 535)

A mochila chama-se Bossa e os novos bastõ es sã o os meus sabres de luz. Com eles,
sinto-me um Jedi dorido.
Em Viseu, centenas de pessoas ultrapassavam obstá culos numa prova de atletismo
supervisionada pela polícia. Observei-os, sobranceiro. Pareceram-me satisfeitos como
os hamsters na roda. Depois ocorreu-me que nos assemelhá vamos; a minha roda é
apenas um pouco maior. Nos arredores ultrapassei um grupo de peregrinas que rumava
a Fá tima. Partiram ontem e caminham leves, sem desconfiarem da jornada. Ou talvez
aceitem os contratempos e sejam felizes. Daí em diante, até Macieira, tomá mos à vez a
dianteira. Depois o caminho bifurcou-se e durante umas centenas de metros creio que
ainda as ouvi rezar em conjunto. Também posso ter ouvido o barulho dos pá ssaros
entre a folhagem, que por vezes lembra frases perdidas.
Na zona de Fail, a estrada mete-se no bosque e os carros raramente aparecem. Quanto
mais escasseiam, mais eu quero ir neles. Em vez de olhar para os plá tanos, os
castanheiros e os pinheiros, dei por mim em busca do metal e da borracha.
Por esta altura, o pé direito tinha desistido de me sustentar. O calor de ontem cozeu-o e
as engrenagens enferrujaram. Eu andei ainda assim, mas sentia que a perna me
acompanhava, queixosa, uns metros atrá s, qual contrapeso.
No outro lado de uma ponte, encontrei duas carrinhas. Atrá s delas, à sombra, estava
uma família de ciganos. Interromperam o almoço para me observarem: quinze pessoas e
respectivos olhos. Como me encaravam sem ceder, decidi sentar-me com eles. A
matriarca entregou-me de imediato a sua cadeira e deu ordens aos familiares para me
porem confortá vel. O pé direito sentou-se comigo como se nã o fosse um empecilho.
Apesar das dores, a companhia acalmou-me.
Em poucos minutos ficá mos tã o confortá veis uns com os outros que pude observá -los
em silêncio. Uma mulher amamentava um bebé. O irmã o mais velho bebia leite de um
prato de sopa e olhava sô frego para a mã e e depois para mim, sorrindo como se eu
soubesse que ele preferia beber de outro sítio. A carrinha aberta mostrava lares
improvisados, verdadeiros refú gios para avó s, filhos, netos e bisnetos. O homem mais
velho ordenava com segurança, mas do outro lado da mesa a matriarca acenava devagar
a dizer que sim – sem ela, o velho nã o mandava.
Aliviado naquela cadeira de plá stico, lembrei-me do empregado do restaurante nos
arredores de Viseu, que resistira a deixar-me sentar quando pedi um café. «As mesas
estã o postas para a refeiçã o.»
Já perto de Tondela, descobri que afinal as minhas pernas nã o sã o irmã s: a esquerda
recusa-se a partilhar a dor da direita. Durante o dia, apesar das ú ltimas cinco horas em
que caminhei por despeito contra o pró prio corpo e por teimosia infantil, animou-me a
ideia de chegar ao marco do quiló metro 200. Os nú meros redondos dos marcos
reconfortam: alcançá -los equivale a conquistar a estrada.
Cheguei ao troço do 200 pronto a deitar-me no passeio, mas nã o encontrei qualquer
marco. Para meu desespero, também faltava o do 201. Resisti mais um quiló metro e
sentei-me em cima do 202 para ele ver quem manda. O pé direito é que talvez nã o tenha
resistido.
De Chaves a Viseu, os marcos originais estão mais ou menos bem conservados. Daí
até Abrantes, uns desapareceram, outros estão descaracterizados ou escondidos
pela vegetação. O Alentejo é mais regular, embora alguém tenha tido a ideia
caricata de pintar alguns como Estrada Regional 2. Pelo que me disseram, em breve
toda a Nacional 2 terá marcos em condições, de acordo com a tipologia original.
DIA 8 › 29 DE ABRIL
ADIÇA SANTA COMBA DÃO
12 km (só faltam 523)

A infâ ncia fica a uma semana de distâ ncia a pé.


Duzentos e quinze quiló metros depois, foi aí que cheguei: só à s crianças se oferece
ajuda na berma da estrada; só à s crianças se abre a porta de casa; só a elas nã o se cobra.
E só a elas se conta a vida de enfiada, sem reservas. O pudor fica para mim, que nã o sei
como reagir a tanta generosidade. E também sou criança assim: nunca o meu corpo se
modificou tã o depressa como desde essa altura.
Acordei com os mú sculos dos tornozelos inchados e passei a noite a compressas
geladas. Apesar dos bons lençó is e de pessoas como a Ana, que nã o só me ofereceu
estadia em Santa Comba como me foi buscar ao quiló metro 202 com á gua fresca, senti-
me condenado a trabalhos forçados na estrada. A imaginaçã o tornou-se defeituosa a
ponto de o futuro entrar por uma porta escura.
Ontem, depois de trinta quiló metros que me avariaram as articulaçõ es e durante os
quais me atrapalhei com os bastõ es como a centopeia a pensar onde põ e as patas, nã o
sei como escrevi o diá rio – mas sei que nã o fiz jus à família de ciganos que me ajudou.
Umas horas depois do nosso encontro, três deles ultrapassaram-me a pé rumo a
Fá tima. Entã o sabiam como era caminhar. Disseram-me «sabemos», palavra que nos
uniu até eles desaparecerem na curva mais adiante.
Hoje, retomado o caminho, desta feita mais breve, reparei que os eucaliptos se tinham
vestido à pressa, o que me distraiu de pensar em como gosto do cheiro das tá buas
recém-cortadas. Ali perto, ouvia-se o trabalho de uma motosserra. Entrei na mata em
busca dos lenhadores.
Estavam três em volta de um eucalipto de trinta metros que mal escondia o preto do
tronco com a nova folhagem. «O que queima é a incú ria», disse-me o encarregado depois
de dar indicaçã o para o abate.
Ouvi o lamento interior da á rvore, uma sú bita despedida, e o tronco fez tremer a terra
sob os meus pés. Aquele eucaliptal quase nã o sobreviveu aos incêndios de Outubro, que
fizeram brasa da terra seca, queimando as raízes. E agora a á rvore tinha morrido.
Sentia-se o cheiro a madeira e a rebuçado. Antes de nos despedirmos, talvez pela
cerimó nia a que assistira, pedi ao encarregado conselhos para a vida. «Nã o mintas e nã o
faças tatuagens.»
Ao largo de Santa Comba, reparei que a neve tinha derretido na Serra da Estrela. Agora
os navios naufragados podem emergir nos lagos da montanha, como escreveu Melville
acerca dela. Isto lembrou-me de que a estrada é apenas o caminho para o mar.
Almocei sozinho ao balcã o de uma tasca ladeado por duas pessoas também sozinhas,
portanto está vamos os três acompanhados.
Em Santa Comba, duas senhoras varriam o chã o com uma vassoura desenrascada com
galhos de gilbardeira. A Câ mara tarda em dar vassouras e as que dá sã o duras, forçam
muito os punhos. Mas agora é mais difícil varrer: os incêndios levaram quase todas as
gilbardeiras. Por ali, um Canadair em voos rasantes lançava á gua imaginá ria num fogo
que ainda nã o começara.
Depois fui ao Centro de Saú de zelar pelos mú sculos. A enfermeira aconselhou descanso,
coisa que nã o tenho para me dar, mas achou que os pés até estavam a sobreviver. Para
lá , uma família deu-me boleia. Para cá , a taxista recusou-se a receber.
Irritou-me ter passado por uma carrinha cujo logo era o Papa-léguas a pô r-me a língua
de fora, mas aprendi que andar menos por vezes nos leva mais longe.
DIA 9 › 30 DE ABRIL
SANTA COMBA DÃO PENACOVA
30 km (só faltam 493)

