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VIAGENS NA FICÇÃO
Um livro vai para além de um objecto. É um encontro entre duas pessoas
através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a
Chiado Editora procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedi-
cação de uma obra única e derradeira, seguindo a máxima pessoana “põe
quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio
para si. O nosso desafio é merecer que este livro faça parte da sua vida.
www.chiadoeditora.com
O Evangelho
do Alquimista
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Tiago Moita
II
(…)
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I
A REUNIÃO
William James
UM
Ninguém conseguia explicar aquele fenómeno. Pou-
cos eram os guardas que ficavam indiferentes ao suplício a
que tinha sido submetido aquele prisioneiro seminu, atado a
uma cruz gigante de madeira enegrecida, com cordas gros-
sas, flagelando a carne até à hipoderme, desde a sua captura
– e encarceramento – numa das torres mais altas da maior
prisão de alta segurança, da cidade que se tinha apoderado
do planeta.
Durante três dias e três noites, não tivera contacto com
qualquer ser humano, à excepção dos guardas da prisão, que
tentavam oferecer comida e bebida durante o cumprimento
da pena a que estava sujeito, que tentavam em vão. Apenas a
água da chuva, que o céu raramente ofertava aos seres vivos
daquele mundo, lhe saciava a sede.
Tinha todos os motivos para amaldiçoar o mundo e
o dia em que nascera; no entanto, sorria. Não pronunciara
nenhuma palavra ou gesto de desespero, desde a sua captura.
Os guardas tinham sido bem menos cruéis com ele, do que
os Romanos com Jesus Cristo. No entanto, a resistência físi-
ca e o comportamento desse prisioneiro deixavam desassos-
segado, e em alerta permanente, qualquer um dos seus car-
cereiros, que observavam aquele ser humano, à mercê dos
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DOIS
Hoje parecia ser o seu dia de sorte. Depois de três ten-
tativas frustradas para chegar cedo ao Centro de Investiga-
ção Criminal, Nicolau conseguia cumprir a sua promessa.
Eram oito e meia da manhã quando abriu a porta do gabinete
onde ele e a sua colega de trabalho, ou melhor, sua inspecto-
ra-chefe, trabalhavam há mais de cinco anos. Era a primei-
ra vez desde o mês passado, quando terminara de resolver,
com a sua superintendente, um dos casos de homicídio mais
polémicos do ano. Ainda sentia alguns resquícios da adrena-
lina que ganhara nessa missão – tantos, quantas as pastilhas
elásticas que guardava no bolso do casaco –, uma pequena
prenda de Natal oferecida pela sua mãe, doméstica por es-
colha e ofício.
Onde é que diabo deixei o jornal que ontem estive a
ler? Cogitava para si, abrindo e fechando gavetas de armá-
rios e escrivaninhas. Organização era um dos seus pontos
fracos. Por vezes, colocava pequenos autocolantes coloridos
em pastas e gavetas para identificar cada compartimento do
seu local de trabalho; O clip e o canivete suíço, que guardava
no casaco, eram-lhe também úteis em caso de arrombamen-
to de portas em operações especiais ou em abertura de armá-
rios e gavetas com ferrolhos estragados, vítimas da sua ha-
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TRÊS
Era impossível alguém sobreviver no Grande Deserto
como aquele homem. Só os aventureiros e exploradores da
cidade ou de pequenas povoações arriscariam semelhante
façanha. O sol do meio-dia transformava toda aquela re-
gião árida e inóspita tão quente como o inferno – para quem
acredite nele, tal como no paraíso ou na esperança de uma
salvação após a morte. A desidratação e a intensidade da luz
provocariam todo o tipo de carências e alucinações a qual-
quer ser humano que ousasse atravessá-lo, tornando-o, além
do mais, uma presa fácil para coiotes, abutres, milhafres e
todo o tipo de predadores que habitavam naquele território
sem alma.
Samuel não parava de pensar naquele forasteiro, a
quem dera boleia minutos antes. Todo o seu aspecto e pre-
sença o intrigavam e espantavam. Quem o observasse bem,
repararia que, nem o deserto nem o tempo o tinham carco-
mido. A sua indumentária não aparentava nenhum desgaste.
Estava imaculado o forasteiro, tal como o seu estado de es-
pírito, recitando um mantra de olhos fechados, enquanto o
seu salvador se remetia ao silêncio.
A curiosidade obrigou-o a quebrar o gelo de toda aque-
la mudez. Não nos conhecemos de algum lado, perguntou o
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QUATRO
Parecia um pequeno ponto negro visto do espaço.
Verruga cintilante de um planeta semi-árido, transformada
numa babilónia de hipérboles, adjectivos e vitupérios. Dis-
topia era tudo isso e muito mais. Quem nascesse, vivesse lá
e nunca tivesse viajado para além dos seus limites, imagina-
ria esta cidade do tamanho do planeta. Não é difícil conceber
o mundo como uma cidade, quando se ignora o que existe
para lá das suas fronteiras.
Lendas e mitos acerca do seu nascimento deambula-
vam de boca em boca por todos os habitantes do planeta É.
Uns diziam que Distopia nascera de um sonho de Zarat, o
senhor da cidade e de todos os quatro cantos daquele mun-
do, no tempo em que vivera numa montanha como eremita,
preparando o seu destino; outros ignoravam a sua origem e
falavam de todo o tipo de monstros que observavam as cores
das auras de crianças Índigo e Cristal, devorando-as; gatos
que furtavam sombras às casas e às pessoas; fantasmas que
roubavam carteiras e almas; crianças-mutantes fabricadas
em laboratórios disfarçados de farmácias e hospitais priva-
dos, para produzirem electricidade; paredes que murmura-
vam koans; canos de esgoto tatuados com palavras desco-
nhecidas que apareciam e desapareciam, minuto a minuto;
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CINCO
Não existia, naquele momento, homem mais feliz por
descobrir alguém, naquela solidão árida e inóspita, como
aquele que Samuel e o Alquimista tinham encontrado. O
caixeiro-viajante não escondia a perplexidade com aquela
descoberta. Apenas o Alquimista conservava a mesma ex-
pressão. O rubor do olhar do desconhecido, mesclado com a
pele desidratada, revelava o martírio e o desespero, próprios
de quem há muito aguardava por um milagre. Quem obser-
vasse aquele ser humano magro, alto e com o cabelo da cor
das suas sardas estaria longe de imaginar estar perante um
dos arquitectos mais ricos e prestigiados de Distopia.
Obrigado, muito obrigado por terem aparecido. Fui
assaltado há cerca de uma hora. Tinha parado para dar um
passeio naquele vale – acrescentou, apontando para um pon-
to no horizonte atrás de si. – Quando voltei, vi o meu car-
ro a ser levado por um bando de vagabundos. Felizmente,
tudo o que tenho de mais precioso ficou na minha mochila,
respondeu, como se tivesse acabado de correr dezenas de
quilómetros.
Tentou ligar para a polícia, perguntou Samuel. Polí-
cia? Como? Se nem sequer tenho rede no telemóvel neste
lugar, exclamou. O Alquimista virou-se para Samuel, pedin-
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SEIS
Parecia um pesadelo extraído da mente de um arqui-
tecto esquizofrénico. A quantidade de ruas e avenidas or-
togonais e paralelas desafiava a imaginação dos pilotos de
aviões e helicópteros, assim como dos pássaros, que voa-
vam sobre o Bairro Cogito. Fanáticos por teorias de cons-
piração procuravam, a todo o custo, enigmas por detrás de
toda aquela geometria de espaços, julgando encontrar um
código secreto de Zarat, de uma civilização perdida, de seres
vindos de outro planeta ou de uma sociedade secreta, esque-
cida nos labirintos do tempo. Matemáticos comparavam a
sua arquitectura com a ordem do universo. Não havia Igrejas
nem Seitas; apenas academias e laboratórios. Tudo pela ra-
zão nada contra a razão. Não havia espaço para a Metafísica
ou para a Religião naquele nicho humano, traçado a régua e
esquadro. Lógica era a única Fé entre os Methódicos, nome
pela qual eram conhecidos os habitantes daquele subúrbio.
No centro do bairro existia uma torre gigantesca com
um enorme relógio. Tinha a precisão semelhante à do Big
Ben de Londres. Toda a vida daquele distrito urbano depen-
dia do seu funcionamento. O som dos ponteiros cronome-
trava todos os movimentos dos seus habitantes. O trabalho
e o lazer, as refeições e os passeios, até as relações sexuais,
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SETE
Samuel tinha escolhido o início da manhã para se fa-
zer à estrada. O dia despertara relativamente calmo e morno.
O silêncio era apenas interrompido pelo barulho da carrinha
e pelo vento que assobiava de mansinho no horizonte. Não
se avizinhava nenhuma tempestade de areia assim como não
se avistava vivalma desde o resgate de Leandro, tirando um
ou outro escorpião à procura de alimento ou mesmo alguma
serpente deslocando-se de lado, tentando imitar as ondas de
um mar oculto, no sonho de um eremita. O interior daquela
viatura era o contraste da paz que emanava do deserto. Lean-
dro e Samuel discutiam com o Alquimista a importância da
sincronicidade e da nova consciência de que falara com o
caixeiro-viajante, antes de ambos conhecerem o desafortu-
nado arquitecto assaltado.
Não pode ser, não pode. Não faz qualquer sentido,
afirmava Leandro, céptico. Como pode uma coisa tão irra-
cional como a sincronicidade dar algum sentido à vida hu-
mana, perguntou o arquitecto. O sentido da vida depende
sempre da noção que cada ser humano tem das palavras,
Sentido e Vida. As histórias sobre a Vida estão recheadas de
misteriosos encontros fortuitos, livros abertos numa passa-
gem significativa, conversas ouvidas por acaso, cruzamen-
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OITO
Nunca a Utopia do Poder foi tão bem retratada como
no Bairro Rubro. A cor do sangue, que pintalgava todos os
seus edifícios, não era só o espelho de uma ideologia mas
também o estado de espírito de toda a população que vivia
naquele gigantesco conglomerado urbano, saído de um so-
nho de Karl Marx, Lenine ou Estaline ou tantos outros diri-
gentes e mitos dessa velha e mítica ideologia, que pregava a
igualdade e unidade entre todos os trabalhadores e campo-
neses; a evolução da História pela luta de classes; o fim do
Capitalismo e amanhãs por despertar, cheios de sol para to-
dos os povos livres da tirania do Capital. Povos, entendamos
apenas as classes média e baixa, não façamos confusões, que
neste bairro, a liberdade apenas pertencia a certos ilumina-
dos que vislumbravam o socialismo ao virar da esquina ou
na gota de suor de um camponês de uma propriedade estatal
ou de uma cooperativa, ou ainda de um trabalhador a sair de
uma fábrica, depois de mais um dia de trabalho, ao serviço
da Foice e do Martelo. Sim, um sonho apenas para alguns
esclarecidos e entendidos na matéria.
Não havia um lugar em Rubro onde não se respirasse
Socialismo. Em cada praça, rua ou avenida, as paredes esta-
vam cobertas por grandes pinturas murais, enaltecendo a re-
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NOVE
Samuel procurava visualizar o que o tinha feito desviar
a carrinha da estrada. Tinha o aspecto de um homem na casa
dos quarenta, estatura média e uma robustez física, digna de
alguém que procurava sempre zelar pela sua imagem. A ver-
melhidão dos olhos, mais do que uma simples irritação provo-
cada pela poeira do deserto, reflectia restos de uma depressão
nervosa ainda por curar, talvez derivada da longa espera que
tinha suportado, aquando da avaria do seu carro ou de alguma
relação falhada na sua memória, tendo em conta a bola antiss-
tress gasta e a quantidade de antidepressivos espalhados no
lugar do morto, que retirara da mala de primeiros-socorros,
guardada no porta-luvas, cobrindo os retratos ressequidos das
suas ex-mulheres e da mãe, que sempre o acompanhavam.
