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COLECÇÃO

VIAGENS NA FICÇÃO
Um livro vai para além de um objecto. É um encontro entre duas pessoas
através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a
Chiado Editora procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedi-
cação de uma obra única e derradeira, seguindo a máxima pessoana “põe
quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio
para si. O nosso desafio é merecer que este livro faça parte da sua vida.
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© 2016, Tiago Moita e Chiado Editora


E-mail: geral@chiadoeditora.com

Título: O Evangelho do Alquimista


Editor: Rita Costa
Composição gráfica: Andreia Monteiro
Capa: Vasco Lopes
A partir de imagens de © Don Graham / Flickr
Revisão: Tiago Moita
Impressão e acabamento:
Chiado
P r i n t

1.ª edição: Setembro, 2016


ISBN: 978-989-51-7906-0
Depósito Legal n.º 409644/16
Tiago Moita

O Evangelho
do Alquimista

Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde


“Não podes avançar no caminho enquanto não te
tornares, tu próprio, esse caminho”

Helena Petrovna Blavatsky


ORÁCULO DO DESTINO
I
“No ano em que o tempo perder a noção de si pró-
prio e um anel de fogo recortar o céu como uma lâmina no
advento do crepúsculo do sol, nascerá uma criança, conce-
bida sem mácula pelo universo, que será conhecida entre
os homens como o Alquimista. Ela despertará o Homem da
sombra do medo e da ignorância do mundo, crescerá entre
os cinco elementos da natureza e não terá outro mestre se-
não o amor e nenhum amo senão a sua alma.
A sua palavra espalhar-se-á como o vento; derruba-
rá muros, fronteiras e máscaras em cada canto do plane-
ta; terá doze discípulos e uma legião de seguidores, tantos
quantas as estrelas que cobrem o céu.
Volvidos vinte e sete anos do seu nascimento, reunirá
aqueles que o haviam seguido e marchará triunfante sobre a
cidade que se apoderara do planeta, anunciando a queda do
último falso profeta no dia em que a cruz cósmica se alinhar
com o centro da galáxia.
Nesse momento, o Alquimista superará o seu último
desafio; revelará a luz da consciência e da sabedoria no
coração dos homens, libertando-os para todo o sempre, da

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Tiago Moita

cidade dos seus enganos em direcção ao paraíso que fora


outrora a sua alma e o seu mundo.”

II
(…)

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I
A REUNIÃO

“Quando duas pessoas se encontram há, na verdade,


seis pessoas presentes: cada pessoa como se vê a si mes-
ma, cada pessoa como a outra a vê e cada pessoa como
realmente é.”

William James
UM
Ninguém conseguia explicar aquele fenómeno. Pou-
cos eram os guardas que ficavam indiferentes ao suplício a
que tinha sido submetido aquele prisioneiro seminu, atado a
uma cruz gigante de madeira enegrecida, com cordas gros-
sas, flagelando a carne até à hipoderme, desde a sua captura
– e encarceramento – numa das torres mais altas da maior
prisão de alta segurança, da cidade que se tinha apoderado
do planeta.
Durante três dias e três noites, não tivera contacto com
qualquer ser humano, à excepção dos guardas da prisão, que
tentavam oferecer comida e bebida durante o cumprimento
da pena a que estava sujeito, que tentavam em vão. Apenas a
água da chuva, que o céu raramente ofertava aos seres vivos
daquele mundo, lhe saciava a sede.
Tinha todos os motivos para amaldiçoar o mundo e
o dia em que nascera; no entanto, sorria. Não pronunciara
nenhuma palavra ou gesto de desespero, desde a sua captura.
Os guardas tinham sido bem menos cruéis com ele, do que
os Romanos com Jesus Cristo. No entanto, a resistência físi-
ca e o comportamento desse prisioneiro deixavam desassos-
segado, e em alerta permanente, qualquer um dos seus car-
cereiros, que observavam aquele ser humano, à mercê dos

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Tiago Moita

estados de alma dos quatro elementos da natureza – cinco,


segundo os orientais –, e da gula das ratazanas que, ocasio-
nalmente, circulavam pela torre e dos corvos da cidade ou
dos abutres e milhafres vindos do Grande Deserto. Alguns
guardas chegavam a fazer apostas ruidosas e chorudas sobre
a data e a hora certas da rendição dos sentidos daquele con-
denado; outros analisavam, meticulosamente, o seu estado
de enigmática lucidez e serenidade perante toda aquela ad-
versidade.
Em circunstâncias normais, sofreria de hipotermia
pela fúria dilacerante da chuva fina e do vento lavrador, de
alucinações, cegueira e insolação, provocada pela exposição
à luz dantesca do sol; dormência latejante, semelhante a um
desfile de formigas imaginárias, percorrendo-lhe todo o cor-
po, devido à ausência de movimento; olhos vazios de vida
e de lágrimas, para narrarem uma dor ou uma saudade; um
corpo carcomido e fustigado pela gula e rapina das aves da
cidade e do deserto, fazendo da agonia e do desespero porta-
-vozes do seu corpo e da sua alma.
Todavia, a carne daquele ser humano permanecia in-
cólume, como se nunca tivesse sido atingido por qualquer
tipo de sofrimento ou enfermidade; lúcido e sorrindo, sor-
rindo sempre, como uma criança, perante uma epifania ce-
lestial, recordando na solidão do silêncio, vezes sem conta, a
razão da sua condenação, por um crime que nunca cometera,
como um livro que se folheia sozinho, satisfeito por contar
para um leitor curioso as estórias que encerra nas suas pá-
ginas.
Jamais esqueceria o momento em que o conhecera.
Tinha acabado mais um dia de trabalho e regressava a casa
na sua carrinha. A chegada do lusco-fusco anunciava a des-
pedida de mais um dia; o deserto presenteara Samuel com
uma rara brisa fresca. Ainda guardava na memória uma vi-
sita que fizera, com dois amigos seus, a um dos mais belos

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O Evangelho do Alquimista

oásis do Grande Deserto; ocasião rara de descanso e conví-


vio, para caixeiros-viajantes como ele, mas que preenchiam
o vazio da sua vida, como era visível na fotografia a cores
que mantinha colada acima do espelho retrovisor, em que
figuravam dois dos seus camaradas, nessa estância natural.
Os contactos com amigos no telemóvel contavam-se pelos
dedos; namoradas eram miragens no seu coração – deser-
to exangue de sentimentos –, desde a separação abrupta da
sua última companheira. Apenas a estrada e o horizonte por
descobrir eram os seus verdadeiros companheiros, além da
solidão, de um ipod com música atmosférica new age para
momentos de serenidade, de um isqueiro prateado dentro de
um maço de cigarros, quase vazio, e de uma velha revista
pornográfica para matar saudades dos seus desejos mais ín-
timos.
Recuando no tempo, tentava imaginar como seriam os
pais que nunca conhecera, através de estórias contadas pelo
responsável da paróquia que o acolheu, ainda recém-nasci-
do. Desses tempos, mantinha como recordações uma velha
bússola de estimação, absolutamente dispensável, face ao
GPS da sua viatura; uma moeda sem valor e uma medalha,
pendentes de um fio. Símbolo de um passado que não queria
apagar da memória, enquanto vivo fosse. Tudo o resto, era
um presente sem eco.
Não era costume aparecerem viajantes ou vagabundos,
deambulando pelas estradas do Grande Deserto, a distâncias
muito longínquas das povoações mais próximas. Apenas
loucos, envergando vestes de profetas bíblicos, ascetas em
condições sub-humanas, ou fugitivos à justiça, se aventura-
vam a atravessar os meandros das regiões mais inóspitas e
desconhecidas daquele espaço sem vida.
Normalmente, naquelas paragens, Samuel não costu-
mava dar boleia a estranhos. Porém, naquele homem, havia
qualquer coisa que despertara a sua atenção. A sobriedade

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Tiago Moita

do vestuário e o brilho do semblante não revelavam a pre-


sença de alguém perdido ou foragido do que quer que fosse.
Parecia mais um homem a chegar ao deserto e não alguém
há muitos dias a pensar fugir dele. Algo de misterioso e hip-
nótico fizera Samuel abrandar a viatura e oferecer-lhe uma
boleia. Mal o forasteiro entrou, proferiu uma frase, com um
sorriso de anjo, antes de exprimir qualquer sinal de agrade-
cimento.
– Chegou a hora.
A carrinha de Samuel desaparecia no horizonte assim
como o dia. Atrás de uma rocha, destacava-se um vulto hu-
mano.

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DOIS
Hoje parecia ser o seu dia de sorte. Depois de três ten-
tativas frustradas para chegar cedo ao Centro de Investiga-
ção Criminal, Nicolau conseguia cumprir a sua promessa.
Eram oito e meia da manhã quando abriu a porta do gabinete
onde ele e a sua colega de trabalho, ou melhor, sua inspecto-
ra-chefe, trabalhavam há mais de cinco anos. Era a primei-
ra vez desde o mês passado, quando terminara de resolver,
com a sua superintendente, um dos casos de homicídio mais
polémicos do ano. Ainda sentia alguns resquícios da adrena-
lina que ganhara nessa missão – tantos, quantas as pastilhas
elásticas que guardava no bolso do casaco –, uma pequena
prenda de Natal oferecida pela sua mãe, doméstica por es-
colha e ofício.
Onde é que diabo deixei o jornal que ontem estive a
ler? Cogitava para si, abrindo e fechando gavetas de armá-
rios e escrivaninhas. Organização era um dos seus pontos
fracos. Por vezes, colocava pequenos autocolantes coloridos
em pastas e gavetas para identificar cada compartimento do
seu local de trabalho; O clip e o canivete suíço, que guardava
no casaco, eram-lhe também úteis em caso de arrombamen-
to de portas em operações especiais ou em abertura de armá-
rios e gavetas com ferrolhos estragados, vítimas da sua ha-

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Tiago Moita

bitual distracção com as chaves. Em locais mais recônditos,


munia-se de uma pequena lanterna, ao lado do distintivo, da
sua arma e das algemas – ossos de um ofício que escolhera
por vocação e paixão. Poucos minutos depois, encontrou o
jornal numa das gavetas da sua secretária, a cobrir a caneta
de tinta permanente com o logótipo do sindicato dos cana-
lizadores, oferecida pelo pai no aniversário do ano anterior,
e da fotografia dele e da sua colega de trabalho, enquanto
estudantes de uma das principais faculdades de Direito do
planeta. Um suspiro de saudade, seguido de um leve sor-
riso e de uma dentada na barra de chocolate crocante que
guardava na gaveta, onde encontrara essa pequena reminis-
cência do passado, foram interrompidos por uma sucessão
de passos e uma voz familiar aos seus ouvidos de agente da
Guarda Zaratista.
Apenas alguns inspectores e funcionários mais velhos
daquela casa se lembravam de Nicole Adágio, enquanto
inspectora recém-nomeada para o departamento dos homi-
cídios. Os anos não tinham consumido parte da sua beleza
física e da sensualidade que revelava na maneira de vestir e
na forma de falar; máscaras subtis que escondiam uma per-
sonalidade fria, como a cobra que encontrara num passeio
que fizera com os pais até ao Grande Deserto e lhe provo-
cara uma fobia que a traumatizara, até aos dias de hoje. A
sua inteligência dedutiva e intuição feminina explicavam
um pouco a impaciência e meticulosidade para com os seus
colegas. Tinha poucos amigos e namorados eram uma au-
sência total à vista na sua vida. Apenas os instrumentos do
seu ofício, um isqueiro e um maço de cigarros que trazia na
mala, e uma medalhinha, em forma de coração, com a figura
dos pais e da avó – que perdera na última década –, serviam
de companhia.
Nicole entrou no gabinete de Nicolau sem o olhar,
saudando-o com um bom dia seco e frio. Não o apanhara

16
O Evangelho do Alquimista

de surpresa. Das últimas vezes, uma simples entrada de


rompante da sua inspectora-chefe e ex-colega de faculdade,
tinha, para ele, o mesmo efeito de um tsunami. Valeu-lhe
desta vez a intuição e a pontualidade.
Bom dia, respondeu olhando para ela. Nicole não
proferiu uma palavra enquanto não se sentou e retirou duas
pastas da secretária; Nicolau ignorou-a, repetindo o mesmo
gesto da colega. Nicole esboçou um sorriso rápido, segui-
do de sarcasmo. Grandes agentes começam a decair, lendo
jornais desportivos e comendo chocolates, disse, analisando
umas folhas que retirou de uma pasta verde. Nicolau engoliu
em seco e optou por não questionar quem lhe era superior.
Para sua informação, Nicole, quero dizer, chefe, estava à
procura da notícia do nosso último caso na Voz do Mundo e,
em segundo lugar, eu não estava a comer nenhum chocolate.
Nicole sorriu de soslaio antes de se levantar e de se dirigir
ao seu assistente com um olhar trocista. Da próxima vez...
disfarce melhor, declarou, ao mesmo tempo que lhe limpava
um pedaço de chocolate dos lábios com o polegar; o rosto do
assistente enrubesceu perante aquele vexame, remetendo-se
ao silêncio. Nicole desviou-se da sua sombra.
Novo atentado na cidade... revolta de presos... mais
um banco assaltado... e nenhuma notícia do nosso caso, de-
sabafou, depois de folhear algumas páginas. Quem lê hoje
um jornal, ouve rádio ou vê televisão fica com a sensação
de que estamos à beira de uma guerra civil, desabafou Nico-
lau. Diz antes o fim do mundo, refutou Nicole. Nem entendo
porque é que aqueles fanáticos religiosos vêm à rua com car-
tazes a anunciar a chegada do Apocalipse e não conseguem
enxergar o Armagedão ao virar duma esquina. Por falar em
fim do mundo, interrompeu Nicolau o raciocínio da inspec-
tora, como estão a correr as investigações sobre o Enigma,
perguntou. Que Enigma, exclamou confusa, desviando o
olhar do jornal para o colega.

17
Tiago Moita

Nicolau engoliu em seco, procurando escolher as pa-


lavras certas para lhe responder e para esconder a sua ga-
guez típica. O Oráculo do Destino. O Enigma do Oráculo
do Destino e a identidade do Alquimista. É verdade que o
Centro já resolveu esses casos, questionou. Continua tudo
em lume brando, respondeu a agente, desviando novamente
o olhar do colega para o jornal, voltando a folhear o ma-
tutino. É tudo mais fumo que fogo... cada vez que aparece
alguém com uma nova pista ou tese acerca do Oráculo ou
sobre a identidade do Alquimista, acaba como a maior parte
das teorias de conspiração que circulam por aí: sem futuro
nem fundamento. Na minha opinião, esses mistérios ances-
trais não passam de... o que é isto?
Nicole parou de falar e concentrou a sua atenção na
vinheta de uma página sobre estórias bizarras. Tratava-se
da estória de uma mulher que se conservava virgem quando
dera à luz uma criança, há vinte e sete anos. Nicolau aproxi-
mou-se lentamente da esbelta inspectora para ver a notícia.
A curiosidade do assistente não alterou em nada o estado de
confusão e perplexidade que se alojara na mente daquela
mulher. Aquela revelação abria as portas para um novo ca-
minho ou para um beco sem saída.

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TRÊS
Era impossível alguém sobreviver no Grande Deserto
como aquele homem. Só os aventureiros e exploradores da
cidade ou de pequenas povoações arriscariam semelhante
façanha. O sol do meio-dia transformava toda aquela re-
gião árida e inóspita tão quente como o inferno – para quem
acredite nele, tal como no paraíso ou na esperança de uma
salvação após a morte. A desidratação e a intensidade da luz
provocariam todo o tipo de carências e alucinações a qual-
quer ser humano que ousasse atravessá-lo, tornando-o, além
do mais, uma presa fácil para coiotes, abutres, milhafres e
todo o tipo de predadores que habitavam naquele território
sem alma.
Samuel não parava de pensar naquele forasteiro, a
quem dera boleia minutos antes. Todo o seu aspecto e pre-
sença o intrigavam e espantavam. Quem o observasse bem,
repararia que, nem o deserto nem o tempo o tinham carco-
mido. A sua indumentária não aparentava nenhum desgaste.
Estava imaculado o forasteiro, tal como o seu estado de es-
pírito, recitando um mantra de olhos fechados, enquanto o
seu salvador se remetia ao silêncio.
A curiosidade obrigou-o a quebrar o gelo de toda aque-
la mudez. Não nos conhecemos de algum lado, perguntou o

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Tiago Moita

caixeiro-viajante, intrigado enquanto conduzia. O homem,


com um sorriso, parou a recitação do mantra. Nenhuma
pessoa, lugar ou momento é estranho aos olhos do Destino,
respondeu com a serenidade de uma folha de Outono soltan-
do-se de uma árvore. Não acredito no Destino, muito menos
em Deus. Apenas no indivíduo. Cada um é senhor da sua
vida, mais ninguém, retorquiu Samuel, sem desviar os olhos
da estrada.
O homem perguntou-lhe se não acreditava em coinci-
dências. Coincidências ou acasos, continuou Samuel, valem
por aquilo que são, não deixam de ser intrigantes e até en-
graçados. Estou-me a lembrar de uma vez me ter encontrado
com um amigo meu e ter sido confrontado três vezes com
essa estória das coincidências: a primeira vez, trazíamos cal-
çados os mesmos pares de sapatos quando nos encontrámos
numa esplanada; a segunda, a mesma camisa no mesmo sítio
e a terceira, termos comprado relógios da mesma marca, na
mesma ourivesaria à mesma hora, mas em dias diferentes.
Estranho, não acha, inquiriu, irónico, virando o rosto para
aquele desconhecido que encontrara no deserto. A que con-
clusão chegou, perguntou-lhe. Não cheguei a nenhuma. Dias
depois encontrei-o muito preocupado, junto a uma estação
de Metro. Queria que eu fosse o seu padrinho de casamento.
Tem piada não tem, exclamou sorrindo. Quem o escutava
não o acompanhou na expressão, apenas na conversa. Acre-
dita na Sincronicidade, interpelou-o. Nunca ouvi falar. De
que se trata, perguntou Samuel. O indivíduo voltou a sorrir,
antes de lhe responder.
No Universo existem acontecimentos internos e exter-
nos que, de uma forma ou de outra, não podem ser explica-
dos através da causa e do efeito, mas que são reconhecidos
por quem os observa. Aquilo que chama coincidências, nada
mais são do que sincronismos, ou seja, factos, números, lu-
gares e pessoas que aparecem nas nossas vidas de uma forma

20
O Evangelho do Alquimista

contínua e repetitiva, tal como aconteceu ontem, com o seu


amigo e consigo, quando perdeu as chaves da sua carrinha.
Uma memória do passado tomava de assalto a mente
de Samuel, prendendo-lhe a fala por breves instantes. Do...
do que é que está a falar, perguntou, intrigado, desviando o
olhar da estrada para o misterioso viajante. Não foi ontem à
noite que andou aflito à procura das chaves do seu quarto e,
durante a busca, uma das janelas da sala de jantar abriu-se
com uma rajada de vento, desequilibrando um dos copos da
mesa, obrigando a agachar-se para o apanhar, antes de che-
gar ao chão, levando-o a descobrir aquilo que procurava, de-
baixo do móvel da sala, ao lado da mesa? Acha que a rajada
de vento, a queda do copo e as tais coincidências que acabou
de falar existem, exclamou. Samuel ficou pálido, travando a
fundo a carrinha.
Quem és tu? Quem és tu, perguntou, branco como a
cal. O medo e o espanto tinham tomado conta de si a res-
peito daquele viajante, sorridente e intrigante. Toda a sua
mente, corpo e espírito ansiavam por uma resposta, fosse ela
qual fosse.
Quem todos esperam e te aguardava na escuridão de
ti mesmo, respondeu com o mesmo semblante angelical e
sereno. O tempo retomava o seu percurso depois daquela
surpreendente resposta do viajante. O medo dava lugar à es-
tupefacção, mergulhando Samuel em êxtase e euforia. Eu
não acredito, eu não acredito! Então tu... eu... tu... existes,
exclamou. O homem soltou uma gargalhada ao ouvir aque-
la expressão. Desde o primeiro momento que começaste a
comunicar comigo. Eu... falar... contigo? Como, pergun-
tou, intrigado. Eu disse comunicar e não falar, respondeu.
Quando tentamos falar com alguém ficamos imediatamente
constrangidos pela limitação das palavras. Elas podem aju-
dar-nos a compreender algo, mas não passam de meras elo-
cuções. Símbolos sob a forma de ruídos que expressam sen-

21
Tiago Moita

timentos, pensamentos e experiências. Não são coisas reais.


Só a experiência nos permite conhecer. Por esse motivo, não
comunico somente através das palavras. Raramente o faço.
O meu meio de comunicação habitual é o sentimento.
O sentimento, questionou Samuel. Sim! O sentimento
é a linguagem da alma! Se queres realmente saber o que sig-
nifica para ti uma coisa, uma pessoa ou momento, observa
como te sentes em relação a isso. Os sentimentos são, por
vezes, difíceis de compreender e ainda mais difíceis de re-
conhecer, tal como os pensamentos. É nos teus mais profun-
dos sentimentos que se encontra a tua mais sublime verda-
de, respondeu. Samuel continuava pouco convencido. Isso
significa que as palavras não são importantes, interpelou-o.
Não, elucidou o viajante, as palavras valem por aquilo que
simbolizam. O problema dos seres humanos foi terem dado
mais valor à palavra e muito pouco à experiência, respondeu.
E continuou. Muitas palavras foram proferidas por
outros em meu nome. Muitos sentimentos e ideias foram
defendidos por causas que não as da minha directa criação
e, das quais resultaram muitas experiências. Se cada um de
vós aceitasse o seu mais sublime pensamento, a sua palavra
mais clara e o seu sentimento mais grandioso, chegariam à
conclusão de que tudo o que fosse inferior a isso, provinha
de outra fonte, concluiu. Samuel continuava completamente
baralhado, perguntando-lhe o que é que tudo aquilo, de que
lhe tinha acabado de lhe falar, tinha a ver com a sincronici-
dade.
Uma pequena pausa antecedeu a resposta. Todo o
mundo está a viver um momento muito especial. Trata-se
de um novo despertar espiritual na cultura humana, produ-
zido por uma massa crítica de indivíduos que experienciam
as suas vidas como uma revelação espiritual. Uma viagem
que nos leva a avançar por misteriosos sincronismos, a que
vocês chamam erradamente coincidências, para um novo

22
O Evangelho do Alquimista

conhecimento que revelará o significado das vossas existên-


cias e alterará para sempre a vossa cultura, prosseguiu sem
pestanejar nem desviar os olhos do infinito. Samuel conti-
nuava intrigado sem entender o significado das suas pala-
vras. Como pode uma coincidência ter assim tanto poder,
questionou-o.
O viajante abriu os olhos com aquela pergunta. Coin-
cidência, não! Sincronismo, Samuel! – E continuou. – Nun-
ca tiveste um palpite ou uma intuição sobre algo que gosta-
rias de fazer ou realizar? Um rumo que desejasses dar à tua
vida e como isso poderia acontecer? E depois de quase te
teres esquecido disso e te concentrares noutras actividades,
encontrares, de repente, aquilo que te conduziu exactamen-
te a essa oportunidade que imaginavas e desejavas? Esses
sincronismos estão a registar-se com uma frequência cada
vez maior. Parecem ser muito mais do que se esperaria de
um mero acaso. Ficamos com a sensação de que trazem com
eles uma orientação. Como se as nossas vidas estivessem
a ser guiadas por uma força inexplicável. Tais experiências
induzem em nós uma sensação de mistério e vibração, que
se traduz na sensação de nos sentirmos mais vivos.
Samuel não conseguia esconder o entusiasmo, bem
como o espanto, com todas aquelas palavras saídas daquele
homem que, até há pouco tempo, julgava uma lenda, um
mito urbano nascido de um rumor sem raízes. Falaste-me
há pouco do pensamento. É assim tão poderoso o seu poder,
questionou. O viajante arregalou os olhos com mais aquela
pergunta. Todo o pensamento, toda a afirmação, todo o senti-
mento é criativo e poderoso, desde que seja fervorosamente
afirmado como genuíno. Se assim for, manifestar-se-á na tua
experiência. Sempre que tiveres um pensamento orientador
– ou seja, um pensamento por detrás do pensamento –, capaz
de se sobrepor a esse, é o pensamento expresso na fé de que
Deus concederá tudo o que está a ser pedido, infalivelmente,

23
Tiago Moita

respondeu. Uma palavra pasmou o caixeiro-viajante. Acre-


ditas em Deus? Como podes acreditar em algo que não vês,
questionou, perplexo. O homem voltou a sorrir e respondeu-
-lhe com uma sapiência budista.
O facto de não veres uma coisa não significa que essa
coisa não exista. O facto de não veres Deus não significa
que Ele não existe. Desde que vocês, humanos, escolheram
dar ouvidos ao medo, e não ao amor, abraçaram a primeira
mentira. Disseram que não se pode confiar em Deus; que
não se pode estar dependente do amor de Deus; que a aceita-
ção de Deus não é incondicional e que o desfecho final está
em dúvida. E é assim que, no momento em que proclamais
o amor mais sublime, acolheis o vosso medo mais profundo,
respondeu.
O caixeiro-viajante não se mostrou convencido e vol-
tou a perguntar àquele viajante quem era Deus.
– Responderei a essa pergunta mais tarde. Primeiro,
socorre aquele homem.
– Que homem?
– Aquele. – respondeu, apontando para um homem
que bracejava no meio da estrada.

24
QUATRO
Parecia um pequeno ponto negro visto do espaço.
Verruga cintilante de um planeta semi-árido, transformada
numa babilónia de hipérboles, adjectivos e vitupérios. Dis-
topia era tudo isso e muito mais. Quem nascesse, vivesse lá
e nunca tivesse viajado para além dos seus limites, imagina-
ria esta cidade do tamanho do planeta. Não é difícil conceber
o mundo como uma cidade, quando se ignora o que existe
para lá das suas fronteiras.
Lendas e mitos acerca do seu nascimento deambula-
vam de boca em boca por todos os habitantes do planeta É.
Uns diziam que Distopia nascera de um sonho de Zarat, o
senhor da cidade e de todos os quatro cantos daquele mun-
do, no tempo em que vivera numa montanha como eremita,
preparando o seu destino; outros ignoravam a sua origem e
falavam de todo o tipo de monstros que observavam as cores
das auras de crianças Índigo e Cristal, devorando-as; gatos
que furtavam sombras às casas e às pessoas; fantasmas que
roubavam carteiras e almas; crianças-mutantes fabricadas
em laboratórios disfarçados de farmácias e hospitais priva-
dos, para produzirem electricidade; paredes que murmura-
vam koans; canos de esgoto tatuados com palavras desco-
nhecidas que apareciam e desapareciam, minuto a minuto;

25
Tiago Moita

uma cidade perdida nos subterrâneos da cidade; pentagra-


mas encontrados por amantes de teorias de conspiração, em
intersecções de linhas entre alguns dos principais monumen-
tos de Distopia e uma lenda ancestral que despertava a ironia
e a curiosidade entre os seus habitantes.
Distopia era conhecida como uma cidade sem sono.
Atrás dos gigantescos muros de titânio e betão armado e me-
canismos sofisticados de autodefesa, que protegiam a cidade
de invasores, apenas conhecidos da mente de Zarat, oculta-
va-se um mundo de decadência e confusão, onde cada ser
humano valia pelo peso da sua fama, estatuto, pensamento
ou conta bancária.
Dinheiro. O verdadeiro sangue que corria nas veias
de todos os habitantes daquela babel contemporânea. Todos
eram filósofos e jogadores. Em cada rua havia uma slot ma-
chine e um café ou espaço improvisado para uma tertúlia
informal, daquelas em que se discute tudo o que todos já
conhecem e em que não se vislumbra nenhuma estrela a bri-
lhar.
Não existia lugar mais colorido e aberrante que Disto-
pia. Toda a cidade se assemelhava a um casino. Um casino
em forma de cidade onde por dinheiro e prazer tudo valia.
Nada era sagrado, excepto o livre-arbítrio; a sacrossanta lei,
decretada pelo incontestado e todo-poderoso senhor da ci-
dade e do planeta. Era comum ver o mais corriqueiro casal
ou o indivíduo mais pacato ou exuberante, prostituir a sua
natureza e valor por uma ficha de jogo, um grama de he-
roína, uma noite de prazer, ou mesmo um cigarro, antes de
regressar a casa para tirar a máscara.
Tinha apenas sete bairros. Cada um com a sua cor,
símbolo da sua filosofia, girando segundo os ponteiros do re-
lógio, de acordo com a mudança das estações do ano. Disto-
pia não conhecia o significado de sentimento ou de emoção,
porque Distopia nunca se guiara por sentimentos e valores,

26
O Evangelho do Alquimista

apenas por sensações e pensamentos e esses, pelo menos,


eram voláteis.
Quem se aproximasse, a pouco menos de cem me-
tros do centro da cidade, não ficava indiferente ao Palácio
da Montanha Mágica, residência oficial de Zarat. Rezava a
história que o seu nome derivara das pedras que tinham res-
tado da destruição da montanha, de onde veio a ser erguido
o palácio, cuja cor e brilho se assemelhavam ao de um ar-
co-íris, e o poder curativo das pedras a um milagre divino,
tendo em conta que, em Distopia, a maioria das pessoas não
acreditavam em milagres.
Também se dizia que o palácio possuía mais de uma
centena de armadilhas e passagens secretas, construídas por
ordem de Zarat, não só para a sua defesa mas também para
poder fugir ou circular, clandestinamente, pelos cantos da
cidade, sem ser reconhecido. Apenas o mausoléu nas trasei-
ras do palácio, aberto aos domingos – enquanto as pessoas
se lembrassem do significado dos domingos, ou mesmo da
palavra domingo –, reflectia o absurdo e a loucura daque-
la sociedade. O espaço era adornado com frescos, bustos,
estátuas e quadros, retratando a vida, a morte e o desejo,
na sua expressão mais carnal e lasciva. No centro, estava
um esquife luxuriante, negro e dourado, com o cadáver de
um homem, em adiantado estado de putrefacção. Pessoas
de todo o planeta choravam e riam, liam poemas e textos de
Rimbaud, Marx, Sartre, Lispector e toda a espécie de autores
contemporâneos de que eram capazes de se lembrar; atira-
vam moedas e flores e fruta para que ao defunto não faltasse
sustento e lembrança; faziam verdadeiras orgias dionisíacas,
bebendo, fumando e drogando-se durante toda a noite em
sua memória. Tudo faziam, menos dar ouvidos ao guardião
do mausoléu, desesperado por encontrar voluntários que en-
terrassem, de vez, aquele caixão e pusessem termo ao fogo
que ardia naquela câmara.

27
Tiago Moita

Ninguém prestara maior devoção a Zarat que aquele


homem. Poucos professores de Filosofia abandonariam uma
carreira de respeito e prestígio, numa das principais Facul-
dades de Filosofia de Distopia, como ele, para abraçar uma
missão, quase monacal, ao serviço do senhor da cidade e go-
vernante do planeta. Poucos eram capazes de ter a sabedoria,
eloquência e paciência que Ptolomeu tinha para aguentar,
não só os longos discursos e diálogos com Zarat, como tam-
bém os seus ataques de fúria. A sua estória era tão peculiar,
quanto exemplar. Filho de uma das mais ricas e influentes
famílias de Distopia, génio precoce no uso da palavra e do
pensamento, ganhou um particular interesse por Filosofia
quando assistiu ao falecimento da mãe, facto que o levou
a questionar sobre a morte e o sentido da existência huma-
na. Consta que, numa noite, Zarat lhe salvara a vida numa
rixa de bairro em que seria uma das vítimas. Nessa mesma
noite, Ptolomeu mostrou-lhe algumas das suas teses acerca
do pensamento do senhor de Distopia. Zarat, impressionado
com a sabedoria e o carácter daquele jovem estudante de
filosofia, convidou-o a ser seu conselheiro, mal acabasse o
curso e chegasse a professor; um meritório gesto de genero-
sidade, cumprido por Zarat, depois da chegada de Ptolomeu
à carreira docente.
Uma voz irrompia pelo intercomunicador do gabinete
de Ptolomeu. Era Zarat, seco e directo, ordenando a presen-
ça do seu principal conselheiro e devoto discípulo. Ptolomeu
assentiu, sem hesitações. Tinha pousado na mesa a lupa que
utilizava para ler as entrelinhas de todo o tipo de documen-
tos que lhe chegavam, vindos de todos os cantos do planeta
É para Zarat. Guardou, na gaveta direita da secretária, o par
de óculos de leitura que trazia sempre consigo, assim como a
caneta de ouro de tinta permanente que recebera do reitor da
Faculdade, antes de partir para a residência oficial do senhor
de Distopia; um livro que levava para ler nas horas vagas e

28
O Evangelho do Alquimista

o relógio de bolso. Fechou a gaveta com uma chave-mestra,


banhada a ouro, antes de sair.
A maior parte dos habitantes do planeta desconheciam
a origem de Zarat que observava, nervoso, as estrelas no
telescópio portátil do seu gabinete. Tudo o que se sabia dele
resumia-se à estória de um homem, que deixara a sua pátria
por volta dos trinta anos e fora viver para uma montanha,
como um eremita em busca de sabedoria. Dez anos depois,
desceu da montanha e começou a pregar uma filosofia de
vida que, pouco a pouco, foi conquistando o coração e a
alma de todos os habitantes do planeta, acabando por cons-
truir uma cidade onde albergasse todas as filosofias, sensa-
ções e pensamentos do ser humano, desde que nunca puses-
sem em causa o seu.
Ptolomeu bateu à porta e identificou-se. Entre, orde-
nou Zarat, meio nervoso. A presença do conselheiro sobres-
saltou-o e afastou-o do telescópio, abraçando-o de olhos ma-
rejados. A palidez do rosto do senhor de Distopia intrigou
Ptolomeu; parecia estar a ver um fantasma. Que aconteceu,
perguntou. Está a acontecer! Está a acontecer! – gritava Za-
rat em pânico. – O Oráculo! A profecia do Oráculo é ver-
dadeira! Vê, disse, apontando para o telescópio. Ptolomeu
largou-o, curioso e cada vez mais intrigado. Uma atempada
e minuciosa observação de poucos minutos provocou-lhe
um ligeiro arrepio na espinha e um silêncio a sair da boca.
Pensava que tínhamos mais tempo, murmurou. Eu nunca
gostei do tempo, mas daria tudo agora para ter mais um
pouco dele, respondeu Zarat, tapando o rosto com as mãos.
Tenha calma, Mestre! Ainda faltam três meses para o cum-
primento da profecia e não foram encontrados quaisquer
sinais do Alquimista e dos seus discípulos. As pessoas con-
tinuam a dançar e a viciar-se na cidade e, disse Ptolomeu,
tentando acalmá-lo, antes de ser interrompido. É escusado,
Ptolomeu, é escusado. Isto é mais poderoso do que qualquer

29
Tiago Moita

acção humana. Está fora do nosso controlo. Que vamos fa-


zer? Que vamos fazer, exclamou.
– Fontes seguras garantiram-me que o projecto VH-
Cruz estará terminado antes da data do cumprimento da
profecia. Ainda podemos travar isto, Mestre. Ainda temos
tempo, respondeu o conselheiro, olhando-o fixamente. Zarat
transfigurou-se e deixou que o medo e o pânico se apagas-
sem no seu rosto.
– Tens razão, ainda temos tempo. – respondeu, le-
vantando-se. – Ptolomeu, convoca o Conselho Magno para
amanhã.

30
CINCO
Não existia, naquele momento, homem mais feliz por
descobrir alguém, naquela solidão árida e inóspita, como
aquele que Samuel e o Alquimista tinham encontrado. O
caixeiro-viajante não escondia a perplexidade com aquela
descoberta. Apenas o Alquimista conservava a mesma ex-
pressão. O rubor do olhar do desconhecido, mesclado com a
pele desidratada, revelava o martírio e o desespero, próprios
de quem há muito aguardava por um milagre. Quem obser-
vasse aquele ser humano magro, alto e com o cabelo da cor
das suas sardas estaria longe de imaginar estar perante um
dos arquitectos mais ricos e prestigiados de Distopia.
Obrigado, muito obrigado por terem aparecido. Fui
assaltado há cerca de uma hora. Tinha parado para dar um
passeio naquele vale – acrescentou, apontando para um pon-
to no horizonte atrás de si. – Quando voltei, vi o meu car-
ro a ser levado por um bando de vagabundos. Felizmente,
tudo o que tenho de mais precioso ficou na minha mochila,
respondeu, como se tivesse acabado de correr dezenas de
quilómetros.
Tentou ligar para a polícia, perguntou Samuel. Polí-
cia? Como? Se nem sequer tenho rede no telemóvel neste
lugar, exclamou. O Alquimista virou-se para Samuel, pedin-

31
Tiago Moita

do-lhe para que deixasse entrar o malogrado forasteiro na


sua carrinha sem proferir uma palavra. Entre, convidou. O
homem não conseguia esconder a emoção ao ouvir aquela
palavra. Queria por força chorar de alegria, se o Sol não ti-
vesse drenado, quase por completo, os seus olhos.
Samuel seguia finalmente viagem, com o misterioso
homem instalado no banco da frente. Estava sentado ao lado
do Alquimista, que não deixava de reparar na sua aflição,
ao conferir tudo o que trazia na mochila. Compasso... está;
régua... está; pacote de rebuçados para a tosse... está; três
velas brancas... estão; caixa de fósforos... está; telemóvel...
telemóvel, está; par de binóculos... está; bola antisstress...
está; a minha bombinha... onde está a minha bombinha? Ah!
Aqui está ela! – respondeu, beijando três vezes uma peque-
na bomba para asmáticos –, e o relógio... onde está o meu
relógio? Onde está o meu relógio, perguntou descontrolado,
vasculhando a mochila que nem um louco. Nesse instante,
o Alquimista pegou no seu braço esquerdo e indicou-lhe,
com os olhos, um relógio de pulso com a figura da Minnie
Mouse, sem, por um só momento, se abster do sorriso que
o caracterizava, desde que Samuel o encontrara no deserto.
Este tentava conter o riso provocado por aquela cena rocam-
bolesca.
Obrigado, mil vezes obrigado, não sei o que seria de
mim se perdesse o relógio. Aliás, o que seria da Humanida-
de se não existissem relógios, continuou, irónico. Se calhar
esse tem sido o maior problema dela, respondeu o Alquimis-
ta. Que quer dizer com isso, questionou. O Alquimista res-
pirou fundo antes de lhe responder. Disse-lhe que foi a ideia
de explicar o Universo, e toda a vida deste mundo, como
o funcionamento de um relógio que provocou a primeira
ruptura entre o Homem e a Natureza e, desde então, toda a
Humanidade começou a ver a Natureza e o Universo, não
como um milagre, mas como uma máquina. Como assim

32
O Evangelho do Alquimista

uma máquina, voltou a questionar Leandro. Quando René


Descartes concebeu a visão mecanicista do mundo, muitos
foram aqueles que passaram a imaginar a Natureza, o Uni-
verso, a Arte, enfim, tudo como um algo fácil de funcionar,
analisar e desmontar para melhor entender a essência desses
conceitos no seu todo, respondeu. Qual é o problema com
Descartes? Que mal tem conceber a Vida e o Universo como
uma máquina, perguntou Leandro, confuso. Não tenho ne-
nhum problema com Descartes. Foi um grande filósofo e
um homem extraordinário. O seu pensamento provocou a
primeira grande ruptura entre a Ciência e a Igreja que, na
altura estava a provocar um sério obstáculo à evolução do
Homem. Acontece que os tempos mudaram e já não é possí-
vel conceber a realidade da mesma forma lógica e mecânica
de um relógio. Tal como a tua vida, Leandro, respondeu,
virando-se com o mesmo semblante para o arquitecto.
– A minha vida, o que quer dizer com isso? – questio-
nou intrigado;
– Dia após dia, noite após noite, sempre a fazer a
mesma coisa. Vestindo as mesmas roupas para cada dia da
semana, comendo no mesmo sítio, assistindo ao mesmo pro-
grama de televisão todas as noites depois do trabalho, refu-
giando-te em casa para esconder a vergonha do teu passado
familiar, respondeu. Leandro começava a ficar nervoso e in-
quieto com aquelas palavras. A tepidez do suor escorria pelo
seu corpo e o dilatar das pupilas revelava um medo oculto,
a despertar na superfície da mente do acidentado arquitecto.
– Quem... quem é você? – perguntou, aterrado e sur-
preendido. O Alquimista virou-se para ele, serenamente, e
entreolharam-se. Nos olhos do profeta, Leandro vislumbrou
o seu próprio passado e presente, alegrias e tristezas, quali-
dades e defeitos. Fios de lágrimas translúcidas corriam pelo
seu rosto magro, como uma nascente. Um abraço lento e
sentido, como sinal de arrependimento e gratidão, selou o

33
Tiago Moita

encontro daqueles dois seres humanos. Samuel não conse-


guia esconder o espanto por aquele desfecho imprevisível.
O Alquimista tinha encontrado o seu primeiro discí-
pulo.

34
SEIS
Parecia um pesadelo extraído da mente de um arqui-
tecto esquizofrénico. A quantidade de ruas e avenidas or-
togonais e paralelas desafiava a imaginação dos pilotos de
aviões e helicópteros, assim como dos pássaros, que voa-
vam sobre o Bairro Cogito. Fanáticos por teorias de cons-
piração procuravam, a todo o custo, enigmas por detrás de
toda aquela geometria de espaços, julgando encontrar um
código secreto de Zarat, de uma civilização perdida, de seres
vindos de outro planeta ou de uma sociedade secreta, esque-
cida nos labirintos do tempo. Matemáticos comparavam a
sua arquitectura com a ordem do universo. Não havia Igrejas
nem Seitas; apenas academias e laboratórios. Tudo pela ra-
zão nada contra a razão. Não havia espaço para a Metafísica
ou para a Religião naquele nicho humano, traçado a régua e
esquadro. Lógica era a única Fé entre os Methódicos, nome
pela qual eram conhecidos os habitantes daquele subúrbio.
No centro do bairro existia uma torre gigantesca com
um enorme relógio. Tinha a precisão semelhante à do Big
Ben de Londres. Toda a vida daquele distrito urbano depen-
dia do seu funcionamento. O som dos ponteiros cronome-
trava todos os movimentos dos seus habitantes. O trabalho
e o lazer, as refeições e os passeios, até as relações sexuais,

35
Tiago Moita

os casamentos e os funerais eram regidos segundo a tirania


mecânica e sincronizadora daquele objecto que, desde a sua
construção, se transformara – mais do que a melhor metáfo-
ra que René Descartes encontrara para conceber o funciona-
mento do Universo e da Natureza –, no sentido da vida de
todos os Methódicos. Apenas quando abandonavam as suas
imediações para visitar bairros vizinhos ou o mundo exterior
de Distopia, sentiam um misto de confusão e inquietação.
Para os sábios de Cogito, era uma doença; para os idiotas do
bairro, Liberdade: valor estranho e incómodo para as mentes
analíticas e obtusas daqueles devotos de Descartes, Spinoza,
Erasmus, Locke, Comte, Russell e tantos outros filósofos
que eles contemplavam com devoção e respeito, nas estátuas
e bustos que em sua homenagem tinham erguido, em cada
praça ou avenida.
Nem todos os Methódicos eram iguais. Os menos ana-
líticos eram sempre castigados de forma exemplar. Todos os
dias, pela manhã, eram obrigados a deslocar-se sobre fios
de aço sobre os telhados de Cogito até aos seus destinos, ou
melhor, pontos de chegada, como lhe chamavam, uma vez
que, em Cogito, Destino era uma palavra proibida, tal como
alma ou mesmo fé, por não fazer parte dos seus dicionários
e enciclopédias.
Não era a primeira vez, nem certamente seria a última,
que Metheos, chefe dos Methódicos e Reitor da Universi-
dade Metheora – a única universidade de Cogito e o maior
centro racionalista do planeta –, julgava um dissidente no
Tribunal da Razão Plena, por ousar desafiar as regras da ra-
zão e da lógica naquele bairro. O arguido era um arquitecto
Makbar acusado de ter cometido uma simetria imperfeita,
entre duas portas da sala de um edifício que ele próprio de-
senhara, em homenagem ao deus da sua religião, o que já
por si valia como acusação, uma vez que os Methódicos
não acreditavam em coisas tão ilógicas e irracionais como a

36
O Evangelho do Alquimista

existência de um Ser Supremo ou de uma força qualquer


que desafiasse o pensamento do Homem – coisa que, por
si só, era equivalente a uma ofensa de extrema gravidade.
O homem procurou defender-se, recorrendo às suas con-
vicções e exemplos. Todavia, a razão parecia não estar do
lado daquele malogrado arquitecto. Tentara tudo, inclu-
sive melodrama, mas Metheos, mais os restantes juízes,
estavam mais inclinados para o cumprimento cego e es-
crupuloso das sacrossantas leis Methódicas, do que para
dar ouvidos a qualquer juízo de equidade ou voz interior
para salvar aquele infeliz. Tinha a sentença promulgada,
a partir do momento em que Metheos, com o seu célebre
olhar inquisidor, decidira condená-lo à morte. A Justiça
era tão dura quanto fria, naquele bairro da cor dos car-
valhos que, outrora, abundavam naquele mundo cipreste.
O lusco-fusco anunciava a despedida da tarde e da
confusão quotidiana. Nos cafés, quando fazia bom tempo,
trocavam-se dúvidas, ideias, gráficos e livros. Metheos
estava quase a terminar uma acalorada discussão com
um dos seus pupilos sobre o confronto entre a Ciência e
a Tradição. O estudante procurava arranjar argumentos
que comprovassem a existência de uma transcendência
da dualidade absoluto-relativo e da causalidade, contra
as explicações analíticas e científicas de Metheos sobre
a importância do método na pesquisa da realidade. Es-
forços inúteis. Poderia continuar até ao fim da noite a de-
bater com aquele jovem, se não fosse interrompido pelo
seu mordomo. O homem, debilitado pela idade e pelo
dever, trazia uma carta do Palácio da Montanha Mági-
ca. Era uma convocatória, comunicando a data da reunião
do Conselho Magno de Distopia. Um suspiro, profundo
e conformado, revelava, por antecipação, aquilo que iria
enfrentar nesse dia. O estudante despediu-se do Reitor,
mal este acabara de ler a missiva de Zarat. Depois de o

37
Tiago Moita

ver partir, Metheos dirigiu-se ao seu mordomo com uma


pergunta debaixo da língua.
– Bertrand. Que é feito de Leandro?

38
SETE
Samuel tinha escolhido o início da manhã para se fa-
zer à estrada. O dia despertara relativamente calmo e morno.
O silêncio era apenas interrompido pelo barulho da carrinha
e pelo vento que assobiava de mansinho no horizonte. Não
se avizinhava nenhuma tempestade de areia assim como não
se avistava vivalma desde o resgate de Leandro, tirando um
ou outro escorpião à procura de alimento ou mesmo alguma
serpente deslocando-se de lado, tentando imitar as ondas de
um mar oculto, no sonho de um eremita. O interior daquela
viatura era o contraste da paz que emanava do deserto. Lean-
dro e Samuel discutiam com o Alquimista a importância da
sincronicidade e da nova consciência de que falara com o
caixeiro-viajante, antes de ambos conhecerem o desafortu-
nado arquitecto assaltado.
Não pode ser, não pode. Não faz qualquer sentido,
afirmava Leandro, céptico. Como pode uma coisa tão irra-
cional como a sincronicidade dar algum sentido à vida hu-
mana, perguntou o arquitecto. O sentido da vida depende
sempre da noção que cada ser humano tem das palavras,
Sentido e Vida. As histórias sobre a Vida estão recheadas de
misteriosos encontros fortuitos, livros abertos numa passa-
gem significativa, conversas ouvidas por acaso, cruzamen-

39
Tiago Moita

to de olhares numa sala apinhada de gente. A maior parte


das grandes criações artísticas e descobertas científicas não
existiriam sem estes sincronismos – a que vocês resolveram
chamar de coincidências –, quando, segundo Carl Jung, uma
coincidência é mais uma resposta a um movimento arqué-
tipo, no mais fundo da nossa psique, em direcção ao nosso
crescimento, respondeu o Alquimista.
Leandro mostrou-se surpreendido com a argumenta-
ção, mas não suficientemente convencido. Isso quer dizer
que, quanto mais tivermos consciência da realidade das
coincidências, ou melhor, dos sincronismos, mais desperta-
mos para essa tal nova consciência de que fala, inquiriu o
arquitecto. O Alquimista assentiu sem desmanchar o sorri-
so. É o primeiro despertar! É através das suas mensagens e
significados que vislumbramos, verdadeiramente, as nossas
vidas e damo-nos conta de que estão a acontecer mais coi-
sas, para além do que pensamos; tal como acontece com o
tempo, respondeu.
Leandro regressou ao debate, intrigado. O que é que o
Tempo tem a ver com a Sincronicidade, perguntou. Tudo! Se
tivermos em conta que não existe Tempo como este Tempo
e não há nenhum momento como este momento. Tempo não
é uma linha recta horizontal, mas sim vertical, respondeu.
Samuel e Leandro ficaram confusos com aquela explicação
mas o Alquimista não desistiu. Imaginem maçãs enfiadas
num espeto hirto, umas sobre as outras. Elas são os elemen-
tos do Tempo, separados e distintos; contudo, existindo cada
um, simultaneamente com o outro. Por isso é que há apenas
um momento – o Momento do Aqui e Agora. Algo que faz
do Tempo um Presente infinito.
Samuel voltou a interrompê-lo. O que é que tudo isso
tem a ver com a nova consciência, retorquiu. O Alquimis-
ta fez uma pausa, antes de responder. O despertar, de que
vos falei, representa uma nova concepção do mundo mais

40
O Evangelho do Alquimista

completa, que vem substituir a preocupação secular da ida-


de moderna e abrir a mente humana para uma nova e mais
verdadeira concepção do mundo. Não quero dizer com isso
que essa preocupação do Homem em conhecer os segredos
da vida, da natureza e do universo apenas à custa da Ciên-
cia e da Tecnologia não tenha sido um passo importante.
Pelo contrário. Acontece que o nosso despertar para as coin-
cidências da vida está a tornar-nos receptivos à verdadeira
natureza do nosso universo e para o verdadeiro papel do ser
humano neste planeta.
Como, perguntou Leandro, cada vez mais intrigado. O
Alquimista continuou, contando um breve resumo da Histó-
ria da Humanidade a ambos e explicando como cada um dos
seus episódios, mais marcantes, foi decisivo para a evolução
da consciência do Homem sobre a sua natureza e o univer-
so de que faz parte. Samuel despertou do transe em que se
encontrava, depois de todas aquelas revelações quando, ao
olhar para a estrada, se sobressaltou com uma visão, que
o fez desviar a carrinha e sair do asfalto, provocando uma
nuvem de poeira em seu redor.
Os ocupantes da viatura começaram a tossir compulsi-
vamente, devido à poeira que os envolvera. Aflito, Leandro
serviu-se da sua bomba três vezes. Samuel e o Alquimista
foram os primeiros a recompor-se, depois daquele incidente.
A nuvem de poeira dissipava-se instantaneamente, re-
velando a imagem disforme de um automóvel e de um ser
humano.

41
OITO
Nunca a Utopia do Poder foi tão bem retratada como
no Bairro Rubro. A cor do sangue, que pintalgava todos os
seus edifícios, não era só o espelho de uma ideologia mas
também o estado de espírito de toda a população que vivia
naquele gigantesco conglomerado urbano, saído de um so-
nho de Karl Marx, Lenine ou Estaline ou tantos outros diri-
gentes e mitos dessa velha e mítica ideologia, que pregava a
igualdade e unidade entre todos os trabalhadores e campo-
neses; a evolução da História pela luta de classes; o fim do
Capitalismo e amanhãs por despertar, cheios de sol para to-
dos os povos livres da tirania do Capital. Povos, entendamos
apenas as classes média e baixa, não façamos confusões, que
neste bairro, a liberdade apenas pertencia a certos ilumina-
dos que vislumbravam o socialismo ao virar da esquina ou
na gota de suor de um camponês de uma propriedade estatal
ou de uma cooperativa, ou ainda de um trabalhador a sair de
uma fábrica, depois de mais um dia de trabalho, ao serviço
da Foice e do Martelo. Sim, um sonho apenas para alguns
esclarecidos e entendidos na matéria.
Não havia um lugar em Rubro onde não se respirasse
Socialismo. Em cada praça, rua ou avenida, as paredes esta-
vam cobertas por grandes pinturas murais, enaltecendo a re-

43
Tiago Moita

volução dos trabalhadores e camponeses de todo o mundo e


a Ditadura do Proletariado. Não havia loja que não exibisse
bustos, autocolantes, canecas e todo o tipo de bugigangas de
Marx, Lenine, Estaline ou Mao Tsé-Tung; restaurante que
não exibisse pratos e sobremesas com nomes retirados do
léxico comunista; bares e cafés onde não passassem canções
de músicos e bandas que apoiassem a ideologia dos Rebe-
leus – nome pela qual eram conhecidos os seus orgulhosos
habitantes. Orgulho não era apenas uma medalha que osten-
tavam no peito; era algo que os acompanhava do nascimento
até à morte. Não era por acaso que todo o bairro era orbicular
e rude. Se o Socialismo exigia igualdade entre os homens,
então os edifícios não deviam ser excepção; iguais em ta-
manho e cor, rudes em aspecto, ilustravam assim a opressão
das classes trabalhadoras pelo Capitalismo Económico e Fi-
nanceiro. Assim defendia o Partido do Povo Revolucionário
– único partido político autorizado em Rubro. Bairro esse
que iniciava, e encerrava, os dias ao som da Internacional.
Em Rubro qualquer assunto particular era tratado até
ao mais ínfimo pormenor. Apenas o Estado decidia o que
cada Rebeleu deveria, ou não, fazer. Toda a economia era
pública e planificada. Em todo o bairro existiam câmaras de
vídeo e microfones, para vigiar todos os seus habitantes e
conhecer os seus movimentos e intenções. Nada era deixado
ao acaso e qualquer conversa, onde palavras como Socia-
lismo ou Proletariado não fossem mencionadas, num curto
de espaço de tempo, era motivo de suspeição. Particular ou
privado eram palavras proibidas entre os Rebeleus. Assim
ditava o Comité Central do Partido e a polícia política.
Um homem acabava de tomar café junto à varanda
do Palácio do Povo, sede do poder em Rubro. Um suave
sorriso iluminava-lhe o rosto, depois de ter assistido a mais
uma execução pública no bairro. O condenado era um poe-
ta subversivo que os Rebeleus tinham apanhado na passa-

44
O Evangelho do Alquimista

da semana e enforcado em plena Praça 1º de Maio, por ter


escrito um poema sobre a solidão. Uma ofensa gravíssima
que poderia pôr em causa uma sociedade de homens livres
e socialistas como os Rebeleus. Sentira, naquele momento
de regozijo e conforto, a justa recompensa por mais de trinta
anos ao serviço do bairro e do partido, primeiro como pro-
fessor de Ciência Política da Universidade Karl Marx – a
única universidade daquele bairro – e, actualmente, como
Grande Camarada e Chefe Supremo dos Rebeleus há mais
de uma década. Um orgulho inflamado no peito deste filho
de um sindicalista e de uma educadora de infância, que es-
condia quase na perfeição a sua deformada personalidade.
Antes de chegar a casa, depois da execução, tivera
ainda tempo para se dirigir a um dos seus cafés preferidos e
trocar impressões com alguns dos seus camaradas do parti-
do. Nesse local, conhecera um jovem, cujo pai era membro
do Comité Central e seu amigo pessoal. Simpatizara com a
sua personalidade, cultura e figura. Recordava, com sauda-
de, o aceso debate que tivera com ele e os seus camaradas
de partido sobre a relação entre Capitalismo e Religião com
o pensamento de Marx e Estaline, a respeito de ambos; nos-
talgias agridoces, interrompidos por dois toques na porta do
seu gabinete.
– Dá licença, Grande Camarada Graco?
– Entre. – Ordenou. O homem dirigiu-se-lhe, pronta-
mente, entregando-lhe uma carta de Zarat, anunciando o dia
da reunião do próximo Conselho Magno de Distopia. Graco
anuiu, sabendo de antemão o que o esperava. Antes de o
homem sair, procurou sanar uma dúvida.
– Ernesto. Que é feito de Isauro?

45
NOVE
Samuel procurava visualizar o que o tinha feito desviar
a carrinha da estrada. Tinha o aspecto de um homem na casa
dos quarenta, estatura média e uma robustez física, digna de
alguém que procurava sempre zelar pela sua imagem. A ver-
melhidão dos olhos, mais do que uma simples irritação provo-
cada pela poeira do deserto, reflectia restos de uma depressão
nervosa ainda por curar, talvez derivada da longa espera que
tinha suportado, aquando da avaria do seu carro ou de alguma
relação falhada na sua memória, tendo em conta a bola antiss-
tress gasta e a quantidade de antidepressivos espalhados no
lugar do morto, que retirara da mala de primeiros-socorros,
guardada no porta-luvas, cobrindo os retratos ressequidos das
suas ex-mulheres e da mãe, que sempre o acompanhavam.
Samuel e o Alquimista saíram ao mesmo tempo da car-
rinha e foram ao encontro do desconhecido. Leandro ficou
na viatura, expectante. A mais pequena palavra ou som saído
da sua boca era engolida pelo vento. O tempo ia abrandando
a velocidade à medida que ambos os homens se aproxima-
vam daquele estranho condutor, parado no meio da estrada;
os corações de ambos batiam descompassadamente, mal as
suas sombras se cruzavam no asfalto. Nesse mesmo instante,
o homem desmaiou.

47
Tiago Moita

Parecia despertar lentamente de um sonho. Sentia a


testa húmida e uma espécie de pano grosso e molhado sobre
a mesma. O despertar dos sentidos revelava o silvo tímido
do vento e as imagens desfocadas de três homens, olhando
para ele, preocupados e curiosos, ao mesmo tempo que an-
siavam pela primeira palavra. A expressão de perplexidade e
estranheza do rosto moldou a pergunta que se seguiu.
Onde estou? Quem são vocês, perguntou. Samuel foi
o primeiro a falar. Não se preocupe. Está entre amigos. En-
contrámo-lo parado no meio da estrada, desmaiado há pouco
menos de uma hora. Uma hora, disse sobressaltado e meio
refeito do despertar, seguido de uma pequena dor de cabe-
ça. Tenho de voltar. Sou médico. Precisam de mim. Tenha
calma, ainda está muito fraco, descanse mais um pouco,
aconselhou o jovem caixeiro-viajante, aconchegando-lhe a
sua cabeça num pequeno amontoado de toalhas que tinha
instalado para lhe servir de almofada improvisada, enquan-
to não despertava completamente. Descobri que o seu carro
tem uma avaria no motor, Tentei repará-lo sem resultado. O
melhor é vir connosco para Distopia. Quando lá chegarmos,
poderá entrar em contacto com uma oficina que virá buscar
o seu carro que o reparará em três tempos.
Obrigado... é muita generosidade da vossa parte, se-
nhor..., respondeu, tentando acomodar-se. Samuel. Sam para
os amigos. Este é o senhor Arquitecto Leandro e este... este,
disse, sem saber qual a melhor maneira de apresentar o Al-
quimista.
O mítico profeta aproximou-se do médico com um
olhar tão penetrante como um fio de sol sobre gelo fino.
Quem foi escolhido e te escolheu segundo a vontade
de quem me gerou, respondeu, colocando ambas as mãos
nas têmporas do médico e fechando os olhos de seguida. Da
testa, desabrochava, como uma rosa num solo de carne, um
olho azul índigo que irradiava um pequeno feixe de luz, da

48
O Evangelho do Alquimista

mesma cor e brilho, formando um pequeno halo luminoso na


testa do médico. O homem estava petrificado com o que lhe
estava a acontecer. Num curto espaço de tempo, começou a
visualizar toda a história da Humanidade desde a explosão
do Big Bang até ao momento em que fora socorrido. Gra-
ças a ela, começou a compreender o processo de evolução
do Homem através da mudança de consciência colectiva e
como o despertar para as coincidências da vida estava a tor-
nar a Humanidade receptiva ao sentido da existência huma-
na no mundo e no universo. Uma lágrima furtiva rolou-lhe
pelo rosto, seguida de uma comoção intensa e incontrolável.
Sentia todo o corpo revigorado e vivo como nunca.
Eu acredito... eu acredito, declarou, abraçando o Al-
quimista, de olhos vermelhos e marejados. Leandro e Sa-
muel não conseguiam esconder a estupefacção com aquele
milagre. Aquilo a que estavam a assistir ia para além da ima-
ginação, se é que, alguma vez, existisse algum limite para
ela.
Devíamos partir agora, Samuel, não achas, exclamou
o sábio. Samuel assentiu. Foi o primeiro a despertar daquela
epifania.
Rodrigo sentia-se um novo homem. Tinha contado
como a influência do pai, médico, e da mãe, farmacêutica,
fora determinante para a sua vocação, inclusive nos seus
dois casamentos frustrados e a forma desastrosa como ti-
nham acabado. Leandro voltou à questão do Tempo e fez
com que o médico entrasse na discussão. Rodrigo sentia-se
novamente revigorado, como nos tempos em que estudava
Medicina, numa das mais prestigiadas universidades de Dis-
topia. Durante algum tempo, falou das teorias sobre a inter-
pretação do progresso de Spencer e da evolução de Darwin.
O Alquimista voltou ao assunto que estava a discutir ante-
riormente com Samuel e Leandro, sem olvidar as ideias de
Rodrigo, refutando a ideia da inexistência do Tempo, enun-

49
Tiago Moita

ciando exemplos tão díspares e significativos como dois


amantes a fazerem amor ou um escritor a escrever um livro,
e a percepção de que todas as coisas existem em simultâneo.
À luz das palavras e dos exemplos do profeta, Samuel e os
seus primeiros discípulos começaram a entender e a visua-
lizar o Tempo como uma construção mental e uma forma
de entender todos os passos que o Homem deu no Mundo,
desde o seu aparecimento.
A carrinha de Samuel prosseguia, deixando um rasto
de poeira e ruído na paisagem. Os primeiros raios de sol
anunciavam a chegada de mais um dia. No horizonte, de-
sabrochava, aos olhos do caixeiro-viajante, uma povoação.

50
DEZ
Se havia bairro bizarro em Distopia ao qual ninguém
era indiferente, esse bairro era Extasis, também conhecido
como Bairro Arco-Íris, devido à diversidade de cores que
preenchiam todas as paredes, edifícios ou monumentos da-
quele agregado urbano e macrocéfalo que também carac-
terizava a única cidade do planeta É. Extasis derivava de
êxtase: impressão digital que melhor iconizava este bairro e
os seus habitantes, pomposamente chamados de Niilisteus,
por serem fervorosos adeptos incondicionais do Niilismo de
Friedrich Nietzsche e Zarat, filósofos que marcaram as suas
vidas na sua forma de pensar.
Nenhum dia era comum em Extasis, tal como as obras
de arte que proliferavam naquele lugar. Todo o bairro res-
pirava arte, bebia e comia arte, masturbava-se com arte em
plena liberdade sem qualquer critério ou regra de natureza
moral ou política. Tudo era permitido em nome da arte e a
arquitectura do bairro acompanhava o caos e o ecletismo da
vida e do universo. Daí os artistas em Extasis não conhece-
rem quaisquer limites quando criavam as suas obras.
Nenhuma obra derivava de qualquer obrigação esta-
tal ou moral; Nada, mesmo nada. Tudo era individual, logo,
livre e anárquico. Contemplava-se e representava-se, desde

51
Tiago Moita

o mais comum objecto até à mais decadente cena de depra-


vação; do poster publicitário numa parede multicor, saída
do devaneio de um discípulo de Warhol, Liechtenstein ou
Wesselmann, a uma cena improvisada de sexo em grupo;
do bailado desengonçado de um saco de plástico, fustiga-
do pelo vento numa rua deserta, até às esculturas e estátuas
pós-modernas de homenagem a Debord, J.G Ballard, Mi-
chel Foucault ou Lyotard – este último, alvo de festas dioni-
síacas, que duravam até o romper da aurora.
A noite descia sobre a cidade como o véu de uma oda-
lisca. Extasis vestia-se de néon, cor e sons inebriantes vin-
dos dos mais bizarros sítios e altifalantes para comemorar a
chegada da noite, mãe de todas as criações, protectora dos
amantes, poetas e artistas. Também os jogadores, chulos e
prostitutas saíam das sombras para cativar turistas e foras-
teiros nos vícios do bairro. Cada esquina era uma slot-ma-
chine; um convite para um jogo de azar ou uma noite de
sexo num motel barato atrás de um casino, discoteca ou pub
mais luxuriante; cada noite para os Niilisteus era uma roleta
russa: um susto para toda a vida ou um bilhete de ida para
o inferno.
Não existia local mais animado em Extasis que Olim-
po – residência oficial do chefe dos Niilisteus e Palácio-Ofi-
cina das Artes e do Espectáculo do bairro. Todos conheciam
a sua estória e obra em Distopia. A vida dele era mais trans-
parente do que o vidro que cobria os enormes edifícios que
rasgavam o céu da grande cidade. O seu nome passou a ser
um símbolo para todos os habitantes do bairro, desde que se
entregara ao vício do álcool e da heroína, ainda muito novo,
para combater os ataques de loucura e pânico, causados pelo
suicídio da mãe, afogada na banheira da casa-de-banho da
casa dos seus pais, e do internamento do pai num hospício,
em consequência da tragédia. Ainda hoje, agradece a ambos
a inscrição e apoio na conclusão do curso superior de mú-

52
O Evangelho do Alquimista

sica numa das mais prestigiadas academias de Música e


Belas Artes do bairro. A aproximação e influência que re-
cebeu dos maiores, mas também marginais, artistas e in-
telectuais de Distopia, assim como o seu amor pela Arte e
pensamento de Zarat, fizeram com que, mais tarde, fosse
escolhido, por unanimidade, chefe vitalício dos Niilisteus
e um dos mais importantes membros do Conselho Magno
de Distopia. Assim era Faustus, o homem por detrás do
mito.
O riso fervilhava no Olimpo, assim como as pala-
vras e os sons de alcova que se faziam ouvir nos quatro
cantos daquele espaço. Faustus estava quase bêbado mas
ainda com forças para fumar um último cigarro do maço
que guardava no bolso e para acender uma vela no can-
deeiro de cristal que lhe tinham oferecido no ano transac-
to e que mantinha, religiosamente, em cima do seu piano
de cauda púrpura em ocasiões especiais, como aquela.
Tinha feito de tudo. Malabarismos com o seu bastão de
gala, leituras de poemas e representações teatrais à An-
tonin Artaud com o seu chapéu de abas pretas, sem falar
nos momentos musicais ao piano, que eram já uma lenda
em todo o planeta. A emoção e dor, de que impregnava
cada canção, tinham o mesmo sentido de rigor de Faus-
tus; o timbre do instrumento de que se servia era de tal
modo puro, que até usava um diapasão especial para afi-
nar, pessoalmente, cada piano no local onde fosse actuar.
Quando tocava, sublimava-se e mergulhava os espíritos
de todos os ouvintes num ambiente tão onírico quanto
divino que nem o próprio silêncio seria capaz de imitar.
Apenas duas coisas o irritavam: o tique-taque dos reló-
gios e chamarem-lhe Nigel, tal como acontecera com o
seu jovem secretário que, num lapso de memória, omitira
o seu nome actual, ao entregar-lhe a carta de Zarat, con-
vocando-o para a próxima reunião do Conselho Magno

53
Tiago Moita

de Distopia. Vermelha não era apenas a cor da mancha


de sangue que se alastrava na sua camisa; era também a
sentença de morte que tombara sobre o seu peito.
A entrada do secretário tinha interrompido uma pe-
quena dissertação do chefe dos Niilisteus a um grupo de
jovens sobre as relações entre o desejo e o dever e o signi-
ficado da morte de Deus na filosofia de Zarat – segundo as
palavras do mesmo –, registadas num livro de bolso com
todo o seu pensamento, que guardava e preservava religio-
samente como se fosse um livro sagrado, escrito pelo dedo
do Mestre dos Mestres.
Depois de a ler, Faustus suspirou e pediu a todos que
se retirassem. Uma das jovens que assistira à dissertação foi
alvo de uma pergunta do alucinado senhor de Extasis,
– Já encontraram Magdala e a fugitiva?

54
ONZE
Vista de cima ou a alguns metros de distância, Nog era
igual a tantas outras povoações espalhadas pelo planeta É. A
natureza misturada com a presença humana; o odor do verde
dos escassos jardins e searas, trazido pelo vento morno do
norte, acompanhado pelos murmúrios das casas e ruas, des-
de a mais pequena coscuvilhice até ao mais singelo suspiro,
retratava na perfeição esta vila rural, abandonada pela vora-
gem dos tempos. Todavia, a realidade distanciava-se muito
da aparência.
Samuel conhecia muito bem aquela terra e os seus
habitantes. Não confiem neles, dizia para os seus compa-
nheiros; parecem hospitaleiros e amigáveis mas muitos são
autênticas serpentes. Leandro observava com mais atenção
que os outros o aspecto de Nog. Algumas crianças aproxima-
vam-se da carrinha de Samuel com uma alegria contagiante,
como se nunca tivessem visto uma em toda a sua vida e,
entre elas, algumas observavam simplesmente a viatura do
jovem comerciante com um olhar penetrante, sem proferi-
rem uma só palavra. Entre os adultos, apenas os anciãos e as
velhas beatas da vila conservavam algum pudor e traquejo
no que dizia respeito a chegadas de forasteiros de Distopia.
Algumas donas de casa fechavam as janelas e trancavam as

55
Tiago Moita

portas, como se quisessem impedir a entrada do Diabo e


proteger os filhos do poder e influência de Satanás; outras,
traziam-nos para dentro dos lares, com medo que fossem
raptados ou molestados por algum comerciante ou turista
da grande cidade que se apoderara do Planeta. Não, isso
nunca! Antes o Diabo se apoderasse delas do que dos filhos
e do resto da família. Um estrago provocado na proprieda-
de de alguém não era nada, comparado com um dano na
honra de um ser humano.
Samuel parou a viatura. Era dia de mercado na vila
e o trânsito junto à praça estava completamente conges-
tionado. O espaço era um amontoado de cabeças de todas
as cores e feitios, onde circulavam línguas e culturas de
diversas partes do planeta, sem qualquer tipo de fronteira
ou condição. No ar, deambulavam aromas fortes do suor de
dezenas de raças de todo o mundo, misturado com os odo-
res inconfundíveis dos incensos, dos animais e dos frutos
da terra, acabados de colher. A atmosfera era um casamen-
to perfeito entre a harmonia e o caos. O universo apresen-
tava uma pequena amostra da sua essência naquele lugar.
Temos de sair. Vamos, ordenou o Alquimista, sem
pestanejar, caminhando a passo largo em direcção ao cen-
tro da azáfama. Samuel, Leandro e Rodrigo tentavam se-
gui-lo, temendo o seu desaparecimento no meio daquela
multidão.
Comerciantes alucinados abordavam-os, persuadin-
do-os a comprar, desde as mais simples às mais bizarras
bugigangas, quais mosquitos em busca de sangue quente
de um animal. No meio da confusão, Leandro fizera tom-
bar a banca de um feirante, que assim vira o produto do seu
negócio à mercê da rapina dos bichos e das crianças da rua
que por lá deambulavam. Sem perceber a razão, Samuel foi
acometido por uma força misteriosa que o levou para uma
banca vigiada por dois oficiais da Guarda Zaratista. O Al-

56
O Evangelho do Alquimista

quimista observava um cobrador de impostos de Distopia


em plena actividade.
Parecia um autêntico computador com rosto humano.
Não sentia qualquer espécie de emoção ao efectuar uma co-
brança a uma pessoa, ou a um casal de poucos rendimentos,
e não temia o azar, enquanto guardasse no bolso a pata de
coelho que o avô lhe oferecera, quando ele fizera cinco anos.
Ao lado do amuleto, trazia também um bloco de notas onde
registava os dados mais relevantes para processos burocrá-
ticos mais complicados. Nos tempos mortos, entretinha-se
com um pequeno ioió que recebera dos pais, quando fizera
oito anos, ou então rabiscava desenhos infantis de palavras
e paisagens burlescas, saídas da sua imaginação, com lápis
de cores que conservava sempre na mala onde trazia o seu
portátil. Logo a seguir aos ansiolíticos que frequentemente
tomava, estes eram os seus melhores aliados para combater
o stress acumulado. Na mesa, conservava o telemóvel, sem-
pre ligado, caso surgissem novos casos para resolver.
O Alquimista aproximou-se dele devagar, deixando a
sua sombra afastar as pessoas que o cercavam, juntamente
com os guardas que o protegiam. O homem parou e olhou
para aquele estranho com uma expressão de espanto e fascí-
nio. O profeta fez-lhe apenas uma pergunta, envolvido numa
aura tão resplandecente como o sol daquela manhã.
– Heitor, há quanto tempo não te conheces?
O homem não conseguiu conter as lágrimas perante
aquela pergunta. Durante anos sempre a fizera, cada vez que
olhava para uma montra ou espelho. Aquela não era a voz
da sua imaginação, projectada no reflexo, que respondia. Era
um ser humano de carne, mente e espírito que falava e escu-
tava as suas dúvidas e angústias. O Alquimista sorriu e con-
vidou-o a segui-lo. Heitor não pensou duas vezes. Rodrigo
perguntou a si próprio de onde conhecia aquele homem. A
sua cara era-lhe familiar.

57
Tiago Moita

Samuel ficou estupefacto e boquiaberto com aquela


conversão. A partir daquele momento, não duvidaria mais
dos poderes do Alquimista. Subitamente, sentiu uma mão
enfiada no bolso. A leveza do mesmo significava a ausên-
cia de um objecto, talvez uma relíquia, estimado pelo cai-
xeiro-viajante. Atrás dele, um indivíduo de estatura baixa
desafiava a velocidade do vento pelas ruas estreitas da vila,
tentando fugir de Samuel, deixando-o louco e enfurecido
com o roubo.
– Pára! A minha bússola! Ladrão! Pára!

58
DOZE
Nenhuma palavra conseguia descrever um bairro tão
complexo como Dialética. Palavras eram o maior cartão de
visita daquele bairro, assim como as livrarias, bibliotecas,
fundações, museus, cafés e todo o tipo de estabelecimentos
e edifícios. Tudo era uma homenagem à maior invenção do
ser humano depois da descoberta do fogo, da invenção da
comunicação e da roda. Palavra, era a impressão digital da
linguagem e da herança de um povo, a marca de água da
alma dos Filingus, o ilustre povo daquele bairro bege e beato
da escrita e da leitura.
Nada existia em Dialética fora do mundo das pala-
vras. Alguém que entrasse numa loja nunca sairia de lá sem
um livro pelo menos. Tanto as embalagens, como os sacos,
dos diversos produtos de mercearia ou de supermercado, ti-
nham impressas serigrafias de poemas e citações de grandes
poetas e autores contemporâneos. A poesia era a alma da lin-
guagem e todos os habitantes daquele bairro sabiam disso.
Não era por isso invulgar haver cafés repletos de gente para
ouvir poemas de Neruda, Albiach, Pessoa ou Plath; tertúlias
improvisadas em farmácias ou até mesmo em barbearias,
onde se ouviam poemas cantados à guitarra; representações
teatrais, tanto nos locais mais comuns como nos mais inós-

59
Tiago Moita

pitos, feitas por actores e saltimbancos vindos dos circos e


das escolas. Nas paredes das ruas, não se via um desenho se-
quer; apenas citações e poemas. As ruas eram ordenadas por
ordem alfabética. Só nas praças e avenidas eram autorizados
nomes de autores ou de figuras de estilo gramaticais. Era
comum existirem ruas baptizadas com vogais e consoantes,
assim como avenidas e praças homenageando adjectivos,
neologismos ou grandes nomes da literatura universal como
Italo Calvino, James Joyce ou Walt Whitman. Os números
eram sempre escritos por extenso. Eram considerados uma
linguagem menor para os Filingus e as gralhas ortográficas,
um verdadeiro crime, uma vez que, para eles, a linguagem
é a casa do ser e ortografia também é gente. Por isso, de
acordo com a sua filosofia, fazia todo o sentido punir com
a morte qualquer pessoa que se atrevesse a assassinar uma
letra ou uma palavra, de acordo com a sua filosofia, ou até
mesmo criticar a excessiva importância que os Filingus da-
vam às mesmas, como acontecera a uma jovem estudante,
acabada de ser fuzilada na escola onde estudava. Um colega
dela, vira poupada a sua vida, depois de ter escrito mais de
uma centena de vezes, correctamente uma composição que
fora escrita com mais erros ortográficos do que aqueles que
eram permitidos, segundo as leis do Bairro. Ganhara uma
tendinite. Tivera sorte.
Um homem comtemplava a praça central de Dialé-
tica da janela do seu gabinete no Palácio-Biblioteca Lexic,
sede do governo autónomo dos Filingus – residência oficial
de Otto Gräss, seu líder supremo. Naquele momento, obser-
vava o movimento da Praça Ludwig Wittgenstein e medi-
tava, ao sabor do seu charuto cubano, sobre uma conversa
que tivera com um dos seus pupilos acerca da questão da
linguagem como única forma de representar o mundo e o
homem. Tal como escrever, meditar era uma das suas acti-
vidades preferidas. Para ele, o que se podia dizer, podia ser

60
O Evangelho do Alquimista

dito claramente e aquilo que não pudesse ser dito, seria


remetido ao silêncio. Esse era um pensamento de Witt-
genstein, entre muitos outros que este filho, mais novo de
oito, de um colecionador de obras de arte, patrocinador
de músicos e pintores, e de uma professora de Educação
Musical, conservara e alimentara, desde que se alistara
como voluntário da Guarda Zaratista na guerra contra os
tecno-rebeldes, antigos inimigos de Distopia.
A secretária, tal como o gabinete, representava mais
do que o seu local de trabalho. Era também o seu recanto
íntimo e bilhete de identidade de toda a sua personalida-
de. Costumava ter em cima dela cinco lápis afiados, dis-
postos em paralelo com uma pequena batuta que herdara
do pai, uma lupa de cristal em forma de q de quando para
procurar erros e palavras ocultas a olho nu nas entrelinhas
dos textos; um corta-unhas, que acabara por lhe tirar o
vício de roê-las – substituído pelo tabaco – e um pequeno
iPod com o seu nome, oferecido pelo filho mais novo,
para poder ouvir Chopin ou Liszt depois de sair da Uni-
versidade – não fosse ele o supremo chefe dos Filingus
e fundador do Bairro Dialética, cinco anos depois de ter
saído do exército e publicado a sua grande obra filosófi-
ca “O Tratado da Lógica na Palavra”. Numa das mãos,
costumava esfregar um amuleto, oferecido por um primo,
contra o azar que o perseguia e à família. O objecto era
um pedaço de âmbar com um pequeno escorpião embal-
samado no interior. Gräss pertencia a uma família de pen-
sadores artísticos severamente autocríticos, pessimistas e
depressivos, ao ponto de cometerem suicídio, tal como
sucedera a três dos seus quatro irmãos, eternamente lem-
brados num pequeno porta-fotografias que conservava no
canto da secretária. Otto temia semelhante destino, assim
como temia as traças – os maiores inimigos dos livros – e
contra as quais nutria uma descomunal fobia; algo que

61
Tiago Moita

o levara a ordenar a instalação de bolas de naftalina nos


bolsos das peças de roupa e nos edifícios de Dialética.
Alguém batia à porta.
Um jovem com um papel na mão interrompera a sua
meditação. Do Palácio da Montanha Mágica para si, Mestre,
informou, submisso e sério. Gräss reconheceu o documento
pelo formato. Era uma convocatória de Zarat, requerendo a
presença do chefe dos Filingus no Conselho Magno de Dis-
topia. Assentiu sem pestanejar, intrigado com o motivo da
mesma e formulou uma pergunta.
– Que é feito de Heitor?

62
TREZE
Não havia maneira de aquele larápio abrandar para
poder tomar fôlego. A perseguição ao ladrão da bússola de
Samuel continuava pelas ruas e vielas estreitas de Nog, por
entre encontrões e palavrões dos transeuntes inocentes, em-
purrados por ambos em plena fuga. Leandro e Rodrigo pro-
curavam acompanhar o caixeiro-viajante e o meliante num
corta-mato alucinante. A dimensão da vila trazia alguma es-
perança para ambos. O receio estaria na existência de algum
esconderijo secreto ou veículo do misterioso gatuno para
uma fuga mais rápida.
Samuel não estava só. A notícia do roubo espalhou-
-se como fogo num palheiro. Por toda a parte, dezenas de
habitantes juntavam-se-lhe para o ajudar na captura do mis-
terioso biltre. Momentaneamente, imitavam gritos de aves e
outros animais para comunicar com Samuel e os seus com-
panheiros, indicando-lhes o trajecto; quais sinais de trânsi-
to humanos, improvisados em plena vila. Esquerda, direita,
esquerda, frente; era tudo o que sabiam dizer por gestos e já
era muito. O ladrão começou a ficar cercado e a fugir pelas
artérias que os seus perseguidores queriam que ele seguisse,
qual rato a caminho da ratoeira. No cruzamento entre duas
vias estreitas, uma mão agarrou-lhe o braço.

63
Tiago Moita

Apanhei-te finalmente, meu..., disse Samuel, perplexo


com a descoberta. De costas, parecia um entre muitos rapa-
zes de cara suja e roupas esfarrapadas que circulavam não só
entre vilas como Nog, mas também entre as ruas e avenidas
sombrias de Distopia. O rosto pueril contrastava com o olhar
assustado e marejado do larápio que não passava de uma
adolescente de aparelho nos dentes; sardas no rosto e roupas
kitsch, cheias de pins e fantasias fluorescentes, qual bone-
ca, saída de uma qualquer série de manga japonesa, cabelo
pintado de roxo, olhos azuis e roliça de mais para o apetite
dos habitantes, curiosos com a presença daquela estranha
rapariga.
Ela merece ser punida, proferiu um velho ancião, pe-
gando-lhe no outro braço, brutalmente. A multidão, maio-
ritariamente masculina, ansiava, com raiva e lascívia, as
ordens daquele homem, saído de nenhures para o meio da
confusão. São filhas de satanás como esta que dão mau
nome à nossa terra. Olhem bem para as roupas e para a ma-
neira como se veste. Parece um anjo, mas as suas asas são de
corvo e os seus lábios fermentam baba de puta. Merece esta
filha da perdição respirar o mesmo ar que nós respiramos,
interrogou. Não, respondeu a multidão enlouquecida. Mere-
ce esta meretriz dos infernos caminhar sobre a terra como as
restantes criaturas de Deus, indagou. Não, bradavam, cada
vez mais alto. A jovem estava apavorada e gritava até ferir
as paredes da garganta. O velho, eufórico como a multidão,
perguntava aos seus conterrâneos a sentença para a ré na-
quele julgamento popular improvisado. O destino daquela
rapariga estava dependente de uma de duas palavras.
Inocente, respondeu o Alquimista, aproximando-se da
jovem e da multidão. O silêncio anestesiara as línguas dos
mais incautos; os olhos da multidão afiavam-se, de pupilas
apontadas para o misterioso profeta. Samuel e os restantes
discípulos ficaram atrás dele, por precaução. Não ouviram?

64
O Evangelho do Alquimista

Ela está inocente! Veio de longe à minha procura e até trazia


uma bússola, sem saber que foi o seu coração que a guiou
até mim. Não é verdade, Karma, exclamou. A jovem não
mexeu um músculo nem pronunciou uma só palavra.
Quem és tu? Não vês que estamos ocupados? Esta
mulher cometeu um crime e tem de ser punida. As mulheres
pouco ou nada entendem de honra, são perversas como as
serpentes, a não ser quando são mães obedientes ao serviço
dos maridos. Esta merece morrer à maneira de Nog, à nossa
maneira, respondeu o velho com um sorriso pérfido e um
olhar algente.
Que justiça é essa de que falas? retorquiu o profeta,
A justiça que vem do fogo do teu sexo ou do teu coração?
A justiça dos homens que ocultam a luxúria e o crime na
sombra dos lares para depois apresentarem falsos arrependi-
mentos, quando saem dos templos que ergueram em nome
de virtudes e valores que não compreendem e que fingem
defender? A mesma justiça que fizeste à tua mulher quando
ela descobriu que a enganavas com a vizinha do lado e que
fornicavas com o vosso filho em segredo, todas as segun-
das-feiras à noite nas traseiras do tanque das lavadeiras? A
mesma justiça que vocês, homens, fazem aos vossos filhos,
quando os apanham a cometer torturas contra crianças mais
fracas que eles, tal como vocês fizeram no passado? Olhem
bem para esta jovem. Ela representa os vossos filhos, mo-
lestados pelos vossos vícios e crimes. Foi forçada a fazer
um aborto por exigência do homem que a violou. Acham-se
honrados e capazes para condená-la? Que aquele que não
encontra, nos seus olhos, o reflexo da dor e da maldade que
ela passou, ponha termo à sua vida.
Um a um, os homens da aldeia aproximaram-se da
jovem em fila indiana, vislumbrando os olhos marejados e
doces da mesma. Não aguentaram cinco segundos sem cho-
rarem desalmadamente. Cabisbaixos, iam abandonando a

65
Tiago Moita

praça que ficou deserta de gente e cheia de pedras e facas no


chão. O velho lunático desaparecera sem deixar rasto.
Porque choras, Karma? Vês os teus perseguidores?
Olha bem! Foram todos embora! Escusavas de roubar a bús-
sola do Samuel para te encontrares comigo. Sei tudo aquilo
por que passaste e por aquilo que vais passar se me segui-
res de alma e coração. Não te prometo o Céu, apenas vou
mostrar-te onde ele sempre existiu.
– Eu não mereço ir consigo. Eu não passo de uma va-
gabunda! Deus abandonou-me desde que a minha mãe mor-
reu atropelada e fiz um aborto, quando descobri que estava
grávida, e...
– Não precisas de pedir desculpa por tudo aquilo que
fizeste. Tu não és o que foste, és o que queres ser Aqui e
Agora. Deus não te abandonou quando caíste na vida por-
que Ele nunca abandona ninguém, mesmo nos momentos de
maior sofrimento.
– Quem és tu? De onde me conheces?
– Aquele que sempre te ouviu e esteve à tua espera,
quando oravas em segredo em pequenina, ao lado do teu
ursinho Belly e que, de hoje em diante, passará a chamar-te
Dharma.
Karma não conseguiu esconder a emoção daquele en-
contro. Tinha encontrado o homem que todos os habitantes
de Distopia e do resto do planeta apontavam como uma len-
da. Ambos se abraçaram como pai e filha, separados durante
décadas pelo Destino. A força desse gesto iluminou aquele
espaço com amor e gratidão. O céu não tinha ganho uma
estrela, apenas uma estrela tinha encontrado o céu.

66
CATORZE
Branca não era apenas a cor dos edifícios e passeios
que constituíam o Bairro Selectus. Era também a cor do
silêncio que deambulava de boca em boca em cada um dos
seus habitantes. A tonalidade dos murmúrios das paredes e
das pedras, despidas de vida e de símbolos, e o sabor das
palavras que os Seleceus, seus distintos e irredutíveis ha-
bitantes, trocavam entre si, era igual em todas as estações.
Nenhuma palavra era desperdiçada nem servia de esmola
para o vento. Para os Seleceus, as palavras pertenciam aos
homens e não à natureza.
Apenas a sisudez dos rostos dos habitantes de Selec-
tus não correspondia ao branco, que transmitia a imagem de
pureza e beatitude, que os Seleceus procuravam manter no
bairro. Por detrás dos seus olhos vazios, transparecia uma
hipocondria histérica que levava a que, cada um deles saísse
à rua com luvas de látex e máscaras higiénicas e lavasse a
cara e as mãos com sabonetes líquidos em lavatórios, espa-
lhados estrategicamente em cada esquina. Tanto a comida
como os objectos eram seleccionados segundo os mais ri-
gorosos critérios de higiene e segurança, tal como as rela-
ções entre os moradores daquele bairro. A troca de fluidos
e relações sexuais constituíam, mais do que um perigo para

67
Tiago Moita

a moral, um atentado à saúde dos seus habitantes. Por isso,


não era anormal encontrar casais escoltados por parentes ou
amigos e virgens envergonhados e envergonhadas, aos trin-
ta, quarenta ou mais anos naquele bairro.
Que fique bem claro! Não havia espaço para misturas
e confusões em Selectus. Tudo pela Evolução e Eugenia,
nada contra a Evolução e Eugenia. Apenas as raças mais
fortes, puras e saudáveis mereciam viver e progredir pessoal
e profissionalmente naquele bairro orbicular, de valas e mu-
ros brancos, sempre brancos, como a cor da Raça Eleita,
segundo as sacrossantas Leis da Selecção Natural, por se-
rem os mais inteligentes, saudáveis e capazes de se adaptar
à evolução natural das espécies, uma vez que eram os mais
fortes e civilizados.
Uma vez nascido naquele bairro, um Seleceu tinha
de provar que era um legítimo representante da sua espé-
cie. Mal atingisse os dez anos de idade, era abandonado no
meio do Grande Deserto e só regressava quando descobrisse
o caminho de volta e trouxesse um objecto que provasse a
sua capacidade de sobrevivência e passagem para a maturi-
dade. A maioria das vezes era a cabeça de um animal morto;
outras, um eremita do deserto, coisa que, para os Seleceus,
pouca diferença fazia, uma vez que todos eles se sentiam
eleitos pela natureza e protegidos por Zarat.
Em Selectus, a segregação era tão importante para o
bem-estar dos Seleceus como a Saúde ou a Higiene. Apenas
a Raça Eleita tinha direito à melhor educação, à melhor saú-
de, segurança social e a todo o tipo de regalias e privilégios
que um ser humano podia ambicionar. Quanto às restantes
raças, apenas usufruíam das sobras desses direitos e do si-
lêncio. A ousadia era paga com violência ou mesmo com
a morte, tal como acontecera com uma criança deficiente
numa escola primária daquele bairro. Fora brutalmente es-
pancada pela professora e pelos alunos, apenas por se ter

68
O Evangelho do Alquimista

sentado num banco ao lado de uma criança da Raça Eleita.


Da boca dos algozes, nem uma palavra ou sentimento de
culpa ou compaixão. Dos olhos da criança, uma lágrima.
O silvo de uma cafeteira ao lume anunciava um de-
sejo. O café de Simon Beagle estava pronto, assim como
concluída a conversa que no conforto da sua mansão ti-
vera com alguns dos seus pupilos sobre a Teoria da Se-
lecção e Evolução das Espécies de Charles Darwin e dos
princípios da Eugenia de Sir Francis Galton. Era comum
o supremo chefe dos Seleceus, e Reitor da Universidade
Herbert Spencer, discutir, com um pequeno grupo dos me-
lhores e mais eruditos estudantes da academia, alguns dos
seus temas académicos preferidos, depois do expediente
enquanto partilhava chá e bolinhos de manteiga feitos pela
sua cozinheira. O silvo da cafeteira ao lume significava
também o fim das suas reuniões com as futuras gerações
de Seleceus e o princípio de uma serena meditação, entre-
gue ao sabor forte do seu vício; os seus pensamentos e a
observação tranquila dos imponentes laboratórios, jardins
zoológicos, escolas, hospitais, clínicas, enfim, todo o bair-
ro onde crescera e que escolhera para viver até ao fim dos
seus dias.
Alguém batia à porta.
A sombra vetusta de uma mulher, tatuada pela vora-
gem dos anos e da experiência, irrompia pela sala, solene-
mente, como um ramo a boiar num rio. Era a governanta
da mansão, de aspecto austero e seco, como os móveis da
casa do chefe dos Seleceus. A mão trémula e enrugada da
mulher trazia uma carta para aquele homem.
– Acabou de chegar para si, senhor. – informou, com
uma voz adelgaçada pelo tempo. Simon pegou na carta,
sem olhar para aquela mulher. Conhecia bem o remetente
e desconfiava do conteúdo. Uma breve leitura e um ligeiro
suspiro expressaram um assentimento.

69
Tiago Moita

– Diga a Zarat que estarei na reunião à hora marcada


– respondeu. A governanta assentiu e pediu licença para se
retirar. Antes de sair, Simon interpelou-a.
– Que é feito do Rodrigo?

70
QUINZE
A notícia da chegada de um sábio que, apenas com
a palavra, resgatara de um linchamento popular uma sem-
-abrigo, alastrou pela vila como um incêndio. Ninguém se
atrevia a questioná-lo, muito menos a quem o seguia, por
medo e ignorância. Era uma terra de pessoas tacanhas e
mesquinhas, facilmente influenciadas pelos instintos mais
primários ou pelo mais vil preconceito. Algumas mulheres
e crianças observavam-nos de soslaio, por entre as frestas
das portas ou dos cortinados das janelas. Os homens, com o
rosto franzido e o silêncio na língua, assistiam à passagem
daqueles forasteiros pela terra.
Karma, ou melhor, Dharma: é verdade que nunca che-
gaste a conhecer o teu pai, indagou Leandro, nervoso. Por
que é que queres saber, inquiriu a jovem, intrigada. Queria
esclarecer uma dúvida. Que dúvida, retorquiu. O meu pai
era uma pessoa muito complicada. Além de se embebedar,
para esquecer a vida que escolhera e a família que tinha,
consta que também traía a minha mãe às escondidas, com
uma prostituta. No bairro onde vivíamos, corriam rumores
acerca de uma gravidez indesejada, provocada por um ope-
rário da siderurgia onde o meu pai trabalhava, aumentando
as suspeitas na minha família de que tinha sido ele o causa-

71
Tiago Moita

dor da gravidez. Cada vez que a minha mãe discutia sobre


esse assunto, voltava para a cama em lágrimas e com nódoas
negras no rosto e nas pernas. Eu ficava quieto a olhar para o
meu pai, sem saber o que dizer.
E o que é que eu tenho a ver com tudo isso, questio-
nou novamente Dharma. Espera – interrompeu o arquitecto.
– Uma noite, ouvi-o a pronunciar a palavra filha na cama,
enquanto dormia. A minha mãe não se apercebeu desse de-
sabafo devido ao seu sono pesado, ou, pelo menos nunca
o deu a entender. Porém eu, que sempre tive o sono leve,
lembro-me perfeitamente daquilo que ele tinha dito, e por
isso pensei, respondeu Leandro, antes de ser interrompido
abruptamente por Dharma. Estás a querer insinuar que sou
tua meia-irmã? Achas que quero saber quem foi o meu pai?
A minha mãe chorava cada vez que eu perguntava o nome
do meu pai e da boca dela só ouvia ódio e desprezo por ele.
Era pequena e lembro-me dos homens que iam para a cama
com ela e muitas vezes a agrediam por puro prazer. Se o
meu pai era igual a esses monstros achas que me preocupo
com a sua existência? Achas, Leandro? Achas, respondeu
de olhos vermelhos e marejados de raiva coronária. Lean-
dro não encontrou palavras para tais argumentos. Apenas o
Alquimista a confortou e limpou as lágrimas que escorriam
pelo seu rosto acerbado. Pronto, pronto, já passou! O teu pai
e esses monstros já não estão mais aqui. E tu Leandro, não
voltes a fazer perguntas sobre o seu passado. Já bastou o que
Dharma passou ontem à tarde, solicitou. Leandro assentiu.
Subitamente, o grupo do sábio parara diante de uma peque-
na oficina.
O artesão assobiava uma melodia suave, apenas audí-
vel pelos animais da vila que se aproximavam e o cercavam,
como se estivessem hipnotizados e protegidos por uma aura
dourada do tamanho da oficina da sua propriedade. Estava
a acabar de cortar um pouco de couro com a faca para fazer

72
O Evangelho do Alquimista

um sapato. Não precisava de fósforos para atear uma foguei-


ra que o aquecesse ou para trabalhar ou mesmo para acender
as velas e incensos da casa. Preferia as suas velhas pedras
de sílex para o efeito; instrumentos ancestrais, tais como as
três estatuetas de terracota e o colar de contas pretas que
comprara no momento em que escolhera o Paganismo como
sua religião e fonte de verdade. Nos tempos livres, passeava
pelo deserto, meditando e comendo pevides de abóbora para
entreter o estômago e justificar a sua sede, saciada pela água
fresca do seu cantil de pele de búfalo. À noite, depois das
orações e oferendas aos deuses, escutava a melodia de uma
caixa de música em madrepérola – a única recordação que
guardava de sua mãe, antes de ter morrido devido a proble-
mas de parto. Os habitantes da vila, especialmente os mais
velhos e preconceituosos, desprezavam-no. De noite, era
costume Dario, o sapateiro pagão, encontrar as paredes de
sua casa, e da sua oficina, vandalizadas com ordens para se
ir embora da região. A solidão e o desprezo da população ali-
mentavam ainda mais o seu sarcasmo e indiferença perante
tudo e todos.
És tu, Dario de Nog, o sapateiro, perguntou o
Alquimista. Dario parou de assobiar. Normalmente, quem
o interpelava era alvo da fúria dos animais que o rodeavam;
surpreendentemente, aconteceu o contrário. Nenhum deles
soltou um único som ou fez um gesto, depois de o Alquimis-
ta ter falado. Intrigado com a reacção dos seus amigos da
natureza, levantou-se. O próprio. Que quereis vós de mim,
interpelou. O que quero de ti tem a ver com o compromisso
que fizeste comigo e com o Universo. Chegou a hora do teu
destino. Vem comigo e farei de ti o sapateiro dos Céus.
Dario começou a rir a bandeiras despregadas com ta-
manho pedido. Ouviram, deuses, chegou mais um maluco!
Vê-se logo que não és destas bandas! Quem me conhece,
sabe que não tenho outro amo senão os deuses que venero

73
Tiago Moita

e o trabalho que faço. Mesmo desprezado por estes pobres


infelizes, sou precioso para eles. Como conseguiriam viver
sem o meu calçado e os meus remendos, respondeu, reto-
mando o riso.
– E quem são esses deuses que veneras e guiam a tua
alma? – perguntou o profeta.
– Olha – respondeu, rodopiando de braços abertos. –
Estão por toda a parte! Os animais que habitam a terra, o
vento e o sol que me beijam, a chuva que me limpa. Tudo
o que vês à tua volta são os deuses que venero, mais nin-
guém. E tu, ainda não respondeste à minha pergunta. Quem
és tu?
O Alquimista declarou, sorrindo.
– O murmúrio do vento que te beija, o raio de sol
que te desperta todas as manhãs, a voz que brama no teu
peito, a minha imagem e o pedido que me fizeste, depois
de perderes a tua mãe.
O sapateiro ficou petrificado e pávido com aquelas
palavras por escassos segundos, caindo depois de joelhos e
os olhos marejados de lágrimas. Dario rastejou até aos pés
do profeta, acabando por beijá-los, envergonhado por não
ter reconhecido o sábio que todos anunciavam pelos quatro
cantos do planeta.
Nessa noite, Samuel e os discípulos do Alquimista
jantaram em casa do sapateiro pagão. Ninguém ficou in-
diferente às suas piadas e generosidade, enquanto ia mos-
trando cada sapato ou peça de artesanato, feitos por si. Sen-
tia-se um homem novo e mais feliz. O Profeta dissera-lhe,
depois do jantar, que pretendia ir até Distopia para cumprir
a sua missão. Dario assentiu e manifestou a sua intenção
de segui-lo até ao fim do mundo, se fosse preciso, tivesse
o mundo um fim no virar de uma esquina. Enquanto todos
dormiam, o Alquimista observava o céu, prateado pelas es-
trelas e pelo brilho da lua, agradecendo por mais um dia e

74
O Evangelho do Alquimista

por mais uma conquista. O aparecimento de uma pequena


sucessão de auroras boreais desassossegou-o por uns ins-
tantes.
A manhã despertara mais tranquila que a noite, em
casa do sapateiro. Todos os presentes procuravam levar tudo
o que era preciso para a jornada. De Nog a Distopia ainda
eram uns meses de viagem e era preciso não perder tempo.
Dario beijava pela última vez o chão da sua casa e as três
estatuetas da sua antiga religião, antes de fechar à chave a
oficina e residência. A presença do Alquimista e dos seus
discípulos enchiam-no de orgulho e confiança. Minutos an-
tes de partir na carrinha do caixeiro-viajante, o seu humor
mudou quando olhou para Samuel.
Algo prendera a sua atenção. Desconhecia o motivo.

75
DEZASSEIS
O Sol era um estranho no Bairro Anguscius. Pala-
vra morta de uma língua desconhecida, decifrada num
achado arqueológico sem significado para os Dúbios, os
soturnos habitantes daquele bairro cinzento.
Cinzento, como os dias e as horas que tatuavam as
suas vidas; cinzento, como os filmes sobre os anti-heróis
e virgens suicidas, armadas em divas, saídas de filmes
de Fellini; cinzento, como os poemas de Byron, Rilke ou
Celan, lidos pelos intelectuais e boémios mais inebria-
dos dos cafés das esquinas, entre o riso e o silêncio das
pedras, que absorviam as lágrimas deixadas ao abandono
pela embriaguez da noite; cinzento, como a vida que fu-
gia a cada instante dos seus dedos.
Não era um bairro extravagante como Extasis, ou
sintético como Selectus. Anguscius transpirava decadên-
cia e melancolia pelos poros das suas paredes e dos seus
habitantes. Em nenhum quadro, foto, canção ou poema
havia algo de lenitivo; as rosas eram corações ambíguos
para os Dúbios; um incêndio no tempo; um olhar de re-
vés sem redenção possível; tudo era fractura e divisão,
impotência e silêncio. Um silêncio sufocante, capaz de

77
Tiago Moita

desfiar uma lágrima, por mais tímida ou furtiva que fos-


se, de uma criança ou mesmo de uma pedra.
Tudo o que provinha do silêncio, habitava no silêncio.
Pensamentos de anulação da vida, ceifada aos olhos daquele
povo, eram mote para jovens porem termo à vida no silêncio
dos seus quartos ou em plena via pública, no pico da madru-
gada. Para os estrangeiros, era uma tragédia; para os Dúbios,
o suicídio, tanto de jovens como de idosos, era uma bênção,
digna de celebração em cada esquina, café, água-furtada,
ou mesmo em palácios, como o Palácio da Orquídea Negra,
onde morava Simone Dumonde.
Poucos conheciam o seu verdadeiro nome. Escolhe-
ra-o em homenagem à grande heroína da sua adolescência,
Simone de Beauvoir, a mítica companheira de Jean-Paul
Sartre. A mulher que afirmava que em todas as lágrimas ha-
via uma esperança e que uma mulher não nascia mulher;
tornava-se mulher. Palavras que também tinham seduzido
o seu falecido companheiro e primeiro líder do bairro An-
guscius, Léon Segall, um nome venerado entre os Dúbios
como um mito; um deus, idolatrado a par de figuras como
Albert Camus, Sartre, Heidegger, Merleau-Ponty, Lispector,
Ortega y Gasset entre tantos outros escritores, artistas e inte-
lectuais que davam nome às ruas e avenidas daquele bairro,
representados em bustos e imponentes estátuas, para deleite
orgástico dos seus habitantes, habituados a bacanais noctur-
nos de vinho, mel e sémen.
Simone estava sentada à varanda, bebendo um chá de
cidreira e afagando o seu gato preto, Édipo, enquanto assis-
tia à condenação à morte de uma das suas discípulas. Quatro
jovens enforcaram-na numa das árvores do palácio. A jovem
era acusada de ter encontrado o verdadeiro amor em públi-
co, quando Amor, em Anguscius, era uma palavra proibida,
uma invenção em forma de doença, capaz de trazer apenas
dor e sofrimento ao ser humano. Simone costumava verter

78
O Evangelho do Alquimista

uma lágrima em suicídios, como este. Para si, era motivo


de alegria e libertação quando uma pessoa pusesse termo à
vida.
Uma hora antes, tinha conversado com um grupo de
cinco adolescentes, que sempre a visitavam depois das au-
las. Simone também costumava visitar os cafés e os locais
onde, com o seu falecido companheiro, marchava pelas ruas
de Distopia, exigindo mais direitos para os indivíduos e para
os animais, e a imaginação ao poder até ao nascimento do
bairro que a vira crescer. Nessa tarde, tinham discutido so-
bre a condição humana e o suicídio. A mais nova das cinco
anunciou a sua intenção de se suicidar quando fizesse vinte
e um anos. Todas choraram de alegria e bateram palmas. Si-
mone, não só rejubilou com a decisão da jovem como tam-
bém a abraçou, comovida.
Um jovem entrava naquele momento nos aposentos
da líder dos Dúbios com uma carta. Simone pediu, delica-
damente, às adolescentes que se retirassem. Do Palácio da
Montanha Mágica para Madame, disse, seco e suave. Simo-
ne abriu-a, intrigada, seguindo-se um eufemístico suspiro,
mal a acabou de a ler. Era uma carta de Zarat, convocando-a
para o Conselho Magno de Distopia. Conformada, assentiu
na ordem do senhor da cidade. O jovem não abandonou os
aposentos de Simone sem ser alvo de uma pergunta daquela
mulher desalmada.
– Que é feito de Adriano?