Hoje andei com quatro pernas. Duas nã o eram minhas, pertenciam à Isabel Pessô a-
Lopes, caminhante da terra e dos astros. A Isabel guiou-me pela ponte sobre o Dã o e
explicou-me que um seixo pequeno debaixo da língua disfarça a sede. Quer dizer que as
pedras dã o de beber. Há três dias nã o nos conhecíamos, esta manhã despedimo-nos no
melhor sítio, o Cantinho dos Amigos. Até agora, estive acompanhado sem companhia
porque já tenho alguns mortos com quem caminhar.
Por vezes penso que a Ariana se encontra à distâ ncia, no asfalto. Certo dia, uma mulher
de cabelo ainda curto espreitou para o meu gabinete na editora Presença, onde eu
trabalhava. A voz fininha era de criança e a inocência também. Ficá mos amigos porque é
impossível nã o ficar amigo de pessoas boas, de alguém que me dizia – mais tarde, já a
morrer – «quando finalmente pudermos fazer o passeio será certamente magnífico».
Nã o passeá mos e nã o foi magnífico, mas a Ariana continua algures à frente na estrada,
cheia de cabelo onde havia uma careca à Cebolinha, finalmente passeando comigo.
A minha avó também anda por aqui. Mas a minha avó morreu aos 102 sem ter
emprestado alguns anos à Ariana, que tinha 48, e foi-se apagando pela ordem certa,
primeiro a cabeça, depois o corpo. Talvez a morte nã o exista para as pessoas que nã o
percebem que vã o morrer.
Por muito que avance, e já caminhei duzentos e quarenta e cinco quiló metros, nã o as
alcanço. Sã o verdadeiras miragens sobre a estrada.
Antes de o IP3 se sobrepor à Nacional 2, vi num horto três raparigas bonitas a porem
terra em vasos de plá stico. Nã o sei porque segui sem lhes falar. A determinado
momento, a seguir à s vias paralelas ao IP3, só pude andar pela ponte da via rá pida,
animado por haver uma lagoa azul do outro lado da margem. Durante a travessia, as
andorinhas-dá uricas voaram para baixo do tabuleiro carregando no bico pedaços de
terra. Nã o os levavam para os ninhos, de certeza que os queriam depositar sob os meus
pés para eu caminhar melhor.
Afinal a Lagoa Azul era o nome de um restaurante tã o maternal como o Bates Motel.
Hordas de gente desamparada saíam de camionetas, punham-se ao balcã o, sentavam-se
nas mesas, exigiam e tornavam a exigir. Um homem ajustava o boné voltado para trá s (o
meu está sempre para a frente para mostrar o logo do Forrest Gump), outro cuspia no
chã o. O empregado, que mastigava pastilha de boca aberta, nã o lhes ficava atrá s. Mas até
no Bates Motel encontramos belos apontamentos: numa das mesas, uma senhora
arranjava o peixe em pedaços perfeitos, sem qualquer espinha, para os depositar na
boca catató nica do marido.
Até à barragem da Aguieira, de pessoas só vi uma pegada na berma. A partir daí, fui de
costas para suavizar a descida. Fez-me falta um retrovisor. No sopé da barragem, ouvia-
se um zumbido eléctrico igual a câ nticos. Ou estava no bom caminho, ou eram já as
minhas exéquias: mais à frente, para convergir na Nacional 2, precisava de passar pelo
IP3.
Diz-se que na guerra é bom sinal ouvir os rebentamentos das bombas. Numa via
rá pida, quase auto-estrada, também é bom ouvir o estrondo dos camiõ es. E foi entre o
movimento dos carros que atravessei as faixas, IP3 acima. Raiva ao mundo. Raiva à vida.
Para andar aqui, fingi detestar tudo como os que vivem em combate com os outros. Ao
lado de carros a cento e cinquenta, que traçavam o ar como derrocadas, e de
ultrapassagens que roubavam a respiraçã o, deve ter sido a primeira vez que este tipo de
raiva me serviu para alguma coisa.
À saída, suado do esforço e dos nervos, encontrei o café Vida Nova mas estava
abandonado. Embora tivesse chegado ao Porto da Raiva, agora podia prosseguir com
mais calma.
Antes de Penacova, uma central eléctrica cantava como a barragem – ainda bem que
nã o eram as minhas exéquias.
O troço de Santa Comba Dão a Penacova é o mais exigente e confuso da Nacional 2.
Na verdade, o IP3 quase a substituiu na íntegra. Por norma, os motorizados (os que
não andam a pé) seguem simplesmente pelo IP3 até Penacova. Faz-se em vinte
minutos. Os puristas, que são os estúpidos como eu, saem da ponte do IP3 na
margem sul do Dão e tomam os troços existentes, conforme segue. Continuar pela
estrada indicada como Nacional 2 até esta acabar num viaduto sobre o IP3. Passar
para o lado norte e prosseguir pelas ruas Serra do Santo, Corga, avenida Cova do
Ouro e rua Rabicão, que contorna a bomba da Cepsa numa descida isolada e
íngreme. Ouvir o vento de chapa na água. Mais à frente, é preciso puxar pela
imaginação: a rua Rabicão desemboca no início da segunda ponte do IP3 sobre o
Dão, e há que galgar os railes para chegar ao passeio exíguo que, em teoria, tem
espaço para os peões.
No outro lado da ponte, sair na rua que contorna em descida o restaurante Lagoa
Azul. Encontrar o caminho mais rápido para a N228, que leva à barragem da
Aguieira. Depois da barragem, descer na primeira à direita e prosseguir pela rua
calma que acompanha o Mondego. Perto da Nossa Senhora dos Caminhos, acabam
as ruas alternativas. Pare, escute, olhe – como nos comboios. Passar para o outro
lado do IP3 e subir pela direita até à primeira saída, no largo Alto das Lamas.
Respirar a bênção da vida. Mais à frente, a rua Nossa Senhora da Boa Viagem
transforma-se na Nacional 2. Dizer olá à velha amiga depois de um dia complicado.
DIA 10 › 1 DE MAIO
PENACOVA GÓIS
30 km (só faltam 463)

Os meus amigos têm telefonado para saber se estou bem. Quando a rede falha,
inexplicavelmente atende uma brasileira. Nã o se preocupem, a brasileira está bem.
De manhã cedo, depois de Penacova, a vá rzea do Mondego tapou-se de nevoeiro e as
mulheres aproveitaram para cuidar da terra. Espanta-me que os homens fiquem em
casa sem as ajudar. Vejo-as ao longe, de avental, lenço na cabeça e socas, agarradas à s
enxadas, e lembro-me da senhora Maria, de uma certa aldeia, que domina os campos, os
rancores e o marido. É das pessoas mais vivas que conheço. Quanto à s mulheres da
vá rzea, revolvem a terra como quem conta histó rias de embalar. De solo fino e bem
sulcado, os campos parecem camas acabadas de abrir para os filhos.
Falei com uma mulher que semeava feijõ es com tanto cuidado que era já como servir a
refeiçã o. Desejei-lhe boas feijoadas.
Antes de subir em Ventosa e me isolar durante alguns quiló metros, espreitei uma
garagem onde teias cobertas de pó ligavam montes de entulho. No meio da sujidade, um
carro brilhava como se lhe tivessem passado o pano. Nunca percebi a obsessã o de certas
pessoas por carros, mas aquele meio de locomoçã o de tal forma estimado deu-me mais
carinho pelas minhas pró prias pernas. Apeteceu-me puxar-lhes o lustro e guardá -las
numa garagem.
No meio dos montes que antecedem Vila Nova de Poiares, ouvindo o Stabat Mater de
Pergolesi, quase fiquei irmã o de Chris McCandless (aliá s, Alexander Supertramp).
Compreendi o apelo da solidã o e dei por mim a pensar num Alasca à portuguesa, talvez
no Gerês, mas sem desejar o mesmo desenlace de Chris, para quem solidã o era sinó nimo
de egoísmo. Ou talvez o encanto da floresta isolada nã o fosse o espírito de Chris mas a
mú sica, que é muita gente unida para o belo. E isso é o contrá rio da solidã o. E portanto é
o contrá rio de egoísmo.
Em Vila Nova de Poiares, almocei leitã o frio. Provavelmente por me ter sabido a
caminho feito, pedi conselhos ao dono.
«Faz o que gostas, segue em frente mas nã o te esqueças de olhar para trá s.»
Durante muitos quiló metros fui vendo um papel colado em tá buas lisas, postes,
paredes. Mostrava a fotografia de Maria do Espírito Santo, que morreu ontem aos 99
anos. Lia um destes anú ncios quando um velhote berrou lá do fundo de um quintal: «Tu
nã o chegas lá , tu nã o chegas lá .» Pedi para entrar e perguntei-lhe: «Se nã o sabe para
onde vou, como sabe que nã o chego?» E ele esclareceu que eu nã o chegava aos 99. Como
por enquanto só preciso de chegar a Faro, nã o me preocupei.
Agora ando com um pano molhado debaixo do boné. À entrada de Olho Marinho, um
grupo de crianças chapinhava numa piscina de plá stico. Pedi-lhes que encharcassem o
pano. Antes de o molharem, abriram muito os olhos para dizer: «Quando quiser,
descanse.» As crianças lá saberã o o valor do descanso.
Desejava desde a partida tomar banho num rio: antes da chegada a Gó is, a corrente
gelada do Ceira levou o meu cansaço. Deitado na relva que acompanha o rio, senti o
embate da á gua a secar no corpo, o sol a assentar em mim e os inú meros insectos que
tocavam na minha pele sem maldade. Fechando os olhos, deixei que as pulsaçõ es
marcassem o ritmo deste movimento. Depois adormeci.
Mais tarde, jantei com a família de Joã o Paulo Neves Rosa, cuja mã e me adoptou como
alguém da casa – «deixem-no descansar, que ele precisa» –, e bebi aguardente com o Rui
Figueiredo. Ambos seguiram estes textos e quiseram acolher-me, apesar de eu ser
apenas um gajo a abusar das pernas. Receberam-me como se eu levasse comigo todas as
pessoas do caminho.
DIA 11 › 2 DE MAIO
GÓIS PEDRÓGÃO GRANDE
45 km (só faltam 418)