Samuel e o Alquimista saíram ao mesmo tempo da car-
rinha e foram ao encontro do desconhecido. Leandro ficou
na viatura, expectante. A mais pequena palavra ou som saído
da sua boca era engolida pelo vento. O tempo ia abrandando
a velocidade à medida que ambos os homens se aproxima-
vam daquele estranho condutor, parado no meio da estrada;
os corações de ambos batiam descompassadamente, mal as
suas sombras se cruzavam no asfalto. Nesse mesmo instante,
o homem desmaiou.
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DEZ
Se havia bairro bizarro em Distopia ao qual ninguém
era indiferente, esse bairro era Extasis, também conhecido
como Bairro Arco-Íris, devido à diversidade de cores que
preenchiam todas as paredes, edifícios ou monumentos da-
quele agregado urbano e macrocéfalo que também carac-
terizava a única cidade do planeta É. Extasis derivava de
êxtase: impressão digital que melhor iconizava este bairro e
os seus habitantes, pomposamente chamados de Niilisteus,
por serem fervorosos adeptos incondicionais do Niilismo de
Friedrich Nietzsche e Zarat, filósofos que marcaram as suas
vidas na sua forma de pensar.
Nenhum dia era comum em Extasis, tal como as obras
de arte que proliferavam naquele lugar. Todo o bairro res-
pirava arte, bebia e comia arte, masturbava-se com arte em
plena liberdade sem qualquer critério ou regra de natureza
moral ou política. Tudo era permitido em nome da arte e a
arquitectura do bairro acompanhava o caos e o ecletismo da
vida e do universo. Daí os artistas em Extasis não conhece-
rem quaisquer limites quando criavam as suas obras.
Nenhuma obra derivava de qualquer obrigação esta-
tal ou moral; Nada, mesmo nada. Tudo era individual, logo,
livre e anárquico. Contemplava-se e representava-se, desde
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ONZE
Vista de cima ou a alguns metros de distância, Nog era
igual a tantas outras povoações espalhadas pelo planeta É. A
natureza misturada com a presença humana; o odor do verde
dos escassos jardins e searas, trazido pelo vento morno do
norte, acompanhado pelos murmúrios das casas e ruas, des-
de a mais pequena coscuvilhice até ao mais singelo suspiro,
retratava na perfeição esta vila rural, abandonada pela vora-
gem dos tempos. Todavia, a realidade distanciava-se muito
da aparência.
Samuel conhecia muito bem aquela terra e os seus
habitantes. Não confiem neles, dizia para os seus compa-
nheiros; parecem hospitaleiros e amigáveis mas muitos são
autênticas serpentes. Leandro observava com mais atenção
que os outros o aspecto de Nog. Algumas crianças aproxima-
vam-se da carrinha de Samuel com uma alegria contagiante,
como se nunca tivessem visto uma em toda a sua vida e,
entre elas, algumas observavam simplesmente a viatura do
jovem comerciante com um olhar penetrante, sem proferi-
rem uma só palavra. Entre os adultos, apenas os anciãos e as
velhas beatas da vila conservavam algum pudor e traquejo
no que dizia respeito a chegadas de forasteiros de Distopia.
Algumas donas de casa fechavam as janelas e trancavam as
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DOZE
Nenhuma palavra conseguia descrever um bairro tão
complexo como Dialética. Palavras eram o maior cartão de
visita daquele bairro, assim como as livrarias, bibliotecas,
fundações, museus, cafés e todo o tipo de estabelecimentos
e edifícios. Tudo era uma homenagem à maior invenção do
ser humano depois da descoberta do fogo, da invenção da
comunicação e da roda. Palavra, era a impressão digital da
linguagem e da herança de um povo, a marca de água da
alma dos Filingus, o ilustre povo daquele bairro bege e beato
da escrita e da leitura.
Nada existia em Dialética fora do mundo das pala-
vras. Alguém que entrasse numa loja nunca sairia de lá sem
um livro pelo menos. Tanto as embalagens, como os sacos,
dos diversos produtos de mercearia ou de supermercado, ti-
nham impressas serigrafias de poemas e citações de grandes
poetas e autores contemporâneos. A poesia era a alma da lin-
guagem e todos os habitantes daquele bairro sabiam disso.
Não era por isso invulgar haver cafés repletos de gente para
ouvir poemas de Neruda, Albiach, Pessoa ou Plath; tertúlias
improvisadas em farmácias ou até mesmo em barbearias,
onde se ouviam poemas cantados à guitarra; representações
teatrais, tanto nos locais mais comuns como nos mais inós-
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TREZE
Não havia maneira de aquele larápio abrandar para
poder tomar fôlego. A perseguição ao ladrão da bússola de
Samuel continuava pelas ruas e vielas estreitas de Nog, por
entre encontrões e palavrões dos transeuntes inocentes, em-
purrados por ambos em plena fuga. Leandro e Rodrigo pro-
curavam acompanhar o caixeiro-viajante e o meliante num
corta-mato alucinante. A dimensão da vila trazia alguma es-
perança para ambos. O receio estaria na existência de algum
esconderijo secreto ou veículo do misterioso gatuno para
uma fuga mais rápida.
Samuel não estava só. A notícia do roubo espalhou-
-se como fogo num palheiro. Por toda a parte, dezenas de
habitantes juntavam-se-lhe para o ajudar na captura do mis-
terioso biltre. Momentaneamente, imitavam gritos de aves e
outros animais para comunicar com Samuel e os seus com-
panheiros, indicando-lhes o trajecto; quais sinais de trânsi-
to humanos, improvisados em plena vila. Esquerda, direita,
esquerda, frente; era tudo o que sabiam dizer por gestos e já
era muito. O ladrão começou a ficar cercado e a fugir pelas
artérias que os seus perseguidores queriam que ele seguisse,
qual rato a caminho da ratoeira. No cruzamento entre duas
vias estreitas, uma mão agarrou-lhe o braço.
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CATORZE
Branca não era apenas a cor dos edifícios e passeios
que constituíam o Bairro Selectus. Era também a cor do
silêncio que deambulava de boca em boca em cada um dos
seus habitantes. A tonalidade dos murmúrios das paredes e
das pedras, despidas de vida e de símbolos, e o sabor das
palavras que os Seleceus, seus distintos e irredutíveis ha-
bitantes, trocavam entre si, era igual em todas as estações.
Nenhuma palavra era desperdiçada nem servia de esmola
para o vento. Para os Seleceus, as palavras pertenciam aos
homens e não à natureza.
Apenas a sisudez dos rostos dos habitantes de Selec-
tus não correspondia ao branco, que transmitia a imagem de
pureza e beatitude, que os Seleceus procuravam manter no
bairro. Por detrás dos seus olhos vazios, transparecia uma
hipocondria histérica que levava a que, cada um deles saísse
à rua com luvas de látex e máscaras higiénicas e lavasse a
cara e as mãos com sabonetes líquidos em lavatórios, espa-
lhados estrategicamente em cada esquina. Tanto a comida
como os objectos eram seleccionados segundo os mais ri-
gorosos critérios de higiene e segurança, tal como as rela-
ções entre os moradores daquele bairro. A troca de fluidos
e relações sexuais constituíam, mais do que um perigo para
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QUINZE
A notícia da chegada de um sábio que, apenas com
a palavra, resgatara de um linchamento popular uma sem-
-abrigo, alastrou pela vila como um incêndio. Ninguém se
atrevia a questioná-lo, muito menos a quem o seguia, por
medo e ignorância. Era uma terra de pessoas tacanhas e
mesquinhas, facilmente influenciadas pelos instintos mais
primários ou pelo mais vil preconceito. Algumas mulheres
e crianças observavam-nos de soslaio, por entre as frestas
das portas ou dos cortinados das janelas. Os homens, com o
rosto franzido e o silêncio na língua, assistiam à passagem
daqueles forasteiros pela terra.
Karma, ou melhor, Dharma: é verdade que nunca che-
gaste a conhecer o teu pai, indagou Leandro, nervoso. Por
que é que queres saber, inquiriu a jovem, intrigada. Queria
esclarecer uma dúvida. Que dúvida, retorquiu. O meu pai
era uma pessoa muito complicada. Além de se embebedar,
para esquecer a vida que escolhera e a família que tinha,
consta que também traía a minha mãe às escondidas, com
uma prostituta. No bairro onde vivíamos, corriam rumores
acerca de uma gravidez indesejada, provocada por um ope-
rário da siderurgia onde o meu pai trabalhava, aumentando
as suspeitas na minha família de que tinha sido ele o causa-
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DEZASSEIS
O Sol era um estranho no Bairro Anguscius. Pala-
vra morta de uma língua desconhecida, decifrada num
achado arqueológico sem significado para os Dúbios, os
soturnos habitantes daquele bairro cinzento.
Cinzento, como os dias e as horas que tatuavam as
suas vidas; cinzento, como os filmes sobre os anti-heróis
e virgens suicidas, armadas em divas, saídas de filmes
de Fellini; cinzento, como os poemas de Byron, Rilke ou
Celan, lidos pelos intelectuais e boémios mais inebria-
dos dos cafés das esquinas, entre o riso e o silêncio das
pedras, que absorviam as lágrimas deixadas ao abandono
pela embriaguez da noite; cinzento, como a vida que fu-
gia a cada instante dos seus dedos.
Não era um bairro extravagante como Extasis, ou
sintético como Selectus. Anguscius transpirava decadên-
cia e melancolia pelos poros das suas paredes e dos seus
habitantes. Em nenhum quadro, foto, canção ou poema
havia algo de lenitivo; as rosas eram corações ambíguos
para os Dúbios; um incêndio no tempo; um olhar de re-
vés sem redenção possível; tudo era fractura e divisão,
impotência e silêncio. Um silêncio sufocante, capaz de
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DEZASSETE
A atmosfera dentro da carrinha de Samuel contrasta-
va com o ambiente agreste e inóspito do Grande Deserto.
Uma pulga mecânica mergulhada num oceano de areia e
silêncio que, pouco ou nada, conhecia da palavra vida. Um
turbilhão de perguntas fervilhava nas mentes dos discípu-
los do profeta, ávidos de respostas a perguntas, que iam
desde o mais simples desejo até à questão mais filosófica.
Apenas Dharma permanecia indiferente a todo aquele re-
buliço verbal, mastigando e fazendo bolas com uma chicle-
te de morango.
O Alquimista interrompera aquela babel de questões
e desejos com uma estrondosa gargalhada. Quando vos en-
contrei parecíeis cegos, com medo da luz que vos mostrei.
Agora que a viram, querem desesperadamente conhecer a
sua origem, como um rio procura a sua foz. Todavia, es-
cutei todas as vossas dúvidas com muita atenção e estou
disposto a responder a todas elas, cada uma a seu tempo.
Porém, não esperem receber, de imediato, respostas a todas
as vossas questões nem se desculpem por fazê-las. Todas
elas já foram feitas por homens e mulheres há milhares de
anos, com a mesma sede de saber, que vocês, respondeu,
tentando conter o riso.
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DEZOITO
Nenhum homem ou mulher que trabalhasse no gi-
gantesco laboratório-oficina do Professor Salomão Wekler,
conhecia a palavra descanso, desde que Zarat autorizara o
Projecto “VHCruz” – o projecto mais secreto de Distopia
e de todo o planeta. Todo o cuidado era pouco e todas as
medidas de segurança eram analisadas ao mais ínfimo por-
menor. Desde as entradas e saídas dos funcionários, passan-
do por qualquer troca de mensagens ou movimento estranho
em qualquer departamento, tudo era alvo de investigação
imediata, tanto por parte dos funcionários e cientistas que
trabalhavam naquele megalómano e bizarro engenho, como
por parte dos guardas que vigiavam os corredores e depar-
tamentos, directa ou indirectamente, através de câmaras de
vigilância da mais alta tecnologia do planeta.