79
DEZASSETE
A atmosfera dentro da carrinha de Samuel contrasta-
va com o ambiente agreste e inóspito do Grande Deserto.
Uma pulga mecânica mergulhada num oceano de areia e
silêncio que, pouco ou nada, conhecia da palavra vida. Um
turbilhão de perguntas fervilhava nas mentes dos discípu-
los do profeta, ávidos de respostas a perguntas, que iam
desde o mais simples desejo até à questão mais filosófica.
Apenas Dharma permanecia indiferente a todo aquele re-
buliço verbal, mastigando e fazendo bolas com uma chicle-
te de morango.
O Alquimista interrompera aquela babel de questões
e desejos com uma estrondosa gargalhada. Quando vos en-
contrei parecíeis cegos, com medo da luz que vos mostrei.
Agora que a viram, querem desesperadamente conhecer a
sua origem, como um rio procura a sua foz. Todavia, es-
cutei todas as vossas dúvidas com muita atenção e estou
disposto a responder a todas elas, cada uma a seu tempo.
Porém, não esperem receber, de imediato, respostas a todas
as vossas questões nem se desculpem por fazê-las. Todas
elas já foram feitas por homens e mulheres há milhares de
anos, com a mesma sede de saber, que vocês, respondeu,
tentando conter o riso.

81
Tiago Moita

E continuou. Comecemos pelo Homem. Existe uma


coisa que precisam saber: Todos nós vivemos num Univer-
so regido por leis. Leis como a Lei da Gravidade ou a Lei
da Causa e Efeito, apenas para citar alguns exemplos, não
podem ser infringidas ou ignoradas; cada um de nós está
a cumpri-las neste momento, ao ouvir estas palavras; não
podem afastar-se delas, existir fora delas nem deixar de as
cumprir, porque é assim que as coisas funcionam.
Os discípulos bebiam atentamente as palavras do sá-
bio, sem proferir qualquer uma. Apenas Dharma quase não
prestava atenção.
Todos nós, independentemente de acreditarmos, ou
não, partilhamos uma aliança eterna com Deus. E porquê?
Porque Ele nos fez à sua imagem e semelhança e tornou-
-nos seres triplos, tal como a vossa noção de Tempo, a vossa
concepção de Universo ou de Energia. Somos seres triplos.
Não apenas de corpo e mente, mas também de espírito, es-
sencialmente de espírito. Seres espirituais a viverem uma
experiência física e não seres físicos a viverem uma expe-
riência espiritual.
– O que é a alma? – perguntou Rodrigo. – Como é que
uma coisa invisível pode ter algum papel ou propósito no
processo de criação?
O Alquimista sorriu, antes de responder. Pensem na
alma como uma centelha de fogo dentro do vosso corpo,
circulando em vários sentidos. Essa energia, que deu origem
a todas as energias, resulta da soma total de todas as sensa-
ções que já tiveram, que já viveram, mas de que, muitos de
vós, não se recordam. Tal como um construtor de um puzzle
busca sempre a próxima peça até chegar à última, a alma
procura a consciência de algumas sensações humanas perdi-
das, num processo chamado remembrança.
– Então é por isso que estamos aqui no mundo? Para
remembrarmos? – perguntou Leandro.

82
O Evangelho do Alquimista

O Alquimista continuou, com um brilho nos olhos.


Remembrar é um processo e nunca um fim. O grande pro-
pósito da alma é o mais sublime sentimento de amor que
possam imaginar. É o sentimento que ela procura, não o co-
nhecimento; o conhecimento é conceptual, ao passo que o
sentimento é experiencial. A alma quer sentir-se e conhe-
cer-se na sua própria experiência e o sentimento mais su-
blime que ela procura é o sentimento de amor-próprio, puro
e incondicional. Esse é o grande retorno à verdade que a
alma anseia e, com ela, experimenta a unidade com Tudo O
Que É. Para isso acontecer, a alma tem de experienciar to-
dos os sentimentos humanos. Acham que eu, enquanto alma,
conseguia ter compaixão por aquilo que não entendo? Podia
perdoar outra pessoa sem nunca ter consciência do senti-
mento de culpa? Podia amar sem nunca primeiro ter sentido
ódio, raiva, luxúria, ciúme ou cupidez? Não! Não! Mil ve-
zes não! O amor não é uma ausência de emoções mas sim
uma soma de todos os sentimentos, positivos ou negativos,
segundo a vossa maneira de pensar, para perceberem que a
grandiosidade só existe no espaço daquilo que não é gran-
dioso. Só quando escolherem o melhor de quem vocês são,
sem condenarem aquilo que não escolheram, então, terão
optado pela grandiosidade. Essa é a grande e única função
da alma no Universo.
A tarde despedia-se, para gáudio e alívio de todas as
criaturas do deserto e passageiros da carrinha de Samuel,
ainda incrédulos e confusos com as últimas palavras do
Alquimista. Samuel avistava ao longe a Vila de Zaraban-
dar, uma pequena povoação crística e mercantil, próspera e
hospitaleira, apesar de cheia de segredos. O profeta pediu a
Samuel que encontrasse uma pensão para ele, mais os seus
discípulos, pernoitarem. Quando Samuel lhe perguntou a ra-
zão da sua escolha, o Alquimista declarou ter sido alvo de
uma premonição.

83
Tiago Moita

Apenas pelo olfato se reconhecia uma vila como


Zarabandar. Quem ali permanecesse algum tempo, era
capaz de identificar as principais fragrâncias daquela
povoação: desde o aroma das especiarias do mercado local
até ao cheiro das amendoeiras; do odor das roupas de cada
habitante, passando pelo perfume acre das tintas e o suor
dos prisioneiros que caminhavam agrilhoados, a caminho
das prisões de Distopia. De noite, dizia-se que todos os
odores da vila eram roubados pelo fantasma de um velho
imperador, que os trocava pelo perfume das suas sessenta
concubinas, apenas para provocar a libido dos homens e o
ciúme das mulheres. Lendas sem fundamento, contadas de
boca em boca, de geração em geração, por todos os Crísti-
cos, legítimos sobreviventes e descendentes dos cristãos e
supremos guardiões da palavra do Grande Christius, pro-
feta dos profetas e mensageiro dilecto de Deus no Mundo,
enquanto vivo. Todos os Crísticos conheciam essas lendas
e acreditavam nelas, como se fossem retiradas do seu livro
sagrado. Apenas um artesão pensava, em segredo, de ma-
neira diferente.
Nenhum habitante de Zarabandar sentia tanto prazer
na paz nocturna como aquele homem. Era a única altura
do dia em que podia rezar as suas orações Makbares – os
últimos descendentes dos muçulmanos – com o seu colar
de contas castanhas e o seu livro sagrado. Para Otelo, orar
de noite era tão natural como os insultos com que os crísti-
cos o presenteavam, ou a pata de coelho e a ferradura que
trazia pendurada ao pescoço. Sorte era, para si, uma reli-
gião tão forte quanto a sua, e tão importante quanto o seu
trabalho, herança do pai, mártir de uma guerra impossível.
Antes de adormecer, tinha por costume apreciar as cores no
seu caleidoscópio, que comprara a um caixeiro-viajante de
Distopia. Como não tinha amigos, aquele objecto era a sua
única companhia.

84
O Evangelho do Alquimista

O dia tinha acabado de chegar à vila com a sua azá-


fama rotineira. Otelo acordara ao som de pequenas pedras,
atiradas contra uma das paredes da sua casa, por miúdos vin-
dos da igreja, absolvidos de todos os seus pecados. Atirar
pedras ou mesmo torturar um Makbar, para um Crístico, não
era considerado pecado, tampouco um crime, uma vez que,
segundo eles, os Makbares eram seres inferiores a todos os
seres vivos do planeta. A malvadez dos petizes teve a dura-
ção de um minuto, segundo o seu relógio de sol. Da janela,
Otelo barafustava sempre contra as suas partidas nada ino-
centes, provocadas por um fanatismo e intolerância religio-
sos ancestrais. O único momento de paz, a seguir à noite, era
o trabalho na oficina. Apenas o barulho das ferramentas o
mantinha distraído dos maus-olhados daquele microcosmos
e das misérias que lhe corroíam a mente.
Alguém tocava à campainha.
Otelo saiu da oficina para ver quem era. Àquela hora,
era provável ser mais um cliente. Otelo podia ser um Makbar
mas era também um excelente artesão e todos os seus ob-
jectos eram apreciados em toda a região e vilas vizinhas.
Podia ser temperamental e nervoso para com os fanáticos e
malfeitores, assim como supersticioso, mas nunca negava
um sorriso nem deixava de estender a mão a um cliente ou a
quem mais precisasse de ajuda. A imagem do Alquimista e
dos discípulos à porta da sua casa provocou-lhe um misto de
surpresa e estupefacção.
– Não esperava tantos clientes hoje. Que desejam? –
perguntou. O Alquimista foi o único a aproximar-se do ar-
tesão.
– Vives em paz contigo mesmo, Otelo? Ainda não per-
doaste ao teu pai? – perguntou o profeta.
Otelo ergueu a cabeça e franziu a testa. Aquele foras-
teiro sabia coisas da sua vida que mais ninguém sabia, es-
pecialmente do seu pai, morto numa das muitas guerras que

85
Tiago Moita

os povos do Grande Deserto tinham feito contra Distopia. A


princípio, pensou ameaçá-los com o seu olhar penetrante e
as suas palavras ácidas, mas algo naquele homem o parali-
sou, levando-o apenas a fazer uma pergunta.
– Quem és tu?
– Aquele que ouviu as tuas preces e prometeu fazer de
ti um artífice de estrelas.
As lágrimas rolaram mais rapidamente que as palavras
ditas por aquele artesão, supersticioso e simples. Naquele
momento, relembrou a voz de um anjo que na sua infância,
lhe anunciara a vinda do profeta do Oráculo do Destino e
que ele iria identificar-se com uma promessa: a mesma que
ouvira da boca do Alquimista, segundos atrás. Depois das
lágrimas, aproximou-se timidamente do profeta, que o rece-
beu com um caloroso e forte abraço.
O artesão não perdeu tempo. Samuel ia partir a meio
da tarde para Distopia, com o Alquimista e os seus discípu-
los, e Otelo, não queria perder a oportunidade de o seguir.
Sem mais delongas, recolheu tudo o que de útil tinha em
casa para a viagem – sem sentir tristeza, saudade ou ressen-
timento por deixar a vila, casa e oficina. Nada ali o prendia,
nem sequer uma alma companheira ou freguês à sua espera.
Porém, algo na sua memória o intrigava, durante todo aquele
aparato: os rostos de Rodrigo e Heitor não lhe eram estra-
nhos, nem a medalha que Samuel trazia ao peito.
Era como se já os tivesse conhecido.

86
DEZOITO
Nenhum homem ou mulher que trabalhasse no gi-
gantesco laboratório-oficina do Professor Salomão Wekler,
conhecia a palavra descanso, desde que Zarat autorizara o
Projecto “VHCruz” – o projecto mais secreto de Distopia
e de todo o planeta. Todo o cuidado era pouco e todas as
medidas de segurança eram analisadas ao mais ínfimo por-
menor. Desde as entradas e saídas dos funcionários, passan-
do por qualquer troca de mensagens ou movimento estranho
em qualquer departamento, tudo era alvo de investigação
imediata, tanto por parte dos funcionários e cientistas que
trabalhavam naquele megalómano e bizarro engenho, como
por parte dos guardas que vigiavam os corredores e depar-
tamentos, directa ou indirectamente, através de câmaras de
vigilância da mais alta tecnologia do planeta.
Se havia um dom que Salomão possuía era, sem dú-
vida, o da paciência. Desde adolescente que vira crescer
essa virtude dentro de si, como base para a concentração,
observação, análise e síntese para todas as suas invenções
e descobertas. Não tinha medo de perguntas e desconfiava
de verdades absolutas. Idolatrava Galileu, Newton ou mes-
mo Albert Einstein e Stephen Hawking como verdadeiros
gurus, cujo trabalho e génio tinham aberto as portas, não só

87
Tiago Moita

para o mundo da ciência e para a Humanidade, no geral, mas


também, em especial, para este filho de uma farmacêutica e
de um professor de matemática, que jamais conhecera algo
mais intrigante e apaixonante que o mundo da ciência. Para
este cientista, inventar um novo engenho tecnológico ou fazer
uma importante descoberta científica era como dobrar uma
passagem entre dois oceanos, como Fernão de Magalhães fi-
zera no século dezasseis: um desafio cheio de surpresas e uma
oportunidade para remover uma sombra da ignorância do ser
humano.
Uma gigantesca construção de vidro e de aço começava
a ganhar forma no laboratório de Salomão. Em cada depar-
tamento da oficina, cientistas, técnicos, engenheiros e assis-
tentes – alguns seleccionados pelas melhores faculdades da
cidade e dos centros científicos mais importantes do planeta,
remexiam-se de um lado para o outro, com toda a espécie de
ferramentas e computadores ultramodernos para testar, peça
por peça, a invenção que Zarat encomendara a Salomão. O
cientista enchia o peito de satisfação, acompanhado por um
sorriso de orgulho, por cada progresso atingido no seu tra-
balho. Dúvidas, apenas possuía a respeito da sua utilização
final. Desconfiava da existência do Alquimista e do Oráculo
do Destino, a Profecia e a Providência eram seres estranhos
no seu vocabulário, tal como a ideia de conceber o Universo
como uma consciência em expansão e o planeta como um ser
vivo.
Quatro elementos da Guarda Zaratista escoltavam Pto-
lomeu e Metello – comandante supremo da guarda pessoal do
senhor de Distopia e portador de uma arrogância e mau-feitio,
capaz de gelar o sangue do mais comum dos mortais. Ptolo-
meu foi o primeiro a falar.
– Boas tardes, Herr Wekler. Como está a correr o pro-
jecto? – perguntou, enquanto Metello dirigia um olhar inqui-
sidor para o célebre cientista, esperando uma resposta rápida.

88
O Evangelho do Alquimista

– Como podem ver, a programação dos ecrãs policro-


máticos está quase pronta. Tivemos ontem uma ligeira ava-
ria nos circuitos eléctricos mas foi rapidamente solucionada.
– respondeu o cientista, trémulo.
– Herr Wekler, sabe muito bem que o Grande Zarat
não gosta nem de defeitos nem de atrasos. Fontes seguras in-
formaram-nos de que o Alquimista não só já apareceu como
recrutou discípulos e vem a caminho de Distopia. Bem sabe
o que isso significaria para nós, se as mensagens desse luná-
tico contagiassem os nossos povos. Seria o fim de Distopia e
do mundo, tal como o conhecemos, entende?! Por isso, diga-
-me: Quanto tempo vai demorar a construção da VHCruz?
O cientista engoliu em seco perante aquela pergunta.
Sabia que os homens que tinha à sua frente eram indivíduos
de poucas palavras para com subalternos, e intransigentes
com resultados para com os coordenadores do projecto, en-
comendado pelo grande e temível senhor de Distopia. Era
preciso jogar pelo seguro. Uma gota de suor polar escorria
pelo rosto de Salomão. Uma resposta era aguardada sob a
inquisição dos olhares dos homens da confiança de Zarat.
– Podem... ficar tranquilos. Existe uma forte probabi-
lidade de a VHCruz estar pronta dentro de um mês. Há cerca
de dois meses acabámos a totalidade da construção e as últi-
mas experiências com os reactores e sistemas de programa-
ção. Estou certo que o projecto estará concluído dentro do
prazo estabelecido.
Ptolomeu e Metello entreolharam-se de testa franzida.
Desconfiavam de probabilidades e não costumavam ser be-
nevolentes com erros e atrasos, viessem eles donde viessem
e de quem quer que fosse. A presença dos homens do Palácio
da Montanha Mágica enregelara os nervos de todos aqueles
que trabalhavam no laboratório-oficina de Salomão Wekler.
Bastava o olhar gélido de Metello para distrair o técnico que
controlava a pressão de uma das válvulas daquele bizarro

89
Tiago Moita

aparelho. Salomão respondeu, procurando manter o coração


e a cabeça nos locais certos.
– Meus Senhores, é melhor retirarem-se. Os meus co-
laboradores precisam de toda a concentração e tranquilidade
para trabalharem e a vossa presença... – respondeu, antes
de ser interrompido brutalmente por Metello, que o puxou
pelos colarinhos.
– É bom que esteja a dizer a verdade, professor. Nem
eu nem Zarat somos pacientes no que diz respeito a prazos
e quanto a erros, é bom que não os cometa. – respondeu,
largando o cientista, que acabou por tombar no chão, ficando
de óculos descaídos.
– Um mês, Salomão, um mês! Nem mais um dia.
Adeus! – respondeu Ptolomeu, num tom seco e autoritário.
O cientista ia-se recompondo daquele incidente. En-
golira os seus pensamentos mais tenebrosos com sangue frio,
como se a sua vida dependesse disso. Poderia ter recusado
o projecto que Zarat lhe encomendara. Todavia, sabia, de
antemão, que uma recusa a um desejo, da mais alta impor-
tância para o senhor de Distopia, equivaleria a uma sentença
de morte. Ser um reputado e respeitado cientista tinha os
seus custos. A ausência de livre-arbítrio perante os desígnios
de Zarat era um deles. Resignado com a visita de Ptolomeu
e Metello, Salomão virou-se para um dos assistentes.
– O Leandro e o Adriano ainda não chegaram?

90
DEZANOVE
O Grande Deserto não dava tréguas a qualquer ser
vivo, conhecido ou forasteiro, naquele inferno de areia e pe-
dra, forjado pelo bafo abrasador do sol, qual bigorna natural
de terra árida e fogo invisível, onde nem o Diabo se atre-
via a pôr os pés. Embora, Samuel gostasse de desafios, não
era suficientemente doido para enfrentar aquele, que muitos
apelidavam de General Morte. Assim, escolhera o fim da
tarde para deixar Zarabandar e se fazer à estrada, com o Al-
quimista e os seus discípulos, rumo a Distopia.
Faltavam ainda muitos quilómetros a percorrer e mui-
tas questões, sedentas de resposta a dar pelo profeta. No pri-
meiro quarto de hora, o silêncio tinha-se instalado na viatura
do caixeiro-viajante. Todos pareciam estar em meditação,
como o Alquimista. Otelo, o discípulo mais recente, come-
çou a sentir que uma tristeza infinda se lhe apoderava da
alma, ao olhar para as mãos.
O que se passa, perguntou Dario, sentado ao lado do
ex-artesão Makbar. As minhas mãos. Estão a envelhecer,
como eu. E eu gostava tanto de viver ainda tempo suficiente
para poder concretizar tanta coisa, depois de ajudar o nosso
mestre, respondeu, de olhos marejados. Leandro aproveitou
aquele momento de angústia existencial para voltar a dis-

91
Tiago Moita

cutir com o Alquimista a questão do conceito e sentido do


Tempo. O profeta voltou-se e limpou os olhos de Otelo, sem
esquecer as questões e angústias dos seus discípulos.
O Tempo nunca deve ser visto como um fardo mas
sim como uma oportunidade para analisarmos a nossa vida,
através da nossa maneira de pensar. Julgas que as aves que
voam no céu pensam no Tempo? Os animais que pastam nos
prados e vales pensam no Tempo? Que o Tempo teve algu-
ma vez tempo para pensar quanto tempo ainda tem? Não!
Porque o Tempo existe em função da consciência, não em
função de convenções mecânicas inventadas pelo homem,
respondeu o profeta.
Mas eu não sou um animal, nem uma árvore ou uma
pedra. Sou um homem, replicou Otelo, irritado e de olhos
flamejantes. Não, Otelo! És mais do que isso! – interrom-
peu o profeta. – És um ser espiritual, cidadão do Universo.
Corpo, mente e espírito numa só, e única, estrutura, moldada
pelo Criador de Tudo o que Existe, do qual és filho, mas
também és pai e mãe do Criador. Dizes que ainda tens mui-
to para fazer e não te apercebes do que fizeste ao longo da
vida: os objectos que criaste, as experiências por que passas-
te, tal como as relações com as pessoas que se cruzaram na
tua vida, são as visões do futuro que conseguiste encontrar
no teu presente. Só quando se conhece o Passado é que é
possível conhecer todos os Futuros possíveis. Procuraste-me
nos teus sonhos para me pedires como os concretizar. Muito
bem, então, analisa e questiona o teu passado, para saberes
como chegaste e onde te encontras hoje. Buda uma vez disse
que se a mente pára, tudo pára. Não é só o Tempo que é o
movimento do pensamento. O Universo, no seu todo, é esse
movimento.
Uma paragem brusca da carrinha de Samuel empurrou
os passageiros para a frente. Os presentes tentaram recom-
por-se e controlar os ânimos, perante a atitude do condutor.

92
O Evangelho do Alquimista

Samuel, estás louco? O que é que se passa contigo, inter-


pelou Leandro, antes de olhar para o vidro da frente. Todos
os discípulos do Alquimista se acotovelavam para tentarem
perceber o motivo de tão abrupta paragem. No exterior, os
potentes faróis da frente do veículo do jovem caixeiro-via-
jante mostraram uma espécie de carrinha pick-up preta de
faróis apagados. A poeira e o vento do deserto tinham di-
minuído a visibilidade de todos os que tentavam encontrar
sinais de vida nesse veículo abandonado ali, em plena tem-
pestade de areia.
O Alquimista pediu, subtilmente, com o olhar, a Sa-
muel que avançasse devagar. Tanto poderia ser um carro
abandonado no deserto, depois de um assalto ou de outro
tipo de situação, como ser propriedade de alguém, perdido
e desesperado, como acontecera com Leandro e Rodrigo, à
procura de um sinal de vida e de uma mão amiga para os
resgatar daquele inferno de areia e vento. A poucos metros
da viatura, acenderam-se os faróis da frente, enquanto a tem-
pestade se foi dissipando quando o profeta levantou os olhos
para o céu, como se Deus, ou qualquer outra força miste-
riosa do Universo, respondesse a um pedido do seu pensa-
mento. Samuel parou a carrinha. No interior do automóvel,
encontravam-se dois homens.
Medo e passeios no Grande Deserto não eram uma
experiência nova para Gustavo e Adriano. Os dois irmãos
reagiam de maneiras diferentes ao afastamento da tempesta-
de de areia e ao aparecimento da carrinha de Samuel. Pres-
sentimentos e preconceitos começavam a ganhar forma na
mente de ambos. Seriam salteadores do deserto, traficantes,
presidiários em fuga de um qualquer estabelecimento prisio-
nal dos arredores de Distopia, ou, então, viajantes perdidos,
como eles, ou salvadores por acaso que compunham todo o
significado da acção do Universo? O Alquimista foi o único
passageiro a sair da carrinha e a dirigir-se, tranquilamente,

93
Tiago Moita

para a pick-up daqueles homens, como se fosse ao encontro


de dois amigos.
Adriano começava a ter ataques de pânico com a apro-
ximação do profeta, tentando tirar a pistola do porta-luvas.
Gustavo impediu-o e acalmou-o com o olhar. Foi o primeiro
dos dois a sentir a aproximação, não de uma ameaça, mas
de uma espécie de salvação. Algo invadira a aura daqueles
dois homens perdidos no deserto, mas não os assustara nem
manifestavam qualquer tipo de reflexo instintivo de auto-
defesa. Adriano reagiu da mesma forma que o irmão, assim
que enfrentou o rosto do Alquimista, quando este, sorrindo
contagiantemente, deu dois toques na janela do condutor.
Gustavo hesitou três segundos, antes de abrir a janela, o que
deixou Adriano atónito com a atitude do irmão.
– Gustavo! Adriano! Estávamos todos à vossa espera!
Vamos embora! – ordenou.
Os dois irmãos continuavam estáticos e apáticos. Pa-
reciam estar a ver um fantasma. Aquela ordem era tão bizar-
ra quanto a presença do sábio.
– Quem... quem és tu? – perguntou Gustavo, intriga-
do.
– A voz que falou convosco e que nunca vos abando-
nou, quando fostes separados à nascença e viveste em bair-
ros diferentes. Tal como nunca vos abandonei quando o meu
nome foi ouvido pelos vossos corações e vos fez vir ao meu
encontro neste lugar a esta hora. – respondeu o profeta.
O silêncio tomara conta dos seus sentidos. As bocas
de ambos abriam-se em câmara lenta com aquela revelação.
Os rostos responderam com pranto.

94
VINTE
Dourada não era apenas a cor do sol que banhava
os espelhos dos gigantescos arranha-céus do Bairro
Cornucópia, o bairro mais rico e capitalista de Distopia e
de todo o Planeta. Era também a luz do mais precioso dos
metais, que fazia mover a economia e o modo de vida dos
Averos, os distintos habitantes daquele bairro. Fonte de to-
dos os progressos e tragédias. Combustível de todas as ac-
ções e reacções humanas, que atingiam desde o mais comum
trabalhador até ao mais alto dirigente.
A fidelidade ao mérito e ao sucesso material eram
mais que meras regras. Eram códigos de conduta moral para
todos os Averos e investidores que quisessem fazer negócios
com eles, porque Cornucópia, que ninguém se iludisse, era
um bairro feito apenas para negócios. O verdadeiro valor das
coisas é o esforço e o problema de as adquirir, e todos aque-
les que moravam ou trabalhavam em Cornucópia tinham
noção desse pensamento de Adam Smith. Tudo ali tinha um
preço; nada era gratuito. A quantidade de smog, provocado
pelas fábricas dos Averos, era de tal maneira forte que até
havia comerciantes que negociavam latas de ar, ao serviço
de grandes multinacionais. Homens tatuavam em animais
de estimação e em seres humanos marcas de produtos para

95
Tiago Moita

obterem lucros de franchising. Não havia café, restaurante,


edifício público, estabelecimento, rua, avenida ou esquina
onde não se realizasse um negócio ou aposta – um dos maio-
res vícios dos Averos, a seguir ao tabaco, ao álcool e às dro-
gas. Nas escolas, ensinavam-se línguas, cultura científica e,
acima de tudo, empreendedorismo. Era importante para todo
o Avero compreender os princípios da economia de merca-
do, o valor do dinheiro e da propriedade, desde tenra idade.
Em Cornucópia, ou eram empreendedores ou apenas consu-
midores. Os pobres estavam condenados a viver nos esgotos
do bairro porque, naquela localidade, ser-se pobre era uma
ofensa grave contra a prosperidade do sistema capitalista.
De facto, era difícil, para não dizer impossível, en-
contrar alguém em Cornucópia que não fosse trabalhador ou
empresário. O luxo e a ostentação dos seus palácios e edifí-
cios eram um tributo ao lucro e ao sucesso; cada banco ou
empresa inaugurada era motivo de regozijo para eles. Todo
o bairro tinha sido traçado a régua e esquadro como tributo
à Ciência e à Razão, bem como à Maçonaria – sociedade se-
creta que desde a sua fundação, dominava os seus destinos,
e, segundo às más-línguas, os destinos de Distopia, depois
de Zarat. Os monumentos, que se encontravam em conver-
gência com todos os símbolos maçónicos e cabalistas, glo-
rificavam tanto os grandes gurus do Capitalismo, – como
Adam Smith, David Ricardo ou Stuart Mill –, mas também
a figura do Empresário ou até mesmo do Dinheiro: sangue e
razão de toda a existência daquele mundo e de toda a socie-
dade contemporânea.
Um homem acabava de acender um belo charuto
cubano enquanto bebia mais um trago do mais puro whisky
escocês vinte anos no Palácio-Bolsa Pluto – sede do governo
autónomo Avero em Cornucópia. Meditava sobre uma frase
que lhe tinha sido transmitida por um dos maiores, e mais
influentes, homens de negócios de Distopia e que contara a

96
O Evangelho do Alquimista

uma estudante de economia da universidade Stuart Mill – a


mais prestigiada do bairro –, para concluir a sua dissertação
sobre a importância da economia de mercado para o ser hu-
mano. Quero que fixe um objectivo tão ambicioso que, se o
atingisse, ficasse em estado de choque. E saberia que isso
tinha acontecido por causa daquilo que lhe ensinei, lem-
brava-se, com orgulho e comoção. Saul Rabel era filho de
um Rabino Dopta – povo descendente dos Judeus – e de
uma costureira. Tinha sido habituado a trabalhar, desde mui-
to cedo, para concluir os estudos com êxito. Longe estaria
de imaginar que um dia seria líder supremo dos Averos e
senhor do Bairro Cornucópia. Essa lembrança era mais um
troféu, entre tantos outros, que fora ganhando e guardando
ao longo da vida.
Uma sombra irrompia no lusco-fusco dos aposentos
do chefe dos Averos. Era o seu mordomo, de semblante aus-
tero e sisudo, apresentando numa bandeja de prata uma carta
do Palácio da Montanha Mágica. Saul apressou-se a ler o seu
conteúdo. O semicerrar dos olhos revelava uma suspeita, se-
guida de um assentimento conformado. O mordomo pediu
permissão para se retirar, não sem antes o líder supremo dos
Averos, tirar uma dúvida que lhe assaltava a mente, depois
da chegada da convocatória de Zarat para estar presente no
próximo Conselho Magno de Distopia.
– Bertold. Que é feito de Gustavo?

97
VINTE E UM
A imensidão árida e plana do Grande Deserto dava lu-
gar a formações rochosas. Samuel chegara ao Vale do Escor-
pião. Um labirinto de grutas e desfiladeiros estreitos onde,
a qualquer instante, mil e um perigos esperavam o viajante
mais inconsciente e incauto. O jovem caixeiro-viajante não
abandonava a estrada. Era o único caminho certo para entrar
naquele lugar e dele sair. Para ele, ouvir os gritos dos abutres
e milhafres no céu; o rugir dos pumas nas montanhas; ver
iguanas e cascavéis com as línguas de fora ou ver a sim-
ples queda de um pedregulho era rotina. Percorrera aquele
trajecto centenas de vezes, mesmo antes de conseguir o seu
último emprego. Guardava as melhores recordações, cheias
de adrenalina e emoção, mais do que momentos para esque-
cer. Meia hora depois de terem entrado no vale, o Alquimista
fez-lhe sinal para parar.
Corta à direita, depressa, ordenou. Samuel obedeceu,
intrigado. O caminho era acidentado, cheio de pedras e terra
batida. A poeira era tanta que quase não se via um palmo à
frente do nariz. À esquerda; agora à direita; pára!
Os discípulos começaram a sobressaltar-se com todos
aqueles solavancos e atalhos. A carrinha de Samuel estava
agora longe do caminho principal e em frente à entrada de

99
Tiago Moita

uma gruta. Por que parámos, perguntou. Prosseguimos ago-


ra a pé a partir daqui, respondeu o Alquimista, saindo da via-
tura e dirigindo-se para o interior da gruta. Samuel apressou-
-se a acompanhá-lo, munido de um foco de luz. Os restantes
discípulos não pensaram duas vezes em fazerem o mesmo.
Dharma hesitou entre ficar na carrinha e fazer o mesmo que
os outros. O rugir de um puma das redondezas fê-la decidir
pela segunda opção.
A gruta fazia lembrar um pequeno labirinto de esta-
lagmites e estalactites a verterem minúsculas lágrimas de
água pura e cristalina. Os cristais que a cobriam emitiam
uma luz sensível e tão pura quanto a água que caía daquelas
construções esculpidas pela natureza. O ar puro da caverna
nada fazia lembrar a poeira do deserto nem o ar de Distopia
ou de qualquer povoação limítrofe. Caminharam uma hora
depois de entrarem na gruta, parando ocasionalmente para
admirarem os cristais e os morcegos sonolentos, de cabe-
ça para baixo, e para abastecerem os cantis com água das
pequenas nascentes subterrâneas, azuladas como turquesas.
Samuel já tinha visitado muitas grutas do Vale do Escorpião
mas nenhuma como aquela. Dharma não conseguira evitar
um espirro e acordara os morcegos ali pendurados. Todos se
baixaram perante o voo repentino daqueles pequenos ma-
míferos de vista curta e excelentes ouvidos, da família das
megachiropteras. Rodrigo era, de todos, o único que tinha
entrado em pânico e histeria. Temia ser mordido e contami-
nado por aqueles animais, assustados pelo inocente espirro
de Dharma. O Alquimista dirigiu-se rapidamente ao médico
e colocou-lhe as mãos no quarto e no quinto chakra; o médi-
co permaneceu naquele estado por alguns minutos até voltar
ao normal e os morcegos desaparecerem.
Desculpem, não fiz por mal, murmurou Dharma, afli-
ta. Deste conta do que fizeste? Podíamos ter morrido, vo-
ciferou Leandro. Não digam disparates. Os morcegos não

100
O Evangelho do Alquimista

fazem mal a ninguém. Eles assustam-se com facilidade e


qualquer um de nós podia ter sido a causa do sucedido, ob-
servou Samuel.
Estás melhor, perguntou o profeta ao médico. Rodrigo
assentiu, ainda meio atordoado. O que foi aquilo que me fi-
zeste, interpelou. Reiki, Rodrigo, Reiki. Vamos, respondeu,
ajudando-o a levantar-se. Samuel prosseguiu o resto da ca-
minhada com os discípulos do Alquimista. Uma hora depois
de entrarem na gruta foram surpreendidos por uma desco-
berta extraordinária.
Vista de longe, parecia uma aldeia em miniatura, es-
culpida pela mão da natureza. De perto, a aldeia de Narvalis
era um microcosmos de sentimentos e sensações. Os símbo-
los e o aspecto das capelas, santuários e do próprio templo
revelavam a religião Crística, seguida pela maioria dos habi-
tantes, sobretudo pescadores, como se via pela profusão de
barcos de pesca dos mais variados modelos, ancorados nas
docas da povoação.
O estado de espírito da população era semelhante à
simplicidade de um suspiro de uma jovem, a fazer renda no
vão da escada da casa de seus pais, ou da queda inocen-
te de uma gota de orvalho sobre a terra. O cheiro do peixe
pescado nos lagos subterrâneos representava um motivo de
orgulho e fonte de sobrevivência para todos. Peixe num bar-
co significava recompensa e sustento para mais um dia de
trabalho. Todos partilhavam a mesma fé e modo de pensar
e de viver naquele pequeno cosmos, isolado do mundo, tal
como acontecia com Jordão, o único pescador solteiro da
aldeia. Quem o conhecia, descrevia-o como um sol ambu-
lante que aquecia o coração de toda a gente, a simplicidade e
honestidade em pessoa e o marido ideal para todas as jovens
casadoiras da região.
Samuel e os discípulos do Alquimista não conseguiam
esconder a surpresa e estupefacção por encontrarem uma al-

101
Tiago Moita

deia de pescadores no coração de uma gruta. A certa altura,


Samuel deu pela falta do profeta. Dario apontou para um
barco ancorado numa pequena enseada.
O Alquimista tinha ido ao encontro de Jordão. Come-
çou a fazer-lhe perguntas sobre a pesca e o que achava da
sua vida. O pescador, sem se aperceber com quem estava a
falar, respondeu em tom bonacheirão e expressivo sobre a
sua vida; os tipos de peixe que existiam no lago e as aven-
turas por que passara, quando pescara peixes pré-históricos,
raríssimos, em pequenas covas, junto às paredes da gruta. A
certa altura, o profeta perguntou-lhe se se lembrava de um
espanta-espíritos que tinha encontrado numa pequena gruta
nos arredores da aldeia. O pescador mudou de expressão.
Que espanta-espíritos, perguntou, intrigado. Um círculo fei-
to de ossos e obsidiana com três formas circulares no meio,
representando três estrelas. Lembras-te da melodia que esse
espanta-espíritos transmitia quando o vento passava por ele?
Lembras-te da imagem que se formou e do que ela dizia,
perguntou o sábio, tentando penetrar o seu olhar no dele,
como se quisesse infiltrar-se na sua memória, através do
pensamento.
Jordão ficou hipnotizado com aquela revelação. Mal
o profeta acabou de falar, a sua memória recuou ao passa-
do. Uma sucessão de imagens e sons assaltou-lhe o cérebro.
Lembrava as brincadeiras que tivera com os irmãos e primos
nas grutas dos arredores de Narvalis; dos jogos e das parti-
das que pregavam uns aos outros. Numa delas, estavam a
brincar às escondidas. Todos tinham procurado grutas para
se esconderem, sem se importarem com o risco de serem
apanhados por pumas ou outra espécie de seres desconheci-
dos, narrados pelos anciãos em noites frias, junto às lareiras
de suas casas. A inocência leva sempre a melhor sobre o
medo, quando se associa à aventura. Jordão escolhera a gru-
ta onde descobrira o espanta-espíritos de que o Alquimista

102
O Evangelho do Alquimista

falara. Não encontrara vivalma, mas o pescador lembrava-se


perfeitamente de uma pequena aragem ao fundo dela, provo-
cando uma melodia sinfónica, vinda daquele misterioso ob-
jecto. Pano de fundo de uma canção com uma promessa de
transformar aquele homem bondoso, simples e pacífico num
pescador de almas. A certa altura, Jordão clarificou melhor
a imagem que vira.
Um abraço forte e caloroso ao profeta e um rosto ma-
rejado de lágrimas selaram aquele encontro com a figura re-
tratada no espanta-espíritos. O discípulo encontrara o seu
mestre.

103
II
A CONSPIRAÇÃO

“Não conspira quem nada ambiciona”

Sófocles
VINTE E DOIS
O mundo do ocultismo e do bizarro eram um fascí-
nio secreto para Nicole Adagio, mais do que uma paixão
doentia, derivada de uma curiosidade intelectual em tentar
compreender a realidade para além das suas fronteiras. Ni-
colau pensava exactamente o oposto da colega. Para ele, este
mundo tanto poderia ser uma porta para a morte como um
beco sem saída; embora a morte, tal como o perigo, fizessem
parte do seu estatuto e profissão ao serviço da lei e da ordem,
nunca deixava de lhe perturbar os pensamentos e, principal-
mente, os nervos.
Nicole e Nicolau dirigiam-se na viatura da inspecto-
ra em direcção à Vila Nog onde, segundo a reportagem do
jornal A Voz do Mundo, uma mulher ainda virgem dera à
luz uma criança, há vinte e sete anos. Nicolau conduzia en-
quanto Nicole ia analisando aquela reportagem bizarra. A
velocidade do vento anunciava uma tempestade, mas ambos
já se encontravam à entrada da Vila. A viagem correra sem
problemas. Nicole não parava de matutar acerca daquela re-
portagem.
Pragmático, Nicolau desconfiava de toda aquela in-
dagação. Valerá a pena continuarmos – perguntou. – Esta
reportagem pode ser uma entre tantas teorias da conspiração

107
Tiago Moita

e estórias absurdas de alucinações colectivas e fenómenos


paranormais como aquelas que chegam ao nosso departa-
mento todos os dias. Que fez a chefe pensar o contrário a
respeito desta?
Os detalhes que o jornalista incluiu nesta reportagem
para descrever este milagre, respondeu, mostrando a notí-
cia ao seu assistente. Nicolau olhou apenas de soslaio, para
não se desconcentrar por completo da sua condução. Repara
bem: no dia em que se deu esse nascimento, ocorreram to-
dos os sinais descritos no Oráculo. Os fenómenos no céu, o
eclipse... nem entendo como é que a Guarda Zaratista não
investigou esta notícia.
Cuidado com as palavras, senhora inspectora. Imagi-
ne se o seu desabafo chegava aos ouvidos dos nossos supe-
riores, interrompeu Nicolau, preocupado. Nicole ignorou a
sua preocupação e guardou o jornal na bolsa.
O lusco-fusco anunciava a chegada da noite. A apro-
ximação da viatura enervava, tanto como amedrontava, os
habitantes da vila. Numa rua perto da praça, Nicole abordou
uma mulher com uma criança ao colo e um silêncio tatuado
no rosto.
Boa tarde, disse Nicole, abrindo a janela automática.
Seria capaz de me dizer se nesta vila ocorreu há vinte e sete
anos um milagre, perguntou. Um milagre, exclamou a mu-
lher, intrigada. Sim, um milagre sobre uma mulher que deu
à luz ainda virgem uma criança, há vinte e sete anos. Sabe
onde aconteceu esse nascimento, perguntou a inspectora,
expectante. A mulher desviou o rosto e fugiu para a bruma
de uma rua estreita, apavorada e sem lhe dar qualquer res-
posta. Nunca mais foi vista.
– O que aconteceu com ela? Só fiz uma pergunta! –
exclamou.
Nicolau também achou estranho o comportamento da-
quela mulher; a sua fuga fê-lo suspeitar de que algo tinha

108
O Evangelho do Alquimista

realmente acontecido, e que, a ser verdade, merecia ser in-


vestigado. Os agentes continuavam as suas buscas pela vila,
entre o desespero e a frustração. Em cada canto encontravam
habitantes a fecharem as portas e janelas das casas; crianças
a fugirem para trás dos seus pais; pessoas idosas a desviarem
conversas com assuntos sem interesse. Impaciente e furiosa,
Nicole saiu da viatura e disparou um tiro para o ar. Nicolau
ficou estupefacto com aquele gesto. Todos os habitantes pre-
sentes permaneceram imóveis, feitos estátuas de mármore.
Atenção a todos, disse, exibindo o distintivo. Nicolau
seguiu-lhe o exemplo. Somos da Guarda Zaratista e estamos
aqui a investigar um caso da maior importância para Zarat.
Há vinte e sete anos, nasceu nesta vila uma criança do ventre
de uma mulher que continuava virgem. Todos nós sabemos
que isso não é normal nem natural. Por isso, ou vocês co-
laboram connosco e nos dizem quem foi essa mulher, onde
nasceu a criança e o que foi feito dela ou pagarão bem caro
esse silêncio, ordenou, recarregando a arma. Nicolau imitou
o gesto da inspectora-chefe.
Ninguém na vila sabia o que fazer. Era um povo sim-
ples, mas mesquinho e cobarde, sobretudo perante a autori-
dade. Eram capazes de zombar do tolo da vila ou não fazer
caso dos avisos da edilidade ou mesmo do delegado local
da polícia. Tudo, menos ir contra a força policial mais po-
derosa do planeta. Um dos velhos urinou nas calças quando
ouviu a voz estridente da jovem inspectora. O medo e a es-
tupefacção tinham tomado conta dos habitantes de Nog, ali
presentes. Eram fortes em número mas fracos em coragem.
Subitamente, uma mulher, marcada pelos anos dos pés à ca-
beça, aproximou-se dos dois agentes, de mãos ao alto.
Não dispare... não dispare, gesticulou, branca como
a cal que cobria as casas da vila. Houve... houve de facto,
o nascimento invulgar dessa criança de que fala. Nós, cá na
vila, só soubemos que a mulher continuava virgem quando

109
Tiago Moita

o Dario nos contou o que tinha sucedido aqui. Ninguém sabia


que o Grande Zarat andava à procura dela. Juro por tudo o que
é mais sagrado, minha senhora, juro, respondeu, de joelhos e
com as mãos a cobrir o rosto marejado. Nicole baixou a arma
e aproximou-se dela, limpou-lhe as lágrimas com um lenço
que trazia no bolso e perguntou-lhe, delicadamente, quem era
esse Dario a que se referia.
Era o sapateiro pagão da vila. Foi ele, mais cinco ho-
mens, que ajudaram no parto. Cinco homens? Exclamou Ni-
cole. Quem eram eles? Quero os nomes deles todos, ouviu?!
Não sei quem eram, juro! Ninguém daqui da vila os
conhecia nem mesmo o próprio Dario. Eram forasteiros; não
sei donde vieram. Só sei que tudo aconteceu na casa dele,
respondeu pondo as mãos à cabeça. E onde fica casa desse tal
Dario, perguntou Nicole, impaciente. A mulher levantou-se e
levou os dois agentes de Zarat à casa do sapateiro pagão.
Ali chegados, Nicolau arrombou a porta de entrada da
casa, seguido de Nicole. Ambos de armas em punho, focos
e com todos os sentidos em alerta, procurando pistas por to-
dos os cantos. Nada. Separaram-se por instantes para melhor
investigarem a casa. Nicolau começava a ganhar nervoso
miudinho com a escuridão. Nicole tinha chegado à cozinha,
que exalava ainda os cheiros que denunciavam uma ausência
recente. Escutou passos. Alguém se aproximava da entrada
daquele canto da casa. A aproximação de uma sombra fê-la
apontar arma e foco para quem acabara de entrar: era Nicolau.
Que susto! – exclamou ele, de foco e arma apontados
para a inspectora. – Por pouco não lhe acertava. O que des-
cobriu, perguntou, baixando a arma. Nada. Nem sinal do tal
sapateiro, muito menos de quem quer que fosse. Vamos ver o
barracão, pode ser que tenhamos mais sorte, ordenou a agente.
Uma pequena nuvem de poeira soltou-se no ar, mal
Nicolau abriu a porta do barracão onde Dario trabalhava.
Segundo os habitantes da vila, o sapateiro abandonara a po-

110
O Evangelho do Alquimista

voação na companhia de um bando de forasteiros, sem nada


dizer a ninguém – uma situação estranha para quem já tinha
vida e ofício fixos naquela terra. O que o teria feito mudar
de ideias, perguntou-se, enquanto analisava cada objecto e
utensílio daquela oficina. Às tantas lá teria sido informado,
por algum parente seu, afastado, de uma herança que tinha
ganho e, por isso, saiu deste pardieiro sem avisar ninguém.
Tanto mais, que ele era ostracizado pela comunidade por ser
pagão e, disse Nicolau, antes de ser interrompido por Nico-
le. O foco da inspectora acabara de pôr a nu um conjunto
de objectos que lhe chamou a atenção: um porta-chaves em
forma de coração, um colar com treze contas pretas, um an-
zol, um pedaço de tecido, uma pequena estatueta de natureza
pagã, uma caixa para lentes de contacto vazia e uma pulseira
anti-stress.
Nicole e Nicolau podiam não saber do paradeiro do
sapateiro pagão da vila, mas já tinham pistas com que tra-
balhar. Os agentes calçaram as luvas de látex para apanhar
todos aqueles sete objectos suspeitos, de modo a não des-
truírem possíveis impressões digitais, e seguiram para a via-
tura. Nicolau abriu o porta-bagagens e colocou-os em sacos
especiais, dentro de uma mala preta com código de seguran-
ça. Hoje parece que ganhámos o dia, afirmou à inspectora,
à medida que fechava o porta-bagagens da mala do automó-
vel. Uma figura acercou-os de repente.
O homem parecia ter brotado da terra, tal era a quan-
tidade de poeira e raízes que o cobriam dos pés à cabeça.
Tinha umas vestes coçadas que já tinham conhecido melho-
res dias e um hálito semelhante ao bafo da própria morte.
Os olhos esbugalhados revelavam medo; parecia ter visto
um fantasma. Da boca, em catadupa, saíam palavras sem
sentido.
– O clarão… o homem… o encontro… uma língua…
só…

111
VINTE E TRÊS
Tanto a forma redonda da mesa como a disposição dos
lugares não eram fruto do acaso nos conselhos magnos de
Distopia, no Palácio da Montanha Mágica, organizados por
Zarat. O senhor de Distopia conhecia bem as rivalidades e
antagonismos de cada um dos seus súbditos, assim como
as suas ideologias e, segundo algumas línguas mais afiadas,
os seus segredos mais profundos. Bastava uma incorrecta
selecção dos lugares para desencadear uma zaragata sem
precedentes e uma gigantesca dor de cabeça para o mais po-
deroso suserano da cidade.
A ordem de entrada também obedecia a alguns crité-
rios, impostos por Zarat. Os soldados do palácio guardavam
todas as entradas e saídas, incluindo a Sala do Conselho.
Horas antes, todos os serviçais tinham ultimado os prepa-
rativos para o evento: a disposição das cadeiras, a ordem de
entrada e saída de cada membro e a distribuição do vinho
pelas taças dos intervenientes. Nada era deixado ao acaso;
nem a repartição das flores artificiais pelo palácio. Zarat
gostava de flores artificiais; eram mortas mas eternas.
Um mestre de cerimónia, vestido a rigor, anunciava
a entrada de Metheos – Líder dos Methódicos –, o primeiro
membro a entrar na sala. Uma decisão lógica e racional, tal

113
Tiago Moita

como o antidepressivo que tomara, antes de chegar. Simon


Beagle foi o segundo a entrar. Vontade ou mero vício, snifa-
ra um grão de cocaína da sua minúscula caixinha de remé-
dios, como pomposamente a apelidava. Simone Dumonde,
a terceira, não largava o espelho de rosto até se sentar. Era
meticulosa com o seu aspecto e beleza, depois das inúme-
ras lipoaspirações e operações plásticas que efectuara após
a morte do seu companheiro. A idade era um dos seus se-
gredos mais bem guardados. Faustus, o quarto, não se fez
rogado em comparecer no palácio do seu dilecto e amado
mestre. Entrou com um dos seus luxuosos bastões, pinta-
dos e decorados pelos melhores artistas do seu bairro, e o
seu costumeiro piscar do olho esquerdo. Graco, o quinto,
ligou apenas o seu aparelho auditivo. Não por ser surdo, mas
por querer ouvir apenas o que lhe interessava. Otto Gräss,
o sexto, tinha o estranho costume de usar uma espécie de
insecticida num spray, embutido no bolso do casaco. O
cheiro não só acusava a sua presença como irritava alguns
dos presentes, menos Faustus, que costumava alcunhá-lo de
Professor Bufa. Saul Rabel, o sétimo, era, de todos, o mais
tranquilo e confiante; entrava sempre a atirar ao ar uma moe-
da de ouro e a apanhá-la com a mesma subtileza com que a
lançava. Quem costumava ser mais discreto com os gestos
e excentricidades era Zarco, Governador do Banco Central
de Distopia e tesoureiro de Zarat. Remexia sempre no bol-
so do casaco e friccionava um seixo negro, que encontrara
num riacho quando tinha apenas quatro anos. Constava que,
desde então, a sorte nunca o abandonara. Zarco avezava ser
assim: pragmático no trabalho e zeloso nos rituais.
Já chegaram todos, perguntou Zarat a Ptolomeu e Me-
tello. Sim, Mestre. Aguardam apenas a sua presença na Sala
do Conselho, respondeu Ptolomeu. Metello não parava quie-
to, olhando para todos os lados. Olha bem para aquele men-
tecapto: desde que avariou o seu capacete 3D de vigilância

114
O Evangelho do Alquimista

nocturna nunca mais foi o mesmo, desabafou Zarat. É tem-


porário, Mestre. Metello tem, de vez em quando, algumas
crises. Mas vai já passar, respondeu Ptolomeu, embaraçado.
Olha quem fala. E tu? Sempre engolindo em seco, vezes sem
conta e sem razão aparente. Que se passa contigo, perguntou
o senhor de Distopia. Uma pequena disfunção nas glândulas,
nada de especial, Mestre. Não se preocupe. Já estou a ser tra-
tado pelos melhores especialistas na matéria, vamos, sugeriu
Ptolomeu, embaraçado com a descoberta do seu problema;
Metello sorriu de soslaio, continuando o seu inebriado tique.
Zarat assentiu, pegando numa flauta de madeira dourada,
entoando uma melodia hipnótica, qual flautista de Hamelin,
levando consigo os ratos da cidade para o rio Weser.
O burburinho instalara-se na sala logo após a entrada
de Zarco. A estratégica e ordenada disposição dos lugares na
mesa do Conselho Magno de Distopia fazia com que os líde-
res de cada bairro da cidade pudessem discutir sem grandes
divergências. O livre-arbítrio tinha as suas vantagens mas
também podia trazer consequências, no mínimo, desastrosas
para ambas as partes, neste caso, os membros do Conselho.
O som da flauta do senhor de Distopia chegava a todos
os cantos do palácio como uma melodia em jeito de murmú-
rio, sussurrando ao vento, incluindo os ouvidos dos mem-
bros do Conselho que, ordeira e lentamente, se levantaram e
permaneceram imóveis, sem proferirem uma palavra.
Membros do Conselho Magno, o senhor de Distopia
e do nosso planeta, Zarat, anunciou o mestre de cerimó-
nias. Nesse instante, todos forçaram um sorriso e ergueram
as suas taças douradas, incrustadas de esmeraldas e rubis,
transbordando de vinho. Mal tinha entrado o líder dos líde-
res, tocando a sua flauta, com Ptolomeu e Metello, três vezes
o seu nome foi ovacionado, ao mesmo tempo que bebiam as
taças, de uma assentada só, em sua homenagem. Zarat foi
passeando por eles enquanto bebiam, sempre a tocar a mes-

115
Tiago Moita

ma melodia. Chegado ao seu lugar, parou de tocar, pousou o


instrumento na mesa redonda e sentou-se. Todos repetiram
o gesto do mestre, sincronisticamente, como verdadeiros au-
tómatos.
Líderes de todos os bairros e povos de Distopia, meus
amigos. Quem me conhece bem, sabe que não ambiciono
nem honras nem riquezas e que tudo o que tenho feito nes-
te mundo é por amor à grandeza do Homem e ao império
do Super-Humano, que conseguimos conquistar e manter,
durante mais de dois séculos, disse Zarat, benevolente e
sempre a sorrir.
E continuou. Sabem como amo quem não reserva para
si a menor gota do seu espírito; como amo aqueles que não
precisam de procurar para além das estrelas uma razão para
perecerem e se sacrificarem, mas que se imolam pela terra;
como amo aqueles que justificam antecipadamente os vin-
douros e redimem os do passado, porque o seu desejo é pere-
cer pelos de agora; assim como amo aqueles que defendem o
poder mais importante que tem garantido o sucesso, a paz, a
harmonia e o progresso da nossa civilização, que resgatei do
cadáver de Deus para o devolver ao homem: o livre-arbítrio.
Todos bateram palmas em uníssono, hipnotizados e
sorridentes. Um murro de Zarat na mesa interrompeu abrup-
tamente aquela ovação e gelou os nervos de todos os presen-
tes. Até do próprio silêncio.
Contudo, existem homens que procuram um princí-
pio em nome do qual desprezam o Homem. Inventam ou-
tro mundo para poderem caluniar e sujar o seu semelhante;
captam o nada e fazem desse nada um deus, uma verdade,
chamados a julgar e a condenar a sua própria existência. E
por que será que estou a contar-vos tudo isto, perguntais vós.
Porque volvidos vinte e sete anos, depois de o Grande Anel
de Fogo recortar o céu, fontes seguras informaram-me de
que o Alquimista foi encontrado no Grande Deserto e vem

116
O Evangelho do Alquimista

a caminho de Distopia, para cumprir o Oráculo do Destino


que tanto tememos.
Um enorme burburinho ensurdeceu a sala. Nenhum
dos presentes ficou indiferente e todos interrogaram Zarat
sobre a verdade dos factos. Mas isso é uma catástrofe, diziam
uns; o fim do mundo e da civilização, tal como a conhece-
mos, diziam outros. Sim, o fim da civilização, disse Zarat, o
fim da minha civilização. Aquela que eu e gerações de seres
humanos construímos e preservámos. Se as palavras do Al-
quimista contaminarem todos os povos do planeta, triunfará
a irracionalidade sobre a razão; o medo sobre o desejo; a
superstição sobre a arte e a ciência; a alucinação e o pesa-
delo sobre o sonho. Desaparecerá Distopia e, não tenhais
dúvidas, o próprio Homem. Por isso vos convoquei, aqui e
agora, nesta sala. O nosso mundo e a nossa espécie estão em
perigo. Mais do que teorias quero soluções; não podemos
ficar de braços cruzados perante a chegada desta ameaça,
concluiu Zarat, exaltado, seguido de um forte aplauso.
Em menos de cinco minutos, começaram a surgir as
primeiras intervenções por parte dos membros do Conselho.
Metheos propôs um controlo cada vez mais centralizado da
educação, a abolição de métodos pedagógicos holísticos e o
uso de novas tecnologias para substituir os últimos resquí-
cios da Religião e da Moral que existiam no planeta; Simo-
ne Dumonde defendeu um plano de desequilíbrio emocional
perpétuo, através da criação de crises políticas, económicas
e sociais artificiais que sujeitassem as pessoas a dificuldades
contínuas; Saul Rabel alvitrou uma sociedade Crescimento
Zero para destruir quaisquer vestígios de prosperidade, de
modo a permitir a repressão, mantendo no planeta a ilusão
de que todos os cidadãos possuíam os mesmos direitos, li-
berdades e garantias.
E as intervenções e propostas não paravam de surgir.
Graco propôs um estado-providência socialista mais abran-

117
Tiago Moita

gente, em que apenas aqueles que obedecessem à Nova


Ordem de Zarat fossem recompensados e os inconfor-
mistas e seguidores do profeta isolados para extermínio;
Simon Beagle aventou uma política de segregação e se-
lecção nas maternidades e nas escolas: só seriam aceites
na sociedade aqueles que fossem seguidores das corren-
tes filosóficas da cidade e do pensamento de Zarat; Otto
Gräss sugeriu a criação de uma brigada de filósofos que
questionassem e espiassem qualquer habitante que se-
guisse a filosofia do Alquimista, ridicularizando toda a
sua sabedoria. Chegou também a propor a proibição de
qualquer cartaz ou slogan que fosse contra o pensamen-
to contemporâneo, uma posição semelhante à de Faustus
que, além de concordar com as ideias de Gräss, defendia
uma política de controlo mental global e de contra-infor-
mação, de modo a descredibilizar qualquer ideia, verdade
ou filosofia anticontemporânea. Apenas a sua proposta de
encerrar e proibir todos os relógios do planeta quebrou
o gelo, ali instalado, fazendo rir todos os presentes, in-
cluindo Zarat. Uma raridade nos Conselhos Magnos de
Distopia.
Ptolomeu, meu fiel conselheiro. Que tens a alvitrar
para combater esta ameaça que paira sobre nós, pergun-
tou, ainda não refeito do riso. O conselheiro aguardou
pacientemente o fim de todas as intervenções e propôs
a todos os presentes uma estratégia de descredibilização
individual de cada discípulo do Alquimista, feita por cada
líder de cada bairro da cidade, e na infiltração de uma pes-
soa da confiança de Zarat no grupo do sábio, que condu-
zisse o profeta e os seus discípulos para uma armadilha.
Um silêncio branco afogou a sala. Zarat, depois de
ouvir as sugestões de todos os seus fiéis conselheiros, de-
cidiu, com um sorriso de confiança e o pousar suave da
sua mão no ombro do conselheiro, aceitar a proposta de

118
O Evangelho do Alquimista

Ptolomeu e avançar o Projecto VHCruz, terminando com


uma frase que emocionaria todos os conselheiros.
– Companheiros, não vos aconselho o trabalho, mas
a luta. Não vos aconselho a paz, mas a vitória! Que o vosso
trabalho seja uma luta e a vossa paz uma vitória!

119
VINTE E QUATRO
As curvas do corpo, assim como as vestes, denuncia-
vam a condição, mas nunca a sua personalidade e carácter. A
sombra tatuada na calçada do passeio pouco iluminado, não
realçava, de forma alguma, o seu aspecto e sensualidade.
Algumas das suas antigas colegas de profissão, não fosse
essa a mais antiga profissão de que o Homem tem memória,
escolhiam clubes nocturnos restritos, entradas de hotéis de
luxo e casinos, ou então, na pior das hipóteses, pequenos
bosques da periferia do bairro Extasis, como melhores al-
vos para serem contratadas por mendigos de desejo e prazer.
Tudo valia por dinheiro. O deboche ficaria à descrição do
freguês: desde o banco de trás da mais simples viatura até
ao conforto da suite mais dispendiosa e luxuriante de um
dos hotéis mais caros de Distopia. O sexo, enquanto vício,
é um fruto com tanto melhor sabor quanto mais proibido e
misterioso for. Para Magdala, era um jogo entre o prazer e a
sobrevivência.
O intervalo de tempo entre a espera e o serviço eram
motivo para todo o tipo de vícios e distracções: desde o
acender de uma cigarrilha até fumar um cachimbo de droga,
que comprava, ocasionalmente, aos traficantes nas esqui-
nas. Quando se aproximavam automóveis, mascava sempre

121
Tiago Moita

uma chiclete de mentol e retocava o rosto no espelho. Era


preciso manter as aparências e certos vícios podiam não ser
bem aceites por alguns clientes. Não tinha medo nem de ser
assaltada nem violada. Trazia sempre consigo um pequeno
aparelho de choques eléctricos anti-roubo ou uma latinha de
mace para dissuadir algum agressor. Todavia, não eram es-
sas as suas melhores armas de defesa pessoal.
Magdala possuía uma personalidade muito forte, ali-
cerçada com o passar do tempo. Poucos conheciam a sua
estória, tirando Faustus e Justine, uma jovem prostituta de
18 anos, que Magdala ajudara a tirar da miséria. O anel bra-
sonado da mãe, que recebera de herança, um dia depois do
funeral, trazia-lhe recordações da infância, sem nunca des-
cobrir o significado de tal legado. Nunca perdoara a agres-
sividade e molestação do pai – pastor Calverano, (descen-
dentes dos protestantes calvinistas), muito respeitado na
paróquia do seu bairro – nem entendia o medo e a vergonha
dos pais pelos seus poderes extra-sensoriais, que iam desde
a telepatia até à capacidade invulgar de falar com os animais
e as plantas. A mãe fora a sua única amiga e tentou defendê-
-la da repressão e abusos sexuais do pai desde os dez anos
de idade, sem êxito. Era doméstica e não tinha completado
a escolaridade, por pressão dos pais e do marido. Contudo,
isso não era razão para não se impor e tomar providências
contra todo o mal que o marido fazia à filha. Quando a mãe
faleceu, Magdala perdoara-lhe, entre o silêncio e o pranto.
A morte de quem nos criou, faz, muitas vezes, perdoar os
pecados que nos infligiram.
Sempre tinha considerado a fuga da casa dos pais, aos
dezasseis anos, uma das decisões mais lúcidas que tomara
em toda a sua vida. Seis anos de abusos e silêncios injustifi-
cados tinham sido de mais. Abandonada e obrigada a sobre-
viver nas ruas, conviveu com a miséria e a marginalidade,
com um rapaz da sua idade, abandonado à sorte no mundo.

122
O Evangelho do Alquimista

Este, perdera a virgindade com ela numa viela escura e es-


guia do Bairro Extasis – bairro onde conhecera Faustus e
com ele simpatizara.
O líder dos Niilisteus teve, para com Magdala, o cari-
nho e o respeito que teria por uma filha. Nunca tivera filhos,
pelo menos que se soubesse. Por isso, era de esperar uma
relação de afectividade e sintonia por tudo o que ambos ti-
nham sofrido na vida. Graças a ele, Magdala não só saíra da
miséria e do abandono da rua, como também conhecera o
gosto pela arte, pelo teatro e pela literatura, e especialmente
pela poesia. Devorava tudo desde Virgílio a Paul Celan –
poeta, cujos livros costumava ler, antes de adormecer –, ou
mesmo, no intervalo de um serviço com um qualquer clien-
te. Todavia, apesar de ter conseguido encontrar alguém que
cuidasse dela, que a tivesse apresentado à sociedade e ao
mundo da arte e a Zarat, da qual se tornara sua acompanhan-
te de luxo favorita – nunca usou a respeito de si mesma o
termo prostituta, apesar de lhes respeitar a condição.
Continuas à espera de clientes ou entregaste-te no-
vamente às tuas meditações, perguntou uma voz feminina,
vinda do fundo de um beco. Era Justine. Devias ser mais
discreta quando fazes broches aos teus clientes, disse Mag-
dala, limpando-lhe o sémen da boca com um lenço de papel.
Não respondeste à minha pergunta. O que se passa contigo,
perguntou. Magdala desviou o olhar e atirou o lenço para um
caixote do lixo perto de si. Estava a pensar no Alquimista.
Ouvi dizer que ele apareceu no deserto e vem a caminho da
cidade, respondeu.
O Alquimista? Então ele existe? Pensava que era uma
lenda, uma estória como tantas outras. O que é que te deu
para pensares nele, perguntou a jovem meretriz.
Como será ele? Será velho e louco como os eremitas
do Grande Deserto ou novo e lúcido como aqueles jovens
que vemos a caminho das escolas? Será ignorante e precon-

123
Tiago Moita

ceituoso como os sacerdotes deste planeta, ou sábio e tole-


rante como os gurus dos reinos invisíveis, questionou Mag-
dala, encostando-se à parede, suspirando sorridente. Justine
fixou-a, zombeteira, rindo sem parar.
Não me digas que estás apaixonada... pelo Alquimis-
ta, perguntou, soluçando, refeita do riso. Podes chamar-lhe
o que quiseres: paixão, loucura, sei lá. Nunca disse isto a
ninguém mas, desde criança que sinto uma estranha atracção
por esse homem. Sei que ele foi considerado uma lenda du-
rante séculos mas, mesmo assim, ele fascina-me, tanto quan-
to me intriga, respondeu. Será destino, perguntou Justine.
Nesse momento, pararam dois carros faustosos junto
da acompanhante de luxo e da jovem prostituta. O dever fa-
lava mais alto que a curiosidade da amiga.

124
VINTE E CINCO
Nicole não parava de pensar nas frases sem sentido
daquele eremita alucinado. Pareciam Koans, pequenas cha-
radas enigmáticas e paradoxais com vista a dissociar o ra-
ciocínio lógico em busca de uma iluminação intuitiva. A sua
intuição feminina falava mais alto que a razão quando dizia
aquelas frases, assim como as pistas que encontrara no bar-
racão de Dario, na Vila Nog. Podiam não fazer qualquer sen-
tido, naquele instante; mas poderiam ter alguma relevância
no decurso da investigação.
Aquele homem tentou nos dizer qualquer coisa, mas
o quê, perguntou a inspectora. Não me diga que ainda está
a pensar naquele louco que encontrámos na Vila Nog. Não
ligue ao que ele disse: esses homens sofrem, muitas vezes,
de perturbações mentais, derivadas da solidão e do clima
agreste do Grande Deserto. Tenho a certeza que apanhámos
aquele, num dos seus momentos de alucinação, respondeu
Nicolau, enquanto conduzia. Nicole olhou para o seu assis-
tente, desconfiada.
Ele falou num homem e num encontro. E se esse
homem for o sujeito que procuramos, perguntou. Ora, ins-
pectora-chefe... existem centenas de eremitas e vadios, va-
gueando pelo deserto; alguns deles vão pela aventura; ou-

125
Tiago Moita

tros, para estarem sós. É tão comum um homem procurar a


solidão como fugir dela; e, sabe, ele deve ter presenciado um
encontro entre um desses vadios e o condutor de um veículo,
para conseguir uma boleia, respondeu.
E quanto ao clarão? O que é que ele quis dizer com
uma língua? E a última palavra só? Será que ele testemu-
nhou um fenómeno ou foi vítima de uma alucinação, retor-
quiu Nicole, confusa e intrigada. Aposto mais na segunda
hipótese, inspectora-chefe. Há séculos que não chove no
Grande Deserto; o clarão pode ter sido mais uma alucinação
do que uma epifania, tal como o resto das palavras que pro-
feriu, respondeu o agente.
Pare o carro, ordenou Nicole. Nicolau travou a fundo,
sobressaltado com a ordem abrupta da esbelta agente, levan-
tando uma enorme nuvem de poeira no asfalto. O tempo fora
da viatura era tórrido e seco, ao contrário da temperatura
ambiente que se fazia sentir dentro do carro dos dois agentes
da Guarda Zaratista. O olhar frio de Nicole, fixo no horizon-
te, parou o tempo naquele momento e gelou os nervos do
seu assistente.
O que aconteceu, perguntou Nicolau, com a voz em-
bargada. Abra o porta-bagagens e a mala preta. Preciso de
ver de novo as provas que encontrámos no barracão daque-
le sapateiro, já, disse Nicole, enquanto saía do carro lesta-
mente, em direcção ao sítio onde tinham sido guardados os
objectos encontrados na oficina de Dario. Nicolau assentiu,
intrigado, tentando acompanhar a inspectora-chefe e repetiu
a pergunta a Nicole. A frieza do seu olhar fê-lo mudar de
ideias e acatar a ordem.
Nicole começou a examinar os objectos, um por um.
Nicolau permanecia estático e em silêncio, observando-a.
Vítima do calor excessivo ou de uma repentina subi-
da de testosterona, começou a desviar o olhar para a beleza
escultural das pernas e das nádegas da jovem agente. Apesar

126
O Evangelho do Alquimista

de vir de calças, o suor colava-lhe o vestuário ao corpo e


permitia o pobre agente visualizar o volume deslumbrante
das partes do corpo mais cobiçadas pela volúpia de qualquer
homem, como se estivesse a despi-la em câmara lenta. O
desejo começava a dar-lhe volta à cabeça, à medida que se
aproximava dela. Subitamente, recuou por instinto, quando
Nicole se virou para ele com um saco de plástico na mão. O
invólucro continha uma pulseira.
O... o que foi que descobriu, inspectora-chefe, pergun-
tou Nicolau, embaraçado e envergonhado. Esta pulseira anti-
-stress, que encontrámos naquele barracão, tem um símbolo.
Repare bem: representa Esculápio, o deus da Medicina, para
os antigos gregos. E se esta pulseira pertenceu ao médico
que assistiu ao parto da criança que procuramos, perguntou.
Nicolau não tinha palavras para explicar a descoberta.
Minutos depois, fizeram-se à estrada, rumo a Distopia. Era
preciso analisar, com mais detalhe, aquelas provas encontra-
das em Nog.
Meia hora depois, encontraram uma viatura abando-
nada. Nicole fez uma ligação via satélite com o seu portá-
til e soube quem era o dono daquele automóvel, a partir da
matrícula. O nome era ainda uma incógnita para ambos os
agentes: Leandro Stephen.

127
III
OS DESAFIOS DO
DESERTO

“Uma vida sem desafios não vale a pena ser vivida”

Sócrates
VINTE E SEIS
O cansaço e o sono eram visíveis entre os discípulos
do Alquimista. A viagem corria sem problemas e o tempo
parecia ter feito tréguas com o deserto e com o intrépido
caixeiro-viajante, que aceitara embarcar naquela aventura
com o lendário profeta e os seus discípulos. Olhando para
alguns deles, através do espelho retrovisor, relembrava os
momentos em que aquele estranho homem, a quem dera bo-
leia, convertera e convencera todos aqueles desconhecidos a
segui-lo em direcção à cidade que se apoderara do planeta.
Outras vezes, punha-se a pensar na reacção dos habitantes
de Distopia: como iriam comportar-se centenas e centenas
de pessoas com a palavra e o pensamento daquela figura
carismática e galvanizante e, desafio dos desafios, mudar
nas barbas de Zarat a maneira de pensar, de sentir e de vi-
ver de todos aqueles seres humanos? Questões pertinentes
ponderadas em silêncio, enquanto conduzia. Subitamente, o
profeta pousou a mão no seu braço, pedindo-lhe para parar
o veículo, a fim de ele, e os seus discípulos, acamparem e
descansarem. Samuel assentiu e parou o carro.
A noite nos desertos é o contraste com o dia. Não ape-
nas pela ausência de luz natural mas também pela redução
drástica da temperatura. Tanto podia rondar os cinquenta e

131
Tiago Moita

cinco graus de dia como cinco graus negativos à noite. O


termómetro da carrinha de Samuel indicava uma excepção:
doze graus. Independentemente da temperatura, a sorte ba-
fejava os ocupantes da viatura do jovem caixeiro-viajante.
No interior, havia tendas e sacos-cama – sobras de vendas
passadas noutros lugares. Ninguém pensou duas vezes an-
tes de pegar em todo aquele material. Por sorte, também
existiam cobertores e lençóis. Nada faltaria a ninguém na-
quela noite. O Alquimista pedia agora a todos para procu-
rarem o maior número de ramos secos para se fazer uma
fogueira. Não iria ser difícil: a zona onde tinham parado
fazia parte de um pequeno vale semi-árido e havia bas-
tantes ramagens e folhagem seca para fazer aquilo que o
profeta pretendia. Uma raridade naquele espaço esquecido
pelo Homem.
A procura de lenha e a preparação da fogueira por
parte de Samuel não deixaram o Alquimista desatento. Tal
como um falcão no cimo de uma montanha, observava,
com um sorriso que lhe era peculiar, os comportamentos
de cada um dos seus seguidores, olhando para a esquerda
ou para a direita, consoante a conversa lhe chamasse mais
a atenção.
Não era a primeira vez que Leandro olhava para
Dharma de forma estranha, quase doentia. Não era o azul
luzidio dos olhos dela em contacto com o sol ou com a lua
que o fascinavam, nem a beleza singela e natural daque-
la rapariga, feita mulher e mãe contra sua vontade. O que
sentia por aquela jovem sem-abrigo ia para além da sua
própria compreensão. Timidamente, aproximou a mão do
seu ombro. Dharma voltou-se, assustada e assanhada como
uma gata vadia, mal sentiu o frio contacto da sua mão.
Que queres de mim, perguntou de punhos cerrados.
Não queres ajuda com o teu saco-cama, perguntou Lean-
dro, atarantado. Dharma virou-lhe as costas sem pronun-

132
O Evangelho do Alquimista

ciar uma palavra, ignorando-o por completo. Leandro


afastou-se cabisbaixo. Mais ninguém, à excepção do sábio,
prestara atenção àquela cena.
Dario aproximou-se de Otelo, enquanto montava a
tenda de ambos. Algo o intrigava desde que conhecera Sa-
muel mas não conseguia descobrir o quê. Otelo, surpreso,
olhou para o sapateiro: também ele sentira o mesmo em rela-
ção ao caixeiro-viajante, sem chegar a nenhuma conclusão.
Enquanto falavam das suas dúvidas, Adriano discutia com
Gustavo a melhor maneira de montar a tenda dos dois ir-
mãos. Chegaram a acordo em menos de meia hora.
Heitor e Rodrigo montaram também a sua tenda. O
antigo funcionário público Filingus confidenciou ao mé-
dico Seleceu uma estranha sensação de dejà vú quando o
conhecera e entrara no barracão de Dario. Rodrigo olhou
para o companheiro de tenda intrigado. Também você,
perguntou. Heitor não conseguia esconder o espanto. A
sensação tinha sido recíproca, sem motivo aparente.
Jordão permanecia indiferente a todos aqueles com-
portamentos e mistérios. Enquanto apanhava ramos para a
fogueira, cantarolava uma velha canção da sua aldeia. Con-
tagiado pela melodia e pela alegria daquele antigo pescador,
o Alquimista juntou-se a ele e começou a acompanhá-lo na
canção, batendo palmas e dançando à volta da fogueira. Hip-
notizados por aquele pequeno momento de folia, Samuel e os
restantes discípulos foram-se, lentamente, juntando ao pro-
feta e a Jordão, imitando-os como índios da pradaria. Nem
Dharma ficou indiferente a toda aquela animação. Alguns
pumas e coiotes aproximaram-se dessa pequena concentra-
ção humana, sem interferirem nesse ritual dionisíaco, como
se a natureza ou outra qualquer força superior anestesiasse
os instintos daqueles animais. Subitamente, o profeta bateu
duas vezes as palmas. Todos os discípulos se estatelaram no
chão, chorando e rindo como crianças. O alvoroço que ali se

133
Tiago Moita

tinha instalado foi diminuindo à medida que os discípulos


contemplavam o sábio, sentado, em pose de Buda, de olhos
fechados, meditando e murmurando parávoras numa língua
desconhecida. Lentamente iam se recompondo e sentando à
volta da fogueira, sem abrirem a boca. Serenamente, abriu
os olhos sorrindo, como uma rosa, desabrochando ansiosa
por beijar o céu, deixando o Universo expectante por uma
palavra sua.
Agora mesmo desafiámos o Tempo e a Gravidade
numa dança. O que visualizaram e sentiram, perguntou tran-
quilamente, como uma folha navegando num riacho.
A resposta não se fez esperar e teve nove argumentos
diferentes: discípulos, como Leandro, falavam de encontros
com pessoas, correspondentes com sincronismos estranhos
de números acerca de datas, nomes e objectos; exemplos bi-
zarros relacionados com os conceitos de Sincronicidade e
de Tempo que o Alquimista lhe tinha revelado e que come-
çavam a partilhar entre si. Sem se aperceberem, sentiam-se
como que ligados por uma corrente invisível de pensamen-
tos, comungados por telepatia. Heitor e Rodrigo começavam
a ligar todos esses temas com a evolução da Humanidade a
partir da consciência colectiva. Radiante com toda aquela
clarividência, o profeta tocou três suaves pancadas no in-
terior de uma pequena taça tibetana e de um exíguo gongo,
emitindo um som harmónico. Silêncio.
Vejo que compreenderam o sentido e a importância
das palavras associadas aos pensamentos que partilhei con-
vosco. Os vossos testemunhos revelam que estão cada vez
mais conscientes deste novo despertar espiritual, provocado
pela importância da Sincronicidade na vida humana. Tam-
bém percebi que já entenderam que, este novo despertar para
as sincronicidades da vida, está a tornar-vos cada vez mais
receptivos ao objectivo da existência humana neste planeta
e à verdadeira natureza do nosso Universo, declarou com

134
O Evangelho do Alquimista

uma complacência e uma paciência angelicais, próprias de


um verdadeiro sábio.
E prosseguiu. Tendo consciência de tudo isto, perce-
bem que são seres divinos por derivarem da mesma centelha
divina, a mesma partícula do Nada que suporta o Tudo O
Que É, e a que chamo Deus; são livres de escolher o vos-
so próprio destino, enquanto almas, para que, tanto vocês
como Deus, possam experienciar-se e conhecer o Amor puro
e incondicional, que é a força mais poderosa que existe no
Universo e a consciência suprema da vossa verdadeira iden-
tidade e existência. Perceberam agora como Deus comuni-
ca com os seres humanos não só por sinais, tais como os
sincronismos, mas também através dos vossos sentimentos?
Sentiram as horas a passar por vocês durante a dança? Claro
que não! O Tempo não existe, não passa de uma convenção
fabricada pela mente; só o Aqui e Agora tornam o presente
mais longo. Vocês não são o que foram; são o que querem
ser no Aqui e Agora. Nada mais.
– É por isso que o maior propósito do Homem é re-
membrar, ou seja, regressar a Deus enquanto um todo uni-
versal, do qual somos imagem e semelhança. – esclareceu
Leandro.
– Exacto, Leandro. – exclamou o profeta. – Remem-
brar é exactamente isso: saber quem tu és e quem os seres
humanos são. Por isso é que eu vos disse que o grande pro-
pósito da alma é o mais sublime sentimento de Amor que se-
jam capazes de imaginar. Por isso é que o Amor é a solução
para todos os vossos problemas porque ele é tudo o que exis-
te, existiu e sempre existirá. Mas Deus não poderá satisfazer
o Seu maior desejo de conhecer-se e experienciar-se em toda
a sua plenitude, de alegria constante, de criação contínua, de
interminável expansão e total realização em cada momento
do Presente, enquanto os seres humanos não entrarem no
domínio do Absoluto. Só há uma maneira de entrar nesse

135
Tiago Moita

domínio: penetrando no campo do Amor puro e incondicio-


nal de que vos falei.
Uma onda de cansaço extremo e sonolência se abateu
nos corpos e mentes dos discípulos do profeta, mal o sábio
acabara de proferir as últimas palavras do seu sermão. Este
meditou mais uma vez, bebeu um pouco de água do cantil e
partiu para o coração do Grande Deserto; da mesma forma
como tinha entrado na vida de todas aquelas almas que o
acompanhavam: sereno e radiante como uma estrela, planta-
da no jardim da noite.

136
VINTE E SETE
Nem sempre uma imagem é a visão mais perfeita da
realidade. Quem conhecia Faustus de vista ou dos baca-
nais e festas luxuriantes em casinos, discotecas, bares, ou
mesmo na sua própria casa, estaria longe de imaginar que,
por detrás de toda aquela personalidade bizarra e inigua-
lável de melómano, artista e boémio, se escondia um ser
em sofrimento agonizante, com uma maldição patológica
tão forte, quanto a fobia que na sua infância ganhara aos
relógios.
Ninguém ficava indiferente à sua passagem. Quem
se cruzasse com ele, apanhava-o a representar as centenas
de personagens que tinha encarnado em todas as peças de
teatro que encenara e de que tinha feito parte – sempre
como actor principal. No final, presenteava os transeuntes
com uma piada non-sense ou com uma citação de Nietzs-
che, Antonin Artaud, Celan, Beckett, Brecht ou Sartre. A
recompensa variava entre um beijo na boca ou um abraço,
independentemente do sexo ou da condição social de quem
entendesse a frase. Faustus não olhava a diferenças ou pre-
conceitos, apenas a expressões. A expressão mais envergo-
nhada para o seu ego era um prémio, que recebia com um
singelo coçar do umbigo.

137
Tiago Moita

Antes de chegar a casa, fazia partidas em todas as


ruas e prédios do bairro Extasis. Por diversas vezes, toca-
va aleatoriamente nas campainhas dos apartamentos e ca-
sas particulares. Quem atendesse, era sempre vítima de uma
qualquer obscenidade, vinda da mente doentia e deturpada
do chefe dos Niilisteus. E não parava por aí. Movido pelo
álcool e por uma libido descontrolada, assediava qualquer
mulher que se atravessasse no seu caminho. Se viesse acom-
panhada por um namorado, tanto pior: arranjava um bom
pretexto para uma briga e um par de olhos negros como re-
cordação da sua loucura. Das poucas vezes que caía no chão,
vencido pelo adversário, levantava-se, passados alguns mi-
nutos, com um sorriso nos lábios – e com a boca mais des-
dentada –, imaginando-se o vencedor de uma luta que ele
próprio provocara, sem razão aparente.
O contraste com toda aquela euforia e loucura desen-
freada surgia quando entrava, com algum esforço, em casa.
Mais do que o tecto onde vivia, gozava a vida e criava, a
casa de Faustus era assombrada pelos objectos que a com-
punham. Nenhum dos relógios que lhe tinham sido ofere-
cidos, por gozo ou simples provocação, tinham ponteiros
e nem funcionavam. A simples memória da sua existência
fazia com que escutasse, na sua cabeça, o dilacerante tique-
taque desses medidores mecânicos do tempo. Parem com
isso, gritava como um louco, de olhos fechados e marejados
e mãos nos ouvidos. A simples lembrança do som trazia-lhe
à memória a visão do pai, a caminho do hospício, de cami-
sa-de-forças, onde viria a morrer louco, e da mãe, afoga-
da na banheira da sua casa. Todas aquelas tragédias tinham
acontecido, em dias diferentes, às onze da manhã. Tinha, na
altura, apenas nove anos mas recordava-se de tudo, como se
o presente fosse uma constante repetição do passado.
Magdala entrou na casa de Faustus para o socorrer,
mal ouvira os gritos do chefe dos Niilisteus na rua onde

138
O Evangelho do Alquimista

morava. A loucura e a raiva dançavam juntas com aquele


homem, entregue ao seu sofrimento bipolar. Magdala não
perdeu tempo; abraçou-o, ao mesmo tempo que sussurrava
uma pequena canção de embalar ao seu ouvido. A melodia
acalmou-o, fazendo com que a prostituta pudesse deitá-lo,
sem problemas, na cama e o fizesse tomar os estabilizantes
de humor, antes de dormir.
Uma hora depois, Magdala saía de casa de Faustus e
desaparecia na sombra de uma rua esquecida. Pela primeira
vez, deixava a cidade que a tinha visto nascer.

139
VINTE E OITO
A nuvem de pó, provocada pela travagem abrupta do
carro de Nicolau e Nicole, dissipara-se no ar como um so-
nho. A visão translúcida de mais uma viatura abandonada
na estrada, durante a investigação da jovem inspectora, era
mais do que uma coincidência: era o segundo veículo aban-
donado desde que tinham saído de Distopia para procurar
pistas sobre o caso da misteriosa mãe virgem. Nicole foi a
primeira a sair do carro e a dirigir-se, de arma em riste, para
o automóvel abandonado. Nicolau engolira em seco e ficara
imobilizado frente ao volante, antes de decidir acompanhar
quem estava acima da sua patente. O medo é muito eficaz
em bloquear pensamentos e manipular comportamentos, as-
sim como a fazer o contrário, tal como lhe acontecera, mal
Nicole tinha olhado para ele e lhe fizera sinal para a acom-
panhar, com a mesma expressão sisuda que sempre a carac-
terizava. Atrapalhado, o agente, saiu do carro, de arma em
punho e com o mesmo medo que tivera, quando encontrara o
primeiro veículo abandonado numa das estradas mais inós-
pitas e solitárias do Grande Deserto.
Somente o vento árido abafava o som dos passos dos
dois agentes. Nicole e Nicolau dirigiram-se para a viatura
cautelosamente. Poderia ser uma emboscada de salteadores

141
Tiago Moita

do deserto, o que restava de um saque ou mesmo uma pista


para mais algum caso. Fosse o que fosse, era preciso averi-
guar. Não havia tempo a perder; todos os sentidos estavam
apurados até ao limite. Não se ouvia mais nada que não fos-
se o zumbido do vento; nada. Nicole aproximou cautelosa-
mente a mão do puxador do carro e recuou dois passos, de
arma apontada para o interior do veículo. Ninguém.
Nicolau abriu a porta do lugar do morto. A inspectora-
-chefe fez-lhe um sinal com a cabeça para abrir o porta-lu-
vas. O agente assentiu com sangue frio. No interior, estava
apenas um trapo que já conhecera melhores dias; um estojo
para um leitor de CD’s e os documentos da viatura. Nicole
observou os documentos. Falavam de tudo sobre as carac-
terísticas do carro, menos do mais importante: o nome do
proprietário. Inconformada, saiu do carro, dirigindo-se ao
porta-bagagens, em busca da matrícula. Tivera sorte: a ma-
trícula estava intacta. Sem perder tempo, apressou-se a pas-
sá-la para um pequeno touchpad que trazia consigo. Nicolau
saíra do automóvel logo a seguir a Nicole e parou no meio
da estrada: algo lhe chamara a atenção e fê-lo colocar-se de
cócoras para observar melhor o que tinha encontrado no as-
falto. Nicole correu para junto do seu colega.
Chama-se Rodrigo Strobber, é médico, divorciado,
nunca teve filhos e vive no Bairro Selectus e... o que se pas-
sa, perguntou. Veja isto, inspectora-chefe, disse Nicolau,
apontando para marcas de pneus. Estão meio apagadas mas
dá-me a sensação que parou há pouco tempo uma viatura... e
pelo aspecto... parece tratar-se de um veículo de transporte.
Um veículo de transporte? Que espécie de veículo de trans-
porte, perguntou Nicole. Uma furgoneta ou talvez uma car-
rinha. Se esse médico Seleceu não estiver morto, das duas
uma: ou foi sequestrado ou foi socorrido por alguém.
Nicole não se mostrou muito convencida com a ex-
plicação do seu assistente. As marcas no asfalto eram pouco

142
O Evangelho do Alquimista

nítidas, incapazes de estabelecer qualquer comparação


com qualquer espécie de veículo. Uma coisa era certa:
alguma coisa tinha acontecido no deserto e o registo de
mais de uma viatura abandonada, sem motivo aparente,
não era uma coincidência. Nesse instante, voltou-se para
Nicolau.
Precisamos de voltar à Central e investigar o que
encontrámos em Nog e nestas duas viaturas. Estamos a
perder tempo aqui. Vamos, ordenou.
Nicole e Nicolau fizeram-se à estrada. Uma hora
depois de terem encontrado o carro de Rodrigo, foram
surpreendidos por uma forte tempestade de areia. Os ins-
trumentos de navegação do automóvel pareciam exalar os
últimos minutos de vida. Precisavam urgentemente de en-
contrar um abrigo onde pernoitar e restabelecer as forças,
antes de retomarem viagem. Subitamente, cruzaram-se
com uma carrinha em sentido contrário. Instintivamente,
Nicole ordenou ao seu assistente para fazer inversão de
marcha e parar aquela viatura. A sua presença poderia ser
uma bênção dos Céus ou um convite para a morte ou para
lado nenhum.
Nicolau fez o que a chefe lhe ordenara. Colocou a
luz intermitente no tejadilho, seguida do típico sinal so-
noro – característico de todos os carros pertencentes a
forças de segurança pública. Fez uma inversão de marcha
tão brusca que quase desequilibrava o automóvel. Acele-
rou o mais que o seu veículo podia, em direcção à viatura
que se cruzara com eles na estrada. Impressionado e in-
trigado, o condutor da carrinha parou a viatura. Nicole
desceu o vidro eléctrico do seu lugar para falar com o
homem.
– Guarda Zaratista. Existe por estas bandas algum
lugar ou povoação onde eu e o meu colega possamos per-
noitar, até passar a tempestade. – perguntou gritando, de

143
Tiago Moita

modo a que o vento não engolisse as suas palavras. O ho-


mem não conseguira escutar uma sequer. Nicole saiu do
carro e dirigiu-se para junto dele, repetindo a pergunta,
quase afónica. À segunda tentativa, o homem compreen-
deu.
– A única hipótese é vocês acompanharem-me até à
vila, onde vou passar a noite. – respondeu. O cacarejar e o
cheiro intenso das galinhas que guardava, despertou a curio-
sidade da inspectora-chefe. Deduziu que o homem em ques-
tão poderia ser um agricultor a caminho de uma feira ou um
caixeiro-viajante.
– Como se chama essa povoação?
– Zarabandar.

144
VINTE E NOVE
Ninguém sorria com mais orgulho e satisfação do que
Ptolomeu, naquele corredor do Palácio da Montanha Mági-
ca. Zarat sempre acatara os seus conselhos mas nunca ne-
nhum deles tinha sido aprovado como solução num Conse-
lho Magno de Distopia, como acontecera na noite anterior.
Pela primeira vez, em público, o mestre curvara-se perante
o aluno, neste caso, o conselheiro, sem que algum membro
do Conselho pronunciasse uma só palavra em desabono. Em
certos casos, silêncio era sinónimo de vergonha ou impotên-
cia. Naquele, era de poder e respeito – tal como faziam os
guardas da residência oficial do homem mais poderoso do
planeta à sua passagem –, como se estivessem a responder a
um oficial, de patente superior às suas.
No gabinete, sentado na secretária e observando a
porta, relembrava os pormenores mais sórdidos e hilariantes
daquela histórica reunião. A reflexão sobre essa noite ter-
minara com uma gargalhada, quando Ptolomeu recordava
da proposta ensandecida de Faustus em querer acabar com
todos os relógios da planeta. Refeito do riso, pediu à sua
secretária a presença de Metello no seu escritório.
Os gritos de medo e dor dos oficiais, misturados com
os gestos de artes marciais e ataques corpo-a-corpo com

145
Tiago Moita

Metello, abafavam os suspiros e alarido das concubinas e


prostitutas de Zarat, enquanto assistiam à performance da-
quele homem bravo e musculado a treinar com os melhores
oficiais da Guarda Zaratista.
O que Zarat e Ptolomeu tinham de cultura e inteli-
gência, Metello tinha de força. Já na sua juventude – onde
se metia em confusões com miúdos e gangs dos bairros de
Distopia –, chegara a enfrentar cinco, antes de se tornar che-
fe da guarda pessoal do homem mais poderoso do planeta.
Quem o conhecia bem, sabia que medo era o seu segundo
nome, seguido de respeito, entre os seus soldados e supe-
riores. Tinha sido o filho dileto dos pais, especialmente da
mãe, e um aluno exemplar aos olhos dos professores das es-
colas que frequentara, principalmente na Academia Militar
da Guarda Zaratista, onde se tinha formado e acabado como
comandante.
Então, quem é o próximo a desafiar-me, perguntou,
sádico e ansioso. Os oficiais que o rodeavam mostravam-se
receosos e cabisbaixos perante a força do seu comandante e
os gritos de dor dos oficiais vencidos. Cobardes, vociferou.
Pensam que é com esse comportamento que vão defender
Zarat e Distopia dos nossos inimigos? Fiquem sabendo que,
quando tinha a vossa idade, já enfrentava sozinho malfeito-
res mais bravos e corajosos do que vocês. Por isso, volto a
repetir e não aceito recusas: quem é o próximo, interpelou. A
chegada da secretária de Ptolomeu com uma mensagem do
Conselheiro de Zarat frustrou os planos do comandante. Os
oficiais e soldados tentavam esconder, o melhor que podiam,
a satisfação e o alívio com a mensagem e a presença daquela
bela funcionária no pátio. Metello rasgou um sorriso amare-
lo, beijando-a lascivamente na boca e deixando-a petrificada
por breves segundos. As concubinas e as prostitutas ovacio-
naram Metello, histéricas com aquele gesto. O silêncio con-
tinuava a ser a linguagem dos militares naquele espaço.

146
O Evangelho do Alquimista

Podes dizer a Ptolomeu que vou ter com ele o mais


rapidamente possível, respondeu, largando a secretária do
Conselheiro de Zarat no chão, refeita do beijo. A mulher saiu
do pátio sem proferir uma palavra; nem as gargalhadas das
concubinas e das prostitutas a demoviam do seu trajecto e
silêncio depois daquele episódio. De repente, o comandante
da academia fitou os soldados como uma serpente com olhos
de águia, enregelando-os de medo, seguido de um sarcasmo.
Não pensem que, só porque me vou encontrar com um
dos homens mais importantes do palácio, que dou por termi-
nado o treino. Se algum de vós pensou, ou ainda pensa, que
chegou a hora de voltar para a caserna, está muito enganado.
Quero treinos contínuos em grupos de dois até eu voltar,
imediatamente, ordenou, virando-lhes as costas, enquanto
um jovem pupilo lhe enfiava uma longa capa escarlate com
as insígnias da academia, bordadas a ouro. O som dos seus
passos, pelos corredores do palácio, punha mais em sentido
os soldados com quem se cruzava. Toda a guarda o temia e
respeitava e Metello sabia disso.
Bom dia, Metello. Como está o teu pescoço, pergun-
tou o Conselheiro supremo de Zarat, observando o coman-
dante que entrara no seu gabinete como um trovão a rasgar
o silêncio da noite. Parabéns, meu caro. Gostei de ver a cara
daqueles manda-chuvas quando Zarat aceitou a tua propos-
ta: foi uma grande lição para eles e um grande dia para ti,
meu amigo, respondeu Metello, sentando-se numa cadeira,
frente-a-frente com Ptolomeu.
Palavra? Mesmo a de Simone, perguntou com a ironia
estampada no rosto. Metello emudeceu e virou-lhe a cara.
Ptolomeu conhecia bem o sentimento que o comandante da
Guarda Zaratista nutria pela líder dos Dúbios, mesmo sem
este lhe ter confidenciado nada sobre o que verdadeiramente
sentia por ela, naquela noite. Os olhos revelam mais segre-
dos que as próprias palavras.

147
Tiago Moita

Todavia, Ptolomeu tinha outros planos para o seu


truculento e apaixonado amigo. Mudando de assunto: Za-
rat incumbiu-me de pensar numa estratégia para validar a
minha proposta. É preciso isolar e, acima de tudo, descre-
dibilizar o Alquimista antes que chegue a Distopia. Tu bem
sabes o que aconteceria se ele chegasse à nossa cidade com
os seus discípulos, disse Ptolomeu, levantando-se e come-
çando a andar de um lado para o outro.
– Não entendo a tua preocupação. Se ele chegar às
portas da cidade será facilmente detido pelos meus guardas
e levado à presença de Zarat. Segundo sei, o nosso Grande
Líder quer o Alquimista capturado vivo e os seus discípu-
los podem ser presos ou mortos, caso ofereçam resistên-
cia. – respondeu, acendendo um charuto. Ptolomeu deu um
murro na mesa.
– Isso não pode acontecer, Metello. Não entendes?
Se não o descredibilizarmos e isolarmos, teremos todos os
habitantes de Distopia e do planeta do lado dele! Se ele
cumprir a profecia do Oráculo do Destino será o fim do
nosso líder e da civilização, tal como a conhecemos. Zarat
uma vez confidenciou-me: no novo mundo que o Alqui-
mista pretende fundar no nosso planeta não há lugar para
pessoas como nós. Percebes agora a gravidade da situação?
– perguntou, enraivecido. Metello olhou para ele, siderado
e de charuto na boca. O comandante pousou as mãos nos
ombros do Conselheiro e ofereceu-lhe um dos seus charu-
tos. Ptolomeu fumou-o, acalmando-se logo de seguida.
– O que pretendes fazer? – perguntou Metello. Ptolo-
meu, mais calmo, respondeu-lhe.
– Tens carta branca para colocar a Guarda Zaratista
em estado de alerta e infiltrar espiões e informadores em
toda a cidade e povoações do Planeta. Caso o meu pla-
no falhe, terás de convencer os membros do Conselho a
persuadirem cada discípulo do Alquimista a estar do nosso

148
O Evangelho do Alquimista

lado. Eu vou ver como está a correr a construção da VH-


Cruz.
– Considera as tuas ordens cumpridas. Só mais uma
coisa: quem é que vai conduzir o Alquimista e os seus dis-
cípulos para uma armadilha, caso os membros do Conselho
falhem a sua missão? – questionou antes de sair. Ptolomeu
sorriu, enquanto abria uma garrafa de vinho, despejando o
precioso néctar de Baco em dois copos de cristal.
– Ora, Metello... até parece que não conheces o nosso
líder. Quem é que achas que Zarat escolheu para esta mis-
são?
– Não estás a falar... dele? – exclamou, abismado. Pto-
lomeu assentiu, sorrindo,
Um brinde, seguido de algumas gargalhadas sinistras,
deu por encerrado aquele encontro. Nem as quatro paredes
daquele gabinete conheciam a identidade do misterioso in-
divíduo. Apenas o silêncio.

149
TRINTA
O tempo nem sempre está a favor de quem atravessa in-
fernos, sejam eles terrenos ou de outra dimensão. Haviam pas-
sado três dias e três noites desde que o Alquimista partira do
acampamento, sem se despedir dos seus discípulos. O profeta
parecia um minúsculo ponto negro ambulante, no meio daque-
la violenta tempestade de areia no Grande Deserto. Apesar de
estar de rosto tapado e coberto por um enorme manto branco,
o profeta apresentava alguns sinais de fraqueza, devido à ira
do vento, misturado com a areia e o pó. Perdera a contagem
do número de vezes que claudicara, devido à sede e à fome. A
água do cantil era já uma miragem, como o horizonte, no meio
daquela tormenta. A língua e a boca daquele homem estavam
agora tão secas como o resto do corpo. Caiu.
Minutos depois da queda, a tempestade dissipou-se
como por magia, e o dia deu lugar à noite. Atordoado e bastante
enfraquecido, o Alquimista – de rosto e mãos besuntados de
areia e pó – soergueu-se sem perder a lucidez. O fim repentino
daquela tempestade não fora obra da natureza, nem do univer-
so, e muito menos do acaso – algo em que nunca acreditava.
O seu sexto sentido não o enganava. Aproximava-se
uma entidade maligna. Sentia-a, como os cães pressentem a
presença de alguém no seu território, através das vibrações

151
Tiago Moita

telúricas e da aura dos seres vivos. Atempadamente, prepa-


rou uma fogueira com tudo o que conseguira apanhar nas re-
dondezas; desenhou com uma vara, que tinha encontrado no
acampamento, um círculo à volta da fogueira. Dentro dele,
desenhou à sua volta cinco símbolos, representando cada
um deles os cinco elementos da natureza: fogo, terra, metal,
água e madeira, pousando a vara num canto. Sentou-se jun-
to à fogueira, concentrou-se nas labaredas flamejantes, que
se agitavam numa dança exótica como odaliscas, entrando
num estado de meditação profunda que afogou todos os
ruídos daquele vazio de areia e pó. Silêncio. Apenas com o
pensamento, soltou um cordão dourado do seu chakra-raiz,
perfurando a terra em direcção ao seu núcleo; iluminou os
seus sete chakras com um sol em cada um deles; fez brotar
cinco rosas brancas gigantes da terra e atiçou uma cortina de
fogo à volta do círculo que desenhara no solo.
As estrelas e a lua que iluminavam a noite apagaram-
-se com os seus passos. Saído do nada, um homem de manto
e capuz negro chegou junto do círculo de fogo. A pele more-
na do pescoço e metade do rosto poderiam denunciar-lhe a
raça; nunca as intenções.
Quem és tu, e ao que vens, perguntou o Alquimista.
As tuas sombras, respondeu a voz cavernosa, desdobrando-
-se em sete figuras, feitas à sua imagem e semelhança. Cada
uma delas envergava máscaras de diferentes feitios e trazia
algo nas mãos, encoberto por mantos, tingidos com a cor da
noite.
O primeiro dos sete aproximou-se do círculo de fogo.
Envergava uma máscara castanha de um rosto humano, si-
sudo e taciturno, de forma geométrica. O profeta perguntou-
-lhe o nome. Disse-lhe que se chamava Método e atirou um
relógio de bolso, dourado, para junto do sábio, dizendo: Se
és o Alquimista, iluminado pela Ciência e pela Razão, acei-
ta o Tempo como teu amo e a Matéria como tua escrava.

152
O Evangelho do Alquimista

Sem mexer um músculo, o Alquimista respondeu: O


meu Tempo não tem ponteiros nem convenções. O Ontem
não é senão a memória do Hoje, do Amanhã e do sonho do
Aqui e Agora, que canta e contempla dentro de vós. Deixai
que o Hoje abrace o passado com saudade e o futuro com
impaciência.
Proferidas aquelas palavras, Método transformou-se
numa estátua de pedra e desmoronou-se sozinho. O relógio
transformou-se numa pequena nesga de névoa que se diluiu
no espaço.
O segundo dos sete tomou o lugar do seu irmão e apro-
ximou-se. Envergava uma máscara vermelha com cara de
urso enraivecido e apresentou-se ao profeta como Revolu-
ção, atirando uma granada para junto do Alquimista, dizen-
do: Se és o Alquimista, protector dos fracos e dos oprimidos,
aceita a violência e a dor como tuas armas e o Socialismo
como tua bandeira.
Sem mexer um dedo, o Alquimista respondeu: A mi-
nha dor é mais intensa que a minha capacidade de perdoar,
enquanto a minha violência se projecta contra o medo que o
homem continua a semear pelo mundo. Sossegai o coração e
escutai a vossa alma. Se o fizerdes, encontrareis um sentido
e uma causa mais nobres e poderosos que o Socialismo, que
quereis implantar com o sangue dos inocentes e o silêncio
dos que vivem à custa dos povos, que o vosso ideal escravi-
zou. Sede como um sopro na cabeça de Deus e uma folha na
árvore de Deus. Repousai na Razão e movei-vos na Paixão.
Proferidas aquelas palavras, Revolução transformou-
-se numa estátua de aço e derreteu-se sozinho. A granada
transformou-se num monte de cinza, varrido pelo vento.
O terceiro dos sete tomou o lugar do seu irmão e apro-
ximou-se. Envergava uma máscara em forma de serpente,
pintalgada com todas as cores do arco-íris. Apresentou-se ao
profeta como Êxtase, atirando uma garrafa de absinto para

153
Tiago Moita

junto do sábio, dizendo: Se és o Alquimista e acreditas na


Liberdade e no Desejo, entrega-te ao prazer e à loucura e
faz do vício a tua marca para as gerações presentes.
Sem mexer um cabelo, o Alquimista respondeu: O
prazer é o cântico da Liberdade mas não é a Liberdade. É o
despertar dos vossos sentidos mas não das vossas auroras; é
um prisioneiro que ganhou asas mas não é o espaço que o
circunda, assim como o desejo é o primeiro pensamento do
Homem e não o último. Só aquele que der mais e melhor
de si no momento mais sublime da sua vida, encontrará no
prazer uma necessidade e no desejo, um êxtase.
Proferidas aquelas palavras, Êxtase transformou-se
numa estátua de plástico e dissolveu-se sozinho. A garrafa
de absinto transformou-se num pequeno monte de areia, le-
vado pelo vento.
O quarto dos sete tomou o lugar do seu irmão e apro-
ximou-se do círculo de fogo. Envergava uma máscara de
papel, em forma de papagaio, cheia de caracteres e símbolos
gráficos. Apresentou-se diante do profeta como Sofisma e
atirou-lhe um dicionário, dizendo: Se és o Alquimista, mes-
tre do pensamento e da palavra, faz deste dicionário a tua
bíblia e da palavra, a tua casa.
Sem mexer o corpo, o Alquimista respondeu: Pala-
vras são meras elocuções; ruídos que exprimem sentimen-
tos, pensamentos e experiências. Ajudam-vos a entender e
a compreender certas coisas e fenómenos da natureza e do
universo, mas não são as únicas ferramentas que Deus vos
deu para o vosso conhecimento. Se não aliarem o que es-
crevem com aquilo que pensam, sentem e acreditam, que
adiantam as palavras e os dicionários? Deixai que os vossos
espíritos guiem os vossos lábios e conduzam as vossas lín-
guas; deixai que a voz do vosso coração fale ao ouvido do
vosso semelhante e encontrareis uma verdade dentro de vós,
que vai muito para além das palavras.