Contratempo logo a começar: depois de Gó is, na subida a caminho do Cimo do Além, as


placas proíbem de andar a mais de setenta quiló metros por hora; lá me vi obrigado a
abrandar o ritmo.
Ontem foi o primeiro dia de verdadeiro passeio. Quando corre bem, a estrada lembra
uma pele por onde deslizo. Pena ser pele de crocodilo.
Eu julgava que o Cimo do Além devia ser um sítio bonito. Quando lá cheguei, espantado
por tal me ser permitido em vida, percebi que se chamava Cimo de Alvém, mas também
era bonito.
A caminho de Cabeçadas, na Serra do Açor, olhei para norte, de onde vim. A terra
estendia-se em gradaçõ es de azul. A vá rias vezes a distâ ncia que a vista alcançava, ficava
a rotunda de onde parti. Terei sentido alegria ou perda.
Depois de uns quiló metros de subida, deu-se o acontecimento mais maravilhoso: o
cheiro de uma colmeia selvagem. Eu, que já fui apicultor nos tempos livres, nunca
cheirei nada assim. Era mel, eucalipto e zumbidos de abelha.
O pano encharcado alivia sem curar. A determinado momento, por causa do calor ou da
imaginaçã o, uma esmeralda aproximou-se pelo ar pousando aos meus pés sem barulho
de pedra a bater no chã o. Afinal era um escaravelho e, embora nã o o tenha apanhado
para vender, valia muito dinheiro. Mais à frente, alguém atirara um reló gio de cuco para
a encosta. Ouvi-o dar as horas e demorei a convencer-me de que o som vinha mesmo do
pá ssaro.
E aqui começou uma exaustã o estranha que me impediu de parar ou abrandar. Parecia
o fim psicadélico do 2001: Odisseia no Espaço, em que realidade e sonho se combatem.
Nã o era um jogo de luzes, mas um modo de ver: as curvas sucediam-se num tú nel por
onde o meu corpo passava, macerado mas indiferente. Quando achei melhor parar,
decidi fazer mais dezasseis quiló metros para tocar na placa de Pedró gã o Grande, e lá fui
em descida contínua pela bacia da Serra da Lousã . Em Alvares, os bombeiros
esperavam-me com um alguidar de á gua salgada. Que bom por enquanto só cuidarem
de pés cansados. Em todo o caminho fui descobrindo as cicatrizes dos incêndios. A
natureza esquece, a gente é que nã o.
No meu primeiro livro escrevi que as montanhas se parecem com uma mulher despida
mas em verde. Que erro, as montanhas parecem-se com montanhas – doze quiló metros
de subida e dez de descida permitem-me dizê-lo.
A generosidade das pessoas continua um bá lsamo que refresca. Carros apitam, motos
param, bicicletas conversam. Fiz um novo amigo, o Joã o Reis Antã o, que deve ser uma
espécie de santo. Já eram nove da noite, a minha fixaçã o à Kubrick mantinha-se, embora
pousar os pés significasse dar-lhes chicotadas, e a placa de Pedró gã o continuava por
aparecer. Anoitecia. O colete amarelo esforçava-se por reflectir o pô r-do-sol. O Joã o
encontrou-me na berma e durante uma hora protegeu-me, acompanhando-me de carro
em marcha lenta com os quatro piscas.
Ao tocar na placa, o filme acabou. Depois de quarenta e cinco quiló metros de
montanha, quer-me parecer que o calcanhar acusou o esforço. Só espero que nã o seja o
de Aquiles.
Com o acumular de caminho, os marcos davam pretexto para descansar. Escondido
atrás dos railes na descida final da serra, o marco dos 300 tem um significado
especial: daí ao ponto de partida vai a distância de Lisboa ao Porto.
DIA 12 › 3 DE MAIO
PEDRÓGÃO GRANDE SERTÃ
24 km (só faltam 394)

Desci as escadas até à saliência de pedra na encosta, defronte da barragem do Cabril.


Gritei «Olá !» e a parede de cimento respondeu-me «Olá !». Conversei uns minutos com a
barragem, mas ela estava demasiado distraída a conter o Zêzere e limitou-se a repetir o
que eu lhe dizia. Conversamos tantas vezes sozinhos uns com os outros que nã o me
importei.
Uns quiló metros depois, cheguei a uma raposa morta na estrada. Eu queria a
companhia de um rafeiro mas agora prefiro a de uma raposa, se possível aquela.
Durante o dia podia ter-me seguido ao longo da estrada. Farejaria o meu percurso, poria
o focinho no ar para apontar o rumo. A cauda cheia, os bigodes tocando nas poças de
á gua e nos troncos. De noite eu dormiria nos albergues ou em casas de desconhecidos e
ela caçaria musaranhos. De manhã continuaríamos a passear e, em menos de nada, ter-
nos-íamos cativado. Deixaria de ser para mim uma raposa igual a cem mil outras
raposas. Bem melhor do que jazer na berma de ossos para fora.
Perto da Amieira, um homem aplanava a terra com um tractor, contornando as
oliveiras com destreza. Ia pedir-lhe que me ensinasse a manejar o tractor quando ele
saltou do banco e se pô s a cismar num dos pneus, que esguichava. Incapaz de lhe
resolver o furo, disse: «Ao menos nã o vai a pé para Faro, como eu.» E ele lá ficou,
aliviado por só ter de mudar um pneu.
Entretanto, eu e as minhas sapatilhas estamos tantas horas juntos, e elas servem-me
tã o bem, que à noite me apetece dar-lhes um beijo e levá -las comigo para a cama.
A meio caminho entre Pedró gã o e a Sertã , onde faltam pessoas, pouco depois de
perceber que nã o empacotara comida suficiente, sentei-me em cima de urtigas. Quer
dizer que tenho dois condõ es: a pontaria e a previdência. Sem cafés à vista, chamei uma
senhora recolhida no seu quintal para lhe pedir indicaçõ es. E comida. Ela estranhou,
disse que nã o tinha nada. Quando me viu prosseguir é que se decidiu. Nã o tinha nada
mas deu-me tudo o que tinha: uma maçã e uma fatia de bolo do padeiro, como lhe
chamou.
Bastou-me para chegar ao café da Pó voa da Granja, onde me serviram um caldo-verde
da panela da família. «As autoridades só querem inox, multam tudo, nã o me deixam
servir esta sopa», disse-me a dona. E eu pensei que as autoridades nunca proibiriam
aquela sopa se a comessem. Nas paredes havia fotos de cavalos com flores, de crianças
em cima de cavalos, calendá rios antigos e o horá rio de atendimento da Dr.ª Cielos, que
trata o mau-olhado à s segundas.
Antes da Sertã , aconselhado pelo caldo-verde, deitei-me à sombra de um sobreiro,
imaginei o fio de estrada que ficou para trá s e adormeci.
DIA 13 › 4 DE MAIO
SERTÃ VILA DE REI
25 km (só faltam 369)

Depois da Sertã , a Nacional 2 disfarça-se de via rá pida, o que me deu muito jeito para
chegar depressa a meio da viagem.
Antes de as pessoas desaparecerem, pus-me a observar um homem que lançava
esguichos de pesticida para as copas das cerejeiras. Matava formigas como quem cata
piolhos à tesourada. As cerejas ficaram salpicadas de branco como uma cobertura
mortal de açú car.
A fonte da Junceira foi construída em 1966 só para mim. A torneira estava à altura
ideal: foi bom pensar na humidade da terra a dar em corrente, a fazer-se em lençol e a
meter-se pela canalizaçã o – acabando fresca na minha nuca.
Daí em diante, a estrada alarga, cava-se em V e mostra flancos de pedra, embalando o
calor num colo fundo. Em criança, devo ter gostado de colo, mas nã o era bem como este.
A estrada tornara-se líquida mas continuava só lida – as miragens juntavam-se aos
reflexos brancos dos meus ó culos escuros.
A meio do dia, esquivei-me por um caminho de terra batida que levava à represa do
Isna. E aí, ao tirar os ó culos, descobri que os reflexos brancos eram brancos mas nã o
eram reflexos: milhares de flores de esteva tapavam as colinas. Almocei abrigado por
um arbusto e nã o sei o que me soube melhor, se comer, fugir do sol ou ouvir a á gua que
saía da represa em cascata.
Durante quiló metros, enquanto a estrada sem sombras me destilava, só vi pinheiros,
estevas e moscas. Algumas destas beberam na minha pele. Deixei-as estar – ao contrá rio
de mim, podiam apanhar boleia.
Nos arredores de Vila de Rei, encontrei por fim pessoas onde elas faziam mais sentido.
De roda de uma fonte. Vê-las foi como beber á gua. Mas beber á gua foi melhor do que vê-
las.
Segui mais facilmente para o marco 369, que fica uns quiló metros depois do marco
geodésico que assinala o centro do País. Durante a noite decido se já cheguei a meio ou
se ainda me falta metade.
A caminhar também se aprende a meter conversa. Até Vila de Rei, parava ao pé de
alguém e perguntava: «Para onde vou?» A surpresa da pergunta, e a maior surpresa
da resposta, quebravam as barreiras e daí em diante conversávamos como amigos.
Depois de Vila de Rei, visto que para trás era mais longe do que para a frente, passei
a perguntar: «De onde venho?»
DIA 14 › 5 DE MAIO
VILA DE REI ABRANTES
35 km (só faltam 334)