Se havia um dom que Salomão possuía era, sem dú-
vida, o da paciência. Desde adolescente que vira crescer
essa virtude dentro de si, como base para a concentração,
observação, análise e síntese para todas as suas invenções
e descobertas. Não tinha medo de perguntas e desconfiava
de verdades absolutas. Idolatrava Galileu, Newton ou mes-
mo Albert Einstein e Stephen Hawking como verdadeiros
gurus, cujo trabalho e génio tinham aberto as portas, não só
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DEZANOVE
O Grande Deserto não dava tréguas a qualquer ser
vivo, conhecido ou forasteiro, naquele inferno de areia e pe-
dra, forjado pelo bafo abrasador do sol, qual bigorna natural
de terra árida e fogo invisível, onde nem o Diabo se atre-
via a pôr os pés. Embora, Samuel gostasse de desafios, não
era suficientemente doido para enfrentar aquele, que muitos
apelidavam de General Morte. Assim, escolhera o fim da
tarde para deixar Zarabandar e se fazer à estrada, com o Al-
quimista e os seus discípulos, rumo a Distopia.
Faltavam ainda muitos quilómetros a percorrer e mui-
tas questões, sedentas de resposta a dar pelo profeta. No pri-
meiro quarto de hora, o silêncio tinha-se instalado na viatura
do caixeiro-viajante. Todos pareciam estar em meditação,
como o Alquimista. Otelo, o discípulo mais recente, come-
çou a sentir que uma tristeza infinda se lhe apoderava da
alma, ao olhar para as mãos.
O que se passa, perguntou Dario, sentado ao lado do
ex-artesão Makbar. As minhas mãos. Estão a envelhecer,
como eu. E eu gostava tanto de viver ainda tempo suficiente
para poder concretizar tanta coisa, depois de ajudar o nosso
mestre, respondeu, de olhos marejados. Leandro aproveitou
aquele momento de angústia existencial para voltar a dis-
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VINTE
Dourada não era apenas a cor do sol que banhava
os espelhos dos gigantescos arranha-céus do Bairro
Cornucópia, o bairro mais rico e capitalista de Distopia e
de todo o Planeta. Era também a luz do mais precioso dos
metais, que fazia mover a economia e o modo de vida dos
Averos, os distintos habitantes daquele bairro. Fonte de to-
dos os progressos e tragédias. Combustível de todas as ac-
ções e reacções humanas, que atingiam desde o mais comum
trabalhador até ao mais alto dirigente.
A fidelidade ao mérito e ao sucesso material eram
mais que meras regras. Eram códigos de conduta moral para
todos os Averos e investidores que quisessem fazer negócios
com eles, porque Cornucópia, que ninguém se iludisse, era
um bairro feito apenas para negócios. O verdadeiro valor das
coisas é o esforço e o problema de as adquirir, e todos aque-
les que moravam ou trabalhavam em Cornucópia tinham
noção desse pensamento de Adam Smith. Tudo ali tinha um
preço; nada era gratuito. A quantidade de smog, provocado
pelas fábricas dos Averos, era de tal maneira forte que até
havia comerciantes que negociavam latas de ar, ao serviço
de grandes multinacionais. Homens tatuavam em animais
de estimação e em seres humanos marcas de produtos para
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VINTE E UM
A imensidão árida e plana do Grande Deserto dava lu-
gar a formações rochosas. Samuel chegara ao Vale do Escor-
pião. Um labirinto de grutas e desfiladeiros estreitos onde,
a qualquer instante, mil e um perigos esperavam o viajante
mais inconsciente e incauto. O jovem caixeiro-viajante não
abandonava a estrada. Era o único caminho certo para entrar
naquele lugar e dele sair. Para ele, ouvir os gritos dos abutres
e milhafres no céu; o rugir dos pumas nas montanhas; ver
iguanas e cascavéis com as línguas de fora ou ver a sim-
ples queda de um pedregulho era rotina. Percorrera aquele
trajecto centenas de vezes, mesmo antes de conseguir o seu
último emprego. Guardava as melhores recordações, cheias
de adrenalina e emoção, mais do que momentos para esque-
cer. Meia hora depois de terem entrado no vale, o Alquimista
fez-lhe sinal para parar.
Corta à direita, depressa, ordenou. Samuel obedeceu,
intrigado. O caminho era acidentado, cheio de pedras e terra
batida. A poeira era tanta que quase não se via um palmo à
frente do nariz. À esquerda; agora à direita; pára!
Os discípulos começaram a sobressaltar-se com todos
aqueles solavancos e atalhos. A carrinha de Samuel estava
agora longe do caminho principal e em frente à entrada de
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II
A CONSPIRAÇÃO
Sófocles
VINTE E DOIS
O mundo do ocultismo e do bizarro eram um fascí-
nio secreto para Nicole Adagio, mais do que uma paixão
doentia, derivada de uma curiosidade intelectual em tentar
compreender a realidade para além das suas fronteiras. Ni-
colau pensava exactamente o oposto da colega. Para ele, este
mundo tanto poderia ser uma porta para a morte como um
beco sem saída; embora a morte, tal como o perigo, fizessem
parte do seu estatuto e profissão ao serviço da lei e da ordem,
nunca deixava de lhe perturbar os pensamentos e, principal-
mente, os nervos.
Nicole e Nicolau dirigiam-se na viatura da inspecto-
ra em direcção à Vila Nog onde, segundo a reportagem do
jornal A Voz do Mundo, uma mulher ainda virgem dera à
luz uma criança, há vinte e sete anos. Nicolau conduzia en-
quanto Nicole ia analisando aquela reportagem bizarra. A
velocidade do vento anunciava uma tempestade, mas ambos
já se encontravam à entrada da Vila. A viagem correra sem
problemas. Nicole não parava de matutar acerca daquela re-
portagem.
Pragmático, Nicolau desconfiava de toda aquela in-
dagação. Valerá a pena continuarmos – perguntou. – Esta
reportagem pode ser uma entre tantas teorias da conspiração
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VINTE E TRÊS
Tanto a forma redonda da mesa como a disposição dos
lugares não eram fruto do acaso nos conselhos magnos de
Distopia, no Palácio da Montanha Mágica, organizados por
Zarat. O senhor de Distopia conhecia bem as rivalidades e
antagonismos de cada um dos seus súbditos, assim como
as suas ideologias e, segundo algumas línguas mais afiadas,
os seus segredos mais profundos. Bastava uma incorrecta
selecção dos lugares para desencadear uma zaragata sem
precedentes e uma gigantesca dor de cabeça para o mais po-
deroso suserano da cidade.
A ordem de entrada também obedecia a alguns crité-
rios, impostos por Zarat. Os soldados do palácio guardavam
todas as entradas e saídas, incluindo a Sala do Conselho.
Horas antes, todos os serviçais tinham ultimado os prepa-
rativos para o evento: a disposição das cadeiras, a ordem de
entrada e saída de cada membro e a distribuição do vinho
pelas taças dos intervenientes. Nada era deixado ao acaso;
nem a repartição das flores artificiais pelo palácio. Zarat
gostava de flores artificiais; eram mortas mas eternas.
Um mestre de cerimónia, vestido a rigor, anunciava
a entrada de Metheos – Líder dos Methódicos –, o primeiro
membro a entrar na sala. Uma decisão lógica e racional, tal
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VINTE E QUATRO
As curvas do corpo, assim como as vestes, denuncia-
vam a condição, mas nunca a sua personalidade e carácter. A
sombra tatuada na calçada do passeio pouco iluminado, não
realçava, de forma alguma, o seu aspecto e sensualidade.
Algumas das suas antigas colegas de profissão, não fosse
essa a mais antiga profissão de que o Homem tem memória,
escolhiam clubes nocturnos restritos, entradas de hotéis de
luxo e casinos, ou então, na pior das hipóteses, pequenos
bosques da periferia do bairro Extasis, como melhores al-
vos para serem contratadas por mendigos de desejo e prazer.
Tudo valia por dinheiro. O deboche ficaria à descrição do
freguês: desde o banco de trás da mais simples viatura até
ao conforto da suite mais dispendiosa e luxuriante de um
dos hotéis mais caros de Distopia. O sexo, enquanto vício,
é um fruto com tanto melhor sabor quanto mais proibido e
misterioso for. Para Magdala, era um jogo entre o prazer e a
sobrevivência.
O intervalo de tempo entre a espera e o serviço eram
motivo para todo o tipo de vícios e distracções: desde o
acender de uma cigarrilha até fumar um cachimbo de droga,
que comprava, ocasionalmente, aos traficantes nas esqui-
nas. Quando se aproximavam automóveis, mascava sempre
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VINTE E CINCO
Nicole não parava de pensar nas frases sem sentido
daquele eremita alucinado. Pareciam Koans, pequenas cha-
radas enigmáticas e paradoxais com vista a dissociar o ra-
ciocínio lógico em busca de uma iluminação intuitiva. A sua
intuição feminina falava mais alto que a razão quando dizia
aquelas frases, assim como as pistas que encontrara no bar-
racão de Dario, na Vila Nog. Podiam não fazer qualquer sen-
tido, naquele instante; mas poderiam ter alguma relevância
no decurso da investigação.
Aquele homem tentou nos dizer qualquer coisa, mas
o quê, perguntou a inspectora. Não me diga que ainda está
a pensar naquele louco que encontrámos na Vila Nog. Não
ligue ao que ele disse: esses homens sofrem, muitas vezes,
de perturbações mentais, derivadas da solidão e do clima
agreste do Grande Deserto. Tenho a certeza que apanhámos
aquele, num dos seus momentos de alucinação, respondeu
Nicolau, enquanto conduzia. Nicole olhou para o seu assis-
tente, desconfiada.
Ele falou num homem e num encontro. E se esse
homem for o sujeito que procuramos, perguntou. Ora, ins-
pectora-chefe... existem centenas de eremitas e vadios, va-
gueando pelo deserto; alguns deles vão pela aventura; ou-
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III
OS DESAFIOS DO
DESERTO
Sócrates
VINTE E SEIS
O cansaço e o sono eram visíveis entre os discípulos
do Alquimista. A viagem corria sem problemas e o tempo
parecia ter feito tréguas com o deserto e com o intrépido
caixeiro-viajante, que aceitara embarcar naquela aventura
com o lendário profeta e os seus discípulos. Olhando para
alguns deles, através do espelho retrovisor, relembrava os
momentos em que aquele estranho homem, a quem dera bo-
leia, convertera e convencera todos aqueles desconhecidos a
segui-lo em direcção à cidade que se apoderara do planeta.
Outras vezes, punha-se a pensar na reacção dos habitantes
de Distopia: como iriam comportar-se centenas e centenas
de pessoas com a palavra e o pensamento daquela figura
carismática e galvanizante e, desafio dos desafios, mudar
nas barbas de Zarat a maneira de pensar, de sentir e de vi-
ver de todos aqueles seres humanos? Questões pertinentes
ponderadas em silêncio, enquanto conduzia. Subitamente, o
profeta pousou a mão no seu braço, pedindo-lhe para parar
o veículo, a fim de ele, e os seus discípulos, acamparem e
descansarem. Samuel assentiu e parou o carro.
A noite nos desertos é o contraste com o dia. Não ape-
nas pela ausência de luz natural mas também pela redução
drástica da temperatura. Tanto podia rondar os cinquenta e
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VINTE E SETE
Nem sempre uma imagem é a visão mais perfeita da
realidade. Quem conhecia Faustus de vista ou dos baca-
nais e festas luxuriantes em casinos, discotecas, bares, ou
mesmo na sua própria casa, estaria longe de imaginar que,
por detrás de toda aquela personalidade bizarra e inigua-
lável de melómano, artista e boémio, se escondia um ser
em sofrimento agonizante, com uma maldição patológica
tão forte, quanto a fobia que na sua infância ganhara aos
relógios.
Ninguém ficava indiferente à sua passagem. Quem
se cruzasse com ele, apanhava-o a representar as centenas
de personagens que tinha encarnado em todas as peças de
teatro que encenara e de que tinha feito parte – sempre
como actor principal. No final, presenteava os transeuntes
com uma piada non-sense ou com uma citação de Nietzs-
che, Antonin Artaud, Celan, Beckett, Brecht ou Sartre. A
recompensa variava entre um beijo na boca ou um abraço,
independentemente do sexo ou da condição social de quem
entendesse a frase. Faustus não olhava a diferenças ou pre-
conceitos, apenas a expressões. A expressão mais envergo-
nhada para o seu ego era um prémio, que recebia com um
singelo coçar do umbigo.