154
O Evangelho do Alquimista

Proferidas aquelas palavras, Sofisma transformou-


-se numa árvore de papel que ardeu sozinha. O Dicionário
transformou-se numa massa pastosa e acabou por ser engo-
lido pela Terra.
O quinto dos sete tomou o lugar do irmão e aproxi-
mou-se. Envergava uma máscara de porcelana com cara de
gato. Apresentou-se perante o profeta como Elite e atirou-
-lhe uma vassoura, dizendo: Se és o Alquimista, protector
da Raça Eleita, faz desta vassoura o símbolo da selecção
de todas as espécies e limpa o mundo de toda a doença e
miséria, resultante da mistura de raças humanas.
Sem mexer um membro, o Alquimista respondeu:
Todas as raças e todos os seres vivos são mais sãos que o
veneno que expeles do teu coração e mais puros que as tuas
palavras. Pegai na vossa vassoura e limpai o medo que ha-
bita nos vossos corações e enche de estrume a vossa mente.
Quando fizerdes isso, constatareis que não existem quais-
quer diferenças entre os seres humanos e saberás, que todos
brotamos da mesma centelha divina que faz mover a nossa
vida, a natureza e o universo.
Proferidas aquelas palavras, Elite transformou-se
numa estátua de gesso que se desfez em bocados, sozinha.
A vassoura foi tragada por uma língua de fogo da fogueira
do Alquimista.
O sexto dos sete tomou o lugar do seu irmão e apro-
ximou-se. Envergava uma máscara de vidro negro com cara
de escorpião. Apresentou-se ao profeta como Morbius e ati-
rou-lhe um punhal, dizendo: Se és o Alquimista, senhor da
vida e da morte, acaba com o sofrimento por que todas as
almas humanas estão a passar e dá cabo dos corpos que as
aprisionam.
Sem mexer nenhum músculo, o Alquimista respon-
deu: Nenhuma alma é refém do seu corpo e mente, assim
como nenhum corpo e mente são reféns de nenhuma alma.

155
Tiago Moita

Vida e morte são uma só, tal como são o rio e o mar. Bebei
primeiro do rio do silêncio e deixai a vossa alma chegar
ao cimo da montanha. Aí, quando a terra reclamar o vosso
corpo, e não vós, sereis capazes, verdadeiramente, de dan-
çar com as estrelas.
Proferidas aquelas palavras, Morbius transformou-se
numa estátua de vidro, estilhaçando-se em mil bocados,
sozinho. O punhal derreteu e foi engolido pela terra que
ele ferira.
O sétimo e último homem tomou o lugar do irmão
e aproximou-se. Envergava uma máscara de ouro maciço
com focinho de porco. Apresentou-se diante do profeta
como Capital e atirou-lhe uma bolsa, cheia de moedas de
ouro, dizendo: Se és o Alquimista, soberano dos sobera-
nos, faz do dinheiro o teu deus; nunca negues o seu desejo
e poder e controla todos os recursos do universo em seu
nome.
Sem mexer um membro, o Alquimista respondeu:
O dinheiro é uma energia que corre nas vossas vidas, tal
como o sangue corre nas vossas veias, mas não é a única
energia que circula no universo. Não é o homem que deve
submeter-se ao dinheiro nem o dinheiro deve submeter-se
ao homem. Peçam-no e aceitem-no; dêem e receberão e
não encontrareis mais exploração e sofrimento entre vós;
apenas prosperidade e abundância nas vossas vidas e co-
rações.
Capital transformou-se numa estátua de ouro maciço
e derreteu-se sozinho. A bolsa de moedas de ouro conver-
teu-se em água e encheu o cantil do profeta.
Por fim, o homem do manto e capuz negro aproxi-
mou-se do profeta e disse: Podes vender ilusões com as
tuas palavras mas não convencer as pessoas deste mundo.
Todo o universo pode ser teu, se comeres da minha mão e
beberes do meu seio. Renega a tua missão e beija os meus

156
O Evangelho do Alquimista

pés, Aqui e Agora, e eu mostrar-te-ei a minha magnificên-


cia.
Proferidas aquelas palavras, o Alquimista, apenas
com o pensamento, fez explodir sete rosas brancas e disse:
Eu não vendo ilusões; apenas corações e espíritos abertos
à verdade universal. A única ilusão que existe neste mundo
és tu, sombra de ti próprio, que trocou a palavra e o deser-
to pelo conforto e vício dos homens. Para trás, espectro do
Ego! Para trás, porta-voz do Medo! O fim do teu mundo e da
tua existência está próximo!
Derrotado com a eloquência do profeta, o homem dei-
xou cair o capuz e revelou a sua cara leprosa, de olhos en-
sanguentados de raiva. Esperava ouvir tudo daquele sábio,
menos aquilo. Enraivecido, soltou um grito que ecoou por
todo o deserto e desapareceu numa explosão.
Em silêncio, o Alquimista terminou a sua meditação;
fez explodir as quatro rosas brancas que fizera brotar da terra
com o pensamento e soltou o seu cordão dourado do Chakra-
-Raiz para o centro da terra. Lentamente, foi sentindo os
músculos e articulações do corpo e abriu os olhos, segundo
o ritmo da sua respiração.
Regressado à realidade terrena, deparou-se com o cír-
culo de fogo e a fogueira apagados; o cantil cheio de água
fresca; a mochila cheia de víveres e uma miragem de Mag-
dala, sorrindo com toda a sua beleza, antes do romper da
alba.
Sem perder tempo, retomou o caminho de regresso
ao acampamento. No coração e na mente, levava uma taça
cheia de sabedoria para partilhar com os seus discípulos e o
resto do mundo.

157
TRINTA E UM
Quem visitasse pela primeira vez Distopia e deparasse
com a imponência e magnanimidade do edifício Moneys-
peak, nunca imaginaria que, dentro daquela torre forrada de
espelhos, com mais de setenta e oito mil metros quadrados,
cento e quarenta metros de altura e quarenta andares – la-
deada de escritórios, um centro de informações no primeiro
andar e um restaurante na cave, funcionasse o Banco Central
de Distopia.
O sorriso daquele homem era um misto de prazer e
dor. Quem olhasse apenas para o estatuto e papel que usu-
fruía na sociedade Distopiana, diria tratar-se de uma evolu-
ção natural, dado ser filho de uma das mais importantes e
poderosas famílias de banqueiros Doptas do Bairro Cornu-
cópia e de toda a cidade. Do pai, recebera o espírito de pou-
pança e idolatria ao Deus Dinheiro, desde que lhe oferecera
a sua primeira moeda e o seu primeiro porquinho-mealheiro.
Mas quem visse Zarco – o Governador do Banco Central de
Distopia – transpirando como um animal, de braguilha aber-
ta, masturbando-se que nem um louco enquanto apreciava,
lascivamente, uma revista erótica com belas adolescentes
em trajes colegiais e poses provocantes, capazes de desper-
tar a libido no espírito mais puritano e recatado, nunca lhe

159
Tiago Moita

passaria pela cabeça estar perante uma figura de valores e


princípios, que era o que a maioria da sociedade esperava de
pessoas que ocupavam cargos da importância e prestígio que
aquele homem desempenhava.
Todavia, o vício da masturbação não era o mais im-
portante dos seus prazeres. Preferia o erotismo à pornogra-
fia. A subtileza e a expectativa do erotismo abrem mais asas
à imaginação do que a pornografia por si só. Quem o co-
nhecesse bem, sobretudo nos círculos mais íntimos, sabia
que Zarco partilhava a sua predilecção pela Economia com
o prazer pela Leitura e pela Arte. Tanto fazia falarem-lhe de
Macroeconomia como da poesia de Goethe; de taxas de ju-
ros e câmbios como da pintura de Dali ou de Matisse. Tudo
isso fazia uma perfeita simbiose na mente do homem que
decidia o futuro da economia do planeta e era o principal
tesoureiro ao serviço de Zarat.
Nos momentos mais relaxantes, diluía os pensamen-
tos no conforto do seu escritório. Umas vezes, punha-se a
tocar ou a observar objectos, como o cachimbo que quando
entrara na Universidade recebera do avô, desconhecendo
este, como o resto da família, que já fumava desde os cator-
ze; o livro de poesia “As Flores do Mal”, de Charles Baude-
laire, oferta de sua mãe, no dia em que completara quinze;
o anel da Fraternidade Maçónica Nono Sinédrio, que fre-
quentara desde os vinte e um; a Bíblia e o pin dos Doptas,
para nunca esquecer as raízes ancestrais da fé dos seus ante-
passados, onde escondia algumas das suas pequenas revistas
eróticas; o seixo preto que descobrira, ainda criança, num
riacho, quando passeava por um dos raros vales verdejantes
do planeta É, e que usava sempre como amuleto para agra-
decer todos os méritos e coisas positivas que lhe sucediam,
e a sua fiel calculadora – que nunca o deixara ficar mal nos
momentos mais importantes e complicados da sua carreira.
Para Zarco, nada era deixado ao acaso na sua escrivaninha:

160
O Evangelho do Alquimista

nem o porta-chaves do seu automóvel ou mesmo a pistola


automática, que guardava numa gaveta especial. Para ele, a
segurança e a vida eram valores inestimáveis.
A aproximação do êxtase de toda aquela lascívia fora
interrompida por uma chamada telefónica. Zarco praguejou,
por uns instantes, com aquela interrupção mas conteve-se a
tempo. O código e a cor da lâmpada que luzia no telefone
identificavam o seu autor: era a sua secretária. Uma hora
antes de entrar no gabinete, Zarco informara-a de que estaria
muito ocupado e de que só poderia ser interrompido se fosse
um assunto muito urgente. O Governador poderia ter muitos
defeitos; distracção não fazia parte da sua lista. Conformado
e rápido, recompôs-se, escondeu o objecto provocador dos
seus desejos libidinosos na gaveta do costume e atendeu a
chamada.
Sim, Clarisse, perguntou, depois de reposta a compos-
tura e o fôlego. Tenho aqui o senhor Saul Rabel, que preci-
sava de falar consigo urgentemente sobre um projecto do
nosso Grande Líder, respondeu a secretária, do outro lado
da linha.
Mande-o entrar, exclamou, desligando a chamada.
Que quererá este agora? murmurou com os seus botões.
Saul e Zarco eram grandes amigos já desde os tempos da
Faculdade, e Saul era o responsável pelo cargo que Zarco
vinha ocupando, actualmente. Tanto um como o outro já ti-
nham discutido assuntos urgentes; nunca nenhum da nature-
za que a secretária do Governador relatara.
O senhor Saul Rabel, anunciou a dócil secretária,
assim que abriu as portas do gabinete de Zarco. Obrigado,
Clarisse! Pode retirar-se, ordenou. Saul vinha apressado e
nervoso, com uma resma de papéis que atirou para cima da
secretária do Governador, sem pronunciar uma palavra.
O que se passa, homem? O que é isto, perguntou. Isto?!
Isto é o resultado de auditorias e petições dos empresários

161
Tiago Moita

de Distopia contra o secretismo e falta de transparência à


volta do projecto VHCruz. Toda a comunidade empresarial,
tal como eu, está alarmada com a chegada do Alquimista.
Todavia, isso não significa que se continuem a gastar, sem
razão aparente mais de mil milhões de Zarts nessa... nessa
coisa, respondeu, enfurecido.
Essa coisa tem nome e sabes bem a importância do
seu secretismo para Zarat. Já viste o que acontecia se esses
papéis chegassem às mãos dele? Poderia simplesmente exe-
cutar esses empresários sem dó nem piedade, por desobe-
diência às suas prescrições, respondeu. E o custo-benefício,
Zarco? Qual é o custo-benefício dessa megalomania, inqui-
riu Saul. O Governador respondeu, soerguendo-se da secre-
tária de punhos cerrados. O benefício será o incumprimento
da profecia do Oráculo do Destino e a descredibilização e
eliminação do Alquimista aos olhos do povo, e isso, Saul,
vale qualquer custo, meu caro... ou preferes que mudemos
de assunto, como... corvos, por exemplo, concluiu, subli-
nhando a palavra corvos com ênfase.
Um arrepio pela espinha, seguido de um suor frio,
perpassou pelo corpo e pela mente do chefe dos Averos, mal
Zarco pronunciara o nome daquela ave taciturna. O Gover-
nador conhecia bem a fobia do seu amigo por aquele pássaro
e manipulava-o a seu bel-prazer. Saul retirou-se lentamente
da sala, como se tivesse chumbo nas pernas. Antes de sair,
Zarco interpelou-o.
– Tens tido notícias do Leandro e do Gustavo?

162
TRINTA E DOIS
Nicole e Nicolau chegaram finalmente a Zarabandar,
acompanhados pelo caixeiro-viajante que tinham encontra-
do na estrada. Tinha passado a hora do jantar e não se via
vivalma em toda a vila. A noite cobrira a cor e a beleza da
povoação com o seu manto púrpura. A ira da tempestade de
areia do Grande Deserto abafara o som das suas criaturas e
recolhia os murmúrios e as palavras daquele povo mesqui-
nho e pacato.
Os agentes da Guarda Zaratista seguiram o caixeiro-
-viajante para um hotel de três estrelas nos arredores de
Zarabandar – o único hotel da região. Milagre ou sincro-
nicidade, assim que ambos os carros pararam no parque de
estacionamento do hotel, a tempestade passou.
Todos os ocupantes das viaturas ficaram estupefactos
com aquele estranho fenómeno. Tempestades, como aquela,
costumavam durar horas, dias – para não dizer semanas –,
nunca acabando daquela maneira. Nicole foi a primeira a
despertar da estupefacção, dirigindo-se para o hotel. Ambos
tentavam perceber aquele fenómeno e comentavam inúme-
ras teorias para explicar o que tinham acabado de presen-
ciar, enquanto acompanhavam os passos da jovem e esbelta
agente.

163
Tiago Moita

Nicole estava nervosa e impaciente. Tocara três vezes


a campainha da recepção em menos de poucos segundos,
enquanto Nicolau e o caixeiro-viajante acabavam de entrar
no hotel. Atarantada com tamanha persistência, uma jovem
recepcionista apresentou-se ao serviço, procurando atender
rapidamente a impaciente agente da guarda de Zarat.
Dois quartos por favor: um para mim e outro para o
meu colega, pediu, sem pestanejar. Nicolau chegara à recep-
ção mal Nicole acabara de fazer o seu pedido, sem opor con-
testação a uma ordem, vinda de quem vinha. Nenhum deles
estava naquele hotel para fazer férias; apenas para repousar
e continuar a seguir a pista da misteriosa mãe virgem. Nicole
pagou a conta com o seu cartão de crédito e entregou a cha-
ve ao colega. Depois fazemos contas, informou. Conforma-
do, limitou-se a seguir a inspectora-chefe. Tiveram ambos
sorte: os quartos eram contíguos. Em caso de emergência,
não precisariam de fazer grandes deslocações. Mal os dois
agentes subiram num dos elevadores que os levavam aos
respectivos quartos, o caixeiro-viajante que os encontrara
fez o seu pedido.
Já frequentei melhores hotéis, pensava Nicole. O as-
pecto simples e modesto daquele hotel de três estrelas lem-
brava-lhe mais os motéis dos chulos e das prostitutas de
Distopia, nos tempos em que ocupava o mesmo posto que
Nicolau possuía, presentemente, na guarda. Para ele, era-lhe
completamente indiferente o aspecto e o tipo de edifício ou
residência, desde que fosse confortável, oferecesse um ser-
viço razoável e não estivesse infestado de fantasmas. Nicole
e Nicolau pararam junto às portas dos quartos. Antes de o
agente enfiar a chave na fechadura da porta, foi interrompi-
do pela sua inspectora-chefe, apertando-lhe o ombro.
Precisamos de recolher informações sobre o paradeiro
desta mulher nesta povoação. Vamos começar pelos cafés
e questionar os clientes. Segundo sei, esta vila é também

164
O Evangelho do Alquimista

um ponto de encontro de muitos turistas e viajantes. Talvez


alguns deles saibam alguma coisa que nós ainda não conhe-
cemos, disse, largando o braço do colega e sintonizando o
relógio. Encontramo-nos dentro de dez minutos na recepção
do hotel a partir de... agora, ordenou, acertando o relógio.
Nicolau repetiu o gesto e entrou de seguida no seu quarto,
ao mesmo tempo que Nicole.
Ambos os agentes se preparavam de maneiras dife-
rentes. Nicolau vestia-se de forma mais descontraída que a
sua superiora. A paz e o silêncio de um quarto de hotel eram
o suficiente para se arranjar para mais uma missão sem inter-
ferências de ninguém, pelo menos durante dez minutos. Para
ele, bastava trocar de camisa, vestir um novo par de calças,
trocar de meias e sapatos, dar uma penteadela rápida no ca-
belo e um pouco de aftershave no rosto para marcar a dife-
rença no seu aspecto. Para Nicole, uma mudança de visual
era bem mais complexa que a do seu assistente: implicava
um bom banho quente, novas roupas, nova maquilhagem e
um novo penteado. Hábitos que Nicolau não entendia nem
se esforçava por entender. Ambos verificaram as armas, an-
tes de saírem dos quartos. Apenas Nicole se deu ao trabalho
de verificar se existia rede no telemóvel; naquele microcos-
mos distante da cidade: tivera azar, tal como o seu colega.
Um sorriso de satisfação sulcara o rosto de Nicolau.
Tinha sido o primeiro a chegar ao local combinado. Ele mais
a recepcionista eram as únicas presenças humanas na recep-
ção do hotel. Aproveitando o facto de ter chegado mais cedo
do que a sua chefe, acomodou-se num dos sofás e começou a
ler o seu jornal desportivo preferido. Nem de trabalho e risco
vive o homem; o prazer e o entretenimento são as formas
mais fáceis de tranquilizar a mente humana em compassos
de espera. De todos, aquele era o ideal para um homem de
pensamentos e hábitos simples como Nicolau. Subitamente,
levantou-se, mal escutou o barulho de um dos elevadores a

165
Tiago Moita

chegar à recepção. A imagem que lhe surgiu ia para além de


tudo aquilo que poderia imaginar.
O som dos sapatos denunciava uma presença femini-
na. A indumentária de Nicole era um misto de sobriedade e
provocação. Tanto o fato como as calças eram de tal modo
justas que se colavam ao corpo numa simbiose perfeita, real-
çando uma sensualidade singela mas incapaz de escapar ao
olhar masculino mais desatento à sua passagem. A inspec-
tora-chefe vestira um traje oficial feminino da Guarda Za-
ratista que tanto revelava presença e estatuto como classe
e lubricidade, tendo em conta o facto de Nicole ter soltado
também o cabelo. Nicolau não conseguia esconder a sua es-
tupefacção com o traje da sua chefe. Um fio de baba quente
a cair-lhe da boca era o produto de um desejo destilado pela
sua libido. A imaginação daquele homem transformara Ni-
cole numa modelo a desfilar na sua direcção: um sonho que
não tardaria a desfazer-se em mil pedaços.
Quantas vezes lhe disse para não ler jornais enquanto
está de serviço? Por que é que me está a olhar assim? Nunca
viu uma oficial da Guarda de Zarat trajada, indagou, irrita-
da. Nicolau despertou para a realidade. Noutras situações
conseguira disfarçar os seus hábitos de maneira mais rápida
e subtil. Resignado, soltou um suspiro e seguiu a sua chefe
para fora do hotel, tentando controlar os seus ímpetos da
melhor maneira. Não seria uma tarefa fácil.
Os dois agentes seguiram de carro em direcção a Za-
rabandar e pararam num pequeno café. A intuição de Nicole
levou-a a começar por aquele espaço. Nicolau desconfiava
mais do ambiente do que do espaço em si. O café era um pe-
queno ponto de encontro de camionistas, caixeiros-viajan-
tes e motoqueiros, que iam desde o sujeito mais rudimentar
e pacóvio até ao indivíduo mais reles. A entrada dos dois
agentes naquele antro engolira o clamor e o chorrilho de gar-
galhadas, assim como as partidas de bilhar e jogos de azar

166
O Evangelho do Alquimista

entre a freguesia daquele estabelecimento, num silêncio tão


afiado e volumoso como a cortina de fumo que escondia o
tecto daquela casa. Nicole era a única mulher presente entre
aquela multidão de homens, de odor acre, ideias perversas e
sem qualquer confiança na autoridade.
Tem a certeza de que quer começar por aqui, inspec-
tora-chefe? Este local não me inspira confiança, exclamou o
seu assistente, receoso e nervoso. Nenhum ser humano neste
planeta se atreveria a meter-se com oficiais da Guarda Za-
ratista. Seria o mesmo que se meterem com Zarat. Vamos,
ordenou. Nicole tomou a dianteira em direcção ao balcão,
seguida cautelosamente por Nicolau, com todos os sentidos
em alerta.
Uma febre sem sono nem dono, começava a tomar
conta dos instintos daqueles homens com a sua passagem.
Nicole caminhava em direcção ao balcão, não reparando que
estava a ser cercada pela maioria dos fregueses daquele an-
tro. Sorrisos sarcásticos e pequenos ruídos com a boca reve-
lavam desejos aprisionados e fantasias passadas com mulhe-
res da vida, longe dos olhos do mundo. Os gemidos de dor
e de prazer daquela mulher, deitada com cada um daqueles
homens faziam-se mais ouvir na sua imaginação doentia do
que nos quatro cantos daquele espaço nauseabundo. Nicolau
fora barrado por um camionista gigante e truculento, cigarro
na boca, sorriso podre e cara de poucos amigos.
O senhor é que é o dono deste café, perguntou. O ho-
mem, de palito na boca, barba por fazer, hálito e roupa que
já tinham conhecido melhores dias, assentiu com a cabeça,
tentando a todo o custo desviar o olhar do peito da escultu-
ral agente. Nicole identificou-se, mostrando o seu distintivo.
Nicole Adagio, Inspectora-Chefe da Guarda Zaratista. Eu
e o meu assistente queríamos saber se o senhor nos podia
dizer alguma coisa sobre uma mulher que deu à luz uma
criança, há vinte e sete anos – mulher essa que se conser-

167
Tiago Moita

vava virgem mesmo depois do parto – e o paradeiro destes


homens, prosseguiu, mostrando fotocópias dos rostos de
Leandro e Rodrigo. Nicole estava cada vez mais cercada.
Tanto o cheiro do suor como o hálito bolorento dos homens
denunciavam a proximidade destes. Nicolau sentia-se im-
potente para a ajudar, devido ao homem que lhe barrava
o caminho. Os risos subiam de tom com o crescer da ex-
citação daqueles homens. Uma mão a tocar-lhe numa das
nádegas atingira o limite.
Como uma acrobata olímpica, Nicole sentou-se no
balcão e rodopiou as suas esculturais pernas abertas como
um carrossel. Em três tempos, colocou três homens sem
sentidos. De seguida, utilizou os seus golpes de karaté e
kung-fu contra os restantes agressores. Uma violenta za-
ragata tomara conta de todos os presentes. Apenas o dono
do café, e alguns fregueses mais amedrontados, se tinham
refugiado no balcão ou debaixo das mesas para fugirem
àquele vendaval de violência gratuita. Uma nuvem de
fumo, provocada pela agitação frenética dos agressores
ia-se dissipando, revelando um cenário dantesco de ho-
mens sem sentidos no chão do café, cobertos de edemas e
ferimentos provocados pela confusão causada pela ira da
agente. Nicolau acabou por ser também uma das vítimas:
ganhara um olho negro e um fio de sangue, depois de partir
uma cadeira na cabeça de um dos homens que tentara agre-
dir a sua chefe. Nicole apanhou a sua arma e ajudou-o a
sair para fora daquele antro. Antes de saírem, um cliente do
café acercou-se, timidamente, dos dois agentes com as fo-
tocópias das imagens que Nicole mostrara ao dono do café,
minutos antes. Disse-lhes que reconhecera os fotografados
e que eles faziam parte de um grupo de homens que se-
guiam viagem com um caixeiro-viajante, muito conheci-
do naquelas paragens. Nicole pediu-lhe o nome dele e a
descrição da sua viatura. O homem assentiu e acrescentou

168
O Evangelho do Alquimista

mais duas informações: disse que seguiam para leste e que


reconhecera uma jovem que ia com eles. A inspectora-chefe
perguntou-lhe como era ela e se tinha nome. O cliente não só
a descreveu como disse o seu nome: Dharma.

169
IV
A GRANDE SAGA

“Uma viagem de mil milhas começa sempre com um


único passo”

Lao Tzu
TRINTA E TRÊS
O desespero é um dos maiores erros do ser humano
quando este pensa, especialmente quando esse sentimento
é visto como uma dolorosa avidez de uma esperança insa-
tisfeita ou de um sonho inacabado. É certo que o que mais
desespera não é o impossível mas o fracasso. Para os discí-
pulos do Alquimista, nenhum dos cenários excluía qualquer
das hipóteses, desde o desaparecimento do profeta do Orá-
culo do Destino. Quem os observasse, como as criaturas do
Grande Deserto à volta do acampamento, pensava estar na
presença de doidos, revolvendo tudo à sua volta, sem razão
aparente. Para eles, aquela ausência significava um caso de
vida ou de morte. Três dias depois do seu desaparecimen-
to, dúvidas e descrenças começavam a tomar conta das suas
mentes, órfãs da sabedoria daquele homem.
Leandro foi o primeiro a desconfiar do Alquimista.
Depois de três dias e três noites de buscas sem parar, sentou-
-se numa pedra e pôs as mãos na cabeça, remoendo-se de
ressentimentos e remorsos. Ainda estou para perceber onde
estava com a cabeça quando decidi entrar nesta aventura.
Como é que eu, um arquitecto consagrado em Distopia, fui
seguir um homem que falava de assuntos tão absurdos e irra-
cionais como a sincronicidade e a aleatoriedade do Tempo,

173
Tiago Moita

perguntava-se, confuso e decepcionado. Leandro não foi o


único a desabafar o seu arrependimento.
Dharma começou a perguntar por Samuel.
Heitor juntou-se a Leandro, depois de dar um pontapé
numa lata de conservas. Naquele momento, não só punha
em causa as palavras do Alquimista como os seus sermões.
Como é que um homem como aquele pode galvanizar e se-
duzir multidões com um discurso pobre em linguagem e
confuso em conteúdos, perguntou-se, irritado e perplexo.
Isso é o que faz confiar em pessoas que não pertencem à
raça dos Eleitos. Começo a pensar que toda aquela estória
da evolução da consciência do Homem não passa de uma
alucinação da sua mente doentia, disse Rodrigo.
Dharma voltou a perguntar por Samuel.
Adriano barafustava de raiva por ter perdido o carro
em pleno deserto e ter decidido, juntamente com o irmão,
seguir aquele homem. Pensava que alguma assistência téc-
nica ou um bom samaritano resolveria o problema do seu
automóvel, em vez das palavras do Alquimista. Sempre des-
confiei do seu discurso sobre a ciência e o espírito; achei-o
sempre demasiado ilógico e irracionalista para meu gosto.
Leandro levantou os braços. Alguém fizera eco das suas crí-
ticas. Gustavo não se fez rogado e juntou-se ao círculo de
críticos: não só começou a desconfiar do que dizia o profeta
como começou a achar o seu discurso demasiado anticapi-
talista.
Dharma voltou a perguntar por Samuel.
Apenas três dos seis discípulos mantinham a fé no seu
regresso. Dario pegou num par de pequenas estatuetas de
pau preto e começou a rezar, de joelhos, aos seus deuses pa-
gãos; Otelo foi buscar o seu tapete, estendeu-o na direcção
da cidade santa dos Makbares, elaborando um conjunto sin-
cronizado de genuflexões, orando, em seguida, ao seu deus
ancestral, e Jordão voltou para o seu deus crístico, come-

174
O Evangelho do Alquimista

çando a rezar de joelhos, de terço nas mãos, sem pensar em


direcções ou outro tipo de objectos e rituais. Os três crentes
regressavam às suas religiões com um único pensamento: o
regresso do homem que os conduzira para aquele local es-
quecido pelo universo. Como por milagre, o pescador abriu
os olhos lentamente e, como um cego recém-curado, experi-
mentando vislumbrar as cores do mundo pela primeira vez,
reconhecera uma imagem que iluminara o seu rosto e ressus-
citara a sua voz.
Ele voltou, ele voltou, gritava eufórico. Um homem
de manto branco e cara coberta aproximava-se do acampa-
mento. Era noite cerrada, mas aquela aparição assemelhava-
-se ao alvorecer de um novo dia. Os discípulos crentes sorri-
ram emocionados; os cépticos ficaram perplexos. O profeta
destapou o rosto e deixou transparecer o terceiro olho da
testa, seguido dos restantes seis chakras do corpo, reluzin-
do como pirilampos na bruma. Essa revelação fez com que
todos os seus discípulos se prostrassem diante do profeta,
emocionados e arrependidos. Este, imbuído pelo momento e
pelos gestos dos seus seguidores, disse:
– Tal como um diamante precisa de lapidar as suas
arestas para revelar a sua pureza, também eu precisei de li-
mar as minhas. Compreendo as vossas dúvidas e as vossas
orações. Todas elas revelam uma coisa: Vós ainda não estais
preparados para a Grande Verdade. Não vos apoquenteis!
Trago para vós a água que vos saciará a sede e o pão que
vos matará a fome. A partir de hoje, entramos num ponto de
não retorno – Quem me seguir, viverá eternamente num céu
que já existe. Quem não o quiser fazer, saia do meu círculo
e volte à sua antiga vida.
Nenhum dos discípulos recuou ou proferiu uma pala-
vra. O silêncio que se instalou foi o assentimento às palavras
do Alquimista. Satisfeito com a decisão dos discípulos, pro-
feriu uma oração:

175
Tiago Moita

Grande fonte, força criadora, iluminai as mentes e lim-


pai os corações destes vossos filhos com a vossa luz e sabedo-
ria, fortificando-os para a luta contra os maus hábitos e imper-
feições, em direcção à evolução das suas vidas e cumprimento
das suas missões.
Mal terminou a oração, soltou uma pomba branca vinda
do coração, que esvoaçou, rente às cabeças do seus seguidores
até desaparecer no infinito, revelando a primeira profecia aos
discípulos.
– O mundo e a civilização de ódio, materialismo e medo,
tal como a conhecemos, terminará três meses depois do cum-
primento do Oráculo do Destino e culminará com a destrui-
ção de Distopia. Haverá um tempo de obscuridade durante três
dias, devido ao aparecimento de tempestades solares; todos os
aparelhos eléctricos e electrónicos sofrerão danos irreparáveis,
mas logo aparecerá a seara futura. Surgirão grupos de sábios
denominados Homens do Sol que despertarão o planeta pelo
Norte e pelo Oeste. As suas palavras serão entendidas por todos
como um guia para o despertar. Nesse momento, a Humanida-
de entrará num grande salão de espelhos e confrontar-se-á con-
sigo própria, analisando o seu comportamento e a sua relação
com o Todo. Será um período em que terá de escolher entre de-
saparecer ou evoluir, em direcção à integração harmónica com
todo o Universo. Será um período em que a Humanidade, se
assim o quiser, mudará e eliminará o medo e a falta de respeito
em todas as relações.
Mal terminara a revelação, Dharma encontrara Samuel
atrás do Alquimista e abraçou-o, comovida. O jovem caixeiro-
-viajante não mexera um músculo nem proferira uma palavra.
Tanto a boca, como o corpo e as roupas, estavam cobertas de
pó e areia.
Subitamente, um vulto feminino irrompia no acampa-
mento. A imagem ali presente, não deixou indiferente nenhum
ser humano naquele lugar.

176
TRINTA E QUATRO
Léon! Léon! Enche o meu coração de Mar! gritava
Simone Dumonde pelas ruas e avenidas de Anguscius. A
tristeza tinha sido a sua companheira, juntamente com a so-
lidão, desde a morte do seu único e verdadeiro amor. Juntas,
fermentavam um veneno que corroía o corpo e a memória
como ácido clorídrico sobre as pedras de uma calçada, habi-
tuadas a sorver todo o luto e silêncio do mundo. Na loucura,
a líder dos Dúbios procurava refúgio e, ao mesmo tempo,
conforto, da perda irreparável do companheiro. Não existe
melhor sentimento para impedir o indivíduo de reflectir, e
conseguir a paz interior, que a tristeza; muro entre dois jar-
dins; enfermidade universal a que ninguém escapa.
Durante o seu percurso até casa, expressava as suas
alucinações de diferentes maneiras. Nada com que os ha-
bitantes daquele bairro não estivessem familiarizados. Era
tão comum o grito ou o choro anónimo de um ser humano,
encoberto por uma sombra e pelos ruídos da noite e das ruas,
como a indiferença de uma árvore pela queda da folha de um
dos seus ramos no Outono. Em casa, o delírio revestia-se
dum misto de nostalgia e insanidade. Por cada quarto onde
passava de rompante, Simone procurava os antigos dese-
nhos que pintara nas paredes, na infância, às escondidas dos

177
Tiago Moita

pais. Poderiam ser infantis, mas retratavam metáforas bem


reais que nunca tinham abandonado a sua mente, tal como
o quadro da sua irmã mais nova, Liliane, que vislumbrava,
vezes sem conta, com êxtase e saudade. O quadro, retrata-
va o amor entre duas mulheres, nuas num leito feito de flo-
res; um impressionismo expressivo de um amor impossível
numa época de grilhetas e dogmas absurdos para mulheres
como ela.
Hipnotizada como uma estátua de sal, Simone relem-
brava naquela pintura os tempos de criança, atraente e mi-
mada, fazendo de tudo para obter o que queria e ser o centro
das atenções de seu pai – um dos mais prestigiados advoga-
dos do Bairro Avero e da cidade; e de sua mãe, uma actriz
amadora, que manifestara sempre o seu carinho pelas filhas
e que desde tenra idade incutira nelas o prazer pela poesia,
pelo teatro, pela escrita e pela leitura.
Simone não tinha amigos, nunca tivera. Via a família
mais como os únicos companheiros da sua vida do que os
seus colegas de escola ou qualquer outra pessoa fora do seu
círculo familiar. Excepto a mãe, ninguém na família ou entre
colegas a entendia. Nos primeiros anos em que ela e a irmã –
dois anos mais nova do que ela – estiveram juntas, sentiam,
uma pela outra, mais afinidade e intimidade. Na adolescên-
cia, tinham surgido rumores sobre um eventual amor lésbico
entre as duas irmãs. Nada chegou a ser provado.
Por volta dos quinze anos, Simone confessou aos pais
o seu desejo de ser escritora, para desgosto do pai, que ambi-
cionava ver a filha mais velha seguir as suas pisadas. Apenas
a mãe e a irmã a apoiaram; mãos amigas de que jamais se
esqueceria, especialmente quando ingressou na Faculdade
de Letras de Avero. A irmã acabaria por seguir pintura. A
arte tinha triunfado sobre o Direito na sua família.
O primeiro choque com o mundo universitário ocor-
reu logo no primeiro ano. Simone não se dava bem com o

178
O Evangelho do Alquimista

ambiente formal e snobe da Faculdade, nada virado para


a discussão intelectual. Naquele mundo, os números pare-
ciam ter mais poder que as palavras. Frustrada com a esco-
lha, transferiu-se para a Faculdade de Letras do bairro leste.
Nela, Simone encontrou o ambiente que sempre imaginara e
tornou-se uma das melhores alunas da universidade. No ter-
ceiro ano, conheceu Léon Segall – ainda aluno. Com Segall,
Simone perdera a virgindade e conhecera o amor, o prazer
e a liberdade como nunca sonhara. Vivera com ele os anos
mais revolucionários da sua vida. Léon pregava uma filo-
sofia neo-existencialista que defendia o suicídio e o niilis-
mo absolutos. Para os seus seguidores, era visto como um
mestre; para os mais cépticos, mais papista do que o Papa,
no que tocava à aplicação prática da filosofia de Sartre e de
Nietzsche e tantos outros filósofos que o tinham marcado
desde a adolescência.
Segall morreu de morte natural e Simone substituiu-o
como líder dos Dúbios. Para trás, Léon deixara bem marca-
da a autonomia e identidade de um bairro, feito à imagem e
semelhança do seu pensamento e sentimento sobre a vida, o
homem e o mundo. Ficou também a viuvez de uma mulher,
que nunca viria a superar o trauma pela morte do compa-
nheiro. Simone passou a ter pavor da morte mas nunca tivera
coragem de se suicidar, refugiando-se na filosofia do mítico
líder dos Dúbios e na loucura. Daí se explicava a sua teimo-
sia em não entrar no quarto onde o seu amor tinha morrido,
ter pintado toda aquele divisão de branco e removido todos
os móveis. Por vezes, perguntava às empregadas se, porven-
tura, tinha nascido alguma macieira no quarto onde evitava
entrar.
Num cigarro anestesiava, por vezes, a paz que não en-
contrava na rua ou na bebida. Simone assistia ao deambular
da realidade – que menosprezava – à medida que diluía os
pensamentos ao sabor do seu vício predilecto. Nem o uni-

179
Tiago Moita

verso provocava o seu pensamento, apenas o silêncio – o


retrato mais próximo do vazio.
Alguém tocava à porta.
O jovem mordomo anunciava à líder dos Dúbios a
chegada de Metello. Simone anuiu, ordenando que, logo que
ele entrasse, ninguém a incomodasse. O jovem assentiu, sem
proferir uma palavra. Simone permaneceu estática, frente à
varanda de cigarro na boca. Nem o som dos passos do chefe
da Guarda Zaratista a fez mexer um único músculo.
Metello procurou afivelar um sorriso de circunstância.
Simone desviou o olhar da varanda e olhou para os dois,
com a mesma apatia que a caracterizava naqueles peque-
nos momentos de solidão, ao mesmo tempo que o jovem
se retirava, fechando a porta. Metello aproximou-se então
dela, lentamente. Por breves segundos, não pronunciara se-
quer uma palavra; permanecia estático a olhar para aquela
mulher por quem, em tempos, tivera uma paixão proibida,
comungada no silêncio das sombras. Que deseja, perguntou
Simone. O gelo desfez-se com aquela frase. Metello regres-
sou à realidade e ao motivo que o trouxera até ao Palácio
da Orquídea Negra. Zarat ordenou que fosse em busca do
Alquimista. Fontes seguras afirmam que, entre os discípulos
dele, está um dos seus correligionários. A sua missão será
resgatá-lo e trazê-lo para junto do seu povo.
As pupilas dos olhos de Simone dilataram-se com
aquela revelação. Apenas uma pessoa poderia corresponder
ao seu seguidor, agora discípulo do profeta do Oráculo do
Destino. Metello aproximou-se da viúva, tentando relem-
brar-lhe os tempos em que tinham estado juntos, como se
estivesse prestes a saciar com um beijo, aqueles lábios que,
há muito tempo, guardava no âmago de si mesmo.
Subitamente, alguém batia à porta.

180
TRINTA E CINCO
Tinha passado um dia mas, para Nicolau, parecia te-
rem passado apenas umas horas. Nicole conduzia o carro
enquanto, no lugar do morto, o seu assistente se restabele-
cia, da carga de porrada que tinha apanhado, naquele café
em Zarabandar. O negrume do olho esquerdo era ainda uma
lembrança bastante visível daquela noite dolorosa. Acerca
dos pormenores sórdidos vividos naquele local, apenas uma
palavra deambulava nos rostos e olhos dos dois agentes da
Guarda Zaratista: Silêncio.
Concentração era uma das virtudes da inspectora-che-
fe. Enquanto conduzia, conseguia trocar informações e reco-
lher dados a partir do computador que sempre a acompanha-
va. O agente, meio convalescente, pesquisava, por ordem
de Nicole, a origem dos objectos que tinham encontrado em
Nog. As pistas que ambos tinham obtido naquele café, sobre
o paradeiro de Leandro e Rodrigo, matutavam incessante-
mente a mente da jovem agente.
Veja isto, inspectora-chefe, exclamou Nicolau, deslo-
cando o PC para Nicole. Recebi, agora mesmo, informação
do Centro dizendo que o pedaço de tecido que encontrámos
no barracão em Nog, pertence a um makbar e que a estatueta
que descobrimos naquele sítio também pertence a um pagão.

181
Tiago Moita

O que faria um makbar no território de um pagão, per-


guntou, intrigada. Ora, inspectora-chefe: tanto quanto sabe-
mos, esse homem era um sapateiro. Se calhar, o makbar que
perdeu este pedaço de tecido na sua oficina era um clien-
te. Nicole anuiu. Seria uma hipótese, se não tivéssemos em
conta o testemunho daquele cliente no café onde estivemos,
em Zarabandar. Lembra-se de ele ter dito que, entre o grupo
daquela jovem que mencionou, estava um makbar e um pa-
gão, para além do médico e do arquitecto que procuramos,
relembrou a agente. O caso parecia clarear nas mentes de
Nicole e Nicolau, até ambos escutarem uma notícia na rádio.
Nela, uma repórter falava de uma paranóia apocalíptica que
começava a assolar o planeta e do proliferar de homens e
mulheres, proclamados profetas, por populações delirantes
e eufóricas. Durante a reportagem, eram também ouvidas
opiniões de especialistas e testemunhos de habitantes de
Distopia: para uma larga maioria, tudo não passava de uma
moda passageira ou de uma alucinação colectiva, provocada
por um qualquer distúrbio emocional; para outros, era uma
realidade. Opiniões, mesmo que racionais e de outros enten-
didos ou especialistas na matéria: zero.
O que parecia ser um caminho fácil transformou-se
numa agulha em palheiro, respondeu o assistente de Nicole,
aborrecido. Subitamente, a inspectora-chefe travou o carro
a fundo.
A nuvem de pó provocada pela brusquidão da trava-
gem, assemelhou-se à passagem de uma pequena neblina,
dissipada em poucos segundos, revelando aos olhos dos dois
agentes uma Pickup, parada no meio da estrada. O encontro
de mais uma viatura abandonada fez levantar cada vez mais
suspeitas nos dois agentes. Coincidências passaram a ser
letra morta no vocabulário de Nicole e Nicolau, depois da-
quela descoberta. Os dois agentes saíram do carro de armas
em punho, sangue-frio e sentidos em alerta vermelho; cada

182
O Evangelho do Alquimista

passo dado era estudado em redor do veículo; a comunica-


ção era feita por sinais. Nenhuma palavra. Ambos abriram
as portas da viatura, ao mesmo tempo. Nenhum sinal de vida
humana. Apenas duas pistas: um GPS avariado e a identifi-
cação dos proprietários da pickup, descobertos no portátil
de Nicole, minutos depois, a partir da matrícula da viatura
abandonada. Seus nomes: Gustavo e Adriano Dalfon.
Uma sombra humana cobriu o corpo da inspectora-
-chefe, enquanto esta mostrava a Nicolau as identificações
dos dois proprietários. A sombra daquele homem de pele es-
maecida e vestes ruçadas, debitando palavras sem sentido,
era a do mesmo que tinham encontrado à porta do barracão
de Dario. Nem o grito de Nicole gelara o sangue daquele
homem. Apenas o silêncio do deserto.

183
TRINTA E SEIS
A mulher que se revelara nas sombras da noite, aos
olhos do Alquimista e dos seus discípulos, era o contraste
com a imagem de luxúria e desejo que suscitava no olhar
das ruas e dos seus clientes do bairro Extasis. Apesar da so-
briedade das suas vestes, Magdala não deixava realçar toda
a sensualidade e sedução, provocando a libido de todos os
homens que lambiam o chão por onde pisava. O jogo de
ancas em contraponto com a majestade do corpo e pernas
torneadas, misturado com a magnitude dos seios, além do
reluzir do olhar marítimo e do sorriso lunar, faziam dela o
mais belo retrato da natureza feminina.
Magdala aproximou-se da fogueira. O olhar e o suor
que lhe escorria pelo corpo revelavam um cansaço indes-
critível. Tinha feito centenas de quilómetros para se encon-
trar com o mítico profeta do Oráculo do Destino. O arfar
compassado e a lentidão dos passos eram sintomáticos duma
extrema fadiga. Os discípulos mantinham-se estáticos e re-
servados perante aquela presença feminina, caminhando na
sua direcção. O Alquimista foi o único a dirigir-se a ela com
um cantil cheio de água. Samuel estava hipnotizado.
Adivinhando o claudicar das pernas, o profeta ante-
cipou-se, segurando delicadamente o corpo fatigado, esten-

185
Tiago Moita

deu-a no chão arenoso e deu-lhe a beber do seu cantil. O


único paladar que conhecera, naquela longa viagem, tinha
sido o da areia e do pó. Magdala soergueu-se e bebeu toda
a água que existia no cantil, sem abrir os olhos, seguindo-se
um obrigada, vocalmente adocicado, e de um espanto que
revestia de branco o seu corpo até à raiz da alma.
O Alquimista sorriu para aquela mulher, renascida das
cinzas pela água e, com um suave milagre, encheu e fez jor-
rar água do seu cantil da cabeça aos pés daquele ser humano,
que percorrera quilómetros e enfrentara perigos desconheci-
dos para o seguir. De seguida, beijou-lhe os pés, as mãos e a
testa, em sinal de respeito e reconhecimento do mérito pela
sua fé e força de vontade, terminando com uma frase que a
gelou até ao mais fundo do seu ser.
Nos nossos sonhos, visualizámos este momento. Os
nossos corações encontraram-se. A tua presença é a prova.
Chegou a nossa hora. Chegou o nosso momento, disse o pro-
feta, como se todo o universo falasse através da sua boca.
Otelo e Jordão quebraram o gelo daquele silêncio harmóni-
co.
Não estás a ver quem salvaste, perguntou Jordão, de
rosto crispado. Essa mulher dorme com o diabo e veste-se
como uma prostituta da Babilónia. Se a aceitas no nosso
grupo, deixo de te seguir, acrescentou. Faço das palavras
de Jordão as minhas – interveio Otelo, dando um passo em
frente. – Se aceitares essa meretriz, não contarás mais comi-
go, declarou, indignado.
Sereno, o alquimista respondeu. Um homem tem duas
filhas. Uma decide seguir os preceitos da família; a outra,
rejeita-os e segue um caminho diferente. Deve um pai ou
uma mãe julgar os filhos pelas suas decisões, como os pássa-
ros pelas suas crias ou o pastor pelas suas ovelhas? Quando
vos conheci, encontrei-vos perdidos, tal como esta mulher
e deixei-vos um caminho. Nunca vos obriguei a seguir-me.

186
O Evangelho do Alquimista

Se quiserem abandonar-me, façam-no agora, mas façam-no


em função do amor que sentem pelo universo, por mim, por
vós próprios e não pelos vossos medos e preconceitos, con-
cluiu, amparando Magdala. Ambos assentiram, cabisbaixos
de culpa e vergonha.
Um a um, beijaram-na, tal como o profeta fizera mi-
nutos antes, aceitando-a como discípula. Ao chegar a vez de
Dharma, a antiga prostituta manifestou o seu espanto.
– Karma? O que é que tu fazes aqui?

187
TRINTA E SETE
A dor e a tristeza andavam de mãos dadas pelos cor-
redores do Palácio da Montanha Mágica, numa torrente de
lágrimas e gritos que estremeciam as próprias fundações do
palácio e os nervos dos oficiais da Guarda Zaratista, imóveis
como estátuas e outros artefactos luxuriantes, que decora-
vam a residência oficial do senhor de Distopia. Todo aquele
espaço era assaltado por um chorrilho de lamentos e tormen-
tos, capaz de afugentar o mais comum ser vivo da face do
planeta e a paz do morto mais esquecido do universo. Uma
situação passageira e natural para alguém como Zarat.
Ptolomeu preparava-se para responder a toda aquela
angústia existencial. Alpha e Ómega, tanto avançavam como
recuavam perante o movimento do líder dos líderes. Metello
testava os seus reflexos e procurava impedir Zarat de des-
truir tudo o que existisse à sua volta, tentando imobilizá-lo
com os seus braços titânicos. Magdala – sua acompanhante
de luxo e principal confidente feminina – tinha desaparecido
de Distopia sem deixar rasto; o senhor de Distopia precisava
desesperadamente da sua voz, palavras e afecto, como uma
criança necessita do conforto e regaço da mãe. Zarat estava
inconsolável. A fúria do homem mais poderoso do planeta
era interrompida quando a loucura falava por si.

189
Tiago Moita

– Já viste, Ptolomeu? Os olhos das estátuas e dos bus-


tos do palácio não têm vida; nada tem vida; tudo deixou de
ter vida desde que Magdala me abandonou. Tudo deixou de
ter vida. Tudo... – dizia Zarat, de pupilas dilatadas, obser-
vando uma estátua.
– Não pode imaginar a vida em objectos que nunca
a tiveram, grande Zarat. A dança e o riso, assim como a li-
berdade e a queda começaram convosco; tanto um homem
como uma mulher devem considerar-se perdidos todos os
dias se não tiverem rido e dançado, como vós nos ensinastes.
São as vossas palavras, Mestre; a vossa sabedoria, e não os
caprichos de uma acompanhante de luxo, é que transforma-
ram o mundo em que vivemos. – respondeu Ptolomeu, antes
de ser interrompido pelo senhor de Distopia.
– Dançando e rindo uma vez por dia, Ptolomeu!
Uma vez por dia! Há mais de uma semana que deixei de
sentir o prazer de uma dança e do riso de uma mulher como
Magdala. Ela conseguia rir e dançar como nenhuma outra
mulher. Cada movimento do seu corpo, cada gesto e timbre
da sua voz desafiava o espírito da gravidade. Sim! O espírito
da gravidade! A mais bela lição que vos ensinei foi retratada
por ela, Ptolomeu, por ela!
– Não é verdade, senhor! Não é verdade! – retorquiu
o conselheiro. – O espírito da gravidade foi revelado e ensi-
nado por vós! Neste preciso lugar, quando este palácio não
passava de uma montanha. Fontes seguras confirmaram a
fuga de Magdala de Distopia. Tu sabes, sábio dos sábios,
que nenhum habitante da cidade pode entrar ou sair sem a
vossa permissão e se Magdala o fez, só pode ter sido por um
motivo...
– O que é que estás a insinuar, Ptolomeu? Que mo-
tivo teria Magdala para me abandonar e fugir de Distopia?
– inquiriu, começando a crispar o rosto. Ptolomeu, Metello,
Alpha e Ómega engoliram em seco. Um silêncio de morte

190
O Evangelho do Alquimista

abateu-se naquele espaço. Uma resposta era aguardada pelo


senhor de Distopia da boca do seu principal conselheiro.
– Os nossos satélites... os nossos satélites transmiti-
ram ontem a imagem de Magdala no acompanhamento de
um vale do Grande Deserto, com um grupo de homens que
suspeitamos serem... os discípulos do Alquimista. – respon-
deu Ptolomeu, com os nervos e o sangue gelados.
Zarat permaneceu estupefacto com a resposta. Mag-
dala, a sua Magdala, confidente e acompanhante de luxo
predilecta, pupila e luz dos seus olhos, envolvida com o seu
maior inimigo. Era de mais. Ptolomeu e todas as pessoas
presentes na sala permaneceram estáticos, esperando uma
reacção do mestre dos mestres. Um riso em crescendo, cul-
minando numa gigantesca gargalhada foi a primeira respos-
ta de Zarat a essa revelação.
– Magdala nunca faria uma coisa dessas. Ela deve-me
muito, a mim e ao Faustus, para nos trair. Ela não passava de
uma reles prostituta, ignorante e assustada, quando Faustus
ma apresentou. Tudo o que ela é hoje foi o resultado de anos
de sabedoria e experiência que eu, Zarat, senhor de Distopia
e o homem mais poderoso do universo, lhe dei. E dizes que
ela abandonou a cidade... para se entregar... nos braços des-
se... desse... mito?! – respondeu, meio refeito do riso.
– Ptolomeu tem razão, senhor. Basta um habitante da
cidade desobedecer a uma ordem vossa para ser considerado
um traidor. Magdala conhecia muito bem as vossas regras e
quebrou-as, a partir do momento em que decidiu fugir. Eu
próprio vi essas imagens e posso provar cada palavra que
Ptolomeu vos confirmou, profeta dos profetas. – disse Mete-
llo, intervindo a favor do conselheiro
– Mostrai-me as provas, mostrai-me as provas da trai-
ção de Magdala. – ordenou Zarat, furioso.
Todos os presentes abandonaram os aposentos do se-
nhor de Distopia e dirigiram-se para a central de informa-

191
Tiago Moita

ções dos serviços secretos da cidade, instalada no interior do


palácio. Metello ordenou a um dos assistentes da sala para
mostrar as imagens denunciadoras da traição. Nelas, Zarat
pode constatar, com total nitidez, o momento em que Mag-
dala chegara ao acampamento dos discípulos do Alquimista.
Zarat espumava como um cão raivoso, prestes a atacar; a
palidez do rosto transformou-se na cor do sangue que lhe
corria nas veias, transbordando para os olhos. o fogo da sua
raiva terminou com um murro na mesa do assistente e uma
ordem directa.
– Quero que tragam essa puta à minha presença de-
pois de o Alquimista entrar em Distopia. Capturem-na viva,
ouviram?! Viva! – ordenou. Metello assentiu, retirando-se
da sala. Zarat impediu-o de sair, antes de lhe responder a
uma última pergunta.
– Como correu a reunião com Simone?
Metello esperou alguns segundos antes de responder
ao senhor de Distopia.
– Como tinha previsto, senhor. Como tinha previsto.

192
TRINTA E OITO
A imagem que se exibia no Conselho Magno de Disto-
pia era o paradoxo de tudo aquilo que os Filingus pensavam,
ou imaginavam, dele. Tanto dentro do carro como em casa,
Otto Gräss parecia ter contraído um trauma ou relembrado
uma série deles; tendo em conta o número de vezes que ba-
tia na cara e nos braços, como se estivesse a ser atacado por
uma praga de mosquitos, e os ataques de pânico que sobres-
saltavam o seu motorista, sempre com o coração na garganta
e os nervos à flor da pele, pela paranóia do seu amo e líder
do bairro onde vivia.
Se o percurso que Gräss fizera de carro do palácio
de Zarat para a sua residência, tinha sido um tormento, a
entrada nela fora um autêntico inferno. Não era a primeira
vez que o líder dos Filingus sussurrava, ao ouvido do seu
mordomo, que tinha a sensação de que a casa onde vivia
estava assombrada; uma declaração que se tornava normal
para alguém que conhecia bem de mais as suas virtudes e
loucuras, tais como a alucinante mania de afugentar traças,
apenas vivas na sua imaginação, com um mata-moscas que
guardava, religiosamente, no hall de entrada.
Não era fácil a vida do seu mordomo e dos empre-
gados do palácio. Raros eram os momentos em que o seu

193
Tiago Moita

braço-direito, na gestão e governo daquela mansão, encon-


trava paz e sossego para se deleitar com prazeres tão simples
como, de olhos fechados ouvir música clássica, nos phones
do seu ipod, enquanto o seu amo repousava, meditava ou se
ausentava por tempo indeterminado. Aquela não era, certa-
mente, uma dessas noites.
A loucura não dera tréguas ao líder dos Filingus. Ao
entrar no corredor de acesso aos quartos, foi assaltado por
um barulho ensurdecedor de chuva de balas e raios laser,
disparados do nada, apenas na sua imaginação. Sobressalta-
do e apavorado com tudo aquilo que ouvia, Otto atirara-se
para o chão e rebolara, tentando esconder-se desse tiroteio
imaginário nos móveis e cadeiras do corredor. Por breves
instantes, imaginava-se numa das frentes de batalha da
Guarda Zaratista contra os Tecno-Rebeldes do Grande De-
serto, quando era ainda um mero soldado, longe de imaginar
as surpresas que o destino lhe iria trazer bem como as suas
consequências.
Gräss evitava a todo o custo entrar nos três últimos
quartos do fundo do corredor. Cada um deles trazia-lhe à
memória a morte dos seus três irmãos. Em momentos de
delírio patológico, como aquele, costumava ver o baraço
da corda, que o irmão mais velho usara para se enforcar;
o cheiro do veneno, que o irmão do meio utilizara para pôr
termo à vida, no segundo desses três quartos, e o odor acre
do sangue do terceiro irmão, que cortara os pulsos com uma
pequena lâmina de barbear, num gesto de desespero.
Atarantado com tanta loucura e recordação, Otto aca-
bou por embater contra o corrimão da escadaria do hall de
entrada. Tivera vertigens por causa da altitude e das memó-
rias do pai, morto pela queda acidental de um quadro raríssi-
mo de Van Gogh na cabeça.
Amparado ao corrimão, o líder dos Filingus descia as
escadas, cautelosamente, como se não sentisse força alguma

194
O Evangelho do Alquimista

nas pernas. A imagem da porta de entrada do palácio lem-


brava-lhe também o dia em que recebera do pai a notícia da
morte de sua mãe, antes de morrer. Fustigado pela dor e pela
vermelhidão dos olhos marejados, procurou naquela situa-
ção, a melhor maneira de revelar a Otto a partida abrupta
da sua progenitora, prostrada, vítima de um ataque cardíaco
já sem vida, sobre o piano da academia onde leccionava.
Estava prestes a terminar a peça musical da sua vida. Apenas
a morte guardou para si o que de mais precioso possuía.
Todavia, nenhuma memória suplantava a imagem
que, segundo Gräss, representava a verdadeira visão do apo-
calipse. Ele, dentro da sua biblioteca, invadida por traças
e gafanhotos a destruírem-lhe todos os papéis e livros, que
conservara durante décadas. Depois de descer as escadas,
deu de caras com essa alucinação dantesca. Não demorou
cinco segundos para recuperar as forças, que não encontrara,
enquanto descia as escadas para o rés-do-chão da sua mo-
radia, e começasse a enxotar todos os insectos que, na sua
imaginação doentia, destruiriam a alma da sua casa.
A queda de um vaso, enorme e raríssimo, da biblio-
teca alertou o mordomo e os restantes empregados do palá-
cio. Otto tinha fugido à sua vigilância e encontrava-se per-
dido na sua própria casa, até àquele momento. Ao verem
o seu amo em delírio desenfreado, agarraram-no, enquanto
o mordomo lhe enfiava os comprimidos que o médico lhe
prescrevera, para problemas psiquiátricos daquela natureza.
Minutos depois, Otto Gräss, já mais calmo, ouviu da boca
do seu mordomo, uma notícia que o deixou estupefacto e
escandalizado.
– A Guarda Zaratista encontrou Heitor no Grande De-
serto, ao lado do Alquimista e dos seus discípulos. Ele traiu-
-nos a todos, senhor! Ele traiu-nos!

195
TRINTA E NOVE
Nunca um amor, tão profundo e incondicional, fora
tão controverso, como aquele que era sentido por Magdala
e pelo Alquimista. Em segredo, as opiniões dos discípulos
dividiam-se, apenas reflectidas nos olhos e nas expressões
dos seus rostos. Se, para uns, era natural o sábio ter uma
companheira e poder partilhar algum do seu amor e sabe-
doria, da mesma forma que sempre repartira com os seus
seguidores – embora, de maneira diferente, diga-se de pas-
sagem – para outros, estava fora de questão. Era até perigo-
so, um homem daquela envergadura ética entregar-se assim,
daquela maneira imberbe e irracional, aos prazeres da carne
e aos desejos de uma mulher, especialmente da categoria e
com o estatuto que Magdala ostentava na sociedade. Que
iriam pensar os futuros seguidores do Alquimista, quando o
vissem nos braços de uma prostituta, interrogavam-se algu-
mas mentes, fustigadas por nesgas de medo e preconceito,
que o profeta não conseguira limpar, totalmente, dos seus
corações. Dharma estava radiante por ter encontrado Mag-
dala, e esta, por ter abandonado a sua antiga vida e por ter
começado a namorar com o profeta que a salvara. Samuel
engolia em seco por cada gesto de ternura e carinho entre os
dois amantes.

197
Tiago Moita

Subitamente, o Alquimista virou-se para Samuel,


pedindo-lhe que saísse da estrada e cortasse à direita por
um pequeno caminho de terra, que apontava com o dedo,
como uma bússola indicando o norte. O caixeiro-viajante
assentiu, intrigado.
Nenhum discípulo conseguia descolar os olhos das
janelas da carrinha. O que vislumbravam ultrapassava
todos os paradigmas da razão e da lógica. Dez minutos
depois de saírem da estrada principal do Grande Deser-
to, depararam-se com um vale e uma floresta verdejantes,
desconhecidos dos olhos do mundo. Podiam imaginar, no
mínimo, pequenos oásis ou lagos subterrâneos em grutas,
escondidas em desfiladeiros; nunca vales e florestas ou
qualquer outra mancha verde daquela extensão e beleza
como aquela com que o Alquimista os presenteara. A ad-
miração iluminara o rosto de todos os presentes. Samuel
parecia estar a conduzir em piloto automático.
Nunca vi nada tão belo como isto. Nem sabia da
existência deste vale... nem desta floresta. Onde estamos,
perguntou, sem desviar os olhos da estrada. Este é dos pou-
cos vales existentes no planeta e chama-se Gaya. A flores-
ta que estamos a atravessar chama-se Floresta das Auras,
respondeu o profeta, sorrindo para ele, ao mesmo tempo
que contemplava aquele pequeno paraíso terreno. Passados
dez minutos, pousou uma das mãos no volante da viatura:
pararam.
Dharma e Magdala foram as primeiras a sair para
verem e sentirem, mais de perto, todo aquele verde, segui-
das pelo profeta. Samuel e os restantes discípulos foram os
últimos a abandonar a carrinha. Nenhum deles tinha visto
tanta variedade de flores e árvores. Pequenos ruídos, vin-
dos das copas das árvores e arbustos, denunciavam a pre-
sença de aves e de outras espécies de animais. O Alquimis-
ta caminhou, de mãos dadas com Magdala e pediu que os

198
O Evangelho do Alquimista

acompanhassem. Naquele instante e lugar, medo e perigo


eram palavras apagadas pelo vento.
Meia hora depois, nenhum daqueles seres humanos
parecia o mesmo. Era como se tivessem deixado para trás
todos os medos, preconceitos e dúvidas que sentiam sobre a
relação entre o Alquimista e aquela misteriosa odalisca urba-
na, qual amazona solitária, acabada de se entregar de corpo,
mente e alma ao profeta, cujas palavras e pensamentos se
tinham entranhado no mais profundo do seu verdadeiro Eu.
Por momentos, até esqueceram tudo o que tinham passado
no Grande Deserto e em todos os lugares por onde tinham
percorrido com o sábio. Nenhum deles apresentava sinais de
fadiga. Subitamente, deparou-se-lhes uma enorme clareira.
O espaço assemelhava-se a um enorme círculo natu-
ral, banhado pela luz e calor do sol e cercado por toda a es-
pécie de plantas exóticas e velhos carvalhos; um verdadeiro
elo entre a terra e o céu. Sem perder tempo, o Alquimista
ordenou a todos os discípulos que formassem um círculo
humano e olhassem para o espaço, compreendido entre as
plantas que observavam. Alguns corcéis e alces curiosos
passavam, sorrateiramente, por entre a vegetação. O profeta
pediu a todos para não se distraírem com nenhuma presença
ou som e para se concentrarem apenas na sua voz, respira-
rem pelo abdómen de forma lenta e cadenciada e desfoca-
rem ligeiramente a vista, sem perderem o foco daquilo que
o sábio pediu para vislumbrar. As bocas dos seus seguidores
começaram a descair tranquilamente, como o desabrochar
de uma flor. Aquilo que observavam ultrapassava as frontei-
ras da imaginação. Samuel era o único com dificuldade em
executar aquele estranho exercício.
Movido pela intuição, o sábio foi ao encontro do
caixeiro-viajante. Frente-a-frente, iniciou, com ele, um
exercício mais simples. Vem comigo, disse, pegando-lhe no
braço e afastando-o do círculo. Os discípulos continuavam

199
Tiago Moita

hipnotizados com a descoberta, que Samuel ainda não tinha


conseguido enxergar. Os dois homens pararam junto a um
pedregulho. O profeta pediu a Samuel que se sentasse e se
encostasse à rocha. Confortável, perguntou o Alquimista,
Samuel assentiu com a cabeça. Perfeito! Agora faz com que
as pontas dos teus dedos indicadores se toquem e mantém o
azul do céu como pano de fundo, ordenou. Samuel seguia
à risca as ordens do Alquimista, sem perceber a razão e o
sentido de tudo o que estava a fazer.
Maravilhoso! Agora, afasta um pouco as pontas dos
dedos e observa a zona que existe entre elas, disse o sábio.
Samuel via poeira nos olhos. O profeta disse para esquecer
isso e desfocar ligeiramente a vista e aproximar, lentamen-
te, as pontas dos dedos. De seguida, pediu novamente para
voltar a afastá-las um pouco. Quando as pontas dos dedos
foram perdendo ligeiramente nitidez, Samuel viu algo pare-
cido com fios de fumo; em pouco menos de um minuto viu
fios de luz. O deslumbramento da descoberta iluminara-lhe
o rosto. Suavemente, o Alquimista fê-lo voltar para o círculo
dos discípulos. Uma vez ali inserido, Samuel conseguiu vis-
lumbrar as cores das auras de todos os animais e plantas que
conseguia observar, compreendendo o estado de espírito e
o encantamento dos seus companheiros. Radiante, o Alqui-
mista revelou-lhes o segredo daquela descoberta.
– Todo o universo é energia pura e dinâmica. Um
campo de energia sagrada que todos nós podemos sentir e
intuir, mesmo dentro de nós, na direcção desejada pelo nos-
so pensamento. É por esse meio que influenciamos os siste-
mas de energia e aumentamos o ritmo dos sincronismos nas
nossas vidas.
Proferidas aquelas palavras, o Alquimista pegou na
mão de Magdala, extasiada com toda aquela luminosidade
etérea, e puxou-a para fora do círculo dos discípulos. Um
a um, os seus seguidores abandonaram a clareira e segui-

200
O Evangelho do Alquimista

ram o casal, deslumbrados com a luz das auras das plantas


e dos animais, como se estivessem enfiados dentro de uma
gigantesca bolha de sabão, enfeitada com todas as cores do
arco-íris. A melodia aprazível de uma cascata e o coaxar das
rãs denunciavam a presença de água. Suas intuições estavam
certas.
Um lago azul, cristalino como uma turquesa, cercado
por um desfiladeiro, coberto de musgo e salgueiros chorões
por todos os lados, descortinava todo o seu esplendor, diante
dos olhos daqueles homens e mulheres, hipnotizados pela
sua beleza. Sem hesitar, Magdala pegou na mão do Alqui-
mista e levou-o até onde a água daquele espelho líquido che-
gasse às suas cinturas. Ambos se olhavam e sorriam, como se
tivessem regressado à infância; à inocência do tempo, como
se o tempo não tivesse passado por eles, nem sequer o medo
ou a vergonha. Beijavam-se com os olhos e abraçavam-se
em sorrisos, expandindo as suas auras como pequenos sóis a
brotar dos corpos, despidos apenas na mente e na imagina-
ção dos discípulos, que observavam aquele momento idílico
de amor, esperando um gesto da sua parte. Magdala, movi-
da por uma força superior à sua razão e vontade, fechou as
mãos em forma de concha e encheu-as de água. O profe-
ta revelou toda a nudez do seu corpo e ajoelhou-se perante
aquela mulher, de braços abertos. Comovida, verteu a água
que retinha nas mãos sobre a cabeça do sábio, proferindo as
seguintes palavras:
Eu te baptizo, enquanto corpo, mente e espírito, em
nome do verbo que pariu o universo.
O Alquimista levantou-se e repetiu o gesto de Mag-
dala. A mulher revelou toda a sua nudez e sensualidade e
imitou o gesto do profeta, antes de ser baptizada.
O sábio proferiu as mesmas palavras da antiga prosti-
tuta. Os discípulos responderam àquele ritual iniciático com
lágrimas nos olhos. O exemplo daquele casal, ungido pela

201
Tiago Moita

luz, pela água e pelo amor, ultrapassava as fronteiras da


paixão e da imaginação dos vivos e dos deuses. Também
eles se baptizavam da mesma maneira, aos pares, culmi-
nando com um forte abraço emocionado. Dharma ficou
sem par. Magdala aproximou-se da pequena sem-abrigo e
baptizou-a. O abraço da companheira do Alquimista fize-
ra-lhe lembrar o da mãe. Onde quer que estivesse, Dhar-
ma imaginava-a naquele gesto. Naquele momento, todos
sentiram o regresso à vida pela segunda vez. Satisfeito, o
profeta dirigiu-se-lhes.
Em verdade vos amo e em verdade vos digo: o que
está em baixo é como o que está em cima, e o que está em
cima é como o que está em baixo para realizar milagres de
uma coisa só. Tudo o que entra nas vossas vidas é atraído
por vós, através das imagens e emoções que guardais nas
vossas mentes. Sabereis o caminho que as vossas almas tri-
lharão para vós, sob o olhar de Deus e do Universo, através
de dez sinais, a que chamarão os Dez Compromissos.
Primeiro, amareis Deus com todo o vosso coração:
não venerareis o amor humano, o êxito, o dinheiro nem o
poder, nem nenhum outro símbolo.
Segundo, não usareis o nome de Deus em vão, nem
o invocareis para coisas frívolas ou profanas, enquanto não
entenderdes o poder da palavra e do pensamento.
Terceiro, lembrai-vos de guardar um dia para Deus,
e vós chamar-lhe-eis divino, de modo que não permaneçais
muito tempo na vossa ilusão e vos recordeis Quem Vós
Sois.
Quarto, honrareis a vossa mãe e o vosso pai. Só
quando honrardes quem vos criou, podereis honrar Deus, a
Natureza, o Universo e, igualmente, todas as pessoas.
Quinto, encontrarão Deus quando perceberem que
não matarão, voluntariamente e sem razão: ao entenderem
que não podem acabar com outra vida, não decidirão pôr

202
O Evangelho do Alquimista

termo a mais nenhuma, e passareis a respeitar todas as for-


mas de vida na terra, destruindo apenas, quando for pelo
bem mais sublime.
Sexto, não profanareis a pureza do amor com desleal-
dade e enganos, pois será adultério; depois de encontrardes
Deus, nunca o cometereis.
Sétimo, não tomareis uma coisa que não vos pertença
nem enganareis. Ser conivente e prejudicar outrem para ob-
ter algo é o mesmo que roubar; coisa que, quando encontrar-
des Deus, nunca cometereis.
Oitavo, nunca afirmareis nenhuma mentira nem le-
vantareis falsos testemunhos.
Nono, não cobiçarão o companheiro, ou companheira,
do próximo; para que haveis de querer cobiçar semelhantes
pessoas se podeis ter por esposas e maridos, um ou uma de
outros ou outras?
E Décimo, não cobiçareis os bens do próximo; para
que haveis de querer os bens do próximo quando tomardes
consciência de que todos os bens podem ser vossos e que
todos os bens pertencem ao mundo?
Encontrareis o caminho para Deus, através destes dez
sinais. Estas são as vossas liberdades. Estes são os vossos
compromissos.
Assim pregava o Alquimista.

203
QUARENTA
Quem conhecesse bem a estória daquele eremita
do deserto, assim como a dos seus pais, sexagenários na
altura do seu nascimento, não poderia excluir a palavra
milagre para melhor descrever o seu inacreditável apare-
cimento. Os mais supersticiosos e ignorantes afirmavam
que a sua nascença tivesse sido provocada por algum sor-
tilégio ou encantamento, feito por um demónio desconhe-
cido; uma forma subtil de retratar todas aquelas pessoas
que não se enquadravam nos parâmetros da sociedade.
O tempo poderia ter apagado as chagas do corpo,
mas não as nódoas negras da alma. A cor de fogo dos
olhos denunciava insónias e angústias passadas. Resis-
tências a traumas de uma infância martirizada pela segre-
gação e discriminação de Phebos – o homem que Nicole
e Nicolau encontraram pela segunda vez no deserto –,
apenas por ser diferente. Tal como num sonho acordado,
recordava-se, sem pedir licença ao coração, dos colegas
de escola a chamarem-lhe bruxo, apenas porque era mais
hiperactivo e conseguia ler a mente das pessoas, assim
como dobrar talheres com o pensamento. Cada vez que
voltava a casa e contava à família que tinha falado com
plantas e anjos, provocava gargalhadas e, por vezes, ma-

205
Tiago Moita

nifestações de raiva e de desprezo por gestos atribuídas a


pura loucura.
Rezava a lenda que partira de casa por vontade de um
anjo que dissera a Phebos ter nascido para cumprir uma mis-
são do Céu. Os pais, tementes e devotos a Deus, aceitaram a
decisão do filho como uma vontade do Destino e deixaram-
-no partir. Desde então, caminhara pelo Grande Deserto,
dias e noites sem parar, comendo gafanhotos e bebendo água
dos cactos que conseguia encontrar, para sobreviver.
Durante a noite, meditava e orava no meio de um cír-
culo que desenhava com uma vara que encontrara naquelas
paragens inóspitas. A solidão e a comunicação com o ab-
soluto a partir da meditação dotaram-no de uma sabedoria
que atraía muitos dos viajantes e forasteiros das redondezas.
Começou a pregar a humildade e a caridade, condenando
a hipocrisia e o cinismo de Zarat e dos seus seguidores. A
ponto de ser considerado santo por uns e louco por outros;
algo que levou muita gente a temê-lo e a chamá-lo de Phe-
bos. O nome verdadeiro tinha-o apagado da memória, como
o vento do Grande Deserto apaga o rasto de quem penetra
no seu território.
Nicole e Nicolau mantinham as armas apontadas con-
tra o estranho e lunático eremita. De joelhos, de joelhos e
mãos na nuca, ordenou a inspectora-chefe, aproximando-se
do homem. Nicolau mantivera-se no seu posto, imóvel. O
enigmático pregador obedeceu com o mesmo medo que apa-
rentara aos dois agentes, da última vez que tinha tido con-
tacto com eles.
O clarão... o homem... o encontro... uma língua... só,
respondeu. Phebos repetia as mesmas palavras que dissera
aos dois agentes, na primeira vez que os encontrara à saída
do barracão de Dario. Nicole observou-o, de arma em punho,
e reconheceu-o pelo semblante e pelas palavras enigmáticas,
Nicolau resolveu aproximar-se sem retirar o dedo do gatilho.

206
O Evangelho do Alquimista

Nicole amenizou a voz e perguntou o nome àquela criatura,


o que estava ali a fazer e o significado daquelas palavras.
Phebos respondeu amedrontado, entrando numa espécie de
transe, soerguendo-se abruptamente e começando a falar de
profecias e a dizer frases sem sentido.
O clarão... o homem... fomos todos avisados... têm de
fugir da cidade quanto antes. O anjo... o anjo mostrou-me.
Distopia vai ser destruída... por uma bola de fogo e pela fú-
ria do planeta... a fúria do planeta. Eu vi tudo... eu vi... O cla-
rão... o homem... os dois... eram apenas um... eram apenas
um, disse, completamente alucinado e apavorado, tentando
aproximar-se dos dois agentes. Nicole tentou, junto daquele
homem, saber o significado de todas aquelas frases desco-
nexas quando, de repente, tanto ela como o seu assistente e
aquele estranho pregador foram confrontados com um abalo
telúrico. A vibração provinha das entranhas da terra abrin-
do uma fenda, que parecia ter dividido o Grande Deserto
de uma ponta à outra. O eremita, foi o primeiro dos três a
levantar-se, dirigindo-se para a berma da fenda que o solo
mostrava.
A fenda... feriu o deserto... e vai a caminho... da ci-
dade... Distopia está perdida... Distopia está perdida... o fim
está próximo... o fim está próximo, afirmou, correndo com
todas as suas forças em direcção à imensidão desértica até
desaparecer no horizonte, como uma miragem.
Nicole e Nicolau entregaram as suas palavras ao silên-
cio. Na mente da Inspectora-Chefe, algo lhe dizia que tinha
acabado de receber uma pista muito importante entre todas
aquelas frases sem nexo. Descobri-la, seria como encontrar
a peça de um puzzle que, só agora, começava a ganhar for-
ma.

207
QUARENTA E UM
Um gesto, ou uma expressão, definem mais um ser
humano do que uma palavra ou uma imagem. É quase como
uma impressão digital da personalidade, às vezes, pouco ex-
plícita para os olhos do mundo, especialmente se estivermos
a falar de um universo mais atento à representação do mun-
do pela imagem e pela demagogia, do que aos pormenores
mais intrínsecos da natureza humana. Simon Beagle regres-
sava a casa na sua limusina, depois da última reunião do
Conselho Magno de Distopia. Os assuntos debatidos entre
Zarat e os seus colegas poderiam remoer o seu pensamento,
vezes sem conta, enquanto regressava a casa. Todavia, uma
estranha inquietação tomava conta do seu corpo como um
vírus, espalhando os seus tentáculos por todos os cantos do
veículo e da alma desequilibrada do chefe dos Seleceus.
Por acaso viu alguma barata no carro, perguntou Si-
mon, com o seu olhar gaseado, dirigido ao seu motorista. O
homem negou com a cabeça, sem mexer os lábios. No banco
de trás, Simon começava a ter comportamentos estranhos.
Por instantes, começara a coçar-se e a rebolar como um
chimpanzé. Minutos depois, observava aterrorizado, através
do vidro fumado, grupos de pessoas de raças e cores dife-
rentes das dos Seleceus, começando a tratá-las por baratas.

209
Tiago Moita

Temendo estar a ser alvo de um ataque esquizofrénico, snifa


um pouco de cocaína, de uma pequena caixinha, e relaxa até
chegar à sua residência.
Rebeca, a governanta, recebe-o com as mesmas pos-
tura e educação que lhe eram peculiares. Simon entrega-lhe
o lenço a que limpara os grãos de cocaína que encontrara
espalhados no lugar onde estivera sentado na limusina, e pe-
de-lhe um novo, sem dar justificações. De seguida, subiu as
escadas e dirigiu-se à casa de banho para lavar os dentes e
apagar todos os vestígios do seu vício. O chefe dos Seleceus
levava sempre a sua higiene pessoal muito a peito: tratava
periodicamente a sua higiene oral com pasta de dentes e fio
dental. Voltou a descer, entrou na sala de jantar e deliciou-se
com um belo faisão assado. Mais tarde, regressara ao quar-
to, vestira o pijama e o robe, dirigiu-se para a sua biblioteca
particular e procurou um livro para ler.
Ao vasculhar numa das estantes, deparou-se com “A
Metamorfose” de Franz Kafka. “Uma manhã ao despertar
de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si transfor-
mado num gigantesco insecto”, assim rezava o início do
livro que o marcara no início da sua adolescência – uma
narrativa de realismo inesperado, que associava o senso do
humor ao lado mais grotesco e cruel da condição humana.
Simon lembrava-se, perfeitamente, de uma das mais céle-
bres obras de um dos maiores escritores contemporâneos
de todos os tempos, porque tinha sido, nesse dia, que uma
barata lhe caíra em cima da testa, durante uma visita a casa
dos avós. Apavorado, enfiou o livro na estante e fechou, nas
gavetas da sua mente distorcida, essa memória ferida.
Mais tranquilo, sentou-se numa cadeira de baloiço, pe-
gou num dos três charutos cubanos do estojo de madrepérola
e começou a fumar. Com um monóculo, colocado no olho
direito, consultou o relógio de bolso: eram onze da noite.
Ainda é cedo para me deitar, pensou. Enquanto o corpo e os

210
O Evangelho do Alquimista

olhos não revelavam sinais de cansaço, deliciou-se a ler al-


guns versos de Rudyard Kipling – o poeta que sempre invo-
cara o “ónus do Homem Branco”. De vez em quando, tirava
apontamentos de uns quantos versos para um bloco de notas
com a sua caneta de tinta permanente; faziam-lhe jeito para
enriquecer os seus discursos. Durante a leitura, relembrava
as suas taras sexuais de adolescente, a paixão por Antropolo-
gia que herdara do pai, a conclusão da sua licenciatura numa
das mais prestigiadas Universidades de Distopia, o dia em
que conhecera a mulher da sua vida e o dia do nascimento do
seu único filho, assim como aquele em que fora eleito, por
maioria absoluta, líder dos Seleceus e membro do Conselho
Magno de Distopia. Memórias agridoces que deambulavam,
livremente, ao sabor dos poemas do célebre poeta e escritor
britânico da Era Vitoriana.
Subitamente, pareceu-lhe ouvir um barulho vindo do
chão. Desconfiado, saltou abruptamente da cadeira e pegou
numa lupa. Vindas do nada, começavam a sair do soalho,
manchas de baratas e toda a espécie de insectos rastejantes,
existentes à face da terra. É uma alucinação. Tudo é apenas
uma alucinação, murmurava. Desesperado, pulou para cima
da mesa e começou a gritar por socorro.
Nesse momento de pura loucura, entrava em casa
Simmons, um jovem Seleceu e professor assistente na Fa-
culdade onde lecciona a cadeira do líder do seu povo. Sem
perderem tempo, ele e a governanta, conseguem, com algum
esforço, neutralizá-lo com um calmante especial, recomen-
dado para ataques de loucura como aquele.
Depois de o achar mais calmo, o jovem professor con-
ta-lhe que a Guarda Zaratista encontrara Rodrigo no Grande
Deserto, ao lado do Alquimista.
Da estupefacção, Simon passou instantaneamente
para a raiva. Só de madrugada, fez as pazes consigo mesmo.

211
QUARENTA E DOIS
Apenas um pequeno fio de água em forma de serpen-
te separava as duas classes socialmente distintas e transfor-
mava a Vila de Gamorra numa espécie de arquipélago de
moradias, cada uma diferente da outra. De um dos lados
dessa corrente líquida que serpenteava toda a povoação, cir-
culavam e viviam as pessoas mais abastadas e influentes,
do ponto de vista económico, político e social; do outro, vi-
via a população mais miserável e humilde. Por vezes, uma
criança com pouco menos de seis anos, que, para pedir uma
esmola, ou um pouco de pão para comer, ultrapassasse esse
limite imposto pela natureza a um casal de fidalgos ou no-
vos-ricos que costumavam passear pela vila, enquanto o sol
dava sinais de vida, era mais alvo de ira ou indiferença do
que de coragem e solidariedade – palavras que pareciam ter
sido banidas da mente daquelas pessoas, naquela pequena
galáxia humana. Apenas os forasteiros como o Alquimista
e os seus discípulos eram bem-vindos e tolerados, não por
serem forasteiros, mas por não conhecerem os costumes da-
quela vila de muros invisíveis.
O que se passa com esta gente, perguntava Samuel.
Ricos ou pobres, os habitantes olhavam de soslaio para o
profeta e para os seus seguidores; outros, estudavam minu-

213
Tiago Moita

ciosamente as suas atitudes para com os seus conterrâneos.


Pouco lhes importava de que lado do fio de água estariam.
Apenas o que escolhessem decidiria o seu destino. Um quar-
to de hora depois de terem entrado nessa povoação, um grito
vindo de uma casa lúgubre e modesta chamou-lhes a aten-
ção. Uma janela iluminada denunciava vida naquele lar.
A porta estava aberta, mas nem o ranger da mesma
desviou a atenção dos seus moradores. Samuel foi o primei-
ro a entrar, seguido dos seus companheiros de viagem. A luz
que encontraram vinha de um quarto, manchado pela tris-
teza e pela dor. Lá dentro, uma família, composta por seis
pessoas, destilava lágrimas que não conseguiam transmitir
em palavras. Encostado à parede, estava um ancião de rosto
sisudo, como se estivesse a orar em silêncio pela partida da
filha mais nova do dono da casa. O Alquimista foi o último
a entrar na divisão e o primeiro a aproximar-se da jovem
defunta. O ancião afastou a mão dos olhos.
Quem sois vós e que quereis, perguntou um dos fami-
liares, com os olhos tolhidos de amargura. Sois o pai desta
jovem, questionou o profeta; o homem assentiu, intrigado.
Que lhe aconteceu, voltou a perguntar. Era a minha filha,
sofria de anemia e já se encontrava em coma há alguns me-
ses. Tentámos tudo o que era possível, mas não tínhamos
dinheiro suficiente para a levarmos a um bom médico ou a
um hospital da cidade para a salvarmos e hoje... deixou-nos
para sempre, respondeu, recomeçando a chorar. Os restantes
filhos tentavam confortar o pai; a mãe também não conse-
guia suster as lágrimas. O Alquimista fez um sinal a Mag-
dala para se aproximar da cama. Ambos ficaram em cada
um dos lados da cabeceira, pousando, de seguida, as mãos
sobre quatro chakras da jovem: o profeta colocou as mãos
no Chakra coronário e no terceiro olho; Magdala pousou as
mãos sobre o plexo solar e sobre o Chakra raiz, sem tocar
na sua natureza mais íntima. De seguida, o Alquimista pediu

214
O Evangelho do Alquimista

a todos os discípulos para fecharem os olhos e erguerem as


palmas das mãos em direcção ao corpo da jovem. Sem que
o ancião e nenhum dos familiares da rapariga vissem, um
fio grosso de luz dourada circulou desde o chakra Coroa do
profeta e dos discípulos até às mãos, como um exército de
formigas invisíveis, banhando de energia universal aquele
corpo sem vida. Durante quinze minutos, permaneceram es-
táticos, sem desviarem a atenção do que estavam a fazer.
As restantes pessoas que ali se encontravam permaneceram
na mesma posição, expectantes e intrigadas com tudo o que
aqueles forasteiros estavam a fazer. Um quarto de hora de-
pois, a jovem começou a respirar e a mexer lentamente os
membros até abrir os olhos e acordar para a vida. Tanto os
pais como os irmãos não conseguiam esconder a alegria em
verem-na de volta ao mundo dos vivos. Magdala e Dharma
não conseguiram suster as lágrimas, assim como os discí-
pulos não contiveram os sorrisos de satisfação e gratidão.
Apenas uma pessoa mostrava desagrado e indignação com
aquele milagre.
Sabeis que hoje é Domingo, o dia do Senhor? Como
vos atreveis a curar alguém neste dia sagrado? Sua alma per-
tence a Deus, não a vós, vociferou o ancião contra o profeta
e os seus discípulos. Os familiares da jovem ressuscitada
baixaram os olhos, cabisbaixos, sem saberem o que pensar.
Calmamente, o Alquimista respondeu. Achais que se
eu soubesse que Deus queria esta alma, para junto de si, te-
ria feito o que acabei de fazer? Como podeis ter para Deus
apenas um dia sagrado e não todos os outros? Porventura
os restantes dias da criação foram menos importantes que o
Domingo? Que sabeis vós da morte se nem sequer conheceis
a vida? O vosso temor pela morte não será maior do que
aquele que um trabalhador sente quando o patrão lhe estende
a mão para o cumprimentar? O Universo não pretende quei-
mar almas, apenas conduzi-las para a Luz.

215
Tiago Moita

A jovem abraçou o profeta e beijou-lhe as mãos; este,


correspondeu com um beijo na testa. Discípulos e familia-
res repetiram o gesto do sábio. Uma criança que assistira a
esse milagre, do lado de fora da janela do quarto da jovem,
alertara a aldeia. Cá fora, uma multidão estupefacta com a
notícia do milagre dividia-se entre o medo e a gratidão. En-
tre eles, encontravam-se assassinos com punhais e pistolas,
prestes a matarem o Alquimista. Furioso, o ancião saiu pri-
meiro da casa e começou a falar a plenos pulmões ao povo
de Gamorra.
Povo de Gamorra. Lembrais-vos dos Pregadores da
Morte de que tanto vos falei? Daquelas pessoas supérfluas
que corrompem vidas humanas com promessas de vida eter-
na e com truques de magia? Eis perante vós os tísicos da
alma; homens e mulheres que nem sequer estão ao nível do
Homem e começam logo a morrer com doutrinas de cansaço
e renúncia. Não os sigais nem deis ouvidos às suas palavras,
se não quereis acabar como eles, afirmou apontando para o
profeta e seus discípulos. Como resposta, o Alquimista trou-
xe consigo a jovem ressuscitada para a rua.
Povo de Gamorra, olhai para o motivo das vossas pre-
ces e não para o poço das vossas mentiras. Ninguém prega
a morte e devolve a vida ao mesmo tempo. Vós não sois
cegos nem surdos nem loucos, mas lúcidos do que vedes e
sentis. Acreditai em vós próprios e no amor que depositais
nos vossos entes queridos, assim como naquilo que podeis
ver nos meus olhos.
Aristocratas e pobres aproximaram-se do profeta para
melhor enxergarem o seu olhar e a rapariga que regressara
à vida. Não tardou o pranto, o arrependimento e a gratidão
a chegarem aos olhos de todos. Sentiam-se de regresso à
vida e dançaram, como nunca com a felicidade estampada
nos rostos, louvando aquela jovem, o Alquimista e os seus
discípulos. Cada um deles dera um pequeno passo mas o

216
O Evangelho do Alquimista

Alquimista fizera mais do que isso: conquistara o coração


desse povo preconceituoso e mesquinho e angariara novos
seguidores para sua causa.
Dos assassinos e do ancião, nem o frio rasto das suas
sombras. Diluíram-se na multidão, crente e extasiada, como
a chama de um fósforo engolida pelo vento.

217
QUARENTA E TRÊS
Poucos Rebeleus conheciam a razão pela qual Graco
usava vidros fumados no seu carro oficial, durante as des-
locações. Mitos urbanos deambulavam pela cidade sobre a
razão da sua existência. Uns, falavam de uma doença rara,
que afectava o corpo do Líder do Bairro Rubro com a luz
do sol; outros, uma medida de segurança contra conspirado-
res de outros bairros ou contra dissidentes do partido contra
ele. Para os mais ousados, uma forma de esconder o medo
que este sentia por Golem, o monstro lendário, criado pelo
Capitalismo Selvagem – segundo ele –, e que comia Rebe-
leus ao pequeno-almoço. Graco fora o primeiro a contar ao
seu povo a existência dessa criatura, acabando por povoar o
imaginário de todos os habitantes daquele bairro, vermelho
como as papoilas dos prados que, em tempos remotos, ti-
nham existido nos arredores de Distopia.
Graco regressava a casa no carro oficial do Grande
Camarada dos Rebeleus, depois de ter assistido à reunião
do Conselho Magno de Distopia. No interior da viatura,
ouvia “A Internacional” vezes sem conta e relembrava os
seus tempos de menino e de estudante universitário: quando
fazia parte de todas as principais organizações juvenis e es-
tudantis, ligadas ao pensamento Rebeleu; quando ingressara

219
Tiago Moita

na Faculdade e concluíra a licenciatura em Direito; quando


conhecera, numa manifestação contra o Capitalismo, aquela
que viria a ser a sua mulher e mãe dos seus três filhos – me-
mórias que afugentavam o medo do monstro, que duvidava
ser real ou fruto da sua imaginação.
Graco não dera pela paragem do carro. O motorista,
antes de lhe abrir a porta, pediu-lhe, gentilmente, para voltar
a ligar o seu aparelho auditivo e enfiar o cachecol. Estava
uma noite fria como o coração de um enforcado. Ao sair,
reparou, à sua esquerda, num grupo de jovens militantes do
Partido do Povo Revolucionário a angariar dinheiro para a
sua força partidária. Tranquilo e sorridente, aproximou-se
deles e ofereceu-lhes uma avultada soma em dinheiro. Os
jovens agradeceram e seguiram o seu caminho. À porta da
sua residência, estava uma criança, de mão estendida, a tre-
mer de frio e a gemer de fome, pedindo roupa e pão para
aquecer o corpo e calar o estômago naquela noite aziaga.
Graco olhou para ambos os lados. Ninguém nas redondezas.
Mudou de semblante e ignorou a pedinte, correndo o mais
depressa possível para casa. A solidariedade era uma moeda
de duas faces naquele bairro; funcionava sempre ao sabor
das conveniências e não dos sentimentos.
Antes de entrar, abriu a caixa do correio e retirou a
correspondência. Ernesto, seu fiel mordomo, ajudou-o a re-
tirar o casaco e o cachecol. Ao ver o mordomo a abrir o
armário para guardar a sua indumentária, observou o seu ve-
lho megafone; o mesmo megafone com que ensinara os fi-
lhos, agora homens feitos e independentes, a gritar palavras
de protesto nas suas primeiras manifestações; o velho lenço
vermelho e o pin do partido, quando pertencia à mesma or-
ganização juvenil que se cruzara com ele minutos antes de
entrar. Uma lágrima furtiva rolou sobre o rosto de Graco.
Certas emoções eram impossíveis de evitar com o assalto
da saudade.

220
O Evangelho do Alquimista

Na secretária do seu escritório, começou a separar a


correspondência recolhida. Separou cartas e missivas im-
portantes – reconhecia-as pela insígnia postal do seu bairro
e pelo símbolo do partido a que presidia – da propaganda
clandestina do Bairro Avero e de folhetos religiosos. En-
raivecido, atirou-os para a lareira acesa. Religião e Capital
eram drogas proibidas naquele mundo e na sua mente enve-
nenada.
De uma escrivaninha, tirou um bloco de capa preta
e, com a sua esferográfica, guardada no bolso do casaco,
começou a tirar notas do que se tinha passado na última reu-
nião do Conselho Magno. De seguida, instalou-se conforta-
velmente na poltrona e voltou a folhear mais umas páginas
do livro vermelho dos Rebeleus – uma bíblia e bálsamo para
os seus olhos glaciais.
Subitamente: um ruído no corredor. Cauteloso, pegou
na faca de ponta e mola que conservava num dos bolsos do
robe, e foi ver do que se tratava. Atravessou os corredores do
palácio e vislumbrou sombras difusas das suas antigas pai-
xões da adolescência e vida adulta. Furioso e louco, come-
çou a golpear o vazio aos gritos, julgando conseguir degolar
um passado que não soubera enterrar dentro de si.
Por fim, entrou no seu quarto. De um lado, a cama,
debruada a ouro e seda vermelha com toda a simbologia es-
querdista; do outro, um sarcófago de vidro feito à medida de
sua mulher, morta há mais de uma década e embalsamada,
como Lenine e tantos outros Grandes Camaradas, que sacri-
ficaram a sua própria vida e a vida de tantos seres humanos
por uma causa que desafiava os limites da razão e do sofri-
mento humanos.
Junto a ele, ajoelhou-se e chorou, copiosamente. Nem
a morte nem os seus filhos o tinham avisado da partida da
sua amada para um mundo que considerava uma ilusão. Em
Rubro, as únicas ilusões aceites só serviam para construir

221
Tiago Moita

paraísos na terra, mesmo que esses paraísos soubessem a


bolor, suor de trabalhadores musculados sem línguas nem
olhos e tivessem a mesma cor do sangue que era pedido pelo
poder do ego dos homens.

222
QUARENTA E QUATRO
Se para uma região, como o Grande Deserto, não tinha
qualquer significado o sabor da água, para o ser humano, a sua
ausência significava um bilhete sem retorno para uma mor-
te certa à espreita no olho de um abutre ou de um milhafre,
voando em círculos sobre o céu seco e o canibalismo do sol
do meio-dia.
Nicole e Nicolau continuavam a sua viagem de regresso
à cidade. O assistente da bela inspectora da Guarda Zaratista
voltara a conduzir o automóvel. Sentia-se um pouco melhor,
depois da tareia que recebera nos arredores de Zarabandar. As
nódoas negras, essas, passariam como o tempo que voara dos
seus relógios. Tinha apenas um pensamento na cabeça: voltar
o mais rapidamente possível à cidade. Poderia não ter a paz e
o sossego do Grande Deserto mas, pelo menos, havia água e a
sombra que aquele espaço ignorava. Nicole observou os can-
tis pelo gargalo. Pediu para parar o carro. Nicolau obedeceu.
Os nossos cantis estão vazios. Quando foi a última
vez que os enchemos, perguntou, desconfiada para o colega.
Nicolau engoliu em seco, antes de responder. Ora, Inspecto-
ra-Chefe... abastecemos tudo naquela estação de serviço que
encontrámos há três dias! Desde então, não encontrámos nada
nesta terra de ninguém.

223
Tiago Moita

Durante dez segundos, Nicole não proferiu uma pala-


vra e pôs-se a olhar para o horizonte. Ainda havia combus-
tível suficiente para chegar a Distopia. Todavia, não bastava
o veículo que os transportava ter alimento para os conduzir;
era necessário que, ambos, estivessem saudáveis, para con-
seguirem atingir a sua meta. Sem perder tempo, retorquiu.
Avancemos mais uns quilómetros até encontrar mon-
tanhas. Ouvi dizer que existem ali pequenas povoações e
lagos subterrâneos de água doce, onde podemos abastecer
os nossos cantis, inclusive arranjar novas provisões e, quem
sabe, informações sobre o nosso caso. Vamos, ordenou Ni-
cole. Nicolau soltou um suspiro e continuou a marcha. Duas
horas depois, era visível o cansaço dos dois agentes. O sol es-
tava cada vez mais forte e parecia não dar tréguas a qualquer
ser vivo que atravessasse aquele inferno de areia e pedra. Ao
perscrutarem o horizonte, depararam-se com uma imagem
que os fez respirar de alívio. Sem saberem como, tinham
chegado ao Vale do Escorpião. A entrada dos dois agentes
naquele acidente geográfico fora recebida pelo crocitar dos
abutres, pelo rugido de pumas, acompanhados pela queda
de três pedregulhos, de ambos os lados do desfiladeiro, às
portas do vale. Levado mais pelo instinto do que pelo medo,
Nicolau desviou-se na primeira curva à direita, percorrendo
um caminho de tal modo acidentado e cheio de pedras e de
terra batida, que o pó não só cegara ambos os agentes como
entupira as narinas. Minutos depois: um estrondo.
O carro esbarrara contra uma parede de pedra e terra,
soltando, de imediato, os dois airbags da viatura. Por breves
segundos, ambos os passageiros ficaram inconscientes. Ni-
cole foi a primeira a recuperar os sentidos e a sair da viatura,
seguida do colega. Não tinham qualquer tipo de escoriações
ou qualquer parte do corpo partida. Estavam inteiros e vivos.
O mesmo não se podia dizer do carro; tinha partido os faróis
da frente e o pára-choques. Nicolau removeu os airbags e li-

224
O Evangelho do Alquimista

gou o automóvel acidentado. À terceira tentativa, conseguiu


pô-lo a funcionar. Não está em muito bom estado, mas está
operacional. Pelo menos, dá para chegarmos até à oficina
mais próxima, respondeu. Nicole assentiu com um sorriso
forçado. Aquele acidente não estava nos seus planos.
Os dois agentes abandonaram a viatura e puseram-se
em busca de água numa das grutas do vale, de armas em pu-
nho e cantis vazios. Caminharam durante muitas horas por
aquela gruta de cristais, reluzentes e coloridos. Nicolau ain-
da procurou recolher as gotas de água que escorriam das es-
talactites. Nicole puxou-o pelo braço, irritada e disse-lhe que
não perdesse tempo com essa tarefa inútil. Cinco minutos
depois, parou e apontou para umas marcas no chão arenoso.
Pegadas. Devemos estar perto de, disse, antes de ser inter-
rompida pelo esvoaçar abrupto de um bando de morcegos,
assustados com aqueles humanos por terem interrompido o
seu sono invertido. Os dois agentes deitaram-se rapidamen-
te e procuraram esconder a cara no chão, esperando que a
debandada terminasse. Levantaram-se, quando o único som
que ouviam era o gotejar das estalactites da gruta. Nicolau
amparou a sua chefe e perguntou-lhe se estava bem. Nicole
agradeceu o gesto e fez-lhe a mesma pergunta. Pela primeira
vez, a jovem inspectora tivera um assomo de preocupação
para com o colega. Restabelecidos do susto, recomeçaram
a caminhada. Meia hora depois, depararam-se com um beco
sem saída, tendo como horizonte o vazio. Furiosa, Nicole
atirou uma pedra para o vácuo para dar vazão a sua frustra-
ção. O som que a pedra emitiu, do outro lado da escuridão,
despertou uma esperança naquelas duas almas, sedentas e
exaustas.
Movidos pelo desespero e pela expectativa, os dois
agentes correram, com as forças que ainda lhes restavam,
de focos acessos, ferindo as trevas subterrâneas daquela
gruta desconhecida. Ao fundo, pareciam ver uma miragem

225
Tiago Moita

esfumada de um pequeno aglomerado de casas e um som


semelhante àquilo que tanto procuravam. Minutos depois:
uma aldeia.
Nicole e Nicolau tinham chegado à aldeia de Narva-
lis. A rapidez e a ansiedade foram rapidamente substituí-
das pela prudência. Os dois agentes desligaram os focos,
guardaram as armas e colocaram os distintivos à vista de
todos os habitantes com quem se cruzavam. A apreensão
dos aldeões revelava conhecimento dos dois agentes. In-
diferentes, no princípio, aos sentimentos daquelas gentes,
Nicolau e Nicole foram repentinamente assaltados por uma
visão que lhes fez despertar os instintos mais básicos de
sobrevivência: uma fonte.
Minutos depois de saciarem a sede, Nicole informou
o assistente de que iria fazer, sozinha, uma ronda pela al-
deia e que ficasse à espera dela, ali, na fonte, até ela voltar.
Nicolau assentiu. Um tiro para o ar seria o sinal para o
agente abandonar o local e ir em seu socorro.
Percebendo que estava a falar com gente simples,
mas ordeira e pacata, a inspectora-chefe mostrou o seu
lado mais simpático e humilde para com os aldeões. Co-
meçou por perguntar por uma mulher que tinha dado à luz
uma criança, estando ainda virgem, vinte e sete anos antes.
Nenhum dos habitantes conhecia semelhante milagre, res-
pondendo a maioria com sarcasmo e gargalhadas. Nico-
le não desistiu e prosseguiu a sua investigação. Perto de
uma doca, encontrou um velho pescador. Lembrou-se de
uma prova que se tinha esquecido de guardar na mala e
mantinha no bolso do casaco: o anzol que encontrara no
barracão de Dario, na Vila Nog. Resolveu mostrar-lho. O
pescador enfiou os óculos e observou aquele objecto, tão
familiar para quem lida com a pesca todos os dias. Não
só o reconheceu como afirmou a identidade do seu dono:
Jordão.