Como tem ritmo a Bossa Nova! Alcei-a no começo da jornada e pesou-me menos do que
a mochila velha, cuja armaçã o empenei. Também gastei os sabres de luz até ao sabugo
mas já lhes pus outros calços. Falta-me substituir os pés para completar a revisã o.
Na hora do lobo (como ouvi Má rio Clá udio chamar aos momentos em que a noite pesa),
estive prestes a decidir que ainda me faltava metade. Depois adormeci e felizmente de
manhã já tinha chegado a meio.
Segui a assobiar pela estrada velha que, quiló metros depois, converge com a variante
larga no Sardoal. Descrente de que valesse o esforço, desci à praia do Penedo Furado
pelo trilho íngreme da encosta. Caminhei descalço pela margem fria até os pés
acalmarem. Pensava que passear assim era como dar a mã o a uma namorada quando
uma cobra se juntou a mim. Apanhei-a para observar melhor o reflexo dos olhos e o
brilho das escamas. Ela enrolou-se-me nos dedos protestando com a língua. Eu nã o a
entendi mas ela deve ter dito: «Liberta-me.» Obedeci-lhe abrindo a mã o à tona e a cobra
desapareceu na corrente.
A caminho de Andreus, a estrada fica uma tira de alcatrã o esquecida de pessoas e de
carros. Pus o Requiem de Mozart alto para nã o ser apenas eu a ouvi-lo – mas os
pinheiros e os fetos mantiveram-se indiferentes; só se comovem com o vento.
A determinado ponto, encontrei um tijolo pousado num pilarete. Nele alguém
escrevera NÃ O MEXER. Tamanha proibiçã o, na Nacional 2 onde até o Requiem é
permitido, foi tã o inesperada e injustificada que eu só podia ter chegado a uma qualquer
Á rvore da Ciência do Bem e do Mal. Pouco antes, até conversara com uma cobra. Quase
obedeci – preferia nã o descobrir que estava nu –, mas naquele isolamento dispensava
bem a roupa. Agora o tijolo diz porque o virei ao contrá rio. Talvez daqui
para a frente tenha de caminhar rumo a leste em vez de para sul.
E parece que tive mesmo puniçã o. Depois do Sardoal, voltei à estrada feita via rá pida,
como ontem. Mais oito quiló metros de castigos mitigados pelo Bruno Marques Centeio,
que me aguardava nos arredores de Abrantes com a mã e e, delícia para quem foi
expulso do paraíso, um bolo acabado de fazer. Quente no tupperware.
Depois cheguei ao Tejo.
A seguir a Vila de Rei, há quem siga pela variante moderna da Nacional 2, que não
passa de um deserto de alcatrão. É melhor e mais bonito pelo traçado original, que
começa à esquerda na última rotunda de Vila de Rei, em direcção a Vale de Grou, e
prossegue para o Penedo Furado, passando depois por Brêscovo, São Domingos,
Andreus e por fim Sardoal, onde converge de novo com a variante rápida. De São
Domingos ao Sardoal, quase ninguém passa: pode-se dormir a sesta no meio da
estrada.
DIA 15 › 6 DE MAIO
ABRANTES PONTE DE SOR
32 km (só faltam 302)

Duas semanas na bela violência do asfalto. Ontem, no fim da caminhada, uma menina
de nove anos descreveu a língua inglesa como português mal falado. Pedi-lhe para um
dia usar a expressã o num livro e ela concordou. Quer dizer que o asfalto já me deu uma
frase para o pró ximo romance, embora nã o seja minha.
Antes da Bemposta vi à distâ ncia pessoas dançarem sobre renques de terra lavrada.
Levantavam-se e baixavam-se numa coreografia sem mú sica. Meti-me pelo campo
depois de lhes berrar: «Posso ir aí?» Avancei dando passadas de pó que o vento tratou
de apagar. Eram mulheres que plantavam pimentos. Quando lhes disse que ao longe
pareciam dançar, riram-se, esquecidas dos rebentos e das costas dobradas – e eu
esquecido dos mú sculos dos pés.
Por momentos foi fá cil trocarmos de dores.
Os renques plantados e os renques por plantar lembravam o caminho feito e o caminho
por fazer, mas o delas é muito mais duro: à volta, vá rios hectares mostravam milhares
de cabecinhas de pimentos. Bem podiam ser cabeças de pregos metidas a custo na
madeira. Despedimo-nos quando a sirene de uma fá brica deu o meio-dia.
Na Bemposta, uma senhora chamada Anita esperava-me com duas garrafas de á gua e
com um bilhete onde escrevera, dirigindo-se à dona de um restaurante: «Serve o almoço
a este senhor de nome Afonso, que eu pago.» Vou levá -lo sempre comigo por me saber a
abraço, e só nã o chorei porque nos homens tal é fisicamente impossível.
O Alentejo tem sido ú til porque agora prescindo de naufragar. Já sei como os ná ufragos
lidam com o horizonte: quanto mais avanço, mais as rectas se afastam. Encontro muitas
pessoas nas rectas, mas para meu azar vã o em carros, motos e camiõ es. E também
devem achar as rectas perpétuas, uma vez que aceleram como nas auto-estradas.
Quando os camiõ es passam rumo à s corticeiras, fica o cheiro a madeira, fresco como o
de uma laranja acabada de descascar.
Nesta zona deixam a vegetaçã o crescer à face das bermas e logo a seguir há as cercas
das herdades. A estrada aqui põ e-me no lugar, nã o posso fugir dela. Aproveito as valas
mais fundas e desimpedidas para me resguardar. Aí, o calor nã o chega tanto e a
passagem dos carros é mitigada. Observo-os abrigado e servem-me de compasso para
pensar. Também para lembrar.
Por vezes, componho uma ú nica cara que é a junçã o das que tenho visto nesta viagem.
Por norma, cara de mulher, raramente de homem. Combino as expressõ es, os desabafos,
os entusiasmos, os trejeitos, as â nsias, e acho que isto faz sentido por sermos um apesar
de sermos tantos.
A meio da tarde encontrei um vértice geodésico num terreno onde conseguia entrar.
Subi-lhe pelas escadas e senti-me parte de uma triangulaçã o antiga, pelo menos mais
antiga do que eu. Vi a estrada a seis ou sete metros de altura. Ela nem reparou que a
olhava de alto.
Antes de Ponte de Sor, ao longe, vi uma enxurrada de ovelhas a atravessar a estrada. À
falta de lobos, o pastor protegia-as dos carros.
Engraçado como a estrada distribui os males. Até Abrantes, custa andar por causa
das subidas e descidas aliadas às curvas. No Alentejo, reino da planície, custa menos
mas vemo-nos obrigados a caminhar mais quilómetros sem paragens devido ao
isolamento entre localidades.
DIA 16 › 7 DE MAIO
PONTE DE SOR MORA
45 km (só faltam 257)