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VINTE E OITO
A nuvem de pó, provocada pela travagem abrupta do
carro de Nicolau e Nicole, dissipara-se no ar como um so-
nho. A visão translúcida de mais uma viatura abandonada
na estrada, durante a investigação da jovem inspectora, era
mais do que uma coincidência: era o segundo veículo aban-
donado desde que tinham saído de Distopia para procurar
pistas sobre o caso da misteriosa mãe virgem. Nicole foi a
primeira a sair do carro e a dirigir-se, de arma em riste, para
o automóvel abandonado. Nicolau engolira em seco e ficara
imobilizado frente ao volante, antes de decidir acompanhar
quem estava acima da sua patente. O medo é muito eficaz
em bloquear pensamentos e manipular comportamentos, as-
sim como a fazer o contrário, tal como lhe acontecera, mal
Nicole tinha olhado para ele e lhe fizera sinal para a acom-
panhar, com a mesma expressão sisuda que sempre a carac-
terizava. Atrapalhado, o agente, saiu do carro, de arma em
punho e com o mesmo medo que tivera, quando encontrara o
primeiro veículo abandonado numa das estradas mais inós-
pitas e solitárias do Grande Deserto.
Somente o vento árido abafava o som dos passos dos
dois agentes. Nicole e Nicolau dirigiram-se para a viatura
cautelosamente. Poderia ser uma emboscada de salteadores
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VINTE E NOVE
Ninguém sorria com mais orgulho e satisfação do que
Ptolomeu, naquele corredor do Palácio da Montanha Mági-
ca. Zarat sempre acatara os seus conselhos mas nunca ne-
nhum deles tinha sido aprovado como solução num Conse-
lho Magno de Distopia, como acontecera na noite anterior.
Pela primeira vez, em público, o mestre curvara-se perante
o aluno, neste caso, o conselheiro, sem que algum membro
do Conselho pronunciasse uma só palavra em desabono. Em
certos casos, silêncio era sinónimo de vergonha ou impotên-
cia. Naquele, era de poder e respeito – tal como faziam os
guardas da residência oficial do homem mais poderoso do
planeta à sua passagem –, como se estivessem a responder a
um oficial, de patente superior às suas.
No gabinete, sentado na secretária e observando a
porta, relembrava os pormenores mais sórdidos e hilariantes
daquela histórica reunião. A reflexão sobre essa noite ter-
minara com uma gargalhada, quando Ptolomeu recordava
da proposta ensandecida de Faustus em querer acabar com
todos os relógios da planeta. Refeito do riso, pediu à sua
secretária a presença de Metello no seu escritório.
Os gritos de medo e dor dos oficiais, misturados com
os gestos de artes marciais e ataques corpo-a-corpo com
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TRINTA
O tempo nem sempre está a favor de quem atravessa in-
fernos, sejam eles terrenos ou de outra dimensão. Haviam pas-
sado três dias e três noites desde que o Alquimista partira do
acampamento, sem se despedir dos seus discípulos. O profeta
parecia um minúsculo ponto negro ambulante, no meio daque-
la violenta tempestade de areia no Grande Deserto. Apesar de
estar de rosto tapado e coberto por um enorme manto branco,
o profeta apresentava alguns sinais de fraqueza, devido à ira
do vento, misturado com a areia e o pó. Perdera a contagem
do número de vezes que claudicara, devido à sede e à fome. A
água do cantil era já uma miragem, como o horizonte, no meio
daquela tormenta. A língua e a boca daquele homem estavam
agora tão secas como o resto do corpo. Caiu.
Minutos depois da queda, a tempestade dissipou-se
como por magia, e o dia deu lugar à noite. Atordoado e bastante
enfraquecido, o Alquimista – de rosto e mãos besuntados de
areia e pó – soergueu-se sem perder a lucidez. O fim repentino
daquela tempestade não fora obra da natureza, nem do univer-
so, e muito menos do acaso – algo em que nunca acreditava.
O seu sexto sentido não o enganava. Aproximava-se
uma entidade maligna. Sentia-a, como os cães pressentem a
presença de alguém no seu território, através das vibrações
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Vida e morte são uma só, tal como são o rio e o mar. Bebei
primeiro do rio do silêncio e deixai a vossa alma chegar
ao cimo da montanha. Aí, quando a terra reclamar o vosso
corpo, e não vós, sereis capazes, verdadeiramente, de dan-
çar com as estrelas.
Proferidas aquelas palavras, Morbius transformou-se
numa estátua de vidro, estilhaçando-se em mil bocados,
sozinho. O punhal derreteu e foi engolido pela terra que
ele ferira.
O sétimo e último homem tomou o lugar do irmão
e aproximou-se. Envergava uma máscara de ouro maciço
com focinho de porco. Apresentou-se diante do profeta
como Capital e atirou-lhe uma bolsa, cheia de moedas de
ouro, dizendo: Se és o Alquimista, soberano dos sobera-
nos, faz do dinheiro o teu deus; nunca negues o seu desejo
e poder e controla todos os recursos do universo em seu
nome.
Sem mexer um membro, o Alquimista respondeu:
O dinheiro é uma energia que corre nas vossas vidas, tal
como o sangue corre nas vossas veias, mas não é a única
energia que circula no universo. Não é o homem que deve
submeter-se ao dinheiro nem o dinheiro deve submeter-se
ao homem. Peçam-no e aceitem-no; dêem e receberão e
não encontrareis mais exploração e sofrimento entre vós;
apenas prosperidade e abundância nas vossas vidas e co-
rações.
Capital transformou-se numa estátua de ouro maciço
e derreteu-se sozinho. A bolsa de moedas de ouro conver-
teu-se em água e encheu o cantil do profeta.
Por fim, o homem do manto e capuz negro aproxi-
mou-se do profeta e disse: Podes vender ilusões com as
tuas palavras mas não convencer as pessoas deste mundo.
Todo o universo pode ser teu, se comeres da minha mão e
beberes do meu seio. Renega a tua missão e beija os meus
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TRINTA E UM
Quem visitasse pela primeira vez Distopia e deparasse
com a imponência e magnanimidade do edifício Moneys-
peak, nunca imaginaria que, dentro daquela torre forrada de
espelhos, com mais de setenta e oito mil metros quadrados,
cento e quarenta metros de altura e quarenta andares – la-
deada de escritórios, um centro de informações no primeiro
andar e um restaurante na cave, funcionasse o Banco Central
de Distopia.
O sorriso daquele homem era um misto de prazer e
dor. Quem olhasse apenas para o estatuto e papel que usu-
fruía na sociedade Distopiana, diria tratar-se de uma evolu-
ção natural, dado ser filho de uma das mais importantes e
poderosas famílias de banqueiros Doptas do Bairro Cornu-
cópia e de toda a cidade. Do pai, recebera o espírito de pou-
pança e idolatria ao Deus Dinheiro, desde que lhe oferecera
a sua primeira moeda e o seu primeiro porquinho-mealheiro.
Mas quem visse Zarco – o Governador do Banco Central de
Distopia – transpirando como um animal, de braguilha aber-
ta, masturbando-se que nem um louco enquanto apreciava,
lascivamente, uma revista erótica com belas adolescentes
em trajes colegiais e poses provocantes, capazes de desper-
tar a libido no espírito mais puritano e recatado, nunca lhe
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TRINTA E DOIS
Nicole e Nicolau chegaram finalmente a Zarabandar,
acompanhados pelo caixeiro-viajante que tinham encontra-
do na estrada. Tinha passado a hora do jantar e não se via
vivalma em toda a vila. A noite cobrira a cor e a beleza da
povoação com o seu manto púrpura. A ira da tempestade de
areia do Grande Deserto abafara o som das suas criaturas e
recolhia os murmúrios e as palavras daquele povo mesqui-
nho e pacato.
Os agentes da Guarda Zaratista seguiram o caixeiro-
-viajante para um hotel de três estrelas nos arredores de
Zarabandar – o único hotel da região. Milagre ou sincro-
nicidade, assim que ambos os carros pararam no parque de
estacionamento do hotel, a tempestade passou.
Todos os ocupantes das viaturas ficaram estupefactos
com aquele estranho fenómeno. Tempestades, como aquela,
costumavam durar horas, dias – para não dizer semanas –,
nunca acabando daquela maneira. Nicole foi a primeira a
despertar da estupefacção, dirigindo-se para o hotel. Ambos
tentavam perceber aquele fenómeno e comentavam inúme-
ras teorias para explicar o que tinham acabado de presen-
ciar, enquanto acompanhavam os passos da jovem e esbelta
agente.
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IV
A GRANDE SAGA
Lao Tzu
TRINTA E TRÊS
O desespero é um dos maiores erros do ser humano
quando este pensa, especialmente quando esse sentimento
é visto como uma dolorosa avidez de uma esperança insa-
tisfeita ou de um sonho inacabado. É certo que o que mais
desespera não é o impossível mas o fracasso. Para os discí-
pulos do Alquimista, nenhum dos cenários excluía qualquer
das hipóteses, desde o desaparecimento do profeta do Orá-
culo do Destino. Quem os observasse, como as criaturas do
Grande Deserto à volta do acampamento, pensava estar na
presença de doidos, revolvendo tudo à sua volta, sem razão
aparente. Para eles, aquela ausência significava um caso de
vida ou de morte. Três dias depois do seu desaparecimen-
to, dúvidas e descrenças começavam a tomar conta das suas
mentes, órfãs da sabedoria daquele homem.
Leandro foi o primeiro a desconfiar do Alquimista.
Depois de três dias e três noites de buscas sem parar, sentou-
-se numa pedra e pôs as mãos na cabeça, remoendo-se de
ressentimentos e remorsos. Ainda estou para perceber onde
estava com a cabeça quando decidi entrar nesta aventura.
Como é que eu, um arquitecto consagrado em Distopia, fui
seguir um homem que falava de assuntos tão absurdos e irra-
cionais como a sincronicidade e a aleatoriedade do Tempo,
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TRINTA E QUATRO
Léon! Léon! Enche o meu coração de Mar! gritava
Simone Dumonde pelas ruas e avenidas de Anguscius. A
tristeza tinha sido a sua companheira, juntamente com a so-
lidão, desde a morte do seu único e verdadeiro amor. Juntas,
fermentavam um veneno que corroía o corpo e a memória
como ácido clorídrico sobre as pedras de uma calçada, habi-
tuadas a sorver todo o luto e silêncio do mundo. Na loucura,
a líder dos Dúbios procurava refúgio e, ao mesmo tempo,
conforto, da perda irreparável do companheiro. Não existe
melhor sentimento para impedir o indivíduo de reflectir, e
conseguir a paz interior, que a tristeza; muro entre dois jar-
dins; enfermidade universal a que ninguém escapa.
Durante o seu percurso até casa, expressava as suas
alucinações de diferentes maneiras. Nada com que os ha-
bitantes daquele bairro não estivessem familiarizados. Era
tão comum o grito ou o choro anónimo de um ser humano,
encoberto por uma sombra e pelos ruídos da noite e das ruas,
como a indiferença de uma árvore pela queda da folha de um
dos seus ramos no Outono. Em casa, o delírio revestia-se
dum misto de nostalgia e insanidade. Por cada quarto onde
passava de rompante, Simone procurava os antigos dese-
nhos que pintara nas paredes, na infância, às escondidas dos
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TRINTA E CINCO
Tinha passado um dia mas, para Nicolau, parecia te-
rem passado apenas umas horas. Nicole conduzia o carro
enquanto, no lugar do morto, o seu assistente se restabele-
cia, da carga de porrada que tinha apanhado, naquele café
em Zarabandar. O negrume do olho esquerdo era ainda uma
lembrança bastante visível daquela noite dolorosa. Acerca
dos pormenores sórdidos vividos naquele local, apenas uma
palavra deambulava nos rostos e olhos dos dois agentes da
Guarda Zaratista: Silêncio.