226
O Evangelho do Alquimista

Nicole tinha ganho o dia. Radiante, voltou para junto


do colega, que a aguardava na fonte daquela aldeia subterrâ-
nea. A presença de oficiais da Guarda Zaratista a cercar a al-
deia e a visão de Nicolau, algemado, despertou-lhe angústia
e temor, acentuados pela voz de Metello, saído do meio dos
oficiais, de espingardas e metralhadoras em punho.
– Agente Nicole! Agente Nicolau! Precisamos de con-
versar. Sigam-me!

227
QUARENTA E CINCO
Fugir da racionalidade pode ser, para uns, uma forma
de revelar que o ser humano é mais do que um complexo
sistema mecânico de tecidos, órgãos e fluidos, funcionando
de forma precisa e concertada, como um relógio; para ou-
tros, um pesadelo, tendo em conta as aparências e o modo
de pensar do mundo que nos rodeia. Para Metheos, era uma
ameaça à sua vida e à vida do povo do Bairro Cogito.
Faltavam poucos minutos para o chefe dos Methódi-
cos chegar a casa, segundo o motorista que o conduzia no
seu carro particular. Metheos não se sentia bem. Suava sem
razão aparente e nem a leitura do “Discurso do Método” de
René Descartes, o sossegava. Temia a loucura e as suas con-
sequências como um animal em presença do perigo. Tudo
parecia estar contra ele: tinha acabado de fumar, um a um,
todos os cigarros da cigarreira e tomado o último antidepres-
sivo, antes da reunião do Conselho Magno de Distopia. O
dia podia ter começado como um sonho mas, para o mestre
da lógica e do pensamento racional da cidade, poderia aca-
bar num pesadelo.
Metheos usava métodos bizarros para provar que não
estava louco. Um deles, consistia em contemplar, constante-
mente, um relógio de bolso com banho de prata – herança do

229
Tiago Moita

avô – e apontar, com uma caneta de tinta permanente, num


bloco de notas, da cor dos edifícios do Bairro Cogito, as
horas, os minutos e os segundos. Outro método, ainda mais
bizarro, consistia em segurar um fio-de-prumo, enquanto ca-
minhava, de modo a não dar um passo, mais ou menos nive-
lado, em relação ao outro. Naquela noite, repetiu-os todos.
Sem efeito.
Em casa, dirigiu-se imediatamente para a casa de ba-
nho. Era urgente encontrar um antidepressivo, qualquer coi-
sa; tudo, menos caminhar para um estado a que não gosta-
ria de voltar, nem em sonhos quanto mais em pensamentos.
Primeira tentativa: frustração. Durante a busca, relembrou
episódios negros do seu passado: a frieza do olhar dos pais,
reflectida nos bustos dos filósofos que o marcaram; a recor-
dação da violência física do pai para com ele – sem mise-
ricórdia nem motivo aparente – e o maior fracasso amoro-
so que tivera na adolescência com uma rapariga, que não o
achava suficientemente atraente e popular.
Voltou ao escritório – e biblioteca particular – para
afugentar a loucura de uma maneira mais lógica, segundo
a sua maneira de ser e de pensar. Começou por pegar numa
pasta de arquivo e tentar retomar um ensaio académico que
estava a escrever. Nada como a escrita para expiar a loucu-
ra que existe em cada ser humano, pensou. E a loucura con-
tinuava: as vozes e as recordações do passado sucediam-se
em flecha e atingiam-no, como punhais afiados, na mente e
na alma. Último refúgio: a leitura. Atarantado e paranóico,
começou a tirar os livros de uma estante, um a um, para o
chão, na esperança de encontrar num livro, o mesmo efeito
dos seus antidepressivos. Mas não adiantava, nada adianta-
va. Nem de cachimbo na boca e monóculo posto conseguia
repor a normalidade que tanto desejava.
Nesse momento, apareceu Bertrand, que o neutralizou
com um lenço impregnado de clorofórmio. Foi tiro e queda.

230
O Evangelho do Alquimista

Horas depois, Metheos recuperara os sentidos. Nesse


instante, Bertrand aproximou-se dele, informando-o de que
a Guarda Zaratista encontrara Leandro. Tinha estado perdido
no Grande Deserto, mas acabou por ser resgatado e acolhido
no grupo do Alquimista, respondeu, com um nó na garganta.
Da aparente passividade, o líder do Bairro Cogito en-
trara em estado de choque depois daquela revelação. Não
pronunciara uma só palavra até ao dia seguinte. Tinham sido
demasiados choques e emoções para ele.
De manhã, desapareceu da cidade. Foi como se se ti-
vesse volatizado.

231
QUARENTA E SEIS
Quem o visse a atravessar o Grande Deserto, na sua
Triumph T110, vermelha e negra, com roupa de motoqueiro
rebelde à anos cinquenta, rasgando o asfalto e sentindo o
sabor do vento laminado – como Marlon Brando no céle-
bre filme “O Selvagem” de Laszlo Benedek –, estaria longe
de imaginar que, por detrás de toda aquela indumentária de
ganga e cabedal, lenço preto e óculos escuros, estaria um
jovem sindicalista Rebeleu, de sorriso nos lábios, a caminho
de uma missão, nada digna aos olhos do povo do seu bairro
e da sua cidade.
Desde a notícia do milagre de Gamorra, a populari-
dade do Alquimista e dos seus discípulos foi ganhando pro-
porções inimagináveis. Dos quatro cantos do planeta, chega-
vam multidões, carregadas de víveres e esperança para ver,
ouvir e tocar no Profeta do Oráculo do Destino. À passagem
da carrinha de Samuel, choviam pétalas de flores e toda a
espécie de plantas raras; grupos de pessoas, despojadas de
bens e de lares, longe das suas famílias e actividades, amon-
toavam-se com o único propósito de seguirem aquele ho-
mem. Samuel, tal como os discípulos do Alquimista, não
conseguia esconder a alegria e a emoção, sentidos naquela
amálgama de energia positiva que os cercava. Filas e filas de

233
Tiago Moita

toda a espécie de veículos, seguiam em fila indiana a viatu-


ra do seu salvador. A dimensão do fenómeno ia muito para
além dos seus sonhos mais recônditos.
Por onde passava, o profeta tanto encantava como
chocava as multidões com as suas palavras e milagres. Ape-
sar das vozes discordantes dos mais cépticos, o Alquimista
ia conquistando, cada vez mais, o coração das pessoas que
tomavam contacto com ele e o seguiam, como candeias ace-
sas em pequenas tábuas de madeira, flutuando num rio des-
conhecido. Magdala desconfiava da adesão de alguns desses
cépticos e, por vezes, sem saber porquê, sentia a presença de
espiões ou de uma espécie de força maligna, tentando pene-
trar, a todo o custo, naquela corrente humana.
O sábio pediu a Samuel para parar a carrinha. Do ho-
rizonte, chegava um motoqueiro; o mesmo motoqueiro Re-
beleu que atravessara o deserto, deixando para trás o seu lar.
Transportava um megafone vermelho e branco, um “very
light”, um facão de mato atado a uma das pernas, um pa-
cote de rebuçados de mentol, um spray de tinta vermelha e
um exemplar do Manual dos Rebeleus no porta-capacete, e
uma confiança cega, estampada no semblante, idêntica ao
fogo que iluminara a sua alma quando observara o profeta
a descer da viatura do jovem caixeiro-viajante, para ir ao
seu encontro. A sua chegada foi precedida por uma pequena
nuvem de pó que transformou o Alquimista, e os seus segui-
dores, em miragens esfumadas.
És tu o profeta de que tantos falam? És tu o homem
que vai defrontar Zarat e cumprir a profecia do Oráculo,
perguntou, mal retirou o capacete e revelou o seu rosto jovem,
barba média e ar despojado, sem deixar a naturalidade de
lado. Mal acabara de proferir estas palavras, apareceu, como
uma sombra sinistra, um monge crístico de vestes negras e
brancas caminhando na direcção do profeta. A sua passagem
assemelhava-se à da própria morte ou de uma alma penada

234
O Evangelho do Alquimista

com rosto humano, dada à quantidade de pessoas que


se afastavam com a sua presença. Magdala abraçou o
Alquimista; só a presença daquele homem provocava-lhe
uma sensação de angústia.
– Chamo-me Constantino e venho da Paróquia de
Pelak para te seguir, sábio dos sábios – disse o homem,
com voz cavernosa e sorriso amarelo. O motoqueiro apro-
veitou o momento para se apresentar.
– Chamo-me Isauro e venho do Bairro Rubro para
seguir o maior defensor dos fracos e dos oprimidos contra
o sistema capitalista. – respondeu. O profeta saiu da car-
rinha e rodeou aqueles homens, como se estivesse a pro-
curar alguma coisa. O rosto de um deles era-lhe familiar.
– Nós já nos conhecemos? – perguntou.
Os homens negaram e estranharam a pergunta.
– Se vós quereis fazer parte da corrente que me se-
gue, pegai nos vossos livros sagrados e queimai-os, dian-
te dos olhos do mundo ou voltai para a terra donde vies-
tes. – ordenou.
Isauro ficou perplexo com aquela ordem. Constan-
tino, irritado, com tamanho pedido. Não tinham outra al-
ternativa perante aquela multidão de crentes. Uma recusa
poderia pôr em causa os seus propósitos. Resignados, pe-
garam em cada um dos exemplares dos livros que serviam
de lanterna para as suas vidas, e queimaram-nos, recor-
rendo a archotes, oferecidos por alguns dos seguidores do
profeta. O povo que assistiu àquele gesto, celebrou com
gritos e danças de alegria. Satisfeito, o profeta do Orá-
culo do Destino virou-se para eles e fez-lhes um pedido
enigmático.
Quando chegar o momento, fazei o que tendes de
fazer. Entregar-me-ei ao Destino que vos colocou no meu
caminho, murmurou-lhes. Os dois homens assentiram,
estranhando aquele pedido. Constantino foi o primeiro a

235
Tiago Moita

entrar na carrinha. Isauro voltou para a sua moto, confu-


so, pronto para seguir o seu novo mestre. Ao sentar-se, deu
pela falta do seu lenço preto.

236
QUARENTA E SETE
Não se via vivalma em Narvalis. A aldeia estava sitia-
da por quase uma centena de oficiais e soldados da Guarda
Zaratista. Qualquer movimento, subtil ou brusco, viesse do
lago subterrâneo ou de uma rua ou casa, era alvo de suspeita
e alerta, para todos aqueles homens e mulheres armados, ao
serviço do homem mais poderoso do planeta. Ordens sinté-
ticas eram transmitidas, em código, por microfones. Holo-
fotes de alta potência rasgavam a escuridão e iluminavam
a vila mais do que todas as candeias daquela povoação. O
escritório do chefe da aldeia serviu de quartel-general im-
provisado para Metello e a sua patrulha. Declarado o reco-
lher obrigatório na aldeia, o chefe da guarda de Zarat estava
mais à vontade para interrogar Nicole e Nicolau, acerca das
suas investigações.
Os dados que enviaram para a Central deixaram-me,
não só surpreendido com o desempenho dos dois como tam-
bém intrigado. Como devem saber, desde que se soube da
vinda do Alquimista e da sua intenção de se dirigir a Disto-
pia para cumprir a profecia do Oráculo, milhares de pessoas
invadiram o Grande Deserto para irem ao seu encontro. Vá-
rias detenções foram feitas, desde que vocês partiram, con-
tra pessoas que provocaram distúrbios na cidade, declaran-

237
Tiago Moita

do serem aquilo que não são. Tanto eu, como vocês, sabem
a ameaça que esse homem representa, não só para o nosso
grande líder como para a nossa civilização. Por isso, Zarat
enviou os seus melhores agentes para o Grande Deserto de
forma a descobrir quem é esse homem e como capturá-lo.
O que é que descobriram então, agentes Nicole e Nicolau,
perguntou Metello, depois de terminar a sua prelecção. A
Inspectora-chefe mostrou-lhe a revista onde encontrara a
notícia da mulher que dera à luz uma criança, há vinte e
sete anos atrás, sendo na altura ainda virgem. Metello não
se mostrou muito convencido. Porém, quando Nicolau lhe
entregou a mala de Nicole Adágio, com as provas recolhidas
no barracão de Dario, na Vila Nog, o chefe da Guarda Za-
ratista, mudou completamente de expressão: a diversidade
de objectos e a sua ligação com a identidade dos seus donos
deixaram-no apreensivo. A sua reflexão terminou quando os
dois agentes referiram a descoberta dos carros abandonados
de Leandro, de Rodrigo, dos irmãos Gustavo e Adriano e
também de uma jovem sem-abrigo, procurada por Faustus,
chamada Dharma. Quando ouviu isso, Metello ficou boquia-
berto e radiante. Sentiu uma espécie de interligação entre o
que os seus oficiais tinham investigado desde a notícia da
existência do Alquimista, até à última reunião do Conselho
Magno de Distopia, onde se decidira, segundo a estratégia
de Ptolomeu, acabar com o profeta do Oráculo do Destino.
Sem proferir uma palavra, o chefe da Guarda de Zarat mos-
trou-lhes duas pastas amarelas.
– Enquanto estive a ouvir, com muita atenção, as de-
clarações que vocês prestaram e a observar as provas que me
mostraram, lembrei-me de uma investigação, feita por dois
agentes da Central, acerca de um casal que deu à luz uma
criança nas circunstâncias que vocês referiram.
Nicole e Nicolau abriram as pastas e começaram a
analisar os dossiês. Ambos falavam de um vidreiro de uma

238
O Evangelho do Alquimista

aldeia dos arredores de Distopia chamado Fernando e de


uma empregada doméstica da cidade chamada Mónica. Se-
gundo os documentos, ficou provado que a mulher era clini-
camente virgem, antes de casar com esse homem em segre-
do. Em seguida, mostrava um mapa dos possíveis locais do
planeta onde eles poderiam ter estado.
Nicole estava estupefacta. Enquanto examinava, mi-
nuciosamente, cada prova e documento espalhados na mesa,
começava a ouvir, cada vez com menos intensidade, as vo-
zes de Nicolau e Metello e a visualizar os locais do mapa
com os testemunhos que recebera, aquando da investigação,
e enquanto ia ouvindo algumas das frases do Oráculo do
Destino, num murmúrio, tão hipnótico e profundo como um
mantra. Instintivamente, começou a esticar o braço e apon-
tou para um ponto no mapa, como se estivesse a ser guiada
por uma força desconhecida.
– O que é que está fazer, agente Nicole? – inquiriu
Metello. A inspectora-chefe despertou, lentamente, daquele
misterioso estado de consciência e começou a proferir as
primeiras palavras.
Pelak, devemos começar a investigar a paróquia de
Pelak, respondeu, absolutamente convicta. O chefe da Guar-
da Zaratista estranhou aquela decisão repentina e questionou-
-a sobre a razão da sua escolha. Pelak – repetiu Nicole – é a
paróquia mais próxima da aldeia de Fernando e de Distopia.
Para além dela, só existe o Grande Deserto. Se eles casaram
em segredo, esta é, sem dúvida, a paróquia mais recatada
das redondezas. O mapa fala por si. Se existe alguém que
pode saber desse casal, e do paradeiro dessa criança, hoje
um adulto, é o Pároco. Por favor, senhor, deixe-nos inves-
tigar Pelak.
Metello gostou do raciocínio da sensual agente. Nou-
tras circunstâncias, pedidos como aquele poderiam levar à
satisfação dos seus desejos mais lascivos, como moeda de

239
Tiago Moita

troca, sobretudo no que tocava a jovens agentes da Guarda


Zaratista, da qual era comandante. Todavia, a urgência do
momento fê-lo esquecer todos os desejos de alcova a res-
peito de Nicole. Conformado, autorizou a investigação ao
Pároco de Pelak.
A missão ia continuar. Nicolau e Nicole fizeram conti-
nência a Metello e aos seus capitães. Antes de sair, a inspec-
tora-chefe perguntou pelo nome do clérigo em questão ao
seu comandante. Metello respondeu, sem hesitações.
– Constantino.

240
QUARENTA E OITO
O lusco-fusco anunciava a despedida do dia. Os se-
guidores do Alquimista prosseguiam o seu percurso pelo
desfiladeiro de Haznaar; uma região inóspita até para qual-
quer ser vivo, dada a quantidade de perigos e lendas, alimen-
tadas pela ignorância do mundo e pelo medo dos homens,
que faziam daquela região um dos lugares mais tenebrosos
do planeta. O povo crente mantinha o sangue frio, archo-
tes acesos e mãos dadas uns aos outros, numa espécie de
corrente humana, transformada numa serpente de fogo vis-
ta do céu menstruado. Acreditavam que, enquanto o profe-
ta do Oráculo do Destino estivesse com eles, nenhum mal
lhes poderia acontecer, viesse donde viesse. Todavia, apesar
de a fé superar o instinto, era frequente assistir ao nervoso
miudinho de uma alma mais débil por causa do crocitar de
um abutre ou do rugir de um puma. Subitamente, Samuel
parou a carrinha.
Mesmo o mais comum mortal ficaria de olhos presos
e mente bloqueada perante o esplendor daquele monumen-
to. Um gigantesco templo escavado numa rocha amarela
com quarenta e cinco metros de altura e trinta de largura,
seguindo um modelo helenístico de construção, com repre-
sentações de mulheres, deuses e anjos, misturados com seres

241
Tiago Moita

mitológicos desconhecidos. O Alquimista foi o primeiro a


sair da viatura e a entrar no templo, acompanhado dos seus
discípulos e do povo que o seguia. O jovem caixeiro-via-
jante aproximou-se do profeta e perguntou-lhe o nome do
templo. Nabot foi a resposta.
Constantino aproveitou a confusão e começou a meter
conversa com Leandro. Até quando vais viver esta farsa, per-
guntou. Leandro ficou baralhado. De que é que está a falar,
questionou, confuso. Achas que o Alquimista vai ficar por
aqui? Achas que todas estas pessoas vão manter a dignida-
de com as suas palavras? Quando chegar o momento de ele
falar de sexo, como é que tu vais preservar a tua virgindade,
meu jovem, inquiriu o monge, cada vez mais persistente.
Leandro afastou-se do religioso, assustado. Constantino ob-
servou-o, sorrindo.
O aspecto do interior do templo nada tinha a ver com
o seu exterior. Por dentro, parecia uma caverna feita com
toda a espécie de cristais existentes no planeta. Composta
por cristais, geodes, drusas e outras pedras não-preciosas,
banhadas por pequenos focos de luz natural de pequenos
orifícios no tecto e camadas de uma espécie de musgo fluo-
rescente, dando uma dimensão etérea àquela maravilha ar-
quitectónica, construída e esculpida pela natureza e pelo
homem. Entre a multidão, uma voz cavernosa fez-se ouvir,
fazendo estremecer as paredes mais sólidas da alma dos se-
guidores do profeta.
Vede, meu povo, vede. Eis o símbolo da loucura e da
ignorância dos homens. Não de todos, mas daqueles que
vos enganam com ideias falsas, a respeito de superstições
e mentiras sobre um Deus que matámos, em nome da nos-
sa liberdade. Não sigais aquele que vos alimenta, com as
mesmas palavras dos sacerdotes das velhas religiões. É um
par de algemas douradas de falsos valores e palavras ilu-
sórias; um inimigo cheio de astúcia. A moral apenas serve

242
O Evangelho do Alquimista

para forçar o homem a sacrificar-se pelo futuro, pondo em


causa a própria liberdade e felicidade. Atirai para o abismo
esse falso profeta e voltai para o conforto da civilização que
vós construístes, debaixo do cadáver desse Deus, inventado
pelo homem.
O medo e a confusão andavam de mãos dadas com a
multidão. Ódios ancestrais entre crentes, ateus e agnósticos,
espalhados entre os seguidores do sábio emergiam nos seus
subconscientes até à flor da pele. O que começara com uma
pergunta sobre o significado e a origem daquelas palavras
acabou numa zaragata e numa sinfonia de pranto e dor, onde
nem as mulheres, nem as crianças e nem os velhos escapa-
ram. Do alto de uma rocha, o Alquimista começou a falar.
Povo de aquém e além-dor, porque duvidais quando
escutais a voz do medo e desconfiais da voz do amor? Por
que duvidais de Deus, mesmo quando ele vos fala através
de mim ou de qualquer outra pessoa que se assuma como
um templo vivo? Porque duvidam de vocês próprios, digo-
-vos eu; porque fostes ensinados a duvidar por aqueles que
pretendiam representar Deus e usaram-vos para controlar a
Humanidade. A voz que acabais de ouvir é a voz da vossa
consciência colectiva. Quereis em resolver os maiores pro-
blemas da experiência humana? Então abandonai o conceito
de separação: nunca mais vos sintais separados uns dos ou-
tros e nunca mais vos vejais separados de mim nem de Deus;
nunca digais senão a verdade e nunca mais aceiteis nada, a
não ser a verdade mais sublime sobre Deus e sobre mim,
respondeu o Alquimista.
E continuou. Abandonai o conceito de visibilidade,
também: quando enxergardes e compreenderdes que sois
um todo, não podereis dizer uma mentira nem esconder nada
de ninguém, nem ser nada, senão visíveis para com todos,
porque será evidente para vós que, fazê-lo, é do vosso maior
interesse. Deus está na unidade, não na separação. Se que-

243
Tiago Moita

reis encontrar Deus e compreender todos os mistérios da vossa


natureza e do universo, regressai à espiritualidade e abandonai
a religião. Deus só é tudo e torna-se tudo, quando começardes
a questionar o vosso próprio cepticismo e aceitarem Deus no
vosso coração.
Uma voz irrompeu da multidão. Era Constantino, com
um ar ameaçador. Se Deus está entre nós e fala através de ti, por
que razão o homem sempre lutou contra si mesmo, perguntou,
desafiador. O povo e os discípulos aguardavam uma resposta
do sábio. Paciente e sorrindo, respondeu.
Os seres humanos desligam-se, frequentemente, da sua
fonte de energia interior, sentindo-se fracos e inseguros quando
isso acontece. Para a obter, temos tendência para manipular, ou
obrigar, os outros a mendigar atenção, ou seja, energia. Quando
dominamos as pessoas dessa maneira, sentimo-nos mais po-
derosos, enquanto os outros se sentem mais fracos e, muitas
vezes, reagem. Parai de competir entre vós e cessarão todos os
conflitos entre os seres humanos. Descobri de onde vem essa
necessidade de controlar a energia, interagindo com o vosso se-
melhante e encontrareis a paz dentro de vós. Parai de manipular
ou dominar a atenção dos outros se sentirdes a ligação interior à
energia universal entre todos vós.
– Que energia é essa de que falais? perguntou um dos
seguidores, entre a multidão. O Alquimista sorriu e respondeu
de braços abertos.
– Amor!
Um manto de culpa, seguido de uma auréola de arrepen-
dimento e remorso, desceu sobre as mentes de todos aqueles
que lutavam entre si, por causa de uma voz sem nome. Em
poucos minutos, homens e mulheres abraçaram-se, comovidos.
Com apenas uma palavra, o Alquimista tinha feito mais do que
muitos governos no mundo inteiro. O universo parecia sorrir,
naquele momento, juntamente com aquele homem e os seus
discípulos, em direcção ao seu destino.

244
QUARENTA E NOVE
O que parecia ser o prenúncio de uma noite tranquila
desfez-se com o lusco-fusco do entardecer. Salomão regres-
sava ao lar no carro e tinha todos os motivos para sorrir:
o trabalho correra de feição, não discutira com os seus su-
bordinados, o seu laboratório não sofrera qualquer tipo de
distúrbios ou acidentes e não tivera nenhuma visita indese-
jável de agentes e oficiais da Guarda Zaratista a questioná-lo
sobre a celeridade do projecto VHCruz. Um dia idílico com
sabor a néctar e ambrosia, prestes a converter-se num pesa-
delo.
O que será desta vez? murmurou Salomão com os
seus botões, enquanto fechava as portas e accionava o alar-
me com o comando do veículo, correndo de seguida para
casa. Gritos agudos intermitentes percorriam todos os can-
tos da residência. Dentro da moradia, uma mulher, empolei-
rada numa mesa e de vassoura na mão, gritava que nem uma
desalmada. O cientista identificou-a, antes de abrir a porta.
O que é que aconteceu, querida? O que é que aconte-
ceu, perguntou aos berros depois de fechar a porta. Uma...
uma ratazana... uma ratazana entrou na nossa casa. Vê se a
encontras e matas, querido. Vê se a matas, vociferou de vas-
soura em punho. Salomão pegou numa espécie de pistola de

245
Tiago Moita

raios laser, em forma de comando de televisão, e percorreu


a casa com um pequeno foco que mantinha guardado num
móvel da sala de jantar. Não era uma tarefa do seu agrado.
Bastou a sua mulher pronunciar o nome desse roedor dos
esgotos e das lixeiras para o cientista recordar o dia em que
tinha sido mordido por uma, quando ajudava o pai, nas mu-
danças da sua antiga casa para a nova. Nada lhe acontece-
ra de especial, mas ganhara um trauma que o acompanhou,
desde então.
Salomão procurou por todos os cantos da casa. Por
momentos, convenceu-se da fuga do animal, que tanto medo
provocara à sua esposa, até chegar à cozinha. Mal entrou,
sentiu um arrepio na espinha. No meio de uma mesa de már-
more negro, uma enorme e gorda ratazana deliciava-se com
um pedaço de queijo ali deixado. Coragem, Salomão, é só
apontar e disparar a arma. O cientista foi quebrando o gelo
do seu trauma; as imagens da mordedura que sofrera no pas-
sado, permaneciam muito presentes na sua memória; o suor
escorria frio como o seu sangue, naquele momento; a rataza-
na desviou a atenção da sua refeição e olhou para Salomão.
Sem pensar, disparou.
Tinha acertado no alvo. Sem pestanejar, correu ime-
diatamente para o escritório e tirou uma cápsula. O raio que
disparara era paralisante e uma ratazana era sempre um ani-
mal muito útil para experiências científicas no seu laborató-
rio. Mal chegou à cozinha, enfiou o pobre roedor para dentro
de um cilindro de vidro, com luvas de látex, e guardou-o
dentro de uma mala especial vazia para animais de labora-
tório, escondendo-a logo de seguida. A mulher só desceu da
mesa quando o marido lhe contou o que fizera, sem entrar
em pormenores.
Mais descansada, a esposa do cientista voltou às li-
des domésticas e preparou o jantar. Era carneiro assado com
batatas no forno – o prato preferido de Salomão –, acom-

246
O Evangelho do Alquimista

panhado por um bom vinho que tinha trazido da adega na


cave. Tanto o aroma como a substância da refeição fizeram
com que aquele casal esquecesse o incidente provocado por
aquele bicho, cujo nome fora proibido de ser pronunciado.
Durante o jantar, a esposa de Salomão dividia os seus olha-
res entre a comida e a janela. Subitamente, lançou uma per-
gunta inesperada para o marido.
– A ciência terá mesmo todas as respostas sobre o
Universo e a Vida? – perguntou. O cientista parou de comer
e ficou estático, por instantes, com o garfo na boca e o olhar
afiado na esposa.
Que queres dizer com isso, perguntou, intrigado. Nun-
ca perguntaste a ti próprio se não existia uma realidade in-
visível para além daquilo que conseguimos observar com
os nossos sentidos? Nunca tiveste dúvidas sobre o papel da
Ciência e as suas consequências nas nossas vidas e na des-
coberta da vida, da natureza e do universo, perguntou, an-
siosa. Querida. – respondeu Salomão. – A Ciência sempre
esclareceu os grandes fenómenos da natureza, o funciona-
mento do corpo humano e os mistérios do universo. A pró-
pria História mostra que o método científico resulta e que
a Ciência ainda tem muitas cartas para dar. E não existirá
um propósito no meio de tudo isso? Será que o papel do ho-
mem consiste apenas em observar o que descobre e não em
participar activamente naquilo que desvendou, e revelar que
todos somos parte do tecido da criação, perguntou a mulher,
cada vez mais intrigada. Salomão estava perplexo com o sú-
bito interesse da sua esposa por questões ligadas à Ciência.
Faziam dezoito anos de casados e nunca ela lhe tinha feito
semelhantes perguntas. Contudo, não a deixou sem resposta
às suas pertinentes questões.
– Querida, não entendo esse teu súbito interesse pela
Ciência nesta altura mas, para que fique registado, tudo o que
existe à nossa volta foi descoberto pela Ciência e inventado

247
Tiago Moita

pela Tecnologia. Todo o universo inspira deslumbramento


enquanto a Ciência proporciona respostas, em harmonia
com a natureza, tal como ela é, e não como gostaríamos que
fosse. Foi o próprio Einstein que disse, e passo a citar, que
Quanto mais a evolução espiritual da humanidade avança,
mais certo parece que o caminho para a verdadeira religio-
sidade não reside no medo da vida, e no medo da morte, e na
fé cega, mas na busca do conhecimento racional.
– E estás satisfeito com tudo o que a Ciência e a Tec-
nologia têm feito, em relação ao que está a acontecer no
mundo, com o aparecimento desse tal Alquimista e o cum-
primento da profecia? Nunca te passou pela cabeça que o
homem é feito da mesma matéria com que são feitas as es-
trelas e da mesma consciência que a neurociência ainda não
consegue explicar, mas os espiritualistas já conheciam? E
então o universo, tal como o conhecemos? Não será também
dotado de uma consciência?
Ambos ficaram a olhar um para o outro, em silêncio.
Salomão nunca acreditara em milagres nem em fenómenos
paranormais, até àquele momento. As dúvidas que sentia na
sua profissão e no projecto que tinha em mãos, desde que
este fora pedido por Zarat, após o aparecimento do Alqui-
mista no planeta, aumentaram com aquela discussão. Tinha
agora mais perguntas e nenhuma resposta para dar à mulher,
depois daquela intervenção. Sem ele se aperceber, ela tinha
sido alvo de uma epifania e mergulhado num transe que fi-
zera com que se esquecesse de tudo o que tinha acabado de
falar com o marido.
Salomão e a mulher foram deitar-se após o jantar. Ela
mergulhou de imediato num sono profundo como um abis-
mo. O cientista não pregou o olho toda a noite. Aquilo a
que assistira naquele momento não era normal. Algo estava
a acontecer no seu mundo e o método científico não conse-
guia dar-lhe uma resposta.

248
CINQUENTA
Visto de longe, aparentava um campo militar aban-
donado, dizimado pela usura do tempo e do Grande De-
serto, cheio de casernas, linhas de caminho-de-ferro aban-
donadas e outros tantos edifícios, entregues à ferrugem,
à poeira e ao esquecimento. Nenhum dos seguidores do
Alquimista – nem mesmo os seus discípulos – sabia que
estava perante o Campo de Concentração de Birknam. O
enfraquecimento da densidade de energia das suas auras
revelava as vibrações negativas daquele lugar. Um monte
de ruínas construído pela mão da própria morte. Sapien-
te do que estava a acontecer mais amiúde, o profeta pe-
diu aos seus discípulos que desenhassem um gigantesco
círculo à volta das pessoas que o seguiam. Em seguida,
ordenou a todos que não saíssem do círculo e se sentas-
sem na posição de Buda, de mãos dadas uns aos outros.
Samuel ficou à sua esquerda, enquanto Magdala ficou à
sua direita. Mal todos se acomodaram, começou a falar.
– Há mais de um século, este planeta foi ameaçado
por um tirano, que defendia a pureza da raça do seu povo
e o genocídio em massa de todos os povos que subjugava,
chamado Hisler. – disse o Profeta.

249
Tiago Moita

– Hisler? Esse nome não me é estranho? – excla-


mou Rodrigo. O profeta olhou para o discípulo com um
sorriso complacente.
– Mal entrámos neste campo, senti as vossas vibra-
ções positivas diminuírem: é natural. Todo este espaço foi,
outrora, um campo de sofrimento e morte para muitos seres
humanos, que pagaram bem caro o preço da diferença e da
liberdade. Não foi por acaso que escolhi este espaço para
vos falar de três coisas muito importantes: o sofrimento, o
poder e a força.
Dharma resolveu intervir, com olhos doces. Fala-me
do sofrimento, Mestre. Sapiente, o Alquimista respondeu.
– O sofrimento é um efeito inútil da experiência hu-
mana. Deus tudo tem feito para acabar com ele, mas vós
recusastes todas as ferramentas que Ele vos deu para acabar
com o sofrimento. Muitos Lhe perguntaram por que razão
existe sofrimento no mundo, porque acontecem desastres
naturais que destroem povoações inteiras, e eu digo-vos, que
o sofrimento nada tem a ver com os acontecimentos, mas
sim, com a reacção das pessoas em relação a eles. O que está
a acontecer é apenas o que está a acontecer. A forma como
vós o encarais é outra questão. Lembrai-vos de que o pen-
samento é a mente em acção. Apenas tornamos real aquilo a
que prestamos mais atenção. Observai como se comportam
os verdadeiros mestres: não sofrem absolutamente nada em
silêncio; experienciam circunstâncias que vós classificais
como insofríveis; não falam de sofrimento nem dos seus
sinónimos; entendem claramente o poder dessa palavra. Por
isso, optam por não dizer uma só palavra a seu respeito, e,
por último, estudam todas as hipóteses sobre aquilo que de-
cidem tornar real.
– Mas, Mestre. – interrompeu de novo Dharma. – Não
respondeu à minha pergunta. Para quê o sofrimento? Por
que razão sofremos?

250
O Evangelho do Alquimista

– Não podem conhecer-se e tornar-se no que são na


ausência daquilo que não são. Muitos de vós preferem ver
um homem morrer sem um gemido num conflito do que uma
mulher a fazer amor aos gemidos à luz do dia. No dia em que
tiverdes coragem, experienciareis um mundo no qual fazer
amor é melhor do que fazer a guerra e nesse dia, rejubilareis.
– respondeu o profeta. Leandro pediu a palavra.
– Mestre. Fale-nos do Poder e da Força. São parte de
todos nós ou são atribuídos apenas a alguns, por vontade do
Destino? – O Alquimista respirou fundo, antes de lhe res-
ponder.
– Aquilo que vós chamais de Destino, eu chamo Cons-
ciência Colectiva. A consciência do mundo, de que fazem
parte todos os pensamentos. Em relação ao Poder e à For-
ça, quero elucidar-vos com uma pequena lição de História.
Há milhares de anos atrás, este planeta foi governado por
mulheres. Era uma sociedade Matriarcal; um Matriarcado
onde as mulheres detinham todas as posições políticas, reli-
giosas, económicas, na ciência, no ensino e na cura; gerindo
tudo, segundo as suas emoções. Os homens não detinham
qualquer tipo de poder. Serviam apenas para fazer os traba-
lhos pesados e fertilizar as mulheres – um tanto semelhante
às formigas. Foram precisos centenas de anos para que eles
criassem um lugar maior no tecido social. Decorreram sé-
culos até que passassem a ser autorizados a participar nas
reuniões de negócios dos clãs, até terem voz ou voto nas
decisões da comunidade. Isto porque as mulheres não os
consideravam suficientemente inteligentes para compreen-
derem esses assuntos. Por isso os homens criaram um álibi
sob a forma de um ente imaginário, destinado a reprimir as
emoções femininas e todo o seu poder: Satanás. O mais im-
portante na vida não é o Poder mas a Força. É na unidade
que a força interior existe e na separação que desaparece.
Todos vocês vivem há demasiado tempo numa prisão inte-

251
Tiago Moita

rior, criada à vossa imagem e semelhança. Aprisionaram e


reprimiram as cinco emoções naturais, transformando-as em
antinaturais a ponto de trazer infelicidade, morte e destrui-
ção para o mundo. O Poder provém da força interior e não
o contrário! Poder sem força interior é uma mentira e força
interior sem unidade é uma ilusão! Eliminai o dilema que
vos separa; acabai com a ilusão da separação e regressareis
à fonte da vossa força interior. Foi essa mentira da separação
de Deus, uns dos outros, que deu origem ao sofrimento e a
todas as guerras. Agi como se não estivésseis separados, de
nada nem de ninguém, e salvareis o vosso mundo amanhã.
Por isso é que Hisler foi para o céu. Enquanto não entender-
des isso, não entendereis Deus.
Uma onda de indignação sacudiu as mentes de todos
os presentes naquele lugar. Nem os discípulos conseguiam
manter-se em silêncio.
– Será que ouvi bem... Hisler... .esse tirano e genocida
de massas... foi para o Céu? – perguntou Leandro, perplexo.
– Porquê?
O Alquimista conteve-se com prudência, antes de res-
ponder.
– Todos os acontecimentos, todas as oportunida-
des, têm como propósito a criação de possibilidades. É
o que pensamos e fazemos em relação a eles que lhes dá
significado. Toda a experiência é fruto da consciência. Ex-
periências e desenvolvimentos planetários mais comple-
xos são o resultado da consciência de grupo que pode ser
influenciada por grupos mais pequenos até acabar em toda
a espécie humana. Ora, quando uma consciência de grupo
fala, constantemente, de superioridade e separação, produz
uma perda maciça de compaixão e, fatalmente, uma perda
de consciência. Hisler aproveitou o momento histórico, não
o criou. Hisler não vos foi enviado. Foi criado pela vossa
consciência colectiva e não podia ter existido sem ela. O

252
O Evangelho do Alquimista

horror da experiência de Hisler não foi tê-la perpetrado con-


tra a raça humana, mas o facto da raça humana lho ter permi-
tido. Esse é que foi o propósito da sua experiência: mostrar a
Humanidade tal como ela é.
A confusão caminhava de mãos dadas com o espanto.
Leandro repetiu a pergunta ao profeta. Sem hesitar, respon-
deu.
– Hisler foi para o Céu porque não fez nada de “er-
rado”. Hisler fez simplesmente o que fez. Durante anos,
milhares de pessoas acharam que ele estava “certo”. Hisler
julgava que estava a fazer bem ao seu povo e o seu povo
também pensava assim. Essa é que foi a loucura: a maior
parte da sua nação concordou com ele! Há séculos que vós
condenais o Pecado Original de Adão e Eva, mas eu digo-
-vos: foi a Dádiva original! Sem esse acontecimento, a parti-
lha do conhecimento do Bem e do Mal não existia, porque as
possibilidades não existiam. Por isso é que tudo era Paraíso!
O problema é que vós não podíeis experienciar, com per-
feição, nada porque não conhecíeis mais nada. Por isso vos
pergunto: irão condenar Adão e Eva ou agradecer-lhes? E o
que dirão agora de Hisler?
O choque deu lugar à emoção mal o profeta acabou o
seu sermão. Foi como se toda a Humanidade em uníssono se
esvaísse em arrependimento, por séculos de inconsciência e
sofrimento sem sentido. Tal como no Templo de Nabot, as
pessoas abraçaram-se e pediram perdão a si próprias. Antes
de pedir a todos os presentes que dessem as mãos e meditas-
sem com ele, afirmou.
– O Amor, a Sabedoria, a Compaixão, a Intenção, o
Perdão e o Propósito de Deus são suficientemente amplos
para incluírem o crime mais hediondo e o criminoso mais
ignóbil.
Assim pregava o Alquimista.

253
CINQUENTA E UM
Não se via vivalma na rua naquela noite em Disto-
pia. A noite presenteara a cidade com uma pequena amostra
do dilúvio bíblico. Apenas em alguns bairros, era possível
encontrar alguns transeuntes, fugindo da fúria do tempo.
Os transportes públicos iam cheios, tal como o estado de
espírito das pessoas que saíam do trabalho e só desejavam
regressar rapidamente ao conforto dos lares. Só as povoa-
ções remotas e vizinhas do Grande Deserto viam este ce-
nário como uma bênção. O que para uns é um inferno, para
outros é um paraíso.
Uma limusina chegava à entrada do pátio principal do
Palácio da Montanha Mágica. Alpha e Ómega apressavam-
-se a abrir a porta da viatura. Sem lhes dar tempo para tal,
a porta abriu-se abruptamente, sem a sua desajeitada ajuda,
seguido de um guarda-chuva preto aberto e da silhueta do
homem que Zarat mais desejava ver naquele momento.
Ptolomeu e Metello acompanhavam Salomão até ao
gabinete do senhor de Distopia. O som dos passos dos três
homens, seguido do barulho das botas e dos gestos de con-
tinência dos soldados da Guarda Zaratista, abafavam o som
da chuva que se fazia sentir no exterior do palácio: Para-
ram.

255
Tiago Moita

Ptolomeu anunciou Salomão a Zarat. Metello, Alpha


e Ómega foram os últimos a entrar. Os dois esbirros do se-
nhor da cidade e do planeta fecharam a porta vagarosamente
como a queda de uma folha. Entre, ordenou a voz do outro
lado da porta. Um ranger suave rasgou o silêncio do gabine-
te onde Zarat acabava de assinar alguns documentos. Antes,
o penejar da caneta do Mestre dos Mestres sobre o papel ou
o teclar no seu portátil eram os únicos sons daquela divisão.
Assinado o último documento, Zarat olhou para o cientista e
perguntou-lhe por novidades sobre o projecto VHCruz, com
um olhar inquisidor.
As palavras de Salomão saíam da sua boca entrecorta-
das. O projecto está na recta final, senhor. – respondeu com
o coração nas mãos. – A minha equipa conseguiu resolver os
problemas técnicos mais complexos do aparelho. Dentro de
semanas faremos a última experiência. Óptimo! Finalmente
uma boa notícia, depois dos últimos tumultos que se têm
registado nas vilas e aldeias do planeta. Desde que apareceu
esse maldito profeta, temos assistido ao êxodo de popula-
ções inteiras para o encontrarem; isto sem falar nestas es-
tranhas alterações climáticas; nunca vi chuva tão intensa em
Distopia como hoje. Que pensa sobre isto, perguntou Zarat,
levantando-se da cadeira em direcção ao cientista.
Salomão começou a sentir uma espécie de tontura,
mal o senhor de Distopia proferiu as últimas palavras. En-
tretanto, no Grande Deserto, O Alquimista entrava numa es-
pécie de transe mediúnico e penetrava na mente do cientista,
como se quisesse transmitir uma mensagem, não só para os
seus discípulos e seguidores, mas também para Zarat e o seu
núcleo duro, sobre o significado da sua segunda profecia:
contacto.
Salomão e o profeta começaram a falar a uma só voz.
Todo o comportamento da Humanidade mudou repentina-
mente desde o eclipse solar que ocorrera há treze anos, no

256
O Evangelho do Alquimista

dia 11 de Agosto. No mesmo dia em que um anel de fogo


recortara o céu, tal como anunciara a profecia do Oráculo do
Destino. Foi um fenómeno sem precedentes na História do
Universo porque o alinhamento galáctico, que se verificou,
formou uma cruz cósmica com o centro do nosso planeta e
em quase todos os planetas da nossa galáxia, responderam.
E continuaram. Desde esse dia, o nosso sol passou a
produzir mudanças físicas e psicológicas nos seres huma-
nos, alterando o comportamento deles e a sua forma de pen-
sar e sentir; a energia recebida do centro da galáxia aumen-
tou cada vez mais e acelerou a vibração em todo o universo,
conduzindo o Homem a uma maior perfeição.
Serão transformadas todas as relações e formas de co-
municação, assim como os sistemas económicos, sociais de
ordem e justiça. Serão alteradas as convicções religiosas e os
valores que aceitamos hoje; o ser humano irá confrontar-se
com os seus medos e angústias e terá de escolher um de dois
caminhos: ou perde o controlo das suas emoções ou entende
o seu lado negativo e as consequências das suas atitudes.
A escolha do segundo caminho será uma decisão to-
mada pela consciência colectiva dos povos de todos os pla-
netas da nossa galáxia. Esse será o primeiro passo para a
transformação e unificação que levará à prevalência do Bem
e da Paz interior. Sucederão acontecimentos que nos sepa-
ram, mas também que nos unem. A instabilidade emocional,
o medo, a agressão, o ódio, a crise na família, os confron-
tos ideológicos, religião e modelos de moralidade vão estar
ao rubro; céu e inferno manifestar-se-ão ao mesmo tempo e
cada ser humano aceitará ou rejeitará as suas crenças: uns
revelarão mais sabedoria; outros, mais ignorância. Dessas
manifestações, aparecerão pessoas, capazes de encontrar a
paz e aprender a controlar as suas emoções.
Haverá mais respeito, tolerância e compreensão; mais
compaixão, amor e sentimentos de unidade. Haverá momen-

257
Tiago Moita

tos difíceis, mas muitos conservarão a serenidade e a har-


monia, compreendendo o que irá suceder; outros revelarão
medo e frustração, culpando Deus por aquilo que julgam ser
o triunfo da morte e do sofrimento sobre o mundo. Todavia,
tudo isso originará uma onda de solidariedade, respeito pelo
seu semelhante e de unidade para com o nosso planeta e o
cosmos.
Surgirão seres humanos com um nível de evolução
muito elevado. Aparecerão pessoas com sensibilidade e po-
deres intuitivos para a salvação e, ao mesmo tempo, falsos
santos e falsos profetas, que pretenderão apenas obter lucro
económico à custa do desespero dos outros.
Nessa época, todas as opções estarão disponíveis e
praticamente não haverá censura de nenhuma espécie. To-
dos agirão de acordo com as leis universais e poderão ma-
nifestar-se livremente. Assim, se a Humanidade conseguir
transcender as suas limitações, sintonizando-se com as no-
vas energias, muitas mudanças drásticas, descritas em pro-
fecias futuras, serão anuladas, responderam Salomão e o
Alquimista, em uníssono.
Salomão quase se desequilibrou quando despertou do
transe a que tinha sido sujeito. Não se lembrava de nada e
perguntou a Zarat qual tinha sido a sua última pergunta.
Todos os receptores da segunda profecia do Alquimis-
ta reagiram de diferentes maneiras: Os discípulos e seguido-
res com emoção e complacência; Zarat e o seu núcleo duro,
com estupefacção.
Ninguém proferira uma palavra. O silêncio era agora
uma cortina de gelo, impossível de trespassar com o pensa-
mento mais oculto das entranhas da mente.

258
CINQUENTA E DOIS
A limusina oficial de Saul Rabel atravessava o Bairro
Cornucópia como um golfinho no mar. O fumo do charuto
cubano, com que se deleitava no banco de trás da sua viatura, e
a forma como demorava a olhar para as horas no seu relógio de
bolso – banhado a ouro – com um sorriso complacente, revela-
vam um estado de júbilo e serenidade, como se tivesse vindo de
um evento desportivo com um troféu ou vitorioso de um campo
de batalha.
A noite estava tranquila. Nem uma nuvem no céu nem
um vento mais aziago, capaz de perturbar os espíritos mais
pios, retratavam o estado de espírito do chefe dos Averos. Du-
rante a viagem, costumava pegar na primeira moeda de ouro
que o seu antigo patrão lhe oferecera, como lembrança, antes de
morrer, relembrando, ocasionalmente, as suas últimas palavras.
As mesmas que tinha proferido, quando Saul, então secretário
principal do velho decano do mundo da alta finança de Disto-
pia, lhe perguntara qual tinha sido o segredo do seu sucesso.
“Quero que fixe um objectivo tão ambicioso que, se vier
a atingi-lo, ficará em estado de choque, e saberá que isso acon-
teceu por causa daquilo que lhe ensinei.”
Tal como a memória dos tempos, frases como aquelas
ressoavam na sua mente como um mantra tibetano. Saul não

259
Tiago Moita

só ascendera profissionalmente na empresa, como se forma-


ra em Economia, – mais tarde, em Gestão de Empresas –,
com tudo pago pelo patrão. Lembrava-se ainda do dia do
funeral do empresário e da abertura do seu testamento, que
o tornara herdeiro de uma das suas empresas de transportes
colectivos: essa mesma empresa que Saul viera a transfor-
mar num gigantesco império, espalhado por todo o planeta.
Com uma lágrima sentida, voltou a guardar a moeda na sua
carteira de pele de crocodilo.
A embriaguez das memórias passara abruptamente da
mente do chefe dos Averos com o crocitar de um corvo, mal
chegara à sua residência. Saul lembrava-se do trauma que
tivera em criança, quando visitara – e profanara – um cemi-
tério crístico, e um dos corvos daquela necrópole atacara um
dos comparsas e lhe arrancara os olhos com o bico. Saul sua-
va com a emersão daquela recordação acre, enquanto fazia
girar, segundo os ponteiros do relógio, um anel misterioso
brasonado, oferecido por um maçon.
Em casa, ouviu um barulho intermitente e sacou de
uma pequena pistola do bolso do casaco. Era o seu telemó-
vel que tocava. Os nervos tinham feito com que se esque-
cesse, por momentos, dos ruídos mais familiares. Era a sua
mulher, lembrando-lhe a aquisição dos bilhetes para a ópera
“La Bohème”, de Puccini. No escritório do seu palácio, reu-
niu-se com os principais empresários do Bairro Avero, que
constituíam o seu núcleo duro e governo autónomo do Bair-
ro Cornucópia. Saul cumprimentou-os a todos e, ao mesmo
tempo, assinou um despacho, entregue pelo seu secretário,
com a sua caneta dourada. Após a saída do funcionário, deu
início à ordem de trabalhos. Durante uma hora, o chefe dos
Averos relatou tudo o que tinha ficado decidido na última
reunião do Conselho Magno de Distopia. Os magnatas atri-
buíram-lhe um voto de confiança para cumprir a missão de
Zarat, proposta por Ptolomeu, no fim da reunião.

260
O Evangelho do Alquimista

Só a sua esposa se deixou encantar pela ópera do cé-


lebre compositor italiano. Saul contava, discretamente, os
minutos que faltavam para acabar o espectáculo e sair do
teatro. Mal deixou a mulher em casa, ligou o seu GPS e saiu,
sorrateiramente, de Distopia, sem avisar ninguém.
O tempo começava a contar. Era tudo o que lhe res-
tava.

261
CINQUENTA E TRÊS
A meditação feita pelo Alquimista, em conjunto com
os seus discípulos e o povo que o seguia, terminara com
um enorme burburinho. Era de mais. As perguntas tinham o
mesmo peso das respostas que o Profeta dera a todas aque-
las almas. As últimas revelações e profecias causaram ver-
dadeiros abalos sísmicos no pensamento e no coração de
cada uma das pessoas que o seguiam. Apenas os discípulos
mantinham controlo das suas emoções, perante tanta infor-
mação. Adriano tomou a palavra e questionou o Alquimista
sobre o conceito de Espaço.
Complacente e sempre sorridente, o profeta respon-
deu. O espaço é o tempo revelado. Tudo é qualquer coisa.
Não existe espaço puro. Vazio sem nada. Mesmo o espaço
mais vazio está repleto de vapores tão subtis, tão estendidos
sobre áreas infinitas, que parecem não existir. Depois, há ain-
da energia pura que se manifesta como vibrações, oscilações
e movimentos do Todo numa frequência específica. Aquilo
que vocês chamam matéria é, na sua extensão, espaço.
Isso significa que o universo... era sólido, perguntou
Gustavo. Sim. No princípio o universo era sólido porque
não havia espaço algum entre as partículas da matéria. Lem-
brem-se que todos os objectos sólidos são constituídos por

263
Tiago Moita

2% de matéria sólida e 98% de matéria gasosa. Deus – ou


seja, energia pura ou matéria negra, se preferirem – vibrava,
tão depressa que criou a matéria – toda a matéria do univer-
so. Tudo isso aconteceu no tempo anterior ao tempo, respon-
deu o profeta.
Tempo... anterior ao tempo. Não entendo, exclamou
Rodrigo. Exactamente! Tempo anterior ao tempo, quer di-
zer, quando não existia matéria alguma. Apenas a forma
mais pura de Energia de Vibração Suprema, ou antimatéria.
Algumas pessoas descrevem isso como Paraíso, ou Céu,
porque nada acontecia, respondeu o sábio.
E continuou. Tentem compreender que tudo o que se
passa na vida é cíclico e o universo não é excepção; tanto se
expande como se contraí. O caos dá sempre lugar à ordem,
e vice-versa, porque as energias que impeliram a expansão
se esvairão e as energias que conservam as coisas juntas as
permutarão, voltando a unir toda a matéria. Aquilo que co-
meçou com Deus voltará novamente a Ele. Essa é a origem
da frase “Tudo se resume a isso”.
Tanto os seguidores como os discípulos ouviam o sá-
bio, atentamente, sem proferir uma palavra.
E prosseguiu. Compreender a vida do universo aju-
dar-vos-á a entender a vida do universo que habita em vós.
Para tudo, há uma época e um momento para todo o sentido
sob o céu, respondeu, virando-se, ao mesmo tempo, para as
mulheres presentes no grupo.
Poucas pessoas compreendem melhor os ritmos da
vida do que as mulheres. Elas vivem toda a sua vida pelo
ritmo. Os homens querem puxar, empurrar, resistir e coman-
dar o curso; as mulheres experienciam-no, e adaptam-se a
ele para gerar harmonia. A mulher ouve a sinfonia das flores
ao vento; vê a beleza no invisível; sente os impulsos da vida;
sabe quando é tempo para repousar e para correr; tempo para
rir e para chorar; tempo para refrear e para deixar ir, respon-

264
O Evangelho do Alquimista

deu, observando um sorriso, de orelha em orelha, em todas


as mulheres e um rosto crispado em todos os homens.
Sagaz e próvido com as suas palavras, afirmou. Uma
mulher não é melhor nem pior do que um homem e vice-ver-
sa. Podem ser tudo aquilo que desejam ser e escolher o que
querem experienciar. Existe um lado masculino e feminino
em cada um de vós. Tudo está aberto em cada um de vós.
Basta apenas realçar o aspecto que mais vos agrada exprimir
e experienciar.
E o nosso Planeta, interveio Constantino, o que lhe
acontecerá nos próximos tempos? O Alquimista olhou-o de
soslaio e respondeu.
Todas as possibilidades da vida já existem e já ocor-
reram. O vosso planeta está a mudar como uma cobra que,
sazonalmente, muda de pele. Também o vosso mundo está a
mudar de pele neste preciso momento, dando-vos a oportu-
nidade de escolherdes a experiência que quereis experimen-
tar. Voltai-vos para o vosso âmago! Procurai o vosso lugar
de sabedoria interior. Vede o que pedis e depois, fazei-o!
Celebrai o Eu! Celebrai a Vida! Celebrai as predições! Ce-
lebrai o jogo! Celebrai Deus! Trazei alegria ao momento,
independentemente do que ele vos possa trazer, porque a
alegria é Quem Vós Sois e Quem Vós Sempre Sereis. Cele-
brai a perfeição! Sorri e vereis que, aquilo que vós apelidais
de imperfeição, não vos atingirá nunca, concluiu o profeta.
Um minuto depois, interveio Dario. Mestre. Sei que
neste mundo existem pessoas dotadas de poderes psíquicos
e de mediunidade. Esses poderes estão ao alcance de todos
ou apenas de alguns, perguntou.
O Alquimista respirou fundo, antes de lhe responder.
Aquilo a que vós chamais de poder psíquico nada mais é do
que o sexto sentido, o vosso sexto sentido. Trata-se de uma
capacidade de passar da vossa experiência limitada para uma
perspectiva mais ampla; ser capaz de ir buscar uma verdade

265
Tiago Moita

maior do que aquela que vos rodeia; sentir uma energia dife-
rente. Esse poder é acessível a qualquer ser humano, desde
que esse ser humano obedeça a três regras fundamentais:
todo o pensamento é energia; todas as coisas estão em movi-
mento e todo o tempo é agora.
Os médiuns são pessoas que se abriram às experiên-
cias produzidas por esses fenómenos concebidos por vibra-
ções cósmicas. Umas, formadas por imagens mentais; ou-
tras, por pensamentos sob a forma de palavras. Um médium
é um perito em sentir essas energias que reconhece a sua
subtileza, sem perguntar se certa imagem, som ou brisa es-
tavam lá mesmo. As perguntas ocupam a mente e afastam as
respostas.
Ao contrário do que alguns de vós possam pensar, a
intuição não reside na mente. A intuição é o ouvido da alma
porque a alma é o único instrumento suficientemente sen-
sível para alcançar as mais débeis vibrações da vida, sentir
essas energias, aperceber-se dessas ondas no campo mag-
nético e saber interpretá-las. O tempo é algo que não existe
para um médium, pois ele vê, ou sente, a imagem do ama-
nhã como se estivesse a acontecer agora mesmo. Daí a sua
idoneidade em “prever o futuro”.
Um grande silêncio seguiu-se depois desta interven-
ção. Todos os presentes fecharam os olhos e voltaram a me-
ditar. Subitamente, o profeta revelou mais uma epifania.
A violência e a insegurança acabarão quando expe-
rienciarmos uma ligação mais profunda com a energia di-
vina que existe dentro de vós. Uma aliança relatada pelos
místicos de todas as tradições. Uma sensação permanente
de Amor e uma noção de leveza – de estar a flutuar – são as
medidas dessa aliança. Se esses elementos estiverem pre-
sentes, a ligação é verdadeira. Se não estiverem, é apenas
uma ilusão.
Assim pregava o Alquimista.

266
CINQUENTA E QUATRO
Ainda tinha tempo para um pouco de saudade. Simo-
ne Dumonde passara o dia inteiro a percorrer o Palácio da
Orquídea Negra memorando retratos, bustos de cera e már-
more e álbuns de fotografias antigos. Resolvera marcar um
dia para a memória e rodear-se de todos os objectos que ali-
mentassem de fantasia a sua alma. Precisava de algo para rir
ou para chorar que não fosse a realidade. Não, a realidade
nunca! A realidade é a suprema opressora do sonho e da
ilusão; sanguessuga de energias cósmicas, capaz de fazer
desaparecer o significado da existência humana, pensava
Simone, enquanto meditava sobre os retratos a preto e bran-
co – alguns a cores – dos álbuns de fotografias da sua vida.
Num deles, vislumbrou a visita a uma praia – no tem-
po em que o mundo possuía oceanos, mares e rios onde to-
dos podiam banhar-se e beber na mais pura fonte, mitigando
a sede, e prova da existência de vida no planeta – recordando
a invídia que tinha dos barcos e dos marinheiros. Não era a
inveja da chegada mas a inveja da partida: idealizava via-
gens para uma aventura, fosse ela um salto no abismo ou a
descoberta de um mundo novo; uma necessidade de desapa-
recer e de agitação que nunca poderia encontrar nas quatro
paredes da casa da sua família.

267
Tiago Moita

Quando recordava a irmã, Liliane, vinham-lhe à me-


mória as brincadeiras que tinham feito juntas e o momento
em que pensou ser actriz, quando se mascaravam, uma de
bailarina, e a irmã de palhaço. A irmã começava a transfor-
mar tudo o que via em pintura, tanto no papel como nas
paredes. Simone começou a coleccionar palavras que retra-
tavam melhor o seu estado de espírito nos dicionários que
consultava – amigos e companheiros fiéis, como o resto dos
livros que recebera da mãe; mudos para o mundo, mas não
para o seu coração.
Ambas as irmãs conservavam um sentido de humor
muito peculiar. Como tendiam para a boa disposição, viam
nessa maneira de ser mais uma forma de fazer rir, tanto
no palco como na vida. De olhos fechados, imaginava-se
a entrar em cena, como uma louca, e a gritar no primeiro
silêncio; ser o centro das atenções com as suas palavras e
palhaçadas e a encarnar uma princesa sem príncipe encanta-
do. Simone acreditava perdidamente no amor, mas não con-
seguia encontrar as palavras certas no momento em que o
amor lhe batia à porta.
Houve tempos em que acreditava em tudo o que lhe
diziam e respondia da mesma maneira. Era, segundo a che-
fe dos Dúbios, uma forma de relação mais íntima com o
absurdo e com a poesia. Todavia, não partilhava, no princí-
pio, a sua poesia nem o seu pensamento. Gostava de deixar
espaços abertos, como o silêncio de um abismo, no meio
desse protocolo ridículo entre a linguagem e o pensamento,
para afirmar que ambos eram praticamente impartilháveis,
tal como a sua vida e a realidade, que rejeitava como quem
rejeita uma mentira.
Numa das fotos, recordou o tempo em que desejara ter
um filho com Léon, para preencher o espaço onde julgava
ter perdido a sua criança interior. Não queria deixar de ser
uma ilha isolada no oceano para abraçar o amor, o único

268
O Evangelho do Alquimista

mar que o seu antigo companheiro lhe mostrara e dentro do


qual ela própria jurara viver, mesmo depois da sua morte.
Num dos livros da sua biblioteca, encontrou uma fotografia
sua com Metello, enquanto amantes. Quando Léon morreu,
julgou regressar a esse mar com o actual chefe da Guarda
Zaratista. Nem o aroma das ondas sentia nos momentos de
prazer.
Três toques secos na porta do quarto de Simone fi-
zeram-na despertar das suas recordações. Do outro lado, o
jovem mordomo anunciava a chegada de todos os membros
do governo autónomo do Bairro Anguscious. A notícia fê-la
dissimular o seu aborrecimento e repor a sua postura nor-
mal. Diga-lhes que vou a caminho, ordenou séria e seca. O
jovem assentiu, fechando a porta com a mesma perseverança
e serenidade com que entrara. Logo após a saída do mordo-
mo, apressou-se a guardar os álbuns, onde mantinha frescas
as memórias e a saudade de um passado, que nunca mais
iria repetir.
Na reunião, Simone relatou tudo o que acontecera na
última reunião do Conselho Magno de Distopia, inclusive a
aceitação da proposta de Ptolomeu. Os membros do governo
Dúbio mantinham reservas quanto à proposta do principal
conselheiro de Zarat e a escolha da sua líder para uma mis-
são tão arriscada, quando ela seria muito mais importante
junto do seu povo. Por outro lado, desafiar uma decisão de
Zarat era o mesmo que pôr em risco a própria vida. Final-
mente, foram a votos: a maioria votou a favor da proposta
aprovada na reunião do Conselho. Apenas três pessoas se
abstiveram. A sensatez triunfara sobre a autonomia.
Simone não teve outra alternativa senão aceitar a mis-
são que lhe fora destinada. Mal os membros do governo do
bairro abandonaram a residência, a líder dos Dúbios abando-
nou o palácio e partiu para fora de Distopia, rumo ao destino
que lhe tinha sido imposto.

269
Tiago Moita

Do escritório de um dos postos fronteiriços da cidade,


Metello, sem pronunciar uma palavra, observava a partida
da sua antiga amante.
O dever falara mais alto do que o sentimento.

270
CINQUENTA E CINCO
Nunca tinham sentido tamanha sensação de leveza e
de clarividência como aquela. Os seguidores e discípulos do
Alquimista tinham sido convidados pelo profeta a subirem
uma montanha e a deixarem abrir a alma à energia do seu
Eu Superior. No pico mais alto, fecharam os olhos e deram
as mãos, terminando com uma respiração compassada e pro-
funda; adormeceram a mente, para apurarem todos os senti-
dos e experimentarem a grandeza do Universo e a inegável
unidade do Ser para com Deus, alcançando estados mais
profundos e invulgares de consciência. Subitamente, numa
harmonia com o Todo – como se o planeta, o sol e o céu fi-
zessem parte dos seus próprios corpos –, presenciaram toda
a história da evolução; desde a matéria a revelar formas cada
vez mais complicadas, até criar as condições mais simples
para que cada ser humano, enquanto indivíduo, aparecesse.
Naquele instante, sentiram-se invisíveis aos olhos do mundo
que os perseguia. Foi como se estivessem sentados no rega-
ço de Deus.
O dia desvanecia-se no horizonte. O Alquimista e o
seu povo tinham chegado à aldeia de Azgot. O estado de
espírito jubiloso do profeta, dos seus seguidores e discípu-
los, contrastava com o ambiente vivido naquela povoação.

271
Tiago Moita

Um funeral ocorria naquele lugar e toda uma população,


carpideira e lúgubre, acompanhava, numa procissão lenta e
compassada, o caixão do defunto para o cemitério local. A
passagem daquela imagem de dor e tristeza enfraquecera a
energia dos forasteiros, depois da última experiência passa-
da, deixando-os estáticos e reverentes, por respeito à partida
daquele ser humano do mundo dos vivos.
Constantino aproveitou o momento para se aproximar
de Dario. A tua fé não te adiantou de nada, murmurou o pa-
dre ao ouvido do sapateiro. Que dizes, perguntou. Disse que
não te adiantou nada teres deixado a fé crística para abraça-
res o Paganismo. Alguma vez essa decisão acabou com o teu
remorso por não teres conseguido salvar os teus pais, inqui-
riu Constantino. Dario voltou-se para ele, furioso, prestes a
dar um valente sermão, seguido de uma valente sova, àquela
figura eclesiástica. O olhar penetrante do padre amorteceu o
seu intuito: o silêncio e a fuga para junto dos seus colegas
foram as suas únicas respostas.
O pranto era um paradigma da condição económica
e social daquela aldeia, contrastando com diversos estados
de espírito dos aldeões, participantes no funeral. Se, para
uns, a morte daquele conterrâneo era uma perda irreparável
e sentida; para outros, era um alívio. Durante aquela marcha
soturna, Rodrigo aproximou-se do profeta e perguntou-lhe o
que pensava acerca da morte.
Sagaz e compreensivo, o Alquimista, pegou numa pe-
dra que encontrou à sua frente e respondeu.
Era uma vez uma pedra, repleta de inúmeros átomos e
partículas subatómicas, como qualquer outro tipo de maté-
ria. Dentro da pedra, essas partículas moviam-se a uma ve-
locidade contínua e vertiginosa, seguindo um certo padrão:
cada partícula ia “daqui” para “ali”, e levando “tempo” a
fazê-lo, de forma tão rápida que a pedra não sentia em si
qualquer tipo de movimento. Limitava-se a estar, ali, beben-

272
O Evangelho do Alquimista

do o sol e absorvendo a chuva, sem se movimentar. O que


é isto que sinto dentro de mim, perguntou a pedra. És tu,
perguntou uma voz de nenhures. Eu, exclamou a pedra,
confusa, como é que é possível se nem me estou a mexer?
Qualquer ser vivo vê isso! Sim, respondeu a voz, aqui, de
longe, pareces mesmo sólida e imóvel; mas, quando me
aproximo e olho muito de perto para o que está a aconte-
cer, vejo que tudo o que constitui O Que Tu És a mover-
-se a uma velocidade impressionante, através do tempo e
do espaço, num padrão específico que Te cria, como uma
coisa chamada pedra. Por isso, moves-te e não te moves
ao mesmo tempo.
A pedra continuava confusa. Mas qual é a ilusão? A
unidade, a minha imobilidade ou a separabilidade e o mo-
vimento das partes, perguntou. E a voz respondeu. Qual é
então a ilusão? A unidade e a imobilidade de Deus? Ou a
separabilidade e o movimento das suas partes?
E por isso vos digo: Sobre esta pedra, edificarei a
minha espiritualidade. Porque é a Pedra dos Tempos. Esta
é a verdade eterna que tudo revela. Esta é a Cosmologia.
Mas, o que é que essa parábola tem a ver com a
morte, exclamou Rodrigo, intrigado.
O Alquimista respondeu, com o mesmo semblante
angelical e eloquente.
Quando morres não deixas de criar porque a tua
vida vai muito para além do teu corpo. O corpo é uma
extensão da vida mas não a vida no seu Todo. Quando
os vossos corpos morrem, as vossas almas monitorizam
e controlam os pensamentos com muita cautela, porque
sabem que aquilo que pensamos é igual a tudo aquilo
que criamos e experienciamos. No princípio, essa ligação
instantânea, entre os vossos pensamentos e as vossas cria-
ções, será uma surpresa chocante para todos vós. Mais
tarde, acabará por ser muito agradável quando vocês co-

273
Tiago Moita

meçarem a recordar que são a causa da criação da vossa


experiência e não o seu efeito, respondeu.
E continuou. Depois da morte, poderão optar por ob-
ter respostas a todas as perguntas que sempre quiseram colo-
car e terão a oportunidade de decidir o que querem ser e ter
a seguir, na próxima vida.
Isso significa que a reencarnação existe, perguntou
Rodrigo, atónito. E o profeta respondeu. Sempre que as vos-
sas almas decidirem voltar ao mundo terreno com o único
desejo de conhecer a verdade de Tudo O Que É; compreen-
der os grandes mistérios e experienciar uma realidade mais
grandiosa e sublime, nem Deus nem o Universo poderão in-
terferir, pois elas possuem o mais poderoso poder alguma
vez criado por ambos: o Livre-Arbítrio.
Subitamente, as pessoas que estavam no funeral e
ouviram aquelas palavras, começaram a despir o luto dos
rostos e das vestes e a celebrar, com cânticos e danças de
alegria e gratidão, a partida do defunto para a outra vida.
Já não sentiam perda nenhuma por alguém que continua-
va vivo nos seus corações. Estupefacto e, ao mesmo tempo,
chocado, Constantino correu para junto do Alquimista, com
um pedido atravessado na garganta.
– Mestre. Fale-nos mais acerca de Deus.

274
CINQUENTA E SEIS
Não escolhera melhor momento para meditar do que
aquele; dentro de uma banheira de mármore, cheia de água e
sais e pétalas de rosa, para apaziguar o corpo e os pensamen-
tos do dia. Faltava pouco menos de uma hora para se reunir
com o governo autónomo do Bairro Extasis e precisava de
todo o relaxamento possível para falar com os seus conse-
lheiros e membros do governo Niilisteu, sobretudo o que
tinha sido decidido na última reunião do Conselho Magno
de Distopia. Por momentos, sorria para dentro e imaginava
a cara das pessoas, que escolhera para formar governo e lhe
darem conselhos importantes, quando lhes dissesse que ti-
nha sido aprovada a proposta de um novo elemento, externo
ao Conselho.
Só quem conhecesse o que Faustus fizera durante o
dia podia compreender todo aquele relaxamento, digno de
um príncipe. Durante toda a tarde, encenara e representara
todo o seu discurso ao som de trechos de ópera de Wagner,
tal como Hitler fazia, antes dos seus comícios, deixando-o
desgastado fisicamente e a suar como um animal com cio.
Mal terminou o seu ensaio e discurso, ligou a televi-
são e começou a fazer zapping pelos mais de trezentos ca-
nais por cabo que possuía, enquanto comia um hambúrguer

275
Tiago Moita

e bebia um refrigerante. Só telelixo e sarcasmo. Debord


tinha razão, murmurava; o espectáculo é a realização téc-
nica do exílio dos poderes humanos; o fim não é nada; a
realização é tudo; o espectáculo não quer chegar a outra
coisa senão a si mesmo.
Uma hora mais tarde, foi assaltado por outra refle-
xão, quando recebia a visita do seu sobrinho, que vinha
com um novo jogo de vídeo para jogar com ele. Faustus
nunca recusara nada à família, mesmo participar em coi-
sas pelas quais nutria o maior desprezo. O jogo consistia
em eliminar o máximo de soldados num cenário de guerra.
Enquanto jogava, lembrava-se dos simulacros hiper-reais,
sem qualquer relação com a realidade superficial provisó-
ria, de Baudrillard: um contraste com toda a quantidade de
lixo urbano – que recolhera de todos os bairros de Disto-
pia – para criar as suas obras de arte contemporânea. Tudo
o que fosse lixo para os outros, era kitsch para ele. A arte
lisonjeando-se da desordem e decadência que reinava no
mundo que conhecia, acabando com a experimentação,
dentro e fora dela, por pressão da civilização que tinha sido
construída, como pensava Lyotard.
Depois do banho, Faustus aprumara-se o mais que
podia. Era exímio na escolha dos fatos que vestia e na
água-de-colónia que usava para ocasiões especiais, como
aquela. Durante a reunião com o seu governo, expôs a pro-
posta do principal conselheiro de Zarat, aprovada, sem dis-
cussão, no último Conselho Magno de Distopia. Não foi
difícil perceber a intenção de voto dos membros do gover-
no autónomo dos Niilisteus, tendo em conta a sua devoção
a Zarat, o mestre dos mestres e legítimo herdeiro do men-
tor de toda a filosofia daquele bairro em toda a cidade. A
abstenção fora uma miragem engolida pelo silêncio.
Após a votação, a reunião prosseguia com discus-
sões bizantinas. Zarat aproveitou toda aquela efervescên-

276
O Evangelho do Alquimista

cia e ebulição intelectual para se ausentar da sala, sem avi-


sar ninguém.
Do lado de fora da residência, ouviu-se apenas o ruído
do jeep do senhor de Extasis em direcção ao Grande Deser-
to. O fumo deixado pelo veículo era uma antevisão da incer-
teza do resultado da missão que lhe fora confiada.

277
CINQUENTA E SETE
Vista de cima, parecia um pequeno ponto branco no
meio de uma mancha verde minúscula. A igreja de Pelak
assemelhava-se a uma típica construção cristã, – quando a
palavra crístico não existia –, mandada construir num tempo
olvidado dos manuais de História de Distopia. De perto, era
um edifício religioso em estilo gótico, cuja área não corres-
pondia ao seu interior, bem mais amplo que o de alguma
das mais belas catedrais, erguidas pelos antepassados dos
crísticos, séculos atrás, na fronteira que separava o Grande
Deserto da presença humana ou, o mesmo será dizer, do li-
mite que separava o paraíso do inferno.
Nicole e Nicolau chegaram à paróquia de Pelak antes
do pôr-do-sol. Uma brisa morna vinda do deserto acompa-
nhava o silêncio que se sentia em todo aquele espaço. A ins-
pectora-chefe foi a primeira a sair do carro. Nicolau aban-
donou a viatura um minuto depois. Por fora, não se avistava
a mais simples presença humana. Apenas o chiar do baloiço
de um parque infantil abandonado e o ruído do cata-vento do
campanário da igreja revelavam a presença de construções
humanas. O resto do local estava deserto.
Os dois agentes entraram, sorrateiramente, pela porta
principal daquele edifício religioso e sacaram as armas. A

279
Tiago Moita

beleza arquitectónica do interior da igreja não os deslum-


brou tanto que não se desviaram da missão que tinham en-
tre mãos. Todos os sentidos estavam ao rubro, bem como a
intuição. Cada som, por mais ligeiro que fosse, era motivo
suficiente de alerta para os dois elementos da guarda oficial
de Zarat. Nicolau bateu, sem querer, com uma das canelas
num dos bancos de madeira, obrigando a agente a desviar a
atenção e a mira da arma para ele. Falso alarme. Minutos de-
pois, foram despertados pelo som de uma porta que se abria
abruptamente, libertando uma lufada de ar bolorento de uma
divisão. Sem pensar duas vezes, Nicole e Nicolau dirigiram-se
para aquele compartimento, sem perderem o controlo dos
seus instintos.
O picar no nariz pelo cheiro bafiento das pastas de
arquivo denunciava uma espécie de centro de documentação
ou registo religioso. A abertura brusca da porta derivava de
uma janela daquela divisão, aberta pela fúria do vento. Este
é o lugar perfeito para começarmos a nossa investigação.
Fica atento à porta e à janela, enquanto eu vou pesquisar
o conteúdo destas pastas, ordenou Nicole. Todas, exclamou
o assistente, estupefacto. Algum problema, agente Nicolau,
replicou, com um olhar inquisitório. Nicolau anuiu e fez o
que Nicole lhe ordenara.
A agente começou a vasculhar todas aquelas pastas
durante horas, até o pó se lhe entranhar pelo corpo e narinas.
Procurava todos os registos de crianças nascidas há vinte
e sete anos. Subitamente, Nicole descobriu uma espécie de
fundo falso numa das paredes e pressionara-o. Ao fazê-lo,
abriu uma pequena portinhola, sob a forma de uma pequena
ponte levadiça, soltando uma nuvem de pó – sinal da usura
do tempo – e revelando um velho livro. A agente pegou num
lenço, tapou parte do rosto, de modo a não ser atingida pelos
efeitos daquela inesperada onda de poeira, e agarrou o livro,
carcomido pelos anos: era o diário de Constantino.

280
O Evangelho do Alquimista

Numa das páginas, o clérigo relatava o dia em que


os pais do Alquimista entregaram o profeta ao seu cuidado,
antes de partirem para o Grande Deserto e desaparecerem
dos olhos do mundo. Nesse diário, Nicole encontrou três no-
mes de crianças registadas nesse dia. Nicolau abandonou o
seu posto de vigilância e ajudou-a a tirar notas dos nomes
e datas de nascimento das mesmas. Uma sombra irrompera
pela sala, fazendo com que os agentes se virassem, com as
armas apontadas.
O homem vestia uma sotaina preta e colarinho branco.
Era forte e usava um par de óculos bifocais. O hábito revela-
va a sua condição – algo que não demoveu Nicole e Nicolau
de pedirem a sua identificação.
– Por... por favor! Não disparem! Estamos na casa de
Deus! – respondeu, apavorado, de braços no ar.
– Quem é você? O que faz aqui? – perguntou a agente,
impaciente.
– Chamo-me Mateus e... sou o responsável pela pa-
róquia de Pelak. – respondeu. Os dois agentes baixaram as
armas e mostraram os distintivos. Disseram-lhe ao que vi-
nham e mostraram-lhe o diário do padre Constantino. Quan-
do Nicolau perguntou pelo clérigo que escrevera aquele diá-
rio, o homem pediu que o seguissem.
O local onde Mateus os conduzia era um pequeno ce-
mitério nas traseiras da igreja. O padre parou junto a um
pequeno mausoléu, enegrecido pela voragem do tempo e da
natureza. O que ambos os agentes vislumbraram, deixou-os
ainda mais confusos.
– O Padre Constantino faleceu há três anos.

281
CINQUENTA E OITO
Constantino aguardava, impacientemente, pela res-
posta do Alquimista. Não era a primeira vez que o profeta
era interpelado por idêntica questão. Durante a viagem que
fizera com Samuel e os seus discípulos até àquele local, re-
nascido das cinzas do seu próprio luto, raras eram as vezes
em que não era interpelado pelo mesmo quesito. Não fosse
ele um dos temas mais apaixonantes e abstractos de toda a
História da Humanidade. Uma multidão juntara-se ao padre
e partilhava o seu estado de espírito.
Paciente, o profeta sentou-se numa pedra à beira de
um jardim e começou a falar. Durante séculos, o Homem
conheceu muitas versões acerca do conceito de Deus, sem
nunca o verdadeiramente conhecer. Durante o percurso que
fizestes comigo, mostrei-vos diversas provas sobre a sua
existência. A vossa pergunta não só é legítima como sensa-
ta. É a prova de que estais a comportar-vos como verdadei-
ros sábios. Tornastes-vos na semente que é lançada à terra
e questiona a sua origem, depois de ser planta. Lembrai-vos
de que o verdadeiro Mestre não é o que tem mais alunos,
mas o que cria mais mestres; que o verdadeiro líder não é o
que tem mais seguidores mas o que cria líderes; que o ver-
dadeiro governante não é o que tem mais governados mas

283
Tiago Moita

aquele com que o povo pode contar, pelo exemplo e serie-


dade; que o verdadeiro professor não é o que possui o maior
saber, mas o que faz com que a maioria dos outros o obtenha
e o verdadeiro Deus não é o que tem mais servos mas o que
serve o maior número de pessoas, tornando-as à sua imagem
e semelhança. Eis o propósito da glória de Deus: fazer com
que todos os seus súbditos venham a conhecê-lo, não como
o Inatingível mas como o Inevitável.
Que queres dizer com O Inevitável? Acabaste por não
responder à minha pergunta, interrompeu Constantino. O
Profeta, com um gesto, pediu-lhe um pouco de paciência e
continuou a sua explicação.
Lembram-se quando vos disse que se quiserdes pro-
curar Deus, tereis de encontrá-lo na sua unidade e não na sua
separação? A resposta a esse enigma reside numa célebre
frase do Génesis da Bíblia dos Crísticos quando O Próprio
afirma, e passo a citar: “Eu sou o Alfa e o Ómega”. Preci-
samente porque ele é o Ser Supremo de todos os universos
que compõem a sua criação. É Deus, mas também é Deusa;
o âmago de tudo o que existe; o princípio e o fim. Ele é a
soma e a parcela; a pergunta e a resposta; o alto e o baixo:
a esquerda e a direita; o aqui e o agora; o antes e o depois.
Entendei também que Deus é a Luz, mas também as
trevas que criam a luz e a tornam possível. Ele é a bondade
sem fim e a maldade que torna boa a bondade.
Deus é o Todo de Tudo e não pode experienciar qual-
quer parte do seu Eu sem experienciar o todo do seu Eu.
Para o fazer, Ele precisou de criar algo, feito à sua imagem
e semelhança, a fim de se conhecer experiencialmente como
um Todo Magnífico: vós.
Isso significa que somos ovelhas de Deus, marionetas
ao Seu serviço, perguntou Isauro, intrigado e confuso.
O Alquimista sorriu de novo, antes de responder. Deus
nunca quis fazer de vós marionetas. Se o quisesse, nunca vos

284
O Evangelho do Alquimista

teria concedido o maior poder do universo: o livre-arbítrio.


Contudo, é preciso ter em conta que cada opção é auto-
-criativa e cada escolha é definitiva. No entanto, Deus não
pode optar por ser magnífico se não houver outra coisa para
escolher. Uma parte Dele tem de ser menos magnífica para
que Ele escolha a parte Dele que é magnífica. Deus é Deus
no acto de criar o seu Eu – tal como o homem. É isso que a
vossa alma anseia por fazer. É disso que o vosso espírito tem
sede. Daí o vosso inconformismo; daí a vossa insatisfação,
respondeu.
E continuou. Se Deus impedisse de terdes o que es-
colhestes, estaria a impedir o seu Eu de ter aquilo que Deus
escolheu. Lembrai-vos de que o seu desejo é experienciar o
seu Eu como O Que É – ou seja, o Absoluto – no espaço de
O Que Ele Não É – ou seja, o relativo, o vosso mundo. Por
isso Deus é tudo o que cria e, portanto, ele É o que Ele Não
é. Essa é a dicotomia divina. Observai os vossos comporta-
mentos e vereis, respondeu, sem perder o fôlego, ao mesmo
tempo que bebia um pouco de água do cantil.
Mestre. – perguntou Jordão – Como vive Deus, afinal?
Deus, respondeu o Alquimista, vive na sublimação e o
momento mais sublime de Deus será aquele em que vós en-
tenderdes que não precisais de nenhum Deus. Simplesmente
vivei-lo dentro de vós. Daí o significado daquela frase de
Jesus Cristo, vós sois templos vivos. É por isso que o vosso
destino é inevitável: Não podeis ser salvos. O único inferno
é não o saberdes, concluiu.
Constantino voltou-se novamente para o profeta do
Oráculo do Destino com mais uma pergunta. Se Deus é tudo
isso que afirmaste, qual é a relação entre a vontade de Deus
e a vontade humana?
E o sábio respondeu. Lembras-te da palavra do filho
de Deus da tua religião? Não foi ele que vos disse que Deus
diria aos da sua direita, vinde benditos entre os meus filhos,

285
Tiago Moita

recebereis em herança o Reino que mandei preparar para


vós? Porque tive fome e destes-me de comer; tive sede e
destes-me de beber. Era peregrino e recolhestes-me. Estava
nu e destes-me de vestir; adoeci e tratastes-me; estive na
prisão e fostes ter comigo?
E eles disseram, Senhor, quando foi que Te vimos
com fome e Te demos de comer? Com sede e Te demos de
beber? Peregrino e te recolhemos, ou nu e Te vestimos? Te
vimos doente, ou na prisão, e fomos tratar-te? E Deus, atra-
vés de Jesus, respondeu-lhes, dizendo: Em verdade vos digo
– sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pe-
queninos, a mim mesmo o fizestes. Por isso, nunca ofereçais
o tipo de ajuda que retira capacidade de afirmação; oferecei
a ajuda que é desejada. Esta é a vontade de Deus e do Uni-
verso, e permanece através dos tempos, prosseguiu o profe-
ta. Adriano levantou o braço com uma pergunta debaixo da
língua e perguntou ao Alquimista como poderíamos saber se
existimos se não experienciarmos mais nada.
O profeta esboçou um sorriso e esperou que o tempo
lhe enviasse a resposta adequada. Esse, Adriano, é o dilema
divino. Deus deu-nos – dá sempre a cada instante – uma
parte de Si para que o resto de Deus possa ser conhecido
como Quem É e O Que Realmente É. É o mesmo que dizer
que Deus deu o seu único filho para a nossa salvação, res-
pondeu. Gustavo retorquiu. Então qual é a diferença entre
Salvação e Dádiva?
O profeta não perdeu tempo a responder a esta ques-
tão. Todos vós tendes uma dádiva que a vossa alma anseia
por dar. Ide e dai. Procurai fazer com que todos aqueles, que
se cruzarem no vosso caminho, se sintam dignos. Dai todo o
sentido à vossa dignidade enquanto pessoas e reconhecereis
a verdadeira maravilha de serdes quem sois. Dai a todos essa
dádiva e salvareis o mundo.
Assim pregava o Alquimista.

286
CINQUENTA E NOVE
Como é possível existir alguém incapaz de entender
a linguagem como a fronteira do seu universo? Pergun-
tava Otto Gräss para com os seus botões, enquanto deam-
bulava pelos corredores da biblioteca da faculdade, onde
era reitor, – além de Chefe dos Filingus –, observando
os estudantes que passavam apontamentos de aulas an-
teriores ou copiavam textos de grandes autores clássicos
e contemporâneos, ao mesmo tempo que reflectia sobre
a existência de alguém, como o Alquimista, inábil para
entender esse pensamento tão nobre e racional de Witt-
genstein. A sua meditação fazia com que os gestos do seu
corpo fossem automáticos. De quando em vez, sacava de
uma caneta e punha-se a abrir e a fechar a tampa, vezes
sem conta; outras, pegava num livro.
Naquele instante, mudara de reflexão enquanto ob-
servava uma página de um livro de Montaigne com uma
lupa, em busca de uma transcendência imanente nas pa-
lavras daquela folha. O essencial é invisível aos olhos,
relembrava a velha máxima de Jacques Derrida, durante
a sua pertinente pesquisa. Custava-lhe a aceitar a existên-
cia de um fundamento místico nas palavras do profeta do
Oráculo do Destino, tal como considerava inconcebível

287
Tiago Moita

a impossibilidade de uma lei não poder ser reinventada e


requerer uma interpretação única, elaborada por quem quer
que fosse. Por vezes, emudecia e ficava triste por não obter
respostas às suas perguntas, mas depois, lembrava-se de
Claude Lévi-Strauss quando dizia que o sábio não era o
homem que fornecia as verdadeiras respostas, mas, antes,
o que fazia as verdadeiras perguntas.
Sentia-se melhor com pensamentos eternos como
aquele. Não tinha de se preocupar. Para ele, o pensamento,
tal como a literatura, não permitia caminhar mas antes res-
pirar. Toda a recusa da linguagem era uma morte e pensar
na sua inexistência, um autêntico suicídio do homem. As-
sim pensava Roland Barthes; o Chefe dos Filingus assina-
va por baixo este pensamento.
Olhou para o relógio: faltava um quarto de hora.
Atempadamente, chamou o motorista e dirigiu-se no seu
carro para a sede do governo autónomo do Bairro Dialé-
tica.
Na reunião, Otto falou da proposta de Ptolomeu,
aprovada por Zarat na última reunião do Conselho Magno
de Distopia, aos membros do executivo dos Filingus. No
princípio, hesitaram quanto à argumentação do conselhei-
ro. Para eles, a relação entre a retórica e sintaxe era tão
importante como o discurso em si. Por fim, aprovaram a
proposta por maioria absoluta. Otto respeitou, em silêncio,
as abstenções.
Mesmo depois do chefe dos Filingus ter dado por en-
cerrada a reunião, os pares do seu governo continuaram a
falar sobre a importância da linguagem e da argumentação.
Otto não tinha tempo para discussões filosóficas daquela
natureza. A missão que lhe tinha sido confiada era mais
importante do que toda a retórica da Humanidade.
Nenhum dos presentes se apercebeu da saída de Otto.
O chefe dos Filingus dispensara o motorista naquela noite

288
O Evangelho do Alquimista

e partira sozinho no seu automóvel para fora da cidade.


Durante a viagem, ia pensando nas palavras que iria dizer
quando se cruzasse com o objecto da sua missão e o alvo de
todo o ódio do senhor de Distopia.
Vontade e conhecimento não lhe faltavam. Apenas tem-
po.

289
SESSENTA
Nunca a imensidão do céu deslumbrara tanto Samuel
como naquela noite. Tinha a boca seca mas não lhe ape-
tecia tapar os sulcos da sede. As respostas que ouvira do
Alquimista pareciam ter preenchido todas as perguntas que
sempre quisera fazer. Mesmo assim, sentia uma necessidade
de síntese; algo que resumisse tudo aquilo que aprendera
daquele profeta, desde o dia em que lhe dera boleia até ao
último ensinamento.
Magdala encontrou Samuel sozinho, entregue à con-
templação das estrelas que bordavam o véu púrpura da noi-
te, ordenadas em constelações geométricas pelo dedo do
Criador. Ficou intrigada com o isolamento do caixeiro-via-
jante, depois de tudo o que escutara do Alquimista. Movida
pela intuição e pela curiosidade, dirigiu-se para junto dele.
Nem o som da erecção das ervas, provocado pelo som dos
seus passos, nem a presença da sua sombra, denunciando a
voluptuosidade do seu corpo, desviaram o olhar de Samuel
da sua observação e meditação.
A mulher sentou-se ao lado do jovem e começou a
falar, imitando a sua postura.
– Quando vivia em Distopia, nunca dei conta da be-
leza de uma noite como esta. Custa-me a acreditar que foi

291
Tiago Moita

preciso abandonar a cidade para me aperceber da natureza


que me rodeia. – disse a antiga prostituta.
– Gostavas daquilo que fazias? – perguntou Samuel,
sem desviar o olhar do céu.
– Não gostava nem deixava de gostar; era-me indife-
rente. Conheces bem a minha estória e sabes perfeitamente
o que me levou a seguir a minha antiga profissão. – replicou.
– Engraçado. – respondeu o caixeiro-viajante. – Des-
de que conheci o Alquimista, e todas aquelas pessoas que
encontrámos na nossa jornada, comecei a entender, cada
vez mais, que existem sincronismos, mistérios existentes no
nosso mundo que, quando tomamos consciência deles, per-
cebemos que estamos ligados pelo fio condutor do Destino.
Tanto o sincronismo como o destino carecem de comprova-
ção por parte da ciência; no entanto, aceitamo-los.
– Claro! – disse Magdala. – E quanto mais pessoas
despertarem para essa nova consciência, proveniente desses
sincronismos, então todo o mundo começará a construir uma
nova visão de si, redefinindo o universo como um campo de
energia sagrada, não é verdade?
– Exacto. – exclamou Samuel. – E acabamos por des-
cobrir que tudo à nossa volta, toda a matéria provém des-
sa mesma energia cósmica que começamos a entender. Tal
como presenciámos na Floresta das Auras, lembras-te?
– Como poderia esquecer esse dia e o local onde fo-
mos baptizados! Tal como nunca me esqueci da experiência
que passámos no Templo de Nabot. Foi aí que percebi que
os seres humanos sempre tentaram possuir essa força, para
dominarem o seu semelhante quando se sentiam inseguros e
desconectados da sua verdadeira Fonte.
– Eu também me apercebi disso nesse lugar e com-
preendi que esse foi sempre o motivo de todo o conflito hu-
mano. Foi por essa razão que, quando subimos aquela mon-
tanha com o Alquimista e abrimos as nossas almas ao nosso

292
O Evangelho do Alquimista

Eu superior, percebi que a única solução para resolver esse


problema era cada pessoa cultivar a sua conexão pessoal com
o mundo real. Para isso, era necessário ligarmo-nos, cada
vez mais, a essa força divina numa transformação mística
que nos envolvesse de amor ilimitado e incondicional,
ampliando a nossa percepção de beleza e conduzindo as nos-
sas vidas para um maior autoconhecimento.
Magdala sentiu-se intrigada com todas aquelas afir-
mações.
– Certo... assim como não existe tempo, apenas o
Aqui e Agora e que tudo o que existe, à nossa volta, é fruto
da realidade que construímos à custa do nosso pensamento.
– O que mais me intriga é que sinto que já conhecia
todos estes ensinamentos e as pessoas a quem fui dando bo-
leia, desde que conheci o Alquimista. Existem traços, ex-
pressões – até objectos – que me lembram alguém... que já
fez parte da minha vida... como tu, respondeu.
Magdala ficou atónita.
– Samuel. Não te lembras de nada?
– Lembrar? Lembrar de quê? – respondeu. Subita-
mente, Magdala levantou-se e esbofeteou-o, furiosa.
– Sabes uma coisa? És mesmo esquisito. – replicou,
retirando-se para a sua tenda. Samuel sentia ainda o ardor
provocado pela agressão daquela mulher, sem entender
aquela reacção. Confuso, retirou-se e foi dormir para a sua
carrinha.
Ninguém presenciara aquele momento. Apenas a lua
e o Alquimista, escondido atrás de uma sombra, sorrindo.

293
SESSENTA E UM
Parecia uma visão pior do que o inferno. O Alquimis-
ta, os seus discípulos e seguidores, chegavam ao que parecia
ter sido uma floresta. Hectares e hectares de cinza de toda a
espécie de plantas – e até de animais – cobriam uma gigan-
tesca superfície, pintalgada de cinzento e negro, onde nem
as aves de rapina do Grande Deserto voavam por perto. Pa-
reciam ter sido vencidas pela voragem do tempo que tinha
dizimado aquele local, vencido pela morte. Samuel parou a
carrinha no meio daquele mar de cinzas e sombras de um
verde que passara a pertencer à memória da natureza. To-
dos os que seguiam o profeta ficaram boquiabertos perante
aquele cenário dantesco. Uma espécie de criança a segurar
um macaco bebé, fossilizados, despertou a tristeza em Dhar-
ma.
Onde estamos, perguntou o caixeiro-viajante ao Alqui-
mista. Anamom, ou o que resta dela, respondeu. Anamom,
exclamou Magdala. Sim, uma das mais densas florestas tro-
picais deste planeta. Em tempos conhecida como o pulmão
verde do mundo, até que as mudanças do universo e a ganân-
cia dos homens destruíram o que restava dela. Deviam tê-la
visto como era: árvores tão altas que pareciam chegar a tocar
os telhados do céu; animais e espécies de plantas desconhe-

295
Tiago Moita

cidos para os olhos do mundo e pequenas tribos que viviam


neste grande paraíso verdejante. Uma lembrança concedida
à natureza por Deus, transformada numa catástrofe.
O que é que o Homem e o Universo tiveram a ver com
a destruição de Anamom, perguntou Rodrigo ao profeta.
O Alquimista respondeu, com uma lágrima a rolar pelo
rosto. Houve um tempo em que o Homem respeitava as leis
universais e compreendia a evolução do mundo e as trans-
formações provocadas pelos fenómenos do universo. Mais
tarde, o Homem tornou-se sedentário e começou a construir
casas; de casas passou a construir pequenas povoações e por
fim, cidades e civilizações que conquistaram milhares e mi-
lhares de quilómetros, consumindo recursos, que, aos olhos
da sua ganância, pareciam inesgotáveis. Seduzidos por um
nível de vida e riqueza mais elevados, as pessoas começa-
ram a abandonar os campos e a sobrelotar as cidades. Deu-se
a explosão demográfica e, com ela, a produção e consumo
em massa. Uma vez separado do seu meio natural, ou seja,
das suas raízes, o Homem entendeu que deveria dominar a
natureza, porque achava que ela funcionava mecanicamente,
como um relógio; assim como tudo na vida e no Universo.
Porém, um dia, quando o homem poluiu o que restava da
água e da atmosfera neste planeta, a natureza revoltou-se e
provocou uma onda de desastres naturais, que destruíram
todos os habitats do mundo, antes do nascimento de Disto-
pia. Anamom era a última floresta virgem que restava e nem
essa foi poupada pela chuva ácida, derivada da poluição at-
mosférica, e do desbaste de centenas e centenas de árvores
centenárias para alimentar as fábricas e os caprichos do Ego
Humano, respondeu chorando copiosamente.
Por que é que nos trouxeste aqui, perguntou Samuel,
apoiando o Profeta, juntamente com Magdala.
Recomposto, limpou o rosto marejado e respondeu.
Para todos vós... para todos vós terdes noção do que vai

296
O Evangelho do Alquimista

acontecer dentro em breve neste mundo. Uma onda de calor


aumentará a temperatura do planeta, provocando mudanças
climáticas, geológicas e sociais de magnitudes sem prece-
dentes, a uma velocidade assombrosa. Tal como aconteceu
no Aqui e Agora que passou, esse aquecimento e variações
climáticas são consequência das relações danosas entre o
Ser Humano e o meio ambiente, devido à falta de sincro-
nismo com a natureza – o que poderá produzir processos de
autodestruição. O aumento da actividade do sol vai acelerar
a sua vibração, produzindo mais irradiação e aumento da
temperatura no planeta. Essas alterações climáticas produzi-
rão uma alteração nas chuvas e um aumento da intensidade
dos ventos, dos furacões e dos tufões.
– Que horror! – disse Dharma, consternada. – Não
existirá nenhuma maneira, nenhuma solução para pôr fim a
essa tragédia?
O Alquimista aproximou-se da pequena, quando repa-
rou no azul dos seus olhos tristes e afagando o rosto pueril
da jovem com a mão, concluiu, com um olhar de beatitude
e esperança.
– Deixai de ver o crescimento económico como um
fim, mas como um meio para atingir um fim. Aceitai a na-
tureza como a vossa mãe e um ser vivo, com tanto direito
a viver e a evoluir como vós, e salvareis e transformareis o
mundo, numa imagem perfeita do paraíso, donde, em tem-
pos, fizestes parte.
Assim pregava o Alquimista.

297
SESSENTA E DOIS
A noite abraçara o mundo assim como o sono dos dis-
cípulos e seguidores do Alquimista. Um pequeno aglomera-
do de tendas e sacos-cama, à volta de pequenas fogueiras,
até ao último fôlego do fogo, preenchia uma parcela daquela
paisagem nocturna. Ao longe, ouviam-se uivar os coiotes.
Era noite de lua cheia, foco luzente no céu. Apenas as som-
bras escondiam os animais e insectos rastejantes. Nenhum
se atrevera a penetrar no acampamento do profeta e do seu
povo pelas vibrações emitidas pelos seus pensamentos. A
imagem daquela antiga floresta virgem, dizimada pela acção
do homem e da natureza não desconcentrara nenhuma da-
quelas almas que seguiam o profeta do Oráculo do Destino,
do seu propósito e da sua Fonte.
Uma silhueta humana aproximava-se, como uma nu-
vem negra, do acampamento. Metheos tinha deixado o car-
ro, a poucos metros daquela amálgama de tendas e sacos-
-cama, para cumprir a sua missão. Passo a passo, caminhava
sem provocar o silêncio da noite e a paz dos espíritos mais
pios daquela região. Meticulosamente, utilizava o seu fiel
fio-de-prumo – transformado em pêndulo improvisado –
para não tropeçar nas imperfeições que pudesse encontrar
naquele desassossego árido: pára.

299
Tiago Moita

Como um falcão à procura da presa, o chefe do Bair-


ro Cogito procurava conter o desconforto que sentia, pe-
rante aquele pequeno aglomerado humano desorganizado e
encontrar o discípulo perdido do seu povo, para resgatá-lo
das mãos do maior inimigo de Zarat: pára novamente.
Uma figura familiar despertou a sua atenção. Leandro,
Leandro, sussurrava Metheos, depois de olhar para ambos
os lados. O arquitecto abriu instintivamente os olhos, como
quem não queria ressuscitar do sono para a realidade. A si-
lhueta de um homem a segurar um fio-de-prumo com dois
dedos, despertou-o abruptamente, fazendo-o soerguer-se.
Estava pálido como a cal e completamente atemorizado.
Mestre Metheos... o que faz aqui, perguntou. O ho-
mem fez-lhe sinal para que se calasse e o seguisse para fora
daquele lugar. Leandro, reticente, assentiu, estranhando a
presença do chefe dos Methódicos naquele sítio. Durante
a caminhada, um par de olhos desabrochou no rosto de um
dos presentes naquele abarracamento.
Finalmente. Longe daquele... daquele inferno huma-
no, respondeu o homem. O Mestre ainda não respondeu à
minha pergunta. O que faz aqui, perguntou Leandro. Liber-
tar-te, obviamente. Achas que fiquei de consciência tran-
quila quando soube que, um dos meus melhores pupilos
se juntou ao grupo do maior inimigo do nosso povo e do
nosso líder, exclamou Metheos, guardando o fio-de-pru-
mo no bolso do casaco. Libertar-me? Mas quem lhe disse
que preciso de ser libertado quando me sinto livre, graças
ao homem que vocês consideram um inimigo, exclamou o
arquitecto.
Metheos não queria acreditar no que os seus ouvidos
escutavam. Vou fingir que não ouvi nada do que acabaste
de me dizer, Leandro. Que tenhas sido coagido pela pai-
xão a aderir a uma seita ou movimento, sou capaz de com-
preender. As paixões são todas boas por natureza mas...

300
O Evangelho do Alquimista

não te esqueças: só cabe a nós, seres humanos, providos de


razão e lógica, evitar o seu mau uso e excessos.
Não é verdade, mestre. Precisa de ouvir a mensagem
que o Alquimista vem trazer ao mundo. Nenhuma das suas
palavras choca com a nossa filosofia. Tal como o mestre,
ele também defende o poder de dominarmos inteiramente os
nossos pensamentos, como defendia Descartes, ou que cada
ser humano deve ser senhor da sua vontade e escravo da
sua consciência, como defendia Aristóteles. Tudo o que ele
apresenta é uma nova visão sobre como devemos abordar
a realidade e encarar as nossas vidas, de uma forma mais
natural e intuitiva, respondeu o arquitecto.
Disseste natural e intuitiva? Como esse homem cegou
a tua razão! Não há dúvida que a palavra dita tem mais força
para persuadir do que a escrita! Será que não vês que a intui-
ção põe em causa a dúvida e que, sem ela, desaparece todo o
sentido da nossa filosofia e existência? Será que te esqueces-
te de que, para procurar uma verdade, é necessário colocar
todas as coisas em dúvida, exclamou, segurando Leandro
pelos ombros como um lunático.
A troco de quê, perguntou o Alquimista, por trás do
chefe do Bairro Cogito. Metheos voltou-se num ápice e lar-
gou o arquitecto. Precisava enxergar duas vezes a cara do
homem que todos apontavam como um mito e uma amea-
ça à civilização a que pertencia. Irado com a sua presen-
ça, ripostou, vociferando com toda a fanfarrice intelectual
que lhe revolvia as entranhas da mente, com uma citação de
Descartes. Os que buscam o justo caminho da verdade não
devem ocupar-se com nenhum objecto a respeito do qual
não possam ter uma certeza igual à das demonstrações da
Aritmética e da Geometria.
O Alquimista fez uma pausa para lhe responder à altu-
ra. A nossa alma é, por vezes, um campo de batalha onde a
nossa razão e a nossa paixão estão em conflito. Mas a razão,

301
Tiago Moita

só por si, não pode ser o leme, nem a paixão as velas para
uma alma que deseja navegar. Se não caminharem juntos,
a alma pode andar à deriva ou ficar imóvel, como um bar-
co no meio do mar. E, tal como o livre-arbítrio de pessoas,
como o Leandro – que vieram procurar-me e me encontra-
ram –, também a razão, como a paixão, são necessárias. Mas
a razão, só por si, é um muro; e a paixão desgovernada é
um incêndio descontrolado. Por isso, deixai a vossa alma
emanar a razão até ao zénite da paixão, de forma a poder
cantar, deixando-a guiar a vossa paixão com razão, para que
ela possa viver e renascer das suas próprias cinzas.
Metheos respondeu com lágrimas e não encontrou pa-
lavras para contrapor perante aqueles argumentos. Olhando
simultaneamente para Leandro e para o Alquimista recuou
a passos largos até entrar no carro, como quem foge de um
crime que tivesse acabado de cometer. Leandro instintiva-
mente abraçou o Alquimista. Pela primeira vez na sua vida,
tinha tido coragem de enfrentar o chefe do seu povo e defen-
der a sua escolha, fruto do poder mais poderoso, concedido
ao homem: a sua Fé. O Profeta acolheu-o com um sorriso de
satisfação.
– Hoje foste um sopro na esfera do universo e uma fo-
lha verdejante na floresta de Deus. Assim como repousaste
na razão, move-te sempre na paixão e sentir-te-ás como um
gigante, com um génio sentado no seu colo.
Assim pregava o Alquimista.