Como fiquei a dormir longe da estrada, havia que ter piedade das pernas antes de
retomar a jornada. Deparei-me com um tipo novo a arcar caixas de cartã o para uma
carrinha, perguntei-lhe: «Nã o queres dar-me boleia?», e ele teve piedade de mim.
Ajudei-o a levar as caixas e seguimos caminho falando sobre a Nacional 2. Dependemos
os dois dela: eu, para caminhar; ele, porque é mecâ nico e tem um império de três
oficinas.
Depois de Ponte de Sor, aumentei a passada na recta que acompanha o aeró dromo.
Observei como procediam as avionetas, só que no final da pista continuei assente na
estrada. Para a pró xima, fio-me nas cegonhas, que levantam voo com mais facilidade.
Uns quiló metros depois, centenas de cactos mal se tocavam, cuidadosos como as
pessoas que evitam conversar com medo de discutir.
Antes de Montargil, tá buas pintadas anunciavam melancia, melã o, pêssego e tomate.
Perto, uma placa proibia colher cogumelos, espargos e outros produtos silvestres.
Avistei uma carrinha rodeada de balcõ es. Avancei em busca de fruta e de conversa mas
afinal a vegetaçã o crescia à volta da carrinha abandonada. Faltavam as melancias, os
melõ es, os pêssegos e as conversas. Forcei a porta para analisar os objectos esquecidos
na poeira dos estofos rasgados. Ao lado de uma faca havia um caderno de apontamentos
com contas. Agora ninguém faz contas à vida. Por vezes somos como a carrinha,
deixamos contas e facas.
Nã o sei o que terã o deixado as sete cruzes criadas a 14 de Agosto de 2004, num dos
piores acidentes da Nacional 2. De madeira preta e estacadas de seguida, ficam na
lembrança durante muitos quiló metros. «Quantos morrerã o amanhã ?», pergunta o
outdoor.
Junto à albufeira de Montargil, cruzei-me com pessoas que rebuscavam nos arbustos de
um jardim. Contentes, explicaram-me que era um peddy-paper da empresa e eu fiquei
descansado: daqui em diante, deixará de haver conflitos laborais.
Também me cruzo com sobreiros nus do peito para baixo. Pedem-me que os cubra com
aquelas rendas da Joana Vasconcelos. Eu acho que mais vale deixá -los assim, despidos e
expostos à chuva.
Durante a jornada de hoje, algumas pessoas pararam de carro para perguntar se eu
estava bem. Respondi-lhes «Estou bem», porque tinha de continuar e deste modo, aos
olhos de alguém, as pernas nã o me doíam.
Acabei o dia em Mora, onde José Vinagre, dono do restaurante O Poço, me foi buscar de
carro. Gabo-lhe a generosidade, visto que só parei à s oito da noite no marco 480. Jantei
com a família Vinagre no restaurante, sentados numa mesa de enfiada em que todos se
apresentaram, cada qual com histó rias para contar e sugestõ es de prato: perdiz no
forno, javali, migas de espargos.
E também me contaram que seguiam o diá rio do caminho. Ao primeiro texto, lido na
pressa das redes sociais, decidiram acolher-me caso chegasse à regiã o de Mora. «Só
havia um problema que resolvemos com dificuldade.» E olharam uns para os outros,
escondendo o riso. Como eu vinha de burro, tiverem de arranjar uma estrebaria. Um
amigo de um amigo acolheria o animal. Haveria á gua e boa palha, mas nã o tã o boa como
as migas e o vinho do restaurante. «Depois voltá mos a ler o primeiro texto com calma e
percebemos que afinal vinhas a pé, só te tinhas cruzado com um burro.»
Deitei-me com vontade de ter vindo de burro, e nã o foi por causa do cansaço.
Semanas mais tarde, voltei ao restaurante, onde revi os Vinagre. E descobri que
estão muito próximos de anjos-da-guarda: revelaram-me que, num raio de
cinquenta quilómetros para norte e para sul de Brotas, acompanharam o meu
percurso pedindo a amigos – o carteiro, o padeiro, enfim, quem passava na estrada –
que olhassem por mim.
DIA 17 › 8 DE MAIO
MORA MONTEMOR-O-NOVO
39 km (só faltam 218)

Ontem a chuva e eu matá mos saudades com cerimó nia. Eu agradeci-lhe o refresco, ela
pousou em mim ao de leve. Mas hoje deixou-se de cuidados e entrou por onde entendeu,
incluindo as minhas sapatilhas, que desistiram de ser impermeá veis.
Eu bem lhe disse que parasse, mas ela decidiu arrefecer-me, antecipando os trinta e
cinco graus que aí vêm. Talvez deva agradecer-lhe.
Embora os dias passem e o mar se aproxime, aqui no meio do Alentejo parece-me
imprudente antever as ondas. Imaginar o oceano quando ele está tã o longe da vista é
uma espécie de loucura, como a daquelas pessoas que ambicionam ganhar um dia o
Euromilhõ es. Por enquanto, o mar fica no sítio do mar.
Até ao Ciborro, as vacas interromperam a mastigaçã o para me observarem – muitas
viraram-me costas com um arremesso de cauda.
Numa curva larga surgiu um grupo bem equipado que avançava em direcçã o a Fá tima.
Seriam mais de trinta peregrinos, levavam carro de apoio e cruz em riste na dianteira.
«Venha connosco, nã o vê que está a ir pelo caminho errado?» Expliquei-lhes que este
era o meu caminho errado e que nã o o trocaria por outro. Perguntei-lhes quantos
quiló metros já tinham percorrido e envergonhei-me de lhes dizer que eu estava à porta
do quinhentos quando eles me revelaram, orgulhosos, que tiveram a graça de aguentar
bem os primeiros cinquenta. Desapareceram num câ ntico. Como eu, sabem que andar é
uma forma de pensar e de cantar.
Depois do quiló metro 500, um senhor de boina acompanhou-me durante uns metros.
Apesar de velho, andava compacto e assertivo, a saber melhor do que eu onde pô r os
pés. Disse-me: «Sou um poeta popular.» E eu respondi-lhe: «Sou um escritor.» Fez
sentido seguirmos juntos, ele puxando de um guardanapo onde escrevera uma ode à
estrada, e eu invejando-lhe a naturalidade com que mo oferecia. Nã o retribuí o gesto
porque nã o sou poeta, faltam-me os guardanapos de poesia, mas os versos dele dizem:
«Viagem de Chaves a Faro / Pela Estrada Nacional 2 / Para ver um exemplo raro / / E
que vã o gostar depois.»
Quiló metros à frente, um homem cruzou a estrada a cavalo. À falta de melhor sítio,
descansei em cima do bicho. Nã o é como o meu burro imaginá rio mas também foi
agradá vel. O dorso quente emanava vapor e os mú sculos tremiam. As minhas pernas
também tremiam. Desabituado da chuva, espantei-me com a intromissã o da á gua. Andar
com os pés molhados já nã o era privilégio bíblico, apenas desconforto. No início da
manhã , envolvi as sapatilhas com película aderente para as impermeabilizar, mas o
desenrascanço aguentou poucos quiló metros. A estrada comeu a película com toda a
velocidade. Agora o dorso do cavalo aquecia-me as pernas e nã o me apetecia desmontá -
lo.
No entanto, só depois vi o que de verdade um cavalo pode dar.
Avançava para Montemor quando desliguei os auriculares para ouvir melhor um carro
que se aproximava. Mas a estrada continuava vazia. À minha esquerda, quebrando a
chuva, quebrando a terra e quebrando o desâ nimo, uma manada de cavalos passou a
galope por entre os sobreiros. Os cascos embatiam na terra como promessas de
caminhos por descobrir. Castanhos, pretos e alourados, relincharam ao galgar o solo
enlameado e desapareceram entre as á rvores e o nevoeiro.
O Ciborro faz gala de o quilómetro 500 lhe ter acertado em cheio. E as pessoas
gostam de marcar a sua passagem. A faixa que assinala a rota encontra-se cheia de
dizeres, nomes, datas e declarações. Ninguém deixou lá escrito «amo-te» mas podia
ter acontecido.
DIA 18 › 9 DE MAIO
MONTEMOR-O-NOVO ALCÁÇOVAS
34 km (só faltam 184)

Perto de Montemor, um homem vergastava a vegetaçã o espalhando folhas pela berma.


Quando lhe perguntei porquê, mostrou-me um saco velho. Era mais coisa viva do que
saco: dentro, em fuga lenta – demasiado lenta para ser fuga – estavam centenas de
caracó is do tamanho de polegares. «Estes, sim, sã o muito bons», ao contrá rio dos
caracolinhos que se comem na cidade. Vã o ao lume em vinho branco com piripíri e uma
batata muito redonda. Fiquei a pensar na batata redonda e na tranquilidade com que os
caracó is se preparavam para a panela. Depois continuei a tiragem, palavra que aprendi
por aqui para as longas distâ ncias a pé.
Os cã es continuam a ladrar-me do fundo dos quintais. Sei que ladram porque sã o feitos
para ladrar, está -lhes na natureza. Mas agora também está na minha natureza caminhar,
e eu, que nã o lhes fiz mal, dispensava tanto empolgamento. Uns ladram e babam-se,
outros ladram e abocanham as grades, e alguns parecem dizer: «Chega-te aqui, a ver o
que te acontece.» Até agora, apenas um cã o decidiu que sou de confiança. Seguiu-me do
outro lado das grades, ganiu baixinho para me chamar e lambeu-me as mã os sem
latidos. Porém, tantos ladram, aflitos com a minha presença, que talvez tenham razã o e
eu nã o seja mesmo de confiança.
No Grupo Desportivo de Reguengo Sã o Mateus tomei café com um pedreiro que se
queixava do tempo. Simulei o mesmo ó dio, embora tenha percebido que a chuva dele
incomodara mais do que a minha. Eu fiquei com sapatilhas encharcadas; ele, com
cimento liquefeito a pingar do telhado de uma casa. Desejei-lhe boa sorte sabendo que
entretanto os meus pés haviam secado – e o cimento também.
Algures na tarde, a vá rios quiló metros de outras pessoas num troço em que a estrada
meteu a barriga para dentro, fui tomado pela impressã o de que a ú nica verdadeira
fronteira do mundo é o corpo. Que é como quem diz, a mente. A delimitaçã o da pele, que
marca a fronteira entre o outro e eu. E foi-me ocorrendo que essa fronteira pouco tem
existido na caminhada, talvez à custa das dores ou por uma certa urgência em olhar.
Assim me aconselhava a solidã o.
Antes de Santiago do Escoural, um tractor equipado com um braço longo e insaciá vel
comia as ervas da berma, comia os caracó is que nelas vivessem (sem vinho, piripíri ou
batata), quase comia o asfalto. Deixava um rasto verde que nã o era sangue mas era
ferida.
Daí até Alcá çovas, a estrada assemelhou-se a um golpe incapaz de cicatrizar.
Ladeavam-na sobreiros progressivamente mais velhos, de troncos quais nó s cegos
cobertos por musgo também ele ancestral. Impressiona saber que deixaram de ser
á rvores: neles vai a memó ria de quem os semeou, cuidou, extraiu a cortiça. Até, espero,
de quem por eles passou rumo a Faro.
DIA 19 › 10 DE MAIO
ALCÁÇOVAS ODIVELAS
31 km (só faltam 153)