Concentração era uma das virtudes da inspectora-che-
fe. Enquanto conduzia, conseguia trocar informações e reco-
lher dados a partir do computador que sempre a acompanha-
va. O agente, meio convalescente, pesquisava, por ordem
de Nicole, a origem dos objectos que tinham encontrado em
Nog. As pistas que ambos tinham obtido naquele café, sobre
o paradeiro de Leandro e Rodrigo, matutavam incessante-
mente a mente da jovem agente.
Veja isto, inspectora-chefe, exclamou Nicolau, deslo-
cando o PC para Nicole. Recebi, agora mesmo, informação
do Centro dizendo que o pedaço de tecido que encontrámos
no barracão em Nog, pertence a um makbar e que a estatueta
que descobrimos naquele sítio também pertence a um pagão.
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TRINTA E SEIS
A mulher que se revelara nas sombras da noite, aos
olhos do Alquimista e dos seus discípulos, era o contraste
com a imagem de luxúria e desejo que suscitava no olhar
das ruas e dos seus clientes do bairro Extasis. Apesar da so-
briedade das suas vestes, Magdala não deixava realçar toda
a sensualidade e sedução, provocando a libido de todos os
homens que lambiam o chão por onde pisava. O jogo de
ancas em contraponto com a majestade do corpo e pernas
torneadas, misturado com a magnitude dos seios, além do
reluzir do olhar marítimo e do sorriso lunar, faziam dela o
mais belo retrato da natureza feminina.
Magdala aproximou-se da fogueira. O olhar e o suor
que lhe escorria pelo corpo revelavam um cansaço indes-
critível. Tinha feito centenas de quilómetros para se encon-
trar com o mítico profeta do Oráculo do Destino. O arfar
compassado e a lentidão dos passos eram sintomáticos duma
extrema fadiga. Os discípulos mantinham-se estáticos e re-
servados perante aquela presença feminina, caminhando na
sua direcção. O Alquimista foi o único a dirigir-se a ela com
um cantil cheio de água. Samuel estava hipnotizado.
Adivinhando o claudicar das pernas, o profeta ante-
cipou-se, segurando delicadamente o corpo fatigado, esten-
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TRINTA E SETE
A dor e a tristeza andavam de mãos dadas pelos cor-
redores do Palácio da Montanha Mágica, numa torrente de
lágrimas e gritos que estremeciam as próprias fundações do
palácio e os nervos dos oficiais da Guarda Zaratista, imóveis
como estátuas e outros artefactos luxuriantes, que decora-
vam a residência oficial do senhor de Distopia. Todo aquele
espaço era assaltado por um chorrilho de lamentos e tormen-
tos, capaz de afugentar o mais comum ser vivo da face do
planeta e a paz do morto mais esquecido do universo. Uma
situação passageira e natural para alguém como Zarat.
Ptolomeu preparava-se para responder a toda aquela
angústia existencial. Alpha e Ómega, tanto avançavam como
recuavam perante o movimento do líder dos líderes. Metello
testava os seus reflexos e procurava impedir Zarat de des-
truir tudo o que existisse à sua volta, tentando imobilizá-lo
com os seus braços titânicos. Magdala – sua acompanhante
de luxo e principal confidente feminina – tinha desaparecido
de Distopia sem deixar rasto; o senhor de Distopia precisava
desesperadamente da sua voz, palavras e afecto, como uma
criança necessita do conforto e regaço da mãe. Zarat estava
inconsolável. A fúria do homem mais poderoso do planeta
era interrompida quando a loucura falava por si.
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TRINTA E OITO
A imagem que se exibia no Conselho Magno de Disto-
pia era o paradoxo de tudo aquilo que os Filingus pensavam,
ou imaginavam, dele. Tanto dentro do carro como em casa,
Otto Gräss parecia ter contraído um trauma ou relembrado
uma série deles; tendo em conta o número de vezes que ba-
tia na cara e nos braços, como se estivesse a ser atacado por
uma praga de mosquitos, e os ataques de pânico que sobres-
saltavam o seu motorista, sempre com o coração na garganta
e os nervos à flor da pele, pela paranóia do seu amo e líder
do bairro onde vivia.
Se o percurso que Gräss fizera de carro do palácio
de Zarat para a sua residência, tinha sido um tormento, a
entrada nela fora um autêntico inferno. Não era a primeira
vez que o líder dos Filingus sussurrava, ao ouvido do seu
mordomo, que tinha a sensação de que a casa onde vivia
estava assombrada; uma declaração que se tornava normal
para alguém que conhecia bem de mais as suas virtudes e
loucuras, tais como a alucinante mania de afugentar traças,
apenas vivas na sua imaginação, com um mata-moscas que
guardava, religiosamente, no hall de entrada.
Não era fácil a vida do seu mordomo e dos empre-
gados do palácio. Raros eram os momentos em que o seu
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TRINTA E NOVE
Nunca um amor, tão profundo e incondicional, fora
tão controverso, como aquele que era sentido por Magdala
e pelo Alquimista. Em segredo, as opiniões dos discípulos
dividiam-se, apenas reflectidas nos olhos e nas expressões
dos seus rostos. Se, para uns, era natural o sábio ter uma
companheira e poder partilhar algum do seu amor e sabe-
doria, da mesma forma que sempre repartira com os seus
seguidores – embora, de maneira diferente, diga-se de pas-
sagem – para outros, estava fora de questão. Era até perigo-
so, um homem daquela envergadura ética entregar-se assim,
daquela maneira imberbe e irracional, aos prazeres da carne
e aos desejos de uma mulher, especialmente da categoria e
com o estatuto que Magdala ostentava na sociedade. Que
iriam pensar os futuros seguidores do Alquimista, quando o
vissem nos braços de uma prostituta, interrogavam-se algu-
mas mentes, fustigadas por nesgas de medo e preconceito,
que o profeta não conseguira limpar, totalmente, dos seus
corações. Dharma estava radiante por ter encontrado Mag-
dala, e esta, por ter abandonado a sua antiga vida e por ter
começado a namorar com o profeta que a salvara. Samuel
engolia em seco por cada gesto de ternura e carinho entre os
dois amantes.
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QUARENTA
Quem conhecesse bem a estória daquele eremita
do deserto, assim como a dos seus pais, sexagenários na
altura do seu nascimento, não poderia excluir a palavra
milagre para melhor descrever o seu inacreditável apare-
cimento. Os mais supersticiosos e ignorantes afirmavam
que a sua nascença tivesse sido provocada por algum sor-
tilégio ou encantamento, feito por um demónio desconhe-
cido; uma forma subtil de retratar todas aquelas pessoas
que não se enquadravam nos parâmetros da sociedade.
O tempo poderia ter apagado as chagas do corpo,
mas não as nódoas negras da alma. A cor de fogo dos
olhos denunciava insónias e angústias passadas. Resis-
tências a traumas de uma infância martirizada pela segre-
gação e discriminação de Phebos – o homem que Nicole
e Nicolau encontraram pela segunda vez no deserto –,
apenas por ser diferente. Tal como num sonho acordado,
recordava-se, sem pedir licença ao coração, dos colegas
de escola a chamarem-lhe bruxo, apenas porque era mais
hiperactivo e conseguia ler a mente das pessoas, assim
como dobrar talheres com o pensamento. Cada vez que
voltava a casa e contava à família que tinha falado com
plantas e anjos, provocava gargalhadas e, por vezes, ma-
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QUARENTA E UM
Um gesto, ou uma expressão, definem mais um ser
humano do que uma palavra ou uma imagem. É quase como
uma impressão digital da personalidade, às vezes, pouco ex-
plícita para os olhos do mundo, especialmente se estivermos
a falar de um universo mais atento à representação do mun-
do pela imagem e pela demagogia, do que aos pormenores
mais intrínsecos da natureza humana. Simon Beagle regres-
sava a casa na sua limusina, depois da última reunião do
Conselho Magno de Distopia. Os assuntos debatidos entre
Zarat e os seus colegas poderiam remoer o seu pensamento,
vezes sem conta, enquanto regressava a casa. Todavia, uma
estranha inquietação tomava conta do seu corpo como um
vírus, espalhando os seus tentáculos por todos os cantos do
veículo e da alma desequilibrada do chefe dos Seleceus.
Por acaso viu alguma barata no carro, perguntou Si-
mon, com o seu olhar gaseado, dirigido ao seu motorista. O
homem negou com a cabeça, sem mexer os lábios. No banco
de trás, Simon começava a ter comportamentos estranhos.
Por instantes, começara a coçar-se e a rebolar como um
chimpanzé. Minutos depois, observava aterrorizado, através
do vidro fumado, grupos de pessoas de raças e cores dife-
rentes das dos Seleceus, começando a tratá-las por baratas.
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QUARENTA E DOIS
Apenas um pequeno fio de água em forma de serpen-
te separava as duas classes socialmente distintas e transfor-
mava a Vila de Gamorra numa espécie de arquipélago de
moradias, cada uma diferente da outra. De um dos lados
dessa corrente líquida que serpenteava toda a povoação, cir-
culavam e viviam as pessoas mais abastadas e influentes,
do ponto de vista económico, político e social; do outro, vi-
via a população mais miserável e humilde. Por vezes, uma
criança com pouco menos de seis anos, que, para pedir uma
esmola, ou um pouco de pão para comer, ultrapassasse esse
limite imposto pela natureza a um casal de fidalgos ou no-
vos-ricos que costumavam passear pela vila, enquanto o sol
dava sinais de vida, era mais alvo de ira ou indiferença do
que de coragem e solidariedade – palavras que pareciam ter
sido banidas da mente daquelas pessoas, naquela pequena
galáxia humana. Apenas os forasteiros como o Alquimista
e os seus discípulos eram bem-vindos e tolerados, não por
serem forasteiros, mas por não conhecerem os costumes da-
quela vila de muros invisíveis.
O que se passa com esta gente, perguntava Samuel.
Ricos ou pobres, os habitantes olhavam de soslaio para o
profeta e para os seus seguidores; outros, estudavam minu-
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QUARENTA E TRÊS
Poucos Rebeleus conheciam a razão pela qual Graco
usava vidros fumados no seu carro oficial, durante as des-
locações. Mitos urbanos deambulavam pela cidade sobre a
razão da sua existência. Uns, falavam de uma doença rara,
que afectava o corpo do Líder do Bairro Rubro com a luz
do sol; outros, uma medida de segurança contra conspirado-
res de outros bairros ou contra dissidentes do partido contra
ele. Para os mais ousados, uma forma de esconder o medo
que este sentia por Golem, o monstro lendário, criado pelo
Capitalismo Selvagem – segundo ele –, e que comia Rebe-
leus ao pequeno-almoço. Graco fora o primeiro a contar ao
seu povo a existência dessa criatura, acabando por povoar o
imaginário de todos os habitantes daquele bairro, vermelho
como as papoilas dos prados que, em tempos remotos, ti-
nham existido nos arredores de Distopia.
Graco regressava a casa no carro oficial do Grande
Camarada dos Rebeleus, depois de ter assistido à reunião
do Conselho Magno de Distopia. No interior da viatura,
ouvia “A Internacional” vezes sem conta e relembrava os
seus tempos de menino e de estudante universitário: quando
fazia parte de todas as principais organizações juvenis e es-
tudantis, ligadas ao pensamento Rebeleu; quando ingressara
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QUARENTA E QUATRO
Se para uma região, como o Grande Deserto, não tinha
qualquer significado o sabor da água, para o ser humano, a sua
ausência significava um bilhete sem retorno para uma mor-
te certa à espreita no olho de um abutre ou de um milhafre,
voando em círculos sobre o céu seco e o canibalismo do sol
do meio-dia.
Nicole e Nicolau continuavam a sua viagem de regresso
à cidade. O assistente da bela inspectora da Guarda Zaratista
voltara a conduzir o automóvel. Sentia-se um pouco melhor,
depois da tareia que recebera nos arredores de Zarabandar. As
nódoas negras, essas, passariam como o tempo que voara dos
seus relógios. Tinha apenas um pensamento na cabeça: voltar
o mais rapidamente possível à cidade. Poderia não ter a paz e
o sossego do Grande Deserto mas, pelo menos, havia água e a
sombra que aquele espaço ignorava. Nicole observou os can-
tis pelo gargalo. Pediu para parar o carro. Nicolau obedeceu.