302
SESSENTA E TRÊS
Nem mesmo o clarão do último relâmpago a recortar
a bruma do céu abalou Ptolomeu durante a condução auto-
móvel pelas artérias mais movimentadas de Distopia. Era o
quarto dia consecutivo de chuva na cidade. Desde a notícia
do aparecimento do Alquimista que a natureza começara a
dar sinais estranhos, observados pelos habitantes da única
cidade do planeta, mas entendidos pelas populações que
viviam nos arredores – ou em lugares remotos do grande
centro nevrálgico de todas as decisões daquele mundo, mais
habituadas aos avisos da natureza e às mudanças provocadas
pela acção do homem e do universo.
De soslaio e através do cortinado, Salomão observava
o temporal pela janela da varanda da sala de jantar. Um misto
de culpa e inquietação transfiguraram o rosto e o coração do
cientista. Como homem de ciência, sabia que fazia parte de
uma classe que tinha uma quota-parte de responsabilidade
no estado de biocídio a que chegara o planeta. Os temporais
e a acidez das chuvas a corroer os monumentos mais antigos
de Distopia eram um exemplo bem claro da poluição atmos-
férica provocada pelo ser humano durante séculos. Não era
um dever jurídico, mas antes um dever cívico e ético, aquele
que ele deveria ter tido, alertando as autoridades sobre os

303
Tiago Moita

efeitos e malefícios do uso da ciência e tecnologia para ma-


nipular a natureza, como se ela fosse alguma vez manipulá-
vel por outra entidade que não ela mesma, e pelo universo.
Todavia, tal incumbência acarretava consequências huma-
nas que podiam ir da expulsão à prisão, culminando na con-
denação à morte. O carro do conselheiro principal de Zarat
estacionara, frente ao prédio onde morava, dirigindo-se para
a porta. O som da campainha da sua casa provocou-lhe um
calafrio.
Salomão estranhou a presença daquele homem àquela
hora, frente à sua casa e sem escolta que o protegesse. Intri-
gado, carregou no interruptor e convidou-o a entrar. Ptolo-
meu irrompeu pela casa do cientista, de gabardina encharca-
da e uma montanha de dúvidas por esclarecer.
Não é costume contar com a sua presença, senhor con-
selheiro. A que devo tamanha honra, perguntou intrigado.
Sempre é verdade, doutor Salomão? Sempre é verdade que
o nosso mundo e civilização estão à beira do fim, perguntou
o conselheiro, amedrontado. Salomão ficou cabisbaixo com
aquela pergunta. Ptolomeu continuou a olhar para ele à es-
pera de uma resposta. Responda, raios! Fiz-lhe uma pergun-
ta! É verdade que o nosso mundo e civilização estão à beira
do fim, insistiu, enraivecido e amedrontado. O conselheiro
de Zarat fixou-o como se pusesse Salomão entre a espada e
a parede. O olhar do cientista revelou a resposta subcons-
ciente que Ptolomeu procurava. Transtornado, o conselhei-
ro sentou-se numa poltrona e cobriu o rosto com as mãos:
chorou.
Salomão não queria acreditar no que via. A imagem
fria e austera que Ptolomeu transmitia desvanecera-se na-
quele momento com aquela revelação. Poderia discordar e
apresentar argumentos para contrapor ao que acabou de me
questionar, mas... não tenho, afirmou Ptolomeu. Todas es-
tas alterações climáticas – mudanças de tempo abruptas fora

304
O Evangelho do Alquimista

das estações, terramotos, erupções vulcânicas, as erupções


solares, enfim, o estado a que o planeta chegou – são de
facto mudanças descritas ao pormenor pelo Oráculo do Des-
tino. Ainda ontem, recebi uma mensagem de uma equipa do
Instituto de Sismologia informando-me que foram encontra-
das cinco falhas na crosta de É em direcção a Distopia, disse
Salomão.
Ptolomeu ergueu a cabeça, estupefacto com a notícia.
O espanto drenara o pranto do rosto do conselheiro, tornan-
do-o pálido como a cera. Cinco? Disse cinco falhas? Como é
que isso aconteceu, perguntou. Não sabemos ao certo quan-
do começou. A única coisa que sei é que a quantidade de
neutrinos, vindos do sol, dilatou o núcleo do planeta de uma
maneira tão rápida que, dentro em breve, todas as placas
tectónicas vão começar a deslocar-se de uma forma violenta,
sem o podermos evitar. O que podíamos ter evitado era a vo-
racidade com que esgotámos os recursos naturais do nosso
mundo e a poluição provocada pelas nossas fábricas e meios
de transporte. Se olhássemos mais ao que fizemos com a
natureza, e com nós próprios, e víssemos o crescimento eco-
nómico como um meio e nunca como um fim, a maior parte
dos nossos problemas estariam resolvidos, respondeu.
Ptolomeu mudou de expressão com aquela declara-
ção. Estarei a ouvir uma crítica contra a nossa civilização,
doutor Salomão, perguntou o conselheiro, levantando-se da
poltrona com um olhar inquisidor para o cientista. Entenda
o que lhe acabei de dizer como uma advertência. A VHCruz
pode, na opinião de Zarat, resolver uma parte da profecia,
mas não o todo. O sacrifício de um homem nunca foi solu-
ção para resolver os problemas da Humanidade e do planeta
e o senhor sabe disso, melhor do que eu, respondeu Salo-
mão. Naquele instante, o rosto de Ptolomeu transformou-se
em raiva em estado puro, levando-o a que desse um valente
murro na cara do cientista, depois de este lhe manifestar a

305
Tiago Moita

sua opinião. O homem prostrado no chão procurava estancar


o sangue que lhe escorria do nariz.
– Aqui tem a resposta de Zarat ao seu atrevimento.
Trate de pôr a VHCruz em funcionamento e nada de comen-
tários críticos. Se continuar a agir dessa maneira, um murro
na cara não será o suficiente para punir insubordinações ao
nosso divino líder. Pense bem nas minhas palavras, doutor
Salomão... pense bem! – respondeu Ptolomeu, saindo de
casa da mesma maneira como tinha entrado.
Mal fechara a porta, Salomão soltou uma valente
gargalhada. Tinha o nariz partido mas a consciência limpa.
Nem o silêncio o podia acusar rigorosamente de nada.

306
SESSENTA E QUATRO
O vento era o menor dos problemas para Samuel. Há
mais de uma semana que viajava por uma pequena estrada
secundária, cheia de pedras e gravilha, que afunilava numa
curva saliente, junto à parede rochosa de uma montanha inós-
pita, como o seu subconsciente. Durante sete dias não para-
ra de pensar nas palavras do Alquimista, especialmente nas
mudanças climáticas e na ideia de cada ser humano evoluir
para estados mais profundos de transcendência e evolução,
sentindo, ao mesmo tempo, um misto de medo e entusiasmo
com tudo aquilo que ouvira e experienciara. Tanto ele, como
os discípulos e os seguidores do profeta, reconheciam que
tudo o que tinham experienciado com aquele homem ultra-
passava os limites da própria imaginação. A carrinha saltou,
mais uma vez, sobre uma série de pedregulhos. No fim da
estrada, encontrou uma bifurcação: parou.
Samuel olhou para o Alquimista, como se quisesse
adivinhar por telepatia a direcção a seguir. O profeta intuiu o
seu quesito, pousando a sua mão na mão direita do caixeiro-
-viajante, com um sorriso. Esta bifurcação é como a vida: um
desafio às nossas potencialidades e uma oportunidade para
exercermos o poder que Deus e o Universo nos concederam.
Lembra-te do que te ensinei na Floresta das Auras: não uses

307
Tiago Moita

a energia que existe dentro de ti apenas para veres a aura dos


seres vivos; usa-a para descobrires o caminho que queres
seguir. Não fiques à espera do próximo passo; torna-te no
próximo passo e abrirás a consciência para o teu destino.
O jovem respirou lentamente e relaxou o corpo e a
mente. Fez do silêncio uma melodia, quando as vozes das
pessoas que seguiam na sua viatura não passavam de mur-
múrios a perderem fôlego, reforçando ainda mais a medita-
ção e desfocando os olhos da bifurcação. Passados breves
minutos, sentia-se como na montanha onde experienciara a
harmonia com o Todo, antes de chegar a Azgot, e começou
a visualizar uma aura dourada e laranja na estrada à sua di-
reita. Não pensou duas vezes. Colocou a primeira mudança
e deixou-se levar por aquela intuição mística.
Uma sensação de calafrio invadiu os discípulos e se-
guidores do profeta, como se tivesse caído uma gota de or-
valho em cada um dos seus pescoços, ameaçando a tepidez
dos corpos, quando chegaram ao fim daquela estrada. Uma
velha mansão de mármore e madeira, abandonada pelo tem-
po e pelo homem, emergia no horizonte como a sombra de
uma sequóia. O estado de desgaste dos materiais e a impo-
nência da residência denunciavam a ausência de presença
humana e o estatuto social dos seus antigos proprietários.
Nenhum dos seres humanos que acompanhavam o profeta
abandonou as viaturas. O Alquimista foi o primeiro a sair,
seguido de Magdala e de Samuel. O portão de entrada sol-
tou um rangido intenso e ferrugento; a porta de entrada,
um chiar agudo, acompanhado por um bando de morcegos,
voando e farfalhando, em busca da liberdade. Tanto os ho-
mens, como as mulheres que os acompanhavam, hesitaram,
depois daquela imagem terrífica. Apenas a entrada do sábio
e dos seus discípulos na casa os fez avançar.
Ninguém conseguia esconder o espanto ao entrar na-
quela residência desabitada. Bastou o profeta bater as palmas

308
O Evangelho do Alquimista

três vezes para que todas as velas e candeeiros empoeirados


se acendessem como por magia, desvendando em cada can-
to daquele casarão objectos similares aos que faziam parte
da sua infância e adolescência. Desde a boneca de trapos
mais esfarrapada, passando pelo retrato de família; à folha
de diário esquecida numa mesa ou o brinquedo favorito, ali
estavam todas as memórias queridas de cada uma daquelas
almas que as fizeram correr pelos cantos da casa, como se
estivessem a ir ao encontro do seu próprio passado. Todavia,
quando alguns deles se aventuraram nos quartos dos andares
superiores, encontraram visões de mágoas que julgavam es-
quecidas. Gritos e pancadas dos pais; imagens de pedofilia e
paixões proibidas no silêncio das paredes; irmãos, amigos,
parentes e amantes que tinham perdido pela mão da morte,
do preconceito ou de outro tipo de tragédia familiar, capaz de
provocar qualquer sentimento de culpa ou remorso, corroe-
ram os rostos dos espíritos mais frágeis e abateram corações,
como adagas afiadas sobre o peito. Alguns não aguentaram
tamanha amálgama de emoções e memórias e fugiram, com
todas as forças que tinham, daquela casa. Só os discípulos e
os mais corajosos continuaram o percurso. Pararam.
De costas voltadas para eles, o Alquimista abriu as
portas de um enorme salão. Pelo tamanho da divisão, todos
os presentes imaginaram as festas e saraus que os antigos
donos davam nos tempos áureos. No soalho, um pormenor
deixou-os perplexos Dezenas de colchões finos e almofadas
multicolores preenchiam aquele espaço, assim como espe-
lhos no tecto, velas acesas e paus de incenso em cada um dos
cantos daquele compartimento. Sem proferir uma palavra,
o profeta dirigiu-se para o centro do salão e sentou-se em
posição de Buda, convidando todos aqueles que o seguiam a
sentarem-se nos colchões, em silêncio. Mal a última pessoa
entrou no salão, a porta fechou-se sozinha, abruptamente,
ecoando o seu som por todos os cantos do casarão. Uma

309
Tiago Moita

enorme celeuma espraiou-se por todo o espaço, o sábio


baixou a cabeça e esperou que o silêncio voltasse ao salão.
Não passaram sequer três minutos.
Satisfeito, falou. Tal como nada na vida é um acaso,
também não foi um acaso que nos trouxe a esta mansão
nem termos encontrado esta sala, cheia de colchões e al-
mofadas para cada uma das pessoas que tiveram a cora-
gem e, acima de tudo, a consciência de darem um passo em
frente na sua evolução. Dentro dela, presenciastes aquilo
que o vosso subconsciente mantinha guardado e que vós,
por relutância ou por medo, não quisestes trazer de volta
à vossa mente. Não é por acaso que esta casa se chama a
Mansão das Memórias e esta divisão o Salão dos Espelhos.
Mansão das Memórias? Salão dos Espelhos?... O
que vem a ser isso? Por que é que nos trouxe até aqui, per-
guntou Dharma, confusa e apreensiva. O Alquimista dese-
nhou um sorriso tranquilizador para a sua discípula, antes
de continuar.
Quanto mais ligados permanecermos, mais arguta
será a consciência que teremos nos períodos em que per-
demos essa ligação, que ocorre, em geral, numa situação
de stress. Nesses períodos, podemos ver a nossa forma de
roubar a energia aos outros. E donde é que nasceu essa
necessidade de roubar energia, perguntarão muitos de vós.
A resposta é muito simples: dos vossos pais. Por isso é que
o destino vos trouxe a esta casa. É preciso que, cada um
de vós, olhe para o seu passado, mais concretamente para
o passado familiar e veja como é que se alojou esse hábi-
to. Analisar a origem da nossa infelicidade e vontade de
manipulação permite controlar a nossa consciência. Desse
modo, passaremos a ter a clarividência pessoal das nos-
sas manipulações. A nossa ligação tornar-se-á mais cons-
tante e, então, poderemos descobrir o nosso caminho para
o crescimento durante a vida e a nossa missão espiritual

310
O Evangelho do Alquimista

– esta é a nossa maneira pessoal de contribuirmos para o


mundo, respondeu.
E continuou. Desse modo, se cada um de nós é o passo
seguinte na evolução seguida pelos nossos pais, só podere-
mos descobrir a nossa missão no planeta, reconhecendo o
que os nossos pais realizaram e onde ficaram, conciliando
o que nos deram com o que nos deixaram para resolver. Só
assim, ficaremos com uma imagem clara de quem somos e
do que estamos destinados a fazer.
O burburinho regressara ao salão, seguido de uma gi-
gantesca discussão, depois de proferidas as palavras do pro-
feta. Acalmados os ânimos, o Alquimista pediu para que se
deitassem nos colchões, fechassem os olhos e respirassem
pelo peito, em intervalos de dois segundos. Meio hesitantes,
aquiesceram e respeitaram o pedido do profeta. Magdala dei-
tou-se ao lado de Dharma e de Samuel. Apenas o Alquimista
permaneceu sentado e, de olhos fechados, ao mesmo tempo
que emitia um som, muito agudo e harmónico, semelhante
ao de uma taça tibetana e de um pequeno gongo. Enquanto
elaborava esse ritual, murmurava, em transe, um conjunto
de frases. Assim como quando deixamos cair uma pedra
num lago e formamos ondas concêntricas que se alastram
por toda a superfície aquática, assim é a nossa vibração.
Os efeitos não se fizeram esperar. Passados dez mi-
nutos, todos os presentes naquele salão começaram a fazer
recuar a memória até à infância, recordando todas as cenas
de controlo que tinham inventado para preservarem a sua
energia dos pais e familiares. Lágrimas e ranger de dentes,
seguidos de gritos de dor e de falta de ar – como se esti-
vessem a viver todas aquelas recordações no momento, re-
velaram as feridas que tinham deixado por sarar ao longo
das suas vidas. Só as crianças que acompanhavam os casais
não sentiam nada. No fim, abriram os olhos e levantaram-se.
Sentiam-se leves, como se tivessem retirado um grande peso

311
Tiago Moita

das suas consciências, porque tinham passado a compreen-


der tudo o que tinham vivido no passado.
Samuel foi o último a despertar. Tivera um pesadelo.
Da sua infância, vira imagens desfocadas. Quando acordou,
levantou-se repentinamente, suado da cabeça aos pés e com
uma revelação asfixiante, no fim da meditação.
– Os meus pais! Eu vi os meus pais!

312
SESSENTA E CINCO
O sono tomara conta tão depressa daqueles que se-
guiam o Alquimista, como o silêncio que pairava naquela
casa. Nem as aranhas e os ratos, que percorriam as ripas de
madeira, carcomida pelo tempo, e os canos dos esgotos da-
quela habitação taciturna, se atreviam a incomodar o repou-
so daquelas almas, iluminadas pela palavra e ensinamentos
do profeta que tinham escolhido seguir até ao seu destino.
Apenas as paredes vetustas e bolorentas abafavam o ruído
de fundo do ressonar de alguns daqueles seres humanos, fus-
tigados pelo cansaço de mais um dia de sabedoria em acção.
Uma mão enluvada abria a porta principal da Man-
são das Memórias, sem fazer ruído. Simon Beagle podia ter
muitos defeitos mas não era parvo: entre os objectos que
trazia na sua sacola, tirara uma pequena almotolia e lubrifi-
cara as dobradiças empenadas da porta, antes de tentar en-
trar. Primeiro passo: estava dentro sem ninguém ter dado
pela sua presença. Por onde passava, apenas a luz sentia a
fria nudez da sua sombra. O uso de um calçado leve e um
foco de luz branca contribuíam para que ele não executasse
movimentos bruscos, capazes de provocar o mais leve ruído.
O uso de uma máscara anti-pó de tecido sintético revelava
a sua paranóia em relação às doenças, especialmente quan-

313
Tiago Moita

do atravessava um salão pleno de seres de todas as raças,


diferentes dos Seleceus. Num dos cantos, um rosto familiar
chamou-lhe a atenção. Sorrateiramente, aproximou-se da
pessoa e tapou-lhe a boca com uma das mãos, ameaçando-a
com um revólver. Rodrigo não reconhecera logo o indivi-
duo que o ameaçava. Simon ordenava-lhe ao ouvido que o
acompanhasse até ao exterior, sem fazer perguntas. Rodrigo
assentiu.
Os dois homens percorreram a mansão até à saída em
silêncio, seguidos por uma sombra humana invisível como
um fantasma. A poucos metros da carrinha de Samuel, Ro-
drigo reconhecia finalmente a identidade do seu raptor.
O médico não conseguia esconder a estupefacção.
Mestre Beagle, exclamou, sem conseguir articular outras pa-
lavras. Não podia revelar-te a minha identidade com aqueles
inumanos em redor. Ainda bem que te encontrei de boa saú-
de. Vamos embora, ordenou de pistola em punho. Rodrigo
não moveu um músculo nem mostrou qualquer espécie de
medo, perante aquela ameaça. Eu não vou a mais lado ne-
nhum consigo, respondeu.
Simon não sabia se tinha ficado confuso ou chocado
com aquela resposta. Nunca nenhum Seleceu desobedece-
ra a uma ordem sua, muito menos Rodrigo – o seu pupilo
preferido. O olhar do médico revelava intransigência e co-
ragem, perante o chefe do Bairro Selectus. Tinha de mudar
de estratégia para o convencer a mudar de ideias e regressar
a Distopia com ele.
Rodrigo, eu entendo a tua paixão pelos heróis. Conhe-
ço-te desde criança. Sabes muito bem, como Seleceu, que
não pertences àquela gente, muito menos concordas com as
ideias daquele louco, cujo único propósito é destruir a nossa
raça e civilização. Mas lembra-te de que o culto dos heróis é
mais forte onde a liberdade humana é menos respeitada. Tu
pertences a uma espécie escolhida pela razão humana, para

314
O Evangelho do Alquimista

estar acima de qualquer outra. Esse profeta quer, com as


suas teorias, misturar-nos com os animais e bem sabes que
nós descendemos dos primatas mas não nos comportamos
como eles, muito menos confraternizamos com eles. Vem
comigo e esquece toda essa loucura, disse Simon de pupilas
dilatadas e uma gota de suor a escorrer-lhe pelo pescoço.
Rodrigo não se deixou demover pelas palavras do chefe dos
Seleceus.
Mente, disse o médico, você mente! Nós não descen-
demos dos primatas nem de qualquer outro animal, porque
nenhum deles possui o livre-arbítrio como nós. A nossa evo-
lução não se resume apenas à mente e ao corpo. Darwin está
errado a respeito da raça humana. Não existem raças supe-
riores, inferiores ou eleitas. Existem almas criadoras e res-
ponsáveis pelas suas próprias escolhas e experiências neste
mundo, como eu, o senhor ou qualquer outro ser humano
que habite neste planeta. E quanto a esse louco de que aca-
bou de falar, só lhe posso dizer uma coisa: a loucura dele
fez mais do que a vossa ideologia retrógrada e hedionda: fez
de mim um homem livre e clarividente do meu lugar neste
mundo e daquilo que a minha alma escolheu para a minha
evolução enquanto ser físico, mental e espiritual que sou.
Simon transfigurou-se à medida que escutava as pa-
lavras do seu pupilo. Já não estava perante um Seleceu mas
sim um traidor. Ensandecido e furibundo, levantou o braço
e apontou a pistola para o médico. Subitamente, apanhou
uma valente banhada de um balde de água suja, atirada pelo
Alquimista. Simon tombou no chão árido aos gritos. Come-
çara a ter visões de germes e baratas a tomarem-lhe conta do
corpo. Antes que este recuperasse da sua loucura, Rodrigo
pegou, num impulso, na pistola do chefe dos Seleceus.
O profeta dirigiu-se para Simon, como se de um anjo
se tratasse. Mentes bloqueadas pelo medo e pelo preconceito
não são capazes de compreender que a verdadeira evolução

315
Tiago Moita

do homem devém da sua consciência enquanto ser espiritual


a passar por uma experiência física, e não o contrário. Se
estás disposto a amar a Humanidade, tal como Darwin ou
Spencer amaram, tens de alargar a tua perspectiva sobre as
realizações humanas e compreender a História do Homem.
Só a História nos mostra o contexto mais amplo em que se
inscrevem as nossas vidas, sem perder o que de mais sagra-
do existe em nós: a nossa individualidade. Compreende os
outros e serás sábio; compreende-te a ti mesmo e serás mes-
tre, disse o Alquimista. Simon fugiu, de forma rápida e ata-
balhoada, daquele lugar, deixando a sós o profeta e Rodrigo,
entregues ao êxtase do riso, pela forma caricata como aquele
homem abandonava o local. Melhor recompensa para aque-
las almas não podia existir.

316
SESSENTA E SEIS
O dia acordou com um suspiro de alívio de Gus-
tavo. Desde que entrara naquela casa, juntamente com o
Alquimista e os seus discípulos e seguidores, que temia
confrontar-se com o seu maior medo. Uma fobia que ele
era incapaz de controlar desde criança, quando ficara fe-
chado no sótão da casa dos avós e encontrara uma tarântula
gigante, de vinte centímetros de comprimento, perseguin-
do-o durante todo o tempo em que ficou preso dentro da-
quela divisão. Subitamente, enquanto as restantes pessoas
acordavam, o contabilista Avero soltou um grito agudo. A
sombra de uma aranha, projectada numa parede do salão,
iluminada por um halo de luz solar, acompanhada por uma
voz cavernosa, atormentava o pobre aracnofóbico.
Encostado a um canto, Constantino produzia, com as
mãos, uma sombra chinesa em forma de aranha e servia-
-se da sua voz para enviar uma ordem ao subconsciente da
sua vítima, instigando-a a abandonar o Alquimista. Parou
de o amedrontar quando foi confrontado pelo profeta, que
o olhava com aspereza, como se soubesse exactamente as
suas intenções. Pálido com a sua presença, parou tudo e
embrenhou-se na multidão, confusa com aquela cena bi-
zarra.

317
Tiago Moita

O grito de Gustavo tinha esfriado os ânimos das pes-


soas mas não os seus corpos. O dia despertara com um bafo
do inferno vindo do exterior. A elevada temperatura deses-
perara os seguidores do profeta, pouco habituados a am-
bientes tórridos e secos como aquele. Premonitório, o sábio
vedara todas as portas e pedira a alguns dos seus discípu-
los para manterem as janelas e persianas fechadas. Quan-
do a turba que o acompanhava chegou à porta principal da
mansão, encontrou o profeta impedindo-lhes o caminho.
Deixe-nos sair, Mestre. – suplicaram alguns dos presentes,
sufocados pelo calor bafiento. – Precisamos de ar puro. Não
aguentamos este calor. Se forem lá para fora, encontrarão
um calor muito pior do que o inferno. O único lugar fresco
nesta casa é a cave que tanto eu como os meus discípulos
preparámos para vocês. Venham, disse o Alquimista, mos-
trando-lhes o caminho. Desesperados, seguiram-no ordei-
ramente, sem fazerem perguntas, transpirando como porcos
de uma quinta.
Poderia ter o aspecto da cave de um velho casarão,
imunda e cheia de cotão e teias de aranha, decorando toda
a espécie de caixas e mobília caduca, onde bactérias, insec-
tos rastejantes e roedores deambulavam livremente entre
o pó, os buracos nas paredes e a madeira carcomida pelas
térmitas e pelo tempo. Todavia, esse arquétipo não corres-
pondia ao verdadeiro aspecto daquela divisão. Diante deles,
vislumbrava-se uma espécie da sala – mais pequena que o
Salão dos Espelhos – com paredes pintadas de cores claras
e suaves e uma divisória feita de espelhos de cristal. O chão
estava limpo e coberto de madeira nova. Todas as aberturas
estavam encerradas e a iluminação provinha de velas bran-
cas e redondas, tal como dois medalhões de resina, colo-
cados em pequenas bases de folha de alumínio. O perfume
que exalava aquele pequeno oásis de ar fresco e harmonia
provinha de paus de incenso com aroma de sândalo.

318
O Evangelho do Alquimista

Aliviados com toda aquela frescura, sentaram-se em


posição de Buda, junto ao Alquimista, sentado no meio de
todas aquelas almas. Enquanto serenava a mente, observa-
va as cores das auras das pessoas que se tinham sentado e
fechado os olhos. Muitas delas preferiam ver o seu mestre
com os olhos da alma do que com os espelhos da carne.
Mal se acomodaram, o profeta começou a falar. O
que está a acontecer lá fora não deriva apenas do clima do
Grande Deserto. É fruto do aquecimento abrupto do planeta,
causado pela conduta desastrosa e anti-ecológica do ser hu-
mano, dominado pelo seu Ego, e por uma maior actividade
do sol que causará o degelo total das últimas plataformas
de gelo que ainda existem nos pólos deste mundo. Se o sol
aumentar os seus níveis de actividade, acima do normal, ha-
verá uma maior produção de ventos solares, mais erupções
maciças desde a coroa do sol, e um aumento na temperatura
do planeta.
Assim pregava o Alquimista.

319
SESSENTA E SETE
A tempestade tinha cessado em Distopia, menos na
mente de Ptolomeu. A cólera provocada pelas palavras de
Salomão, depois do encontro que tivera em sua casa, con-
tinuava a esmoer a alma do principal conselheiro de Zarat,
como piranhas famintas, atacando uma presa desprevenida.
O tempo era escasso e o momento era urgente. As informa-
ções que chegavam a todo o momento acerca dos fenómenos
da natureza e do universo sobre o planeta e a respeito dos
passos do Alquimista inquietavam a sua mente, dilacerada
pelo ódio e pelo medo. Era preciso inverter a marcha dos
acontecimentos e evitar a destruição daquela civilização, em
decadência profunda. Estava cego e surdo a tudo o que o
rodeava. Nem o barulho das botas dos soldados da Guarda
Zaratista o distraíra no seu percurso até ao gabinete.
Ptolomeu dirigiu-se para o intercomunicador da secre-
tária. Senhora Bresley, exclamou, convoque imediatamente
uma reunião comigo, no meu gabinete, dentro de uma hora
com Alpha, Ómega, o comandante da Guarda Zaratista e o
Governador do Banco Central de Distopia. Se perguntarem
o motivo, diga-lhes apenas que foi por ordem urgente de
Zarat. Avise-me logo que eles cheguem. Sim, senhor Con-
selheiro, respondeu a secretária, antes de desligar. Enquanto

321
Tiago Moita

esperava, atirava uma moeda ao ar e tentava adivinhar a figura


da face daquele objecto, quando caísse na palma da mão. Foi a
melhor maneira que encontrou para se abstrair dos problemas.
Passaram apenas cinco minutos da hora marcada. A pa-
ciência do conselheiro estava por um fio. Três toques secos
na porta anteciparam a entrada da secretária anunciando as
pessoas que convocara para a reunião combinada. A tensão da
espera expressava-se no rosto de Ptolomeu. Metello e Zarco
foram os únicos a interpelá-lo sobre o motivo de tamanha ur-
gência. Alpha e Ómega perguntaram por Zarat.
Irritado, pediu silêncio e ordenou que se sentassem an-
tes de começar a sua alocução, pondo cobro a toda aquela
cacofonia de palavras. Zarat não convocou esta reunião nem
sonha com a sua existência. Fui eu – e apenas eu – que a con-
voquei. Sabia que vocês não viriam se não fosse pelo nosso
líder e por isso, servi-me deste pequeno estratagema para dis-
cutirmos um caso de vida ou de morte para o nosso mundo.
Alpha e Ómega permaneciam em silêncio; Metello es-
tava confuso com a atitude do seu amigo. Apenas Zarco se
levantou, indignado. Isto é uma afronta, respondeu, obriga-
rem-me a interromper uma reunião urgente para falar com um
subalterno. Vou imediatamente fazer queixa de si a Zarat, ou-
viu, exclamou o Governador, antes de se dirigir para a porta.
Ptolomeu soergueu a voz e postura e interpelou-o. Se sair da-
quela porta, a única queixa que Zarat vai ouvir é contra si ou
você julga que não conheço o teor das suas reuniões urgentes?
– Ou, melhor dizendo, Calientes, para não dizer vergonhosas.
Tanto Zarat como eu temos olhos e ouvidos espalhados por
todos os cantos da cidade e do planeta. O seu escritório não
é excepção. Quer prosseguir com a sua intenção, perguntou.
Zarco ficou paralisado, com a raiva tatuada no rosto e ódio
espelhado nos olhos. Conformado, voltou a sentar-se.
Metello foi o primeiro a pedir a palavra. Afinal, o que
pretendes de nós, perguntou. Ptolomeu recuperou a postura

322
O Evangelho do Alquimista

e falou do seu plano. Durante uma hora aludiu aos efeitos


e consequências das alterações climáticas, provocadas pela
acção do homem e pelas tempestades solares, assim como às
informações recentes sobre o Alquimista. Enquanto falava,
Metello ia interrompendo e confirmando algumas das suas
revelações, através de investigações feitas por elementos da
Guarda Zaratista no terreno, espalhados por todo o planeta.
Zarco só pensava nos custos. Alpha e Ómega apresentavam
soluções sem qualquer correspondência com a realidade.
Por fim, Ptolomeu e Metello conseguiram chegar a um con-
senso: acordaram um pacto de cooperação mútua e troca
de informações e de um plano de evacuação de emergência
das elites de Distopia, caso os cenários mais catastróficos se
confirmassem. O acordo foi selado com um aperto de mão
pata-de-leão e um brilho de orgulho nos olhos. Nesse mo-
mento, a secretária de Ptolomeu interrompeu-o, informan-
do-o da chegada de Salomão ao palácio. Mande-o entrar,
respondeu o principal conselheiro de Zarat, intrigado com a
presença do cientista.
Dá-me licença, senhor, perguntou Salomão, mal a se-
cretária de Ptolomeu lhe abriu a porta. O conselheiro assen-
tiu e pediu à senhora Bresley que o deixasse a sós com o
cientista e com as pessoas presentes na reunião. Se veio aqui
para pedir desculpas pelas suas palavras, pode ficar ciente de
que já foi desculpado, disse Ptolomeu.
– O motivo que me trouxe até ao palácio do nosso
líder não é esse, senhor. Tenho uma notícia que creio ser do
agrado tanto de Zarat como de vossas excelências... e uma
má notícia.
– Qual é a boa notícia? – perguntou Ptolomeu.
– A VHCruz está pronta. – respondeu. Uma onda de
júbilo e satisfação invadiu todos os presentes, menos o con-
selheiro.
– E a má notícia?

323
Tiago Moita

– Falta-nos a password para tornar a VHCruz cem por


cento operacional. Sem ela, é inútil prosseguirmos com o
sacrifício.
– E quem é que tem essa password?
– Um dos nossos cientistas. Chama-se Dalfon, Adria-
no Dalfon.

324
SESSENTA E OITO
O ressonar de alguns dos discípulos e seguidores do
profeta abafara os sons que Magdala e o Alquimista par-
tilhavam, em plena escuridão. Tinha sido um dia fatigan-
te para todos, devido ao calor intenso que se fizera sentir
durante o dia. O entardecer trouxera a frescura e o bulício
do sono entre os presentes. Uma promessa de paraíso de-
pois de uma travessia pelo inferno para todo aquele povo,
sedento de esperança e de sabedoria. Todavia, o profeta
e a antiga prostituta tinham outros planos. Os gestos que
trocavam entre si em silêncio revelavam a profundidade do
sentimento mais universal e puro que os unia. Subitamen-
te, um ruído.
Magdala foi a primeira a despertar para a realida-
de. Um pranto tímido, seguido de um soluçar pusilânime,
fez o casal olhar para todos os lados. A tristeza não tardou
em revelar a sua máscara. Mesmo ao lado da companheira
do sábio, Dharma escondia o rosto marejado de lágrimas
com os braços entre os joelhos. Mesmo na penumbra, o
Alquimista conseguira ver, de soslaio, a sombra fugidia de
Constantino. Calculou que ele estava por detrás de toda
aquela mágoa. Contudo, silenciou a dúvida e virou-se para
a jovem consternada.

325
Tiago Moita

O profeta afagou-lhe o cabelo e a nuca, soerguendo-


-lhe o rosto lacrimoso enquanto Magdala a abraçava. Cal-
ma, Dharma, respira fundo, respira... fundo... isso. Agora
diz-me: por que choras, perguntou, com um sorriso angeli-
cal. Uma voz, respondeu soluçando, uma voz assediou-me
durante o sono e relembrou-me tudo o que passei de mais
doloroso na minha vida: a morte da minha mãe, o que o meu
pai nos tinha feito, o aborto. Tudo isso veio ao de cima... por
causa... daquela voz. E tudo porque nunca fui capaz de ter
uma família nem sequer saber o que é o Amor e o Sexo.
Uma lágrima pesarosa rolou pelo rosto de Magdala. O
contacto dessa pérola de água e sal com o chão despertou,
um a um, os discípulos e seguidores do sábio, curiosos por
saber o que tinha acontecido. O Alquimista aproveitou aque-
le momento de dor e o despertar do seu povo para falar, sem
desviar os olhos de Dharma nem abandonar a expressão com
que a presenteara.
Dharma. – exclamou, olhando-a fixamente. – Lembra-
-te daquilo que te ensinei: Somos todos um. Ninguém está
separado um do outro. A vossa realidade é uma realidade
co-criada. Nenhum aspecto individual de Deus tem poder
sobre qualquer outro aspecto da Sua natureza. Se interrom-
peste uma gravidez, nós todos a interrompemos. Uma alma
não pode afectar outra sem a permissão desta porque a sua
vontade é também a do Criador. Não há vítimas e vilões.
Tudo o que pensamos, dizemos ou fazemos é uma forma de
a alma mostrar Quem Ela Realmente É, concluiu o profeta.
Dharma sorriu e parou de chorar, abraçando-o.
Heitor tomou a palavra. Isso também se aplica ao sexo,
perguntou. O profeta fez uma pausa, antes de responder. O
sexo é uma das formas da expressão da alma, por excelên-
cia, e deve ser sempre sinónimo de amor incondicional; nun-
ca encarado como culpa, vergonha, luxúria ou medo. Não
existe bondade na culpa; não existe virtude na vergonha; não

326
O Evangelho do Alquimista

existe respeito no medo, assim como não existe paixão na


luxúria. Tudo isto implica controlo e poder sobre o próximo,
que nada têm a ver com o amor e, muito menos, com o sexo.
Uma onda de murmúrios começou a rasgar o silên-
cio da cave. Mas, se o sexo serve apenas para recompen-
sa pessoal, por que é que existe culpa e vergonha em falar
nele, perguntou um dos presentes. Porque a culpa está ligada
à censura que atribuímos à recompensa pessoal e ao facto
de nos sentirmos mal em relação a algo que nos faz sentir-
mo-nos bem. Sentir-se bem é uma forma de a alma revelar
Quem É. É um caminho para o Céu e uma forma de dizer
“presente!” à vida. A procriação é a consequência feliz e
não o fim lógico de toda a experiência sexual humana. Ela é
o resultado irreversível e eterno da atracção e do fluxo rítmi-
co da energia que dinamiza toda a vida, respondeu.
Leandro, o mais tímido, resolveu intervir. Isso signifi-
ca que, tanto no Sexo como no Amor, devemos colocar-nos
em primeiro lugar, perguntou. Claro, respondeu o profeta,
acima de tudo deveis colocar-vos em primeiro lugar! Colo-
cardes em primeiro lugar significa terdes consciência de vós
próprios. Quanto mais exercerdes a vossa liberdade, maior
será a vossa evolução, quanto mais elevado for o vosso ob-
jectivo de vida, maiores serão as vossas opções, concluiu.
Leandro assentiu com um sorriso de satisfação. Constantino
saiu da sombra e interpelou, irónico. Se assim é, mestre, por
que será que certos mestres e professores espirituais pregam
a abstinência e são celibatários, questionou.
O Alquimista não se deixou abater perante a pergun-
ta, esclarecendo. Para uma pergunta simples, uma resposta
do mesmo teor: Pela mesma razão que a maior parte deles
foi descrita como vivendo humildemente. Quanto maior for
a vossa evolução para um nível superior de compreensão,
maior será o equilíbrio entre os vossos desejos carnais e os
sonhos das vossas mentes e almas. É por isso que a evolu-

327
Tiago Moita

ção e a iluminação fazem com que cada um de nós abando-


ne a viciação no sexo e nos comportamentos compulsivos,
respondeu. Dario tinha uma pergunta entalada na garganta.
Mestre. Qualquer tipo de sexo entre adultos – seja sexo sem
amor ou homossexualidade – está certo, perguntou.
O Alquimista levantou as sobrancelhas. Nenhum acto
que prejudique outrem conduz a uma evolução célere, assim
como nada que envolva outra pessoa pode ser exercido sem
o consentimento da mesma. Questões como a homossexua-
lidade não fazem parte do juízo de ninguém, uma vez que
nem Deus nem o Universo o fazem. Não vos esqueçais de
que Deus e o Universo não são juízes; apenas observadores
e criadores, respondeu. O burburinho transformou-se numa
enorme cacofonia. Um dos presentes levantou-se e interpe-
lou o profeta. Mestre, sou pai de dois filhos e pretendia saber
qual é a altura apropriada para falarmos de sexo aos nossos
filhos.
O Alquimista respondeu com satisfação. Ao contrário
do que podereis pensar, as crianças têm maior percepção de
que são seres sexuais do que os adultos, desde o princípio
das suas vidas. Preocupai-vos antes em descobrir o vosso
lado masculino e feminino; sede os senhores da vossa se-
xualidade e fazeis dela uma celebração ao amor e à vida.
Celebrai-a com naturalidade e alegria. Fazei-o desde o mo-
mento em que os vossos filhos nasceram com a primeira ca-
rícia, o primeiro abraço ou o primeiro beijo que receberem
de vós. Esse será o primeiro passo para eles entenderem o
amor. E quanto à altura apropriada para falardes de sexo aos
vossos filhos, não vos preocupeis: quando chegar o momen-
to, eles vos dirão, respondeu. Uma onda de alívio inundou
aquela divisão com um suspiro. O Alquimista deixou Mag-
dala e Dharma e aproximou-se do centro.
Ouvi-me agora e ouvi-me para sempre. Primeiro nas-
ce a pergunta, depois os sonhos nocturnos, os sonhos diur-

328
O Evangelho do Alquimista

nos e, finalmente, as intuições. São as intuições que nos


conduzem às respostas. Todas elas são transmitidas, sincro-
nisticamente, pela sabedoria de cada ser humano, à medida
que vamos ganhando consciência da nossa missão pessoal
e aceleramos, ainda mais, o fluxo de sincronismos que nos
conduzirão aos nossos destinos, respondeu o profeta.
Fruto de um encantamento ou de um desejo adormeci-
do, casais de homens e mulheres desnudaram os seus corpos
e entregaram-se aos prazeres da carne e do amor, numa or-
gia dionisíaca que só terminou de madrugada. Apenas Cons-
tantino não estava presente naquela celebração colectiva de
amor e vida.

329
SESSENTA E NOVE
Não era todos os dias que Nicole Adágio convidava
um homem para ir a sua casa. Se namorados e amigos eram
uma ausência na sua vida, colegas de trabalho na sua re-
sidência seriam uma novidade. Naquele caso, abrira uma
excepção. Uma ameaça de atentado terrorista levara a que
fossem evacuados todos os agentes do Centro de Investi-
gação Criminal; um contratempo que a levou a chamar o
seu assistente Nicolau a fim de continuarem o trabalho de
investigação sobre o Alquimista. Sem manifestações de re-
gozijo, perante a sua antiga colega da faculdade, o agente
sentiu-se lisonjeado pelo convite. Já não eram estudantes e
as circunstâncias actuais eram muito diferentes. Todavia,
não deixava de ser uma ironia do Destino, Nicolau entrar na
casa daquela mulher, por quem nutria um enorme respeito e
carinho, apesar do seu feitio.
A confusão na cabeça de Nicole era idêntica à dos
papéis, recortes de jornais e revistas que encontrara, des-
de o início da investigação. Nicolau tentava ajudá-la quanto
podia. Era quase de madrugada e ainda estavam a rever o
que tinham apurado. O assistente pediu à inspectora-chefe
autorização para voltar a falar no paradeiro das três crianças
que tinham encontrado nos registos de Pelak. Nicole assen-

331
Tiago Moita

tiu. Vejamos, cogitou Nicolau em voz alta. Esta morreu de


tuberculose cinco anos depois de ter nascido. O que significa
que está excluída à partida; esta tornou-se ourives numa das
ruas menos movimentadas do Bairro Dialética mas morreu
assassinada por um bando de assaltantes, três anos depois de
inaugurar o seu estabelecimento. Idem idem aspas aspas; e
esta, disse o agente, antes de ser interrompido por uma ex-
plosão de lágrimas no rosto de Nicole.
Nicolau pousou lentamente os papéis que estava a
ler e começou a observar aquela cena bizarra. Nicole era
tudo, menos uma mulher de expressar sentimentos daquela
maneira. Algo de muito íntimo e doloroso regressara à sua
mente, interrompendo o silogismo do assistente. Este, mal
entrara em sua casa constatara algo que lhe despertou a aten-
ção: um jarro com duas rosas vermelhas frescas no meio da
sala, uma vela branca de aniversário com o número trinta e
cinco em alto-relevo e o facto de ela usar uma mini-saia pre-
ta a condizer com o fato, realçando as curvas do seu corpo
escultural e a sua sensualidade escondida. Perspicaz, levan-
tou-se e preparou dois copos de água – desconhecia se a sua
chefe bebia álcool ou não – um para si, outro para Nicole.
Esta agradeceu e dirigiu-se para o sofá. Nicolau procurou
reconfortá-la, sem desviar o olhar dela.
– Nicole. – disse, segurando-lhe a mão. – Eu sei que
não podemos ter conversas mais informais, enquanto esta-
mos em serviço, mas, antes de termos sido colegas, fomos
amigos, ou, pelo menos, tentámos ser, enquanto frequentá-
mos ambos a Faculdade. Eu sei, por aquilo que me contaste,
que os teus pais te ensinaram a seres disciplinada e a não
demonstrares os teus verdadeiros sentimentos. Queriam o
melhor para ti, sem nunca te perguntarem o que é que tu
querias realmente. Seja lá o que tenha acontecido no teu pas-
sado, acabou e quero que saibas que estou do teu lado, com-
preendes, exclamou. Nicole esboçou um pequeno sorriso

332
O Evangelho do Alquimista

com as palavras do colega e voltou a chorar, cobrindo o ros-


to com as mãos. Nicolau pegou num lenço e, segurando-lhe
o queixo, limpou-lhe o rosto marejado. Naquele momento,
despida da sua sólita postura, a inspectora-chefe desabafou
o motivo da sua tristeza.
Obrigada, Nicolau... obrigada. Nunca pensei que hou-
vesse alguém que se preocupasse comigo. Os meus pais
fecharam-me numa espécie de redoma de medos e precon-
ceitos só porque era uma rapariga. Preocupavam-se sempre
com a forma como me comportava com as pessoas mais ve-
lhas do que eu, como me vestia, com as notas que tinha na
escola, com o desempenho na universidade, mas nunca lhes
interessou saber quais os meus verdadeiros sentimentos. Sa-
bes o que sente uma rapariga, com apenas dez anos, ao ser
admoestada em público pelos próprios pais, por deixar que
um rapaz, seu amigo, a beijasse? Sabes o que sente uma ra-
pariga quando as pessoas que mais ama a recriminam por ela
se masturbar? Não sabes!...Nem podes saber porque és um
homem e os homens sempre tiveram uma posição de privi-
légio em relação às mulheres na sociedade. E hoje, ninguém
se lembrou de... o que é isto, exclamou. Nicolau, com um
sorriso e sem dar tempo para ela lhe dizer mais nada, entre-
gou-lhe um pequeno embrulho, envolto num bonito papel
de fantasia.
– Parabéns, Nicole, e felizes trinta e cinco primaveras.
– respondeu. Nicole parou de chorar e esboçou um sorriso
de orelha a orelha. Pela primeira vez, ia receber um presente
de alguém que não era da sua família. Rasgou o embrulho,
como uma criança, e ficou boquiaberta com um broche, em
forma de borboleta, em lápis-lazúli. – Lembras-te, quando
estávamos na faculdade de me dizeres que gostavas de bor-
boletas? Pois bem, pedi ao irmão de um amigo de um tio do
meu pai, que é ourives, para fazer uma igual. Não é nada
de especial para quem aufere um vencimento como o meu,

333
Tiago Moita

mas, queria que o aceitasses, pois nunca me esqueci do teu


aniversário... nem de ti, respondeu soerguendo o olhar para
o rosto da agente.
A emoção tomou conta de Nicole com aquelas pala-
vras. Instintivamente, abraçou o colega e soltou mais do que
um gesto de gratidão por aquela lembrança. Sem se aper-
ceberem, os dois agentes libertaram o fogo de um desejo
reprimido, num beijo e num contacto mais íntimo que avan-
çou para uma orgia carnal, onde aquela escultural mulher
renascia finalmente para o amor. Atingido o clímax, ficaram
no sofá estendidos e extasiados. Nicole e Nicolau termina-
ram a noite a fumarem um cigarro e a trocarem alguns beijos
ardentes e suaves carícias. O desejo fundira o sentimento e
as sensações daqueles dois seres humanos num só.
– O que aconteceu à terceira criança? – perguntou,
mordiscando-lhe a orelha, uma hora depois da alcova.
– Das três, foi a única que sobreviveu. Não completou
os estudos e desempenhou diversas profissões ao longo da
vida.
– Que profissão exerce actualmente? – inquiriu. Ni-
colau fumou o que restava do seu cigarro, antes de lhe res-
ponder.
– Caixeiro-Viajante.

334
SETENTA
As horas tinham passado, assim como as meditações
e exercícios realizados pelo Alquimista, durante o resto do
dia. A tarde chegara com o lusco-fusco e com o sibilar do
vento. Está na hora de partirmos, disse o profeta, acordando
Samuel. Os restantes discípulos e todas as outras pessoas se-
guiram o exemplo do mestre. Fora da mansão, foram banha-
dos por uma brisa morna que se fazia sentir naquela região
àquela hora. Serenamente, dirigiram-se para as viaturas e
fizeram-se à estrada. Pelo espelho retrovisor, os condutores
viam desaparecer a Mansão das Memórias como uma mira-
gem engolida pelo sono de Deus.
A emoção e o sentimento que tinham sentido, depois
daquela noite de homenagem ao sexo, perpetuavam-se nos
seus corpos, mentes e espíritos. Nenhum dos casais aban-
donou o sorriso do rosto e dos olhos durante a viagem, tal
como o Alquimista e os seus discípulos. A irradiação das
almas seguida de pequenos gestos de ternura era motivo de
orgulho para o profeta e um júbilo do céu sobre a terra.
A chegada da noite fez abrandar a velocidade das
viaturas. O Alquimista escolheu um local para todos acam-
parem e repousarem. Era preciso acordarem cedo, antes do
alvorecer, de modo a não apanharem o calor dantesco do

335
Tiago Moita

Grande Deserto. A organização do acampamento correra


sem problemas; não se vislumbrava nem uma nesga de raiva
ou desassossego. O sono chegara com o silêncio das horas.
Constantino fora o único a pregar olho. Estivera a maior par-
te do tempo a vigiar o horizonte como se esperasse alguém.
O repouso do padre transformara aquele mar de almas num
paraíso perdido no mundo.
O cheiro a naftalina e a poeira do Grande Deserto dis-
farçavam o suor e o aroma do tabaco de Otto Gräss. O chefe
dos Filingus, chegara finalmente ao acampamento dos se-
guidores e discípulos do Alquimista. Do carro até ao local
do abarracamento ia desenhando letras na areia, para não se
perder no caminho, sacando ao mesmo tempo de uma pis-
tola automática no interior do casaco. Não sabia o que iria
encontrar. Homem prevenido vale por dois e Otto não era
simpatizante de imprevistos, assim como de traças – algo
que pensava não existir naquela região tão cedo. Pára.
Heitor despertara com o fedor do hidrocarboneto bran-
co e os passos de Gräss. A imagem do chefe do seu povo,
iluminada pelas chamas de uma fogueira, deixou o antigo
funcionário público petrificado e pálido como a espuma de
uma onda do mar. De arma em punho, Otto ordenou-lhe que
se levantasse e o seguisse. Sem se aperceberem, estavam a
ser seguidos.
As palavras desabrocharam da boca de Heitor, quando
o acampamento era já uma miríade de luzes bruxuleantes
no horizonte. Mestre... o que faz... aqui, perguntou, ofegan-
te. Como pudeste fazer isto comigo, Heitor?! Logo tu, que
apontei, não só como meu pupilo dilecto mas como meu su-
cessor à frente do nosso povo, exclamou, exasperado com
o agora discípulo do profeta. O Mestre... sempre escreveu e
pensou aquilo que queria para mim, sem nunca me consul-
tar para saber o que eu desejava realmente fazer da minha
vida, respondeu. Otto abanou a cabeça. Vida? Chamas vida

336
O Evangelho do Alquimista

abandonares uma carreira de sucesso para viveres no meio


da natureza como um nómada, ainda por cima com o nosso
maior inimigo? Fazes ideia da vergonha que tenho passado
com o nosso povo por causa da tua escolha, fazes, pergun-
tou, com os olhos rubros de cólera.
Apenas segui... o meu caminho. Se o mestre conhe-
cesse o Alquimista e escutasse as suas palavras, saberia
que grande parte do seu pensamento vai ao encontro de
muitas ideias dos filósofos e sábios que estudámos em
Dialéctica. Que dizes, replicou Otto, estupefacto. É ver-
dade! – respondeu o discípulo. – Tal como Wittgenstein, o
Alquimista também entende que o sentido do mundo deve
ser encontrado fora do mundo e que a linguagem disfarça o
pensamento. A maioria das proposições que foram faladas
ou escritas sobre assuntos filosóficos não é falsa, Heitor,
mas desprovida de sentido. Lembra-te de que as fronteiras
da nossa linguagem são as fronteiras do nosso universo,
respondeu o chefe dos Filingus. E a Ciência, Mestre? E a
Arte? Também não são fronteiras do nosso Ser, retorquiu.
Parece que nunca estudaste Barthes. – respondeu Gräss. –
Não sabes que a ciência é grosseira, assim como a vida é
subtil, e é para corrigir essa distância que a literatura é im-
portante? Só através dela respiramos e entramos em con-
tacto com os outros. Por isso é que toda a recusa de uma
linguagem é uma morte. Vamos, ordenou. Heitor manteve-
-se hirto como um menhir. Otto começou a tremer.
O essencial só se vê com o coração. O essencial é
invisível aos olhos, Jacques Derrida, respondeu o Alqui-
mista, segurando um pequeno barril no ombro. Heitor fez
uma escolha, Otto, e resolveu seguir-me. Vem connosco
e verás uma realidade capaz de transcender a linguagem
mais vulgar, respondeu. O chefe dos Filingus, sem aviso,
disparou três tiros na direcção do profeta, sem o atingir
nem o demover do seu lugar. Aqueles três homens forma-

337
Tiago Moita

vam um triângulo perfeito no deserto. Obstinado, refugiou-


-se nas palavras.
Filosofia, lógica e raciocínio foram sempre os instru-
mentos mais usados na formulação das ideias filosóficas,
Bertrand Russel, respondeu, lacónico e com uma centelha
de fogo no olhar. Sereno e pragmático, o profeta do Orácu-
lo do Destino respondeu contrapondo da mesma maneira.
Palavras são meras elocuções: ruídos que expressam pensa-
mentos e experiências; símbolos, sinais e signos. Não são a
verdade e não são uma coisa real. As palavras ajudam-nos a
compreender mas só a experiência nos permite conhecer a
realidade, tal como ela se apresenta, respondeu, libertando
uma nuvem de traças da pequena pipa que trazia consigo.
Otto, ao ver todos aqueles devoradores de papéis aproxi-
mando-se dele, soltou um grito agudo e disparou como um
galgo de corrida, suando e babando-se, em direcção ao car-
ro. Heitor e o Alquimista riam, daquela cena patética, como
nunca tinham rido. Prevendo o gesto do discípulo, o profeta
atirou a pequena pipa para nenhures, recebendo as suas lá-
grimas e o abraço de gratidão pelas palavras de sabedoria
que utilizara contra o pensamento do seu antigo mestre, que,
a julgar pela derrota, não voltaria tão cedo a meter-se com o
profeta nem com o seu antigo pupilo.
A sabedoria tinha triunfado sobre a palavra.

338
SETENTA E UM
Nunca nenhum ser humano tinha assistido a tama-
nha fúria e onda de destruição no mundo. O cenário era de
tal modo apocalíptico que nem Dante era capaz de imagi-
nar um inferno pior do que aquele que milhões de pessoas,
de várias povoações do mundo, estavam a passar, devido
à quantidade de catástrofes naturais e fenómenos vindos
do céu. O degelo dos pólos do planeta transformara os
pontos mais longínquos do mundo em oceanos e mares
vorazes, sedentos de terra seca, para conquistar com a sua
fome marítima; o que dantes era deserto de areia passara
a ser uma solidão marinha, como se Neptuno despertasse
de um sono de séculos e começasse a devorar tudo à sua
volta.
Das zonas mais secas do interior, pequenas fendas
rasgavam a pele porosa do Grande Deserto em direcção
ao centro do planeta, como as paredes de um espelho a
estalar, transformando paisagens áridas em abismos sem
fundo.
Das mais altas cordilheiras, vulcões explodiam de
êxtase para o céu; cinza e lava violavam a virgindade do
escasso verde de vales perdidos e de planícies selvagens.
O fumo negro que era expelido dos cumes pintava a at-

339
Tiago Moita

mosfera com a cor da viuvez nocturna representando a ira


da terra e a dilatação do núcleo, engolindo o manto e a
crosta de É para o seu ventre de fogo.
Em todas as vias de comunicação, populações deses-
peradas fugiam dessa fúria sem igual e procuravam um lugar
que não tivesse sido atingido pelas tempestades solares e
pela inversão do eixo magnético do planeta É – principal
responsável pelas avarias constantes de aparelhos eléctricos
e electrónicos.
Tanto em Distopia como na caravana do Alquimis-
ta, composta pelos seus discípulos e seguidores, todas as
pessoas contemplavam as auroras boreais e as catástrofes
naturais, analisando-as de diferentes maneiras. Se, para os
habitantes da cidade – anestesiados pela realidade dos meios
de comunicação social e pelas autoestradas da informação –,
tudo não passava de meras coincidências, sem ligação com
a realidade, para o povo que seguia o profeta significava o
canto do cisne de um mundo, prestes a acabar e o desabro-
char para um novo que alguns teimavam em não aceitar.

340
SETENTA E DOIS
Não havia vila onde se respirasse mais religiosidade
crística que em Vila Romã. Cada bairro, rua, esquina ou
até mesmo a praça central, estavam decorados com todo o
tipo de parafernália sacra. Desde estandartes com figuras de
santos, a imagens de anjos e mártires, padres e Papas; tudo
servia para lembrar, não só aos seus habitantes mas também
a turistas e forasteiros, a forma como o povo daquela povoa-
ção via e sentia a sua religião.
Para discípulos como Jordão e alguns seguidores
que professavam essa fé antes de conhecerem o Alquimis-
ta, aquela atmosfera transmitia uma certa nostalgia. Para os
restantes discípulos e seguidores do profeta, emanava uma
energia espiritual tão intensa, como o perfume das flores que
ornamentavam as varandas das casas e os pequenos jardins
daquele povoado. No centro da praça, ficava uma igreja em
estilo barroco homenageando Nossa Senhora de Vila Romã
– um dos mais importantes lugares de peregrinação religiosa
do planeta.
Naquele dia, toda a vila estava em festa. Celebrava-se
um casamento e todas as casas se tinham engalanado para
o evento como se a povoação fosse o centro das atenções e
não os noivos em si. Durante toda aquela cerimónia de ale-

341
Tiago Moita

gria e vaidade à mistura, o profeta observou e apontou certos


casais de costas voltadas ou aos gritos, entre os presentes,
para comentar, com todos os que o seguiam, a sua visão so-
bre o Amor e o Casamento.
Todo o casal que nasceu junto, permanecerá junto
para sempre, até chegar o momento de partirem para o outro
lado. Continuarão juntos na memória de Deus e do Univer-
so, enquanto conceberem espaços nas suas relações, para
que possam dançar livremente, com lealdade e honestidade,
declarou, antes de ser interrompido por Rodrigo. E valerá
mesmo a pena tanto esforço, para depois tudo acabar numa
ilusão ou mesmo numa tragédia, mestre? Se o casamento
fosse aquilo de que nos acabou de falar, por que razão há
tantos divórcios, interrogou o médico.
O Alquimista prosseguiu o seu comentário sem aban-
donar o sorriso. O casamento, tal como vocês o concebem,
pensam e praticam, não é belo e viola um dos três aspec-
tos mais importantes da natureza humana, respondeu. Um
aspecto?! Que aspecto, mestre, inquiriu Jordão. Que todos
vocês são amor puro. São eternos, ilimitados e livres por
natureza porque o amor também é eterno, ilimitado e livre
por natureza. Qualquer construção social, religiosa, moral
ou política que vá contra a vossa natureza é uma imposição
do ego colectivo sobre o vosso verdadeiro Eu, sob o pretexto
de transmitir um sentimento de segurança nas vossas vidas.
Isso não é um casamento! É uma teia social concebida pelo
vosso ego para controlar os vossos comportamentos. Nada
mais, respondeu o profeta.
Constantino interpelou o sábio. Mas, então, se não
olharmos para o casamento como uma instituição, devemos
olhar para o casamento como o quê, questionou o padre. O
Alquimista respondeu com júbilo nos lábios e um brilho nos
olhos. Como aquilo que verdadeiramente é: uma celebra-
ção pública do vosso amor. Um oceano ondulante entre as

342
O Evangelho do Alquimista

margens dos vossos sonhos, onde podeis oferecer, simul-


taneamente, os vossos corações; um palco onde podereis
cantar e dançar juntos, desafiando a Lei da Gravidade, sem
desrespeitardes a vossa solidão; um bom vinho, de que po-
dereis encher as vossas taças, sem precisardes de beber da
taça do outro e um pão para partirdes ao meio, sem precisa-
rem de comer do pão do outro. Pois, tal como as cordas de
uma guitarra estão separadas, para poderem vibrar ao som
da mesma música, também vós deveis respeitar o vosso es-
paço, para evoluirdes na vossa união, em direcção à opção
de viver, em conjunto, no todo e para sempre, respondeu o
profeta. Todas as pessoas que o rodeavam se comoveram
com aquelas palavras. Constantino ficou cabisbaixo e sem
palavras perante toda aquela eloquência. Subitamente, um
casal aproximou-se do Alquimista. Eram um homem e uma
mulher muito jovens e de vestes humildes. Os sorrisos deles
contrastavam com as dúvidas espelhadas nos seus rostos. O
profeta abriu os braços, como se esperasse um abraço de
ambos: aproximaram-se.
A mulher foi a primeira a tomar a palavra. Mestre,
precisamos da vossa ajuda. Pedi e recebereis, respondeu,
sorridente. Chamo-me Camila e este é o meu marido, Xa-
vier. Estamos casados há cinco anos e desde há três que não
sentimos nada um pelo outro. Que devemos fazer, pergun-
tou a mulher, ansiosa. Pensámos que se tratava de uma crise
passageira mas, por exemplo, quando me deito a seu lado,
sinto que estou deitado... com uma estranha; e, em vez de
nos sentirmos livres, parece que estamos presos numa gaiola
com a portinhola aberta, sempre à espera de que um de nós
tome a iniciativa de partir e... seguir o seu caminho, respon-
deu o homem. De repente, são surpreendidos por um padre.
Tinha mais anos nas mãos e no rosto do que a juventude
dos olhos revelava. A declaração daquele jovem casal pro-
vocou-lhe uma erupção de cólera que tomou conta das suas

343
Tiago Moita

palavras. Têm consciência do que acabaram de dizer? Como


podem ter dúvidas, depois de terem recebido um sacramento
instituído por Deus? Vão mas é para casa e deixem-se de
disparates, respondeu, irado.
O profeta fez ouvidos de mercador às palavras do clé-
rigo e pegou nas mãos do casal, dirigindo-se para uma mesa
de pedra, cercada por quatro bancos da mesma espécie. O
casal ficou frente a frente, enquanto o profeta se sentava ao
lado deles, segurando as mãos daquelas duas almas. Tan-
to o padre como o povo que o seguia os acompanharam,
aguardando, com expectativa, a conclusão daquele gesto. O
Alquimista pediu-lhes para que colocassem as suas alianças
no meio da mesa e olhassem um para o outro.
Sério, virou-se para o marido e perguntou-lhe. Xavier,
queres receber Camila como tua esposa e prometes ser-lhe
fiel, amá-la e respeitá-la, na alegria e na tristeza, na saúde
e na doença todos os dias da tua vida? Não, respondeu o
homem, entreolhando-a. O Alquimista voltou-se para a mu-
lher e perguntou-lhe. Camila, queres receber Xavier como
teu esposo e prometes ser-lhe fiel, amá-lo e respeitá-lo, na
alegria e na tristeza, na saúde e na doença todos os dias da
tua vida? Não, respondeu a mulher, entreolhando-o também.
Então, pela vossa livre vontade, e tendo Deus e o Universo
como testemunhas, declaro-vos livres do vosso compromis-
so e soberanos da vossa vontade, caminhando em direcção a
um amor puro incondicional e a um Céu que já existe, dentro
dos vossos corações, declarou de olhos fechados, numa
oração que comoveu de alegria o casal recém-separado e
todos os presentes. Como por encantamento, as alianças
transformaram-se em cinza e evolaram-se no ar. Os jovens
abraçaram o profeta, comovidos e seguiram as suas vidas
por caminhos diferentes.
O padre virou-se para o sábio, furioso, vociferando os
piores vitupérios que o ouvido humano alguma vez imagi-

344
O Evangelho do Alquimista

nou ouvir da boca de um homem da Igreja, argumentando


aos quatro ventos que o homem não podia separar o que
Deus unira. O profeta assentiu nessa afirmação e declarou
que também Deus não podia unir o que já não existia.
Assim pregava o Alquimista.

345
SETENTA E TRÊS
O milagre das alianças e as palavras do Alquimista
correram de boca em boca por toda a Vila Romã. Multidões
marejadas de alegria e lágrimas de sal prostravam-se perante
o profeta do Oráculo do Destino, como se de um novo Mes-
sias se tratasse; um enviado de Deus ao mundo para salvar
a Humanidade dos seus pecados. Clérigos enfurecidos e fa-
náticos religiosos vociferavam contra aquele forasteiro e o
povo que o seguia, utilizando frases venenosas como filho
de Satanás ou Diabo em pessoa para tentarem afugentar os
espíritos mais débeis e ignorantes: sem efeito.
Bancheler era o homem mais rico e poderoso da vila.
Mais astuto do que néscio, não tardou a convidar o homem
de que tanto falavam. Enquanto o profeta, os seus discípulos
e seguidores passeavam pelo povoado, um criado do mag-
nata apresentara o convite, verbalmente, para o banquete de
homenagem ao baptismo do seu primeiro neto. O profeta
aceitou, com duas condições: Que o convite fosse extensivo
a todos os seus discípulos e que houvesse alojamento, comi-
da e segurança na vila para ele e todos os que o seguiam. O
criado ouviu as condições do sábio e correu em direcção ao
palácio para informar o seu amo. Meia hora depois, regres-
sou com uma resposta afirmativa.

347
Tiago Moita

A mistura de vários odores dos corpos e das iguarias


durante o banquete, bem como das diversas línguas, cores,
raças, sexos e religiões, evidenciava o espírito ecuménico e
humanista de Bancheler, um homem capaz de sentar, à mes-
ma mesa, pessoas que nada tinham em comum, senão a sua
humanidade, e isso lhe bastava. A alegria dos convidados,
estimulada pela dança e pelo vinho, era contagiante, a ponto
de o próprio Alquimista e a sua companheira entrarem na-
quele ritmo inebriante. O êxtase do ritmo desafiava a gravi-
dade dos corpos e o peso das almas. O fim da última canção
terminara aquela euforia com uma estridente ovação.
Na mesa, Bancheler interpelou o profeta acerca da
melhor maneira de saber seduzir as mulheres; era viúvo e
queria muito voltar a casar. O Alquimista assentiu com um
sorriso e respondeu. Quando o Amor vier ao vosso encon-
tro, persegui-o com persistência e paciência; mesmo que o
seu caminho seja doloroso e sinuoso. Abrace-o, no momento
exacto em que as suas asas de anjo vos envolverem, mesmo
que sejais feridos pela sua adaga oculta, e quando ele vos
sussurrar ao ouvido, acreditai nele; mesmo que a sua voz
perturbe os vossos sonhos. O triunfo do amor requer sempre
o supremo sacrifício. Assim será para a sua evolução como
para o seu declínio, respondeu. O homem ficou confuso e
intrigado com aquelas palavras. Mas, mestre, perguntou ele,
como pode o amor abalar os meus sonhos e contribuir para
o meu declínio, se espero dele precisamente o contrário?
Porque é assim que o amor funciona. Revela toda a nossa
nudez, lavra a nossa inocência e peneira a nossa podridão até
nos tornar moldáveis, respondeu o profeta.
Mestre, interpelou Leandro, quando é que alguém
aprenderá o suficiente sobre as relações humanas para con-
seguir vivê-las sem problemas? Existe alguma fórmula para
ser feliz nas relações ou deverão elas ser um desafio cons-
tante, perguntou. O sábio soltou uma gargalhada ressoante,

348
O Evangelho do Alquimista

antes de responder. Tantas perguntas para quem poupou


tantas palavras durante esta jornada. As relações são um
constante desafio à tua personalidade. Nada tens a apren-
der sobre elas; apenas provar o que já sabes das suas ex-
periências. Nós somos alguma coisa só em relação a ou-
tra coisa que não existe e este desafio pode exigir-te que
cries, expresses e ganhes cada vez mais experiência, dos
teus aspectos mais nobres. É por isso que só podes existir
no universo através das relações que tiveres com lugares,
acontecimentos e, claro, outras pessoas. Só assim enten-
derás o pressuposto das relações.
Que é, perguntou Bancheler, expectante. Todos os
sons do salão de festas foram engolidos pelo silêncio, até
o neto daquele homem abastado serenou, para todos os
presentes poderem ouvir a resposta da boca do profeta.
O pressuposto de uma relação é decidir qual a parte
de vós que gostaríeis de exibir e nunca a parte do outro
que quereis conquistar e manipular. Essa é a razão pela
qual todas as relações fracassam: começaram pelos mo-
tivos errados. A maioria das pessoas pensa mais naquilo
que vai retirar de uma relação do que naquilo que vão lá
colocar. É muito romântico dizerdes à pessoa que amais
que não ereis nada até essa pessoa especial ter entrado nas
vossas vidas, mas é falso! Vós sempre fostes alguém! E
não pensais que, quanto mais fazeis isso, maior é a pres-
são que exerceis sobre essa pessoa para ser uma coisa
que ela nunca foi nem será: daí o ressentimento, a raiva
e a frustração. Pior: Vós deixai vos enganar pelos vossos
egos e julgais vos transformados pelo amor; e esquecei
vos de que o propósito de uma relação não é encontrar
uma pessoa que vos preencha o vosso vazio, mas antes,
alguém com quem possais partilhar a vossa grandeza, res-
pondeu. Um enorme burburinho se instalou entre os pre-
sentes. Constantino aproveitou a deixa para culpabilizar

349
Tiago Moita

Rodrigo por ter traído a mulher. O médico não lhe deu


ouvidos.
Silêncio, ordenou o aristocrata. Mestre, se as relações
são, tal e qual, como descreve, que devemos fazer para se-
guir o verdadeiro desígnio das nossas relações, inquiriu. O
Alquimista respirou fundo, antes de responder. O amor é a
água que mata a sede à paixão e não tira nada que não venha
da sua fonte, porque o seu maior desejo é a sua plenitude.
Todas as relações são sagradas porque providenciam a me-
lhor oportunidade da vida para realçarem o vosso verdadeiro
Eu. Amai-vos e conhecei-vos, antes de amardes e conhecer-
des alguém. Dai espaço a cada pessoa comprometida para se
encontrar com o seu Eu. Só é mestre nas relações aquele que
encontrou sabedoria em todas as relações que teve e sabe,
previamente, quais serão as decisões que irá tomar. Nenhum
de vós pecará se se colocar em primeiro lugar no senti-
do mais nobre da vossa existência. Sempre que as vossas
companheiras – ou companheiros – concordarem, em cons-
ciência, em olharem para a vossa relação como uma opor-
tunidade para elevarem as vossas vidas ao mais alto nível
espiritual, saneando qualquer ideia inferior ou pensamento
errado sobre vós mesmos, reencontrar-se-ão com Deus, atra-
vés da comunhão das vossas almas, respondeu. Uma torren-
te de lágrimas e uma salva de palmas de todos os presentes
foram o resultado das suas palavras.
E continuou. Quando enxergarmos a beleza em todos
os rostos e nos concentrarmos no talento da outra pessoa,
elevamos a Humanidade ao seu Eu Superior e expandimos a
nossa energia, ao serviço de uma nova ética interpessoal nas
relações. Quanto mais ampliarmos a frequência de sincro-
nismos orientadores, capazes de auxiliar cada individuo que
aparece nas nossas vidas a evoluir e a aumentar as probabili-
dades de recebermos uma mensagem do universo, caminha-
remos para uma maior evolução.

350
O Evangelho do Alquimista

Poucos conseguiram esconder a emoção causada por


toda aquela sabedoria e retórica. Apenas Gustavo perguntou
ao Alquimista o que fazer no momento mais crítico de todas
as relações humanas. O profeta respondeu com uma simples
pergunta.
– O que faria o Amor, Aqui e Agora?
Assim pregava o Alquimista.

351
SETENTA E QUATRO
A festa estava ao rubro no palácio de Bancheler. O
filho e o genro do neto do grande magnata da Vila Romã
recolheram-se cedo por causa da criança, menos o dono da
mansão e o resto dos convidados. As danças e as gargalha-
das prolongaram-se pela noite dentro, assim como os desejos
mais secretos de casais e amantes, ansiosos por encontrarem
no ribombar do fogo-de-artifício e na sombra dos arbustos
e árvores, o refúgio para libertarem o fogo das almas da pu-
reza dos corpos. Magdala e Samuel não eram excepções à
regra.
O arfar dos desejos e o roçar dos corpos nus, contra
os arbustos e as árvores, alimentavam o fogo invisível que
os dois amantes sentiam um pelo outro. A distância da resi-
dência do aristocrata e o estalar dos foguetes faziam daquele
pedaço de natureza o local perfeito para a consumação da
paixão que nutriam, desde o primeiro dia em que se tinham
conhecido. Apenas a lua desnudava as curvas e a natureza
dos sexos de cada um. Encostada a uma árvore cercada de
moitas, Magdala ardia toda ela de desejo. O corpo transpi-
rado da antiga prostituta excitava ainda mais Samuel, im-
paciente por despir as roupas dela, tal como a sua amante
fazia com as dele. O primeiro gemido fizera-se sentir, quan-

353
Tiago Moita

do Samuel segurou Magdala pelo colo, com os braços e as


esculturais pernas, cruzando e apertando-lhe o corpo ao seu
tronco ressumado.
Subitamente, Samuel recuou e começou a observar
Magdala com uma certa gravidade. A mulher estava quase
em pleno clímax, prestes a atingir o orgasmo, quando o jo-
vem caixeiro-viajante a largou. O que se passa, perguntou
ela, ofegante. Samuel não lhe respondeu e começou a obser-
var a energia da amante tentando sugar a sua, lembrando-se,
de imediato, de tudo o que o Alquimista tinha falado acerca
das cenas de controlo e do problema das relações român-
ticas. Ao mesmo tempo, olhou para as árvores e arbustos
onde os restantes casais de amantes se entregavam ao mes-
mo devaneio que eles tinham partilhado minutos antes. Ne-
les observou o mesmo processo de controlo da energia do
amor-próprio, que ambos estavam a fazer naquele momento
de plena alcova. O rosto de Magdala passou do espanto à
raiva. Uma bofetada no rosto do caixeiro-viajante foi a últi-
ma coisa que Samuel sentiu, antes de a antiga prostituta lhe
virar as costas e desaparecer da sua vista, furiosa.
Começaste a perceber, não foi, perguntou o Alquimis-
ta, atrás do jovem. Samuel sobressaltou-se com a inespera-
da aparição do profeta. Que susto! Pensava que estava com
os restantes convidados, exclamou. Uma premonição em-
purrou-me para aqui. Não pude deixar de assistir ao que se
passou entre vocês e entendi que não só começaste a tomar
consciência do que te disse, como pensei que quisesses
saber mais acerca da dependência afectiva das pessoas, não
é verdade, perguntou o profeta. O jovem assentiu, como se a
sua vida dependesse daquilo que o Alquimista lhe iria dizer.
Os antagonismos que surgem nas relações amorosas
derivam do fluxo de energia que circula num casal. Dei-
xamos de dar mutuamente energia e passamos, inevitavel-
mente, para as cenas de controlo, quando nos apaixonamos,

354
O Evangelho do Alquimista

tentando dominar e sugar, para nós, a energia do outro.


Essa necessidade de poder começa sempre quando cada
indivíduo entra numa relação com a ideia, inconsciente, de
que o seu companheiro – ou companheira – se tornará num
substituto do pai ou da mãe que tiveram ou gostariam de
ter tido, colmatando as carências afectivas da nossa infân-
cia, respondeu. Samuel estava perplexo. Quer dizer que os
nossos pais são culpados pela forma como nos relaciona-
mos, inquiriu. Não, Samuel. – disse o profeta. – Os vossos
pais não são culpados de nada. Foram vítimas de vítimas.
Estavam ambos assustados e preocupados como vocês,
quando iniciam uma relação ou têm um filho. Se conse-
guirdes equilibrar a vossa energia, masculina e feminina,
centrando-se na beleza de cada rosto, sorriso e olhar, sen-
tirdes a vossa euforia e êxtase na solidão dos vossos quar-
tos e olhardes para os outros, pelas suas virtudes, talentos
e desafios que vos iriam trazer, conseguireis preencher o
círculo do amor e entendereis que são um só com Deus
e o Universo, sem dependerdes de ninguém. Entendeste,
perguntou o Alquimista.
Entendi... isso significa que, superado esse estado de
controlo e dependência, superamos o mal que habita em
nós, perguntou Samuel.
Quando o bem sente fome, procura alimento nos de-
sertos mais inóspitos e quando tem sede, bebe até dos rios
mais poluídos. Todos nós somos bons quando nos sentimos
unos em nós próprios e em comunhão com Deus e o Uni-
verso. O oposto torna-vos adormecidos; nunca maus. Sois
bons quando estais verdadeiramente conscientes de quem
realmente sois e dais passos corajosos em direcção aos
vossos objectivos, respondeu. Samuel sentiu-se baralhado
com aquela explicação. Mas, se não existe mal, por que lu-
tamos e não encaramos a vida com optimismo, exclamou.
O Alquimista respondeu com um sorriso plácido.

355
Tiago Moita

Nenhum ser humano é obrigado a lutar ou a ficar de-


primido nem vice-versa. Antes de tu nasceres, a tua alma,
assim como todas as almas do universo, embarcou numa
viagem, rumo à consciência de quem tu verdadeiramente és.
O nascimento é apenas o ponto de partida para esta viagem,
que começou com o primeiro batimento do coração. Durante
a nossa viagem em direcção a Distopia recordo-me de me
questionares sobre a necessidade de as guerras existirem,
uma vez que Deus e o Universo se opõem, ferreamente, con-
tra elas, e eu respondi-te: pelo respeito à vida. Toda a guerra
é uma tragédia para o ser humano e para a natureza, mas
também pode ser uma necessidade – e nunca uma retalia-
ção ou castigo – quando estão em causa as leis universais, a
vossa evolução, pequenas divergências e a sobrevivência da
vossa espécie e de todo o vosso mundo. Por isso, sê pacien-
te, Samuel. Sejam todos pacientes. Estamos todos a receber
sabedoria e a descobrir maravilhas e experiências, sem qual-
quer espécie de sofrimento.
De repente, Samuel choca com Isauro, acabado de sair
de um dos arbustos, e vê um pombo batendo as asas em di-
recção ao infinito.
Algo não batia certo.

356
SETENTA E CINCO
Quem os visse ali deitados na cama, nus, cobertos
apenas por um lençol que lhes escondia os sexos, silencio-
sos e de olhos abertos, a absorverem os primeiros fios de sol
da manhã para o silêncio e o lusco-fusco do quarto, como
dois modelos de gesso, semelhantes àqueles que se encon-
tram nas montras das lojas de pronto-a-vestir, pensaria numa
ilusão de óptica ou num sonho, prestes a evaporar-se nas
margens do tempo. Para Nicole e Nicolau era uma forma de
tentar compreender o significado da noite passada.
Os dois agentes entreolharam-se, de cigarro entre os
dedos no ar, tentando encontrar uma resposta às suas dú-
vidas. Parecia quase impossível uma mulher, como Nicole,
habituada desde tenra idade a esconder os seus sentimentos
e instintos mais primários e Nicolau, tímido mas perseveran-
te por natureza, terem acabado por se entregarem um ao ou-
tro nos braços do desejo mais carnal e libidinoso que existe
na vida animal.
Nicole falou primeiro. Nicolau... digo...agente Nico-
lau. A respeito de ontem à noite quero que saiba que... tudo...
não passou de, disse, antes de ser interrompida por um longo
beijo do seu colega, que não tardou em converter-se num
abraço lúbrico de breves minutos. Não precisas de te justifi-

357
Tiago Moita

car, Nicole. – respondeu o agente, afagando-lhe o cabelo, e


entreolhando-a. – O que aconteceu ontem à noite fica só en-
tre nós. O resto do mundo não precisa de saber o que eu sem-
pre soube a teu respeito. O quê, perguntou a sensual agente.
Que, por detrás desta mulher dura e austera, se esconde um
ser humano lindo e sentimental, capaz de amar e de respeitar
o seu semelhante, respondeu, beijando-lhe o pescoço cálido,
assim como o resto do corpo.
A manhã chegara com o brilho do sol a presentear o
mundo e o pipilar de dois pardais no parapeito da janela do
quarto, como se fossem uma oferenda do céu para aqueles
dois recém-apaixonados. Nicole e Nicolau sorriram juntos
desde aquela descoberta até ao momento em que tomaram o
pequeno-almoço e saíram de casa. Um beijo, acompanhado
de um carinhoso abraço selou o sentimento que despertara
entre eles e desejavam explorar, num futuro próximo.
Os dois agentes chegaram a um centro industrial do
Bairro Avero. A ferrugem das estruturas, misturada com o
embaciamento dos vidros e o crocitar dos corvos, reproduzia
uma atmosfera apocalíptica onde tanto os edifícios se con-
fundiam com o fumo das chaminés e os trabalhadores com a
pelugem das ratazanas que circulavam por entre as sombras
e o lixo a céu aberto. O destino de ambos era uma velha
garagem de uma companhia comercial, situada no coração
daquela artéria industrial da cidade.
Nicole foi a primeira a entrar, seguida de Nicolau. O
aspecto da agente despertou a curiosidade e a libido de alguns
dos caixeiros-viajantes mais lascivos. A meta era o escritório
do gerente daquele espaço. O chiar da porta despertou o ho-
mem do sono dos justos. Inspectora-Chefe Nicole da Guarda
Zaratista e o meu assistente, Nicolau. – anunciou, mostrando
o distintivo antes do colega. – Gostaríamos de falar com um
dos caixeiros-viajantes que trabalha para si. Qual, perguntou
o homem, surpreendido com a presença dos dois agentes.

358
O Evangelho do Alquimista

Nicole limitou-se a mostrar uma fotografia a cores da pessoa


em questão, sem pronunciar uma palavra, como resposta à
pergunta feita. O rosto do indivíduo modificou-se comple-
tamente, passando da surpresa à raiva. Bem queria pôr as
mãos nesse malandro, mas, infelizmente, nada sei dele. Há
muito tempo que partiu para vender uns produtos nossos
numas povoações do norte do planeta e nunca mais voltou.
Surpreende-me vocês não saberem de nada, pois apresentei
queixa contra ele aos seus colegas, três semanas depois de
deixar de ter notícias dele e da nossa carrinha.
Nicole e Nicolau entreolharam-se, perplexos com a
revelação. Nicolau interpelou o gerente. Desculpe, senhor...
Jonas, respondeu o homem. Exacto. Por acaso não tem um
dossiê desse funcionário desaparecido, perguntou o agente.
O homem dirigiu-se para uma estante metálica atafulhada
de pastas de arquivo empoeiradas e retirou uma. A remo-
ção dele fez levantar uma pequena nuvem de poeira que
obrigou a tossir os dois elementos da Guarda Zaratista. Ni-
colau apressou-se a pegar-lhe. Precisamos desta pasta para
descobrir e falar com o seu caixeiro-viajante. Assim que o
encontrarmos, devolver-lha-emos a pasta e o seu funcioná-
rio, respondeu o agente. Óptimo, mas basta o dossiê. Se o
encontrarem, digam-lhe apenas que está despedido, respon-
deu. Nicole e Nicolau assentiram e dirigiram-se para a porta.
Ao saírem, os dois investigadores sobressaltaram-se com a
quantidade de trabalhadores e caixeiros-viajantes de caras
coladas ao vidro da porta. Nicolau compreendeu, de imedia-
to, o motivo.
Centro de Investigação Criminal. Entre as páginas da
pasta de arquivo do caixeiro-viajante desaparecido, Nicole
descobre o apontamento de um psiquiatra sobre uma obser-
vação feita ao estado psicológico da terceira criança que am-
bos procuravam desde Pelak. A descoberta fê-los deslocar
de imediato ao consultório do psiquiatra em questão, cujo

359
Tiago Moita

nome figurava na assinatura daquela folha. Terminada a


consulta, os dois investigadores pediram o ficheiro psiquiá-
trico do homem que procuravam. Aquilo que encontraram
mudou, por completo, o rumo da investigação sobre o caso
da mãe virgem e sobre o paradeiro do seu filho num ângulo
de cento e oitenta graus. À saída do consultório, Nicole fez
um telefonema.
– Comandante-chefe Metello? Agente Nicole do Cen-
tro de Investigação Criminal. Estou aqui com o agente Nico-
lau no consultório do...
– Agente Nicole, vá directa ao assunto. O que se pas-
sa?
– Descobrimos a terceira criança.
– É o Alquimista?
– É melhor ver com os seus próprios olhos.

360
SETENTA E SEIS
Apenas alguns seguidores ficaram pelo caminho, per-
didos para sempre no labiríntico jardim do palácio de Ban-
cheler, como moscas presas numa teia de aranha. Todavia,
não deixava de ser curioso que, por cada indivíduo – ou ca-
sal – que se perdia na viagem, o Alquimista conseguia en-
contrar sempre novos seguidores. O profeta despediu-se do
magnata com um abraço e um sorriso de gratidão pela estada
em sua casa. Este retribuíra com total adesão à sua filosofia.
Melhor recompensa não poderia esperar.
Vila Romã era já uma miragem no horizonte mas uma
memória para alguns seguidores, sobretudo os mais jovens,
tatuados ainda com os efeitos de tudo o que tinham vivido
no jardim da Mansão, conseguindo chegar a tempo de se
fazerem à estrada com o profeta do Oráculo do Destino e os
seus discípulos. Três dias depois de terem partido, chegaram
a uma aldeia abandonada: pararam.
Um vento aziago desfigurara a paisagem desértica da-
quele aglomerado de ruínas de casas e edifícios públicos fei-
tos de madeira e cal; sons de janelas e portas que se abriam
e fechavam ao sabor da corrente; ratazanas do tamanho de
coelhos escondidas nas sombras de prédios contíguos; bolas
gigantes de restos de ramos e espinhos rolando pela soli-

361
Tiago Moita

dão das ruas. O cemitério da povoação era mais do que um


símbolo da morte: representava o que restava de uma loca-
lidade, agora entregue à fúria dos elementos da natureza e à
voracidade do tempo.
O Alquimista mandou Samuel parar a carrinha junto
ao que parecia ser uma antiga escola. Toda a caravana parou
e saiu, ao mesmo tempo que o profeta, rumo àquele clássico
estabelecimento de ensino. Durante a confusão, Constan-
tino, num momento a sós, tentou culpabilizar Heitor, lem-
brando-lhe o tempo em que copiara um teste no segundo
ano do curso de Administração Pública e o facto de ainda
viver às custas da mãe. O funcionário público ficou pálido
com aquela insinuação, dizendo que tudo era apenas uma
calúnia contra ele e exigiu provas de tudo o que lhe acabara
de dizer. Quando o sacerdote pensava ter Heitor na mão, o
sábio surgiu, como um fantasma entre aqueles dois homens.
Furioso, Constantino afastou-se de Heitor e juntou-se aos
restantes discípulos. Dentro da Escola, o Alquimista pediu a
todos que se sentassem à volta dele e o escutassem.
Grande parte da Humanidade costuma confundir Edu-
cação com Conhecimento e Cultura com Sabedoria, esque-
cendo-se de que são conceitos opostos. Educação tem a ver,
acima de tudo, com transmissão de sabedoria. Lembrai-vos
de que aquilo que vós aprendeste por palavras já o conhecí-
eis em pensamento. Os vossos egos podem ignorar os mis-
térios da paixão, mas os vossos ouvidos aspiram ao som da
sabedoria que brande nos vossos corações, porque são os
únicos detentores dos segredos das horas, respondeu.
E continuou. O rio da vossa alma possui uma nascente
encoberta que deve empertigar-se e correr para o mar, ao sa-
bor dos seus murmúrios, para que o tesouro dos vossos abis-
mos seja revelado perante vós. É por essa razão que sempre
tocais a nudez da carne dos vossos sonhos com a ponta dos
dedos. Não busqueis autoconhecimento nos poços sem fun-

362
O Evangelho do Alquimista

do do vosso conhecimento entrincheirado. Nunca afirmeis:


descobri a verdade; afirmai antes: descobri uma verdade;
nunca afirmeis: revelei um caminho para a alma; afirmai
antes: deparei com a alma a seguir os meus passos. Porque
a alma calcorreia todos os caminhos; não percorre uma li-
nha recta nem cresce como um bambu. A alma desabrocha,
como um lótus de infinitas pétalas, sozinha e sem avisar o
universo da sua intenção.
Ninguém conseguia contradizer semelhantes pala-
vras. Adriano, esse, continuava confuso a respeito do sig-
nificado da Educação, segundo a visão do Alquimista. O
profeta compreendeu as suas dúvidas e tentou explicar-lhe
de outra forma.
Nada nem ninguém vos poderá revelar, o que quer que
seja, que não esteja já desvendado na alba do vosso saber.
O verdadeiro professor caminha, entre os seus pupilos, na
sombra da árvore da ciência e do conhecimento, mas não
vos convida a entrardes no templo da sua sabedoria; guia-
-vos à vossa própria lucidez sem nunca dar as chaves do seu
entendimento. Ele nunca dará a sua gnose, mas antes o seu
amor e a sua fé. Por isso, mesmo que cada um de vós cami-
nhe só em direcção a Deus, também deveis tomar, sozinhos,
na tomada de consciência do criador e da vossa compreen-
são de vós, da natureza, do vosso mundo e do universo.
Assim pregava o Alquimista.

363
SETENTA E SETE
Mais do que uma necessidade, comer tem sido ao lon-
go dos séculos, um dos maiores prazeres de todos os seres
vivos, especialmente dos seres humanos que fazem da culi-
nária uma arte, com um requinte apenas acessível a algumas
bolsas e paladares refinados, capazes de distinguir a mais
sublime iguaria da mais simples refeição. Metello não era
excepção à regra e conseguia apreciar os pratos mais bizar-
ros, desde que preparados com o primor e a excelência de
um verdadeiro chefe de cozinha de um qualquer hotel de
cinco estrelas de Distopia.
Apenas duas coisas irritavam o comandante-chefe da
Guarda Zaratista durante as refeições: comida mal prepa-
rada e chamadas telefónicas. O azar batera-lhe à porta da
segunda hipótese, quando o toque polifónico do telemóvel o
despertou do seu prazer pantagruélico. O nome no visor do
aparelho fê-lo soltar um suspiro de enfado.
Dá-me um bom motivo para não desligar imediata-
mente o telemóvel, explodiu, furioso. Os meus motivos têm
sempre um nome: Zarat. Está furioso e impaciente. Há mais
de uma semana que não temos notícias nem do Alquimista
nem dos seus discípulos. Rumores de conversões aos seus
ideais e migrações de peregrinos estão a deixar o nosso

365
Tiago Moita

grande líder à beira de um ataque de nervos. Como se isso


não bastasse, chegou ao meu conhecimento algo que devias
investigar, continuou Ptolomeu, do outro lado da linha. Que
informação, inquiriu. Não é um dado certo, mas têm sido
vistas muitas migrações de bandos de Tecno-Rebeldes em
direcção a Distopia.
Metello ficou atónito com a revelação. Os Tecno-
-Rebeldes, os maiores inimigos dos Distopianos, depois
do Alquimista, em direcção à cidade que se apoderara do
planeta. O silêncio que se fez sentir obrigou Ptolomeu a
perguntar a Metello se ele ainda estava em linha. Demo-
rou quase seis segundos a responder. Sim... ainda estou.
Vou já tratar disso quanto antes, respondeu. Óptimo! Trata
disso o mais depressa possível. Zarat aguarda um relatório
pormenorizado, ordenou, desligando abruptamente.
Metello perdera o apetite. O pombo-correio que che-
gara às suas mãos do palácio de Bancheler já não lhe satis-
fazia a gula depois daquela notícia. Intrigado com aquela
revelação, releu a mensagem que encontrara escondida num
rolo de papel, atado a um minúsculo tubo de cortiça.

Prestem atenção ao Alquimista. É um homem de duas faces. Não


se iludam com as aparências. No reverso deste papel, estão indicadas as
localidades por onde passou. Vemo-nos em Distopia. Até Breve. Sombra.

366
SETENTA E OITO
Tinha passado uma semana desde a saída da aldeia de
Sabugus. Tanto os discípulos como os seguidores do Alqui-
mista estavam cada vez mais conscientes da sua verdadeira
essência. O profeta não só abordava temas, profecias e reve-
lações como elaborava exercícios práticos para todos eles,
como forma de saber se estavam a evoluir de acordo com os
seus ensinamentos.
O entardecer coloria o céu num tom dourado e azul
celeste como um sonho de verão, retratado num quadro re-
nascentista. Do cimo da colina do monte Talbot, era pos-
sível ver todas as viaturas dos seguidores e discípulos do
sábio como minúsculos pontos negros rodando pela estrada.
Durante uma hora, o Alquimista obrigou-os a subir aquele
monte em silêncio, sem lhes apresentar qualquer explicação
plausível para tamanho feito. Chegados ao cimo, sentaram-
-se em posição de Buda, à volta do profeta, meditando du-
rante meia hora, sem que o tempo ou qualquer intervenção,
humana ou divina, interferisse nessa viagem ao epicentro do
silêncio de cada um, à excepção das palavras do Alquimista.
Lembrai-vos das minhas palavras e fazei-as vossas
porque elas sempre foram vossas também. Deus sois vós e
vós sois Deus, assim como todos os seres que permitem a

367
Tiago Moita

alma criar, experienciar e remembrar, tudo aquilo que exis-


tiu, existe e sempre existirá. Deus sempre estará nos vossos
corações. Não podeis perder o que dais. O princípio é Deus.
O fim é a sua obra e a obra é Deus criando – ou experien-
ciando. Todo o pensamento do vosso Eu, tido como menor,
é uma negação de Deus e do Universo e, por conseguinte, de
vós. Toda a palavra sobre o vosso Eu que vos diminua é uma
negação para Ambos e para vós próprios.
Não permitais que as vossas vidas representem nada
senão a visualização do melhor que existe nas vossas almas.
Por isso, gostaria que todos vós vos assumísseis publica-
mente, afirmou. Todos os que o rodeavam se entreolharam,
confusos. Dharma, intrigada, perguntou ao profeta o que
queria ele dizer com aquelas palavras. E ele esclareceu: As-
sumi-vos como Mestres! Assumi-vos como Deuses vivos na
terra e vivam toda a verdade que Deus encerrou em vós.
Não foi Jesus que disse vós sois templos vivos? Pois bem,
que seja essa a vossa missão! Todos os vossos problemas,
conflitos e dificuldades em criar uma vida de paz e alegria
no planeta se devem ao facto de não compreenderdes nem
seguirdes a regra mais simples do universo: Faz aos outros
o que gostarias que te fizessem a ti. De que estais à espera,
perguntou.
Hesitação e silêncio total. Quem olhasse para toda
aquela turba que o rodeava, pareceria estar a olhar para ado-
lescentes confusos num baile de finalistas, à espera do pri-
meiro que desse o primeiro passo para convidar alguém para
dançar. Samuel inspirou fundo e foi o primeiro a erguer-se e
a tomar a palavra.
Eu sou um Grande Mestre da Verdade Eterna e escolho
ensinar aos outros a nunca se negarem, respondeu, olhando
para o horizonte. Depois dele, um a um, os discípulos e os
seguidores foram repetindo a mesma frase do caixeiro-via-
jante, divergindo apenas noutras escolhas e outras verdades

368
O Evangelho do Alquimista

vindas da Grande Verdade que habitava no coração de cada


um deles. O Alquimista rejubilava com todas aquelas mani-
festações.
Sede Mestres da Verdade Eterna. Vivei a versão mais
grandiosa da visão mais excelsa que alguma vez tivestes so-
bre Quem Vós Sois. Levai a vossa percepção aos outros; não
pela fé mas pelo vosso exemplo. Ensinai o que aprendestes
e aprendei o que desejais saber. Estamos todos ligados e, por
isso, sede a fonte do Amor do Eu Sou nas vidas de todos os
vossos semelhantes, porque o que dais aos outros, dais a vo-
cês próprios. Vivei e dizei a vossa verdade. A vossa verdade
assenta na consciência da liberdade de Quem Vós Sois. Se
perderdes a liberdade, perdeis o vosso Eu e isso nunca pode
acontecer.
Assim pregava o Alquimista.

369
SETENTA E NOVE
Metade do planeta recebia de braços abertos a noite,
como uma sombra amiga em seu regaço. A sua legião, negra
e púrpura, chegara com o frio gelado, com que o Grande
Deserto costumava presentear todos aqueles que cruzavam
os seus domínios. A maioria dos animais circundava as re-
dondezas e a caravana do Alquimista, em volta de uma velha
base militar abandonada, cuja gare principal servira de porto
de abrigo e repouso improvisado para todos aqueles que o
seguiam.
Graco chegara no seu carro àquele aquartelamento
fantasma, ainda a noite era apenas uma criança fora do ber-
ço. Os olhos do chefe dos Rebeleus espelhavam um misto
de coragem e medo. Nunca se ausentara de Distopia duran-
te tanto tempo, nem executara qualquer espécie de missão
sozinho sem os seus camaradas. Não podia voltar atrás. O
incumprimento da missão não só punha em causa a sua re-
putação como também correspondia a um encontro marcado
com a morte.
Estava decidido. Antes de pôr o pé fora da viatura,
certificou-se das munições do seu revólver e reviu, mental-
mente, o que iria argumentar para convencer o seu antigo
pupilo a abandonar o maior inimigo do seu líder e regressar

371
Tiago Moita

para junto do seu povo. Cauteloso, fechou a porta do au-


tomóvel devagar e ligou, de imediato, o foco, caminhando
em direcção ao armazém onde pernoitavam os discípulos e
seguidores do profeta.
Graco não quis entrar. Sabia como chamar Isauro sem
despertar a atenção de ninguém. A menos de três metros de
distância do empório, começou a agitar uma espécie de dis-
co oval atado a um fio, produzindo um som semelhante a um
assobio. O jovem sindicalista Rebeleu despertou com aquela
toada e caminhou para fora do edifício, sem ser visto. Não
foi o único.
O espanto ao ver ali o chefe dos Rebeleus teve tanto
impacto quanto a sua pergunta. Grande Camarada Graco,
que faz aqui, perguntou Isauro, sério e cauteloso. Poderia
esperar uma traição de qualquer Rebeleu menos da tua parte.
Como foste capaz, Isauro? Logo tu, que tinhas um futuro
promissor no Partido e no Bairro. O melhor representante da
juventude de Rubro, símbolo do rejuvenescimento da nossa
causa, disse Graco de olhos marejados de mágoa e decep-
ção, antes de ser interrompido pelo jovem sindicalista. Se
abandonei o bairro foi por minha livre vontade e se desisti
de ser Rebeleu foi porque me apercebi, nas palavras e ideias
do Alquimista, da essência que faltava ao Socialismo, aos
amanhãs que se levantam que tanto apregoam em Rubro e
no Partido. O Alquimista trouxe-me, não só a mim como a
todos os seguidores e discípulos, aquilo que vocês não foram
capazes de fazer: implantar o verdadeiro paraíso na terra no
coração de cada ser humano, respondeu, de peito inflamado.
Graco rangia os dentes como um cão raivoso e dispa-
rou um tiro, rente aos pés de Isauro. Este, permaneceu imóvel
como uma montanha; do rosto: nenhum sorriso. As ideias do-
minantes de uma época nunca passaram das ideias da classe
dominante, respondeu, começando a ensandecer. Eu também
li Marx como o Camarada Graco leu Mao Tsé-Tung. Se bem

372
O Evangelho do Alquimista

se recorda, todo o conhecimento genuíno tem origem na ex-


periência directa. Com o Alquimista passei a ter a experiên-
cia do Todo, sem limites nem dogmas de nenhuma ideologia
ou religião. Religião, exclamou o chefe dos Rebeleus. Como
te atreves a pronunciar essa palavra na minha presença? A
religião é o suspiro da criança acabrunhada por um mundo
sem coração, assim como o espírito de uma época sem alma,
uma verdadeira droga, tal como as palavras do homem que
idolatras. Eu não venero nenhum homem nem nada que não
seja a minha voz interior. O Medo é o maior ópio do indiví-
duo; o Ego é o seu espelho e a mentira é mais alienante que
a religião, respondeu. Graco começava a vacilar mas não se
mostrou vencido. Os filósofos, como o teu Alquimista, limi-
tam-se a interpretar o mundo de diversas maneiras. O que
importa é modificá-lo. Isauro sorriu, prosseguindo sem pes-
tanejar. A mudança no mundo começará quando o homem
se conciliar consigo mesmo; só mudando o pensamento é
que conseguimos transformar o inferno que construímos no
paraíso que tanto sonhámos.
O caminho do inferno está pejado de boas intenções,
como sabes. Os homens fazem a sua própria História mas
não como querem. É a tradição de todas as gerações oprimir,
como um pesadelo, a mente dos vivos, respondeu, disparan-
do mais um tiro para assustar o jovem sindicalista; nem uma
gota de suor rolava do seu corpo púbere. A História, prosse-
guiu, não evolui em função de nenhuma luta de classes mas
em função da evolução da consciência colectiva em direc-
ção à iluminação do homem; o maior inferno é a inconsciên-
cia do ser humano enquanto ser espiritual. Somos todos um
aos olhos do Universo, respondeu com um brilho latejante
nos olhos. Graco aproximou-se dele e esbofeteou-o sem mi-
sericórdia, apontando-lhe o cano da arma no nariz. Devia
matar-te por essa insolência. O Alquimista envenenou-te o
cérebro. Não é a consciência do homem que lhe determina o

373
Tiago Moita

ser mas o ser social que lhe determina a consciência. Seguro


de si, Isauro não tardou a responder-lhe. A consciência não
é um produto social mas o trabalho interior de clarividência
do universo de cada ser. Graco retorquiu-lhe: um grama de
acção vale mais do que uma tonelada de teoria. Isauro con-
trapôs: um pensamento positivo pesa mais que um grama de
acção, porque o pensamento é a mente em acção.
Graco não conseguiu aplacar a cólera que lhe sufoca-
va o corpo e lhe corroía a mente. Num só golpe, soqueou o
jovem sindicalista. Traidor! O Partido é a mente, a honra e a
consciência do nosso tempo, e Tempo, tal como a Liberdade,
é algo tão precioso que tem de ser racionado. Não cura tudo,
mas afasta o incurável do foco central, exclamou, insano,
premindo de novo o gatilho do revólver. Isauro sangrava
pelo nariz sem transparecer qualquer tipo de medo perante
o seu chefe. Tinha plena consciência de que o preço a pagar
pela insubordinação às ideias do povo do seu bairro era a
morte. Todavia, sabia que a morte física não implicava o
fim. Subitamente, Graco ouviu passos na sua direcção. Prag-
mático, o Alquimista irrompeu das sombras da noite, com
uma lanterna acesa a ferir a escuridão, e uma resposta àquele
confronto ideológico.
– A consciência deste tempo não reside nos partidos
ou em qualquer tipo de associação, mas nas pessoas, en-
quanto seres físicos, mentais e espirituais. Quanto à liberda-
de de que falas, deve ser racionalizada, não pelo uso da força
e da demagogia, mas com responsabilidade e autodisciplina.
Não podes limitar algo que é, por natureza, ilimitável. – res-
pondeu. Graco desviou a arma para o profeta
– A morte de uma pessoa é uma tragédia. A de mi-
lhões, uma estatística. – respondeu, disparando um tiro. O
profeta ergueu, serenamente, a palma da mão e, através do
pensamento, reduziu a velocidade da bala, apanhando-a com
a ponta dos dedos.

374
O Evangelho do Alquimista

– Só o perdão e o amor incondicional podem curar


tudo o que o homem faz e nenhuma causa ou progresso jus-
tificam o derramamento de sangue inocente.
O rosto de Graco passou da cólera ao pânico. A loucu-
ra fez com que começasse a visualizar o Alquimista como o
Golem dos seus pesadelos. Atormentado com aquela visão
fugiu aos gritos em direcção ao carro, como se tivesse visto
o rosto da morte.
O profeta ajudou Isauro a levantar-se depois da fuga
do chefe dos Rebeleus do local da contenda, abraçando-o,
não como a um discípulo, mas como a um mestre.