À saída do Torrã o, escondidos pelo pó de um caminho de terra batida, três meninos


ciganos brincavam virados para um muro. Atravessei a estrada para me aproximar. Eles
lá foram descendo o declive, rodearam-me saltitando, cheios de frases em romeno que
soavam quase a português.
Assim de perto, também eles quase soavam a crianças: o mais velho tinha doze anos, os
outros tinham oito – mas enfezados, de pele entre o queimado e o sujo, ainda que os
olhos esverdeados de um me observassem, transparentes e limpos. Usei português
simples, eles usaram romeno simples e deu no mesmo, nã o havia meio de nos
compreendermos. Mas percebi que as minhas patas de metal os espantavam.
Disse-lhes que vim assim de longe, um-dois com as pernas, um-dois com as patas de
metal, mostrei a Bossa Nova, apontei o Norte e o Sul; e eles riram-se, nã o sei se da minha
figura ridícula, se da distâ ncia percorrida. Já viram muitos portugais de distâ ncia,
vieram de longe.
Quando chegaram ao Torrã o, os pais davam-lhes de comer dos contentores. A
populaçã o juntou-se para reclamar na Câ mara e agora dispensam o lixo.
Ao ver-me gesticular com os bastõ es, o mais pequeno aproximou-se. «Aquele marco ali
é o que eu já andei de longe, vês?»
Ele via mas nã o tinha marcos para mostrar. Nem roupa lavada ou tamanho decente
para a idade. Com oito anos, aparentava cinco. Tentou expressar-se, falar das estradas e
dos caminhos e da vida. Talvez só quisesse continuar a brincar com os amigos. Mal o
percebia. Antes de eu partir, conseguiu por fim endireitar o português e disse-me:
«Leva-me contigo.»
DIA 20 › 11 DE MAIO
ODIVELAS ALJUSTREL
37 km (só faltam 116)

Ontem nã o foi só «Leva-me contigo». Até ao cemitério do Torrã o, a Manuela Grilo, que
conheci por causa destes textos, guiou-me pelos seus caminhos habituais, quase
nomeando as casas e as pedras. Lembrava um poema de Sophia de Mello Breyner: «De
muito longe desde o início / O homem soube de si pela palavra / / E nomeou a pedra a
flor a á gua / E tudo emergiu porque ele disse.»
Mais tarde, deparei-me com um gigante descansando numa colina longínqua. Parado,
erguia os braços finos, como a acenar. Quando me aproximei, um moinho abandonado
tinha substituído o gigante, sinal de que continuo Sancho Pança.
Só hoje cheguei ao Alentejo porque faltava vê-lo em beleza sob o azul. O céu e a terra
deslizam entre si como tecidos, um tentando sobrepor-se ao outro. Está por decidir
quem ganha. Escrever sobre paisagens, como eu as vi, é muito difícil; nã o por serem
belas e minhas, mas por serem belas e de toda a gente. Se ficarem mal escritas, arrisco-
me a encolhê-las em frases toscas e depois ninguém as encontra na estrada.
Antes de Ferreira do Alentejo, um lagar lançava vapores que cobriam a planície de
humidade e de cheiro a azeite. Por momentos, caminhei dentro de uma azeitona.
Em trinta quiló metros vi três pessoas, faltou-me gente para parar. Por isso concentrei-
me no bicho quente em que a estrada se transformara. Nos bichos queixosos dos meus
mú sculos. Apesar do calor e do isolamento, da pressã o na cabeça que o pano encharcado
nã o acalmava, confirmei que a estrada esconde uma sensualidade só dela que sou eu a
percorrer-lhe a pele sabendo que o meu corpo se expõ e ao mundo. À chuva por mim
abaixo, nos primeiros dias, ao nevoeiro dentro e fora dos olhos, e agora à absoluta
possessã o do calor alentejano. O movimento para a frente – uma perna desafiando a
outra – dá -me uma certa pureza nessa sensualidade.
Perto de Aljustrel, dirigi-me a um parque de merendas onde uma torneira aguardava. A
imagem surgiu-me nítida à face da estrada. Aumentei a passada – mas afinal o parque,
fundado em 1944, parceria devoluto desde 1943, e a torneira nunca existira. Pena nã o
ter imaginado que me molhava debaixo dela. Talvez agora me sentisse mais fresco.
Chegando a Aljustrel, depois das grandes rectas, a estrada decidiu dar sete curvas
apertadas. Os habitantes da região chamam-lhe «a estrada das curvas» talvez para
realçar o que esta tem de raro.
DIA 21 › 12 DE MAIO
ALJUSTREL ALMODÔVAR
43 km (só faltam 73)

À s seis da manhã , comecei a fugir do calor. O sol a galgar as colinas de trigo teria dado
espectá culo, nã o fosse um início de lume. Muito brando primeiro, em plena cozedura
depois. Até escaldar, viajei pela Nacional 2 passando por ciclistas Faro-Chaves
demasiado concentrados na curva do pneu para conversarem. Depois de encontrar um
papel com escritos indecifrá veis, decidi que devemos deixar bilhetes na berma da
estrada para quem caminha. Só nã o pensei no que escrever.
Antes de Castro Verde, as sombras das á rvores levantaram-se naquele voo indeciso de
certos insectos. Os meus passos na vegetaçã o ergueram dezenas de borboletas que
carregavam porçõ es de sombra e isso refrescou-me por instantes.
A meio da manhã , um camiã o-cisterna, que devia ter acabado de sair da lavagem,
passou por mim levando a estrada reflectida na traseira cô ncava. Era uma pequena
estrada na minha grande estrada: a recta foi encolhendo na traseira até o camiã o
desaparecer.
De repente, na berma da esquerda, surgiu um voo tã o silencioso como o das borboletas,
mas branco e maior. Uma coruja-das-torres veio nã o sei de onde e pousou à minha
frente. A velocidade dos carros confundia-a, tanto voava à altura do meu peito como se
atirava para a outra berma.
Uma ave assim ou está doente, ou de asa partida. Os pá ssaros sã o frá geis e adoecem
com facilidade. Verifico no meu aviá rio que nenhum volta depois de ficar abatido. Pela
minha experiência, quando morrem, os pá ssaros morrem completamente.
Tirei uma t-shirt da Bossa Nova e lancei-a sobre a cabeça da coruja, que desistira de
fugir. Ainda conseguiu abrir o bico para bufar com a língua para fora, mas nã o se serviu
das garras ou das asas. Estava a desistir.
Seguiu-se um salvamento muito vagaroso e muito ridículo: Bossa Nova alçada, coruja
ao colo e apoio num ú nico sabre de luz durante os cinco quiló metros que faltavam para
Castro Verde.
O sol quis ver-nos de perto. A coruja deixara de se mexer, seguia embalada no meu
braço, dormindo ou pronta a morrer. Sempre que parava, dava-lhe á gua que ela
recusava. As penas em redor do bico ficaram empapadas.
Nos ú ltimos três quiló metros a caminho dos bombeiros, levava ao colo uma ave
moribunda, as garras esticadas e o bico cerrado – levava ao colo os voos silenciosos
entre á rvores, à noite. Se era para tudo isso se extinguir, ao menos que se extinguisse
nos meus braços.
Quando por fim cheguei aos bombeiros, a coruja animou-se num bater de asas que foi
mais simulacro do que outra coisa. Nã o lhe chamo canto do cisne para nã o confundir as
espécies. Minutos depois, a GNR recolhia o bicho e eu voltava à estrada. Resisti até à s
duas da tarde, quando um sol de 35 graus se vingou de mim por ter acordado antes dele.
Duvido que a coruja tenha resistido até essa hora.
DIA 22 › 13 DE MAIO
ALMODÔVAR AMEIXIAL
23 km (só faltam 50)