Os nossos cantis estão vazios. Quando foi a última
vez que os enchemos, perguntou, desconfiada para o colega.
Nicolau engoliu em seco, antes de responder. Ora, Inspecto-
ra-Chefe... abastecemos tudo naquela estação de serviço que
encontrámos há três dias! Desde então, não encontrámos nada
nesta terra de ninguém.
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QUARENTA E CINCO
Fugir da racionalidade pode ser, para uns, uma forma
de revelar que o ser humano é mais do que um complexo
sistema mecânico de tecidos, órgãos e fluidos, funcionando
de forma precisa e concertada, como um relógio; para ou-
tros, um pesadelo, tendo em conta as aparências e o modo
de pensar do mundo que nos rodeia. Para Metheos, era uma
ameaça à sua vida e à vida do povo do Bairro Cogito.
Faltavam poucos minutos para o chefe dos Methódi-
cos chegar a casa, segundo o motorista que o conduzia no
seu carro particular. Metheos não se sentia bem. Suava sem
razão aparente e nem a leitura do “Discurso do Método” de
René Descartes, o sossegava. Temia a loucura e as suas con-
sequências como um animal em presença do perigo. Tudo
parecia estar contra ele: tinha acabado de fumar, um a um,
todos os cigarros da cigarreira e tomado o último antidepres-
sivo, antes da reunião do Conselho Magno de Distopia. O
dia podia ter começado como um sonho mas, para o mestre
da lógica e do pensamento racional da cidade, poderia aca-
bar num pesadelo.
Metheos usava métodos bizarros para provar que não
estava louco. Um deles, consistia em contemplar, constante-
mente, um relógio de bolso com banho de prata – herança do
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QUARENTA E SEIS
Quem o visse a atravessar o Grande Deserto, na sua
Triumph T110, vermelha e negra, com roupa de motoqueiro
rebelde à anos cinquenta, rasgando o asfalto e sentindo o
sabor do vento laminado – como Marlon Brando no céle-
bre filme “O Selvagem” de Laszlo Benedek –, estaria longe
de imaginar que, por detrás de toda aquela indumentária de
ganga e cabedal, lenço preto e óculos escuros, estaria um
jovem sindicalista Rebeleu, de sorriso nos lábios, a caminho
de uma missão, nada digna aos olhos do povo do seu bairro
e da sua cidade.
Desde a notícia do milagre de Gamorra, a populari-
dade do Alquimista e dos seus discípulos foi ganhando pro-
porções inimagináveis. Dos quatro cantos do planeta, chega-
vam multidões, carregadas de víveres e esperança para ver,
ouvir e tocar no Profeta do Oráculo do Destino. À passagem
da carrinha de Samuel, choviam pétalas de flores e toda a
espécie de plantas raras; grupos de pessoas, despojadas de
bens e de lares, longe das suas famílias e actividades, amon-
toavam-se com o único propósito de seguirem aquele ho-
mem. Samuel, tal como os discípulos do Alquimista, não
conseguia esconder a alegria e a emoção, sentidos naquela
amálgama de energia positiva que os cercava. Filas e filas de
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QUARENTA E SETE
Não se via vivalma em Narvalis. A aldeia estava sitia-
da por quase uma centena de oficiais e soldados da Guarda
Zaratista. Qualquer movimento, subtil ou brusco, viesse do
lago subterrâneo ou de uma rua ou casa, era alvo de suspeita
e alerta, para todos aqueles homens e mulheres armados, ao
serviço do homem mais poderoso do planeta. Ordens sinté-
ticas eram transmitidas, em código, por microfones. Holo-
fotes de alta potência rasgavam a escuridão e iluminavam
a vila mais do que todas as candeias daquela povoação. O
escritório do chefe da aldeia serviu de quartel-general im-
provisado para Metello e a sua patrulha. Declarado o reco-
lher obrigatório na aldeia, o chefe da guarda de Zarat estava
mais à vontade para interrogar Nicole e Nicolau, acerca das
suas investigações.
Os dados que enviaram para a Central deixaram-me,
não só surpreendido com o desempenho dos dois como tam-
bém intrigado. Como devem saber, desde que se soube da
vinda do Alquimista e da sua intenção de se dirigir a Disto-
pia para cumprir a profecia do Oráculo, milhares de pessoas
invadiram o Grande Deserto para irem ao seu encontro. Vá-
rias detenções foram feitas, desde que vocês partiram, con-
tra pessoas que provocaram distúrbios na cidade, declaran-
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Tiago Moita
do serem aquilo que não são. Tanto eu, como vocês, sabem
a ameaça que esse homem representa, não só para o nosso
grande líder como para a nossa civilização. Por isso, Zarat
enviou os seus melhores agentes para o Grande Deserto de
forma a descobrir quem é esse homem e como capturá-lo.
O que é que descobriram então, agentes Nicole e Nicolau,
perguntou Metello, depois de terminar a sua prelecção. A
Inspectora-chefe mostrou-lhe a revista onde encontrara a
notícia da mulher que dera à luz uma criança, há vinte e
sete anos atrás, sendo na altura ainda virgem. Metello não
se mostrou muito convencido. Porém, quando Nicolau lhe
entregou a mala de Nicole Adágio, com as provas recolhidas
no barracão de Dario, na Vila Nog, o chefe da Guarda Za-
ratista, mudou completamente de expressão: a diversidade
de objectos e a sua ligação com a identidade dos seus donos
deixaram-no apreensivo. A sua reflexão terminou quando os
dois agentes referiram a descoberta dos carros abandonados
de Leandro, de Rodrigo, dos irmãos Gustavo e Adriano e
também de uma jovem sem-abrigo, procurada por Faustus,
chamada Dharma. Quando ouviu isso, Metello ficou boquia-
berto e radiante. Sentiu uma espécie de interligação entre o
que os seus oficiais tinham investigado desde a notícia da
existência do Alquimista, até à última reunião do Conselho
Magno de Distopia, onde se decidira, segundo a estratégia
de Ptolomeu, acabar com o profeta do Oráculo do Destino.
Sem proferir uma palavra, o chefe da Guarda de Zarat mos-
trou-lhes duas pastas amarelas.
– Enquanto estive a ouvir, com muita atenção, as de-
clarações que vocês prestaram e a observar as provas que me
mostraram, lembrei-me de uma investigação, feita por dois
agentes da Central, acerca de um casal que deu à luz uma
criança nas circunstâncias que vocês referiram.
Nicole e Nicolau abriram as pastas e começaram a
analisar os dossiês. Ambos falavam de um vidreiro de uma
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QUARENTA E OITO
O lusco-fusco anunciava a despedida do dia. Os se-
guidores do Alquimista prosseguiam o seu percurso pelo
desfiladeiro de Haznaar; uma região inóspita até para qual-
quer ser vivo, dada a quantidade de perigos e lendas, alimen-
tadas pela ignorância do mundo e pelo medo dos homens,
que faziam daquela região um dos lugares mais tenebrosos
do planeta. O povo crente mantinha o sangue frio, archo-
tes acesos e mãos dadas uns aos outros, numa espécie de
corrente humana, transformada numa serpente de fogo vis-
ta do céu menstruado. Acreditavam que, enquanto o profe-
ta do Oráculo do Destino estivesse com eles, nenhum mal
lhes poderia acontecer, viesse donde viesse. Todavia, apesar
de a fé superar o instinto, era frequente assistir ao nervoso
miudinho de uma alma mais débil por causa do crocitar de
um abutre ou do rugir de um puma. Subitamente, Samuel
parou a carrinha.
Mesmo o mais comum mortal ficaria de olhos presos
e mente bloqueada perante o esplendor daquele monumen-
to. Um gigantesco templo escavado numa rocha amarela
com quarenta e cinco metros de altura e trinta de largura,
seguindo um modelo helenístico de construção, com repre-
sentações de mulheres, deuses e anjos, misturados com seres
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QUARENTA E NOVE
O que parecia ser o prenúncio de uma noite tranquila
desfez-se com o lusco-fusco do entardecer. Salomão regres-
sava ao lar no carro e tinha todos os motivos para sorrir:
o trabalho correra de feição, não discutira com os seus su-
bordinados, o seu laboratório não sofrera qualquer tipo de
distúrbios ou acidentes e não tivera nenhuma visita indese-
jável de agentes e oficiais da Guarda Zaratista a questioná-lo
sobre a celeridade do projecto VHCruz. Um dia idílico com
sabor a néctar e ambrosia, prestes a converter-se num pesa-
delo.
O que será desta vez? murmurou Salomão com os
seus botões, enquanto fechava as portas e accionava o alar-
me com o comando do veículo, correndo de seguida para
casa. Gritos agudos intermitentes percorriam todos os can-
tos da residência. Dentro da moradia, uma mulher, empolei-
rada numa mesa e de vassoura na mão, gritava que nem uma
desalmada. O cientista identificou-a, antes de abrir a porta.
O que é que aconteceu, querida? O que é que aconte-
ceu, perguntou aos berros depois de fechar a porta. Uma...
uma ratazana... uma ratazana entrou na nossa casa. Vê se a
encontras e matas, querido. Vê se a matas, vociferou de vas-
soura em punho. Salomão pegou numa espécie de pistola de
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CINQUENTA
Visto de longe, aparentava um campo militar aban-
donado, dizimado pela usura do tempo e do Grande De-
serto, cheio de casernas, linhas de caminho-de-ferro aban-
donadas e outros tantos edifícios, entregues à ferrugem,
à poeira e ao esquecimento. Nenhum dos seguidores do
Alquimista – nem mesmo os seus discípulos – sabia que
estava perante o Campo de Concentração de Birknam. O
enfraquecimento da densidade de energia das suas auras
revelava as vibrações negativas daquele lugar. Um monte
de ruínas construído pela mão da própria morte. Sapien-
te do que estava a acontecer mais amiúde, o profeta pe-
diu aos seus discípulos que desenhassem um gigantesco
círculo à volta das pessoas que o seguiam. Em seguida,
ordenou a todos que não saíssem do círculo e se sentas-
sem na posição de Buda, de mãos dadas uns aos outros.
Samuel ficou à sua esquerda, enquanto Magdala ficou à
sua direita. Mal todos se acomodaram, começou a falar.
– Há mais de um século, este planeta foi ameaçado
por um tirano, que defendia a pureza da raça do seu povo
e o genocídio em massa de todos os povos que subjugava,
chamado Hisler. – disse o Profeta.
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CINQUENTA E UM
Não se via vivalma na rua naquela noite em Disto-
pia. A noite presenteara a cidade com uma pequena amostra
do dilúvio bíblico. Apenas em alguns bairros, era possível
encontrar alguns transeuntes, fugindo da fúria do tempo.
Os transportes públicos iam cheios, tal como o estado de
espírito das pessoas que saíam do trabalho e só desejavam
regressar rapidamente ao conforto dos lares. Só as povoa-
ções remotas e vizinhas do Grande Deserto viam este ce-
nário como uma bênção. O que para uns é um inferno, para
outros é um paraíso.
Uma limusina chegava à entrada do pátio principal do
Palácio da Montanha Mágica. Alpha e Ómega apressavam-
-se a abrir a porta da viatura. Sem lhes dar tempo para tal,
a porta abriu-se abruptamente, sem a sua desajeitada ajuda,
seguido de um guarda-chuva preto aberto e da silhueta do
homem que Zarat mais desejava ver naquele momento.
Ptolomeu e Metello acompanhavam Salomão até ao
gabinete do senhor de Distopia. O som dos passos dos três
homens, seguido do barulho das botas e dos gestos de con-
tinência dos soldados da Guarda Zaratista, abafavam o som
da chuva que se fazia sentir no exterior do palácio: Para-
ram.