375
OITENTA
Existem certezas que queremos ignorar enquanto esta-
mos vivos ou pensamos que estamos vivos. Desde o primeiro
fôlego para a vida até ao último segundo no mundo, a morte é
vista como um mistério, um abismo intransponível, porta de
entrada para outra dimensão ou para lado nenhum da nossa
existência. Durante séculos, houve quem pensasse que podia
curar os seres vivos da sua presença, como se de uma doença
se tratasse. Infelizmente, segundo o mundo que teme a sua
sombra, a morte chega sem aviso às nossas vidas e, tal como
a justiça, não olha a diferenças quando resgata as almas do
corpo e da mente, semeando um vazio no coração do homem.
Toda a caravana que seguia a carrinha de Samuel parou
abruptamente com um grito. Os veículos que a acompanha-
vam só não chocaram por milagre. Instintivamente, os pas-
sageiros saíram das viaturas e dirigiram-se para o carro que
travara daquela maneira abrupta. Uma atmosfera de temor e
intriga pairava sobre os discípulos e seguidores do Alquimis-
ta. Rodrigo pediu para as pessoas que se afastarem, pressen-
tindo ser necessária a sua ajuda médica. O profeta foi o último
a sair.
Constantino aproveitou a confusão para ir ter com
Magdala. A companheira do sábio ficou admirada com a sua

377
Tiago Moita

presença, e chocada, quando este a estigmatizou pelo facto


de continuar a ser ainda uma prostituta e por ter ganho o
gosto do sémen, quando fora molestada pelo pai apenas com
dez anos de idade. Magdala não conteve a sua raiva e indig-
nação, esbofeteando o sacerdote. O gesto da mulher deixou-
-a, a ela própria, estupefacta; doera-lhe mais a mão do que as
palavras do padre. Este afastou-se com um sorriso de vidro
e um olhar glacial, como se tivesse acabado de contaminar
o coração daquela mulher com um veneno oculto e indolor.
A consternação dos familiares que ali se encontravam
contrastava com a atitude passiva e consoladora das pessoas
que tinham assistido a toda aquela tragédia. Uma mulher de
idade bastante avançada acabara de se entregar às mãos do
criador, vítima de um AVC fulminante. Os mais clarividen-
tes fecharam os olhos e meditaram em silêncio uma oração,
vinda dos seus corações, como um mantra, para ajudar a sua
alma a caminhar mais depressa em direcção à Fonte; os mais
frágeis afogavam o rosto em lágrimas, como carpideiras dos
cemitérios. Rodrigo tinha feito os impossíveis para salvar
aquela mulher: Esforços inúteis.
O profeta chegara à viatura da fímbria e pusera a mão
no ombro de Rodrigo. O sábio compreendeu a frustração do
médico, perante o esforço empreendido para salvar a vida de
quem tinha decidido continuá-la noutra dimensão. Sem pro-
ferir uma palavra, o profeta fechou-lhe os olhos apenas com
uma mão e virou-se para os seus discípulos e seguidores.
Lembrai-vos de quando vos disse que a maior ambição
da alma é procurar o mais excelso sentimento de Amor que
possais imaginar? Então também vos digo que as lágrimas
que derramais pela partida desta nossa alma irmã não são
mais do que uma reacção da mente, inconsciente do facto
de que a vida não acaba nem no corpo nem em si mesma. A
alma sabe que tudo foi apenas mais uma experiência enviada
pela Fonte, antes mesmo de ela própria ter qualquer noção

378
O Evangelho do Alquimista

consciente da morte física do corpo e da mente, declarou o


Alquimista.
E continuou. A alma deseja sentir-se e conhecer-se
pela experiência através do sentimento que mais expressa a
sensação de unidade com o Todo: o amor-próprio. O amor-
-próprio está para o sentimento como o branco está para a
cor: assim como o branco é a fusão de todas as cores que
existem, combinadas, e não a sua ausência, também o amor
não é a ausência de emoções mas a união de todos os senti-
mentos. Por isso é que a alma tem de experienciar todos os
sentimentos humanos para poder experienciar o amor-pró-
prio.
Alguns dos discípulos ficaram baralhados com aquelas
palavras. Mestre. Como é possível que sentimentos opostos,
como o amor e o ódio, possam coexistir nesse sentimento
sublime que a alma procura? Como posso perdoar alguém
se nunca experienciei o perdão? Como posso ter compaixão
por aquilo que não entendo, perguntou Otelo, E o sábio res-
pondeu. O desígnio da alma é experienciar tudo à sua volta
para tomar consciência do que é. Escolherdes o que de me-
lhor existe em vós, sem amaldiçoardes aquilo que não esco-
lherdes, é optardes pela grandiosidade. A alma é amor puro
e incondicional, mas consegue descobrir a sua majestade no
campo daquilo que não é nobre, através da sua experiência,
respondeu o profeta.
Rodrigo interrompeu o mestre. Se é verdade tudo aqui-
lo que acabaste de dizer, como é que a alma busca esse tipo
de sentimento, perguntou o médico. O Alquimista recuperou
o fôlego com uma respiração suave, antes de lhe responder.
Todos os mestres tinham a mesma mensagem, Rodrigo: o
que eu posso fazer, tu também podes e muito mais. É mais
fácil negarmos a nossa essência do que a aceitarmos. Por
isso é que a cura é entendida como um processo de aceitação
do Todo, e não um remédio, para depois se escolher o que

379
Tiago Moita

for melhor. Perguntaste-me como é que a alma busca esse


tipo de sentimento e eu te respondo: através da intuição.
É através dela que a alma explora a circunstância e a si-
tuação perfeita, para erradicar um pensamento que esteja
a bloquear o aparecimento de oportunidades e experiên-
cias certas para tomares consciência de quem tu és. Tudo
o que a mente não é capaz de compreender, a alma enten-
de. A alma percebe que nós, o universo e Deus – ou Fonte,
como desejardes –, somos um, mesmo quando a mente
denega essa verdade e o corpo manifesta essa negação.
Portanto, quando quiseres tomar uma decisão importante
na tua vida, desliga-te da tua mente e analisa a tua alma.
Dharma interpelou o profeta. E como é que a alma
comunica connosco, inquiriu. Através dos sentimentos.
Escuta-os, segue-os e honra-os. Vive uma vida plena
onde cada um deles é filtrado pela tua mente e toma de-
cisões em função das análises que ela fizer da situação,
sem alegrias nem celebrações. Sempre que ages segundo
aquilo que é verdadeiro para ti, aceleras o teu caminho;
quando crias uma experiência na tua verdade actual e te
esqueces da tua dor passada, constróis um novo Eu. A
alma é a tua verdade e os sentimentos a sua linguagem. O
ego não tem nada a ver com a alma porque é um produto
do teu medo, e, por isso, não pode nem multiplicar nem
demonstrar o que é uno e verdadeiro em ti e no universo,
afirmou. Dharma assentiu com um sorriso e uma lágrima
de gratidão.
Adriano interpelou o Alquimista. Mestre. Em que
lugar do corpo fica a alma, perguntou. A alma está no
mesmo lugar onde está a mente, Adriano. Onde está a
mente, perguntou o sábio ao informático. O homem res-
pondeu, apontando o dedo indicador para uma das têmpo-
ras. O Alquimista negou sem mexer os lábios; sorridente,
respondeu. Como te disse, tanto tu como qualquer ser hu-

380
O Evangelho do Alquimista

mano no universo sois um ser composto por três partes:


corpo, mente e espírito, respondeu, levantando três dedos
da mão.
E continuou. A tua mente não está na tua cabeça mas
sim em todas as células do teu corpo. O cérebro encontra-
-se no crânio e é um processador de informação, embora
não seja o único órgão do corpo humano a transformar o
pensamento em impulsos físicos. É por isso que cada parte
do corpo possui mente própria, respondeu. Jordão, o mais
confuso deles todos, virou-se para o profeta, inquirindo-o.
Mas, Mestre, a minha antiga religião dizia que o corpo é o
templo do ser. Isso não significa que a minha alma seja o
meu corpo, demandou. O Alquimista soltou uma gargalhada
antes de lhe responder. Não, Jordão! Dizer que o corpo é o
templo do ser significa, por outras palavras, que os seres hu-
manos são mais do que o corpo. O corpo não é o invólucro
da alma; a alma é que é um invólucro do corpo. A alma não
tem princípio nem fim. Ela encontra-se em todo o lado: den-
tro, através e à tua volta. Cada alma é apenas uma vibração
diferente da mesma energia. O responsável de tudo isso é o
pensamento puro. A energia da vida que as almas baptiza-
ram de amor puro. Portanto, onde acaba uma aura começa
outra. Somos todos um e é isso que nós somos. Não penseis
no que ides fazer em relação a isso. Decidi, aqui e agora,
conhecerdes como tal.
Assim pregava o Alquimista.

381
OITENTA E UM
A luz dos primeiros fios de sol beijando suavemen-
te os olhos dos discípulos e seguidores do Alquimista foi
mais eficaz em despertar os seus corpos que a brisa morna
que se fazia sentir naquela manhã. O espreguiçar indolente
cumpria o ritual de mais uma noite de entrega ao sono dos
justos, quais plantas a desabrocharem do solo para a vida.
Uma por uma, as pessoas que seguiam o profeta do
Oráculo do Destino faziam as suas tarefas matinais. Raros
eram os rostos de cada homem ou mulher, velho ou crian-
ça que não acolhessem o novo dia com um sorriso solar a
navegar entre os silêncios das sombras que deambulavam,
de um lado para o outro, em busca de algo para cumprir
os seus rituais diurnos. O céu transparecia a claridade mas
não o inferno que muitos passariam se continuassem no
Grande Deserto, no apogeu do sol.
Dharma inaugurou o novo dia com um desabafo.
Que dia lindo! É em dias como este que não dá vontade
de trabalhar. Apenas brincar e rebolar na cama, respondeu,
saracoteando-se no chão como uma criança. O Alquimista
assistiu a todo aquele entusiasmo com alegria e convidou
todos os discípulos, e pessoas que o seguiam a escutarem-
-no.

383
Tiago Moita

Quando vos ligais ao trabalho, estais a preencher


um dos sonhos mais importantes da vossa existência que
é amar a vida. Trabalhar é deitar à terra a semente do vos-
so destino, que a alma escolheu, embalá-la e cuidar dela
enquanto ganha raízes. Estais a trazer paz ao universo e
a manter a alma na terra, como uma flauta de Pã, através
da qual o murmúrio dos dias se transforma em melodia,
afirmou.
E continuou. Nada, além da transpiração dos vossos
corpos e calos que sulcam as vossas mãos, apagará o vosso
destino, que emerge dos vossos corações. Todo o trabalho,
se for feito com amor, é uma forma de ligar-vos à Fonte
de toda a criação, porque o trabalho, enquanto criação, é
o amor na sua forma mais crua e pura; visível em todos
aqueles que manifestam o seu verdadeiro Eu.
Dario interveio na conversa, confuso. Mas, Mestre.
Muitas pessoas têm empregos e executam tarefas que de-
testam e, muitas vezes, são exploradas pelos seus patrões e
não ganham o suficiente para a sua subsistência, nem para
a das suas famílias. Por que é que elas não podem fazer na
vida aquilo que realmente desejam e sobreviver à custa dos
seus sonhos, questionou.
O profeta colocou-lhe a mão no ombro e apressou-se
a esclarecê-lo. As pessoas mais bem-sucedidas do mundo
são aquelas que não desistem nem cedem ao menor obstá-
culo na realização dos seus sonhos, porque sabem, desde o
início, que estão a caminhar em prol da evolução das suas
almas e não apenas em função das necessidades dos seus
corpos e mentes. A alma anseia por um estado de Ser e
não por estado de Fazer. Enquanto a mente vive na lógica
e na incerteza e o corpo está a fazer qualquer coisa, inde-
pendentemente da sua proveniência – uma vez que o seu
bem-estar se baseia nesse equilíbrio –, a alma preocupa-se
mais com aquilo que estás a ser, independentemente da tua

384
O Evangelho do Alquimista

ocupação, respondeu. Dario esboçou a sua satisfação, com


o esclarecimento. Heitor continuava pouco convencido.
Mestre. Disse que a alma está eternamente a Ser. O
que é que a alma tenta Ser, afinal, perguntou. O Alquimis-
ta virou-se para o funcionário público, radiante com a per-
gunta. Para uma pergunta simples, uma resposta do mesmo
estilo: imitar o pai, a matriz, a Fonte de Tudo O Que É, em
suma, ser Deus, experienciando aquilo que escolheu para
a sua encarnação, como já vos disse ontem. Ninguém está
neste planeta para produzir nada com os seus corpos. Estais
aqui para produzir algo para as vossas almas. A alma é a
força motriz que movimenta os corpos, porque estes são os
seus instrumentos, e não o contrário. Os verdadeiros mestres
são aqueles que optaram por criarem uma vida e não uma
maneira de tirar dividendos dela. Mentalizai naquilo que
vos digo: ninguém faz nada que não seja fruto do desejo da
alma. Os vossos empregos são um testemunho daquilo que
vós sois e o que sois é um reflexo daquilo que vós pensais
em relação à vida e ao trabalho. Se vos sentirdes insatisfeitos
em relação à vossa vida e ao vosso trabalho, mudai o pensa-
mento que tendes em relação a eles. Confiar em vós próprios
é confiar nas vossas almas. São elas que vos orientam para
as oportunidades certas e ideais, experienciando tudo o que
necessitais para contribuir para uma bendita unicidade. A
alma só se conhece a si própria na experiência que escolheu
quando cria, em conjunto e harmonia com o Todo. Nesse
instante, ela está em comunhão com a unidade e o Verbo
que criou o Universo em carne se transforma. O homem não
nasceu para trabalhar mas para criar, porque é um espelho
da criação e não um objecto. Assim que os bens materiais e
o êxito mundano deixarem de vos interessar, o caminho para
o céu fica aberto. Pequeno é aquele que vive no ócio, à mar-
gem das estações da vida, que se desloca, tranquilamente, a
caminho do infinito. E grande é todo o ser que, sem a ajuda

385
Tiago Moita

de ninguém, converte os murmúrios do vento numa canção,


para alimentar esse fogo rosa carne, que faz de eco e campo
de batalha entre o amor e o medo.
Assim pregava o Alquimista.

386
OITENTA E DOIS
Samuel tinha perdido a noção do tempo, tal como a
maioria dos discípulos e seguidores do Alquimista que se-
guiam o profeta do Oráculo do Destino. Desde que conhece-
ra aquele homem, deixara de utilizar o seu GPS para viajar.
Confiava mais no sentido de orientação e na intuição do sá-
bio que encontrara a pedir boleia no Grande Deserto do que
em qualquer instrumento de navegação. O calor que se fazia
sentir no pino da tarde começava a amolecer os corpos e as
mentes dos passageiros da caravana que atravessava aquela
bigorna árida, forjada pela fúria do astro-rei. A escassez da
água e de mantimentos teria começado a apoquentar os estô-
magos mais débeis. Uma imagem desfocada pelo calor ba-
fiento da tarde alertara os espíritos de todos os passageiros.
O Alquimista explicou a Samuel e aos seus discípulos
que aquela visão, que lhes era oferecida, eram as ruínas que
tinham restado da antiga vila de Shaloma, povoação fundada
por imigrantes Doptas há séculos – outrora, um dos entre-
postos mais prósperos do planeta – e que tinha sido fustiga-
da pela fúria da natureza, a ponto de se transformar numa
autêntica vila fantasma.
Os seguidores e os discípulos do profeta aproveitaram
a passagem pela vila para pararem e restabelecerem forças.

387
Tiago Moita

Aqueles que se recompuseram mais rapidamente procuraram


explorar mais detalhadamente aquela povoação, entregue à
voragem do tempo e do deserto, em busca de comida ou de
qualquer espécie de utensílios, de que pudessem usufruir em
caso de necessidade, durante a viagem. Desilusão. Apenas
aranhas e ratazanas escondidas por detrás das sombras das
casas e das esquinas bolorentas eram os seus habitantes.
O lusco-fusco fez com que, por instinto, todos aqueles
que seguiam o sábio se dirigissem para as ruínas do banco
local. O átrio – feito de mármore branco e negro – resistira
ao abandono à usura fria do tempo. Eram os primeiros hu-
manos a entrar naquele espaço, séculos depois.
A ninguém foi pedida autorização para repousarem
naquele local. O cansaço, acompanhado pela mão viúva da
noite, encarregara-se de anestesiar os sentidos e entregar to-
das aquelas almas ao repouso dos justos. Lá fora, escutava-
-se apenas o uivo dos coiotes e o canto mântrico dos grilos.
Um silêncio xamânico fora interrompido pelo barulho suave
dos pneus de uma viatura, que acabava de estacionar nos
arredores daquela vila.
Saul Rabel chegara a Shaloma e avistara, com os seus
binóculos, uma enorme concentração de veículos na praça
principal daquele ermo, esquecido do mundo. Tinha chega-
do ao seu destino. Prudente, saiu do carro e caminhou em
direcção à vila como uma nuvem navegando pelo Univer-
so. Durante o caminho, carregara o seu silenciador e ligara
discretamente um foco. Era preciso que ninguém desse pela
sua presença. Numa rua paralela ao banco, emitira o som de
uma cigarra, a partir do seu telemóvel, a cantar uma canção
da moda. Gustavo acordou e identificou o dono do aparelho
pelo som e foi ao seu encontro. Não foi o único a despertar.
Gustavo subiu uma pequena encosta, longe da vila.
Reencontrar o chefe dos Averos não o deixou estupefacto
nem com medo. Sabia o que tinha acontecido com os discí-

388
O Evangelho do Alquimista

pulos do seu mestre e pressentia a sua vez. Ao vê-lo, Saul


empunhou a arma e o foco e apontou-os para os olhos de
Gustavo. O contabilista, instintivamente, protegeu a vista
com o braço sem se desviar do líder do seu antigo povo.
Saul brindara-o com um sorriso gelado, sem conseguir tirar
o ânimo de Gustavo.
O chefe dos Averos foi o primeiro a falar. Franca-
mente, Gustavo, desapontaste-me. Poderia esperar ser traí-
do por qualquer pupilo ou subalterno para se juntar a esse...
profeta, menos por ti. Como foste capaz? Tinhas um futuro
brilhante à tua frente no nosso bairro e, de um dia para
o outro, deitaste tudo a perder. Porquê, Gustavo? porquê,
exclamou Saul, vermelho de raiva. A opinião que cultiva
o nosso próprio carácter depende inteiramente dos nossos
próprios juízos acerca da nossa conduta, Adam Smith, res-
pondeu o contabilista. Quem és tu para me falar em juízos e
conduta? Tu que sempre quiseste ser o centro das atenções
nas empresas onde eu te coloquei, lembras-te? É a vaidade,
a tranquilidade e o prazer que nos interessam porque têm
como recompensa sermos objecto da atenção e aprovação,
refutou Saul. Gustavo não se mostrou vencido. Eu também
li Smith como o senhor. Pensar mal de nós próprios é a
fonte de metade das desordens da vida humana, afirmou. E
que maior desordem pode existir senão a anarquia? Já pen-
saste no que esse homem diz a nosso respeito? Zomba dos
nossos princípios, da forma como negociamos e do bem-
-estar e qualidade de vida que o nosso sistema económico
trouxe ao nosso povo. Durante séculos, gozámos de paz e
estabilidade, criámos empregos, riqueza e progresso para a
nossa cidade como em nenhum período da nossa história;
erguemos fábricas e edifícios que rivalizam com as sete
maravilhas do mundo antigo e agora, vem esse... profeta
dizer para abandonarmos a nossa cidade e tudo o que con-
quistámos, disse, jocoso.

389
Tiago Moita

Gustavo tinha uma resposta na ponta da língua pre-


parada para ele. Que paz e estabilidade, Rabel? Aquela que
fez com que os exércitos dos estados massacrassem povos
para satisfazerem a gula das multinacionais? Os fins justi-
ficam os meios e toda a guerra é justa quando é necessá-
ria, Maquiavel, ripostou o chefe dos Averos. Nem todos os
fins justificam os meios e nem todas as guerras são justas
e necessárias. Falou em progresso, e eu pergunto-lhe: que
progresso? O progresso que poluiu e drenou as nossas reser-
vas de água doce? O progresso que fez de nós trabalhadores
descartáveis para toda a vida, com depressões e angústias
sobre o que fazer no dia seguinte, depois de termos sido des-
pedidos? O progresso que esgotou as reservas naturais do
nosso mundo e o transformou num planeta semidesértico?
Nenhum progresso justifica o fim da vida num planeta nem
nenhuma depressão permanente, um bem-estar. Tornámo-
-nos odiados, tanto por fazermos o bem como por fazermos
o mal e acabámos apáticos e insensíveis, vegetando a nossa
existência com mentiras, vícios e lixo, através da televisão e
da internet, e ainda me pergunta por que razão deixei Disto-
pia e o nosso povo, exclamou o contabilista com uma cente-
lha de fogo invisível a bramir do peito.
Saul parecia possesso, sem qualquer argumento credí-
vel, depois de ouvir aquelas palavras. Desesperado, levan-
tou o braço e apontou-lhe a arma. Subitamente, um som seco
de passos na areia desviou a sua atenção. Ao lado de Gus-
tavo, estava o profeta de que tanto ouvira falar, segurando
um espelho negro quase do seu tamanho. Saul começava a
ficar nervoso. O seu maior inimigo e principal responsável
pelo desvio moral do seu pupilo estava agora, diante de si,
com um espelho que não reflectia a sua imagem, apenas o
seu medo.
– O problema não está no dinheiro que ganham, mas o
que fazem para o possuir. Deixe tudo o que tem e siga-nos.

390
O Evangelho do Alquimista

Verá que não se arrepende – disse o profeta. Saul ergueu o


queixo e esboçou um sorriso sarcástico.
– Os homens quando não são forçados a lutar por ne-
cessidade, lutam por ambição. – respondeu, ao mesmo tem-
po que disparava um tiro contra o Alquimista.
A bala do silenciador estilhaçou o espelho em mil pe-
daços, transformando-os em dezenas de corvos, que esvoa-
çaram em direcção a Saul como vespas furiosas, saídas de
uma colmeia destruída pela mão cruel do homem. O chefe
dos Averos fugiu espavorido para fora daquele local, amal-
diçoado pelo seu próprio medo. Gustavo saiu em socorro do
Alquimista, caído no chão, mas sem qualquer tipo de feri-
mento. O contabilista tinha superado o desafio do destino
sem uma gota de sangue.

391
OITENTA E TRÊS
Medo e dor eram as expressões mais marcantes nas
mentes de centenas de habitantes das vilas e povoações que
tinham tido contacto com a sabedoria do Alquimista. Ape-
nas os mais ousados desafiavam o poder impiedoso da Guar-
da Zaratista e do exército de Zarat, combatendo com o que
possuíam: esforços infrutíferos.
Metello comandava a operação “Noite Púrpura” num
dos jipes – uma missão de busca de todo de tipo de textos
e merchandising e respectiva apreensão, feitos por simpati-
zantes e crentes das ideias do profeta do Oráculo do Destino.
Empedernido e atento como um falcão, o comandante-chefe
assistia às rusgas da Guarda Zaratista em cada povoação por
onde o Alquimista passara, com os seus discípulos e segui-
dores, enquanto comia um hambúrguer e bebia uma cerveja
de lata, com a passividade de um animal ruminante a obser-
var um palácio ou qualquer tipo de monumento emblemáti-
co, esculpido pela natureza ou pela vontade humana.
O caos deambulava por onde passavam, semeando o
pânico entre as populações. Soldados e agentes atiravam pe-
las janelas centenas de papéis e panfletos, considerados pro-
paganda subversiva contra Distopia e sua civilização; livros
com pensamentos semelhantes aos do profeta eram apreen-

393
Tiago Moita

didos e os seus donos detidos e levados para as esquadras da


cidade, onde eram submetidos a interrogatórios. Os leitores
suspeitos de serem crentes ou simpatizantes do Novo Pen-
samento Holístico e Multidimensional do Alquimista, eram
sujeitos a exames médicos e psiquiátricos, que iam desde
lobotomias até choques eléctricos. Os mais jovens, esses,
eram levados para campos de reeducação e integração so-
cial, onde eram obrigados a seguir o modo de vida urbano e
a ler compulsivamente apenas obras contemporâneas, esco-
lhidas pelo próprio Zarat.
Um rasto de cinza e fogo enegrecia a paisagem, mar-
cada pela fúria assassina dos braços armados do senhor de
Distopia e do planeta É, e pelo sangue e lágrimas das vítimas
do seu poder. Graças aos satélites e meios de comunicação
e transporte, os militares Distopianos tinham conseguido al-
cançar todas as vilas e povoações por onde passara o maior
inimigo da civilização Distopiana. Um soldado fora fuzila-
do pelos seus camaradas, por ter derramado uma lágrima
por uma criança que chorava pelos pais, mortos pela Guarda
Zaratista, numa praça entregue à dor e à morte. Tal como a
oposição às ordens de Zarat, o sentimento pelos fracos tinha
um preço.
– Sim? – exclamou Metello, atendendo o telemóvel.
– Comandante-chefe Metello, tenho mais uma pista
sobre o Alquimista. – respondeu Nicole Adágio, do outro
lado da linha.
– Que pista, agente Nicole?
– Não é “que”, mas “quem”.
– Quem? Importa-se de explicar melhor?
– A pista a que me refiro não é um objecto, mas uma
pessoa.
– Uma pessoa? Que pessoa?
– Uma testemunha.

394
OITENTA E QUATRO
Os raios de sol que penetravam pelas janelas do Banco
local de Shaloma, aquecendo e acarinhando as pálpebras dos
discípulos e seguidores do Alquimista, tinham mais efeito
do que um som provocado pelo ser humano, animal ou qual-
quer epifania celestial, no despertar de todas as pessoas que
seguiam o profeta. Tal como árvores que erguem os seus
ramos em direcção ao céu, cada pessoa acordava, segundo o
seu ritmo, e fazia as suas tarefas matinais rotineiras. Cons-
tantino aproveitara a confusão daquele despertar para falar
com Isauro.
O jovem sindicalista sobressaltou-se com a presença
da sombra do enigmático padre crístico. Assustaste-me. Que
queres, perguntou, refeito do susto. Não tens vergonha de
teres pertencido a um povo que defende o Ateísmo e a so-
breposição do poder sobre o indivíduo, exclamou o padre,
inquisitorial. Os Rebeleus deixaram de ser o meu povo, des-
de que abandonei Distopia e enfrentei Graco, sabes muito
bem disso, respondeu, levantando-se. Escuta: fontes seguras
asseguraram-me da vinda do Golem em direcção à caravana
do Alquimista. Não tenhas receio; estou do teu lado. Vem
comigo! Conheço um excelente especialista em problemas
psiquiátricos, que te vai ajudar a superar o teu problema.

395
Tiago Moita

O meu problema? Que problema, questionou o jovem,


intrigado. Eu sei tudo, Isauro. Sei tudo o que um vizinho do
prédio, onde nasceste, te fez, quando tinhas apenas dez anos.
Procedeu mal contigo e Deus já o castigou. Vem comigo e não
te preocupes, disse o padre. Isauro estava cada vez mais des-
confiado. Do... do que é que estás a falar, perguntou. Do dia
em que o teu vizinho do rés-do-chão te puxou para dentro da
sua casa e te molestou sexualmente. Queres que eu conte os
pormenores mais sórdidos desse acto de pura luxúria, excla-
mou, entreolhando-o. Isauro permaneceu imóvel como uma
pedra, sentindo a sua energia a ser sugada por aquele miste-
rioso clérigo. Constantino aproveitou-se daquele momento de
perplexidade para o levar dali e pô-lo a par do seu plano.
Tanto as mulheres como os homens, novos ou velhos,
ajudavam na confecção das refeições. Nenhuma das pessoas
deixava de orar e agradecer pela preparação dos alimentos e
a nutrição dos seus corpos, sob a orientação do Alquimista.
Terminado o almoço, o profeta pediu a todos os presentes que
se reunissem à volta dele.
Gustavo. – disse o profeta, virando-se para o contabi-
lista. – Lembras-te do que aconteceu na noite passada, per-
guntou. Como poderei esquecer. Não tenho palavras para
descrever o que fiz e o que o mestre fez por mim, respondeu.
E lembras-te do que disse Saul Rabel sobre o dinheiro, ques-
tionou o sábio. Recordo-me vagamente de ter dito qualquer
coisa sobre o problema de o dinheiro não estar na sua existên-
cia, mas no que fazemos para o possuir, respondeu, coçando
a cabeça.
O Alquimista sorriu, antes de continuar. O ser humano
tem uma ideia errada sobre o dinheiro. Dizem que o dinheiro
não nasce das árvores, que quem escolhe a vocação mais dig-
na é sempre o mais mal pago, esquecendo-se de que na maior
parte das vezes, não são merecedores da riqueza que desejam
ter, afirmou.

396
O Evangelho do Alquimista

E continuou. Tudo isto acontece porque, muitos de


vós, ignorais as Leis da Abundância – associando juízos
generalizados sobre o que considerais Bom e Mau – esque-
cendo-se de que o Universo é uma grande caixa de eco: li-
mita-se a reverberar infinitas cópias de tudo aquilo que vós
pensais. Durante muito tempo, o mundo – pais, familiares,
amigos, sociedade, etc. – manipularam a vossa mente, de
modo que cada um de vós se ajustasse ao meio onde viveu.
Mas vós não sois o resultado do pensamento do mundo; sois
o resultado do vosso pensamento em relação a vós mesmos.
Por isso, se quereis abundância e dinheiro nas vossas vidas,
mudai a forma de pensar a respeito delas.
Como, mestre? – interveio Gustavo. – Como é que o
pensamento é capaz de atrair a abundância para as nossas
vidas, perguntou o contabilista. O sábio fez um sinal de fir-
meza com a mão ao discípulo, antes de responder. Como vos
disse, vós sois seres criadores desde que viestes ao mundo.
O habitual método de criação do ser humano é um adestra-
mento, derivado de um processo de três fases que envolve,
primeiro, o pensamento; segundo, a palavra e terceiro, a ac-
ção. O truque está em mudardes o pensamento orientador:
em vez de pensardes antes de agirdes, agi antes de pensar-
des, segundo a vossa intuição ou oportunidade que apareça
à vossa frente. Se o fizerdes, a vossa mente não terá tempo
para duvidar da vossa intuição e captá-la-á no seu âmago.
Por isso, em vez de pensardes: quero viver em abundância,
experimentai dizer, vivo em abundância; em vez de pen-
sardes em querer a riqueza que tanto desejais, visualizai a
alegria e a gratidão de viverdes os vossos sonhos na mente,
como se já os tivésseis concretizado, declarou.
Heitor pediu a palavra. Mestre, se assim é por que é
que existe tanta pobreza e miséria no mundo, perguntou. O
Alquimista ergueu as sobrancelhas, antes de responder, sem
abandonar o sorriso. Vós dais muito pouco daquilo que tendes

397
Tiago Moita

na realidade e esqueceis-vos de que, só estareis realmente a dar


quando derdes um pouco de vós mesmos. Lembrai-vos disto:
no Universo, há aqueles que dão o pouco que não lhes faz falta
para exigirem respeito e protagonismo, o que torna as suas doa-
ções sem valor, e existem aqueles que dão tudo do pouco que
têm e não esperam outra recompensa que não a alegria de dar,
porque acreditam na virtude e majestade da vida. Para esses, as
suas bolsas estarão sempre cheias, respondeu.
E continuou. E ainda há aqueles que simplesmente dão
e desconhecem a dor de dar, mas sim a alegria dessa virtude. É
sempre bom dar quando vos pedirem, mas é ainda melhor dar
se vos for pedido pela sabedoria e, para aquele que não tem
vergonha de abrir as mãos, a alegria que se recebe é maior do
que a doação.
Para quê conservar tudo aquilo que nos pertence se, quan-
do partirdes deste mundo, tudo o que possuímos será dado? O
momento da dádiva é vosso e não dos vossos descendentes.
Por isso: dai! Dai agora, como os animais e as plantas dão para
sobreviverem. Porque sabem que o custo da avareza é o pereci-
mento. Aquele que se sente digno por cada dia em que acorda
e respira, merece beber do rio da vida, mais do que aquele que
vagueia pelo deserto, amargurado pela vida que tem.
Julgais-vos dignos de despir o orgulho, que os homens
escondem do mundo? Verificai antes se sois merecedores de
servir a dádiva; se estais dispostos a ser testemunhas da vida,
que dá de si própria sem exigir nada em troca, e erguerdes, en-
tre os que dão, sobre as dádivas – como pombas que voam sob
a cortina do céu, sem terem dúvidas da vossa generosidade –,
então podereis usufruir dos frutos do Universo. Só aqueles que
não sentirem nenhum fardo ou lamentação em dar e receber, é
que estarão preparados para acabar com a pobreza e a miséria
no mundo e semear um paraíso no coração de cada ser vivo.
Assim pregava o Alquimista.

398
OITENTA E CINCO
Constantino não desistia de perseguir Dharma. De-
pois de abandonar Isauro, esperou pelo fim da pregação do
Alquimista a fim de capturá-la. Faltou-lhe um pouco de sor-
te e audácia, enquanto sussurrava, ao seu ouvido, segredos
do seu passado na Mansão das Memórias. Teria conseguido
atingir o seu objectivo se não fosse o chorro da jovem, que
chamou a atenção de Magdala e do profeta. Hoje, sentia o
vento a soprar de feição. Encontrara Dharma sozinha, nas
traseiras de uma casa abandonada e em ruínas, tal como o
resto da vila de Shaloma. Mal a jovem saíra das sombras,
agarrou-a pelo braço e tapou-lhe a boca.
Constantino imobilizou Dharma com a ajuda de Qin-
na. A jovem ficou com os olhos dilatados e não conseguia
mexer um músculo sequer. Lá por nunca teres vendido o
corpo ao pecado não significa que tenhas nascido sem ele.
Eu conheci a tua mãe e sei o que ela fazia da vida no Bairro
Extasis. Aquela mulher não enganava ninguém com as suas
vestes e lábia; nem mesmo o pai do Leandro que, além de
bêbado e desempregado, era um grande cobarde. Nunca foi
capaz de assumir, perante a família, que tinha tido relações
com a puta da tua mãe nem que eras o fruto da sua luxúria,
disse o clérigo, com raiva e sarcasmo a escorrer-lhe da boca,

399
Tiago Moita

juntamente com o veneno, por cada vitupério que infligia à


jovem indefesa. Dharma soltara uma lágrima encoberta de
ódio. Subitamente, sentiu novamente mobilidade no seu cor-
po. Não é possível, exclamou o padre, atónito. Sem perder
tempo, a jovem, aproveitando-se do seu estado de espírito
e choque, libertou-se daquele homem com um valente pon-
tapé numa das canelas. Constantino soltou-a, desviando o
olhar para o Alquimista que presenciara tudo o que o pa-
dre tinha feito. Atarantado, ajoelhou-se, pedindo-lhe perdão
pelo que fizera. Dharma correu em direcção ao sábio, abra-
çando-o com força e gratidão. O som que escutara da canela
do maléfico padre deixara a jovem desconfiada.
Perdão, Mestre... perdão. Eu... eu não estava em mim,
respondeu, titubeando, como se esperasse uma repreensão.
Volta para o Banco e nunca mais voltes a importunar Dhar-
ma, ouviste, exclamou, sério, o Alquimista. Constantino
anuiu e fugiu para junto do povo que seguia o profeta. O
sábio limpou as lágrimas da jovem e reequilibrou a energia
da sua alma com palavras.
Dharma... Dharma! O que aconteceu já passou e não
volta mais a acontecer, enquanto te mantiveres consciente
da tua energia e do papel que tens no mundo. Não nasces-
te para ser um bode expiatório nem vítima do teu passado.
Não existe o ontem nem o amanhã, apenas o Aqui e o Ago-
ra. A realidade é uma criação do pensamento do Homem,
em comunhão com o pensamento de Deus. Não tens de te
sentir culpada por o que quer que seja. Lembra-te de que
és mestre, mas também indivíduo. Não és uma escolha dos
teus pais, mas sim uma escolha da tua alma, a fim de desco-
brir Quem Ela É. Nada nem ninguém está separado de nós
porque somos todos um, em comunhão com Deus e com o
universo. Tu, tal como as estrelas que bordam o céu, és tão
especial como a tua mãe, o teu pai e todas as pessoas que
ajudaram a tua alma a experienciar tudo o que necessitou

400
O Evangelho do Alquimista

para chegar até mim, disse o Alquimista levantando-lhe o


queixo húmido com uma das mãos
Dharma não conseguia disfarçar a emoção. Por mo-
mentos, gostaria de ter ouvido aquelas mesmas palavras
dos pais que a trouxeram para junto do seio do mundo; das
pessoas com quem travara conhecimentos e experiências ao
longo da sua vida púbere e do homem que a tirara da solidão
das ruas e a obrigara a abortar, contra a sua vontade. Não
demorou um minuto para esquecer tudo o que passara. A
dor era agora uma nuvem negra de passagem no horizonte
da sua vida.
– Mestre. O que é que vou dizer ao Leandro?
– O que o teu coração disser.

401
OITENTA E SEIS
Nada relaxava mais Salomão que um passeio noctur-
no pelo Bairro Seleceu. O stress provocado pelo trabalho no
laboratório, os objectivos a cumprir, assim como a responsa-
bilidade exigida, impedindo-o de qualquer erro ou problema
da parte dos seus subordinados, tinham de ser repelidos da
mente do cientista, responsável pelo projecto ultra-secreto
VHCruz. Só a brisa nocturna e a solidão das ruas conse-
guiam afugentar as emoções e pressões negativas de Zarat
e dos seus conselheiros sobre o desenvolvimento desse pla-
no, além das dúvidas que mantinha sobre a viabilidade das
ideias do Alquimista.
Seria tudo verdade? Pensava Salomão. A dúvida, esse
pensamento desviante de qualquer sistema totalitário, abis-
mo entre a sapiência e a ignorância, pairava sobre a mente
de Salomão como uma sombra forasteira. Não somente a
sabedoria do Alquimista, que deambulava por todos os bair-
ros da cidade, como uma praga, assim como as previsões
das restantes profecias do Oráculo do Destino relatando as
alterações climáticas e os estranhos fenómenos no céu, des-
cobertos por cientistas de Distopia, vinte e sete anos antes –
especialmente no ano do aparecimento do profeta –, faziam-
-no céptico em relação ao pensamento e ao modo de vida

403
Tiago Moita

da cidade e do bairro onde tinha nascido. Sem se aperceber,


absorto nas suas divagações, entrara num outro bairro.
Nas fronteiras entre os bairros da cidade existia uma
espécie de guetos, onde toda a espécie de marginais e pes-
soas esquecidas pela população da urbe – para não dizer do
mundo inteiro – se concentrava, numa espécie de aglome-
rado de edifícios deteriorados e emoções disfuncionais, tal
como era visível na degradação dos prédios e no rosto dos
habitantes que observavam de soslaio aquele homem de fato
de treino e sapatilhas de marca. Por instantes, Salomão sen-
tiu-se um micróbio cercado de glóbulos brancos por todos
os lados.
Era preciso agir; e depressa. Sem causar suspeitas, co-
meçou por aligeirar o passo, como se estivesse a praticar
marcha olímpica. Atrás dele, quatro sombras ameaçadoras
de jovens de rostos tapados e de poucos amigos, envergando
roupas com os odores da noite e das ruas e com tatuagens
– espelhos de emoções retorcidas –, seguiam, com a mes-
ma velocidade, os passos do cientista. Ansiedade. O rosto
do homem da ciência gotejava por todos os lados, o sangue
bombeava ao ritmo do medo.
Desvio: rua estreita. O chiar das ratazanas, que se
cruzavam com a sua sombra, fê-lo engolir em seco. Onde é
que eu me vim meter? Murmurava para consigo. O passo era
agora cada vez mais acelerado; a perseguição continuava;
os jovens não o largavam por um minuto. O pânico também
não: pára.
Encurralado. Salomão estava cercado por dois pares
de jovens da mesma estirpe, em quatro ruas perpendiculares
à sua. Sentia-se na linha de fogo de quatro bandos rivais;
cordeiro perdido de um rebanho ladeado por alcateias de lo-
bos numa floresta. Os rapazes caminhavam cadencialmente
em direcção ao cientista. Estava indefeso, sem nada nem
ninguém com que se defender ou que o defendesse. Jamais

404
O Evangelho do Alquimista

se devia ter aventurado por aquela mancha urbana como


fora, sem qualquer espécie de protecção. Não tinha como
fugir. As quatro cáfilas estavam cada vez mais perto de tocar
na sua sombra. De perto, pareciam meninos, feitos homens
pela frieza das ruas: grito.
Naquele momento, Salomão sabia que estava entre-
gue ao seu destino, apesar de nunca ter acreditado nele ou
em algo semelhante; o que desconhecia era que ele estava
debaixo dos seus pés, precisamente quando se abriu a tampa
do esgoto em cima no qual encontrava, e, após a queda, se
fechou, com a mesma rapidez com que se abrira. Do exte-
rior, só se ouviam berros e palavrões, bem como o som de
botas cardadas contra a álgida tampa, que o tinha separado
de uma morte certa.
A escuridão do esgoto impediu-o de reconhecer o seu
salvador. O fim dos vitupérios e tentativas forçadas de ar-
rombamento da tampa metálica, assim como o silêncio, re-
velaram o afastamento dos perseguidores e o momento para
conhecer a identidade de quem o salvara: pasmo.
O brilho intenso da lanterna deixou uma chaga na es-
curidão daquela conduta nauseabunda. À luz, Salomão vis-
lumbrou, estupefacto, o corpo esguio e venusto de uma ado-
lescente, trajada com um fato de cabedal da cor dos corvos,
olhos de prata, cabelo louro e liso, ostentando uma cianite
azul ao pescoço e um rosto tão puro e belo como o de uma
ninfa. A jovem ajudou o cientista a levantar-se e indicou-lhe
o caminho para fora daquele espaço engulhoso, sem uma
única palavra.
Durante a fuga, Salomão pareceu detectar uma espé-
cie de luz azul escura envolvendo a rapariga. Havia algo de
misterioso a respeito da sua estranha salvadora. Sentia uma
leveza e um bem-estar, assim como confiança. Apesar da
sensualidade que transpirava pelo corpo da jovem, o cientis-
ta não era possuído por qualquer desejo carnal por ela. Era

405
Tiago Moita

como se os seus instintos sexuais tivessem sido bloqueados


com a sua presença: pararam.
Movida por uma força que ultrapassava o seu aspecto
físico, a jovem fez soltar um pequeno som contraído pela
sensação de peso da tampa do esgoto: luz. A rapariga desceu
a escada de metal e apontou para a abertura, fazendo sinal
para o cientista sair, rumo à liberdade. Confiante, assentiu e
começou a subir a escada ferrugenta. Uma dúvida entalada
na garganta fê-lo virar-se para ela e interromper o percurso.
– Muito obrigado por tudo o que fez por mim. Como
se chama?
– Em breve saberá o meu nome. Se o salvei, foi porque
Ele quis que o fizesse. O momento está próximo. Prepare-se!
– Ele? De quem está a falar?
– Sabe muito bem de quem estou a falar. Despache-se!
Eles podem voltar. – respondeu a jovem. Salomão nem que-
ria acreditar quando chegou à superfície: estava em frente
da sua casa.
– Venha comigo. Oferecer-lhe um chá e algo para co-
mer é o mínimo que lhe posso dar. Mais uma vez, nem sei
como lhe agradecer.
– Obrigada, mas prefiro ficar aqui com os meus ir-
mãos. Os esgotos de Distopia são excelentes vias de comu-
nicação para as pessoas da minha raça espiritual.
– Raça espiritual? Que raça espiritual?
– Índigo! – respondeu, fechando a tampa do esgoto
atrás de si.

406
OITENTA E SETE
Passara apenas uma semana no mundo. Para os discí-
pulos e seguidores do Alquimista parecia ter passado apenas
um dia, desde que tinham tomado conhecimento da melhor
maneira de atrair sucesso e prosperidade para as suas vidas.
As suas almas alumiavam-se cada dia que passava, apren-
dendo e experienciando algo de novo daquele homem.
Mudança de rota. Tanto os discípulos como os se-
guidores do Alquimista estavam habituados a esse tipo de
vicissitudes desde que tinham começado a seguir o profeta
e viam a carrinha de Samuel a sair da estrada. Tudo podia
acontecer. Uma nova aventura, seguida sempre de uma reve-
lação. Tudo estava em aberto.
O Armagedão árido do Grande Deserto tinha dado lu-
gar à frescura verde de uma selva gigantesca; um dos poucos
espaços verdes do planeta. As folhas e as plantas chegavam
a ser tão grandes quanto as sequóias que se erguiam até tocar
o céu. Todos os condutores sentiam dificuldade em circular
naquele verde sem fim, temendo chocar contra uma árvore,
um ramo raso mais grosso, animais selvagens ou canibais.
Apenas a fé inabalável no profeta mantinha acesa a chama
da esperança nos corações de todos aqueles que o acompa-
nhavam: susto.

407
Tiago Moita

A anarquia natural da selva dera lugar à entrada num


submundo mineral. O Alquimista fizera sinal a Samuel, atem-
padamente, para ligar os médios, cinco segundos antes de en-
trar numa enorme caverna, encoberta pela obscuridade verde
da selva. Não é possível, exclamou Leandro. O que aconte-
ceu, perguntou Dharma. Isto é uma caverna artificial, repara,
disse, apontando para as paredes. Não existem estalagmites
nem estalactites, o chão é liso como se fosse uma estrada as-
faltada e as paredes parecem blocos de granito encaixados,
uns em cima dos outros... incrível, exclamou, estupefacto. De
onde vem esta luz, perguntou Otelo. Do musgo, repara bem,
respondeu Jordão, apontando para os cantos superiores das
paredes. É musgo fluorescente; isto que vocês vêem, cresce
como cogumelos nas grutas que ladeiam a minha aldeia, res-
pondeu. A viagem demorara um quarto de hora: surpresa.
Nenhum dos passageiros e condutores conseguia des-
colar os olhos dos vidros das viaturas. Após cruzarem uma
ponte de pedra, que se desfez com a passagem do último veí-
culo, os discípulos e seguidores do sábio chegaram às ruínas
de uma cidade no interior da caverna, por onde tinham entra-
do. Não havia palavras para descrever todo aquele amontoado
de edifícios e torres de vidro, pedra, madeira, terracota e metal
estirados como se quisessem, por força, perfurar o tecto. As
figuras que ornamentavam os altos-relevos, pinturas, bustos
e estátuas não tinham forma humana. Centro da cidade: pa-
ragem.
Samuel acatou a ordem do Alquimista sendo a primeira
voz que se fez ouvir na caravana, depois daquela revelação
majestosa. Onde estamos, perguntou ao profeta. Rama-Muri,
respondeu, saindo da carrinha sem fazer perguntas. Intrigada,
Magdala pronunciou o nome da cidade em surdina. Todos os
que o seguiam imitaram o seu exemplo. O pasmo continuava
tatuado nos olhos e rostos de todos os presentes. Pareciam ter
entrado numa dimensão desconhecida.

408
O Evangelho do Alquimista

O Alquimista continuou a marcha em direcção a um


gigantesco templo de pedra com mais de doze andares e
quatro escadas feitas de jade. Toda a cidade era ornamentada
com cristais e outros materiais. A subida da escadaria provo-
cou uma exaustão generalizada em todas as pessoas, seguida
de alguma dificuldade em respirar, como se estivessem a su-
bir uma cordilheira andina. Apenas o sábio subia as escadas
tranquilo como uma folha a navegar num rio. Constantino,
mais uma vez, aproveitou a confusão para tentar envenenar
o coração e a mente de Jordão, relembrando o seu medo das
alturas e de um grifo, do qual o padre dissera que escutara
um grito, de forma a manipulá-lo e a incentivá-lo a abando-
nar o profeta. Felizmente, para o pescador de Narvalis, a voz
de Constantino tinha sido abafada pelo cansaço e pela sua
alma, desprovida de medos e traumas do passado.
O caminho seguia no sentido descendente; a ansie-
dade mantinha-se. A entrada do templo era encimada por
uma escada em caracol para um poço gigantesco. Do fundo
do poço: uma luz bruxuleava como uma estrela aprisiona-
da num abismo. O Alquimista convidou-os a descer o poço
com cuidado, devido ao pouco atrito dos degraus húmidos.
O contacto com o primeiro degrau da escadaria provocou
nas almas mais sensíveis um arrepio na espinha. Todos se
encostaram às paredes. Mulheres e idosos acompanhavam
primeiro o profeta, seguido dos discípulos e restante povo.
A descida demorou cerca de meia hora. A estreiteza dos de-
graus, em relação à parede, fez com que muitos sustivessem
a respiração, enquanto desciam. Para além deles, apenas in-
sectos e pequenas cobras lhes faziam companhia. À medida
que se aproximavam do fundo do poço, a luz começava a
ficar cada vez mais intensa: pasmo.
Ninguém conseguia manter a boca fechada com aque-
la descoberta. O brilho intenso do fundo do poço provinha
de uma pedra enorme cheia de ideogramas, restos de uma

409
Tiago Moita

língua morta de uma civilização perdida. Radiante, Hei-


tor tentou decifrar aquele alfabeto pictórico como um es-
tudante de arqueologia, perante uma descoberta arqueo-
lógica de um qualquer túmulo antigo ou de um tesouro
perdido. O Alquimista, mal viu o último homem que o
seguia a descer o poço, fez sinal a todos para se reunirem
à volta daquela pedra.
Todos prestaram atenção ao sábio e à pedra
luminosa, menos Heitor, obcecado com os ideogramas
daquela sala.
Bem-vindos a Rama-Muri: uma das maiores civili-
zações extraterrestres, sobreviventes ao Grande Dilúvio
Universal que atingiu o planeta há cinco mil anos. Esta
foi a única cidade que escapou a toda a destruição e a pe-
dra que vocês encontraram chama-se a Pedra dos Tempos.
Todavia, hoje, não vos vou falar nem desta civilização
nem desta mítica pedra mas de uma nova revelação, res-
pondeu.
E continuou. Como vos disse, tudo aquilo que vo-
cês entendem como Tempo é circular: avança, rodando
para a frente e para trás, simultaneamente, sem fim. É for-
mado por círculos que sempre existiram, e que continua-
rão a existir, eternamente – tal com acontece convosco –,
permitindo a transformação da nossa mente e a evolução
de todos nós, em direcção à harmonia. O ser humano está
convencido de que o universo existe só para si e de que
ele é a única expressão de vida inteligente e por isso age
também como o seu depredador, afirmou. De súbito, a pe-
dra começou a tremeluzir sete cores, mal o sábio ergueu
os braços e a cabeça.
Todos os sistemas baseados no medo, sobre os quais
assenta a vossa civilização, se transformarão simultanea-
mente, como o planeta e o ser humano, dando lugar a uma
nova realidade. Todos eles entrarão em colapso com o fim

410
O Evangelho do Alquimista

da electricidade, provocado pela sucessão em cadeia de


tempestades solares, para que o ser humano se enfrente
a si próprio, e de que sinta a necessidade de reorganizar
a sociedade, continuando no caminho da evolução que o
fará entender melhor a criação.
Assim pregava o Alquimista.

411
OITENTA E OITO
A noite não era visível em Rama-Muri nem na sala
da Pedra dos Tempos. A claridade provinha de um sistema
de iluminação interna que canalizava a luz do gigantesco
diamante arco-íris para toda a cidade. Durante a tarde, o pro-
feta desdobrou-se em explicações – como um guia turístico
sobre cada canto daquele agregado urbano, esquecido da
memória do mundo, sem olvidar a Pedra dos Tempos que,
segundo o sábio, conseguia visualizar o passado e o presente
de cada pessoa que a tocasse.
A atenção de Heitor para os ideogramas de uma das
paredes despertou a atenção de Isauro. Descobriste alguma
coisa, exclamou o sindicalista. Livra! Pregaste-me um susto
de morte, disse, sobressaltado. Isauro riu. Como podes falar
de morte depois de tudo o que aprendemos com o mestre,
perguntou. Tens razão – sorriu o funcionário. A verdade é
que não penso nesse assunto desde que conheci o profeta
e sobretudo quando descobri esta cidade. É incrível! Já ti-
nha ouvido falar desta civilização e entendo um pouco deste
idioma. Afinal de contas, não te esqueças que nasci Filingo e
todos os Filingus são obrigados a conhecer todas as línguas
vivas e mortas deste planeta. Tens razão. O que é que des-
cobriste, inquiriu Isauro. Pouca coisa. Os ideogramas desta

413
Tiago Moita

parede, por exemplo, falam de uma profecia revelada pelos


sacerdotes de Rama-Muri sobre um cataclismo que abalou
esta região há milhares de anos e do abandono do povo
desta cidade para, disse, interrompendo o seu raciocínio,
fixando o dedo indicador num ideograma. Isauro olhava si-
multaneamente, com expectativa, o seu colega e o ideogra-
ma para onde Heitor estava a apontar. E interpelou-o como
se exigisse uma resposta mais exacta. Ainda não consegui
identificar este ideograma. Parece ser o nome de um planeta
mas não sei o nome dele. Talvez durante a noite consiga de-
cifrá-lo. Vamos, disse o funcionário público a Isauro, con-
vidando-o a abandonar aquele local e a juntar-se aos seus
companheiros e ao povo que seguia o profeta.
O sono e o cansaço chegaram aos corpos e mentes
de todas as pessoas presentes na sala da Pedra dos Tempos
como um encantamento. A respiração profunda e o ressonar
de alguns dos discípulos e seguidores do sábio contrasta-
vam com o silêncio da noite e o murmúrio do vento na gruta
e na selva. A profundidade de todo aquele repouso humano
fez com que ninguém desse pela chegada de um automóvel
àquela cidade, esquecida da memória do homem.
A abertura da porta do lugar do condutor e uma bota
preta de salto alto denunciavam uma presença feminina.
Simone Dumonde chegava a Rama-Muri com uma firme
determinação que fizera empalidecer a sua melancolia
característica. Desconfiada e sem perder tempo com des-
lumbramentos por aquele achado arqueológico, tirou uma
pistola calibre 45 do bolso do casaco e caminhou em direc-
ção ao templo, arrastando consigo todo o peso do medo e a
responsabilidade por alguém que ela jamais imaginaria ter
traído o seu povo: pára. Ali chegada, fez soar uma melodia
de frequência baixa, através de uma espécie de apito pra-
teado, apenas conhecida por um dos conterrâneos do seu
bairro.

414
O Evangelho do Alquimista

Adriano não queria acreditar no som que escutava,


com toda a nitidez e profundidade, do exterior da divisão
onde pernoitava. Não imaginava outro compatrício naque-
la cidade perdida. A curiosidade fê-lo sair discretamente do
templo. Não fora o único.
A expectativa deu lugar ao espanto, quando o enge-
nheiro informático encontrou com a chefe dos Dúbios. Mes-
tre Dumonde, que faz aqui, perguntou. Simone, sem lhe dar
qualquer resposta, esbofeteou-o. Como te atreveste, Adria-
no? Como te atreveste, exclamou, desvairada. Eu podia es-
perar tudo de ti, Adriano, menos... fazer o que tu me fizeste
a mim e ao teu povo: como pudeste entregar-te, assim, sem
mais nem menos, para as mãos do nosso maior inimigo? Foi
medo, não foi? Ainda não superaste o teu trauma? É natural!
Todos os homens têm medo; quem não têm medo é anormal:
nada disso tem a ver com coragem, disse, tratando-o como
se fosse uma criança. Adriano tentou chamá-la à razão repe-
tindo o nome da chefe dos Dúbios três vezes, em vão: parou.
Ele não é assim tão diferente de nós, Mestre. O Alqui-
mista também defende a Liberdade de Sartre e Camus, assim
como os direitos das mulheres. O pensamento dele nunca foi
contra o nosso, mas, antes, complementar. Devia ouvi-lo! As
suas palavras dão um outro sentido mais verdadeiro à nossa
existência enquanto indivíduos; em vez de angústia, ele fala
em harmonia; em vez de dúvida, ele fala em clarividência;
em vez de materialismo e religião, ele fala em altruísmo e
espiritualidade; em vez de divisão, ele fala em unidade; em
vez de mal, ele fala, disse, antes de ser interrompido por uma
segunda bofetada na cara. A força do estalo de Simone foi
tão forte que se repercutiu, como um eco, por toda a cidade.
A marca da mão da líder do Bairro Anguscius desaparecera
no espaço de segundos, como se nunca o tivesse dado na
cara daquele engenheiro informático. Dumonde não se dei-
xara intimidar.

415
Tiago Moita

Se fosses um verdadeiro Dúbio, saberias que a an-


gústia é a disposição fundamental que nos coloca perante
o Nada; a dúvida é a essência da filosofia; o materialismo
é o estado do homem livre que se separou de Deus; a de-
sordem é o melhor servidor da ordem estabelecida e um
mal só pode ser vencido com outro mal. Julgas que gan-
has alguma coisa com as palavras desse homem? Tu não
sabes como é horrível assistir à agonia de uma esperança.
Viver é envelhecer e morrer, nada mais, e tu, meu caro,
passaste a estar morto para mim, a partir do momento em
que deixaste de ser útil, concluiu, apontando-lhe a pistola
para uma das têmporas: pasmo.
Como um espectro para os olhos daquela mulher,
o Alquimista saiu do silêncio de uma coluna de pedra e
revelou-se. Viver é mais do que envelhecer e perecer para
quem aceita a vida como existência sem qualquer tipo
de essência. Fala tanto em liberdade e amor como pa-
lavras que decifrou num dicionário, mas nunca sentiu o
seu verdadeiro significado no corpo e na alma, nem com
o seu companheiro nem com o seu amante. A sua cultu-
ra nunca foi um amor à existência porque sempre consi-
derou a vida humana como um acidente, e, ao proceder
assim, transformou a vida do seu povo num cemitério de
angústia, vazio e dor. Nenhum homem ou mulher é um
acidente na vida porque a vida é uma oportunidade e um
desafio constante para a alma que entende que não existe
outro tempo... senão o Aqui... e o Agora, respondeu, de-
sabrochando o terceiro olho da testa. Adriano seguiu o
exemplo do sábio, assim como os seguidores e discípulos
do Alquimista que tinham presenciado aquele confronto.
Desesperada e desatinada, Simone fugiu aos gritos como
se estivesse a ser perseguida por uma legião de fantas-
mas. O engenheiro informático abraçou o profeta e o seu
irmão, Gustavo. Naquele momento, sentiu como se o seu

416
O Evangelho do Alquimista

cordão umbilical tivesse sido cortado de um mundo sem


sentido.
Heitor fora dos poucos que não despertara com o som
do bofetão de Simone. Acordou repentinamente com uma
descoberta, entregue pelo sono, durante uma profunda refle-
xão subconsciente dos seus sentidos. Encantado com a reve-
lação, tentou procurar o bloco onde apontou os ideogramas
que não conseguira decifrar na parede da sala onde Isauro o
encontrara, absorvido, como estava, pela sua grafia e ilustra-
ção, acerca do nome que os habitantes de Rama-Muri davam
ao planeta.

ÉD

417
OITENTA E NOVE
O dia claro que irrompera em Distopia contrastava
com o estado de espírito de Zarco, enquanto discutia com
o senhor de Distopia os custos da megalomania de Zarat.
Quem o visse naquele momento, a altercar com o homem
mais poderoso da cidade e do planeta É, julgava estar pe-
rante uma tempestade em carne humana. Ptolomeu era o
moderador da toda aquela altercação. De todos, era o mais
pragmático e o único que sorria discretamente perante aque-
le antagonismo entre a razão e a utopia.
Mas, Grande Líder, tente compreender... o orçamen-
to da VHCruz já chegou aos dez milhões. Dez milhões! Os
Distopianos já fizeram todos os sacrifícios, possíveis e im-
possíveis, durante este ano para financiar esse... engenho.
Tenho inúmeros bancos e empresas a baterem à minha porta,
desesperados. É uma situação inédita e preocupante, senhor!
Pela primeira vez, corremos o sério risco de bancarrota. Ten-
te ser razoável, disse o perturbado Governador do Banco
Central de Distopia, mostrando a Zarat, resmas de folhas,
contendo dados contabilísticos disponíveis.
Zarat teimosamente ignorou, por completo, as preo-
cupações de Zarco, barafustando com gestos e palavras áci-
das. Contas, contas, contas! Será que este mundo não pensa

419
Tiago Moita

noutra coisa senão em contas? Que foi com estatística que


preguei a libertação do Homem em relação a Deus e desafiei
o baile da gravidade? Acha que foi a pensar em dívidas que
enalteci o prazer ao mundo; preguei o sermão aos animais;
instituí os princípios da nova nobreza; denunciei a lama des-
te planeta e ergui esta cidade do nada? Posso ter o estômago
de uma águia; a visão de um falcão; pé de cavalo e a mão de
um louco, mas a minha palavra tem mais poder e brilho que
todo o ouro do universo. Por isso, pega na tua razão, agar-
ra-a pela garganta e estrangula-a, porque é uma razão sem
valor, respondeu. Ptolomeu aplaudiu, entusiasmado com o
discurso do seu líder e juntou-se a ele, procurando tranqui-
lizar o governador.
Não precisa de se preocupar, senhor Governador.
Tanto o nosso Grande Líder como eu temos tudo contabi-
listicamente controlado. O senhor pensa muito a curto prazo
porque não vislumbra o horizonte do futuro. Já pensou nas
receitas que Zarat vai arrecadar por cada cobertura jornalís-
tica de jornais, revistas, rádios ou televisão? Não pensou,
pois não? O senhor já pensou que a inauguração e utilização
da VHCruz para anulação da profecia vai atrair turistas de
todo o planeta – quiçá, do universo –, a Distopia, trazendo
mais dinheiro para os cofres da cidade? Nunca pensou nisso,
pois não? Mas nós pensámos! Por isso, fique descansado.
Tudo o que foi gasto neste notável empreendimento tem re-
torno financeiro e será a maior dádiva que Zarat fará a toda
a Humanidade, depois da fundação da nossa cidade, respon-
deu, confortando o Governador num abraço caloroso e num
sorriso terno, digno de um homem de confiança.
Dois toques secos na porta do gabinete de Zarat. Sim,
perguntou Zarat, com voz estridente. Metello abriu a por-
ta, cauteloso, e pediu licença para entrar. Metello, não vê
que estamos ocupados, perguntou o senhor de Distopia, de
rosto crispado. Metello engoliu em seco antes de responder.

420
O Evangelho do Alquimista

Perdoai-me, Líder dos Líderes, mas trago novidades sobre


o Alquimista, respondeu. Silêncio. Que disseste? Notícias
do Alquimista, exclamou Zarat, de olhos surpresos com a
notícia, dirigindo-se para Metello. O Chefe da Guarda Zara-
tista e Comandante-Chefe dos Exércitos de Zarat trazia uma
pasta vermelha nas mãos. Ptolomeu e Zarco apressaram-se
a ir ao seu encontro.
– O que é isso? – perguntou Zarat.
– O relatório sobre a origem e identidade do Alqui-
mista, feito por uma das melhores agentes da nossa guar-
da – respondeu, mal Zarat lhe arrancou a pasta das mãos e
começou a folhear os documentos da mesma, um por um.
Ptolomeu e Zarco aproximaram-se de olhos postos naquela
panóplia de informações.
– Tudo isto é verdade, Metello? – perguntou Zarat. O
homem pegou num rolo de papel e entregou-o ao senhor de
Distopia. O mesmo rolo de papel que recebera do pombo
que lhe servira de refeição, com todos os detalhes dados por
um indivíduo da confiança de Zarat.
– Faço das palavras de Sombra, a resposta à sua per-
gunta.
Uma risada esquizofrénica seguida de uma sonora
gargalhada contagiou Zarat e todos os presentes que se en-
contravam no seu gabinete. À falta de uma vitória, ganhara
duas.

421
NOVENTA
A frescura de Rama-Muri e o clima tropical da selva
que encobria a sua passagem secreta eram já, há mais de
cinco horas, uma ilusão na mente de todos os discípulos e
seguidores do Alquimista. O Sol, em contacto com o chão
árido e esgotado do Grande Deserto, dava a sensação de es-
tarem a passar por um mar de lava ou pelo bafo canibal do
astro-rei. O horizonte parecia a repetição de um filme com
uma só imagem; o vento era uma miragem naquela região
inóspita e selvagem, onde só o mais forte sobrevivia: para-
ram.
Muitos desconfiavam da razão pela qual a carrinha de
Samuel tinha parado no Grande Deserto em pleno pino do
dia. Noutras ocasiões, o profeta escolhia sempre locais mais
aprazíveis para expressar os seus ensinamentos. Para muitos,
aquele espaço não fazia qualquer sentido. O sol continuava
a bater furioso contra eles. Crianças e idosos ficaram nas
viaturas, enquanto homens e mulheres seguiram os passos
do sábio, rumo a uma espécie de duna gigantesca: espanto.
O que parecia ser uma simples duna estendia-se por
mais de trezentos quilómetros de extensão e quatrocentos
quilómetros de diâmetro. Segundo o Alquimista, aquela cra-
tera fora resultado do choque de um meteoro de dez quiló-

423
Tiago Moita

metros de diâmetro, ao embater no planeta É a uma veloci-


dade de duzentos e cinquenta mil quilómetros por hora, há
mais de dois biliões de anos. Gustavo e Adriano recordaram
ao sábio uma conversa que tinham tido com Salomão – o
inventor e responsável pelo projecto VHCruz – acerca dessa
cratera. Segundo o cientista, a colisão provocado pelo aeró-
lito libertara uma enorme quantidade de energia que provo-
cara enormes mudanças globais e evolutivas no planeta. O
profeta confirmou a revelação sem mexer os lábios. De se-
guida, desceu até ao fundo daquele buraco enorme, forjado
pelo impacto do meteoro, e pediu a todos se sentassem em
volta daquele espaço, também conhecido entre os viajantes
como o Buraco da Morte.
O suor ainda escorria pelos corpos de todo aquele
povo quando o sábio começou a falar; nenhuma palavra se
fez sentir naquele espaço tétrico senão a dele.
Nos próximos tempos, aparecerá um cometa cuja tra-
jectória colocará em perigo a própria existência humana. O
perigo iminente obrigar-vos-á a construir um nível de coope-
ração mundial nunca dantes visto, levando a estabelecer um
sistema de gestão e controlo sincronístico, acima de qual-
quer religião, nacionalidade, ideologia, raça, cor, idade, sexo
ou orientação sexual, além de uma estrutura de comunicação
mundial como única solução e, na qual, todas as nações e
povos, subjugados ou não ao serviço do poder de Distopia,
abrirão mão de parte da sua soberania para um governo Ho-
locrático mundial e de uma Fraternidade Universal, em prol
do bem comum, concluiu. Um alarido ensurdecedor emude-
ceu o silêncio das línguas de todas aquelas almas, incapazes
de esconder o choque e a estupefacção perante aquelas no-
vas profecias e revelações.
Uma página era virada na saga do profeta; um novo
capítulo começava a ser escrito.

424
NOVENTA E UM
Era tarde para Simone vestir de luto o rosto e arrumar
a vergonha que carregava nos ombros. Era tarde, mas nin-
guém dera ouvidos ao silêncio lancinante que lhe remoía o
coração, como um espinho cravado no peito. Tudo o que
passara em Rama-Muri era uma memória que insultava pe-
las ruas, aos pontapés nos caixotes do lixo e nos marcos do
correio, julgando, com isso, desenterrar as palavras mais no-
bres que o ódio engolira para dentro do seu quarto chakra,
apagado de perdão.
Nada fazia prever aquele encontro. Metello aprovei-
tara as últimas horas do dia para deambular pelo Bairro
Anguscious. Acaso ou nostalgia, o cinzento dos dias e das
fachadas daquele bairro, espelho da angústia e depressão
humanas, traziam-lhe recordações agridoces de combates
urbanos; orgias com estudantes e mulheres lascivas; álcool e
drogas à mistura com uma boémia efervescente e a lembran-
ça de um amor pretérito na estrada da vida, que nunca tratara
como um mero deslize: choque.
A líder dos Dúbios barafustou tresloucada, como um
bando de corvos, crocitando em pleno voo nocturno, mal
esbarrara contra aquele homem. Simone? Que fazes aqui,
perguntou o comandante-chefe da Guarda Zaratista e do

425
Tiago Moita

exército de Zarat, inclinando-se para a amparar. Não, não


me toques, respondeu ela. Deixa que as rosas murchem sem
repararem em nós. Metello não lhe ligou e soergue-a do chão
húmido. O que é que te aconteceu? Não cumpriste a missão
de que Zarat te incumbiu, interpelou.
Simone procurou libertar-se das mãos de Metello, de
olhos ensanguentados de raiva; as lágrimas que lhe rolavam
pelo rosto chegavam a queimar as pedras da calçada. Achas
que se tivesse cumprido a missão do nosso Grande Líder
voltaria neste estado, Metello? Adriano está perdido! Perdi-
do para sempre nas mãos daquele... homem! Fiz tudo para
o convencer a voltar e para humilhar o Alquimista perante
o seu povo, mas acabei enxovalhada pelas palavras do meu
pupilo – digo, ex-pupilo –, e daquele... pseudo-intelectual!
Vi-me quase perdida no deserto quando vinha para cá. Cho-
rei como uma criança a quem arrancaram os símbolos e os
mitos. Julguei trazer comigo a novidade de não ter medo;
saborear o gosto da vitória, pelo menos uma vez na vida.
Agora, escorre-me o desânimo pelo corpo e tenho insónias
morosas. Queria dormir para sempre e continuo viva. Maldi-
to seja aquele que inventou a eternidade. Maldito, vociferou
num desabafo que despertou alguns dos moradores dos edi-
fícios por onde passavam.
Não digas disparates! Não tens culpa de nada! Mui-
tos dos conselheiros já fizeram o mesmo que tu e, também
eles, não tiveram sucesso. O destino deles está marcado mas
o nosso não. Vou pedir clemência a Zarat e depois casar
contigo. Eu amo-te Simone e tu sabes disso, mesmo quan-
do estavas casada com Segall, nunca deixaste de me amar.
Lembras-te quando aproveitávamos a ausência do teu mari-
do para fazer amor nas esquinas ou no teu quarto, pergun-
tou Metello, beijando-a sem fôlego. Não, Metello, não! Eras
uma ideia, ou melhor, uma fantasia! O meu coração amava
uma fantasia porque tenho o coração às avessas. Li-te den-

426
O Evangelho do Alquimista

tro e fora de ti, enquanto soltávamos os sussurros, nus. Ten-


tei adorar-te como um deus, acreditar na eternidade; ver-te
como o reflexo dos passos, gestos e traços do único homem
que amei na vida, respondeu. Metello voltou a beijá-la. As
tuas palavras, as tuas palavras continuam tão belas como a
tua beleza: Ama-me, por favor, ama-me!
Amor? – exclamou Simone, largando-o – Deixei o
amor e as palavras quando me esqueci do caminho para
dentro do meu corpo. Sou distante, meu querido! Tenho es-
cadas de caracol nos sentidos, caminhos despojados de sen-
timentos e portas escancaradas de memórias atrozes. Bela?
A beleza é mais difícil de definir do que a felicidade, porque
nós, para os outros, apenas criamos pontos de partida. Pro-
metes-me a claridade e esqueces que a claridade me doí, tal
como a minha memória ferve com os dias. Por isso, não me
obrigues à luz; não me atires à cara promessas de vida fácil,
espaço no meu escritório, na minha cama, na minha vida
para tanto vazio. Todos os dias lavo a cara e mesmo assim
não consigo despegar a cinza das horas; não consigo despe-
gar o tempo. Já me chamaram egoísta, urbana, decadente,
hedonista, hipócrita e ignorei; sorri quando me chamaram
triste por não saber ligar o coração e por ser tudo triste,
nunca foi minha intenção, tanto no passado como hoje, de
dizer-te nada, respondeu.
Metello não conteve a cólera e esbofeteou-a num só
golpe, de tal maneira que Simone soltou um jacto de sangue
da boca e caiu, aconchegada a um grito de dor, depois da-
quele gesto de raiva e frustração do único homem, a seguir
a Segall, que a compreendia, e que agora, partia definitiva-
mente da sua vida, com um remorso a escorrer dos olhos do
comandante-chefe da Guarda Zaratista.
Simone cambaleou até casa. Foi ordenando o silêncio
e vestindo o seu jardim secreto para o Outono que se avizi-
nhava. Na mesa da cozinha, despiu-se e bebeu um chá de

427
Tiago Moita

cidreira, nua; deixando que a claridade da lua banhasse a


palidez e a magreza do seu corpo, cansado e dolorido, reco-
lhendo-se e limpando o coração daquele equívoco.

428
NOVENTA E DOIS
A notícia de uma futura colisão de um cometa com o
planeta É, varreu como uma praga as mentes de todos os se-
res humanos que acompanhavam o Alquimista. Se, noutras
ocasiões, as palavras do profeta tinham o mesmo efeito de
um bálsamo num corpo doente; neste caso, as mesmas pro-
duziram o efeito contrário. Apesar de ser um acontecimento
projectado para o futuro, restava saber a distância que existia
no tempo, tendo em conta tudo aquilo que o sábio do Orá-
culo do Destino falara acerca do tempo. A dúvida provocada
por essa incerteza causara mais consternação e contágio do
que a epidemia mais devastadora do planeta.
O profeta estava a par do estado de espírito dos seus
discípulos e seguidores através da percepção das suas ener-
gias. Nas viaturas que seguiam a carrinha de Samuel, o bu-
lício que nascera na cratera, depois das palavras do sábio,
transformara-se em violentas discussões: punha-se em causa
o futuro das gerações presentes e vindouras. Planos de fuga
e soluções suicidas não eram postas de lado, por parte das
almas mais débeis. O equilíbrio estava a ser posto em causa:
desvio.
Samuel seguiu por um outro caminho, à sua direita,
segundo indicação do Alquimista. O deserto, mais uma vez,

429
Tiago Moita

dava lugar a uma mancha verde, densa e frondosa, cerca-


da por montanhas inóspitas e cinzentas. O caixeiro-viajante
não tinha conseguido silenciar toda aquela onda de dúvida
e medo, provocada pela mais recente revelação do sábio. As
pessoas estão muito assustadas desde que falaste do cometa
no Buraco da Morte. Todos os teus discípulos confiam em
ti, mas o povo que nos segue é volátil no seu pensar: um dia
pensa uma coisa e no outro dia, outra. O que pensas fazer a
respeito de tudo isto, inquiriu. Sem lhe responder, o Alqui-
mista apontou o dedo para uma clareira: paragem.
Samuel parou de repente a viatura. Mais um metro e
teria partido o portão de ferro enegrecido, que o separava
das ruínas de um palácio abandonado no meio da natureza.
O Alquimista foi o primeiro a sair da viatura, seguido de
Magdala e Dharma. O ranger triste do portão acolheu a mul-
tidão que acompanhava o sábio: estupefacção.
Todo o espaço circundante, lembrava uma espécie
de vila romana, adornada com estátuas de deuses e deusas
nuas; fontanários representados por bocas de animais reais
e imaginários, e jardins até perder de vista, maltratados pela
usura do tempo e pela invasão da natureza. A humidade dos
edifícios e das plantas provocava um ambiente outonal sem
a diversidade das cores própria dessa estação. Dentro das
habitações, encontravam-se piscinas vazias e antigas divi-
sões que compunham a antiga estância termal de Revigror.
Revigror, exclamou Rodrigo. Nunca ouvi falar de se-
melhante local. Quem o construiu, perguntou. O Alquimista
aproveitou a ocasião para dar uma pequena lição de His-
tória, não só a Rodrigo mas a todos o que seguiam, sobre
uma das civilizações que tinham dominado o planeta após
a queda das civilizações pré-diluvianas. Constantino, mais
uma vez, aproveitou a confusão da multidão e aproximou-se
de Adriano, culpabilizando-o pela invenção do vírus infor-
mático xdv, como forma de se vitimizar e de ocultar a sua

430
O Evangelho do Alquimista

esquizofrenia. O engenheiro informático começou a sentir


vertigens e tremores por todo o corpo, mal ouvira o nome
do vírus que, segundo ele, penetrara no seu organismo atra-
vés de um sonho. Constantino apressou-se a fugir das ruínas
como um fantasma, satisfeito com a reacção que provocara.
Uma mulher que seguia o Alquimista foi em auxílio
de Adriano. Este, não dizia coisa com coisa. Não conseguia
distinguir a ilusão da realidade. Assustada, a mulher foi ao
encontro do profeta. O sábio, mal soube do sucedido, saiu
em socorro do discípulo e levou-o para uma das poucas fon-
tes termais de Revigror. Com uma pequena concha de gesso
e um pano húmido mergulhou a cabeça e o tronco despido
do engenheiro informático no chafariz, recitando uma ora-
ção, pronunciada numa língua desconhecida.
Adriano recuperou os sentidos em menos de dez mi-
nutos. As primeiras palavras foram para o profeta. Obrigado,
Mestre... obrigado! Diga-me, por favor: como posso resolver
os meus problemas de saúde e por que é que estou a tê-los
nesta vida, perguntou. O sábio compreendeu as perguntas
e aproveitando o momento para lhe responder, dirigiu-se a
todos os que o seguiam, para falar sobre a Saúde.
Adriano, como te disse, e repito, nada na vida aconte-
ce por acaso. Todas as doenças são geradas de forma quase
inconsciente pela maioria das pessoas. Umas, para sentirem
pena de si mesmas; outras, para chamarem a atenção do
mundo que as rodeia. Tudo deriva do pensamento e a pior
forma de actividade mental que existe é a inquietação. Ela
é um esbanjamento de energia. Cria reacções bioquímicas
que prejudicam o organismo – desde a indigestão à paragem
cardíaca, passando por uma diversidade de situações. É a
actividade de uma mente distorcida que não entende a sua li-
gação com Deus: por isso é que muitas pessoas se suicidam.
Logo a seguir vem o Ódio; esse intoxica o corpo e os seus
efeitos são praticamente irreversíveis. O Medo é o oposto de

431
Tiago Moita

tudo aquilo que Tu És, e, por isso, tem um efeito de oposição


na tua saúde física e mental, uma vez que é uma inquietação
ampliada. O mesmo acontece com a Ganância, a Autoindul-
gência e a Presunção que conduzem à doença física ou ao
mal-estar. Por isso é que, no mundo em que vivemos, todas
as doenças são geradas pelo temor da morte, respondeu. Um
enorme barbarizo se fez ouvir entre os presentes.
Rodrigo foi o primeiro a retorquir. Como pode ser
isso, mestre? Então e as doenças contagiosas, questionou.
O Alquimista virou-se para o médico sem deixar Adriano.
Nada acontece na vida que não derive primeiro do
pensamento, Rodrigo! Os pensamentos são como ímanes
que atraem efeitos para nós. As palavras são uma forma
de energia menos subtil e mais densa. As acções são tipos
de energias abismais em constante movimento porque são
ainda mais condensadas. Sois todos uns enfermos mentais
enquanto a vossa mente estiver carcomida por pensamen-
tos negativos: alguns, são-vos incutidos; outros, criados e
evocados por nós mesmos durante horas, dias, semanas, me-
ses ou até anos! É muito complicado inverter os efeitos dos
pensamentos negativos quando estes já assumiram a forma
física. Não é impossível, mas é muito difícil.
Leandro interpelou o profeta. Mas, mestre. Se somos
os responsáveis pelos nossos problemas de saúde, como va-
mos solucioná-los com o pensamento? O sábio sorriu, vi-
rando-se para o arquitecto. Alterando a nossa maneira de
pensar, Leandro! A alma imagina, a mente cria e o corpo
experimenta. O pensamento não conhece fronteiras; percor-
re o mundo e atravessa o universo mais depressa do que a
palavra, assim como a dor é o quebrar da concha que envol-
ve a nossa compreensão. Muita da vossa dor é escolhida.
Ela é o remédio amargo com o qual o vosso médico interior
cura o vosso íntimo doente. Por isso, confiai no médico e
bebei confiante a sua poção em silêncio e tranquilidade; pois

432
O Evangelho do Alquimista

a mão, embora dura e pesada, é guiada pela mão doce do in-


visível e a taça que ele vos dá foi feita com o gesso que Deus
humedeceu com as suas lágrimas sagradas.
Assim pregava o Alquimista.

433
NOVENTA E TRÊS
Nada era como dantes, depois das palavras que pro-
ferira nas ruínas daquelas termas míticas. O apocalipse pro-
fetizado pelo profeta era agora uma miragem nas mentes de
todos os que seguiam os seus passos e palavras, menos o
sono, que descia de mãos dadas com a noite, sobre as ruínas
das termas de Revigror, como um manto de seda púrpura.
Todo aquele povo de crentes e iluminados improvi-
sara um acampamento num dos edifícios da estância termal
abandonada. As estrelas e o canto dos grilos afogavam os úl-
timos suspiros do dia nos corpos fatigados. Apenas Magdala
não dormia sossegada. As recentes aparições dos seis líderes
dos principais bairros de Distopia aos seus companheiros ti-
nham-na feito pensar que tanto ela como Dharma, seriam as
próximas vítimas. Não estava enganada.
Um homem aproximava-se daquela estância esqueci-
da do mundo em passos de papel. O brilho lunar revelava
as feições de Faustus, alucinado pelo feitiço da sua luz. As
vestes de cabedal, as algemas e o chicote que empunhava
davam-lhe um ar sadomasoquista, paradoxal com o ambien-
te que o rodeava. Intuição ou acaso, o chefe dos Niilisteus
emitiu uma melodia instrumental, suave como uma brisa
noctívaga, através do seu telemóvel. Dharma e Magdala

435
Tiago Moita

despertaram, procurando saber de onde provinha aque-


le som hipnotizante. Uma sombra humana seguiu-lhes o
rasto.
Amedrontada, Dharma abraçou Magdala, mal avis-
tou o chefe do Bairro Extasis, como se estivesse na pre-
sença da própria morte; a companheira do Alquimista não
se mostrou surpreendida. Faustus desligou a música, mal
as sombras das duas mulheres tocaram a sua. Só podias
ser tu, Faustus. Nem adianta perguntar o que estás aqui
a fazer; sei muito bem o que pretendes e o que fizeste à
pobre Dharma, respondeu a antiga prostituta. Dharma?
Não se chamava Karma? Será que as mulheres que acom-
panham esse filho da puta mudam de nome, além de pen-
samento, respondeu, sarcástico. Dharma tentou atirar-se
a ele, revoltada com aquela calúnia; Magdala impediu-a
com o braço com que a amparava. Quanto mais nos ele-
vamos, menores parecemos aos olhos daqueles que pen-
sam que sabem voar. Foi de livre vontade que abandoná-
mos Distopia porque deixámos de acreditar em Zarat. Se
vieste buscar-nos, perdeste o teu tempo. Estamos com o
Alquimista e não estamos dispostas a abandoná-lo, res-
pondeu a antiga prostituta.
Faustus puxou do chicote e tentou amedrontá-las
com o estalar grosso da sua fibra. O castigo é feito para
melhorar aquele que é castigado. Fizeste muito mal a mim
e a Zarat quando abandonaste a cidade. Nunca devias ter
feito isso, Magdala, disse, ao mesmo tempo que fazia es-
talar o chicote, aproximando-se das duas mulheres. Um
por um, os seguidores e discípulos do profeta começavam
a despertar em silêncio.
Magdala não se demoveu com as palavras do líder
dos Niilisteus. Quem tem só o espírito da História não
compreendeu a lição da vida e tem sempre que retomá-la.
É em ti mesmo que se coloca o enigma da existência: nin-

436
O Evangelho do Alquimista

guém, senão tu, o pode resolver, declarou. Faustus voltou


a usar o chicote, ferindo-a no braço mais exposto. Dharma
soltou um grito.
Não venhas com Nietzsche para cima de mim, minha
rameira. O profeta de que tu falas é igual ao homem que
procura um princípio em nome do qual possa desprezar a
Humanidade e inventa outro mundo para poder caluniar e
sujar este. De facto, só capta o nada e faz deste nada um
Deus, uma verdade, chamada a julgar e a condenar a nos-
sa existência, afirmou, continuando a chicotear. O Homem
é um ser que evolui quando ama, porque aquilo que faz
por amor está sempre para além do bem e do mal, disse
Magdala, procurando sacar uma navalha do casaco. Onde
o amor e o ódio não concorrem, o jogo da mulher torna-se
medíocre, ripostou, ferindo Dharma na testa com a ponta
do chicote. Quanto mais abstracta for a verdade que queres
ensinar, mais tens de seduzir os sentimentos dos que a ou-
vem a seu favor. O Alquimista não é nosso inimigo; muitas
das suas verdades vão ao encontro das nossas, disse, en-
tre o desespero e a raiva. Amor? O amor por si só é uma
barbaridade e as verdades são ilusões que esquecemos, tal
como os factos. Quem precisa da verdade quando temos a
arte e a filosofia? Toda a arte e a filosofia podem ser consi-
deradas remédios da vida, para não morrermos da verdade,
afirmou, ensandecido.
Nem só de arte e filosofia vive o homem; ambas são
o produto de uma criação que transcende a própria vontade
e razão humana. Só existimos enquanto sentirmos e pen-
sarmos. Pára com isso e volta para casa, ordenou Magdala,
fustigada pela dor e pelo cansaço. Faustus não desarmava
nem desistia. O homem precisa daquilo que em si tem de
pior se pretende alcançar o que nele existe de melhor, res-
pondeu, ferindo-a novamente na testa com o chicote. Nes-
se momento, o chefe de Extasis vislumbrou o Alquimista.

437
Tiago Moita

Enraivecido, declarou, agitando o chicote na sua


direcção. O homem é uma corda esticada entre o animal e
o super-homem; uma corda por cima do abismo. É céptico
porque existe e existe porque pensa.
O profeta desviou-se do chicote de Faustus e ripostou.
Nenhuma liberdade justifica um vazio enquanto o homem
não entender que a única verdade reside apenas dentro de si
e não fora de si. Só quando atingires a verdadeira ilumina-
ção, dissiparás a dúvida e viverás a verdade como o sangue
que corre nas tuas veias, respondeu o sábio, atirando um re-
lógio de bolso aos pés do líder dos Niilisteus. O objecto, em
contacto com o chão, multiplicou-se como cogumelos, afu-
gentando Faustus aterrorizado, daquele local – e das vidas
de Magdala e Dharma – para sempre. Mais uma vez a luz
triunfara sobre a cegueira de quem não queria ver e sobre a
surdez de quem não queria ouvir.

438
NOVENTA E QUATRO
Durante muitos anos foram vistos como um mito ur-
bano, dada a distância temporal da última batalha que ti-
nham travado contra o exército de Zarat – culminando numa
gigantesca e pesada derrota. Começaram como gente pobre
e analfabeta que via na desenfreada escalada tecnológica,
uma ameaça a si mesma e à sobrevivência humana. Prati-
cavam actos de puro terrorismo contra instalações informá-
ticas em empresas, edifícios públicos e casas particulares,
laboratórios genéticos e reactores nucleares parcialmente
construídos; inclusivamente, desencadearam uma verdadei-
ra caça aos cientistas de bata branca, acusando-os de terem
sido os causadores da destruição maciça do ser humano e
da vida no planeta. Crimes que fizeram dos Tecno-Rebeldes
uma ameaça para a civilização Distopiana.
Todavia, com a chegada de novas gerações mais qua-
lificadas que a geração anterior, o cenário mudara de figura.
No espaço de poucos meses, estes tecno-terroristas começa-
ram por recrutar antigos engenheiros nucleares, bioquími-
cos, médicos, funcionários da saúde pública, ambientalistas,
geneticistas e hackers informáticos para editarem a sua pró-
pria propaganda, moverem processos e criarem legislação
adequada, desafiando o poder de Zarat e dos chefes dos bair-

439
Tiago Moita

ros de Distopia contra os danos irreversíveis ao planeta;


provocados pelas novas tecnologias e pelo controlo dos
seres humanos pelas máquinas, apelando para uma nova
visão do mundo, onde a ciência e a tecnologia andassem
de mãos dadas com a evolução do ser humano e com a
protecção do ambiente.
Um gigantesco exército de máquinas de guerra e sol-
dados, trajados de vermelho e negro, – a mesma cor dessas
máquinas e da mais alta tecnologia militar de informação e
de destruição maciça do planeta –, cobria o horizonte como
uma mancha de petróleo, escorrendo pelas dunas do Gran-
de Deserto. No ar, caças cor de prata e helicópteros cor de
grafite vigiavam o terreno do céu, fazendo concorrência ao
número de grãos de areia daquele purgatório árido. Mete-
llo, ao serviço de Zarat, viajava num jipe militar no meio
daquela horda ao serviço da morte. Desde que recebera a
notícia do aparecimento dos Tecno-Rebeldes a caminho de
Distopia, não perdera tempo. Com os seus potentes binó-
culos electrónicos perscrutava no horizonte procurando o
seu mais temível inimigo: Gaya.
A sua figura era vista como uma lenda por todos
aqueles que se opunham ao poder do senhor do planeta
e da civilização, apesar de ser mais radical que o profeta
do Oráculo do Destino. Desconhecia-se o seu passado e
vicissitudes. Achava sempre que uma civilização só podia
dar lugar a outra pela força das armas e não pelas palavras.
O seu fanatismo pela aliança entre a ciência e a natureza
fez com que ordenasse a invenção de equipamento militar
e tecnológico com material reciclável e veículos militares
movidos a energias renováveis. Do cimo de uma duna, ob-
servava, com pose de guerreira e vestes cor de jade, feitas
de fibras naturais, a chegada do exército do seu maior ini-
migo, com binóculos a condizerem com o vestuário que
envergava.

440
O Evangelho do Alquimista

Metello avistara a líder de um dos principais inimi-


gos de Distopia. O exército dos amigos do ambiente era in-
visível a olho nu, dada a correspondência da cor dos veícu-
los e soldados com a coloração do Grande Deserto. O que
valia ao comandante-chefe do poder militar de Zarat, era
os seus soldados e as suas máquinas de guerra serem dota-
dos de equipamentos infravermelhos, capazes de detectar a
aproximação de um ser humano ou mesmo de um simples
mosquito a mais de cem quilómetros de distância: ataque.
Os caças e helicópteros fizeram uma razia mortífera
contra os tecno-rebeldes como aves de rapina em voo pi-
cado. Para azar dos aviadores, os tecno-rebeldes possuíam
morteiros e mísseis suficientes para contra-atacarem a força
aérea inimiga. Inconformado, Metello ordenou o avanço de
quatro divisões de tanques de combate pelos lados, como
resposta. Os milicianos da Guarda Zaratista – presidiários
forçados a combaterem ao lado de Zarat, com a promessa de
liberdade – foram obrigados a avançar em forma de cunha
contra o inimigo de frente. Carne de canhão barata, para
poupar a elite.
A batalha demorara mais de quatro horas. Um sinali-
zador luminoso, disparado da pistola de um dos oficiais da
Guarda Zaratista riscou o azul do céu com fumo da cor das
fardas das tropas leais a Zarat: Gaya e o resto do seu exército
tinham batido em retirada.
A alegria dos soldados Distopianos contrastava com
o semblante carregado de Metello. Apanharam Gaya, per-
guntou ansioso a um dos soldados que chegara da frente da
batalha num jipe. Negativo, meu comandante. Eliminámos
grande parte do seu exército mas, infelizmente, ela conse-
guiu escapar sem deixar rasto, respondeu o mais alto que
podia, devido à zoada eufórica dos militares. Metello deu
um pontapé na porta do jipe, enraivecido. Maldição, mais
uma vez me escapou aquela filha da mãe. Como é que ela

441
Tiago Moita

conseguiu escapar à nossa vigilância aérea? Não usaram os


drones, inquiriu, colérico. O soldado engoliu em seco antes
de responder. Sim... meu comandante. Utilizámos e fizemos
tudo ao nosso alcance para a apanhar, mas, disse, antes de
levar um tiro da pistola de Metello na cabeça. O comandan-
te-chefe do poder militar de Zarat não admitia erros na com-
petência. No mesmo monte, uma agente da Guarda Zaratista
aproximou-se, precatada, do braço militar do líder dos líde-
res com um tablet.
– Meu comandante, devia ver isto.
– De que se trata, agente Sibele?
– Os tecno-rebeldes usaram apenas metade das suas
forças. Esta batalha foi uma manobra de diversão. Os nossos
drones descobriram para onde se dirigem.
– Para onde?
– Distopia, meu comandante, Distopia.

442
NOVENTA E CINCO
Adriano sentia-se outro. Parecia ter sido alvo de um
milagre, provocado pela água da fonte e pelas palavras do
Alquimista sobre a Saúde. São de corpo, mente e espírito,
contara a todos a razão da sua esquizofrenia, como se esti-
vesse a contar uma estória. O vírus que o atormentara tinha
sido apagado da sua mente para sempre. Constantino perde-
ra a batalha contra o engenheiro informático Dúbio.
No dia seguinte, o Alquimista deu alguns exemplos
práticos sobre o poder do pensamento positivo na Saúde.
Primeiro, pediu a todos que identificassem a causa das suas
doenças através das suas mentes e perguntassem a si pró-
prios qual teria sido o pensamento que teria criado essas pa-
tologias. De seguida, sugeriu que repetissem para si mesmos
estarem dispostos a eliminar das suas consciências o padrão
que provocara a enfermidade que os afectara, e isso quan-
tas vezes fosse preciso, e, por último, que assumissem todos
que já se encontravam num processo de cura. Ainda o dia
não tinha terminado, e já muitos que padeciam de algumas
doenças congénitas se tinham sentido curados por aquele
placebo.
Toda a multidão estava eufórica com aquela sensação
de bem-estar. Samuel reparou no profeta a deslocar-se em

443
Tiago Moita

direcção a uma das salas e resolveu segui-lo. Ninguém fizera


perguntas, apenas seguiram os seus passos.
A sala aparentava uma espécie de mausoléu de pedra
e jade, decorado com ideogramas e figuras bizarras, bem di-
ferentes das estátuas e dos bustos que tinham encontrado no
jardim das termas. O centro, era ocupado por uma espécie de
sarcófago, representando um sacerdote vetusto: revelação.
Samuel e todos os que o acompanhavam ficaram ató-
nitos com a descoberta. Bastou o sábio ter deslocado duas
das pedras que compunham a parede do fundo, representan-
do os signos Capricórnio e Escorpião, para que o sarcófago
se deslocasse e revelasse uma passagem secreta e um túnel,
em direcção ao desconhecido. Sigam-me, ordenou o profeta,
acendendo um archote que encontrara na sala. Poucos foram
os que hesitaram.
O túnel era estreito e serpenteava pelo subsolo de Re-
vigror. O ar bafiento revelava uma ausência de claridade; as
teias de aranha e o chiar das ratazanas eram as únicas pre-
senças de vida naquele espaço taciturno. Uma luz branca ao
fundo do túnel vislumbrava uma saída. Um suspiro de alívio
perpassou por todos aqueles que o seguiam.
Choque.
O que encontraram ia para além da imaginação do
mais comum dos mortais. Rama-Muri não passava de uma
vila corriqueira abandonada comparado com o que tinham
descoberto. Em momento algum das suas vidas tinham visto
tamanha quantidade de edifícios futuristas bizarros em for-
ma de foguetões, obeliscos e naves espaciais extraterrestres.
Tanto as habitações como as estátuas, os templos e as fon-
tes pareciam ter saído de um circo de horrores. A forma das
construções dava a sensação de que toda aquela cidade tinha
sido esculpida por uma língua de lava vulcânica.
Samuel não conseguia esconder o assombro perante
aquele cenário. Onde estamos? Que lugar é este, perguntou,

444
O Evangelho do Alquimista

olhando confuso, de uma ponta à outra, cada pedaço daque-


le aglomerado urbano subterrâneo. Akoan, uma das grandes
cidades construídas no subsolo por alienígenas há mais de
vinte mil anos, respondeu o sábio. Então sempre é verdade!
Existiram outras civilizações para além de Distopia e outras
raças para além da humana, disse Rodrigo. O Alquimista es-
boçou um sorriso, antes de continuar.
Sempre existiram civilizações mais avançadas e po-
vos mais evoluídos que o vosso, assim como o oposto, em
todos os pontos de vista: tecnológico, político, social, físico
e espiritual. Infelizmente, alguns deles acabaram por seguir
o vosso maior defeito.
Leandro interpelou o profeta, confuso. O nosso maior
defeito? Que defeito, mestre, exclamou. O Alquimista não
se fez rogado perante a pergunta do arquitecto. A evolução
social é delineada por um caminho em direcção à unidade e
não ao separatismo. Durante milénios, grande parte da hu-
manidade viveu na maior ilusão do separatismo chamado
dualidade. Grande parte da Humanidade sempre se imagi-
nou como os melhores do universo. O único planeta habita-
do do universo, o melhor continente, nação, região, comu-
nidade, família ou cidadão. Não pensavam nada disso, mas
agiam como se pensassem; desprezando os povos e culturas
consideradas por vocês, primitivas, enquanto outros povos e
culturas pensavam de maneira diferente da vossa, incluindo
extraterrestres.
Qual era a maneira de pensar desses povos e criatu-
ras, interpelou Dharma. Por exemplo, a forma de interesse
pessoal: ela era muito mais lata nessas civilizações e seres
do que no vosso mundo. É muito claro para criaturas escla-
recidas que o que prejudica um prejudica o Todo e o que
beneficia alguns deve beneficiar todos, ou então não bene-
ficia ninguém. No vosso planeta é exactamente o oposto: o
que prejudica um, é ignorado por muitos, e o que beneficia

445
Tiago Moita

alguns é negado pela maioria. Isto porque a vossa definição


de interesse pessoal é muito limitada, para além do ser indi-
vidual e dos seus entes queridos – mesmo esse, só quando
fazem o que ele quer, respondeu o profeta.
Adriano não se mostrou muito convencido. Mas, mes-
tre, no nosso mundo sempre existiram sociedades avançadas
e sociedades primitivas. Como distingue umas das outras,
inquiriu. O que distingue uma sociedade como primitiva ou
avançada é o nível com que aplica os seus conhecimentos
mais profundos e não a sua superioridade. De que servem
os conhecimentos mais profundos se não os aplicam e parti-
lham? Uma sociedade que chama Progresso à regressão de
valores e conhecimentos é uma sociedade primitiva. A vossa
sociedade recuou, não avançou. Grande parte do vosso mun-
do revelava mais compaixão do que revela agora, devido
à sua obsessão pela ciência e tecnologia em detrimento do
conhecimento e da sabedoria, esquecendo-se que tecnologia
e ciência avançadas sem pensamento evoluído não criam
progresso, mas sim fracasso. Civilizações como Rama-Muri
ou Akoan já tiveram essa experiência no vosso planeta e, se
não fizerdes nada para a impedir, estareis prestes a passar
pela mesma situação, respondeu. Um burburinho começou a
fazer eco por todo aquele lugar sinistro.
Mestre, interrompeu Gustavo, como é que podemos
impedir que nos aconteça o mesmo que aconteceu a estes
povos e como poderemos entrar em contacto com eles no fu-
turo? Tu, Gustavo, tal como todos os outros e mesmo alguns
povos extraterrestres, sois um – e este nível de conhecimen-
to ainda não atingistes. Sabeis que a unidade é a verdade e
o separatismo é uma ilusão; sentis-vos tão confortáveis com
essa ilusão e separados da Fonte, que imaginais que Ela nem
sequer comunica convosco. Quando toda a raça humana
atingir a mestria, então toda a Humanidade se movimentará
através do espaço e do tempo e procurareis ajudar os que

446
O Evangelho do Alquimista

pertencem a outras raças e civilizações a alcançarem igual-


mente essa mestria. Pensais estar no auge do desenvolvi-
mento humano, mas eu afirmo-vos: estais apenas a começar.
Começais agora a experienciar todo o vosso esplendor. As
vossas ideias mais nobres ainda não estão expressas nem a
vossa visão mais sublime. Mas esperai e observai. O dia do
vosso despertar está próximo! Em breve as pétalas se abri-
rão e a fragrância e beleza das vossas flores preencherão o
mundo, e ocuparão o vosso lugar no horto dos deuses.
Assim pregava o Alquimista.

447
NOVENTA E SEIS
Um furacão em carne e osso tinha entrado no Palácio
Olimpo do Bairro Extasis, fechando a porta com o estam-
pido de um trovão. Faustus ainda não tinha recuperado da
amarga derrota contra o Alquimista, além do susto que lhe
pregara com o fenómeno da multiplicação dos relógios. Fu-
rioso, distribuía gritos e toda a espécie de palavrões, conhe-
cidos e imaginários, pelos quatro cantos da casa, contra o
profeta do Oráculo do Destino, e contra Magdala e Dharma:
dois espinhos em forma de mulher, cravados no seu peito
inflamado de ódio, pela insubordinação e ultraje contra a
sua pessoa, como se a sua dignidade e honra tivessem sido
postas em causa. Valores a que, até àquele momento, nunca
tinha ligado a menor importância: Espanto.
Um rasgo de lucidez atingiu Faustus como um relâm-
pago quando entrou no seu gabinete. Pálidos como estátuas
de sal e com uma amálgama de palavras interditas em forma
de pensamentos, entaladas na garganta, os seis conselheiros
de Zarat e líderes dos seis bairros de Distopia aproximaram-
-se do chefe dos Niilisteus como zumbis. As bocas entrea-
briram-se com a aproximação, assim como a coragem.
Faustus só teve tempo para fazer a única pergunta
sensata no meio daquele grupo. O que fazem vocês aqui,

449
Tiago Moita

perguntou. Saul Rabel foi o primeiro a responder. Aquele...


aquele homem é uma ameaça e um feiticeiro! Ele não só pôs
em causa o Capitalismo como roubou o coração e a alma do
meu sucessor, arremessando-me com um bando de corvos,
nascidos dos cacos de um espelho negro, como por magia,
respondeu, apavorado.
Graco virou-se para Saul, pasmado e intrigado; era a
primeira vez que estavam frente a frente. Ele comigo fez
coisas muito piores: quando o encontrei numa base mili-
tar abandonada do Grande Deserto, não só pôs em causa o
progresso e o socialismo como envenenou a mente do meu
sucessor, afirmando que só o perdão e o amor incondicio-
nal podiam curar tudo o que o Homem tinha feito e que ne-
nhuma causa ou progresso justificavam o derramamento de
sangue, calculem! Ele não é nenhum feiticeiro! É o Golem
em pessoa! Eu vi, camaradas, eu vi, respondeu, túrbido e
alucinado.
Metheos virou-se para o líder dos Rebeleus, tentan-
do justificar toda aquela paranóia. Meu caro Graco. Não se
esqueça de que viajou, tal como todos nós, pelo Grande De-
serto e, certamente, foi vítima de uma alucinação. Não nos
precipitemos. Acham o vosso caso traumático? O meu foi
um verdadeiro choque! Quando o encontrei em Anamon –
ou, pelo menos, o que restava dela –, não só fui vencido pela
obstinação do meu pupilo como também fui derrotado por
um sermão sobre a razão e a paixão que, ainda hoje, não
consegui apagar da memória nem encontrar uma justificação
para... chorar, respondeu, soluçando até desfazer o rosto em
lágrimas. Graco contrapôs Metheos, afirmando que não es-
tava louco quando viu o profeta a transformar-se no monstro
dos seus pesadelos.
Otto Gräss interveio, em defesa do chefe do Bairro
Rubro. Um momento, Metheos, um momento. Penso que
Graco e Saul estão a dizer a verdade. Também eu, quando

450
O Evangelho do Alquimista

encontrei Heitor num acampamento no Grande Deserto, não


só fui arrasado pela sua irredutibilidade em seguir as ideias
desse homem, como fui humilhado por um sermão do nosso
inimigo sobre o triunfo da intuição e da experiência sobre
a palavra e... por uma nuvem de traças, disse, tremelicando
como se estivesse a visualizar aquilo por que tinha passado.
Simon Beagle e Simone Dumonde seguraram-no.
Tem calma, Otto! Tem calma! Tu ficaste traumatiza-
do? Eu ainda estou em estado de choque! Aquele homem
não é um ser humano. É uma verdadeira praga! Quando en-
contrei o meu sucessor numa mansão no Grande Deserto e
tentei convencê-lo a voltar para junto do nosso povo, não
só fui confrontado pela sua obstinação como pelas palavras
daquela aberração da natureza sobre o medo, o preconceito,
a individualidade e... um balde de água suja! Demorei quase
quatro horas para tomar banho e toda aquela sujidade conti-
nua entranhada no meu corpo, disse Simon Beagle, sentindo
um formigueiro da planta dos pés à ponta dos cabelos.
Simone Dumonde interveio, continuando a segurar
Otto. Chamas a isso estado de choque? Eu ainda não estou
em mim depois do que ele me fez e ao Adriano. Quando os
encontrei nas ruínas de uma cidade perdida, não só fiquei
arrasada pela teimosia do meu pupilo como tive de escutar
uma prelecção contra tudo em que sempre acreditei sobre
a existência humana e a filosofia do meu ex-companheiro
e vi... vi... um olho azul como o céu, desabrochando como
uma estrela em forma de rosa na testa dele! Aquilo não é um
homem; repito: aquilo não é um homem! É um monstro! Um
monstro, disse, começando a gritar.
Faustus deu-lhe uma estalada, como forma de parar
com toda aquela histeria. Ofegou durante breves segundos
depois daquele gesto. Vocês não estão mais chocados do que
eu. Quando encontrei as putas de que andava à procura nas
ruínas de Revigror, não só não as consegui convencer a vol-

451
Tiago Moita

tar para Extasis como fui vencido por aquele filho de uma
grande puta, que não só teve o atrevimento de gozar e con-
tradizer a filosofia de Nietzsche e do nosso bem-amado líder,
como teve o descaramento de atacar-me com... uma praga...
uma praga... de relógios, disse, começando a agitar-se como
um epiléptico. A perturbação do chefe dos Niilisteus conta-
giou todos os seis líderes como uma reacção em cadeia.
Subitamente...