Três semanas de Nacional 2 e chego a Faro depois de amanhã . Por vezes lembro-me do
burro que encontrei no primeiro dia a puxar uma carroça. Suponho que estas duas
pernas tenham andado mais do que aquelas quatro patas.
Embora falte pouco, cinquenta quiló metros, ainda acredito que a estrada me vai trocar
as voltas. Chegado à Ria Formosa, talvez ela estenda uma língua de alcatrã o mar adentro
e eu seja obrigado a prosseguir até Marrocos. Em linha recta, daria à costa em
Casablanca, onde Ingrid Bergman já nã o pede «Play it again, Sam» – aliá s, ela nunca
pediu.
No Dogueno esperavam-me Francisco Romeira e Orlando Valério, que palmilharam a
Nacional 2 com mais um amigo há umas semanas. Foram os primeiros, e ter a sua
companhia durante cinco quiló metros assegurou-me que de facto o mar nã o se
transforma em asfalto depois de Faro.
Quem jurou que se vê o Atlâ ntico da Serra do Caldeirã o deve ter visto um oceano só
seu. Um oceano de bolso. Na estrada, a ú nica vista é a estrada, excepto a ribeira do
Vascã o, onde mergulhei transpondo as ervas altas. Pena nã o me ter despido para ficar
em plena intimidade com a á gua. Como a ribeira separa o Alentejo do Algarve, boiei
entre lugares e a estrada flutuou comigo porque a estrada está na minha cabeça.
À entrada do Ameixial, uma linha de calceteiros assentava pedras sob o calor do meio-
dia. Os blocos rolavam nas mã os como dados num jogo de sorte ou azar. A sorte estava
na pedra, que assentava sempre com a face mais lisa para cima; o azar nos calceteiros,
cuja pele das mã os endurecera.
Ao almoço, conversei com alguns deles. Nã o querendo falar do ofício, preferiram
perguntar-me pelo caminho. Um deles sugeriu: «Anda lá com a gente de carro para Faro,
que nã o dizemos a ninguém.» A dona do café rondava-me, pronta a satisfazer a
curiosidade sobre duas senhoras que tinham passado a pé rumo a Fá tima. Nã o me
cruzei com elas. «Pois, logo vi que nã o era gente de confiança.»
Mais tarde, encontrei a gente de desconfiança na Fonte da Seiceira. Uma senhora
acompanhava de carro, a outra peregrinava a pé. Esta vestia uma camisola branca com a
frase «Je suis Jesus» estampada na frente. Jesus ia suado da caminhada. A condutora
queixou-se do café que se bebia no Ameixial, coisa de cuspir logo. Para ela, a dona do
restaurante também nã o era gente de confiança.
A Fonte da Seiceira é o sonho extravagante de qualquer presidente de Junta. A piscina
espelha a á gua num jardim de á rvores de fruto, uma cascata conduz à zona dos
nenú fares, abelharucos e papa-figos voam nos arredores. Nã o percebo como nasceu este
botã o de luz, este Shangri-la, e surpreende-me que aguente.
Ao fim da tarde, ingleses ambulantes juntaram-se a mim, à s peregrinas e a dois ciclistas
Chaves-Faro. Chapinhando com os pés na á gua, uma inglesa fez uma dança que era
giná stica, tributo ao sol, beleza ou falta de jeito. Embora faltasse a mú sica, ela mexia-se
ao ritmo de uma melodia maior.
Quando eu subia para o albergue por uma ruela íngreme, o calceteiro que quisera
levar-me incó gnito para Faro travou a retroescavadora para dizer: «Ao menos levo-te
até lá .» Agarrei-me à s pegas e a má quina lenta, alheia a tudo abaixo de toneladas,
deixou-me à porta. Que eu saiba, nenhum Ferrari transporta assim.
O dia teria acabado sublime, com a imagem da inglesa dançando ao pô r-do-sol, nã o
fosse a GNR. Um agente telefonou-me para dizer que a coruja, que morreu ontem pouco
depois de eu a entregar nos Bombeiros, «era das aves mais bonitas que cá havia».
O Ameixial erigiu um monumento aos camionistas da Nacional 2. Conheci num livro
um camionista chamado Norberto que dizia que em Portugal as estradas não têm
comprimento suficiente para pensarmos. «Mesmo viajando de Chaves a Faro,
quando damos por ela a estrada acabou e nem sequer esboçámos a primeira ideia.»
O Norberto estava errado, viajando de Chaves a Faro há tempo para ideias,
encontros e monumentos.
DIA 23 › 14 DE MAIO
AMEIXIAL SÃO BRÁS DE ALPORTEL
34 km (só faltam 16)

A electricidade é mesmo uma invençã o maravilhosa. Sem ela, nã o veria as luzes de Faro
neste miradouro de Sã o Brá s de onde escrevo. Esticando o braço nã o lhes chego, mas se
pela ú ltima vez disser à s pernas «avancem», se disser aos pés «aguentem», se ouvir as
mesmas mú sicas e pensar as mesmas coisas, se encontrar de novo boas pessoas,
amanhã estarei na cidade.
Começo a sentir o balanço da caminhada, plena de pequenas contrariedades e de
grandes contentamentos. No entanto, acho que isto seria mais empolgante se eu tivesse
partido uma perna. Aí, sim, haveria uma histó ria de superaçã o. Eu, de gesso e muletas, a
enfrentar a Nacional 2. Assim fui só eu, as minhas pernas saudá veis e um esforço
contínuo mas exequível. Espanta-me que as pessoas se interessem pelo caminho de um
caminhante, por uma chegada.
Hoje atravessei a Serra do Caldeirã o num isolamento feito de vegetaçã o escassa e
eucaliptos de tronco branco. Afinal, avistei o mar breve entre montes. Por aqui, a menos
de trinta quiló metros de Faro, falta a rede. Há quem viva sem telemó vel, quem esteja
afastado desse sítio pelos vistos muito moderno que é o centro do turismo português. O
Algarve litoral.
Ao almoço, observei uma rapariga estrangeira sentada no passeio com uma mochila
tombada. Os ombros eram largos. Nã o sabia bem onde ficar, para onde olhar, o que
fazer. Punha e repunha as mã os na cabeça rapada. Como tínhamos os dois mochilas,
meteu conversa comigo.
Viera da Alemanha havia seis semanas para fazer a Via Algarviana com uma amiga. E a
amiga tinha um cavalo – os três, elas e o cavalo, seguiam lado a lado pelo trilho.
Impossível montar o bicho e impossível dar-lhe de comer. Eu aqui ri-me mas parei ao
notar na agitaçã o da rapariga.
Por algum motivo má gico, pró prio de Gabriel García Má rquez, a alemã perdera-se da
amiga e do cavalo. Foi ter à minha estrada assim desanimada, sem conseguir telefonar à
amiga ou ouvir os relinchos do cavalo.
Segundo entendi, a alemã levava telemó vel mas nã o dinheiro, a amiga levava dinheiro
mas nã o telemó vel. Como ela tinha fome, ofereci-lhe o almoço. Foi melhor para mim
porque fiquei acompanhado. A meio da refeiçã o, percebemos que a amiga havia de
aparecer naquela zona.
A angú stia dava-lhe uma honestidade bela e triste; falá mos como se nos
conhecêssemos. Disse-me que tinha tentado apanhar boleia e quase conseguira. O carro
parara e uma velhota baixara o vidro. «Mas depois percebeu que sou mulher em vez de
homem e fugiu.» A velhota nã o sabia que a alemã tinha uma amiga e a amiga tinha um
cavalo chamado Sam. E que os olhos perdidos da rapariga eram os mais femininos da
estrada. Mereciam bem uma boleia.
No fim de Maio, recebi esta mensagem em inglês: «Olá, Afonso, sou a rapariga
perdida. Vamos chegar finalmente a Lisboa (sem cavalo) e gostávamos de tomar um
café.» As duas reencontraram-se na Via Algarviana ao fim daquele dia. Tinham
estado nove horas perdidas. Poucos dias depois, o cavalo fartou-se e a caminhada
terminou.
DIA 24 › 15 DE MAIO
SÃO BRÁS DE ALPORTEL FARO
16+8 km