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CINQUENTA E DOIS
A limusina oficial de Saul Rabel atravessava o Bairro
Cornucópia como um golfinho no mar. O fumo do charuto
cubano, com que se deleitava no banco de trás da sua viatura, e
a forma como demorava a olhar para as horas no seu relógio de
bolso – banhado a ouro – com um sorriso complacente, revela-
vam um estado de júbilo e serenidade, como se tivesse vindo de
um evento desportivo com um troféu ou vitorioso de um campo
de batalha.
A noite estava tranquila. Nem uma nuvem no céu nem
um vento mais aziago, capaz de perturbar os espíritos mais
pios, retratavam o estado de espírito do chefe dos Averos. Du-
rante a viagem, costumava pegar na primeira moeda de ouro
que o seu antigo patrão lhe oferecera, como lembrança, antes de
morrer, relembrando, ocasionalmente, as suas últimas palavras.
As mesmas que tinha proferido, quando Saul, então secretário
principal do velho decano do mundo da alta finança de Disto-
pia, lhe perguntara qual tinha sido o segredo do seu sucesso.
“Quero que fixe um objectivo tão ambicioso que, se vier
a atingi-lo, ficará em estado de choque, e saberá que isso acon-
teceu por causa daquilo que lhe ensinei.”
Tal como a memória dos tempos, frases como aquelas
ressoavam na sua mente como um mantra tibetano. Saul não
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CINQUENTA E TRÊS
A meditação feita pelo Alquimista, em conjunto com
os seus discípulos e o povo que o seguia, terminara com
um enorme burburinho. Era de mais. As perguntas tinham o
mesmo peso das respostas que o Profeta dera a todas aque-
las almas. As últimas revelações e profecias causaram ver-
dadeiros abalos sísmicos no pensamento e no coração de
cada uma das pessoas que o seguiam. Apenas os discípulos
mantinham controlo das suas emoções, perante tanta infor-
mação. Adriano tomou a palavra e questionou o Alquimista
sobre o conceito de Espaço.
Complacente e sempre sorridente, o profeta respon-
deu. O espaço é o tempo revelado. Tudo é qualquer coisa.
Não existe espaço puro. Vazio sem nada. Mesmo o espaço
mais vazio está repleto de vapores tão subtis, tão estendidos
sobre áreas infinitas, que parecem não existir. Depois, há ain-
da energia pura que se manifesta como vibrações, oscilações
e movimentos do Todo numa frequência específica. Aquilo
que vocês chamam matéria é, na sua extensão, espaço.
Isso significa que o universo... era sólido, perguntou
Gustavo. Sim. No princípio o universo era sólido porque
não havia espaço algum entre as partículas da matéria. Lem-
brem-se que todos os objectos sólidos são constituídos por
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maior do que aquela que vos rodeia; sentir uma energia dife-
rente. Esse poder é acessível a qualquer ser humano, desde
que esse ser humano obedeça a três regras fundamentais:
todo o pensamento é energia; todas as coisas estão em movi-
mento e todo o tempo é agora.
Os médiuns são pessoas que se abriram às experiên-
cias produzidas por esses fenómenos concebidos por vibra-
ções cósmicas. Umas, formadas por imagens mentais; ou-
tras, por pensamentos sob a forma de palavras. Um médium
é um perito em sentir essas energias que reconhece a sua
subtileza, sem perguntar se certa imagem, som ou brisa es-
tavam lá mesmo. As perguntas ocupam a mente e afastam as
respostas.
Ao contrário do que alguns de vós possam pensar, a
intuição não reside na mente. A intuição é o ouvido da alma
porque a alma é o único instrumento suficientemente sen-
sível para alcançar as mais débeis vibrações da vida, sentir
essas energias, aperceber-se dessas ondas no campo mag-
nético e saber interpretá-las. O tempo é algo que não existe
para um médium, pois ele vê, ou sente, a imagem do ama-
nhã como se estivesse a acontecer agora mesmo. Daí a sua
idoneidade em “prever o futuro”.
Um grande silêncio seguiu-se depois desta interven-
ção. Todos os presentes fecharam os olhos e voltaram a me-
ditar. Subitamente, o profeta revelou mais uma epifania.
A violência e a insegurança acabarão quando expe-
rienciarmos uma ligação mais profunda com a energia di-
vina que existe dentro de vós. Uma aliança relatada pelos
místicos de todas as tradições. Uma sensação permanente
de Amor e uma noção de leveza – de estar a flutuar – são as
medidas dessa aliança. Se esses elementos estiverem pre-
sentes, a ligação é verdadeira. Se não estiverem, é apenas
uma ilusão.
Assim pregava o Alquimista.
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CINQUENTA E QUATRO
Ainda tinha tempo para um pouco de saudade. Simo-
ne Dumonde passara o dia inteiro a percorrer o Palácio da
Orquídea Negra memorando retratos, bustos de cera e már-
more e álbuns de fotografias antigos. Resolvera marcar um
dia para a memória e rodear-se de todos os objectos que ali-
mentassem de fantasia a sua alma. Precisava de algo para rir
ou para chorar que não fosse a realidade. Não, a realidade
nunca! A realidade é a suprema opressora do sonho e da
ilusão; sanguessuga de energias cósmicas, capaz de fazer
desaparecer o significado da existência humana, pensava
Simone, enquanto meditava sobre os retratos a preto e bran-
co – alguns a cores – dos álbuns de fotografias da sua vida.
Num deles, vislumbrou a visita a uma praia – no tem-
po em que o mundo possuía oceanos, mares e rios onde to-
dos podiam banhar-se e beber na mais pura fonte, mitigando
a sede, e prova da existência de vida no planeta – recordando
a invídia que tinha dos barcos e dos marinheiros. Não era a
inveja da chegada mas a inveja da partida: idealizava via-
gens para uma aventura, fosse ela um salto no abismo ou a
descoberta de um mundo novo; uma necessidade de desapa-
recer e de agitação que nunca poderia encontrar nas quatro
paredes da casa da sua família.
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CINQUENTA E CINCO
Nunca tinham sentido tamanha sensação de leveza e
de clarividência como aquela. Os seguidores e discípulos do
Alquimista tinham sido convidados pelo profeta a subirem
uma montanha e a deixarem abrir a alma à energia do seu
Eu Superior. No pico mais alto, fecharam os olhos e deram
as mãos, terminando com uma respiração compassada e pro-
funda; adormeceram a mente, para apurarem todos os senti-
dos e experimentarem a grandeza do Universo e a inegável
unidade do Ser para com Deus, alcançando estados mais
profundos e invulgares de consciência. Subitamente, numa
harmonia com o Todo – como se o planeta, o sol e o céu fi-
zessem parte dos seus próprios corpos –, presenciaram toda
a história da evolução; desde a matéria a revelar formas cada
vez mais complicadas, até criar as condições mais simples
para que cada ser humano, enquanto indivíduo, aparecesse.
Naquele instante, sentiram-se invisíveis aos olhos do mundo
que os perseguia. Foi como se estivessem sentados no rega-
ço de Deus.
O dia desvanecia-se no horizonte. O Alquimista e o
seu povo tinham chegado à aldeia de Azgot. O estado de
espírito jubiloso do profeta, dos seus seguidores e discípu-
los, contrastava com o ambiente vivido naquela povoação.
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CINQUENTA E SEIS
Não escolhera melhor momento para meditar do que
aquele; dentro de uma banheira de mármore, cheia de água e
sais e pétalas de rosa, para apaziguar o corpo e os pensamen-
tos do dia. Faltava pouco menos de uma hora para se reunir
com o governo autónomo do Bairro Extasis e precisava de
todo o relaxamento possível para falar com os seus conse-
lheiros e membros do governo Niilisteu, sobretudo o que
tinha sido decidido na última reunião do Conselho Magno
de Distopia. Por momentos, sorria para dentro e imaginava
a cara das pessoas, que escolhera para formar governo e lhe
darem conselhos importantes, quando lhes dissesse que ti-
nha sido aprovada a proposta de um novo elemento, externo
ao Conselho.
Só quem conhecesse o que Faustus fizera durante o
dia podia compreender todo aquele relaxamento, digno de
um príncipe. Durante toda a tarde, encenara e representara
todo o seu discurso ao som de trechos de ópera de Wagner,
tal como Hitler fazia, antes dos seus comícios, deixando-o
desgastado fisicamente e a suar como um animal com cio.
Mal terminou o seu ensaio e discurso, ligou a televi-
são e começou a fazer zapping pelos mais de trezentos ca-
nais por cabo que possuía, enquanto comia um hambúrguer
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CINQUENTA E SETE
Vista de cima, parecia um pequeno ponto branco no
meio de uma mancha verde minúscula. A igreja de Pelak
assemelhava-se a uma típica construção cristã, – quando a
palavra crístico não existia –, mandada construir num tempo
olvidado dos manuais de História de Distopia. De perto, era
um edifício religioso em estilo gótico, cuja área não corres-
pondia ao seu interior, bem mais amplo que o de alguma
das mais belas catedrais, erguidas pelos antepassados dos
crísticos, séculos atrás, na fronteira que separava o Grande
Deserto da presença humana ou, o mesmo será dizer, do li-
mite que separava o paraíso do inferno.
Nicole e Nicolau chegaram à paróquia de Pelak antes
do pôr-do-sol. Uma brisa morna vinda do deserto acompa-
nhava o silêncio que se sentia em todo aquele espaço. A ins-
pectora-chefe foi a primeira a sair do carro. Nicolau aban-
donou a viatura um minuto depois. Por fora, não se avistava
a mais simples presença humana. Apenas o chiar do baloiço
de um parque infantil abandonado e o ruído do cata-vento do
campanário da igreja revelavam a presença de construções
humanas. O resto do local estava deserto.
Os dois agentes entraram, sorrateiramente, pela porta
principal daquele edifício religioso e sacaram as armas. A
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CINQUENTA E OITO
Constantino aguardava, impacientemente, pela res-
posta do Alquimista. Não era a primeira vez que o profeta
era interpelado por idêntica questão. Durante a viagem que
fizera com Samuel e os seus discípulos até àquele local, re-
nascido das cinzas do seu próprio luto, raras eram as vezes
em que não era interpelado pelo mesmo quesito. Não fosse
ele um dos temas mais apaixonantes e abstractos de toda a
História da Humanidade. Uma multidão juntara-se ao padre
e partilhava o seu estado de espírito.
Paciente, o profeta sentou-se numa pedra à beira de
um jardim e começou a falar. Durante séculos, o Homem
conheceu muitas versões acerca do conceito de Deus, sem
nunca o verdadeiramente conhecer. Durante o percurso que
fizestes comigo, mostrei-vos diversas provas sobre a sua
existência. A vossa pergunta não só é legítima como sensa-
ta. É a prova de que estais a comportar-vos como verdadei-
ros sábios. Tornastes-vos na semente que é lançada à terra
e questiona a sua origem, depois de ser planta. Lembrai-vos
de que o verdadeiro Mestre não é o que tem mais alunos,
mas o que cria mais mestres; que o verdadeiro líder não é o
que tem mais seguidores mas o que cria líderes; que o ver-
dadeiro governante não é o que tem mais governados mas
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CINQUENTA E NOVE
Como é possível existir alguém incapaz de entender
a linguagem como a fronteira do seu universo? Pergun-
tava Otto Gräss para com os seus botões, enquanto deam-
bulava pelos corredores da biblioteca da faculdade, onde
era reitor, – além de Chefe dos Filingus –, observando
os estudantes que passavam apontamentos de aulas an-
teriores ou copiavam textos de grandes autores clássicos
e contemporâneos, ao mesmo tempo que reflectia sobre
a existência de alguém, como o Alquimista, inábil para
entender esse pensamento tão nobre e racional de Witt-
genstein. A sua meditação fazia com que os gestos do seu
corpo fossem automáticos. De quando em vez, sacava de
uma caneta e punha-se a abrir e a fechar a tampa, vezes
sem conta; outras, pegava num livro.