452
NOVENTA E SETE
Uma enorme discussão se tinha desencadeado como
um rastilho de pólvora nas mentes de todos os discípulos e
seguidores do Alquimista, depois de este ter revelado a ci-
dade perdida de Akoan e a existência de extraterrestres com
uma elevada sabedoria espiritual, tecnológica e científica.
Teorias da conspiração passaram a ser desfeitas por todos os
presentes, comparadas com as revelações do sábio. Tudo se
punha em causa: a origem do Homem e do Universo; reli-
giões; governos, tudo o que sempre se tinha julgado ser obra
meramente humana passava a ser alvo de clarividência com
todas aquelas descobertas. O profeta continuava a caminhar,
juntamente com o povo que o seguia, em direcção a um edi-
fício prateado feito de hexágonos, em forma de bolha. Num
dos lados de uma porta negra, soprou o pó acumulado sobre
de uma espécie de interruptor digital e premiu este; a porta
abriu-se como um leque ao contrário. Estupefacção.
O hall da entrada do edifício era composto por estra-
nhos ideogramas, vitrinas albergando estranhos seres, pare-
cidos com lagartos com rosto humano e dezenas de quadros
com fotografias de estrelas, planetas e galáxias – algumas,
desconhecidas para todo aquele povo. As colunas e naves,
como todo o interior eram ornamentadas por uma espécie de

453
Tiago Moita

cristais reluzentes, ignotos de todos os que acompanhavam


o profeta, entretido em percorrer aquela divisão e explican-
do cada quadro, figura ou fotografia, qual guia turístico de
um grande museu, como se adivinhasse o estado de espírito
de cada indivíduo que o seguia. A viagem terminou quando
abriu uma outra porta, da mesma cor da de entrada, passan-
do a mão sobre uma espécie de interruptor de quartzo rosa.
Choque.
Se o hall era um colírio para os olhos de todos os que
seguiam o profeta, o que descortinaram para além daquela
porta ultrapassava tudo o que podiam imaginar. Diante de-
les, surgiu uma enorme sala de tecto oval, ornamentada com
esqueletos e ossadas de seres humanos e inumanos, forman-
do constelações, conhecidas e desconhecidas, para todos
aqueles que penetraram naquela divisão. Apenas o tecto era
liso como uma selenite e sombrio como o silêncio que revol-
via as entranhas das mentes mais frágeis. Ao centro da sala,
podia ver-se uma máquina com pernas de aranha e uma bola
no centro, feita de cristais cintilantes como estrelas bordadas
no firmamento. Tudo isto lhes foi revelado, mal tinham aca-
bado de entrar todos os seguidores e discípulos do profeta, e
apenas este, tinha acendido as luzes daquela divisão.
Magdala estava tão curiosa quanto aterrada. Que sítio
é este, perguntou. O Planetário de Akoan, respondeu o Al-
quimista, mal accionou, com uma espécie de chave de ouro,
um conjunto de alavancas e botões, sob a forma de rubis e
esmeraldas, de um painel da máquina. O engenho soergueu-
-se do chão e soltou feixes semelhantes a raios laser para a
cúpula, começando a mostrar imagens do universo e daquela
civilização perdida.
Há vinte mil anos, antes do aparecimento dos huma-
nos neste planeta, existiam sete impérios, controlados por
sete tribos de seres do espaço, que vós apelidastes de extra-
terrestres. Durante quase um milénio, estas civilizações de

454
O Evangelho do Alquimista

alienígenas viveram em paz e harmonia, chegando a desen-


volver e a partilhar a sua ciência, tecnologia, arte, cultura e
sabedoria uns com os outros, inclusive conseguiram domes-
ticar dinossauros. Depois, aparecestes vós, respondeu.
Leandro interrompeu, intrigado. Desculpe, Mestre,
domesticar dinossauros e estes... alienígenas, apareceram
antes de nós, perguntou. Sim, Leandro. Mas, adiante: esses
seres super-evoluídos também construíram armas de des-
truição maciça, mais poderosas que os vossos mísseis nu-
cleares e as vossas bombas de hidrogénio, mas não foram es-
sas armas que destruíram estes impérios mas sim a Ciência
e a Tecnologia que desenvolveram que deram cabo das suas
civilizações. Deslumbraram-se de tal maneira com a quan-
tidade de experiências que fizeram com a natureza e com o
tempo, que se esqueceram de medir as consequências dos
seus actos, não se apercebendo que estavam a desmantelar
o ecossistema do planeta e a interferir com a própria bioquí-
mica da vida, através do desenvolvimento de medicamentos,
para fazer o trabalho para o qual os corpos deles estavam
predestinados, criando vírus tão resistentes ao ataque desses
medicamentos, da clonagem e da engenharia genética, sem
o fazerem em prol do benefício da sua espécie, respondeu.
E continuou. Os sábios dessas civilizações bem ten-
taram adverti-los das suas consequências maléficas, mas a
maioria não lhes deu ouvidos. Um dia essa teimosia custou-
-lhes caro e a natureza virou-se contra eles. Surgiram tem-
pestades violentas, erupções vulcânicas e tremores de terra
por todo planeta e, pior do que isso, pragas de vírus geneti-
camente modificados que acabaram por dizimar toda a es-
pécie de seres vivos deste planeta. Vós e os restantes seres
vivos que nascestes depois dessa catástrofe sois os sobre-
viventes. Os ossos que decoram as paredes deste planetá-
rio são... os dos vossos antepassados, concluiu. Um silên-
cio ríspido gelou-lhes o sangue e paralisou-lhes as línguas.

455
Tiago Moita

Um a um, dirigiram-se às paredes e tactearam suavemente


os altos-relevos formados pelas ossadas dos humanos e dos
extraterrestres. Ao tocarem-lhes, sentiram ouvir gritos com
milhares de anos de arrependimento e remorso por serem
os responsáveis de um crime do qual eram todos culpados
e vítimas.
Todos prestaram homenagem às vítimas daquele ho-
locausto, independentemente da sua raça, cor, sexo ou reli-
gião, emanando um raio verde do chakra coração para o frio
relevo daquelas ossadas fossilizadas.
As paredes responderam com lágrimas.

456
NOVENTA E OITO
O fervor vulcânico que se fazia sentir naquele palácio
enregelou os nervos dos sete líderes dos principais bairros
de Distopia, quando enfrentaram o semblante árctico e a
pose alexandrina de Zarat, com o sangue a ferver pelos olhos
e a lançar fumo pelo nariz, depois das confissões de fracasso
das suas missões.
E são estas as pessoas em quem confiei para trazer
de volta os seus pupilos e desmoralizarem o nosso inimigo,
exclamou, lívido de raiva. Perdoai, Grande Líder! Perdoai-
-nos a todos. Foi mais forte do que nós, exclamou Simone,
de joelhos sobre o senhor de Distopia, antes de levar uma
bofetada tão forte que parecia ecoar por todos os cantos do
edifício. A líder dos Dúbios estava desfeita em lágrimas.
Dos seus colegas: silêncio e medo.
Sinceramente, não compreendo. Coloquei a mais
avançada nanotecnologia de vigilância do planeta em todos
os seus habitantes e dei-vos tecnologia topo de gama para
detectar, não só os vossos pupilos como o Alquimista e os
seus seguidores. Julguei-vos capazes de o enfrentar com as
vossas palavras. Vós, doutos das terras da cultura e do ima-
culado conhecimento; vós, redentores da hora do supremo
silêncio; guerreiros das vossas filosofias, que protegi com

457
Tiago Moita

sangue e lágrimas pela sobrevivência da nossa civilização;


vós, que cuspistes na cara dos misericordiosos, dos sacer-
dotes, dos virtuosos e da canalha. Vós, que idolatrais sábios
célebres, doutores e poetas no segredo dos vossos bairros e
dançais comigo o baile da gravidade, bebendo do vinho da
minha sabedoria, é assim que me pagais? Com fracasso e
vergonha, exclamou vermelho de ódio.
Faustus aproximou-se lentamente de Zarat. Grande
Líder, Sábio dos sábios, talvez desconheçais o poder desse...
Alquimista mas, juro pela vossa sabedoria e por Nietzsche,
que tudo o que ouvistes dos líderes dos bairros da vossa ci-
dade é inteiramente verdade. Esse homem, não é um homem
mas um verdadeiro mago!
Zarat ficou intrigado com a última palavra do líder dos
Niilisteus. Mago? Que quereis dizer com isso, inquiriu, sé-
rio. Faustus respondeu, titubeante. Ele... ele não só pôs em
causa a vossa filosofia e o Niilismo como... me atacou com
uma praga de relógios aos meus pés! É verdade o que Faus-
tus está a dizer, Grande Líder. Ele próprio, não só pôs em
causa os princípios basilares da filosofia esquerdista como
descobri que ele é o Golem, respondeu Graco em estado de
choque. Grande Líder, os meus colegas não estão a delirar.
Ele não só me desafiou com um sermão sobre a razão e a
paixão como me deixou sem sucessor nem palavras para o
contradizer: só um mago seria capaz de me fazer isso, disse
Metheos, pávido. Sem palavras fiquei eu, Grande Sábio! Ele
não só me derrotou com um sermão sobre o triunfo da intui-
ção e da experiência sobre a razão como me atacou com uma
nuvem de traças, respondeu Otto, atemorizado. Traças não
é nada, Profeta dos Profetas, a mim foi com corvos; corvos
nascidos de cacos de vidro, disse Saul, horrorizado. Quais
traças, quais corvos: Grande Mestre dos Mestres, nada disso
é comparado com o balde de água suja que ele me atirou à
cara, retorquiu Simon Beagle, indignado e espavorido. Si-

458
O Evangelho do Alquimista

mone interveio como se estivesse na presença de um fantas-


ma. A mim... a mim mostrou-me um olho a sair da sua testa!
Zarat estava cada vez mais confuso e furioso com as
revelações e atitudes dos seus conselheiros; nenhuma delas
fazia qualquer sentido. O instinto do senhor de Distopia deu-
-lhe vontade de esbofetear cada um deles; um gesto inter-
rompido com a entrada de Ptolomeu, anunciando a vitória
de Metello contra os tecno-rebeldes e a entrega de oito pas-
tas ao Grande Líder e aos seus sete conselheiros: Nelas, os
homens fortes da cidade e do planeta encontraram um rela-
tório detalhado de Nicole Adágio sobre o Alquimista.
Zarat esboçou um sorriso enigmático, colocando a
mão no ombro do seu principal e fiel conselheiro. O que
acabara de receber valia mais do que todas as vitórias que
obtivera em toda a sua vida.

459
NOVENTA E NOVE
Ninguém dissera uma palavra sobre o que vira e es-
cutara depois das revelações feitas sobre o povo de Akoan,
antes de sair do planetário daquela cidade. Era como se ti-
vessem tomado consciência da atitude actual dos responsá-
veis do planeta perante os danos que estavam a provocar à
natureza e ao ser humano, impedidos de absorver o remorso
por os seus antepassados nada terem feito para salvarem a
sua espécie e aquelas raças de extraterrestres e seres vivos,
inocentes da mórbida obsessão dos seus antecessores pelo
progresso a qualquer preço. O alívio de todos foi profundo,
quando puseram os pés fora daquele edifício, marcado pela
ciência e pela dor.
Adriano era de todos o que mostrava mais curiosidade
em obter o máximo de informações possíveis acerca des-
ses seres do espaço. Mestre, apesar de tudo o que aconteceu
aos nossos antepassados e a esses extraterrestres, acha que
a Justiça prevaleceu depois dessa tragédia, perguntou. O Al-
quimista fez uma pausa e respirou fundo, antes de responder
ao engenheiro informático.
A Justiça, Adriano, é um acto, não uma reacção. Não
é algo que se experimenta depois de agir de determinada
maneira, mas porque se age de determinada forma; tal como

461
Tiago Moita

não existe outra vida, mas apenas vida ou o facto de a mor-


te não existir. É muito importante que compreendam isto: a
tecnologia actual ameaça ultrapassar a capacidade de a usar
prudentemente. A vossa sociedade está a um passo de se
transformar num produto da tecnologia, em vez de ser a tec-
nologia um produto para ser usado pela sociedade. Quando
uma sociedade se transforma num produto da própria tec-
nologia, suicida-se. O que vós tendes de encontrar é o equi-
líbrio entre a vossa tecnologia e a Cosmologia, respondeu.
Cosmologia, o que é isso, inquiriu Adriano, enquanto
subia as escadas de um templo, com o profeta e o povo que o
seguia. É a forma como tudo funciona – também conhecida
como o “método da loucura da Fonte”. Quando o ser huma-
no compreender este método e como funciona o Universo, a
probabilidade de ruptura com o pensamento vigente é mui-
to maior. O Universo em si é uma tecnologia. A suprema
tecnologia que funciona por si só, mas quando se chega lá
e se começa a mexer em leis universais, corremos o risco
de as infringir, com consequências desastrosas. Chegámos,
respondeu, batendo as palmas junto uma porta gigantesca,
totalmente coberta de rubis e ouro maciço, como sinal de
abertura automática: pasmo.
Todo o templo era uma gigantesca abóbada dourada,
adornada por diamantes, formando constelações e planetas.
Mais de uma dezena de colunas de ouro sustentava toda
aquela estrutura, qual Atlas a suster o céu. No centro, exis-
tia uma torre cibernética feita de cubos e espelhos, botões
e alavancas, como um supercomputador em forma de pilar
central a suportar a coluna. Todos ficaram extasiados peran-
te aquele monumento até chegarem junto do Alquimista, pa-
rado diante do engenho do templo.
Se muitos de vós, antes de conhecerdes estes lugares,
duvidáveis da existência de vida noutros planetas – tanto
aqui como em Rama-Muri –, obtiveram a resposta. Existe

462
O Evangelho do Alquimista

tanta diversidade de seres quantas as espécies de vida do


vosso planeta. Algumas são idênticas a vós – com peque-
nas variações. Outras, encontram-se em múltiplas fases de
evolução. Viajar, segundo a vossa cultura, não existe nas so-
ciedades super-evoluídas. Essas, possuem novas tecnologias
e fizeram progressos no estudo da mente e da verdadeira
natureza da própria Física. Como resultado dessa combina-
ção evolutiva, podem montar e desmontar os seus corpos,
segunda a sua vontade, permitindo estar onde quiserem e
sempre que quiserem. Por isso, a maior parte dessas viagens
de longa duração, através das galáxias, são feitas num ápice,
como um seixo que saltita sobre a água, afirmou.
E continuou. Nessas sociedades não existe trabalho
porque todas as tarefas são desempenhadas e as actividades
são empreendidas com base, somente, no que um ser gosta
de fazer e vê como suprema realização do seu Eu. Os seres
que desempenham tarefas diárias fundamentais, para que a
sociedade exista e funcione, são os que recebem maiores
recompensas e as mais altas condecorações ao serviço do
Todo. Por isso, aquilo que vós considerais trabalho é, para
eles, a forma mais elevada de auto-realização, declarou. Al-
guns dos seus seguidores e discípulos sentiram-se confusos
e incrédulos.
Jordão foi o primeiro a interpelar o profeta. Isso signi-
fica que esses seres não trabalham para sobreviver, pergun-
tou. Os seres super-evoluídos valorizam o que traz benefí-
cio para todos. Não honram quem ensina ou oficia por estar
moralmente correcto. Fazem-no porque é o que resulta de
acordo com o caminho que escolheram enquanto sociedade.
Conquistar, para eles, é definido como fazer o que traz valor,
não o que traz fama ou sucesso, porque essas palavras – ou
outras, como competir, ganhar, perder – exprimem conceitos
que não existem para eles. Por isso, Jordão, nessas socieda-
des não existe nenhum fosso social nem ninguém morre de

463
Tiago Moita

fome, porque esses seres têm uma percepção da suficiência


de recursos para todos e uma consciência que cria o que é
necessário; nenhum recurso natural é desperdiçado nem des-
truído. São sociedades de plena abundância, respondeu.
Leandro, curioso, interrompeu o Alquimista. E mais,
mestre? Que mais essas sociedades fazem? Diga-nos tudo,
pediu. Nesse instante, um gigantesco tremor de terra abateu-
-se sobre todas as pessoas que seguiam o profeta, em pânico,
à medida que o edifício se desmoronava sobre eles. Instinti-
vamente, o profeta accionou um dispositivo que abriu uma
passagem secreta para um túnel mergulhado na penumbra.
Ninguém pensou duas vezes antes de entrar naquele subter-
râneo.
Akoan estava perdida para sempre.

464
CEM
A libido escolhe sempre os melhores momentos de
solidão para libertar o fogo entre dois corações em chamas.
Espera pela passagem das horas graníticas, dos intervalos
sem fumo para tomar de assalto corpos incendiados pelo de-
sejo. Os olhos do mundo inibem o instinto de excitar o cor-
po. Apenas a sombra e o calor e a intimidade das almas nos
lugares mais recônditos permitem semelhante orgia.
Nicole e Nicolau não eram excepções à regra. Antes
de terminar mais um dia de trabalho, escolheram a hora e
o local para darem asas à sua paixão por códigos gestuais,
inventados por eles. Sabiam que no interior do Centro de
Investigação Criminal todos os seus movimentos eram vi-
giados à lupa pelos mais sofisticados aparelhos electrónicos
de vigilância. A privacidade e a impudência não eram permi-
tidas durante o expediente. Os vícios tinham de ser deixados
à porta, em nome da reputação da instituição e nunca do
indivíduo.
O desejo escolhera um elevador vazio, num velho ar-
mazém abandonado nos arredores do local onde trabalha-
vam e despira o fogo daqueles corpos afogueados de pai-
xão. As sombras do lusco-fusco, recortadas pelas grades do
elevador, realçavam pedaços daqueles corpos, suados e nus,

465
Tiago Moita

entregues a um sentimento que transcendia as suas von-


tades. Os sons da alcova ecoavam pelos quatro cantos do
edifício à medida que Nicole e Nicolau exploravam as
fronteiras do sexo até ao limite das suas forças. Cinco
berros agudos em uníssono: êxtase.
Sorrisos e cigarros eram trocados, assim como os
últimos beijos e abraços de mais uma hora de amor, em
jeito de despedida, que terminara com a partida dos dois
amantes e agentes da Guarda Zaratista, em direcção aos
seus lares.
A viagem de Nicolau até casa foi um misto de ro-
tina e mistério. Estava habituado a observar as ruas por
onde passava e a tarde a desfazer-se no horizonte. Toda-
via, mensagens como “A revolução começa dentro de ti”
ou “Sê a mudança que esperas ver no mundo” não eram
normais em Distopia. Algo de subliminar aturdira a cabeça
do assistente de Nicole, tal como as estranhas formações
de nuvens e as auroras boreais que bruxuleavam no céu.
Situação semelhante sentia Nicole, a caminho de
casa. Normalmente, não costumava desviar os olhos da
condução nem do seu destino, mesmo quando fazia os
seus habituais passeios e jogging nos parques do bairro
onde nascera. Contudo, e pela primeira vez, sentia difi-
culdade em se concentrar na condução do seu automóvel,
enquanto passava por ruas com slogans pintados nas pa-
redes carcomidas pelo tempo como “Somos Todos Um”
ou “O Universo conspira a nosso favor”, assim como os
estranhos fenómenos que vislumbrava no céu, tal como o
seu assistente e amante.
Param.
A visão era tão corriqueira quanto estranha. Grupos
de crianças e jovens atravessavam a rua fugindo de mas-
tins ferozes, babando-se pelo caminho, perante os dois
agentes, impávidos. Um dos jovens do grupo olhou para

466
O Evangelho do Alquimista

Nicole, da mesma forma que a primeira jovem do gru-


po que se cruzou com o carro de Nicolau e olhou para
o agente. A surpresa teve o impacto de uma epifania. Em
uníssono, deduziram a identidade daqueles jovens fugitivos,
numa só palavra.
– Índigos.

467
CENTO E UM
Tudo era uma corrida contra o tempo e a morte, mes-
mo sendo conceitos irreais para os seguidores e discípulos
do Alquimista, depois de tudo o que tinham aprendido e ex-
perienciado com ele. O instinto fala mais alto que a cons-
ciência quando o corpo e a mente pressentem o fim. Atrás
deles, toneladas de pedras e terra sucumbiam como um cas-
telo de cartas. Gritos de pânico ecoavam pelo túnel secreto
que o profeta revelara a todos os que o seguiam no templo
da cidade de Akoan, quando começara o terramoto que aca-
baria por destruir a cidade alienígena. O túnel parecia não ter
fim e o soterramento parecia ser o destino de todos aqueles
que o atravessavam.
Salvamento.
O que restava do túnel, depois da saída da última
pessoa que seguia o sábio, era agora um monte de entulho.
Todos em uníssono agradeceram ao profeta e aos céus por
terem escapado daquela catástrofe. Era fim da tarde mas
para todas aquelas pessoas sabia a alvorada e liberdade a
gotejarem pelos lábios como lágrimas de nuvens, embora
estivessem em pleno deserto.
O Alquimista olhou para as primeiras estrelas que co-
meçavam a bordar o céu e o lugar onde se encontravam.

469
Tiago Moita

Descobrira onde estava em três tempos, através da posição


dos astros e de uma bússola, que Samuel lhe emprestara.
Atempadamente, revelou a localização exacta das viaturas
da caravana que o seguiam a alguns dos seus seguidores,
ordenando-lhes que as levassem para o outro lado de uma
colina que indicou com o dedo. Imediatamente, assentiram
e partiram, obedecendo às instruções do profeta. Um deles
ofereceu-se para ir buscar a carrinha de Samuel, seguido
pelo resto do povo que acompanhava o sábio.
Isauro era o terceiro discípulo mais curioso acerca da
vida noutros planetas e da vivência dessas sociedades de se-
res super-evoluídos de que o Alquimista tanto falara. Mes-
tre, desculpe insistir neste assunto mas, por favor, conte-nos
mais sobre esses seres super-evoluídos: como vivem, gover-
nam, que ideologias seguem, tudo, questionou, qual criança
sedenta de saber. O profeta acedeu ao pedido do jovem sin-
dicalista com uma gargalhada.
Todos os seres de outros lugares se encontram, tal
como vós, em diversas fases de evolução. Nessas culturas
super-evoluídas, esses seres remembram-se. Aquilo que vós
classificais como humilde na vossa sociedade é frequente-
mente o mais respeitado no mundo deles. Outro exemplo:
em sociedades super-evoluídas, em nenhuma circunstância
e contra a sua vontade, um ser tira voluntariamente a vida a
outro da sua espécie. Se uma espécie super-evoluída fosse
atacada por outra, era garantido que o atacante seria a menos
evoluída, ou melhor, primitiva. Nenhum ser evoluído ataca-
ria, fosse quem fosse, respondeu.
Isso significa que não existem ofensivas contra quem
quer que seja nessas sociedades, perguntou o arquitecto.
Exactamente, Leandro! A única razão pela qual uma espé-
cie atacará e matará outra será se o agressor se esquecer de
Quem Realmente É. É muito difícil fazer com que esses se-
res experienciem sofrimento ou prejuízos – ainda por cima,

470
O Evangelho do Alquimista

pondo em risco o seu corpo físico. Se tal acontecesse,


permitiriam que o atacante os ferisse se entendessem que
o deveriam fazer. Eles nunca matariam por raiva outro
ser porque, primeiro, nunca sentiriam raiva; segundo, não
poriam termo à experiência corporal de qualquer outro
ser sem a sua permissão, e terceiro, nunca se sentiriam
atacados – mesmo fora da própria sociedade ou espécie,
respondeu.
Isso significa que esses seres nunca se sentem ata-
cados por quem quer que seja, perguntou Isauro, confuso.
Para te sentires atacado tens de sentir que alguém te está
a querer tirar alguma coisa – a vida, os entes queridos, a
liberdade, a propriedade, os bens, enfim, qualquer coisa.
E um ser super-evoluído nunca o experiencia, porque dar-
-te-ia simplesmente aquilo que tanto desejas, sem recor-
rer à força – mesmo que custasse a esse ser evoluído a sua
vida corporal –, e ele sabe, de antemão, que pode recriar
tudo de novo. Daria tudo, com a maior naturalidade, a um
ser inconsciente da sua inferioridade. Essa é a razão pela
qual esses seres não são nem mártires nem vítimas do
despotismo de ninguém, respondeu.
E continuou. O ser super-evoluído tem a clarividên-
cia de que pode criar tudo de novo, sem necessidade de
ter de o fazer. Apercebe-se de que não precisa de nada
disso para ser feliz, ou para sobreviver. Compreende que
não precisa de nada exterior a ele próprio e que nada tem
a ver com qualquer coisa física, assim como compreende
que ele e os seus atacantes são um só; vê-os como uma
parte ferida do seu Eu, respondeu.
Rodrigo interpelou o sábio. Então como é que pro-
cedem quando se deparam com um ser de uma raça me-
nos evoluída? Nessas circunstâncias, a sua função é sa-
rar todas as suas feridas, para que o Todo em Um possa
novamente conhecer-se como realmente é. Lembrai-vos

471
Tiago Moita

sempre disto: Dar tudo o que de melhor existe ao outro é


oferecerdes a vós mesmos um bálsamo.
Mas, mestre, voltando ainda aos seres super-evoluí-
dos: quais são os princípios por que se regem, perguntou
Adriano. O Alquimista, mais uma vez, respondeu com um
sorriso, de forma simples e humilde, àquela pergunta. Ape-
nas dois: primeiro, Somos Todos Um; segundo, Tudo no Um
se Inter-relaciona.
Nesse instante, uma enorme baforada tingiu os véus
da noite. Tinha chegado a caravana. O Alquimista pediu aos
seus seguidores que abandonassem os carros e o seguissem
em direcção à colina que antes lhes tinha indicado. Todos as-
sentiram. A subida não foi difícil, comparado com o impacto
que tiveram com o que tinham encontrado do outro lado.
O cenário era um verdadeiro teatro de sombras conge-
ladas pelo tempo e pela morte. Torres de tanques de guerra,
canhões e outros carros de combate, decoravam a paisagem
nocturna juntamente com ossadas de militares, tornadas fós-
seis pela natureza e mártires da loucura humana da guerra.
Algumas mulheres que acompanhavam o profeta preferiram
deixar os filhos nos veículos. Aquele panorama era a última
coisa que uma criança deveria ver em vida. No meio daquele
campo de morte, o sábio sentou-se em posição de Buda e
aguardou que todos os que o seguiam o imitassem.
Há quase um século, as maiores potências deste pla-
neta entraram em conflito e provocaram uma guerra que du-
rou muitos anos. O terreno onde nos encontramos chama-se
Almanzor e foi palco de uma das mais violentas e sangren-
tas batalhas da história da vossa espécie. Como vos disse, a
guerra é sempre desnecessária, a não ser que ponha em causa
um valor mais nobre para a vossa evolução. Neste caso, não
foi esse o motivo, mas, simplesmente, a ganância e a cruel-
dade que habitavam no âmago do medo dos homens. Todo o
pensamento que ignora a unidade entre o homem e a Fonte;

472
O Evangelho do Alquimista

toda a ideia que nos separa, toda a acção que anuncia que
não estamos unidos é controlada pelo Ego colectivo. Não é
real! Contudo, faz parte da vossa realidade, pois vós fizestes
com que assim fosse. Não vou perguntar o que deveis fazer;
apenas sugerir aquilo que os seres super-evoluídos fizeram
para porem fim a todos os seus conflitos, declarou.
– O quê? – perguntou Isauro.
– Uma Revolução da Evolução.

473
CENTO E DOIS
Uma atmosfera estranha pairava entre o povo que se-
guia o Alquimista. Samuel caminhava entre os veículos, sa-
cos-cama e tendas improvisadas dos seguidores do profeta
do Oráculo do Destino com uma sensação peculiar que não
conseguia explicar. Pareciam todos suspeitos de um crime
por cometer, ou já cometido em tempos remotos, ou vidas
passadas, se formos mais além da origem de tanta descon-
fiança. Por momentos, teve a sensação de ver olhos a vi-
giá-lo de soslaio, como predadores, observando a presa a
penetrar no seu território.
Magdala chocara com Samuel; a colisão não fora in-
tencional. Samuel, ainda bem que te encontro. Precisamos
de conversar, disse a companheira do Alquimista. Deixa-me
em paz; não temos nada para dizer um ao outro, respondeu,
ríspido e seco como o chão que pisavam. Magdala não de-
sistiu, respirou fundo e chamou-o de novo com a sua voz
quente, transpirando sensualidade.
Samuel parou e virou-se para ela, como se ouvisse o
canto de uma sereia. Não era nem feitiço nem encantamento
daquela mulher. Era algo mais profundo, mais forte que a
sua vontade e superior à sua razão. Ao entreolharem-se, ob-
servaram fios de luz dourada, da espessura de fios de seda,

475
Tiago Moita

a entrelaçarem os seus corpos. Não sentiam a aragem fresca


do deserto, o crepitar do fogo das fogueiras ou as conversas
das pessoas. Apenas sentiam todo aquele fluxo luminoso; os
corações batendo em uníssono. Apenas sentiam.
Agora entendo o sermão no banquete do Palácio de
Bancheler, respondeu Samuel, caminhando lentamente em
direcção à companheira do Alquimista. Também eu. Passei
a compreendê-lo depois de me abandonares: a culpa foi toda
minha. Deixei-me levar pelo desejo e, sem saber, estava a
quebrar o fluxo da nossa energia, ou seja, do nosso amor,
afirmou, ao mesmo tempo que as lágrimas rolavam pelo seu
rosto. Não chores nem sintas culpa por nada. Quando entre
duas pessoas o amor acontece, é natural existir uma permuta
simultânea e inconsciente de energia, assim como também
é natural sentirmo-nos leves e eufóricos. Esse é sentimento
próprio da paixão, respondeu, pegando nas mãos dela. Exac-
to! E só nos desligamos do Amor quando esperamos que
esse sentimento seja alimentado apenas pela outra pessoa,
declarou Magdala, comovida. Por isso é que, nesse instante,
se sente uma ausência de Amor. Os casais deixam de trans-
mitir esse fluxo e começam a entrar nas suas cenas de con-
trolo, numa tentativa de se dominarem um ao outro. Nesse
ponto, a relação amorosa degenera numa luta pelo poder e
termina, afirmou o caixeiro-viajante. O fluxo energético era
cada vez mais amplo e forte.
Sabes, acho que a razão que levou a tudo isto se deve à
separação das nossas energias sexuais, disse Magdala, cabis-
baixa. Como assim, inquiriu Samuel, confuso. No meu caso,
nunca tive a oportunidade de integrar o meu lado masculino;
no teu caso, não conseguiste integrar o teu lado feminino.
Acho que a razão pela qual as pessoas ficam dependentes
de alguém de outro sexo se deve à necessidade de aceder à
energia do sexo oposto. Sabes, eu acho que a energia mís-
tica, a tal a que podemos recorrer como fonte interior, é si-

476
O Evangelho do Alquimista

multaneamente masculina e feminina. Podemos acabar por


nos abrirmos a ela, mas, quando estamos no início da nossa
evolução, devemos tomar cautela, respondeu, antes de ser
interrompida por Samuel com um beijo ternurento na testa.
O processo de integração – continuou Samuel – leva
o seu tempo. Se nos ligarmos prematuramente a uma fon-
te humana, de modo a obtermos a nossa energia feminina
ou masculina, desligamo-nos do Amor. Temos primeiro de
completar, sozinhos, o nosso círculo da vida.
Para depois sermos um só, respondeu Magdala, abra-
çando-o. Samuel fez das palavras da companheira do Alqui-
mista, as suas.
Naquele momento, aquelas duas almas não sentiam
fronteiras a separarem-nas uma da outra. Em seu redor,
circulava uma gigantesca bola de fogo à velocidade de um
cometa, a entrar na estratosfera de um planeta. As pessoas
que assistiram àquele reencontro levantaram-se, após aquele
abraço, e emanaram um raio de luz verde e rosa do chakra
Coração para os corações daqueles dois amantes.
O Alquimista chorou naquele instante. Pela primeira
vez, a noite e a Humanidade testemunharam um nascer do
sol a partir de um momento de ternura e clarividência.

477
CENTO E TRÊS
O que guardava era demasiado importante para manter
no segredo dos deuses. Uma prostituta atravessava as ruas mais
movimentadas do Bairro Extasis, como se estivesse a fugir de
alguém que ameaçasse a sua vida. O aspecto escanzelado e des-
leixado, o corpo impúbere e o rosto pueril com maquilhagem
desajeitada, revelavam uma adolescente, caloira no ofício mais
antigo da História da Humanidade. Assim era Justine aos olhos
do mundo, que tanto a ignorava como cobiçava a sua carne.
Meia hora antes do encontro...
Atrás de si, não se vislumbrava ninguém suspeito que
estivesse a persegui-la. Alguns automóveis paravam, tentando
abordar a prostituta de tenra idade para saberem quanto custa-
vam as suas horas de prazer, enquanto corria ruas e avenidas
sem parar. Para Justine, nenhuma palavra ou murmúrio lhe tra-
zia qualquer conforto a não ser o da pessoa com quem queria
falar.
Uma rua estreita e solitária na primeira esquina à sua
direita era o esconderijo ideal. Envolta pelas sombras, ligou o
telemóvel e esperou que a pessoa, com quem tanto queria falar,
atendesse a chamada. Quatro tentativas: silêncio. Enquanto não
obtinha resposta, virava a cabeça para todos os lados, descon-
fiada e amedrontada.

479
Tiago Moita

Uma voz de mulher adulta atendeu a chamada da


jovem prostituta à quinta tentativa. A receptora conhecia
bem quem lhe telefonava, a partir do nome que aparecia no
visor do telemóvel. Justine, perguntou a mulher do outro
lado da linha. Magdala. Ainda bem que atendeste. Preciso
muito de ti. Onde estás, perguntou a jovem, desesperada.
Vinte minutos antes do encontro...
O seu nome e presença em Distopia eram motivo de
respeito em todos os bairros, apenas por trabalhar para o
homem mais poderoso da cidade. Quem o visse a caminhar
daquela maneira, não pensava no melhor dos mundos. Para
estar naquele bairro a fazer malabarismos com a sua but-
terfly, com um sorriso malévolo a rasgar o rosto enquanto
mascava uma pastilha elástica, era para assassinar ou dar
uma lição a alguém que se metera com o seu chefe ou pre-
senciara algo que devia ter apagado da memória, de uma
maneira ou outra. As suspeitas recaíam mais na primeira
hipótese.
Magdala apercebeu-se do nervosismo da jovem ao
telemóvel. Justine, tem calma, o que é que fizeste desta
vez? Estou em apuros, Magdala!...Quem me mandou ser
curiosa, exclamou a jovem, cada vez mais nervosa. Justi-
ne... Justine. Respira fundo! Isso... agora: diz-me o que é
que se passa, pediu a companheira do Alquimista.
Cinco minutos antes do encontro...
Tinha a mesma fama do seu irmão gémeo, quando
passeava pela rua. Era capaz de resolver um cubo mágico
e simultaneamente disparar uma pistola, enquanto fumava
o seu cachimbo. Mesmo de noite, fazia questão de usar
óculos escuros. Podia ser medroso e distraído em algumas
situações, ao contrário do irmão. Todavia, no que dizia res-
peito a missões do líder dos líderes de Distopia, era capaz
de engolir ambos os defeitos e revelar-se uma máquina as-
sassina ao serviço de quem mais poder possuía no planeta.

480
O Evangelho do Alquimista

Justine balbuciava algumas palavras. Hoje, quando... fui


ter... ao... Olimpo ... falar... com o... Faustus... a respeito... do
modo... como o... meu chulo... me tratava, encontrei-o... encon-
trei-o... com os seis líderes de Distopia, respondeu. Disseste os
seis líderes? O que é que eles foram fazer a casa dele, pergun-
tou Magdala, intrigada.
Um minuto antes do encontro...
Os dois homens caminhavam em direcção a Justine, vin-
dos de sentidos opostos. Os sorrisos aumentavam à medida que
se aproximavam da jovem prostituta. Fora inconsciente: podia
ter escolhido um lugar seguro, na casa de uma amiga ou colega
de ofício; tentar fugir pelos esgotos da cidade e ser resgatada
por jovens índigo. Tudo, menos ter feito o que fizera. Sem nin-
guém para lhe acudir naquele bairro, naquele dia, àquela hora,
conversando com uma amiga, situada a quilómetros de distân-
cia da cidade, que jurara regressar com o homem dos seus so-
nhos, não tinha ninguém que desse pela sua falta.
Contagem decrescente...
Justine começou a ganhar um pouco mais de ânimo e a
falar com mais calma, sem saber o que a esperava. Eles tenta-
ram ir ao vosso encontro... e desmoralizar o Alquimista... Zarat
apareceu... e discutiu com eles... minutos... depois... entrou o
conselheiro dele... com umas pastas. Eles descobriram tudo,
Magdala! O Alquimista afinal chama-se...
Corte.
Justine tombara de lado, fulminada e sem tempo sequer
para sentir o frio gume da butterfly de Alpha a deslizar pelo seu
pescoço. Do outro lado da linha, Magdala perguntava, desespe-
rada por Justine. Um tiro certeiro da pistola de Ómega sobre o
telemóvel da jovem prostituta fora a única resposta que escu-
tara. Os dois esbirros de Zarat riam alarvemente do cadáver da
adolescente, afogada por uma gigantesca poça de sangue do
tamanho e cor de uma das paredes da esquina, onde Justine
se encontrara com a morte.

481
V
A ÚLTIMA CEIA

“Aquele que está lavado não necessita de lavar se-


não os pés, pois está todo limpo. Também vós estais limpos
mas não todos”

Bíblia Sagrada
João, 13, 10
CENTO E QUATRO
A noite começava a dar os seus últimos sinais de vida.
A caravana seguia calmamente pela estrada, como um rio
às portas da foz. Todos os seguidores do Alquimista que se-
guiam a carrinha onde viajava o profeta, com os seus discí-
pulos, faziam um esforço sobre-humano para se manterem
acordados durante a viagem. Os que ficavam no lugar do
morto, procuravam abanar levemente o ombro dos condu-
tores, de modo que estes não caíssem na tentação do sono.
A lua e a noite eram um convite para um repouso profundo
que, naquelas circunstâncias, poderia ser fatal.
A atmosfera na carrinha de Samuel era o oposto do
ambiente bucólico que se vivia nos restantes veículos que
acompanhavam a viatura do caixeiro-viajante – assim como
a paisagem. Um contagiante e inebriante burburinho tomara
conta do veículo onde seguia o profeta, depois do seu último
sermão em Almanzor. Todos estavam extasiados com essa
ideia da Revolução da Evolução; pareciam crianças eufóri-
cas por terem encontrado o mapa do tesouro.
Constantino e Isauro não aguentaram mais. O padre
foi o primeiro a interpelar o Alquimista sobre esse tema. O
profeta declarou com um sorriso aberto. Esse processo de
evolução tem decorrido sempre. Mas esse método está a to-

485
Tiago Moita

mar outro rumo. Há aqui uma viragem. Agora apercebestes-


-vos de que não só estais a evoluir mas também entendeis
como estais a evoluir, uma vez que conheceis o processo
pelo qual ocorre a evolução – e através da qual é criada a
vossa realidade. Antes, ereis observadores de como a vossa
espécie estava a evoluir. Agora sois participantes conscien-
tes de que essa revolução está a acontecer: cada vez mais
pessoas têm consciência do poder da mente, da sua interliga-
ção com todas as coisas e da sua verdadeira identidade como
seres espirituais; cada vez mais pessoas vivem e praticam
princípios que invocam e produzem resultados específicos,
desfechos desejados e experiências intencionadas, afirmou.
E continuou. É uma verdadeira Revolução da Evolu-
ção! Cada vez mais pessoas criam conscientemente a quali-
dade da sua experiência, a expressão directa de Quem Real-
mente São e a célere manifestação de Quem Escolheriam
Ser, concluiu o profeta.
Leandro interpelou o sábio. Mestre, acha que este é o
melhor momento para se concretizar essa revolução? Claro,
Leandro! Este é o período certo da vossa História! Tendes a
tecnologia e o entendimento de como a utilizar para o vosso
progresso, assim como para a vossa extinção. Cada pessoa
alcança a sabedoria da forma mais compreensível, ao longo
do caminho da sua Verdade Suprema. Partilhai em conjunto
a vossa sabedoria. Experienciai em conjunto o vosso amor,
porque a sabedoria e a verdade podem existir em paz e har-
monia, respondeu.
Isauro continuava perplexo com tudo o que escutava.
E como vão ser orientadas as pessoas durante e depois dessa
revolução, inquiriu. O princípio orientador de uma civiliza-
ção avançada é a unidade e não a ideia que vós tendes de se-
paração. O reconhecimento da unidade é sagrado para todo
o vosso futuro. Para chegardes a essa unidade tendes de vos
basear num outro princípio muito importante: o princípio da

486
O Evangelho do Alquimista

Observação Pura, respondeu. Isauro ficou confuso e pediu


ao sábio que explicasse esse conceito.
O Alquimista assentiu. A Observação Pura é o prin-
cípio pela qual se regem os seres super-evoluídos. Significa
observarem simplesmente que são todos um, e concebem
mecanismos políticos, sociais, económicos e espirituais que
sustentam em vez de enfraquecerem esse primeiro princípio.
Para que isso seja possível, imaginai-vos a governar como
se fôsseis o único ser vivo do planeta. Se conseguirdes ima-
ginar isso, entendereis que os sistemas políticos desses seres
super-evoluídos não envolvem nenhuma governação, como
se um só ser participasse e um só ser fosse afectado, obser-
vando, com melhor minúcia, O Que Funciona, através de
núcleos. Por isso agi como se fôsseis um, sede a diferença e
a mudança que esperais ver no mundo; personificai a cons-
ciência de Somos Todos Um e Há o Suficiente. Vós tendes
agora a oportunidade de recriar as melhores experiências das
vossas antigas civilizações, evitando as piores. Não tendes
de deixar egos pessoais e tecnologias avançadas destruírem
a vossa sociedade uma vez mais. Podeis fazê-lo de maneira
diferente: cada indivíduo pode fazer a diferença, concluiu.
Ninguém ficou indiferente àquelas palavras.
Constantino inquiriu o Alquimista, interessado. E
esse sistema de que falais é mais complexo ou mais sim-
ples do que os sistemas actuais? É próprio de uma cultura
primitiva imaginar que a simplicidade é retrógrada e que a
complexidade é muito avançada. Os seres mais evoluídos
têm uma perspectiva completamente diferente: Quanto mais
complexo for um sistema, mais simples é o seu modelo, res-
pondeu.
Travagem.
A conversa fez com que todos os passageiros da carri-
nha perdessem a noção do tempo e a percepção do espaço. A
noite tinha dado lugar ao dia e o Grande Deserto tinha dado

487
Tiago Moita

lugar a um imenso e frondoso vale verde e amarelo. A trava-


gem dos veículos soltou uma pequena nuvem de poeira que
nem por isso afugentou dezenas de crianças e jovens com tú-
nicas brancas, saídos da bruma dos arbustos e árvores, fazen-
do sinal a todas as pessoas para os seguirem. O Alquimista e
os seus discípulos foram os primeiros a irem ao seu encontro.
– Sede bem-vindos. Estávamos todos à vossa espera –
e à sua espera, Mestre. – saudou um dos jovens. O profeta
foi o único a aproximar-se dele e a cumprimentá-lo com um
caloroso abraço.
– Eu e os meus companheiros agradecemos a vossa
presença. Precisamos de alojamento, víveres e descanso para
todas as almas que me têm seguido, antes de partirmos para
Distopia, com a maior brevidade.
– Os vossos desejos são ordens. – respondeu o jovem,
sorridente.
– Uma pergunta: podemos levar os carros para a vossa
povoação?
– Não, mestre! Tereis de deixá-los às portas da nossa
aldeia. Não vos preocupeis. Nós lhes indicaremos o caminho.
Segui-nos!
Sem perder tempo, o Alquimista foi ter com os discí-
pulos. Estes jovens vão levar-nos à sua aldeia. Passaremos
lá a noite. Segundo Samuel, Distopia fica do outro lado deste
vale. Estou perto do meu destino e preciso de ganhar forças e
preparar-vos.
– Preparar-nos? Para quê? – perguntou Samuel.
– A seu tempo descobrirás: a caminho. – respondeu.
Isauro aproximou-se do profeta.
– Mestre. Desculpe insistir neste assunto mas, como se
chama o sistema em que vivem essas sociedades super-evo-
luídas? O Alquimista esboçou um sorriso antes de responder
ao jovem sindicalista.
– Holocracia.

488
CENTO E CINCO
Nada parecia fazer sentido na cabeça de Nicole. Tudo
aquilo a que assistira na noite anterior ia para além de tudo
o que pudesse imaginar. O acaso e o infortúnio eram agora
palavras difíceis de dissimular, depois de toda a espécie de
fenómenos celestes e mensagens bizarras estampadas nas
paredes das ruas por onde passara com o seu automóvel.
Não, não podia ser uma coincidência ou uma ilusão dos seus
sentidos. Tinha de haver uma explicação clara e racional
para todos aqueles sinais. Confusa e intrigada, combinou um
encontro com Nicolau.
Aos olhos da cidade, o café Big Eye era um entre os
mais pitorescos e corriqueiros estabelecimentos de Distopia.
Lugar de média dimensão onde se cruzavam pessoas dos
mais diferentes estratos sociais. Desde o mais abastado mi-
lionário, passando pelo distinto intelectual ou o mais solitá-
rio forasteiro, poucos eram os que diziam não àquele ponto
de encontro e convívio onde o café e o bife da casa eram
alguns dos bons motivos para visitá-lo. Para Nicolau, era um
como tantos outros naquele fim de tarde.
Nicole chegou uns dez minutos atrasada ao café. Peço
desculpa pelo atraso. O trânsito hoje está horrível, respon-
deu, ofegante. Tal como os dias nesta cidade. Tudo parece

489
Tiago Moita

estar virado do avesso com essa história da chegada do pro-


feta do Oráculo do Destino. Calcula tu que ontem, quando
ia a conduzir a caminho de casa, me deparei com estranhas
mensagens na rua, luzes bruxuleantes e invulgares nuvens
no céu: isto está cada vez mais esquisito, desabafou Nicolau,
apagando o seu cigarro.
Não sabia qual das emoções a perturbava mais, depois
de ouvir aquelas palavras. A expressão do rosto da aman-
te do agente – e sua inspectora-chefe – eram um misto de
espanto e medo. Por instantes, Nicole pensou que Nicolau
tinha conseguido ler os seus pensamentos. Também... eu,
respondeu, quase sem fala. Também tu o quê, perguntou.
Também eu vi tudo isso que me acabaste de dizer: mensa-
gens bizarras e fenómenos no céu. Desde ontem à noite que
não consigo perceber o significado de tudo isto... parece que
estou dentro de um sonho, respondeu, confusa, segurando a
cabeça nas mãos. Sem disso dar conta, deu uma cotovelada
no copo de whisky de Nicolau, fazendo-o tombar para fora
da mesa e estilhaçar-se no chão em pedaços.
O agente ficou perplexo com aquele gesto. Tu já fizes-
te isso! Já derrubaste esse copo! É a trigésima terceira vez
que me lembro de te ver a parti-lo dessa maneira, disse, ner-
voso. De que é que estás a falar? Eu nunca derrubei nenhum
copo à tua frente. Espera... disseste trigésima terceira vez,
questionou, desconfiada. Nicolau respondeu: Sim, porquê?
Não, não pode ser. Só pode ser uma coincidência, respondeu
a agente, abanando a cabeça. Nicole, não foste tu que disses-
te que deixaste de acreditar em coincidências depois de tudo
o que temos investigado? O que é que se passa? O que é que
não pode ser, exclamou, cada vez mais intrigado, colocando
a mão sobre a mão da sua amante.
Nicole respirou fundo antes de lhe responder. Antes
de vir para cá, passei com o carro por onze quarteirões, por
causa de três desvios que encontrei pelo caminho. É curioso

490
O Evangelho do Alquimista

falares da trigésima terceira vez porque três vezes onze


são... trinta e três, concluiu.
Nicolau soltou uma gargalhada nervosa. Eu não
acredito! Também tu? Hoje de manhã, encontrei oito car-
tas no correio e demorei vinte minutos a chegar a este
café. Quando cá cheguei, ouvi uma conversa entre duas
senhoras. Uma delas, dizia que este lugar tinha sido um
prédio residencial antes de ser o Big Eye. Adivinha qual
era o número da porta, disse, enquanto passava as mãos
pelo rosto.
Nicole hesitou na resposta por breves segundos.
Vinte... e oito, exclamou, como se estivesse a dizer um
número à sorte. Nicolau assentiu. Estranho, não é: tão es-
tranho como o sonho que tive, um dia antes de te conhe-
cer na universidade. A agente ficou cada vez mais curiosa,
quanto receosa. Um sonho? Que sonho, perguntou, sor-
rindo. A hesitação passou para o lado do seu companheiro
e colega de trabalho. O medo queria convencê-lo a desis-
tir de contar o que tinha sonhado. Tarde demais.
Nicole aproximou-se ainda mais, expectante. Bem,
que importa. Afinal de contas, tudo foi apenas um sonho:
na noite anterior ao nosso encontro acidental na universi-
dade, sonhei que era um camponês da idade média e que
numa floresta perseguia uma mulher, igualzinha a ti. Am-
bos ríamos, ao mesmo tempo que eu procurava agarrá-la.
Por fim, parámos e ficámos sentados em cima do tronco
de uma árvore; beijámo-nos e eu disse-lhe uma frase, res-
pondeu sorrindo, antes de ser interrompido por Nicole.
A agente estava pálida com a descrição do sonho,
colocando uma das mãos sobre as mãos do seu colega e
amante. Quando olho para ti, não preciso de olhar para
o céu, declarou. Nicolau parou de sorrir e completou a
frase de Nicole, como se estivesse hipnotizado por uma
memória. Toda a tua beleza é a imagem dele.

491
Tiago Moita

Os dois agentes entreolharam-se petrificados com


aquela revelação. O tempo parecia ter parado nos seus re-
lógios, até ao aparecimento de um novo cliente no Big Eye.
Tinha roupas meio roçadas, sapatos gastos e aspecto de um
homem na casa dos quarenta, com uma enorme mala na mão
direita.
– Olá, Jones! O costume? – exclamou o dono do café,
pegando numa garrafa de brandy.
– Cheio, por favor. Já sabes da novidade? – questio-
nou o homem, enquanto o dono o servia.
– Que novidade?
– O Alquimista e os seus seguidores chegam amanhã
a Distopia.
Todas as palavras, música e murmúrios daquele café
se diluíram com aquela frase. Distopia ia finalmente conhe-
cer o seu destino.

492
CENTO E SEIS
Tinha passado um quarto de hora, desde que o Alqui-
mista e os seus seguidores tinham deixado os seus veículos
nos arredores da aldeia daquelas misteriosas crianças e jo-
vens de túnicas brancas. Todos os que seguiam o profeta
estavam encantados com a variedade de animais e plantas
que subsistiam naquele vale. À medida que se aproximavam
do centro de Exodor, filas de sequóias e abetos escondiam o
céu como um verdadeiro escudo da natureza contra a força
do sol e o voyeurismo dos humanos. O ar que respiravam
contrastava com a poluição típica de Distopia.
Magdala virou-se para o Alquimista, dando-lhe o bra-
ço. Todo este verde faz-me lembrar o dia do nosso baptismo,
lembras-te? E estas crianças e jovens que nos acompanham
são-me familiares: parecem aqueles miúdos que são perse-
guidos por cães em Distopia, respondeu.
O profeta respondeu afectuosamente à sua compa-
nheira com um beijo. Aquilo que tu chamas de miúdos, eu
chamo o futuro deste planeta. Desde que começou a conver-
gência harmónica com a constelação das Plêiades que estas
crianças começaram a aparecer cada vez em maior número
no vosso planeta. As primeiras gerações chamaram-se índi-
gos: são muito extrovertidos, determinados, tenazes e co-

493
Tiago Moita

rajosos, possuem muita energia e muita coragem; não têm


medo de atrair – nem de enfrentar – as coisas e as pessoas.
São robustos fisicamente e mentalmente fortes; testam cons-
tantemente os seus limites físicos, conhecimentos e intuição
e agem como verdadeiros guerreiros e pioneiros hipercriati-
vos e autónomos. Chamam-se Índigos por causa da cor pre-
dominante da sua aura. Todavia, essa primeira geração não
se compara com as Cristal, por exemplo.
Magdala ficou perplexa e confusa. O que é que as
distingue, perguntou. O profeta não hesitou na resposta.
Enquanto os Índigos são guerreiros e têm como objecti-
vo romper com os sistemas estabelecidos, as gerações que
lhes sucedem têm como objectivo a pacificação. Não só vão
continuar o caminho iniciado pela geração índigo, como
também pretendem construir um novo mundo com energias
mais subtis. Tudo porque têm uma força interior extraordi-
nária, capaz de conseguir elevar o nível de frequência ener-
gética da sociedade. Como conseguem isso, perguntou a an-
tiga prostituta, cada vez mais interessada. Porque testam os
seus limites psíquicos, ao invés dos seus irmãos índigos, dão
o exemplo em vez de denunciar: são mais calmos, pacíficos,
gentis e introvertidos do que a primeira geração; são ainda
mais espirituais, telepáticos e sensíveis que os índigos; di-
zem o que precisam em poucas palavras mas com profundi-
dade – e só quando lhes pedem; irradiam paz e tranquilidade
como o despertar de um novo dia; harmonizam naturalmente
a energia que os rodeia; evitam confrontos, ao contrário dos
índigos, porque são menos robustos e mais vulneráveis emo-
cionalmente, mas, em contrapartida, são muito afectuosos
com as pessoas e percebem as suas necessidades, respondeu.
Então, vão ser os teus futuros seguidores, observou
Magdala. O Alquimista sorriu e corrigiu. Não os vejais
como os vossos seguidores, mas antes como os vossos mes-
tres e bússolas. Pasmo.

494
O Evangelho do Alquimista

Parecia uma imagem tirada de uma pintura impressio-


nista. Não havia uma casa que não tivesse flores frescas nos
canteiros das varandas. As cores das casas transpareciam nas
vestes das crianças e dos jovens que acompanharam o Al-
quimista, os seus seguidores e discípulos até à aldeia. A pu-
reza era vista nas vestes de linho das raparigas como a água
que escorria dos fontanários das pracetas. Tanto os pássaros
como o latir dos cães, passando pelo canto dos grilos, da-
vam àquele lugar uma atmosfera de tranquilidade e sossego,
aprazível a qualquer forasteiro que por ali passasse. Uma
pequena amostra do paraíso escondida debaixo da memória
do Homem.
O jovem índigo que acompanhava o Alquimista in-
dicou a aldeia, soerguendo o braço. Bem-vindos a Luxan,
respondeu com um sorriso tão límpido quanto o seu olhar
translúcido. O profeta e os discípulos responderam com uma
pequena vénia e mãos fechadas, como se fossem orar; um
gesto de gratidão sem palavras para todas aquelas crianças e
jovens que os guiavam até aos seus lares.
A entrada do sábio e da sua comitiva de fiéis foi ce-
lebrada como a chegada de um rei. Mulheres e crianças ati-
ravam pétalas de rosa e distribuíam fruta e flores viçosas
por todos eles. Os restantes habitantes exibiam o melhor da
gastronomia da região, palavras de afecto e agradecimento
pela sua presença. Risos e lágrimas de alegria eram ofereci-
dos como presentes de aniversário. O medo era um estranho
naquele Olimpo terreno.
Ali chegado, o Alquimista sentou-se num banco no
centro da praceta central da aldeia. Tanto os seguidores
como os discípulos do profeta, e bem assim os habitantes de
Luxan, se sentaram onde e como podiam. Previam naquele
gesto um momento de sabedoria.
Quando conheci as vossas crianças e jovens e che-
guei a esta aldeia, percebi que estava cada vez mais próximo

495
Tiago Moita

do meu destino, tal como vós da vossa evolução espiritual.


Aqui, não contemplo apenas seres humanos de diferentes
raças, religiões, sexos ou nacionalidades, mas almas, unidas
num propósito superior a vós próprios. Este é o momento
para não termos medo. À medida que evoluirdes para o me-
lhor cumprimento das vossas missões e seguirdes a vossa
voz interior, o vosso crescimento será cada vez mais sin-
cronístico, levando-vos a estados de energia mais eleva-
dos, transformando os vossos corpos numa forma espiritual
e unindo essa dimensão da existência com a dimensão da
vida, pondo fim ao ciclo de nascimento e morte e ao mesmo
tempo que caminhais em direcção a um Céu que já existe.
Tomar consciência disso é conhecer o vosso destino, afir-
mou o sábio. Todos assentiram em silêncio com um sorriso
e uma das mãos encostada ao coração.
A chegada da noite foi objecto de novos pedidos por
parte do profeta. Aos jovens que o tinham guiado até à sua
aldeia pediu alojamento para ele, assim como para toda a sua
comitiva. Todos concordaram sem hesitações.
– Estes jovens vão fazer a sua parte. Vós tereis de fa-
zer a vossa. – disse o sábio, no meio dos seus discípulos.
– Estamos às vossas ordens, Mestre! Que desejais? –
exclamou Otelo.
– Encontrai o restaurante mais humilde de Luxan.
Preciso de me reunir lá convosco, antes de me deitar.
– Um restaurante? Depois de tudo o que comemos?
Ainda estais com fome? – perguntou Dario, perplexo.
– O restaurante de que vos falo não é para comermos
mas para celebrar convosco, e apenas convosco, um ritual
muito especial. – declarou o Alquimista. Um enorme clamor
se instalou entre os discípulos.
– Que ritual é esse de que falais? – interpelou Lean-
dro.
– A minha última ceia.

496
CENTO E SETE
A loucura e o tempo andavam de mãos dadas com a
razão no laboratório de Salomão. Tanto o cientista como os
seus colegas e subordinados tinham perdido a noção do tem-
po e do número de gotas de suor que lhes escorriam pelos
corpos. O ambiente era de tal maneira tenso que era de cor-
tar à faca. Ordens e recados eram transmitidos de um lado
para o outro como setas atiradas para alvos imaginários. O
fumo e o barulho das máquinas retratavam não só o trabalho
do laboratório como o estado de espírito de todos aqueles
homens e mulheres, laborando dia e noite para montar o
mais megalómano engenho alguma vez pedido por Zarat e
cujo propósito se mantinha secreto.
Salomão roía as unhas de angústia. Depois de qua-
se uma vida de dedicação à sua maior invenção, hoje iria
receber o prémio do seu esforço. Os técnicos que trabalha-
vam consigo tinham-lhe assegurado a conclusão da VHCruz
em menos de uma hora. Ao contrário dos seus colegas, não
conseguiu ficar no seu escritório, climatizado e confortável,
a assistir ao nascimento da sua criação. A expectativa era
superior à sua paciência e já tinham passado cinco minutos
do prazo estabelecido. Impaciente, saiu de rompante do es-
critório.

497
Tiago Moita

Um dos assistentes acompanhou-o, a passo de leo-


pardo. Doutor Salomão, espere, gritava ele, mal se em-
brenhara na confusão da sala das máquinas, juntamente
com o cientista. Que quer, Jonathan, inquiriu Salomão,
mal o assistente lhe pousou a mão no ombro. A palavra-
-chave, doutor: não podemos fazer nada sem a palavra-
-chave, respondeu aos berros.
Salomão desceu à terra. Tem razão! Mesmo que
terminem a construção, a VHCruz continuará inoperacio-
nal sem a palavra-chave. Se Adriano cá estivesse, disse,
cabisbaixo. Esqueça o Adriano. Não é possível criar um
novo programa com uma nova palavra-chave, interpelou
o assistente. Impossível, respondeu o cientista, o sistema
informático implementado pelo Adriano é ideal para este
tipo de máquina. Para elaborar um sistema semelhante,
levaríamos seis meses no mínimo e nós não temos mais
tempo, temos, disse Salomão, interrompido naquele mo-
mento, pela presença de Ptolomeu e Metello. Merda, ex-
clamou para si.
– Comandante-Chefe Metello! Conselheiro-Mor
Ptolomeu! A que devo a honra da vossa presença? – ex-
clamou o cientista, disfarçando o embaraço.
– Poupe as suas palavras, Doutor Salomão. O Al-
quimista chega amanhã e Zarat ordenou a conclusão da
VHCruz para hoje. Como estão a decorrer os trabalhos?
– questionou Ptolomeu, de rosto crispado. O cientista en-
goliu em seco, antes de responder.
– Os... os meus técnicos garantiram que a máqui-
na pedida pelo Grande Líder ficará pronta hoje. É apenas
uma questão de minutos. Acontece...
– Acontece o quê?
– A palavra-chave, Conselheiro-Mor: enquanto não
tiver a palavra-chave, a VHCruz estará inactiva. – respon-
deu Salomão, cabisbaixo.

498
O Evangelho do Alquimista

– Considere esse assunto resolvido. – disse Metello,


entregando-lhe um papelinho meio amarrotado. Salomão
desdobrou-o e observou uma espécie de senha alfanumérica
de dez dígitos. O dilatar das pupilas e a abertura da boca
denunciavam a descoberta da peça que faltava, depois do
desaparecimento de Adriano. Um dos técnicos aproximou-
-se e anunciou a Salomão e a todos os presentes a conclu-
são da máquina. Desperto do transe, provocado por aquela
atempada descoberta, Salomão não perdeu tempo e correu
para a sala de computadores para inserir a senha na sua cria-
ção. Ptolomeu, Metello e o seu assistente não hesitaram em
segui-lo.
A operação demorou menos de vinte segundos, dada
a complexidade do sistema. Mal Salomão marcou o último
dígito daquela senha e teclou Enter, o espaço pareceu res-
suscitar do reino dos mortos: Um leque multicor iluminou o
laboratório e uma cacofonia de ruídos informáticos e mecâ-
nicos fê-lo estremecer, dando vida ao todo-poderoso enge-
nho de Salomão. Uma cruz formada por dez ecrãs gigantes
e computadores com imagens embutidas ganhara vida na-
quele dia.
Zarat podia respirar de alívio. A sua máquina estava
pronta.

499
CENTO E OITO
Nenhum discípulo ficou indiferente às palavras do
Alquimista. Um silêncio asfixiante tomara conta daqueles
homens e mulheres que tinham escolhido seguir o profeta
desde que este explicara o motivo pelo qual necessitava de
um restaurante. Distopia estava a um dia de viagem. Aquilo
que parecia distar uma eternidade estava apenas a um passo.
Tudo parecia um sonho a diluir-se com a alvorada.
Antes da ceia, todos os discípulos tomaram banho, a
convite do profeta, e vestiram roupas mais cuidadas para a
ceia. Após saírem dos seus quartos e no caminho para o res-
taurante, soltaram a angústia das gargantas e conjecturavam
súmulas de planos para salvarem o sábio do seu destino.
Poucos eram a favor do cumprimento da profecia.
O Restaurante era propriedade de um antigo peregrino
que deixara tudo aos seus filhos. Era rústico e asseado, tanto
por fora como por dentro. O amarelo-torrado das paredes e
o bordô da porta principal e das colunas, assim como as flo-
res frescas que enfeitavam o edifício – tanto por fora como
por dentro –, transmitiam uma atmosfera de tranquilidade e
simplicidade, reflexo do carácter das pessoas de Luxan. As
paredes estavam enfeitadas com quadros multidimensionais
de paisagens, seres fantásticos e anjos, multicores, alguns

501
Tiago Moita

difíceis de enxergar a olho nu. Comida animal não fazia par-


te da ementa.
Os discípulos estranharam a recepção naquele espaço.
As mesmas crianças e jovens que os tinham acompanhado
até à aldeia ladeavam os cantos da casa, cobertos com gri-
naldas e túnicas cor da neve. O Alquimista aguardava-os
com uma toalha e uma tina de talha dourada cheia de água
límpida.
Em seguida, o profeta ordenou-lhes que se aproximas-
sem dele. Bem-vindos ao “Cálice” – o único restaurante da
região. Ainda bem que viestes. Antes de partirmos para a
ceia, peço-vos que vos descalceis e tireis as vossas meias
para que possa lavar os vossos pés.
Os discípulos ficaram confusos com aquelas palavras.
Jordão foi o primeiro a interpelar o sábio. O quê? Lavar os
nossos pés? Como Nosso Senhor fez com os seus discípu-
los? Sim, Jordão! Se não o fizer não podereis participar no
novo mundo que se seguirá, após o cumprimento da profe-
cia, respondeu. Jordão assentiu e foi o primeiro. Um a um,
o Alquimista foi lavando e limpando os pés de cada um dos
discípulos: nenhum ousou questionar aquele gesto. Dharma
e Magdala estavam encantadas.
Findo o rito, o Profeta levantou-se do banco onde es-
tava a cumprir o seu ritual com o mesmo sorriso com que os
presenteara, mal tinha vislumbrado os discípulos a entrarem
no restaurante para onde se tinham dirigido. Compreendam
este gesto. Se sou mestre para vós, também vós o sois para
mim porque Somos Todos Um. Lavar os pés uns dos outros
significa purificar e aceitar a vossa sobrevivência e do vosso
semelhante. Dei-vos o exemplo para que o façais também,
disse, convidando-os para uma outra sala.
A sala era adornada por pequenas floreiras colocadas
sobre quatro paredes sem tecto, feitas de azulejos azuis e
brancos, e uma enorme mesa oval composta por doze cadei-

502
O Evangelho do Alquimista

ras e doze potes em cada uma delas. O Alquimista sentou-se


ao meio da mesa, ladeado por Magdala à sua direita. Cons-
tantino, Otelo, Dario, Jordão, Gustavo, Adriano, Rodrigo,
Leandro e Dharma e os restantes discípulos sentaram-se no
sentido dos ponteiros do relógio. Isauro sentou-se à sua es-
querda.
Mal todos se acomodaram, pronunciaram, de pé, em
uníssono, uma oração de mãos dadas. Que a Fonte e o Uni-
verso aqui reunidos nos nossos corações, iluminem as nos-
sas almas e purifiquem todos os alimentos que nos servirem
para o bem-estar e equilíbrio dos nossos corpos, mentes e
espíritos. Após a oração, sentaram-se sincronizadamente,
olhando para o sábio. Este advertiu-os de que os potes colo-
cados nas cadeiras continham sal e pediu que o derramassem
pela mesa, em direcção ao seu parceiro da frente. As linhas
brancas de sal cruzaram a mesa, formando uma espécie de
estrela celta.
Depois, distribuiu vários tipos de sementes por todos,
começando por Magdala; cada uma com um significado di-
ferente. Tomai e guardai a todos, este é o símbolo da vida
que vos ofereço com Amor, disse, distribuindo sementes
de sésamo. Tomai e guardai a todos, este é o símbolo da
abundância que vos ofereço com Amor, disse, distribuindo
sementes de trigo. Tomai e guardai a todos, este é o símbolo
da saúde que vos ofereço com Amor, disse, distribuindo
sementes de Ginkgo Biloba.
De seguida, distribuiu bolos de gengibre por eles, di-
zendo. Tomai e comei todos, este é o símbolo do meu corpo
que vos ofereço com Amor. Depois, pegou num cálice de
vidro cheio de água e fê-lo circular, dizendo. Tomai e bebei
todos, este é o meu sangue, o sangue da aliança entre a Fonte
e todos os Seres do Universo, que será derramado por vós no
advento da Nova Era e vos ofereço com Amor. Todos bebe-
ram desse cálice. Isauro foi o último a beber.

503
Tiago Moita

Mal o cálice chegou às suas mãos, voltou a enchê-lo


com água de um pequeno cântaro que tinha a seu lado. Dei-
tou metade do seu bolo de gengibre no cálice e derramou um
frasco inteiro de éter dentro dele – colocando-o no centro da
mesa. Olhai e remembrai este cálice. Ele é o símbolo do Ho-
mem feito à imagem e semelhança do seu Criador enquanto
carne, mente e espírito, concluiu, pedindo a todos que se
levantassem e dessem as mãos, com os olhos postos no céu
estrelado.
Fonte e Universo, Mestres e Guias espirituais de todas
as dimensões. Fazei com que todos aqueles que me foram
mais devotos sejam a luz no mundo por nascer, o exemplo
claro e vivo que fala pela verdade e age pelo Amor que resi-
de nos seus corações, afirmou. Naquele momento, cada um
dos presentes na sala sentiu uma chuva de prata a escorrer
pelos seus corpos até à epiderme da alma. Lágrimas foram
as únicas palavras de gratidão entregues ao Céu pela mão do
silêncio.
Mal se sentaram, o Alquimista virou-se para os discí-
pulos. Assim foi escrito, assim será feito: vinte e sete anos
após o meu nascimento, marcharei triunfante sobre a cida-
de que se apoderou do planeta; realizarei e superarei o meu
último e derradeiro desafio que culminará com a queda do
último falso profeta e da civilização, no dia em que a cruz
cósmica se alinhar com o centro da galáxia, anunciou.
E continuou. Superado esse desafio e eliminado o úl-
timo falso profeta, revelarei a luz e a sabedoria no coração
de todos os seres humanos e libertá-los-ei da cidade dos seus
enganos e vícios. Nesse momento, todos os seus habitantes
a abandonarão, caminhando em direcção a um paraíso que,
outrora, fora a sua alma e a um destino longe da cidade que
se apoderou do planeta e que assistirá sozinha à sua des-
truição, provocada pelo cometa que colidirá com o planeta,
volvidos três anos depois do abandono por parte do Homem.

504
O Evangelho do Alquimista

Tudo isto se confirmará, quando um de vós me entregar às


autoridades, concluiu. Um enorme clamor ensurdeceu a sala.
Isauro foi o primeiro a insurgir-se. Que se levante esse
traidor e se revele perante todos nós, replicou, irado. Cons-
tantino levantou-se de seguida, fazendo suas as palavras do
jovem sindicalista.
O profeta olhou para os dois discípulos com um olhar
sério. Aqueles que primeiro se insurgiram serão os primeiros
a trair-me. Aquilo que tiverdes a fazer, fazei o mais rápido
possível, disse, olhando para Isauro e Constantino.
O padre e o jovem sindicalista foram os primeiros a
sair da sala, seguido pelos restantes que os acompanharam,
entre o choque e o pranto. Naquela noite, todos sentiram ter
recebido um convite para entrarem no paraíso com passa-
gem pelo inferno.
O Alquimista foi o último a abandonar a mesa. Acaba-
ra de orar pelo seu destino.

505
CENTO E NOVE
Vista do exterior, a imagem do Palácio da Monta-
nha Mágica, contrastava com a azáfama dilacerante que se
vivia nos corredores da residência oficial do homem mais
poderoso do planeta, e, principalmente, no bunker secreto
do Palácio, onde Zarat e todo o seu Estado-Maior e Conse-
lho Magno discutiam, no interior de cem mil e quinhentos
metros quadrados de metal e betão armado e portas de aço
– capazes de suportar mais de vinte toneladas de pressão e
que podiam ser abertas com apenas cinquenta e cinco libras
de pressão –, as maiores e mais graves crises de Distopia e
do planeta. Naquele momento, apenas uma crise explicava
tamanho afã: A chegada do Alquimista à cidade.
Militares e agentes da Guarda Zaratista corriam como
doidos por entre os corredores do bunker, atropelando-se ou
acotovelando-se, possuídos por um nervosismo que se fazia
sentir naquela divisão. Ordens e recados eram transmitidos
a uma velocidade inimaginável. Era preciso ter a certeza de
todos os passos dados pelo maior inimigo de Zarat e da civi-
lização predominante em Distopia e no planeta. No espaço,
satélites-espiões observavam todos os movimentos suspei-
tos naquele mundo semiárido. Tanto na cidade como nas
povoações dos arredores tinham sido montadas brigadas de

507
Tiago Moita

batedores e agentes especiais para vigiar a chegada do pro-


feta do Oráculo do Destino.
Zarat ouvia atentamente de Metello todos os pormeno-
res da operação por este delineada. Todas as nossas brigadas
estão a cinco quilómetros de Distopia. As torres e muralhas
da cidade estão em alerta máximo, menos a zona sudoeste,
tal como ordenastes. Só a porta dessa zona estará aberta para
receber a caravana do Alquimista. Entre a comitiva de fiéis
que aguardam o profeta vão estar alguns dos nossos agentes
à paisana. A Guarda Zaratista já recebeu ordens para desviar
os veículos dos seguidores do sábio, sem que este se aperce-
ba de que está sozinho na carrinha com os seus discípulos.
Mal a viatura do Alquimista corte pela Rua Azul, os meus
homens fecharão a porta e eles ficarão encurralados dentro
da cidade, respondeu, mostrando todos os passos do plano
de Zarat através de um ecrã oval luminoso com o mapa vir-
tual de Distopia.
Zarat mostrou-se satisfeito com a explicação. Fecha-
ram também todas as saídas do subsolo de Distopia, inter-
pelou. Afirmativo, Grande Líder. Encerrámos ontem todas
as saídas dos esgotos com a ajuda dos nossos robôs e agen-
tes infiltrados. No ar, vamos colocar os nossos helicópteros
a sobrevoarem silenciosamente Distopia. Não há qualquer
forma de ele escapar, respondeu. Zarat colocou a mão no
ombro direito de Metello como sinal de confiança e virou-
-se para o resto do seu estado-maior e líderes dos principais
bairros da cidade.
– Meus senhores e minhas senhoras. O Alquimista
chega amanhã com a sua comitiva, tal como previu o Orácu-
lo do Destino. É certo que aquele que sabe mandar encontra
sempre quem lhe obedeça como também é verdade que só
podemos alcançar um grande êxito quando nos mantemos
fiéis a nós mesmos. Esforçámo-nos todos por manter a paz,
a liberdade e a harmonia no meio do caos, para que o Último

508
O Evangelho do Alquimista

Homem continue nos nossos corações, e não vai ser um pro-


feta e uma profecia que vão acabar com mais de dois séculos
de civilização e quinhentos anos de Humanismo. Nenhuma
geração nos perdoará pelo fracasso dos nossos actos se não
agirmos Aqui e Agora contra essa ameaça. Está nas nossas
mãos o incumprimento dessa maldita profecia e a salvação
da nossa cidade, do nosso mundo, e, acima de tudo, da nossa
civilização. Quem está comigo, inquiriu, histérico.
A sala entrou em delírio. Ninguém hesitou perante
aquelas palavras. O futuro de Distopia ia agora começar.

509
VI
A PROFECIA

“Nem todas as verdades são para todos os ouvidos”

Umberto Eco
CENTO E DEZ
Era visível a consternação nos olhos dos discípulos
que tinham assistido à última ceia do Alquimista. Queriam
por força chorar ou manifestar outra sensação, menos deixa-
rem-se abater por aquele ritual de despedida. Samuel cons-
tatara, mais uma vez, nas expressões ambíguas das pessoas
que tinham estado com o profeta, desde que o encontrara no
Grande Deserto, e num pombo batendo as asas para fora do
restaurante, mal Isauro e Constantino tinham saído da sala,
onde o sábio celebrara a última refeição do dia, depois do
jantar. Algo não batia certo.
O Alquimista despediu-se dos aldeões e agradeceu às
crianças e aos jovens, com abraços calorosos e beijos cari-
nhosos nas testas, como gesto de gratidão; os seguidores que
não tinham estado presentes no Restaurante “Cálice” repeti-
ram os mesmos gestos com entusiasmo. Apenas os discípu-
los se despediram com um silêncio afiado debaixo da língua.
Um dos jovens aproximou-se de Magdala e sussur-
rou-lhe ao ouvido. Confia na profecia e no que aprendeste
com o Alquimista. Mal chegues ao Bosque dos Sete Selos e
vejas três pássaros a bater asas, foge. Alguém dos nossos
irá em teu socorro. Coragem, disse afastando-se e deixando
a companheira do Alquimista intrigada.

513
Tiago Moita

O verde do vale de Exodan era já uma miragem para


os olhos de todos os que conduziam os veículos que compu-
nham a caravana do profeta. Os seguidores do sábio troca-
vam palavras e memórias dos lugares e, sobretudo, das lições
que o Alquimista lhes ensinara. Havia um brilho dourado
nas auras daquelas pessoas que contrastava com o silêncio e
com a sisudez dos rostos dos discípulos que seguiam na car-
rinha de Samuel. Magdala encostara a cabeça ao ombro do
profeta enquanto Dharma imitara o mesmo gesto com o seu
meio-irmão, Leandro. Samuel começava a estranhar tantos
desvios na estrada principal. A bússola indicava sudoeste.
Meia-hora depois: revelação.
Os pináculos e as muralhas de betão armado e titânico
da cidade recortavam o horizonte como lâminas em direcção
ao céu. A chegada da caravana ao destino anunciado pelo
Alquimista foi celebrada com pombos a serem perseguidos
no céu por corvos da cidade e abutres e milhafres do deserto.
Nas margens da estrada, vislumbravam-se cadáveres de se-
res humanos e de animais que não tinham resistido à selva-
jaria da natureza ou à crueldade do ego dos Homens. Samuel
conduzia com cuidado: o profeta do Oráculo do Destino era
procurado pelas autoridades; ao mínimo sinal de aproxima-
ção de elementos e veículos da Guarda Zaratista desviava-se
da rota e procurava uma outra maneira para entrar em Dis-
topia. Tanto ele como o Alquimista e os restantes discípulos
que tinham nascido e crescido naquela urbe, sabiam bem
tudo o que podia acontecer, fora e dentro dos seus limites:
surpresa.
As portas gigantescas da ala sudoeste da cidade abri-
ram-se lentamente, deixando sair o som da sua idade e um
rio de pessoas cheias de flores, que se estendia desde a en-
trada até aos confins daquela metrópole. Os soldados manti-
nham-se vigilantes e impávidos com a chegada da caravana
do profeta do Oráculo do Destino. Radiante com a recepção,

514
O Evangelho do Alquimista

o Alquimista saiu do seu lugar e subiu para o tejadilho da carri-


nha. Magdala e Dharma imitaram-no. Um soldado de uma das
muralhas tinha o profeta na mira da sua espingarda; sentia-se
tentado a disparar contra aquele homem que tantos temiam e
desconheciam. A mão do capitão sobre o cano da arma daquele
militar e a expressão negativa do seu superior fizeram-no mu-
dar de ideias.
Magdala temia pela vida do seu companheiro. Estás
doido? Aqui fora podem matar-te ou então capturar-te, disse,
apoquentada. Fica descansada! Não te esqueças de que a morte
não existe para todos aqueles que conhecem a verdade. Olha,
respondeu o sábio, apontando para a entrada da cidade.
Nada semelhante tinha acontecido em Distopia depois
da última vitória do exército e da Guarda Zaratista sobre os
Tecno-Rebeldes. A caravana do profeta era seguida por uma
multidão eufórica de crentes devotos das palavras do sábio que
circulavam em segredo, como o vento, pelos ouvidos de todos
os famintos de fé e de esperança num mundo de valores vazios
e reprimido pelo homem mais poderoso do planeta, que assis-
tia na torre mais alta do seu palácio à chegada do seu maior
inimigo. A empatia e devoção, que iam desde beijos, acenos, o
simples bater nas portas e janelas dos veículos dos seguidores
do profeta e na carrinha de Samuel, até ao atirar de pétalas de
flores, faziam lembrar a chegada de um rei com o seu séquito.
Todavia, nem todos partilhavam a mesma devoção e
euforia. Habitantes de outros lugares reagiam de maneira di-
ferente contra o Alquimista. Os Niilisteus provocavam-no
com canções estridentes e com versos satânicos; os Seleceus
chamavam-lhe impuro e tentavam cuspir-lhe na cara; os Dú-
bios provocavam-no, mostrando-lhe o cu e os órgãos genitais;
os Rubros chamavam-lhe Fascista; os Averos, Comuna; os
Methódicos calculavam distâncias para o atingir com fisgas:
nunca disparavam por discordarem do cálculo. Apenas os
Filingus o atacavam com poemas depressivos. Todos tinham

515
Tiago Moita

duas coisas em comum: o ódio pelo profeta e os ouvidos tapa-


dos com auscultadores, ligados a ipods.
A entrada do Alquimista em Distopia ensurdeceu a cida-
de e deixou metade da população histérica. Agentes e guardas
procuravam não ser esmagados pela plebe.
A meio do percurso, o profeta levantou-se e elevou os
braços para o céu, preparando-se para falar. Povos de Distopia:
o dia da redenção e salvação do mundo chegou. Sede uma luz
para o vosso planeta e não o prejudiqueis. Procurai construir e
não destruir. Buscai apenas a Divindade. Falai apenas a verda-
de e agi em nome do Amor. Evitai o mundano e não aceiteis o
inaceitável; ensinai todos os que procuram aprender sobre si
próprios; tornai cada momento das vossas vidas uma efusão de
Amor; usai cada momento para terdes o pensamento mais ele-
vado, dizerdes a palavra mais sublime, executardes o acto mais
excelso. Assim, acabareis por glorificar o vosso Ser Sagrado e
Deus. Trazei a paz ao mundo e a todos em cujas vidas tocardes.
Sede a paz, afirmou, perante em coro de aplausos, bramidos e
lágrimas.
E continuou. Senti e expressai em cada momento a vos-
sa divina ligação com o Todo, e com todas as almas, lugares e
coisas; aceitai todas as circunstâncias, reconhecei todas as fal-
tas, partilhai todas as alegrias, contemplai todos os mistérios;
ponde-vos no lugar de todos os seres humanos; perdoai todas
as ofensas, incluindo as vossas; sarai todos os corações; honrai
a verdade de todas as pessoas; protegei os seus direitos; preser-
vai a dignidade, os interesses e as necessidades de todos os se-
res; exibi os vossos maiores dons; abençoai-vos uns aos outros
como Deus e o Universo vos abençoam. Sede o exemplo vivo
da Suprema Verdade que reside em vós e encontrareis o Céu
nas vossas vidas.
A ovação que se ouviu, depois daquele sermão, abalou a
cidade como um tremor de terra.
Assim pregava o Alquimista.

516
CENTO E ONZE
O cerco começava a fechar-se à volta do Alquimis-
ta. Aproximava-se a madrugada. Estava frio e já não se via
rasto ou sombra dos seguidores do profeta. Durante o dia,
agentes e milicianos da Guarda Zaratista, disfarçados de
guias turísticos, convidaram todas as pessoas que seguiam
o sábio a visitar os locais mais emblemáticos e os centros
comerciais mais ostensivos de Distopia. Nenhum dos que
tinham lá entrado saiu sem ter a alma corrompida e a barriga
cheia de vícios e prazer. A corrupção marcara pontos a favor
de Zarat.
Otelo foi o primeiro a reparar nessa misteriosa diás-
pora e a entender a razão pela qual o Alquimista reservara
víveres para um dia. Todavia, não foi perspicaz ao ponto de
se aperceber da aproximação das brigadas da Guarda Zara-
tista e dos milicianos dos bairros adjacentes, como sombras
gigantescas engolindo as luzes das ruas e vielas da cidade.
Isauro liderava o grupo, por ordem do Alquimista.
Convencera o profeta e os seus camaradas a pernoitarem no
Bosque dos Sete Selos, afirmando ser esse o local mais apro-
priado para se esconderem. Magdala foi a única a opor-se
à sugestão do jovem sindicalista; conhecia bem o bosque
mas não confiava em nenhum lugar daquela cidade. Quando

517
Tiago Moita

o sábio lhe perguntou a razão de tamanha desconfiança, a


antiga prostituta respondia intuição feminina. Isauro, assim
como os restantes discípulos, não ficou muito convencido
com aquela resposta e seguiu caminho.
Exausto, mas satisfeito, Isauro parou mesmo no cen-
tro do grande pulmão verde de Distopia. Chegámos. Aqui
estamos em segurança, afirmou, mal encontrou um banco,
onde se sentou, estafado. Tanto o Alquimista como os seus
camaradas fizeram o mesmo. Dharma sentia-se radiante por
estar naquele terreno com mais de oito mil e quinhentos
metros quadrados de diversidade arbórea e vegetal. Lem-
brava-se de passear de dia sozinha, observando as crianças
a brincarem na relva; adolescentes e jovens a nadarem nos
lagos e casais fazendo os seus piqueniques junto à sombra
das árvores, e de evitar aquele lugar à noite, por causa da
presença dos toxicodependentes, dos traficantes, dos chulos
e das prostitutas. Dario interpelou Rodrigo sobre a origem
do nome daquele bosque; o médico disse que se tratava de
um termo extraído de um livro de Nietzsche.
Otelo virou-se para Samuel. E agora, Mestre? Que fa-
zemos, perguntou. Samuel estranhou a pergunta. Terás de
perguntar ao... onde está ele, exclamou, olhando para todos
os lados. Magdala virou-se para ele. Samuel, ainda não per-
cebeste, perguntou. O caixeiro-viajante sentia-se cada vez
mais confuso. Perceber o quê... o que é que se passa, excla-
mou, amedrontado. Os discípulos do profeta entreolharam-
-se e começaram a olhar para ele, desconfiados. Samuel...
tu és o Alquimista. Não te lembras do dia em que nós nos
conhecemos quando derramaste a água do teu cantil sobre
o meu corpo e me defendeste das dúvidas e preconceitos de
Otelo e Jordão, perguntou. Não, não fui eu! Foi o Alquimis-
ta, retorquiu, completamente atarantado.
Lentamente, cada discípulo do Alquimista foi-se apro-
ximando de Samuel, questionando a sua memória acerca do

518
O Evangelho do Alquimista

dia em que os conhecera e resgatou cada uma das suas vi-


das para a Suprema Verdade. Samuel estava cada vez mais
confuso. Dharma começou a chorar com tudo o que estava a
acontecer ao profeta. Todos procuravam lembrar-lhe os ser-
mões, as profecias, os locais que descobriram e as experiên-
cias que tinham passado com ele. Samuel começava a sentir
vertigens por tantas memórias em branco na sua mente. Pa-
recia um pesadelo difícil de aceitar.
Gustavo aproximou-se do caixeiro-viajante. Samuel,
não te recordas de me teres deixado conduzir hoje a tua car-
rinha, enquanto saltaste para o tejadilho com a Magdala e a
Dharma, exclamou. Choque. Samuel, completamente aba-
belado, começou a tentar recuar a sua memória e a recordar
cada episódio que ocorrera, desde a descoberta de Leandro
até à entrada em Distopia, horas antes. Tudo fazia sentido
mas era demasiado absurdo para ser verdade. Naquele mo-
mento, Isauro levantou-se e abraçou-o, deixando-o ainda
mais atónito com o gesto. Por que fizeste isso, perguntou. A
resposta surgiu por entre os arbustos.
Sem terem tempo para reagirem, Samuel e os seus dis-
cípulos foram cercados por centenas de militares e agentes
da Guarda Zaratista, de armas apontadas com miras laser
para o coração de cada um deles. Entre eles, encontravam-se
Metello, Nicole Adágio e Nicolau.
Constantino aproximou-se então do profeta e bei-
jou-lhe a mão direita. Eis o homem, declarou em voz alta,
com um sorriso sarcástico. Numa fracção de segundos, os
guardas e agentes prenderam Samuel. Os discípulos tenta-
ram reagir mas acabaram detidos. Isauro não foi excepção
à regra: de traidor passou a traído pelos inimigos do sábio.
Chorava desalmadamente pelo que tinha feito. De nada lhe
serviu. Phebos estava ao lado de Nicole e apontou para Sa-
muel. É ele, dizia o eremita, é o homem que encontrei no
deserto... a falar sozinho.

519
Tiago Moita

Metello mantivera-se firme no seu lugar. Apenas Ni-


cole se aproximou do Alquimista com uma pasta de arquivo
rubra numa das mãos.

520
CENTO E DOZE
O olhar que Nicole fixou em Samuel reflectia mais
do que seriedade. Transmitia um misto de dever cumprido
e sentimento de culpa; algo que não deixava a jovem e bela
agente da Guarda Zaratista minimamente confortável com
o que estava a fazer. Desde que entrara para as forças espe-
ciais, sabia que tinha de engolir os seus sentimentos mais
profundos e fechar os olhos, por vezes, ao seu juízo de equi-
dade perante casos tão delicados como aquele. De todos,
aquele era o mais penoso de toda a sua carreira, a julgar pelo
sentimento de pesar que espelhava nos olhos e lhe percorria
todo o corpo: pára, a um passo do jovem caixeiro-viajante.
Fixando os olhos no Alquimista e em Metello, Nicole
abriu a pasta e retirou uma espécie de relatório. Samuel...
Samuel Urbano Gudrien é, segundo este relatório, o Alqui-
mista anunciado pela profecia do Oráculo do Destino. Filho
de Fernando Urbano e Mónica Gudrien, nasceu na Aldeia de
Nog há vinte e sete anos em casa do sapateiro Dario Celsus,
com a ajuda do doutor Rodrigo Strobber e de Heitor Fepler,
no dia em que ocorreram os sinais previstos pelo Oráculo.
Foi registado pelo Padre Constantino Vidal na paróquia de
Pelak, onde viveu até perfazer dezoito anos. Paradeiro dos
pais: desconhecido. Manipulado pelo Padre Constantino

521
Tiago Moita

Vidal, conhecedor da profecia, para se tornar no profeta


do Oráculo do Destino, devido a uma amnésia retrógrada,
diagnosticada pelo psiquiatra doutor Himmer Stockler. As-
sumiu diversos empregos até acabar como caixeiro-viajan-
te e, disse, antes de ser interrompida por Metello. Adiante,
agente Nicole, adiante, ordenou, aborrecido.
Nicole assentiu. E, face a todos estes factos, está
preso por insubordinação às Leis de Zarat e desrespeito e
desobediência ao pensamento filosófico do nosso Grande
Líder e de todos os povos de Distopia e do Planeta É, disse,
algemando-o e engolindo em seco todas as palavras que ti-
nha pronunciado. Todos os que colaboraram na sua captura
rejubilaram, mal Nicole lhe colocou as algemas nos pulsos.
A consciência descera sobre as mentes de alguns
discípulos. Ouviste, Heitor? Agora me lembro donde nós
nos conhecemos! Tu auxiliaste-me no nascimento daquela
criança em Nog, há vinte e sete anos. Aquela criança era o
Samuel, disse Rodrigo. Incrível... passaram tantos anos e
até parece que foi hoje, respondeu o funcionário público.
Agora me lembro também de onde o conheço: ele era aque-
la criança que nasceu no meu barracão e a quem ofereci a
moeda que ostenta no peito... macacos me mordam, disse
Dario, estupefacto. O quê? Então o colar com a moeda que
fabriquei e te vendi é o colar do Samuel, exclamou Otelo,
pasmado.
Dharma não se conformou com aquelas revelações.
Parem! Vocês não sabem o que estão a fazer! É verdade
que Samuel é o Alquimista mas isso não é motivo para o
prenderem! Ele não veio ao mundo para nos destruir, mas
para nos salvar! Nada daquilo que ele nos ensinou, nenhum
dos milagres que fez nem nenhuma das experiências que
nos ministrou e vivenciámos vai contra a condição huma-
na. Pelo contrário! Ele vai, disse a jovem, antes de ser in-
terrompida pela agente.

522
O Evangelho do Alquimista

Nicole confortou-a, pousando a mão no ombro dela.


Foi uma alucinação, Karma. – disse, antes de se virar para
Samuel e para os restantes discípulos – Tudo não passou de
uma alucinação colectiva, da qual vocês foram vítimas. Vo-
cês todos foram vigiados pelos nossos satélites e por um dos
nossos espiões infiltrados. Tanto ele como os nossos equipa-
mentos não detectaram nenhum milagre nem nenhum lugar
em especial. Samuel obrigou-vos a vaguear pelo Grande De-
serto porque estava convencido de que era capaz de cumprir
a profecia do Oráculo do Destino, concluiu. Um enorme al-
voroço irrompeu entre os discípulos.
Leandro foi o primeiro a reagir. Não, não pode ser!
Nós visitámos cidades perdidas como Rama-Muri ou Akoan;
vilas e aldeias onde este homem converteu centenas de pes-
soas, apenas com a palavra e o exemplo; lugares, disse o
arquitecto, furibundo, antes de ser interrompido pela agente.
Lugares que nunca existiram, senhor Leandro Stephen. Nós
temos provas, não é verdade, agente sombra, disse, viran-
do-se para o homem que se tinha feito passar pelo Padre
Constantino.
Sombra retirou o capuz do hábito e destapou uma
máscara de látex com a figura do malogrado clérigo, faleci-
do três anos antes, revelando uma caveira humana, metali-
zada, de olhos dourados, como duas esferas de fogo, e uma
voz idêntica à de qualquer ser humano. É verdade, agente
Nicole. Eu estive presente em todos os momentos com este
homem e posso assegurar-lhe que nunca estivemos noutros
lugares que não fosse o Grande Deserto. Como disse ao nos-
so comandante-chefe, Samuel é um homem de duas faces,
respondeu.
Isauro não se conteve. É mentira! Tudo o que essa...
máquina disse é mentira! Traidor! Como foste capaz, ex-
clamou, esperneando e agitando-se como um animal selva-
gem, tentado libertar-se dos militares que o detinham. Os

523
Tiago Moita

restantes discípulos imitaram-lhe o gesto. Uma nuvem de


poeira, provocada pela rebelião, alertara a Guarda. A confu-
são instalara-se. Metello mandara mais agentes e militares
para conter os homens e mulheres fiéis ao Alquimista. Sem
se aperceberem, os guardas que detinham Magdala ficaram
inconscientes, devido a dardos disparados das moitas. Ao
mesmo tempo, uma mão púbere puxava a companheira do
Alquimista para dentro dos arbustos.
Foi como se tivesse desaparecido do mapa.

524
CENTO E TREZE
Pela primeira vez, deixara de sorrir. Samuel termi-
nara a analepse de tudo o que conseguira recordar desde
que se perdera no Deserto e que, segundo Nicole Adágio
e o psiquiatra que o havia tratado no passado, teria tido um
transtorno dissociativo de personalidade, também conheci-
do como Dupla Personalidade. Como qualquer outro doen-
te que padecesse desse problema psicanalítico, poderia ter
momentos de lucidez e pensar que tinha sido vítima de um
problema de saúde mental, ainda sem solução à vista e julgar
que cada voz que viesse da sua mente não passava de mais
um sintoma da doença. Todavia, não se conformara. Apenas
revelava cansaço, depois de três dias e três noites ao relento,
atado a uma cruz de madeira na torre mais alta da maior
prisão de Distopia.
A voz interior que o acompanhava desde que estivera
perdido no Grande Deserto voltou a dar sinais de vida. Os
soldados continuavam vigilantes, observando cada movi-
mento do prisioneiro. Cauteloso, comunicou através do pen-
samento. Já tinha saudades tuas, disse Samuel, sem mover
os lábios. Só se sentem saudades de quem já partiu, não
de quem nunca te abandonou, respondeu a voz, serena e
ressonante. Samuel voltou a sorrir. Às vezes fico a pensar

525
Tiago Moita

numa coisa. Por que é que nunca me passou pela cabeça


que eu era o Alquimista. Assim pensaste, assim o fizeste,
respondeu a voz. Samuel sorriu novamente. É um dispara-
te fazer perguntas a quem sempre existiu dentro da minha
mente. Sim, agora sabes onde está a tua mente. Em toda
a parte, assim como a alma ou o Universo, argumentou a
voz. Diz-me uma coisa: como eram os meus pais, perguntou
Samuel, mantendo o disfarce. Os teus pais foram informa-
dos atempadamente do teu nascimento e, apesar de todas
as perseguições e sacrifícios, entraram em Dharma depois
de te entregarem nas mãos do Padre Constantino de Pelak.
Dharma? Não te estás a referir a, interrompeu Samuel, intri-
gado. Ora, Samuel. Que pergunta! Nem parece teu! Dharma
é a recompensa atribuída a cada Ser humano que cumpre o
seu karma e o reconhecimento de cada ser como parte de
um Todo universal. Quando os teus pais atingiram esse es-
tado, conseguiram atingir a iluminação de que falei a todos
os que quiseram ouvir e aprender, através de ti, respondeu
a voz. Devo ter razões para ter medo agora, exclamou. O
teu corpo e o teu pensamento são a prova do contrário. Ob-
serva, disse a voz, projectando no céu um espelho, apenas
visível aos olhos do jovem caixeiro-viajante. Samuel nem
queria acreditar: todo o seu corpo estava incólume depois de
três dias e três noites em cativeiro. A dúvida era agora uma
miragem no pensamento daquele homem: alerta.
A porta da torre abriu-se.
A imagem do Alquimista na cruz surpreendeu Nico-
le Adágio, sem, no entanto perder a postura de autoridade
perante os guardas. Quero falar a sós com o prisioneiro, or-
denou, ríspida. Tem apenas cinco minutos, avisou um dos
guardas, fechando a porta. A agente estava atónita. Quando
os guardas lhe haviam dito que o corpo de Samuel, ou me-
lhor, do Alquimista, estava completamente indemne durante
o tempo em que tinha ficado cativo na torre, pensou tratar-se

526
O Evangelho do Alquimista

de uma brincadeira ou de uma ilusão de óptica dos militares.


O que vislumbrava naquele momento não só correspondia à
verdade como ia para além das suas expectativas.
Faltavam palavras para descrever o que via. Samuel
antecipou-se. Tudo o que você disse na noite em que me
capturaram é falso, não é, exclamou. Nicole deu um passo
atrás, confusa. Como... como sabe? Os seus olhos – respon-
deu – não mentem porque reflectem a sua alma. Percebi tudo
a partir deles e da expressão do seu rosto. Entendi que inves-
tigou a minha vida e concluiu que, depois de muitas sessões
psiquiátricas, o doutor Stockler chegou à conclusão de que
eu não tinha nenhum transtorno de múltiplas personalida-
des; percebi que a forçaram a concordar com as mentiras do
agente sombra, quando, mais tarde, confirmou a existência
dos lugares por onde passei, das pessoas que salvei, curei
e me seguiram até Distopia. Assim como também percebi
que veio até aqui para me salvar, correcto, exclamou, sem
pestanejar. Certo, mas... como é que sabe tudo isso, inquiriu,
cada vez mais intrigada.
Samuel fixou os olhos na agente. Sempre soube o que
foi, é e pode vir a ser. Mesmo quando pediu a minha ajuda na
altura e que ganhou a sua fobia às cobras ou quando perdeu
a virgindade, rompendo o hímen ao fazer a espargata numa
aula de ginástica da escola secundária, quando tinha apenas
quinze anos, disse, ao mesmo tempo que o sol nascia atrás
de si e formava uma auréola dourada sobre a sua cabeça.
Nicole caiu de joelhos e desfez-se em lágrimas, amargurada
e cheia de remorsos.
E Samuel continuou. Tem de partir quanto antes e
esperar pela superação do meu último desafio. A profecia
do Oráculo do Destino não é a destruição do vosso mundo
mas um novo começo para a Humanidade. Tenha esperan-
ça e confie em mim, mesmo depois do meu último suspiro,
respondeu.

527
Tiago Moita

Nicole ficou tão confusa como consternada. Que quer


dizer com isso, perguntou.
A porta da torre voltou a abrir-se.
Agente Nicole... agente Nicole, disse o guarda. A mu-
lher soergueu o rosto marejado. Já passaram os cinco minu-
tos, disse, timidamente. A agente levantou-se, enfraquecida
pelo choque, ajudada pelo segurança, e caminhou, amparada
ao seu braço, rumo à saída.
Atrás deles, quatro militares da Guarda Zaratista, de
rosto cerrado, aguardavam, pacientemente, a saída da agente
e do guarda da torre. Um deles, virou-se para Samuel e pro-
feriu uma frase familiar para os seus ouvidos.
– Chegou a tua hora.