Melville bem me tinha dito que a determinado momento da vida sentimos a falta do
mar. Faltou-lhe dizer-me que a determinado momento da vida sentimos a falta da
estrada.
Ao fim da manhã , nos ú ltimos dezasseis quiló metros, metido na urbanizaçã o dispersa
que se concentra em Faro, pensava no mar e na saudade. Mais na saudade do que no
mar.
Naveguei neste grande rio que desce Portugal vendo na sua á gua de asfalto o que nunca
tinha visto, encontrando quem nunca tinha encontrado. Comi banquetes de iogurte.
Dormi sozinho em albergues que guardavam a memó ria de peregrinos e caminhantes.
Acordei em camas alheias no cume de serras. Visitei olarias onde a forma do barro
revelava a forma da mã o. Aprendi a ser bicho da chuva e do sol. Soube andar quando só
era possível descansar e descansar quando só era possível andar.
Mas sobretudo espantei-me: a estrada foi mesmo um rio que me levou à s margens de
novas pessoas, novas histó rias. Também me espantei com o entusiasmo por este diá rio
do caminho, dentro e fora do Facebook. E com tanto apoio. O que agora escrevo já
estava escrito em forma de saudade antes de chegar ao marco simbó lico dos 738
quiló metros.
Ocorreu-me saltar em cima do marco, mas o salto pareceu-me demasiado raso para
traduzir o contentamento ou demonstrar a angú stia. Planeara dar-lhe um beijo e depois
outro no chã o, mas esqueci-me. As pessoas que me receberam viram o salto mas nã o
viram o que ia dentro do salto.
Ao meio dia e meia, acabei a primeira parte da viagem. Mas nã o me tinha esquecido de
que, para mim, a Estrada Nacional 2 era apenas o caminho mais longo para ir à praia a
pé. Sim, um homem inquieta-se e procura o oceano.
Depois do almoço, voltei a pedir à s pernas «avancem». Parti do marco 738 até ao fim da
estrada – para lá do 738,5 – e continuei por um caminho de terra batida que leva à
ponte da Praia de Faro, contornando aquela zona da Ria. No trilho havia pó , poucas
pessoas e um odor que se intensificava a cada passo. Um cheiro que nã o era dos pinhais
secos do interior, nem das plantaçõ es alentejanas ou do vento na serra, que traz o
refresco dos riachos. Era a maresia.
Mais à frente, quando o trilho dá lugar ao alcatrã o perto das casas que levam ao
aeroporto, estava na Nacional sem estar na Nacional. Deparei-me novamente com
pessoas nos alpendres, galinhas nos quintais e cã es a ladrar. Antes do aeroporto, um
senhor ajustava a posiçã o da sua cadeira de rodas para ver quem passava. Acenei-lhe e
ele acenou-me. Eu levava boné, ele estava à sombra.
No troço de quatro quiló metros antes da ponte e da praia, lembrei-me do tipo que me
deu um sumo no primeiro dia. «Como nã o vais conseguir, ofereço-te um Compal.» Sim,
sempre gostei do barulho do frasco quando lhe damos palmadas no rabo. Mas gosto
mais do barulho das ondas quando andamos setecentos e quarenta quiló metros para lá
chegar.
Tal como no começo da estrada, que parte numa rotunda, no fim do caminho há um
parque de estacionamento. Isto pareceu-me adequado porque as coisas grandes da vida
por vezes acontecem nos locais mais corriqueiros.
No troço final acompanhou-me o Marco Pereira, grande caminhante e agora amigo, a
quem pedi conselhos antes de partir.
Mergulhei na rebentaçã o tendo a certeza de que emergia vivo da Nacional 2. Nã o foi
masoquismo: o corpo ficou mesmo apaziguado depois do esforço; quente na corrente
fria. Confirmo que a estrada nã o continua para o mar. Há apenas areal, ondas e á gua
salgada.
JÁ ESTÁ
OBRIGADO

A caminhada nã o fica completa sem os agradecimentos. Aqui paro, aqui posso


descansar. Segue a melhor lista possível, mas de certeza que me esqueci de alguém sem
querer. Nã o levem a mal.
Primeiro, quero agradecer à Associaçã o de Municípios da Rota da Estrada Nacional 2,
nas pessoas de Luís Reguengo Machado, Sílvia Silva e José Afonso Gonçalves. Este ú ltimo
muito em especial, já que aturou os meus pedidos de coordenaçã o e de conselhos sobre
o percurso. Sem a AMREN2, o caminho nã o teria sido possível.
Depois, a todas as pessoas que me apoiaram através do Facebook, dando-me a
conhecer o lado bom – e raro – das redes sociais. Ao longo de vinte e quatro dias, dos
milhares de comentá rios, mensagens e partilhas, nenhum foi negativo. Muito obrigado,
serviram de alento na estrada. Como forma de agradecimento, incluí alguns comentá rios
neste livro.
Por ordem cronoló gica, destaco algumas pessoas e entidades essenciais no percurso:
nalguns casos, descrevo o motivo; noutros, fica entre nó s, sem que isso signifique menor
agradecimento.
Marco Soares Pereira. Duarte d’Eça Leal. Ana Manuel Mendes Godinho. Vasco Galhardo
Simõ es. Tipo do Compal no km 10. Menina ruiva da garrafa de á gua. Senhoras dos
iogurtes líquidos. Carmo e Diogo Frey Ramos, pela estadia em Vila Real. Rosa Maria.
Casal do íman de frigorífico à saída de Santa Marta. Rapariga do pacote de batatas no
Peso da Régua. Quinta do Vallado, pela estadia. Vendedora que me ofereceu um
morango. Isabel Ramalho e seu irmã o, em Bigorne. Fernanda Magalhã es, no Mézio. Cã o
que me lambeu as pernas nos arredores de Viseu. Isabel Campos. Francisca e Matilde
Mata, pela estadia em Viseu. Família de ciganos perto de Fail. Agentes da GNR em
Tondela. Ana Sousa, espécie de anjo-da-guarda, responsá vel pelas belas Casas com
Estó ria, em Santa Comba Dã o. Família Matos (Marlene, Simã o e filhos), pela boleia para
o Centro de Saú de de Santa Comba. Senhora taxista que nã o cobrou. Isabel Pessô a-
Lopes, caminhante e agora amiga. Carros do IP3, que nã o me atropelaram. Rio Ceira,
pelo refresco. Joã o Paulo Neves Rosa, família e amigos, pelo incrível acolhimento em
Gó is. Rui Figueiredo e família, pelo apoio, aguardente e cerejas, a comprovar que Gó is é
inexcedível. Bombeiros de Alvares, pela bacia de á gua salgada, pomadas e â nimo. Joã o
Reis Antã o, sem o qual teria desanimado antes de Pedró gã o Grande. Barragem do Cabril,
por ter ecoado comigo. Senhora da maçã e pã o pouco antes da Pó voa da Granja.
Sobreiro debaixo do qual dormi. Estevas entre a Sertã e Vila de Rei. Bruno Marques
Centeio, pelo bolo. Joaquim Melo dos Santos, pelo apoio. Inês Sofia Melo dos Santos, pela
frase para um futuro romance. Alberto Lopes, pelo excelente alojamento e apoio. Luís
Dias. Mulheres dos pimentos, por termos trocado de dores. Ana Lopes Rodrigues. Guida
Constantino e família, guardiã es da barragem de Montargil. Família Vinagre: José,
Vitó ria, Carina, Graciete, Jainete, Madalena Rato, Lourenço Miguéns, Manuel Miguéns e
Sérgio Miguéns. Maria do Rosá rio Mendonça, outro anjo-da-guarda, pelo apoio e guarida
nas Casas de Romaria, nas Brotas. Duas ou três sombras da planície alentejana. Antó nio
Relvas Iná cio, um poeta popular, pelo poema. Guilherme Maia. Francisco Cardoso.
Antó nio Padeirinha. Luís Merca. Cruz Vermelha das Alcá çovas. Aos três rapazinhos
ciganos, por terem conversado comigo. Manuela Grilo, que me apresentou o Torrã o. Ana
Bá rbara Pedrosa, que foi de Lisboa até Ferreira do Alentejo para me oferecer o almoço.
Coruja-das-torres, por nã o ter morrido no meu colo. Francisco Romeira e Orlando
Valério, por terem feito o caminho antes. Antó nio Canteiro, pelo frasco de mel. Ribeira
de Vascã o, onde acalmei o calor e atravessei para o Algarve. Ida Filipe e Filomena
Calisto. Tempo ameno na chegada a Faro, que tornou os ú ltimos 16 quiló metros num
passeio agradá vel. E nã o me esqueço de vocês, meus camaradas: Bossa, Bossa Nova,
bastõ es, bonés; muito importante, invictas sapatilhas.
A todos os condutores de bicicletas, motos, carros e caravanas que apitaram ou
pararam para oferecer ajuda. Foram centenas e ajudaram-me a caminhar.
À s autarquias que, através da AMREN2, agilizaram graciosamente os contactos locais
para estadias e demais ajudas. Lamento nã o conseguir elencar o nome de todos os
envolvidos; a gratidã o nã o é menor por isso. Chaves, Vila Pouca de Aguiar, Vila Real,
Santa Marta de Penaguiã o, Peso da Régua, Lamego, Castro Daire, Sã o Pedro do Sul,
Viseu, Tondela, Santa Comba Dã o, Mortá gua, Penacova, Vila Nova de Poiares, Lousã ,
Gó is, Pedró gã o Grande, Sertã , Vila de Rei, Sardoal, Abrantes, Ponte de Sor, Avis, Mora,
Coruche, Montemor-o-Novo, Viana do Alentejo, Alcá cer do Sal, Ferreira do Alentejo,
Aljustrel, Castro Verde, Almodô var, Loulé, Sã o Brá s de Alportel e Faro. Um
agradecimento especial à autarquia de Faro, por ter organizado uma comitiva para me
receber no quiló metro 738.
Mã e e pai.
E à Mariana, meu caminho depois da estrada.

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