528
CENTO E CATORZE
O desentorpecer dos membros foi difícil para Sa-
muel. Mal os quatro militares o libertaram da cruz de ma-
deira da torre da prisão mais inexpugnável de Distopia, o
Alquimista sentiu os ossos a estalarem e fortes lesões nos
músculos dos braços e das pernas. A fraqueza notória, de-
rivada do imobilismo, fê-lo claudicar duas vezes. Poderia
ter-se estatelado no chão frio da torre e dos corredores
que percorrera com os seus algozes, não fosse a atempada
intervenção de dois dos militares, que o ampararam até à
sala onde ia preparar-se para o julgamento. Todavia, ape-
sar de tudo o que passara, continuava com um sorriso de
orelha em orelha, como se não estivesse preocupado com
o que iam fazer com ele.
A sala do julgamento, assim como o cinzento e
negro das colunas e paredes misturado com o carvalho
castanho da mobília, e o rosto sisudo dos jurados e dos
três juízes, sentados no fundo da mesma, reflectiam o am-
biente pesado que ali se sentia. Em situações normais,
costumava ser apenas um juiz. Por ordem de Zarat, foram
nomeados três: a presença do Alquimista e a importância
daquele julgamento assim o exigiam, tal como um advo-
gado de defesa oficioso, conforme mandavam as leis da

529
Tiago Moita

cidade. Uma formalidade que não perturbava em nada o


senhor de Distopia; apenas o impacientava.
Na assistência estavam apenas alguns leigos em jus-
tiça, jornalistas e críticos literários, ansiosos por registar e
deitar por terra qualquer sinal de sabedoria e eloquência do
profeta, militares graduados, cientistas conceituados, filó-
sofos laureados e religiosos dogmáticos, vindos dos quatro
cantos do planeta; nenhum seguidor do Alquimista ali estava
presente. A sala das audiências era composta por duas mesas
e duas cadeiras para os respectivos advogados de acusação
e defesa, o representante de Zarat e o arguido deste caso.
À frente, uma bancada com três assentos para cada um dos
juízes e, do lado esquerdo daquela divisão, as cadeiras do
Grande Júri. Ptolomeu foi o escolhido para representar o
Grande Líder e Alexis Luxor – o melhor advogado de Dis-
topia – como advogado de acusação. Victória Premal, uma
veterana em casos difíceis e causas humanitárias, foi a esco-
lhida como advogada de defesa do maior inimigo da cidade
e do seu governante.
A entrada de Samuel, de fato e gravata, na sala susci-
tou um enorme alarido. A passagem do profeta causou indig-
nação, irritação e cinismo, apenas abafados pelo respeito e
significado daquele edifício. Algumas das pessoas que iriam
assistir ao seu julgamento tentaram agredi-lo verbalmente,
mas acabaram detidas e convidadas a sair da sala. Sem pes-
tanejar nem mexer os lábios, o sábio apenas se limitou a
olhar em frente e sentar-se na cadeira que lhe fora destinada,
junto à sua advogada. Ptolomeu chegou um minuto depois
de Samuel se sentar. Olhou de soslaio para o profeta, com ar
de desprezo.
Todos se levantaram quando o meirinho anunciou a
chegada dos três juízes e dos jurados e sentaram-se, mal o
terceto judiciário se sentou também. Passados três minutos,
o juiz-presidente pediu a Samuel que se levantasse e dis-

530
O Evangelho do Alquimista

sesse como se considerava perante a acusação de atentado


ao pensamento de Zarat e a todos os povos de Distopia e
do Planeta É e respectiva subversão. Inocente, declarou. O
bulício aumentara. Três toques do martelo do juiz sobre uma
base de madeira foram o suficiente para devolver a ordem e
o respeito àquela sala. O advogado de acusação considerou
Samuel culpado. Tinha começado o julgamento.
O que parecia ser um julgamento rápido levou cerca
de seis horas. Victória Premal alegou a inocência das pa-
lavras do Alquimista, comprovando cada ensinamento com
citações e extractos de textos e ensaios de grandes autores
contemporâneos, para demonstrar que a sua mensagem não
punha em causa o pensamento de Zarat e dos povos da ci-
dade e do planeta. Alexis usou os mesmos procedimentos,
tentando convencer os juízes e os jurados do contrário. Por
imposição do Grande Líder da cidade e do planeta, Samuel
não teve direito a testemunhas, assim como a defesa não
possuiu os mesmos direitos e tempo para falar que a acusa-
ção; cada vez que o tentava era admoestada pelo colectivo
de juízes, principalmente quando Alexis Luxor chamou para
depor os sete membros do Conselho Magno de Distopia e o
conselheiro principal do grande edil da cidade. Samuel man-
teve-se sereno e nada surpreendido. Quando chegou a vez de
os sete conselheiros deporem, relataram tudo o que tinham
passado quando tinham sido confrontados com o Alquimista
e com os seus discípulos – todos estes impedidos de depo-
rem ou servirem de testemunhas, por ordem de Zarat. Os de-
poimentos ultrapassaram os limites da verdade e roçaram a
pura retórica estéril, para deleite dos críticos literários e dos
jornalistas presentes, sequiosos de palavras para encherem e
envenenarem as gerações, presentes e futuras, acerca do ar-
guido. Até Phebos testemunhou, para espanto da advogada.
A defesa de Samuel não teve nenhuma margem de manobra
num processo que nem Kafka poderia imaginar que existisse

531
Tiago Moita

no universo. A Justiça era uma caricatura surrealista naquela


sala.
Terminadas as audições e as alegações finais, os juízes
e o Grande Júri saíram da sala, recolhendo-se para decidi-
rem a sentença. Ptolomeu trocava algumas impressões com
o seu advogado, enquanto não chegava o momento da gran-
de decisão. Dez minutos depois, os juízes e os jurados re-
gressaram à sala. Os jurados consideraram Samuel culpado
de todos os crimes pelo qual foi indiciado, tendo o colectivo
de Juízes condenado o Alquimista à morte por crucificação
radioactiva, por atentar o pensamento do Grande Líder da
cidade e de todo o planeta e por o subverter. A advogada de
Defesa contestou a sentença e pediu recurso. Indeferido, foi
a resposta do juiz.
Samuel levantou-se e proferiu as suas últimas palavras
naquela sala. Aquilo que deram, receberão e aquilo que re-
ceberem será fruto do que deram. A vossa vontade é também
a minha porque somos todos um perante Deus e o Universo.
Assim falou o Alquimista.

532
CENTO E QUINZE
O cenário era um misto de histeria e vergonha. Sa-
muel caminhava agrilhoado dos pés ao pescoço, escoltado
por seis militares da Guarda Zaratista, em direcção ao lo-
cal da execução. As filas paralelas de guardas e agentes que
protegiam o trajecto do Alquimista tinham dificuldade em
controlar a multidão, enlouquecida pela passagem do profe-
ta do Oráculo do Destino. Entre a plebe, não se vislumbrava
nenhuma das pessoas que o tinham seguido até Distopia. A
vergonha e a covardia de todos aqueles que o tinham acom-
panhado e se tinham deixado deslumbrar pelas malhas do
consumismo e do lazer com que a cidade os presenteara em
troca do seu silêncio, não enganavam ninguém, nem mesmo
os que tinham conseguido resistir às tentações da urbe. A
corrupção tem tentáculos muito finos e invisíveis na mente e
no coração do ser humano.
As palavras e cuspidelas, assim como toda a espécie
de vegetais, ovos e fruta podre que aquela multidão con-
seguia atirar ao Alquimista, tinham tanto ou maior impac-
to que a dureza de um chicote de couro ensebado contra o
corpo nu de um escravo ou prisioneiro, em pleno castigo.
Os gritos e a chacota não tinham limites, assim como os
cartazes com palavrões e slogans contra tudo aquilo que ele

533
Tiago Moita

pregara. Se és o Alquimista, liberta-te dessas correntes por


magia e seguir-te-emos, diziam uns. Somos todos um, no
olho do teu cu, diziam outros. Samuel resistia com todas as
forças que tinha contra as investidas e os ataques verbais da
turba. O corpo latejava mais do que a alma daquele homem;
a respiração era ofegante; o coração parecia dar os seus últi-
mos batimentos; a boca estava seca de água e de vida. Tinha
sido proibido dar de beber ao prisioneiro durante o percurso.
A meia distância entre o tribunal e o local da execu-
ção, as pernas do profeta claudicaram de cansaço. Os mili-
tares soergueram-no, esmurrando-o em todas as partes do
corpo, enquanto alguns populares atiravam balões de plásti-
co com vinagre contra a cara do sábio: o único líquido que
conseguia beber, para além do sangue e do suor que escor-
riam pelo seu rosto.
Magdala tentava infiltrar-se na multidão e ver Samuel
caminhar em direcção ao seu calvário. Os jovens índigos
que a vigiavam e protegiam tentavam, a todo custo, impe-
di-la de semelhante acto. O desespero falava mais alto do
que a razão. Os jovens procuravam manter a calma, assim
como a vigilância: sabiam que aquela área estava infesta-
da de cães ferozes e agentes secretos da Guarda Zaratista,
armados da cabeça aos pés, à sua procura. A mulher con-
seguira encontrar um furo, misturando-se entre a multidão.
Um dos agentes reconheceu-a e alertou os restantes. Como
cães de caça num pântano, os militares e agentes disfarçados
corriam, que nem leopardos, em direcção à companheira do
Alquimista: contacto.
Num lapso de segundo, Magdala tinha sido puxada
por um dos índigos para fora daquele mar de gente e come-
çara a correr, juntamente com esse jovem, em sentido con-
trário ao dos seus perseguidores. Os helicópteros da Guarda
Zaratista desceram silenciosamente com potentes holofotes
acesos, tentando descobrir os fugitivos procurados pelos

534
O Evangelho do Alquimista

seus colegas. Era noite e as nuvens adensavam-se, negras e


pesadas, em direcção a Distopia, como uma avalanche. Os
agentes em terra não se aperceberam desse fenómeno me-
teorológico; apenas os dos helicópteros – abismados com
aquela amálgama nebulosa em direcção à cidade. Estavam
perto, cada vez mais perto. O medo de ser apanhada fê-la
correr acima das suas capacidades. Estava perto, cada vez
mais perto, cada...
Perda.
Tanto os helicópteros como os agentes e militares ti-
nham perdido o rasto dos seus alvos. Desesperados, vascu-
lharam todos os cantos do último lugar onde os tinham visto.
Nem o tempo nem a sorte estavam do seu lado.
A seis palmos abaixo dos pés dos agentes, Magdala e
o jovem corriam ainda pelos esgotos da cidade em direcção
ao esconderijo dos índigos. Durante o percurso, Magdala
chorava copiosamente por tudo aquilo que os agentes de Za-
rat estavam a fazer contra o grande amor da sua vida. A dor
falava mais alto do que a gratidão sentida em relação àquele
jovem que a salvara. Naquele momento, daria tudo para tro-
car de lugar com Samuel, na sua caminhada para a morte.

535
CENTO E DEZASSEIS
Mais do que a execução de um simples condenado, a
crucificação do Alquimista era um espectáculo de luz, cor
e som, como se tudo não passasse de um festival de cele-
bração à morte do maior inimigo de Zarat e de Distopia.
Enquanto Samuel não chegava ao local do seu suplício, fa-
ziam-se apostas sobre a hora exacta da sua morte, vendia-se
todo o tipo de merchandising com palavras obscenas contra
o profeta do Oráculo do Destino e bandas de rock e de metal
actuavam no local da execução: diferentes no estilo, iguais
na mensagem. Zarat mostrava-se ufano. Samuel estava de-
masiado debilitado para sentir, o que quer que fosse, com
nitidez.
Os técnicos efectuavam os últimos testes com a VH-
Cruz no recinto fechado, atrás do palco, onde decorriam os
concertos. A máquina mexia-se e rodopiava como um autên-
tico robô, através de instruções, digitadas pelos peritos em
HP TouchPads da última geração. Movimentos, controlo de
som, radiação e imagem, tudo era analisado até ao mais ínfi-
mo pormenor. Era o grande dia; nada podia falhar.
Terminados os concertos, Alpha e Ómega fizeram-se
passar por bobos da corte, recriando através da mímica, o
percurso do Alquimista desde o seu aparecimento até ao mo-

537
Tiago Moita

mento da crucificação, de uma forma irónica e hilariante


– se não jocosa – para a audiência. A Humanidade ria-se
da monstruosidade em que se tinha transformado.
A chegada do profeta ao local da sua execução fez
com que os dois gémeos e servos do senhor de Distopia
e do planeta É saíssem de cena. O palco foi desmontado
automaticamente como se fosse uma máquina e o recin-
to fechado da VHCruz foi puxado mecanicamente para o
seu lugar. Mal tomou a sua posição, a invenção de Salo-
mão abriu-se como as pétalas de uma rosa, na horizontal,
soltando um ranger mecânico: ovação.
Samuel começava a subir as escadas, em direcção
ao patíbulo onde iria ser executado por causa dos crimes
de que era acusado. Cada passo dado era como um espi-
nho cravado na hipoderme da alma. O corpo, tal como a
mente, fraquejava; as pernas tremeleavam – não de medo,
mas de sofrimento. A vida de um homem, que tudo fizera
por amor ao universo e ao espírito humano, estava prestes
a ser tirada da forma mais bárbara e cruel – em directo e
via satélite – para todo o planeta e não havia nenhum jor-
nalista ou repórter que filmasse ou comentasse uma única
lágrima derramada por ele. O medo e o poder falavam a
uma só voz.
Frente ao seu instrumento de tortura e morte, um
homem do dobro do tamanho e robustez do condenado,
de cara tapada por uma máscara de aço negro com viseira
aberta, perguntou-lhe se preferia ser executado de olhos
vendados. Samuel, relembrando o significado das suas
mensagens e cada vez mais debilitado, rejeitou a propos-
ta, dizendo que antes queria ver o povo e o horizonte da
VHCruz a suportar a dor, daqueles que o tinham ferido
com palavras. O homem soltou uma gargalhada malévola,
juntamente com os verdugos que o tinham escoltado até
ao seu destino, assentindo no desejo do sábio.

538
O Evangelho do Alquimista

Sem ligarem à fadiga e dor de todo o seu corpo, os


algozes pegaram-lhe nos braços e pernas – ensanguentados
pelas chibatadas verbais do público e das vergastadas que
recebera de todos eles, antes de chegar ao patíbulo de ma-
deira e aço, prendendo-o com pregos especiais vermelhos
e grossos, sob a forma de seringas, com heroína e cocaína
misturadas, ao centro da VHCruz. Samuel gritava de dor por
cada prego espetado no dorso dos pés e nos pulsos. Cada
gemido extasiava a multidão ávida de suspense, espectáculo
e sangue. O efeito das drogas não tardou a anestesiar todo
aquele sofrimento. Por estranho que parecesse, aquela mis-
tura letal não lhe atingia o cérebro. Os cientistas da cidade
não conseguiam encontrar explicação para aquele fenóme-
no.
Crucificação.
Uma vez pregado, a VHCruz girou três vezes na hori-
zontal, no sentido dos ponteiros do relógio e, por fim, alçou-
-se automaticamente até ficar completamente hirta, como
uma árvore. De seguida, os técnicos que comandavam a má-
quina ligaram cada um dos dez ecrãs LCD radiactivos. Cada
um deles começou a emitir a imagem de vídeo ilustrativa
de cada um dos dez egos da natureza humana: um homem
irritado com o seu trabalho, simbolizando a Ira; uma idosa
desprezando um ser humano por não ser da sua raça, sim-
bolizando o Orgulho; uma jovem secretária a falsificar uma
assinatura para conseguir uma promoção no seu emprego,
simbolizando a Mentira; um adolescente chorando amarga-
mente e autoflagelando-se, simbolizando a Melancolia; um
homem gordo e bem vestido, distribuindo água num con-
ta-gotas a crianças sedentas e esfomeadas, simbolizando o
Egoísmo; uma mulher de meia-idade cortando os pulsos por
não se sentir capaz de enfrentar a vida, simbolizando a Co-
bardia; uma mulher aflita por não poder comprar tudo num
shopping center, simbolizando a Gula; um marido ciumento

539
Tiago Moita

matando a mulher à facada, simbolizando a Vingança; um


aluno a copiar um texto da internet em vez de estudá-lo para
um exame, simbolizando a Preguiça; e, por último, uma mu-
lher fazendo um felácio, simbolizando a Luxúria.
Zarat e toda a sua comitiva assistiam com especial jú-
bilo e expectativa a toda aquele macabro espectáculo. Entre-
tanto, o líder dos líderes recebia um telefonema do respon-
sável do maior observatório de Distopia, informando-o da
aproximação da hora do alinhamento dos planetas da galá-
xia, de que fazia parte o seu mundo.
Um eclipse solar começava a ganhar forma. O fim es-
tava próximo.

540
CENTO E DEZASSETE
Distopia em peso celebrava a crucificação do Alqui-
mista com loucura e êxtase absolutos. Mal a VHCruz se
soergueu automaticamente e Samuel soltou o primeiro grito
de dor, uma autêntica city rave party teve início à volta do
local da execução do profeta. Todos os habitantes da cida-
de, ali reunidos, dançavam ao som de ritmos alucinantes,
instrumentais e psicadélicos, com frases subliminares sobre
diversão, desejo e subversão, abafando os lamentos, gritos e
lágrimas de tristeza dos poucos que tinham apoiado o sábio.
Os seus discípulos – presos na mais inexpugnável prisão da
cidade – não eram excepção.
No Espaço, os planetas iam-se alinhando com o centro
da galáxia, sem se importarem com o que os seres vivos dos
seus planetas habitados pensavam acerca desse fenómeno.
Apenas os astrónomos e cientistas do Planeta É observavam
e estudavam esse raro acontecimento astronómico cuja últi-
ma vez ocorrera vinte mil anos antes. Dentre esses, ninguém
queria perder o registo dessa maravilha do universo.
Samuel procurava resistir tanto quanto podia aos efei-
tos das drogas e das radiações violentas que começavam a
provocar danos por todo o seu corpo. Os ossos latejavam,
tal como a dor que o agonizava, sem que ninguém pudesse

541
Tiago Moita

fazer alguma coisa. Por dentro, todo o corpo começava a


deteriorar-se. Silenciosamente, mentalizava uma frase cons-
tante e pertinente como uma prece; a última prece antes do
suspiro final. Eu amo e aprovo-me a mim mesmo; o amor
habita em mim e eu estou seguro com a Fonte e o Universo;
eu amo...
Escuridão.
Foi como se a noite tomasse conta da vida daquele
planeta. No momento em que todos os planetas ficaram ali-
nhados com o centro da galáxia, todos os aparelhos eléc-
tricos e electrónicos avariaram abruptamente, deixando a
cidade e todas as povoações do Planeta É engolidas pelas
trevas. Desesperados, os habitantes de Distopia procuravam
saber o que tinha acontecido com os seus telemóveis, ipods
e computadores, como se as suas vidas dependessem daque-
las máquinas mais do que toda a cocaína e heroína que os
carrascos de Samuel lhe tinham ministrado, no momento
da crucificação. Alguns agiam como baratas tontas; outros
tentavam o suicídio: nenhum deles se imaginava numa vida
sem tecnologia ao alcance das suas mãos. Misteriosamente,
a VHCruz funcionava, como se quisesse transmitir o último
desejo do profeta do Oráculo do Destino.
Samuel começava a perder os sentidos à medida que
os ecrãs daquela máquina diabólica se iam apagando, um
por um, como se estivessem a fazer a contagem decrescente
para uma tragédia. Subitamente, ergueu a cabeça ao vislum-
brar aquela penumbra infinita e, de pupilas dilatadas, repetiu
uma vez mais todas as palavras que proferira aos seus discí-
pulos na sua última ceia no restaurante “Cálice” em Luxan.
– Vinte e sete anos após o meu nascimento, marcharei
triunfante sobre a cidade que se apoderou do planeta. Rea-
lizarei e superarei o meu último e derradeiro desafio, que
culminará com a queda do último falso profeta e da civili-
zação, no dia... em que... a cruz cósmica... se alinhar... com

542
O Evangelho do Alquimista

o centro... da galáxia, disse, curvando a cabeça e fechando


os olhos para sempre, soltando o último fôlego de vida na
última palavra que pronunciou.
O último ecrã apagara-se juntamente com Samuel. A
noite dos homens extinguiu o bolbo de luz daquele sábio,
cujos pensamentos e palavras tinham mudado a vida daque-
les que sempre acreditaram nele e o seguiram até à cidade,
onde viria a conhecer a morte do seu corpo.
Pela primeira vez, Distopia conhecera o silêncio.

543
CENTO E DEZOITO
O espaço era branco como um imenso mar de leite. Os
sons que se ouviam eram ecos harmónicos, semelhantes aos
cânticos de baleias azuis em oceanos sem fim. Murmúrios
de pensamentos humanos deambulavam naquele vazio páli-
do, sem que se conhecesse a origem de tais reflexões. Som-
bras imaculadas de anjos, arcanjos e seres sem rosto feitos
de luz, passeavam livremente por aquele vácuo descorado,
onde o tempo não existia, sem divisões nem qualquer tipo de
barreiras, onde Samuel se encontrava deitado e inconsciente
de tudo o que tinha acontecido na sua vida terrena.
Desperta: espanto.
As dores lancinantes que tanto o tinham agonizado na
VHCruz haviam desaparecido. Estava intacto e imaculado,
como a sua túnica. Entre as sombras brancas que perpassa-
vam por si, uma silhueta familiar ganhava forma e rosto à
medida que se aproximava do jovem caixeiro-viajante. Es-
tava ainda confuso e com vertigens, depois de tudo o que lhe
acontecera. Lentamente, foi focando o olhar na figura que se
acercava de si. Ali estava o reflexo do homem, a quem julga-
va ter dado boleia no Grande Deserto e que não era mais do
que a sua supra-consciência; idêntica, tanto em rosto como
em indumentária à de Samuel.

545
Tiago Moita

O que é que fazes aqui? Que sítio é este, perguntou Sa-


muel ao Alquimista. Bem-vindo ao limbo, Samuel, declarou.
Limbo? Mas... eu fiz tudo aquilo que me pediste. A profecia
foi cumprida, disse, antes de ser interrompido. A profecia do
Oráculo do Destino é um aviso para a Humanidade ter mais
cuidado com o que faz a si própria e à Natureza, assim como
entender, de uma vez por todas, que não está separada dela
nem do Universo mas que faz parte de um Todo, tal como
tu percebeste assim que ganhaste consciência no Grande
Deserto, afirmou, amparando-o. Queres dizer que o momen-
to em que nós nos conhecemos foi o instante em que tomei
consciência de mim, enquanto parte do Todo que deu origem
ao Tudo O Que é, inquiriu Samuel. Sem dúvida! O resto foi o
remembrar de tudo o que tua alma experienciou nas suas vi-
das passadas no Aqui e Agora; algo que partilhaste, e mui-
to bem, com todas as pessoas que encontraste até voltares
a Distopia. Lembras-te das palavras que aqueles homens
disseram quando removeram o teu corpo da cruz da torre?
Chegou a tua hora, tal como tu disseste a ti próprio, afirmou.
Como eu disse? Quem disse essa frase primeiro foste tu,
quando nos conhecemos, ripostou o caixeiro-viajante. Não,
Samuel, foste tu. Mas, como a tua consciência ainda estava
muito turva, ouviste o contrário: tu nunca ouviste Chegou a
tua hora mas sim Chegou a minha hora. A tua hora! A hora
de partilhares com o Homem toda a sabedoria que a tua
alma acumulou durante várias reencarnações e em diferen-
tes Eras e dimensões. Uma hora que alguém sabia muito
bem que ia chegar. Quem, perguntou Samuel. O Alquimista
apontou para o infinito de todo aquele vazio encanecido.
As imagens apresentavam-se embaçadas aos olhos do
jovem, parecendo tratar-se de um homem e de uma mulher.
O rosto de ambos ia ficando cada vez mais nítido à medida
que se aproximavam. Samuel encontrava uma semelhança
física em cada um deles: uma semelhança no rosto e robus-

546
O Evangelho do Alquimista

tez no homem e uma expressão no olhar da mulher. A ener-


gia e a cor das auras de ambos iam aumentando de intensida-
de à medida que se aproximavam. Samuel imitou o gesto de
ambos, como se reconhecesse naquelas pessoas o desejo de
algo que nunca tinha esperado reencontrar: contacto.
Samuel e aquele casal abraçaram-se e choraram co-
piosamente. Pai, mãe, dizia o jovem. Meu filho, diziam em
uníssono. Todos tocavam nos rostos uns dos outros para te-
rem a noção de cada um, num espaço que estava entre a
realidade e a ilusão. Se tivesse a sua mente terrena, Samuel
poderia julgar estar a ser vítima de uma alucinação, fruto da
frustração de nunca ter conhecido os pais em vida. Porém,
nem a mente nem o ego estavam consigo; apenas o amor, o
mais puro amor que podia existir entre uma família, agora
reunida.
O jovem tinha mais perguntas a fazer do que respos-
tas a dar. Não posso acreditar. São... são mesmo vocês? O
que fazem aqui? Como, disse, antes de ser interrompido pela
mãe. Podes acreditar, filho, tal como sempre acreditámos em
ti quando tu nasceste. O teu nascimento não foi obra do aca-
so assim como o meu encontro com o teu pai. Deus sabia
que, tanto nós como tu, estávamos predestinados a aparecer
naquele planeta e naquela época, disse Mónica, emociona-
da. É verdade, filho: no princípio, achei estranho o Destino
ter-me afastado de qualquer outra companheira que não fos-
se a tua mãe; assim como achei esquisito o mesmo facto ter
também ocorrido com ela. Mas quando tivemos a mesma
epifania a anunciar o teu nascimento, no momento previsto
pelo Oráculo, e o teu nome de baptismo, assim como a pre-
visão de que a Guarda Zaratista iria perseguir-nos, quando
descobriram que a tua mãe estava grávida de ti – sem nunca
ter tido relações com nenhum homem ou ter sido submetida
a inseminação artificial –, resolvemos entregar-te aos cuida-
dos de um sacerdote antes de desaparecermos para sempre

547
Tiago Moita

no Grande Deserto. Só então percebemos que a profecia era


uma realidade e que serias o homem que ia concretizá-la,
disse Fernando, abraçando o filho. O Alquimista aproximou-
-se daquelas três almas.
Uma dúvida assaltava Samuel. Mas... como é que eu
posso concretizar a profecia, se acabei de morrer... eu estou
morto, certo? Ou tudo não passou, disse, antes de ser inter-
rompido pelo profeta. Uma ilusão. Era isso que querias di-
zer? O limbo é apenas uma sala de espera, não o Céu. Desde
o útero até à sepultura que estamos unidos pelo mesmo fio
condutor do Destino que as nossas almas escolheram para
nós, e a tua missão ainda não acabou. Por isso, acorda,
ordenou o sábio, tocando-lhe na cabeça. Os pais do jovem
imitaram o seu gesto. Acorda, Samuel, acorda, diziam todos,
acorda, acorda, a...
Regresso.
Uma dor latejante percorreu o corpo de Samuel da
planta dos pés até ao cérebro, fazendo-o erguer a cabeça para
o negrume do céu e abrir os olhos para a vida, num fôlego
desesperado, como se tivesse acabado de voltar à superfí-
cie, depois de muito tempo submerso. Um pequeno sismo
se fez sentir em Distopia pela população, já apavorada pelo
misterioso apagão tecnológico que tinha envolvido toda a
cidade, naquele momento de ressurreição. Samuel voltou a
gemer. As feridas e chagas que lhe cobriam todo o corpo co-
meçavam a sarar como se estivessem a ser tratadas por mãos
sinestésicas, fazendo com que o seu corpo semi-nu voltasse
ao normal, tal como a sua lucidez: choque.
Depois de várias tentativas para repor o funcionamen-
to da máquina, a VHCruz voltou a emitir uma luz alva e
ofuscante mas sem imagens. Samuel começou a ver os pre-
gos vermelhos, que o tinham martirizado, a estilhaçarem-se
sozinhos, como meros pedaços de vidro, ao mesmo tempo
que o seu corpo se movia para a frente, ficando a uns cin-

548
O Evangelho do Alquimista

quenta centímetros de costas viradas para aquela máquina


diabólica, como se uma mão invisível o tivesse empurrado e
suspendido no ar.
Aquilo a que todas aquelas pessoas assistiam ia para
além de uma mera ilusão óptica. O tempo tinha parado em
toda a cidade.

549
CENTO E DEZANOVE
Ninguém conseguia acreditar naquilo que tinha acon-
tecido. Todos os habitantes da cidade ficaram estáticos e
atónitos, sem palavras, tentando encontrar uma explicação
racional e científica para aquele fenómeno que a maioria
rejeitava denominar milagre. O regresso da luz à VHCruz
representava uma centelha de esperança para todo um pla-
neta – e uma galáxia – que perdera electricidade e, por con-
seguinte, toda a tecnologia que dependia dela. Todavia, o
despertar de Samuel e a suspensão do seu corpo a cinquenta
centímetros da máquina que tinha posto termo à sua vida
corpórea, ia para além dos limites da razão de todos os Dis-
topianos. Zarat recuperara os sentidos depois do apagão glo-
bal, provocado pelo alinhamento galáctico. O que vislum-
brou, juntamente com os seus conselheiros, deixou-o num
mar de interrogações e silêncios.
Ao quarto fôlego, a voz de Samuel fez-se ouvir por
toda a cidade. Povo de Distopia, escutai o que tenho para
vos dizer. Muitos de vós viveram debaixo de uma mentira,
que contaminou as vossas mentes e corações por gerações e
gerações, como uma praga, e fez com que todos vós duvi-
dásseis de vocês próprios. É natural terdes dúvidas e serdes
cépticos, pois o verdadeiro crente não é aquele que crê sem

551
Tiago Moita

duvidar mas antes aquele que duvida de tudo, principalmente


do seu próprio cepticismo. Durante séculos convenceram-
-vos de que Deus está morto e de que o Homem era o centro
do universo. Com a Ciência descobristes explicações para
quase todos os fenómenos da vida humana, da natureza e
do universo. Com a tecnologia alcançastes um nível de vida
e um conforto materiais a que chamastes Progresso e crias-
tes um estágio mais complexo e elevado de sociedade a que
chamastes Civilização.
Achastes vós que, com essas conquistas, irieis viver
em segurança, abundância e felicidade eternas; mas a vida,
tal como a natureza, o espírito e o universo não funcionam
dessa maneira e o resultado está no preço que pagastes para
conquistar esse Progresso e essa Civilização. A vossa nega-
ção à Fonte da vossa essência tornou-vos vazios e deprimi-
dos. Aquilo que deveria ter sido para vós um alívio passou a
ser um fardo; o que deveria ter sido para vós uma segurança
passou a ser uma angústia e um desassossego constantes; o
que deveria ter sido para vós um caminho passou a ser um
labirinto; o que deveria ter sido um sonho passou a ser um
pesadelo; o que deveria ter sido a alvorada do Último Ho-
mem, passou a ser a noite da Humanidade.
O Homem julgou ser livre mas nunca perguntou para
que servia a liberdade. Pensou muito e sentiu cada vez me-
nos. Em vez de superar o Ego, alimentou-o. Fez com que a
cobiça envenenasse a sua alma; criou barreiras num mundo
cheio de ódio; colocou-se na miséria e na destruição. Olhou-
-se num espelho e viu o rosto da morte que ele próprio criou.
Sim! A morte que ele próprio criou! O Homem está
morto e fostes vós que o mataste! Matastes quando deixastes
de dar um significado às vossas vidas e à vossa liberdade!
Matastes quando eliminastes todos os valores que Deus e o
Universo representavam nos vossos corações e deles zom-
bastes! Matastes quando instalastes um Inferno no lugar do

552
O Evangelho do Alquimista

Céu, que sempre foi o vosso coração! Matastes quando


abraçastes filosofias que negaram a vossa existência e vos
transformaram em acidentes da vida! Matastes quando co-
meçastes a destruir a natureza e a poluir o vosso planeta,
que sempre fora um paraíso! Matastes quando passastes a
viver da miséria alheia e não da felicidade alheia! Matastes
quando acreditastes em pensamentos que fizeram de vós
criaturas cínicas, hipócritas, rudes e duras como o falso
profeta que vos governa, argumentou, fixando o olhar em
Zarat.
E continuou, virando o olhar para a multidão. Povo
de Distopia: não desespereis nem deis ouvidos a quem
nunca vos ouviu, sempre vos usou como objecto das suas
ideologias e não como parte de um Todo. Não sois obri-
gados a seguir líderes que vos dizem o que pensar, o que
fazer, e o que sentir! Vós não sois acidentes! Vós não sois
máquinas nem moeda de troca nem carne para canhões!
Sois seres humanos! Almas encarnadas neste mundo com
um propósito maior do que a vossa existência! Tendes o
amor da Humanidade dentro de vós! Sois Templos vivos!
Universos vivos! Vós não odiais! Só os seres artificiais e
não amados é que odeiam! Sois corpo, mente e espírito
num só ser! Não sois ilhas isoladas na vida, na natureza e
no universo, mas parte de uma grande fraternidade univer-
sal que clama pelo Amor Incondicional no Aqui e Agora e
pela unidade de toda a Humanidade. O poder de mudar as
vossas vidas não está fora de vós mas dentro de vós. Vós
tendes o poder de criar as vossas experiências, fazerdes
as vossas escolhas; de transformardes a vida numa mara-
vilhosa aventura! De lutardes por um mundo melhor com
oportunidades para todos em harmonia com a Natureza,
Deus e o Universo.
Foi pela promessa de tais causas que seres humanos
artificiais com mentes e corações mecanizados tomaram o

553
Tiago Moita

poder que vos pertence, por direito, e se transformaram em


tiranos. Mas eles mentem! Eles não cumprem essas pro-
messas nem nunca cumprirão!
Povo de Distopia! Está nas vossas mãos pôr fim a tudo
isso! Lutemos por uma Revolução da Evolução! Lutemos
agora para cumprir a promessa de ressuscitar o Homem e
libertar o mundo! Lutemos para acabar com todo tipo de
ganância, ódio, medo e intolerância! Lutemos por um mun-
do onde a Espiritualidade e a Ciência possam conduzir à
felicidade e à unidade de todos os seres humanos! Distopia-
nos! Em nome da Evolução vamos todos unir-nos, concluiu,
empolgado, quase sustendo a respiração. Um breve silêncio
antecedeu uma gigantesca ovação.
Zarat e a sua comitiva fugiram. O seu poder tinha che-
gado ao fim.

554
CENTO E VINTE
O milagre que acontecera com Samuel teve o efeito
de uma bola de neve. O fenómeno da suspensão do seu cor-
po no ar e o seu discurso inflamado sensibilizara todas as
pessoas que tinham assistido à sua ressurreição. Epifania ou
graça, milhares de pessoas de todos os bairros enterraram
machados de guerra sem valor e apagaram diferenças em
abraços efusivos. Militares e agentes do exército de Zarat e
da Guarda Zaratista deitaram fora as suas armas e distinti-
vos, juntando-se ao povo e ao profeta do Oráculo do Desti-
no. Os mais radicais derrubaram os muros que dividiam cada
bairro da cidade com tudo o que conseguiam arranjar. Os
jovens e adultos, índigos e cristal, auxiliados por populares
e desertores do exército e da guarda, invadiram as prisões de
Distopia e libertaram todos os presos políticos, incluindo os
discípulos do Alquimista. A Liberdade caminhava de mãos
dadas com o Amor e a Solidariedade pelas ruas da cidade e
ganhava asas onde antigamente tinha correntes.
A ovação e a histeria aumentaram à medida que Sa-
muel descia lentamente em direcção ao chão, como se ti-
vesse a ser amparado pela mão invisível de alguma entidade
divina. Lágrimas, gritos e aplausos ensurdeciam a urbe com
aquele milagre. Magdala, acompanhada por jovens e crian-

555
Tiago Moita

ças índigo e cristal, irrompera pela turba e abraçara o Alqui-


mista, de olhos marejados, rematando com um cálido beijo
por voltar a ver o seu amor. O gesto comoveu e extasiou
todos os Distopianos.
Samuel e Magdala saíam da praça no meio de toda
aquela euforia inebriante. Todos gritavam o nome verdadei-
ro do profeta enquanto este caminhava para fora do local da
sua execução e ressurreição, de mão dada com a sua com-
panheira. A sua passagem assemelhava-se à entrada triunfal
de um rei, vitorioso de uma batalha – e era. Samuel tinha
vencido a morte e cumprido aquilo que tinha dito, antes de
soltar o seu último suspiro na VHCruz, quando ninguém
acreditava na sua ressurreição.
Nenhum escapou ao suave transbordar da emoção
quando o viu. Acompanhados por populares e desertores,
os discípulos do Alquimista reencontravam o seu mestre,
depois de libertos das prisões de Distopia. O encontro com
os seus mais fiéis seguidores culminou numa amálgama de
abraços incandescentes e lágrimas de alegria pelo seu re-
gresso. Entre os discípulos, estava Salomão, o cientista res-
ponsável pela construção da VHCruz, a arma que matara, ou
pelo menos tentara matar Samuel.
Salomão não continha as lágrimas e as dúvidas sobre
a sua fé na ciência e na razão, depois de tudo o que acabara
de testemunhar naquela noite. Bem-vindo, Salomão. Ainda
bem que vieste. Estava à tua espera, disse Samuel. Aquilo...
que você fez... foi inacreditável! Como... como conseguiu,
inquiriu, balbuciando palavras sem nexo. O Alquimista não
conseguiu conter o riso com o que acabara de ouvir. Para
quem é cientista, faz muitas perguntas, respondeu o sábio. O
que seria da Ciência sem elas? Desde que comecei a ouvir
falar em si que fiquei com uma enorme vontade de o co-
nhecer pessoalmente. O que acabou de dizer sobre a aliança
entre a Ciência e a Espiritualidade é fabuloso! Contudo, dis-

556
O Evangelho do Alquimista

se Salomão, com reticências. Acha que são inconciliáveis,


questionou o sábio. Sim! A Ciência baseia-se em factos
comprovados segundo um método científico ao passo que a
Espiritualidade, respondeu o cientista, novamente com dú-
vidas, antes de ser interrompido pelo profeta. Baseia-se no
mesmo fim da Ciência, com métodos e ideias diferentes. Os
nossos mundos não são assim tão antagónicos: ambos bus-
camos a verdade e a origem de como tudo começou. Como
a Ciência comprovou, o Universo rege-se na perfeição por
leis universais e imutáveis, tal como acontece com o átomo
ou com o pensamento, argumentou.
– O que falta à Ciência para se aliar à Espiritualidade?
– perguntou Salomão.
– Encosta a tua mão direita no meu coração e saberás.
– respondeu Samuel.
Bastou apenas um simples toque para Salomão com-
preender o passo que faltava à Ciência para fazer essa alian-
ça. A Compaixão e o Amor Incondicional nunca eram cha-
mados ao campo científico por se tratar de sentimentos e a
Ciência nunca recorreu a eles para atingir os seus fins. To-
davia, com aquele gesto, Salomão não só aderira ao pensa-
mento do Alquimista como aprendera que a Ciência era um
instrumento para atingir um fim e não um fim a atingir, fosse
a que preço fosse. Um caloroso e comovente abraço selou
essa adesão.
No momento em que o cientista e o profeta se abraça-
ram, a VHCruz explodiu. O último instrumento da Ciência
ao serviço da morte soltara o seu último suspiro.

557
VII
APOCALIPSE

“Todo o fim é contemporâneo de todo o princípio; só


a nossos olhos vem depois.”

Agostinho da Silva
CENTO E VINTE UM
Nunca fizera em toda a sua vida tanto exercício físi-
co como naquela hora. Nicolau corria como se fosse uma
flecha. Não olhava a pessoas, animais, caixotes do lixo ou
qualquer outro obstáculo que o impedisse de chegar ao Cen-
tro de Investigação Criminal. O coração, acelerado, palpita-
va como se estivesse prestes a sair-lhe da boca; as palavras
foram substituídas por fragmentos de convicções que tar-
tamudeava a cada passo que dava, a cada esquina que do-
brava, a cada rua a que chegava. Por fim, o destino. Sem
mais delongas, o agente entrou de rompante no escritório
da sua inspectora-chefe – e companheira – com uma pasta
azul: susto.
Ali chegado, foi-se recompondo do esforço, tentan-
do repor a respiração, ofegante. Nicolau, lá por sermos...
companheiros, não significa que, disse irritada, antes de ser
interrompida pelo agente. Fomos enganados, Nicole! Fomos
todos enganados, disse, ainda ofegante, atirando a pasta para
a escrivaninha da agente. O que é isto, inquiriu. O... o relató-
rio. O verdadeiro relatório de Samuel Urbano Gudrien. Ele...
nunca sofreu de nenhuma amnésia retrógrada. Como assim?
E o relatório do doutor Stockler a comprovar, perguntou,
antes de ser interrompida pelo colega. Era falso, Nicole! O

561
Tiago Moita

Doutor Himmer Stockler não era um psiquiatra mas sim um


parapsicólogo, que pertencia a um grupo, controlado pelo
principal conselheiro de Zarat, para encontrar a criança da
profecia. Segundo esse relatório, que consegui encontrar
nos ficheiros secretos do Centro, Samuel era uma criança
que não só nasceu de uma mulher virgem como era dotado
de poderes parapsíquicos e de uma inteligência acima do
normal. Está aqui tudo, Nicole! Comprovado pelos princi-
pais cientistas, psicólogos e – pasme-se – espiritualistas de
renome, contratados pelo Conselheiro Ptolomeu.
Nicole ia engolindo o seu espanto à medida que lia
cada uma das folhas daquela pasta. Tudo lhe parecia surreal:
O senhor de Distopia e do Planeta; um homem que nunca
acreditara em nada que fosse esotérico ou paranormal, re-
correr aos serviços de pessoas ligadas ao mundo do oculto
e do sobrenatural para investigar um sobredotado. Parecia
uma teoria da conspiração. A sua cabeça era um labirinto de
dúvidas e enigmas. Não é possível! Não pode ser possível!
O nosso líder... sabia disto tudo?! Porquê, perguntou, estu-
pefacta. Pelos vistos o nosso líder andava atrás de pessoas
que se parecessem com o Alquimista, em termos psicoló-
gicos e parapsicológicos. Assim que Samuel perfez vinte e
sete anos, redobrou a vigilância no jovem e esperou que ele
viesse do Grande Deserto com as pessoas que ele trouxe,
para o capturar. O falso relatório, assim como o julgamento,
eram apenas embustes para o apanharem legalmente, res-
pondeu. Mas porquê, Nicolau? Não bastava prendê-lo ou
assassiná-lo, inquiriu, cada vez mais confusa.
Segundo o que apurei, quando Samuel esteve no
Grande Deserto, o nosso líder mandou agentes para tentar
desafiar os seus limites e descredibilizá-lo, perante as pes-
soas que encontrava pelo caminho. Assim que se apercebeu
de que era impossível, colocou um dos nossos agentes autó-
matos, infiltrado no seu grupo, para tentar dividi-lo ou arran-

562
O Evangelho do Alquimista

jar alguém que o traísse. Por isso é que nenhum dos nossos
agentes e guardas o prenderam quando ele entrou na cidade:
esperaram que ele entrasse, para desviarem e corromperem
os seus seguidores e o capturarem em terreno aberto. O resto
já tu sabes, concluiu.
Nicole deu um murro na mesa e saiu abruptamente
da sala, como o vento. Onde vais, perguntou Nicolau. Até à
praça, vamos, ordenou, levando a pasta consigo.
Os dois agentes desconheciam, por completo, a revi-
ravolta que sucedera depois da condenação e execução do
Alquimista. Enquanto passavam de carro pela praça foram
apupados, e a sua viatura, pontapeada e agredida de todas
as maneiras pelos populares, furiosos com a presença de
alguém como eles – representantes de um poder que os re-
primira durante séculos. Quando o sábio se aproximou da
viatura dos dois agentes a multidão enraivecida afastou-se,
evitando-se o pior. Samuel ergueu os braços, olhando para
ambos os lados em sinal de paz e de silêncio. Todos assen-
tiram.
Nicole e Nicolau saíram do automóvel espavoridos e
com os joelhos a tremerem de medo. A presença do profeta
vivo e fora da VHCruz deixou-os estupefactos. Nicole foi
a primeira a aproximar-se do Alquimista, com a pasta azul
que Nicolau lhe trouxera horas antes, entregando-a ao sábio.
Os discípulos quedaram-se apreensivos e cautelosos. Era...
era mentira! Era tudo mentira! Fomos enganados! Fomos
todos enganados, disse Nicole, ao mesmo tempo que se vi-
rava para a turba que a rodeava. Zarat enganou-nos a todos,
fazendo-nos acreditar que este homem era nosso inimigo
quando é o nosso... salvador! A profecia do Oráculo do Des-
tino não fala de nenhuma catástrofe provocada pela vinda
deste homem, mas de um tempo novo onde pessoas, como o
nosso Líder, não têm lugar, disse em plenos pulmões. Este
documento, Samuel, prova a sua inocência, concluiu.

563
Tiago Moita

Samuel deu apenas uma vista de olhos de relance pelo


conteúdo da pasta e devolveu-a a pasta à agente. Eu sei e
sempre soube disto, Nicole. Zarat, por ignorância e medo,
nunca compreendeu o Oráculo e pensou que, eliminando-
-me com uma crucificação, ia interromper o cumprimento
da profecia, mas enganou-se, e a prova é que ressuscitei, de-
clarou. Já... entendi! Escute: eu posso ajudá-lo a si e aos seus
companheiros. Eu e o meu nam... digo, colega, descobrimos
uma passagem secreta que vos dará acesso ao Palácio da
Montanha Mágica. Através dela, podereis passar desperce-
bidos, disse a inspectora-chefe.
E como é que podemos confiar em si? Não foi você
que prendeu o nosso mestre, interpelou Jordão. A minha pre-
sença aqui é prova mais do que suficiente. Acham que se
eu, e o meu colega, estivéssemos do lado de Zarat, vínha-
mos até junto do seu principal inimigo e revelávamos o que
acabámos de revelar, questionou. Os discípulos assentiram,
acreditando na explicação da agente.
– Para o Palácio da Montanha Mágica! Vamos derru-
bar Zarat de uma vez por todas! – disse um dos populares,
empolgado.
Nesse mesmo instante, uma gigantesca massa huma-
na, sedenta de vingança e ódio contra o principal responsá-
vel pela repressão, corrupção e mentira em todo o planeta,
correu em direcção à residência oficial de Zarat. Samuel,
Magdala e os seus discípulos, seguiram os dois agentes por
um caminho diferente, fazendo corta-mato por um atalho,
conhecido de Nicolau, para chegarem mais rapidamente ao
palácio.
Nicole e Nicolau pararam junto a um pequeno bus-
to a poucos metros do palácio. Nicole puxou o nariz dessa
peça, revelando uma escadaria em espiral, debaixo do chão.
O aspecto daquela passagem secreta parecia a entrada do
inferno: Entraram.

564
O Evangelho do Alquimista

Após meia hora de descida, os dois agentes, segui-


dos pelo profeta, a sua companheira e os discípulos, abriram
uma porta, escondida atrás de uma coluna jónica. Era o es-
critório de Zarat – vazio.
Num dos armários, encontram metralhadoras e pisto-
las. Nicolau apressou-se a distribuir as armas pelos discípu-
los. Samuel recusou, argumentando conseguir destruir Zarat
de uma outra maneira. Os dois agentes assentiram.
Tanto os discípulos como Nicole e Nicolau iam dispa-
rando contra os soldados da Guarda Zaratista que encontra-
vam pelo caminho, eliminando-os, um a um, sem piedade.
Samuel sentira uma premonição e escapuliu-se por um dos
corredores. Tenho de cumprir o meu destino, sussurrou para
Magdala, beijando-a, antes de a deixar. A antiga prostituta
aquiesceu e deixou-o seguir o seu caminho.
A poucos metros dos aposentos de Zarat, deram de
caras com Ptolomeu, Metello e todos os conselheiros do se-
nhor de Distopia. O combate ia começar.

565
CENTO E VINTE E DOIS
Jamais imaginaria um cenário como aquele. Atrás da
cortina de uma das janelas do seu gabinete, Zarat assistia
à invasão do seu quartel-general por milhares de populares
e desertores do exército distopiano e da Guarda Zaratista.
Multidões sedentas de vingança derrubavam os portões e
escalavam os muros que ladeavam o Palácio da Montanha
Mágica, como se estivessem a assaltar a Bastilha. A sensa-
ção de ver aqueles em quem depositara toda a sua fé e em
cuja lealdade acreditara a atraiçoarem-no, assaltando a sua
casa, daquela maneira, fê-lo sentir um misto de tristeza e
revolta: encontro.
Ptolomeu deixara Metello e os outros líderes dos po-
vos de Distopia entregues aos discípulos do Alquimista e
fora ao encontro do seu amo. Senhor, trago-vos más notí-
cias, os..., disse, antes de ser interrompido por Zarat, absor-
vido pelos seus pensamentos em voz alta. Como foi possí-
vel, Ptolomeu? Quanta ingratidão! Depois de tudo o que fiz
por amor aos homens, declarou, com a voz amarga e febril,
apertando com força um dos cortinados da janela. Ptolomeu
avançou, colocando uma das mãos no ombro do senhor de
Distopia. Senhor, os discípulos do profeta conseguiram en-
trar no Palácio. Metello e os nossos líderes tratarão deles.

567
Tiago Moita

E o Alquimista, perguntou Zarat. Desapareceu, mas iremos


encontrá-lo. Não tardará e cairá outra vez nas nossas mãos,
respondeu o conselheiro, confiante. Eu sei muito bem para
onde se dirige. Ptolomeu, ordenou o senhor de Distopia.
Sim, Grande Líder, exclamou o conselheiro, endireitando-
-se. Acciona as defesas internas do palácio e contacta com
os meus homens nos quartéis para que se dirijam a Distopia
o mais depressa possível. Quero esta rebelião esmagada sem
misericórdia, ordenou Zarat. Assim o dizeis, assim será fei-
to. A misericórdia pertence aos fracos, respondeu, inclinan-
do-se em sinal de respeito. Exactamente. Agora vai e deixa
o profeta por minha conta, ordenou, ao mesmo tempo que
desaparecia por uma passagem secreta, por trás de um gi-
gantesco quadro a óleo.
A resistência das forças leais a Zarat começava a fra-
quejar perante o inimigo. Alguns dos soldados e guardas
tinham sido mortos pelos desertores e populares; outros, ti-
nham-se rendido, preferindo poupar a própria vida.
Ptolomeu chegou ao bunker secreto do palácio. O
Grande Líder ordenou que accionassem as defesas internas
do palácio. Temos de esmagar esta rebelião imediatamente,
ordenou. Um dos membros da Guarda aproximou-se do
conselheiro. Mas, senhor, eles são milhares e nós somos
menos de trezentos! Mesmo que accionemos as defesas,
não somos suficientemente numerosos para, respondeu com
reticências, antes de ser interrompido pelo braço direito de
Zarat. Quando pusermos a funcionar as defesas, diminuire-
mos o número dos rebeldes. Executem a ordem e contactem
com todos os quartéis do exército e da guarda nos arredores
da cidade, para que venham em nosso auxílio. Zarat quer
ver esta revolta subjugada sem piedade, ordenou, furibundo.
Nenhum dos guardas se atreveu a contestá-lo. Para sorte de
Zarat, o bunker era o único local em Distopia que possuía um
poderoso gerador que activava não só as luzes, como tam-

568
O Evangelho do Alquimista

bém as suas defesas electrónicas internas, a fim de combater


quaisquer invasores. Os contactos com os quartéis tinham
começado. As defesas tinham sido activadas. O próprio pa-
lácio ia entrar numa luta sem igual pela sua sobrevivência.
Zarat saíra de uma passagem secreta, oculta numa es-
tátua, encontrando-se num luxuoso átrio. Ao fundo daquele
espaço, vislumbrou um rosto familiar. É este o homem que
deixou a sua pátria e o lago da sua terra natal com trinta
anos e foi para a montanha, questionou Samuel. A pergun-
ta teve o efeito de uma bala disparada; passou ao lado do
senhor de Distopia. Eu desci sozinho a montanha e deixei
a minha maior dádiva para os homens: anunciei-lhes os
seres para além do bem e do mal. Os super-homens, disse
Zarat com uma afirmação de efeito igual à do profeta; pas-
sou de raspão. O teu super-homem só existiu na tua mente,
declarou o sábio. Existo, logo penso. Foram as tuas mentiras
que o mataram, retorquiu Zarat. As palavras do seu inimigo
passaram de raspão pelo pescoço do profeta. Verdade? Pois
eu encontrei, no meu percurso até Distopia, mais super-ho-
mens – e super-mulheres – que se transcenderam quando
tomaram consciência do amor que existe dentro deles, do
que tu com a tua filosofia, contrapôs. Essa afirmação atin-
giu-o no braço: faísca. Estás equivocado. Quem inventou a
máxima do amor-próprio fui eu e não tu, contra-argumen-
tou o senhor de Distopia. Samuel desviou-se. E esse amor é
uma verdade absoluta para ti, inquiriu o sábio. Zarat acaba-
ra de sofrer uma forte dor no ombro direito. Não existem...
verdades, nem factos... apenas interpretações. São ilusões
que fabricamos na mente e que depois esquecemos que são
ilusões. Por que lutas pelo desenvolvimento de todas as fa-
culdades da mente humana? Desenvolvê-las significa au-
mentar a anarquia, declarou Zarat. Esta afirmação atingiu o
ombro esquerdo de Samuel de raspão. Se a verdade é para ti
apenas uma interpretação, por que é que tanta gente morreu

569
Tiago Moita

por tentar interpretar a tua verdade de maneira diferente


da tua? Se o facto é para ti uma ilusão, por que é que ig-
noravas – e até incentivavas – a repressão e a censura nos
bairros da tua cidade e em todo o planeta? Não eras tu que
dizias amar os homens, perguntou. Zarat fora atingido no
peito e começou a soltar faíscas no tronco e no pescoço.
Tenho... mais amor... pelos homens... que Deus! O Homem
é uma corda sobre o abismo, estendida entre o animal e o
super-humano. Por isso é que anunciei o Último Homem:
só ele pode descobrir a felicidade e partilhá-la com o mun-
do, respondeu. Samuel sentiu uma espécie de tiro de ras-
pão por cima da cabeça. E como pode esse Último Homem
partilhar aquilo que nunca sentiu dentro de si? Como pode
alguém amar no vazio? Como pode alguém vender a sua
alma e ter o desplante de chamar às religiões o ópio do
povo, exclamou. Zarat fora atingido no lado esquerdo da
cabeça com aquelas palavras e soltara um braço. Todo o
seu corpo começava a descarnar e a revelar filamentos e
chapas metálicas. As...religiões... são o ópio... e a menti-
ra... de Deus... na boca... dos fracos. Só... os mais fortes...
compreendem... isso, respondeu. As palavras do senhor do
planeta É faziam ricochete pelas paredes do átrio; quanto
mais dizia, mais era atingido por elas. Samuel, incólume,
prosseguiu. E como podem esses fortes compreender o mal
se não sabem o que é o bem, interpelou. As palavras do
profeta atingiram os joelhos de Zarat. Metade do seu corpo
era afinal mecânico e soltava faíscas por todos os lados. O
Homem... está... acima... do bem... e do mal. Deus... está
morto... e o Homem... é livre, respondeu, com um andar
embriagado e a cabeça a dar voltas constantes de trezentos
e sessenta graus. Samuel, impiedosamente, questionou-
-o mais uma vez. Livre para quê, Zarat? Se eliminarmos
Deus, o Homem fica completamente vazio, afirmou o sá-
bio. As últimas palavras do profeta fizeram Zarat perder o

570
O Evangelho do Alquimista

último braço e soltar ainda mais faíscas. As palavras saíam


telegrafadas da boca do inimigo do Alquimista.
Deus está morto... o Homem é livre... Deus está mor-
to... Deus está morto... Deus... Deuuus, declarou, num tom
cada vez mais grave, até sucumbir e explodir, estilhaçando-
se em dezenas de pedaços de metal, filamentos e transístores.
O homem que mandara nos destinos do planeta e da cidade e
que dizia ter feito tudo em nome da Humanidade não passa-
va de um autómato. Não existe vida no vazio nem liberdade
sem amor-próprio, murmurou Samuel, aproximando-se do
que restava daquela máquina com rosto humano e apanhan-
do um pedaço de chapa amolgada com um nome escrito em
letras grossas.

ZARATUSTRA

571
CENTO E VINTE E TRÊS
O momento tinha chegado. Os discípulos do Alqui-
mista iam defrontar mais uma vez, os seus antigos líderes;
desta vez, com reforços. Otelo despiu a camisa, revelando
o seu corpo suado, e ofereceu-se para defrontar Metello.
Todos os restantes discípulos do profeta correram para
capturar os chefes dos povos dos principais bairros de
Distopia que, entretanto, se tinham posto em fuga. Dario
fora o único que não abandonara o artesão Makbar. Nico-
le e Nicolau tinham desaparecido: combate.
À volta do palácio, os mecanismos de defesa interna
da residência de Zarat provocavam danos aos invasores.
Dezenas de pessoas sucumbiam ou ficavam feridas ao
enfrentarem toda a espécie de armas de fogo, setas e
puas, escondidas em alçapões, e fogo grego disparado de
orifícios cavados nas paredes do palácio. No bunker, os
guardas tentavam, desesperadamente, entrar em contacto
com as bases militares que circundavam Distopia. Em
momento algum seriam capazes de imaginar que todas
elas tinham caído nas mãos dos tecno-rebeldes. Gaya,
a líder do lendário grupo rebelde apontara, sorridente,
uma besta a um dos atemorizados guardas. Ptolomeu
abandonou a sala.

573
Tiago Moita

Os confrontos e as perseguições entre os discípu-


los e os líderes dos povos de Distopia continuavam inces-
santemente. Lentamente, foram eliminando cada um deles
de forma muito peculiar. Depois de uma luta corpo a corpo
numa pequena sala de troféus e relíquias do palácio, Lean-
dro vencera Metheos, atirando-o contra uma lança pontiagu-
da, em riste, de um guerreiro africano. Rodrigo conseguira
desviar-se das setas envenenadas de Simon Beagle, logran-
do matá-lo, deitando abaixo a estátua de um macaco gigante
que o esmagara, sem piedade. Faustus, que apanhara Dhar-
ma e tentara estrangulá-la, tinha acabado por ser apanhado
por Magdala, que o atingira mortalmente com um tiro nas
costas.
Heitor defrontara Otto Gräss num duelo de espadas.
Era o momento das armas e não das palavras. Na biblioteca
privada de Zarat, Heitor apanhara-o desprevenido e fizera
desabar uma estante de livros no seu antigo mestre. Aquilo
que para Gräss tinha sido a sua vida, tornou-se a sua morte.
Gustavo tivera mais dificuldades. Saul Rabel vinha
munido com uma pistola bem melhor do que a dele. Por
três vezes, viu a morte à sua frente. Valeu-lhe a agilidade
e um ataque surpresa contra o chefe dos Averos, mercê de
um cofre de ouro com que esmagou o crânio do empresário
capitalista.
A ganância foi mais forte do que o medo. Zarco ten-
tara fugir com o máximo de dinheiro e outras peças valio-
sas que descobrira no palácio. Junto à escadaria, apanhara
um valente susto quando encontrou Jordão, armado com
um gancho, e tropeçara pela escadaria abaixo, acabando por
morrer de pescoço partido.
Adriano conseguira encurralar Simone Dumonde
numa varanda. Desesperada, tentou convencê-lo a suicidar-
-se, juntamente com ela. Enlouquecida e distraída, não se
apercebera de que o parapeito da varanda não tinha suportes

574
O Evangelho do Alquimista

e caiu, deixando o pavimento de um dos pátios do palácio


tingido por uma gigantesca poça de sangue. A instigadora
dos suicídios acabara por provar o seu próprio veneno.
Otelo e Dario começavam a ter dificuldades em en-
frentar Metello. O Comandante-chefe da Guarda Zaratista
e dos exércitos de Zarat era mais forte do que eles. Cada
murro que lhe davam era dez vezes inferior a cada murro
que recebiam daquela máquina de guerra humana. Quando
ambos caíram no chão e estavam prestes a sofrer um golpe
de punhos do seu adversário foram surpreendidos por quatro
tiros das pistolas de Nicole e Nicolau. O quarto tiro esface-
lou a cabeça do comandante como se tivesse sido atingido
por uma bala de canhão. Não morrera em combate como
desejara, mas perecera da pior maneira: atraiçoado por dois
dos seus agentes.
Nem todos tinham tido a mesma sorte. Isauro sofrera
alguns ferimentos graves, provocados pelos tiros de Graco.
Quando o líder dos Rebeleus o encontrou ferido, atrás de um
sofá, apontou-lhe a arma à cabeça. A traição paga-se caro,
disse Graco, antes de Jordão aparecer e lhe cravar uma foice
na veia jugular, ao mesmo tempo que esmagava a mão onde
o chefe do Bairro Rubro segurava a arma que tinha usado
contra Isauro. O pescador de Narvalis amparou o discípu-
lo ferido e retirou-o daquela divisão do palácio. Definhan-
do num lago de sangue, Graco consegue tirar uma pistola
miniatura do bolso e dispara contra Isauro, atingindo-o no
coração, quando este estava de costas. Um acto de cobardia
que o líder dos Rebeleus deixava como herança, antes de
soltar o último suspiro.
Todos os discípulos se dirigiram ao local de onde ti-
nham escutado o tiro. Ali chegados, encontraram Jordão,
amparando de joelhos e de olhos marejados, o sindicalista
vomitando sangue pela boca, numa mancha escarlate que
cobria o tronco inteiro do jovem. Rodrigo aproximou-se de

575
Tiago Moita

Isauro, tentando desesperadamente salvá-lo. Tudo inútil:


restavam-lhe apenas poucos segundos de vida. Quase sem
fôlego, conseguiu dizer umas breves palavras a todos.
– Não se... preocupem... comigo. Salvem... o mestre...
e fujam... de Distopia. Não temam... por mim... porque eu...
encontrei... a luz.
Com apenas dois dedos, Jordão fechou as pálpebras do
jovem discípulo, engolindo as lágrimas e o luto, juntamente
com os seus colegas. Juntos, fecharam os olhos e pousaram
as mãos direitas no coração do malogrado sindicalista, que
tinha levado o profeta a cumprir a profecia e que agora par-
tia para uma outra dimensão que só conhecera através das
palavras do Alquimista. Nem o silêncio disfarçava o luto
daquela tragédia.

576
CENTO E VINTE E QUATRO
O cenário tinha mudado de figura. Os jovens e as
crianças, índigo e cristal, que tinham conseguido infiltrar-
-se no bunker secreto do palácio, hipnotizaram, através do
pensamento, os agentes da Guarda Zaratista que trabalha-
vam naquela divisão subterrânea. Num ápice, todos os me-
canismos de defesa interna da residência do homem mais
poderoso do planeta voltaram aos seus lugares e permitiram
a invasão total da maior casa de Distopia pelos povos que se
tinham revoltado contra a opressão daquele tirano.
O átrio onde Samuel defrontara Zarat, ou melhor, Za-
ratustra, não tardou a encher-se de gente. Vindas dos quatro
cantos do palácio, milhares de almas, acompanhadas por
Magdala e pelos discípulos do profeta, chegavam ao lugar
onde o Alquimista defrontara o Grande Líder de todos os
Distopianos e do Planeta É. Samuel continuava a meditar
sobre a placa com o verdadeiro nome do mítico profeta,
quando ouviu o intenso e ensurdecedor murmúrio da turba
penetrando no local da contenda. Resignado, atirou a placa
amolgada para o chão, juntando-a ao que restava do autó-
mato.
Magdala foi a primeira a abraçar e a beijar o seu ama-
do e a última, de todas as pessoas ali presentes, a assistir

577
Tiago Moita

àquela descoberta. A revelação do verdadeiro nome do se-


nhor da cidade teve, entre os presentes, o mesmo impac-
to de uma bomba atómica. Zarat não só era um autómato e
fundador de Distopia como também era Zaratustra: o mítico
profeta que anunciara a libertação do Homem e a morte de
Deus; aquele que dizia que todos os seres humanos deviam
ser super-homens e que anunciara o Último Homem. Alpha
e Ómega choravam copiosamente pela morte do senhor da
cidade. Não foram os únicos.
Ptolomeu surgiu entre a multidão, que se afastou à
passagem do principal conselheiro de Zaratustra, para que
este pudesse ver, com os seus próprios olhos, o que deste
restava. A comoção embargou-lhe os sentidos e o equilíbrio,
provocando-lhe uma temporária sensação de vertigem. As
lágrimas falaram mais alto que a sua garganta à medida que
se aproximava e pegava em cada pedaço que restava do seu
amo. A emoção foi ainda mais intensa quando encontrou a
peça amassada. A sala respondeu com um silêncio asfixian-
te.
Era impossível esconder a verdade. Ele... ele nunca
foi assim. O amor que devotou aos homens cegou-o, a ponto
de não perceber que o vazio da Humanidade escondia a de-
cadência que o transformou naquilo que ele nunca foi, afir-
mou, sem parar de chorar.
Dharma estava perplexa. O quê? Então esse... robô,
já foi... um homem, exclamou. Sim... um homem acima do
bem e do mal, um verdadeiro profeta que uniu os homens e
os libertou de dogmas imbecis e ilusões inventadas por es-
píritos fracos e sacerdotes ignorantes e demagogos. Há mais
de dois séculos, a Humanidade tinha chegado a um impasse:
ou se salvava ou se autodestruía. Por duas vezes, o Homem
esteve perto de destruir a sua própria espécie e o planeta.
Foi então que, dos escombros das velhas civilizações, Zara-
tustra, mais um pequeno grupo de seguidores, fundou uma

578
O Evangelho do Alquimista

cidade e estabeleceu um governo mundial único, em que


todos pudessem viver em paz e seguir apenas filosofias
que não contrariassem o seu pensamento. Foi assim que
nasceu Distopia e o planeta baptizado como É, por sim-
bolizar o presente, uma vez que o passado era para ser
esquecido, segundo o Grande Líder.
Magdala continuava escandalizada com o que aca-
bara de ouvir. O quê? Será que eu ouvi bem? O nosso
planeta nunca se chamou É, exclamou. Ptolomeu assen-
tiu, cabisbaixo. O verdadeiro nome do planeta desapare-
ceu com o tempo. Zaratustra proibiu a revisitação do seu
passado e, por isso, ninguém descobriu o seu verdadeiro
nome.
Rodrigo aproximou-se de Ptolomeu. Mas... como é
que ele acabou... assim, interpelou, abismado. O conse-
lheiro principal do antigo senhor de Distopia por breves
segundos escondeu a cara, antes de responder. Quando
Zaratustra e a maioria da Humanidade apagaram Deus da
memória e do coração, começámos a sentir uma enorme
angústia e um vazio terrível, que só foi colmatado quan-
do nos deixámos seduzir pelas maravilhas da Ciência e
da Tecnologia. O deslumbramento pelo consumismo e
pelo materialismo fez-nos desligar da Natureza, e iniciou
a destruição da Humanidade que existia dentro de nós.
Julgámo-nos livres de Deus, mas mais frios, arrogantes
e egoístas. Passámos a agir com indiferença e cepticismo
perante o quotidiano, a ponto de nos comportarmos como
autênticos autómatos: sem vida, sem prazer nem alegria;
amantes do superficial e do supérfluo. Numa reunião do
Conselho Magno de Distopia, Zaratustra, sem perceber
como nem porquê, deixou cair um dedo de uma das mãos
em plena sessão. Os melhores médicos foram chamados
para analisar aquele caso insólito e descobriram um fenó-
meno macabro, para o qual, não tinham qualquer expli-

579
Tiago Moita

cação: Zaratustra estava a transformar-se numa máquina,


uma sombra daquilo que tinha sido, uma caricatura da sua
filosofia, respondeu.
Rodrigo continuou a questionar o conselheiro. E o que
fizeram nessa altura, inquiriu. Os fundadores de Distopia fi-
caram aterrorizados com o que lhe estava a acontecer e ar-
quitectaram um plano: ordenaram aos melhores cientistas e
engenheiros da cidade que substituíssem o seu corpo e que
o transformassem num cyborg. Segundo os textos antigos, a
operação demorou cerca de quatro horas mas valeu a pena:
estava igualzinho ao Zaratustra original, menos numa coisa:
a memória. Conseguimos que ele não se esquecesse da sua
filosofia nem do pensamento contemporâneo, mas não con-
seguimos fazer com que ele se lembrasse do seu nome com-
pleto. Primeiro foi dizendo Zaratustr, depois Zaratus e parou
em... Zarat, respondeu Ptolomeu, recomeçando a chorar.
Samuel ajoelhou-se e pousou-lhe a mão no ombro.
Quem mais sabia disto, perguntou. Ptolomeu fixou-o, reer-
guendo a cabeça, sério. Apenas os líderes dos bairros da
cidade, Metello, Alpha, Ómega e eu. Nenhum de nós se
atreveu a contar este segredo e todos nós fizemos tudo para
impedir o cumprimento daquele maldito oráculo, que o nos-
so Grande Líder descobrira, numa gruta a norte do planeta,
e que revelava... a sua derrota... e o fim da sua filosofia e do
mundo contemporâneo, tal como o conhecemos. No prin-
cípio, pensámos que o oráculo não passava de uma lenda e
chegou-se mesmo a pensar destruir os documentos da pro-
fecia. Porém, quando há vinte e sete anos surgiu o grande
anel cósmico na nossa galáxia e tu nasceste, percebemos que
o tempo estava contra nós. Tínhamos como primeira solu-
ção eliminar-te, mal nascesses, mas Zarat, perdão, Zaratus-
tra, não quis dar-nos ouvidos e resolveu atrair-te para uma
armadilha chamada VHCruz. Bem tentei dissuadi-lo dessa
ideia, mas não me deu ouvidos. O resultado... está à vista,

580
O Evangelho do Alquimista

respondeu, cobrindo o rosto para esconder a vergonha que


lhe corroía o corpo.
Todos olharam com espanto e desilusão para o que
restava dos restos de Zaratustra. Ninguém verteu uma só
lágrima ou pronunciou uma só palavra perante aquela reve-
lação, feita pelo conselheiro principal do antigo senhor de
Distopia. Retiraram-se apenas em silêncio do palácio.
A mentira não tinha direito a luto.

581
VIII
UM NOVO COMEÇO

“Não importa quantos passos você deu para trás. O


importante é quantos passos você vai dar para a frente.”

Provérbio chinês
CENTO E VINTE CINCO
Chegara o momento de abandonar o passado. A desi-
lusão provocada pela revelação da verdadeira natureza de
Zaratustra fez com que milhares de simpatizantes e mili-
tantes da sua filosofia queimassem todos os seus livros nas
praças de Distopia. Vistas do horizonte, pirâmides de luz,
com labaredas rubras e douradas, capazes de tocar o céu,
provocavam um intenso fumo negro e um cheiro a papel
queimado. Nessas fogueiras gigantes, eram também atirados
retratos e todo o tipo de merchandising a respeito do homem
que prometera um sonho para a Humanidade o qual acabara
num enorme pesadelo. O despertar tivera o sabor da indife-
rença e, ao mesmo tempo, da esperança.
O Palácio da Montanha Mágica tivera o mesmo des-
tino do seu principal morador. Mal a última pessoa saíra da
residência oficial do antigo senhor de Distopia, o palácio
desmoronara-se como se fosse vítima de uma implosão. A
montanha de onde descera Zaratustra acabara por ser a sua
sepultura.
Dissipada a nuvem de pó, resultante do desmorona-
mento, Samuel reuniu todas as pessoas que o tinham acom-
panhado. Povo de Distopia, chegou o momento da partida.
Dentro de três meses este planeta será alvo da colisão de

585
Tiago Moita

um asteróide, que levará à destruição da vossa cidade e do


mundo, tal como o conhecestes. Precisamos, quanto antes,
de sair da cidade e dirigirmo-nos para Sul. Conheço um vale
cheio de grutas, a meio caminho, onde estaremos a salvo
dessa catástrofe, concluiu. Um clamor estrepitoso instalara-
-se entre a multidão.
Salomão aproximou-se do profeta. Então sempre é
verdade aquilo que eu, e os meus colegas, vimos a aproxi-
mar-se do planeta. Meu Deus! Que irá ser de nós, exclamou,
entrando em pânico. Samuel colocou-lhe a mão no ombro.
Calma, Salomão. Eu disse: será o fim do mundo tal como o
conhecestes, não o fim do mundo em si. Depois da colisão
do asteróide e da destruição de Distopia, a galáxia comple-
tará o seu ciclo e sairá de uma noite de três luas para entrar
num novo amanhecer, respondeu o sábio.
E continuou. Surgirá uma estrela que irá juntar-se à
cruz cósmica, portadora de uma luz sem brilho, nem tempe-
ratura, que se espalhará por toda a galáxia, juntamente com
um enorme feixe luminoso, emitido a partir do centro do
nosso sistema galáctico. Ambas as luzes transmutarão o ego
e sincronizarão todos os seres vivos para uma transforma-
ção incondicional interior, produzindo novas realidades e
oportunidades de que irão romper as suas limitações, atra-
vés do pensamento. Os seres humanos que, voluntariamen-
te, encontrarem o estado de paz interior, elevando a energia
vital, levarão a sua vibração interior do Medo para o Amor
e poderão expressar-se através do pensamento e, com ele,
florescerá um novo sentido para a vida, disse, sentando-se
num dos bancos de uma praça.
Leandro aproximou-se de Samuel. O que o mestre
acabou de nos dizer não vai ao encontro daquilo que falou
na última ceia sobre o caminho da Humanidade, interpelou.
O Alquimista respondeu com um sorriso. Aquilo que vos en-
sinei na nossa última ceia em Luxan explica para onde vai a

586
O Evangelho do Alquimista

raça humana nos próximos anos. Só alcançareis a ilumina-


ção se puserdes em prática tudo aquilo que vos ensinei – e
experienciareis – numa única maneira inconsciente de ser.
Uma vez interligados todos esses ensinamentos e experiên-
cias com a vossa consciência, ireis verificar uma sensação
de alerta constante e expectativa, enquanto avançardes para
o vosso verdadeiro destino que vos ligará ao mistério da
vossa existência.
Ptolomeu aproximou-se de Samuel de espírito apazi-
guado, depois de tudo aquilo a que assistira. Samuel, quero
que saibas que não vos impedirei de deixar Distopia. Tal
como tu, Salomão está a dizer a verdade: a cidade está per-
dida, assim como o mundo que nós conhecemos. Não faz
qualquer sentido reter quem já tomou a decisão de partir.
Vou dar ordem à Guarda Zaratista para abrir as portas da ci-
dade e preparar o êxodo dos nossos povos, rumo ao seu novo
destino. Boa sorte, Alquimista, disse cumprimentando-o, re-
signado e pragmático. Samuel assentiu, congratulando-se
com aquele gesto de Humanidade por parte daquele homem.
Vem connosco, Ptolomeu. Pessoas com a tua inteligência e a
sagacidade são necessárias no mundo que vai nascer, depois
do cumprimento do resto da profecia, declarou. Silêncio.
Ptolomeu demorou dez segundos para responder à proposta
do profeta. Do antigo conselheiro de Zaratustra, saiu uma
frase vinda do âmago da sua alma dilacerada.
– Eu não pertenço ao teu novo mundo nem sou capaz
de me adaptar a ele. – respondeu, virando-lhe as costas, sain-
do daquela praça.
Rodrigo tentou ir atrás dele. Samuel impediu-o. Ele
fez a sua escolha, Rodrigo. Nunca obriguei ninguém a se-
guir-me nem nunca obrigarei, mas, em verdade te digo: é
mais fácil um elefante saltar para a outra margem de um
rio do que um ser humano aceitar o céu que já se encontra
dentro dele.

587
Tiago Moita

Ptolomeu prosseguiu a sua marcha solitária em direc-


ção a um destino traçado na sua mente, depois de ter visto o
que restara do seu ídolo e amo, reconhecendo o fim do sonho
de Zaratustra. Era um homem destroçado e amargurado, que
aspirava apenas entregar-se ao mesmo fim da cidade que o
vira nascer.
A multidão abriu caminho em silêncio ao antigo con-
selheiro, virando-lhe as costas à sua passagem. Não espera-
va ele outra atitude daquelas pessoas nem homenagens ou
congratulações por tudo o que fizera pela cidade. A morte
era agora, para ele, uma hora adiada.

588
CENTO E VINTE E SEIS
O mundo caminhava para o caos de diversas manei-
ras. Distopia fervilhava de medo e pânico com a notícia da
chegada do asteróide assassino ao planeta. Tinham passado
três meses e ainda havia pessoas para sair de cada bairro
daquela cidade. A fuga e o absurdo andavam de mãos dadas
naquela metrópole, destinada a ser varrida do mapa.
A loucura juntara-se ao apocalipse que já emergia nas
mentes dos Distopianos. Em Extasis, dezenas de Niilisteus
entregavam-se à comida, ao álcool e à droga ao invés da
partida. Preferiam afogar os corpos e as mentes no vício a
aceitarem a realidade que iria abater-se sobre eles, rindo de
todos aqueles que procuravam salvar a pele, ridicularizando-
-os. Em Anguscious, dezenas de Dúbios suicidavam-se das
mais variadas maneiras ou tentavam encontrar na literatura
e nas manifestações artísticas, espalhadas por todo o bairro,
a tábua de salvação para as suas vidas. Em Cornucópia, fa-
mílias, banqueiros e empresários Averos procuravam pôr a
salvo cartões de crédito, acções da bolsa e toda a espécie de
activos e bens de luxo, antes de pensarem no mais impor-
tante. Em Rubro, burocratas e militantes Rebeleus tentavam
acautelar todos os documentos, bandeiras e panfletos revo-
lucionários, assim como os livros dos seus mais ilustres pen-

589
Tiago Moita

sadores e estadistas, além do fruto dos saques que tinham


feito em alguns dos bairros vizinhos. Em Dialéctica, filólo-
gos, escritores e poetas procuravam salvar livros e todos os
registos fotográficos de grandes frases, poemas ou citações,
espalhadas pelas paredes do seu bairro, antes de partirem.
Em Selectus, geneticistas e cientistas Seleceus tentavam
preservar toda a espécie de sementes e amostras de ADN de
animais e bancos de sémen da sua raça. A salvação da espé-
cie humana e vegetal estava acima da sua própria existência
e, em Cogito, dezenas de Methódicos tentavam salvar livros,
réguas, esquadros, compassos, barómetros e bússolas. Fugir,
sim, mas nunca perder a razão e a lógica.
Ptolomeu assistia a toda aquela babel em chamas dos
escombros do que tinha sido uma das varandas do Palácio
da Montanha Mágica. Numa das mãos, soerguia o crânio
robotizado de Zaratustra, meditando sobre o que seria, para
o Homem, a vida e a morte, perante o desespero e a loucu-
ra dos Distopianos. Qual Hamlet, extraído de uma qualquer
peça shakespeariana, ou Nero, usando o silêncio como harpa
dourada, perante uma Distopia transformada em Babilónia,
prestes a ser reduzida a cinzas.
No maior observatório da metrópole, alguns dos cien-
tistas que tinham trabalhado com Salomão, preferiram ficar
na cidade, tal como o antigo conselheiro principal de Za-
ratustra. A destruição da Humanidade no ser humano e na
biosfera do planeta tinha um preço que ultrapassava, segun-
do eles, qualquer código de honra. Apenas o remorso que
os corroía, por tudo o que tinham feito, iria para o túmulo,
juntamente com Distopia.
Subitamente, um aviso. Nas zonas mais prováveis – e
improváveis – do planeta, sucediam-se catástrofes naturais
em cadeia, como peças de um jogo de dominó em queda.
Erupções vulcânicas e terramotos revelavam a cedência da
crosta do planeta, devido à excessiva acumulação de neutri-

590
O Evangelho do Alquimista

nos do sol no seu núcleo, inflando como um balão, até che-


gar à superfície do planeta. Fendas gigantescas rasgavam o
solo, engolindo vilas e aldeias, em direcção à cidade que se
tinha apoderado do planeta.
Contagem decrescente.
O asteróide entrara na estratosfera do planeta, lar-
gando pedaços de rocha, transformados em meteoritos, que
atingiam o solo e muitos dos edifícios da cidade de forma
cega e brutal. O pânico instalara-se nas ruas. Ptolomeu solta-
ra uma gargalhada histérica como se estivesse possuído pela
loucura. Os cientistas fecharam os olhos e mantiveram-se
imobilizados, aos pares, junto às entradas e saídas do obser-
vatório. Centenas de populares batiam freneticamente nos
portões que ladeavam o edifício, em busca de refúgio: ne-
nhuma resposta.
Colisão.
O impacto do asteróide tivera o efeito de vinte mi-
lhões de bombas atómicas. Uma nuvem de poeira e luz in-
tensa varria a superfície, como um tsunami de fogo e cinza,
eliminando qualquer espécie de vida naquele planeta, a uma
velocidade alucinante. No momento em que a nuvem che-
gou a Distopia, fendas gigantescas provocadas por terramo-
tos e rios de lava em fúria, convergiam em direcção à cidade,
devastando-a da forma mais cruel e demolidora, alguma vez
testemunhada pelo universo.
Ninguém sobrevivera àquela catástrofe. Distopia es-
tava perdida para sempre. A única cidade do planeta passara
de realidade a mito.

591
CENTO E VINTE E SETE
O tempo é, sem dúvida, uma ilusão da mente quando
esta se dispõe a criar ou entregar-se ao serviço da alma. Ti-
nha passado um ano desde a partida de Samuel, Magdala, os
seus discípulos e os povos que os seguiram de Distopia. O
caminho em direcção ao sul fora árduo e traiçoeiro. Todos
os que tiveram a lucidez e a coragem para largarem tudo e
emigrarem para um mundo por desbravar perderam a noção
do número de vezes que tinham ficado com o coração nas
mãos, ao serem confrontados com tantas emoções, perigos e
calamidades que apanharam ao longo da sua jornada. Ape-
nas os fiéis, acreditavam numa estrela a brilhar, à sua espera
do outro lado do horizonte.
Muitos pareciam não confiar nas suas capacidades de
resistência e sobrevivência. Quando chegaram às grutas de
Galgotan e viveram em cativeiro durante doze ininterruptos
meses, no momento da colisão do asteroide, de modo algum
imaginaram estarem vivos para poderem contar a História,
nem sequer pensaram que houvesse comida, bebida, mantas
e medicamentos para todo aquele mar de gente que tinha
seguido o profeta do Oráculo do Destino. Apenas recorda-
vam o gigantesco clarão que tinham observado no horizon-
te, quando aquela gigantesca rocha vinda do espaço chocara

593
Tiago Moita

com o planeta, e das poucas pessoas que não tinham so-


brevivido ao impacto daquele clarão dantesco, por não te-
rem fugido a tempo para o interior das grutas, e da cidade
que nunca mais iriam voltar a ver. Poucos pensaram que
o milagre da multiplicação de tantos víveres para aquele
período de tempo se devia a um valor que não conheciam,
mas que fizera toda a diferença naqueles tempos de priva-
ção: solidariedade.
Enquanto estiveram enclausurados nas grutas, Sa-
muel e os seus discípulos ofereceram mais do que assis-
tência e solidariedade a todas aquelas pessoas. Transmi-
tiram também, com mais tranquilidade e profundidade,
todos os conhecimentos do Alquimista e fizeram expe-
riências e meditações em grupo para que cada um tirasse
as suas conclusões a respeito de cada pedaço de sabedoria
do profeta. Volvidos doze meses, nenhum indivíduo tinha
qualquer dúvida sobre o que os discípulos e o povo que
seguira Samuel desde o Grande Deserto até Distopia, ti-
nham aprendido e, essencialmente, remembrado.
Samuel mandara Jordão e Otelo para o exterior.
Queria certificar-se do aspecto do planeta e, sobretudo,
da atmosfera, passado todo aquele tempo. Ansiedade. O
desejo de liberdade e de regresso à superfície estava ago-
ra depositado no testemunho daqueles dois homens. Uma
hora depois, ouviram-se ecos de passos, aproximando-se
da multidão: suspense.
– O sol brilha num céu de prata e o ar é puro como
a respiração de Deus sobre o mundo! Podemos sair! –
disse Jordão, com um sorriso dourado e a alegria de uma
criança.
A multidão recebeu a notícia com júbilo e lágrimas
de gratidão, abraçando-se e beijando Samuel e os seus
discípulos. Todas as diferenças e preconceitos eram agora
uma memória desvanecida do passado.

594
O Evangelho do Alquimista

Samuel e o povo que o seguia prosseguiram viagem.


Os primeiros raios de sol nos rostos de todas aquelas pessoas
causaram uma ligeira dor e impressão nos seus olhos durante
alguns minutos, antes de terem sido recebidos com um beijo
do astro-rei sobre os seus corpos iluminados. A resplande-
cência do sol confundia-se com a intensidade do brilho das
suas auras multicolores. Nenhum homem ou mulher, idoso ou
criança, deixava de lavrar um sorriso de lua àquele presente
da natureza e do universo.
Jordão aproximou-se do profeta. Mestre, sabemos pe-
los textos sagrados e pelas suas palavras que o mundo já teve
ciclos de crescimento e destruição. Será que ele vai chegar um
dia ao fim, interpelou. Magdala ficou aborrecida com aquela
pergunta e preparava-se para não deixar que incomodassem o
seu homem, mas foi impedida pelo próprio amor da sua vida,
disposto a responder à pertinente pergunta do pescador de
Narvalis. O mundo estará sempre em perigo, se considerares
essa hipótese muito real. Tudo aquilo a que se resiste, persiste
e das vossas vidas só desaparece aquilo que não aceitais. Não
o podemos evitar. Todos os acontecimentos que visualizais
estão a acontecer no Aqui e Agora. Esse momento divino que
antecede a vossa percepção e criado pelo vosso pensamento é
enviado para vós antes de tomardes consciência da sua exis-
tência. Esse presente é a maior dádiva criada pela Fonte, antes
de a luz ter chegado até vós, respondeu.
E continuou. Vós não estais fora da Fonte; fazeis parte
d’Ela. Detendes o poder de escolher, entre todas as experiên-
cias que se passaram ou desejais vir a passar, aquelas que op-
taram por experienciar agora. Podeis transformar tudo o que
sois e mudar o vosso planeta, sem nunca ameaçardes a vossa
faculdade de conhecerdes e experienciardes O Que Sois, con-
cluiu.
As palavras do profeta persistiram nas mentes de todos
aqueles que tinham ouvido a resposta que o sábio dera a Jor-

595
Tiago Moita

dão. Passados quatro dias de viagem, depararam com uma


cordilheira. Samuel aproveitou a chegada àquele lugar para
falar mais uma vez ao povo que bebia das suas palavras e
ensinamentos.
– Todas as experiências humanas estão a acontecer ao
mesmo tempo com as pessoas do vosso planeta. Vivemos
um momento em que escolhemos acreditar e identificar me-
lhor as nossas intenções, tendo em conta que cada ideia é
uma memória fugaz da vossa intenção original e da forma
como gostaríeis que as vossas vidas evoluíssem. Sabemos
que as nossas experiências e desafios individuais acontece-
ram ao longo da História do despertar da consciência hu-
mana, podendo agora observar o caminho através do qual
temos tentado regressar à espiritualização da nossa dimen-
são física, graças à reencarnação e à descoberta da Vida De-
pois da Morte, que fez com que cada um de nós elevasse a
perspectiva do sentido e significado da vida humana de uma
forma muito elevada, afirmou.
E concluiu. Todos somos almas em evolução. Te-
mos um propósito positivo que podemos relembrar. Essa é
a verdadeira ética interpessoal; essa é a vossa missão. Ide
e espalhai por todas as pessoas que encontrardes no vos-
so caminho. Só assim melhorareis e alastrareis essa nova
consciência por todo o planeta, como um sopro de Deus no
coração de todos os seres do universo.
Assim pregava o Alquimista.

596
CENTO E VINTE E OITO
Ninguém se atrevera a ficar pelo caminho. Depois do
cataclismo que atingira o planeta, todos os aparelhos eléctri-
cos e electrónicos se tinham avariado devido ao feixe de luz
vindo do espaço. As bússolas tinham perdido completamen-
te o norte. Os passos do profeta eram o único mapa para se
conseguir sair daquele lugar íngreme e nervoso.
Andar em fila indiana, de cordas amarradas à cintura,
era a única solução possível. Samuel puxava por todos, como
um rebocador e um farol em dias de tempestade. A neve acu-
mulava-se cada vez mais e o frio, tal como a altitude, co-
meçava a dificultar a circulação sanguínea e a respiração.
O vento era o principal inimigo, assim como os caminhos
tortuosos das montanhas por onde passavam: bastava apa-
nhar uma rajada abrupta ou dar um passo em falso para pôr
em perigo toda aquela gente. Perto de uma das montanhas,
um homem escorregou e ficou suspenso sobre um abismo:
Aflição. O momento não era para entrar em pânico e urgia
rapidez e acção. Todos sabiam, de antemão, que bastava um
cair para que toda a multidão tivesse o mesmo destino. O
desafio estava lançado. Com sangue frio e mente positiva, a
turba que seguia o sábio começou, com o coração nas mãos,
a içar o pobre indivíduo. À terceira tentativa, conseguiram

597
Tiago Moita

trazê-lo de volta. Se existia alguma dúvida sobre o que o ser


humano é capaz de fazer para sobreviver, aquela prova de
fogo tinha-a dissipado, juntamente com o vento que assobia-
va mais forte do que um trovão.
Magdala tinha vomitado cinco vezes durante a traves-
sia daquela cordilheira. Para alguns, tal era devido à falta de
hábito. A companheira do profeta sempre fora uma mulher
da cidade e nunca estivera, tal como a maioria daquelas pes-
soas, habituada a enfrentar desafios tão perigosos e penosos
como aquele. Samuel amparara-a, vezes sem conta, dando-
-lhe sempre mais água e mantimentos do que o habitual. O
sorriso que escondia do resto do mundo que o seguia, cada
vez que tocava na barriga da companheira, revelava uma ou-
tra teoria para aqueles enjoos constantes.
Numa das montanhas por onde passavam, Samuel
apontou para uma fenda entre duas rochas e seguiu na sua
direcção. A fenda escondia uma gruta escura, como uma
noite sem estrelas nem lua. Mal entraram, os discípulos
acenderam archotes com pedaços de madeira e pedras de
sílex, que já haviam recolhido em viagens anteriores. A dez
metros de distância, depararam-se com uma abertura numa
parede traseira do túnel, com cerca de um metro. Todos se
inclinaram para a esquerda e rastejaram por ela. O caminho
era sempre a subir, em direcção a um minúsculo raio de luz
que se tornava cada vez mais intenso, à medida que dele se
aproximavam. A luz revelou uma abertura, de que o Alqui-
mista foi o primeiro a sair: espanto.
Um a um, Magdala, os discípulos e todos os que se-
guiam o profeta imitaram-no, ficando boquiabertos com o
que os seus olhos enxergaram. Diante deles, vislumbrava-
-se uma paisagem inimaginável: um vale agrícola rodeado
de enormes picos montanhosos cobertos de neve e um lu-
zidio céu azul. A temperatura era amena e, por todo o lado,
cresciam plantas verdes. À medida que desciam o vale co-

598
O Evangelho do Alquimista

meçaram a encontrar um enorme aglomerado de edifícios,


discretamente aninhados com a paisagem, feitos apenas de
luz. As divisões dos edifícios eram transparentes e autênti-
cos campos de força, criados a partir da meditação intensa
e incondicional de todos os habitantes. Alguns dos cidadãos
daquela cidade, feita de luz e cor, faziam uma vénia com
um sorriso, tão luminoso como a cidade em si. Samuel sen-
tou-se, em posição de Buda, numa espécie de praça. Todos
assentiram e seguiram o exemplo do sábio. Os habitantes e
as crianças índigo e cristal sentaram-se também atrás dele.
Bem-vindos a Shambhala. Trouxe-vos até aqui para
vos falar sobre a importância das novas gerações e do papel
da oração na revolução da evolução de que vos tinha falado
em Distopia. Como vos disse, todos estes jovens são diferen-
tes de nós: entraram em massa no vosso planeta com a con-
vergência harmónica e o regresso do sol azul para diferentes
tarefas. Os Índigos romperam com os sistemas estabelecidos
e alimentaram os seus talentos de pioneiros e líderes para
abrirem caminho aos Cristais, cuja missão será pacificarem
o novo mundo, depois da catástrofe, reconstruindo-o com
energias mais subtis e uma força interior prodigiosa, capaz
de elevar o nível energético da sociedade, afirmou.
E continuou. Tudo o que vos rodeia são campos de
energia, criados a partir do pensamento, neste caso, da ora-
ção. A Humanidade não poderá evoluir mais enquanto vós
não usardes, conscientemente, o poder da oração ao servi-
ço do vosso crescimento espiritual. Só o conhecimento dos
campos de oração poderá levar a cultura humana para um
patamar mais elevado da sua existência. Por isso, imitai o
que os monges e sacerdotes dos templos faziam. Preparai
cuidadosamente os vossos campos de oração para todas as
circunstâncias vitais do vosso universo e do novo mundo
que se aproxima.
Assim pregava o Alquimista.

599
Tiago Moita

Todos aqueles que seguiam o profeta, se deixaram


levar pela hospitalidade dos habitantes de Shambhala por
os terem acolhido como se fossem irmãos. Magdala correu
para os braços de Samuel, minutos depois de ter recebido
uma informação surpreendente, dada por dois dos seres com
quem tomara conhecimento. Tinha descoberto o segredo do
seu anel: Magdala era descendente da primeira mulher que
nascera no planeta e de um casal daquele paraíso de luz e
oração. As lágrimas e o sorriso solar anunciavam uma outra
boa notícia.
– Estou grávida!

600
CENTO E VINTE E NOVE
A estadia em Shambhala marcara, para todo o sempre,
as pessoas que seguiram o Alquimista. Toda aquela atmos-
fera de serenidade e sabedoria que ali se vivera encantara
todos os que tinham acompanhado o profeta. Naquele lu-
gar, todos falavam e escreviam fluentemente várias línguas;
absorviam a energia das plantas para se revigorarem e, ao
mesmo tempo, relaxavam, participando incondicionalmente
na activação dos campos de oração para manterem a cida-
de viva. Todos davam energia uns aos outros e preparavam
cada campo de oração para um nível cultural superior, como
se tivesse um significado mais profundo. Aqueles que atin-
gissem esse nível ajudavam os habitantes iniciados a moni-
torizarem-se e a ampliarem a energia a si mesmos. Naquela
cidade todos tinham um papel preponderante e cada estatuto
era manifestado pelo seu nível de energia e não pela con-
dição que possuíam. Naquela cidade, todos conseguiam vi-
sualizar as suas reencarnações e antever o futuro a partir dos
seus passados. Tudo o que o sábio do Oráculo do Destino
lhes ensinara fazia agora todo o sentido.
Samuel e a multidão que o seguia permaneceram em
Shambhala durante seis meses, partindo de seguida para o
sul do planeta, tal como tinha sido acordado com o profeta.

601
Tiago Moita

Apenas algumas pessoas escolheram voluntariamente ficar


naquele paraíso de luz: O Alquimista não os impediu e despe-
diu-se deles com um abraço caloroso.
O ventre de Magdala ia crescendo cada vez mais, à me-
dida que o tempo passava. Pela intuição e pela posição das
estrelas, os astrónomos e cientistas, que acompanhavam o
sábio, deduziam estarem cada vez mais próximos do sul do
planeta. Nas horas de descanso, Samuel encostava um ouvido
na barriga da sua companheira: bastava um ligeiro movimen-
to para o casal sorrir de felicidade. Três meses passaram como
uma flecha sulcando o vento, e também outras mulheres do
grupo do profeta começaram a sentir as primeiras dores de
parto. Toda uma geração se preparava para entrar num mun-
do que, um dia, seria seu. Perto de uma pequena cordilheira,
Magdala começou a sentir dores fortíssimas. O momento ti-
nha chegado.
Tal como fizera com Samuel no passado, Rodrigo ofe-
receu-se para auxiliar nos trabalhos de parto da companheira
do Alquimista. Espontaneamente, alguns enfermeiros e par-
teiras responderam ao apelo do médico: montaram uma tenda
improvisada, com uma marquesa no meio, para dar início ao
parto.
Fora da tenda, roíam-se unhas e faziam-se apostas sobre
o sexo da criança. Samuel, os restantes discípulos e algumas
centenas de pessoas que o tinham seguido desde Distopia,
meditavam e emanavam energia para o ventre de Magdala. –
Um fio de luz composto pela cor dos sete raios – divisão natu-
ral da pura luz branca que emana do coração de Deus, quando
este desce pelo prisma da sua manifestação – representando
cada um dos sete principais arcanjos do céu. A companheira
do profeta suava e gemia, ao mesmo tempo que arfava e fa-
zia força para parir o seu feto. Rodrigo acabou com as dores
dela, graças a uma pequena água-marinha, oferecida por uma
criança cristal, que enfiou sob as costas de Magdala: milagre.

602
O Evangelho do Alquimista

Todos aqueles que meditavam pelo êxito do parto abri-


ram lentamente os olhos ao ouvir o choro de uma criança.
Rapidamente se levantaram, dirigindo-se a passo largo para
a tenda. Heitor permaneceu no mesmo sítio onde estivera a
meditar, começando a desenhar no chão umas letras com um
pau – tinha descoberto um enigma. Samuel foi o primeiro a
entrar na tenda. A visão da sua companheira segurando o seu
filho nos braços fê-lo transbordar de alegria. O Alquimista
beijou a criança e Magdala. É uma menina, declarou a mãe,
de rosto ainda exsudado. A petiza tinha nascido como mais
peso e altura que uma criança comum; o, olhar e o sorriso
que fez, quando vislumbrou os pais, eram de uma verdadeira
princesa. Sem hesitar, o sábio pegou numa tina com água-
-diamante, oferecida pelas crianças índigo e cristal, felizes
pela chegada de mais um elemento da sua raça espiritual, e,
juntamente com Magdala, ungiu a testa da filha com o sinal
de infinito. Logo que terminaram aquele ritual, um raio de
luz branca desceu do céu e iluminou as auras daquele casal
e de todos os que o acompanhavam. De seguida, aquela luz
deslocou-se para sul, até parar num lugar ladeado por uma
pequena cordilheira.
Sorridentes e com os rostos marejados de felicidade
e alegria, repetiram, em uníssono, a mesma frase que tinha
sido usada quando se baptizaram no lago que tinham en-
contrado com os restantes discípulos, perto da Floresta das
Auras.
– Eu te baptizo Sara, enquanto corpo, mente e espírito,
em nome do verbo que pariu o Universo.

603
CENTO E TRINTA
A Fé e a Esperança caminhavam de mãos dadas,
naquela amálgama de povos que seguiam aquela famí-
lia, abençoada pelo Céu. O nascimento de Sara dera um
novo alento e uma confiança redobrada a todos os que
acompanhavam o Alquimista. A cordilheira que subiam
era completamente diferente da que tinham transposto,
antes de chegarem a Shambhala. Nenhuma encosta íngre-
me ou caminho sinuoso existia para dificultar a passagem
daquela corrente humana. Até o clima era menos agreste
e o vento mais mavioso. Parecia que o destino queria que
todos conhecessem o que estava para lá daquela muralha
rochosa.
Os discípulos não conseguiam esconder a emoção.
Numa só noite tinham presenciado dois milagres e uma
revelação. Se o nascimento da filha de Samuel e Magdala
e a luz misteriosa vinda do Universo sobre as suas auras,
indicando o lugar para onde se dirigiam, era uma bênção
do Céu, a revelação do enigma que atormentara Heitor
desde que descobrira nas ruínas de Rama-Muri, tinha sido
um assombro. Em segredo, Dario e Otelo, nas pausas de
repouso e sob a cumplicidade dos restantes discípulos,
iam preparando uma surpresa para mostrarem ao casal,

605
Tiago Moita

mal chegassem ao local indicado pela luz celeste. Pelos


seus semblantes, avizinhava-se algo de surpreendente: pas-
mo.
O que encontraram no cimo de uma das colinas não
se assemelhava a Shambhala mas aproximava-se muito em
termos de beleza. Um vale verde e dourado, rasgado por
um resplandecente rio azul, onde se podia ouvir o canto dos
pássaros e o trotear dos animais, adornado por um sol e um
céu dignos de figurarem numa tela renascentista, enchia em
pleno bocas de palavras sem voz e o olhar de todas aquelas
almas iluminadas. Magdala e Samuel mostraram o vale à
sua filha. O sorriso dos pais reflectiu a esperança que todos
sentiam e a beleza que transparecia daquele pequeno pedaço
de céu terreno.
No espaço de poucas horas, toda aquela amálgama de
povos se preparou para acampar naquela enorme mancha
verde de vida. Antes de começarem a fazer planos para o fu-
turo, o Alquimista, acompanhado pela sua companheira, que
segurava a filha nos braços, reuniu os discípulos e os povos
que o tinham seguido para um pequeno sermão informal,
igual a tantos outros que já fizera desde que tomara contacto
com o mundo que dera ouvidos às suas mensagens.
Samuel esperou que a paz e o silêncio se instalassem
para falar. Povos de Distopia e de todo o planeta, que me
acompanhastes até aqui. É chegado o momento de vos dei-
xar as minhas últimas profecias: continuareis a espalhar e
a aperfeiçoar a minha palavra no Aqui e Agora e fundareis
uma Holocracia ética e universal. Deixarão de existir fron-
teiras e nacionalidades; terminarão os limites impostos pela
propriedade privada e nunca mais será necessário moeda
como forma de intercâmbio. Terminarão os julgamentos e os
valores morais. Entendereis que tudo o que fizerdes nas vos-
sas vidas será uma maneira de alcançardes uma maior com-
preensão e harmonia com o Todo. Todas as relações serão

606
O Evangelho do Alquimista

baseadas no respeito e na flexibilidade, porque o Homem


sentirá os outros seres como parte de si mesmo, afirmou.
E continuou. Um novo nível existencial será desco-
berto e vivido por qualquer pessoa, em todas as culturas e
religiões, se mantiverdes a presença da Fonte convosco. Se
permanecerdes atentos, os meios necessários para servirdes
– e fazerdes desse novo mundo um lugar melhor – serão
sempre fornecidos. Podereis manter-vos em alinhamento e
provar a vós próprios que vivemos num Universo que é, em
essência, uma máquina de sonhos à espera que a liguemos,
concluiu. À medida que falava, a mente de todos os que o
escutavam parecia navegar para um futuro remoto, visuali-
zando todas aquelas predições a transformarem-se em rea-
lidade. Heitor aproximou-se do sábio e da sua família com
uma placa em mármore, feita por Otelo e Dario. O que esta-
va escrito nela fez sorrir o profeta e todos os que assistiam
às suas últimas profecias.

Cinquenta anos depois.


Tudo parecia um milagre brotado de uma única prece.
Em menos de meio século, todo o planeta tinha renascido
das cinzas, transformando-se num mundo verde e azul, co-
berto de oceanos e mares perfumados de sal e algas, florestas
e planícies a perder de vista, de toda a espécie de seres vivos
em plena harmonia com os seres humanos. Todos venera-
vam as montanhas, os desertos, os rios e os lagos como fon-
tes naturais de energia e viviam tão perto quanto possível de
templos naturais ou outros lugares sagrados, para poderem
expandir energia reciprocamente. Toda a produção era au-
tomatizada à custa de tecnologia verde, capaz de assegurar
a satisfação das principais necessidades básicas, sem qual-

607
Tiago Moita

quer moeda de troca e, no entanto, sem qualquer espécie de


excessos ou preguiça. Deixara de existir fronteiras, não só
entre os povos, como também entre os vivos que passaram
para dimensões mais elevadas, devido à evolução espiritual
que o planeta tinha atingido. Todos eram autênticos Homo
Noeticus: seres dotados de uma consciência multidimensio-
nal e holística da realidade, do Homem e do Universo, vi-
vendo numa Holocracia tão auto-organizada e perfeita como
a vida é, segundo todos os habitantes que tinham alcançado
a clarividência e a evolução espiritual naquele planeta.
Sara chegava com o companheiro, filhos e netos, ao
vale onde tudo tinha começado. O que era antigamente um
caos verdejante, cercado de montanhas e colinas por todos
os lados, passara a ser Magdael: uma cidade simbiótica e
camaleónica, perfeitamente construída à imagem e seme-
lhança da natureza que abundara naquele vale, pleno de hu-
manos, plantas, animais e autómatos, vivendo em perfeita
harmonia, como se tudo fosse um Todo e cada ser ou enti-
dade tivesse um papel determinante para a evolução de cada
um, por sincronicidade e ética interpessoal, tal como os seus
pais a tinham ensinado, antes de partirem para uma dimen-
são mais elevada.
Sara e a sua família aproximaram-se de uma espécie
de Stonehenge de Granito com desenhos e palavras grava-
das a ouro, contendo toda a saga do profeta, além de todos
os seus ensinamentos e profecias. Para quem tiver lido até
aqui este livro, poderá pensar que tudo não passou de uma
fantasia ou de uma utopia, como tantas outras que o Homem
imaginou ao longo da sua História. Mas, o que seria dele
sem a utopia? O que seria de uma obra sem o sonho? Um
desafio sem um prémio ou um poema sem o silêncio? Pode-
ria o Homem atravessar oceanos e mares ou estar confinado
à escuridão das cavernas? Voar e conseguir chegar à Lua ou
permanecer isolado no seu planeta? Todos os seres humanos

608
O Evangelho do Alquimista

temem dar o primeiro passo quando conhecem o seu cami-


nho; apenas os clarividentes do seu papel no Universo o per-
correm. Tal como todos aqueles homens e mulheres que se
identificaram com o pensamento daquele profeta e construí-
ram, não só aquele monumento com toda a sua sabedoria,
mas também uma estátua de quartzo verde e rosa – simbo-
lizando o amor de Samuel e Magdala – encimada por uma
placa de mármore, com o verdadeiro nome do planeta, que
Heitor encontrara em Rama-Muri e decifrara na noite em
que Sara viera ao mundo. Exactamente como uma centelha
de esperança e o princípio de uma epopeia, que acabara por
revelar o verdadeiro significado do que aquele planeta fora e
acabou, novamente, por ser.

ÉDEN

609
Impresso em Lisboa, Portugal, por:

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