Naquele instante, mudara de reflexão enquanto ob-
servava uma página de um livro de Montaigne com uma
lupa, em busca de uma transcendência imanente nas pa-
lavras daquela folha. O essencial é invisível aos olhos,
relembrava a velha máxima de Jacques Derrida, durante
a sua pertinente pesquisa. Custava-lhe a aceitar a existên-
cia de um fundamento místico nas palavras do profeta do
Oráculo do Destino, tal como considerava inconcebível
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SESSENTA
Nunca a imensidão do céu deslumbrara tanto Samuel
como naquela noite. Tinha a boca seca mas não lhe ape-
tecia tapar os sulcos da sede. As respostas que ouvira do
Alquimista pareciam ter preenchido todas as perguntas que
sempre quisera fazer. Mesmo assim, sentia uma necessidade
de síntese; algo que resumisse tudo aquilo que aprendera
daquele profeta, desde o dia em que lhe dera boleia até ao
último ensinamento.
Magdala encontrou Samuel sozinho, entregue à con-
templação das estrelas que bordavam o véu púrpura da noi-
te, ordenadas em constelações geométricas pelo dedo do
Criador. Ficou intrigada com o isolamento do caixeiro-via-
jante, depois de tudo o que escutara do Alquimista. Movida
pela intuição e pela curiosidade, dirigiu-se para junto dele.
Nem o som da erecção das ervas, provocado pelo som dos
seus passos, nem a presença da sua sombra, denunciando a
voluptuosidade do seu corpo, desviaram o olhar de Samuel
da sua observação e meditação.
A mulher sentou-se ao lado do jovem e começou a
falar, imitando a sua postura.
– Quando vivia em Distopia, nunca dei conta da be-
leza de uma noite como esta. Custa-me a acreditar que foi
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SESSENTA E UM
Parecia uma visão pior do que o inferno. O Alquimis-
ta, os seus discípulos e seguidores, chegavam ao que parecia
ter sido uma floresta. Hectares e hectares de cinza de toda a
espécie de plantas – e até de animais – cobriam uma gigan-
tesca superfície, pintalgada de cinzento e negro, onde nem
as aves de rapina do Grande Deserto voavam por perto. Pa-
reciam ter sido vencidas pela voragem do tempo que tinha
dizimado aquele local, vencido pela morte. Samuel parou a
carrinha no meio daquele mar de cinzas e sombras de um
verde que passara a pertencer à memória da natureza. To-
dos os que seguiam o profeta ficaram boquiabertos perante
aquele cenário dantesco. Uma espécie de criança a segurar
um macaco bebé, fossilizados, despertou a tristeza em Dhar-
ma.
Onde estamos, perguntou o caixeiro-viajante ao Alqui-
mista. Anamom, ou o que resta dela, respondeu. Anamom,
exclamou Magdala. Sim, uma das mais densas florestas tro-
picais deste planeta. Em tempos conhecida como o pulmão
verde do mundo, até que as mudanças do universo e a ganân-
cia dos homens destruíram o que restava dela. Deviam tê-la
visto como era: árvores tão altas que pareciam chegar a tocar
os telhados do céu; animais e espécies de plantas desconhe-
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SESSENTA E DOIS
A noite abraçara o mundo assim como o sono dos dis-
cípulos e seguidores do Alquimista. Um pequeno aglomera-
do de tendas e sacos-cama, à volta de pequenas fogueiras,
até ao último fôlego do fogo, preenchia uma parcela daquela
paisagem nocturna. Ao longe, ouviam-se uivar os coiotes.
Era noite de lua cheia, foco luzente no céu. Apenas as som-
bras escondiam os animais e insectos rastejantes. Nenhum
se atrevera a penetrar no acampamento do profeta e do seu
povo pelas vibrações emitidas pelos seus pensamentos. A
imagem daquela antiga floresta virgem, dizimada pela acção
do homem e da natureza não desconcentrara nenhuma da-
quelas almas que seguiam o profeta do Oráculo do Destino,
do seu propósito e da sua Fonte.
Uma silhueta humana aproximava-se, como uma nu-
vem negra, do acampamento. Metheos tinha deixado o car-
ro, a poucos metros daquela amálgama de tendas e sacos-
-cama, para cumprir a sua missão. Passo a passo, caminhava
sem provocar o silêncio da noite e a paz dos espíritos mais
pios daquela região. Meticulosamente, utilizava o seu fiel
fio-de-prumo – transformado em pêndulo improvisado –
para não tropeçar nas imperfeições que pudesse encontrar
naquele desassossego árido: pára.
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só por si, não pode ser o leme, nem a paixão as velas para
uma alma que deseja navegar. Se não caminharem juntos,
a alma pode andar à deriva ou ficar imóvel, como um bar-
co no meio do mar. E, tal como o livre-arbítrio de pessoas,
como o Leandro – que vieram procurar-me e me encontra-
ram –, também a razão, como a paixão, são necessárias. Mas
a razão, só por si, é um muro; e a paixão desgovernada é
um incêndio descontrolado. Por isso, deixai a vossa alma
emanar a razão até ao zénite da paixão, de forma a poder
cantar, deixando-a guiar a vossa paixão com razão, para que
ela possa viver e renascer das suas próprias cinzas.
Metheos respondeu com lágrimas e não encontrou pa-
lavras para contrapor perante aqueles argumentos. Olhando
simultaneamente para Leandro e para o Alquimista recuou
a passos largos até entrar no carro, como quem foge de um
crime que tivesse acabado de cometer. Leandro instintiva-
mente abraçou o Alquimista. Pela primeira vez na sua vida,
tinha tido coragem de enfrentar o chefe do seu povo e defen-
der a sua escolha, fruto do poder mais poderoso, concedido
ao homem: a sua Fé. O Profeta acolheu-o com um sorriso de
satisfação.
– Hoje foste um sopro na esfera do universo e uma fo-
lha verdejante na floresta de Deus. Assim como repousaste
na razão, move-te sempre na paixão e sentir-te-ás como um
gigante, com um génio sentado no seu colo.
Assim pregava o Alquimista.
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SESSENTA E TRÊS
Nem mesmo o clarão do último relâmpago a recortar
a bruma do céu abalou Ptolomeu durante a condução auto-
móvel pelas artérias mais movimentadas de Distopia. Era o
quarto dia consecutivo de chuva na cidade. Desde a notícia
do aparecimento do Alquimista que a natureza começara a
dar sinais estranhos, observados pelos habitantes da única
cidade do planeta, mas entendidos pelas populações que
viviam nos arredores – ou em lugares remotos do grande
centro nevrálgico de todas as decisões daquele mundo, mais
habituadas aos avisos da natureza e às mudanças provocadas
pela acção do homem e do universo.
De soslaio e através do cortinado, Salomão observava
o temporal pela janela da varanda da sala de jantar. Um misto
de culpa e inquietação transfiguraram o rosto e o coração do
cientista. Como homem de ciência, sabia que fazia parte de
uma classe que tinha uma quota-parte de responsabilidade
no estado de biocídio a que chegara o planeta. Os temporais
e a acidez das chuvas a corroer os monumentos mais antigos
de Distopia eram um exemplo bem claro da poluição atmos-
férica provocada pelo ser humano durante séculos. Não era
um dever jurídico, mas antes um dever cívico e ético, aquele
que ele deveria ter tido, alertando as autoridades sobre os
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O Evangelho do Alquimista
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SESSENTA E QUATRO
O vento era o menor dos problemas para Samuel. Há
mais de uma semana que viajava por uma pequena estrada
secundária, cheia de pedras e gravilha, que afunilava numa
curva saliente, junto à parede rochosa de uma montanha inós-
pita, como o seu subconsciente. Durante sete dias não para-
ra de pensar nas palavras do Alquimista, especialmente nas
mudanças climáticas e na ideia de cada ser humano evoluir
para estados mais profundos de transcendência e evolução,
sentindo, ao mesmo tempo, um misto de medo e entusiasmo
com tudo aquilo que ouvira e experienciara. Tanto ele, como
os discípulos e os seguidores do profeta, reconheciam que
tudo o que tinham experienciado com aquele homem ultra-
passava os limites da própria imaginação. A carrinha saltou,
mais uma vez, sobre uma série de pedregulhos. No fim da
estrada, encontrou uma bifurcação: parou.
Samuel olhou para o Alquimista, como se quisesse
adivinhar por telepatia a direcção a seguir. O profeta intuiu o
seu quesito, pousando a sua mão na mão direita do caixeiro-
-viajante, com um sorriso. Esta bifurcação é como a vida: um
desafio às nossas potencialidades e uma oportunidade para
exercermos o poder que Deus e o Universo nos concederam.
Lembra-te do que te ensinei na Floresta das Auras: não uses
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SESSENTA E CINCO
O sono tomara conta tão depressa daqueles que se-
guiam o Alquimista, como o silêncio que pairava naquela
casa. Nem as aranhas e os ratos, que percorriam as ripas de
madeira, carcomida pelo tempo, e os canos dos esgotos da-
quela habitação taciturna, se atreviam a incomodar o repou-
so daquelas almas, iluminadas pela palavra e ensinamentos
do profeta que tinham escolhido seguir até ao seu destino.
Apenas as paredes vetustas e bolorentas abafavam o ruído
de fundo do ressonar de alguns daqueles seres humanos, fus-
tigados pelo cansaço de mais um dia de sabedoria em acção.
Uma mão enluvada abria a porta principal da Man-
são das Memórias, sem fazer ruído. Simon Beagle podia ter
muitos defeitos mas não era parvo: entre os objectos que
trazia na sua sacola, tirara uma pequena almotolia e lubrifi-
cara as dobradiças empenadas da porta, antes de tentar en-
trar. Primeiro passo: estava dentro sem ninguém ter dado
pela sua presença. Por onde passava, apenas a luz sentia a
fria nudez da sua sombra. O uso de um calçado leve e um
foco de luz branca contribuíam para que ele não executasse
movimentos bruscos, capazes de provocar o mais leve ruído.
O uso de uma máscara anti-pó de tecido sintético revelava
a sua paranóia em relação às doenças, especialmente quan-
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SESSENTA E SEIS
O dia acordou com um suspiro de alívio de Gus-
tavo. Desde que entrara naquela casa, juntamente com o
Alquimista e os seus discípulos e seguidores, que temia
confrontar-se com o seu maior medo. Uma fobia que ele
era incapaz de controlar desde criança, quando ficara fe-
chado no sótão da casa dos avós e encontrara uma tarântula
gigante, de vinte centímetros de comprimento, perseguin-
do-o durante todo o tempo em que ficou preso dentro da-
quela divisão. Subitamente, enquanto as restantes pessoas
acordavam, o contabilista Avero soltou um grito agudo. A
sombra de uma aranha, projectada numa parede do salão,
iluminada por um halo de luz solar, acompanhada por uma
voz cavernosa, atormentava o pobre aracnofóbico.
Encostado a um canto, Constantino produzia, com as
mãos, uma sombra chinesa em forma de aranha e servia-
-se da sua voz para enviar uma ordem ao subconsciente da
sua vítima, instigando-a a abandonar o Alquimista. Parou
de o amedrontar quando foi confrontado pelo profeta, que
o olhava com aspereza, como se soubesse exactamente as
suas intenções. Pálido com a sua presença, parou tudo e
embrenhou-se na multidão, confusa com aquela cena bi-
zarra.
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SESSENTA E SETE
A tempestade tinha cessado em Distopia, menos na
mente de Ptolomeu. A cólera provocada pelas palavras de
Salomão, depois do encontro que tivera em sua casa, con-
tinuava a esmoer a alma do principal conselheiro de Zarat,
como piranhas famintas, atacando uma presa desprevenida.
O tempo era escasso e o momento era urgente. As informa-
ções que chegavam a todo o momento acerca dos fenómenos
da natureza e do universo sobre o planeta e a respeito dos
passos do Alquimista inquietavam a sua mente, dilacerada
pelo ódio e pelo medo. Era preciso inverter a marcha dos
acontecimentos e evitar a destruição daquela civilização, em
decadência profunda. Estava cego e surdo a tudo o que o
rodeava. Nem o barulho das botas dos soldados da Guarda
Zaratista o distraíra no seu percurso até ao gabinete.
Ptolomeu dirigiu-se para o intercomunicador da secre-
tária. Senhora Bresley, exclamou, convoque imediatamente
uma reunião comigo, no meu gabinete, dentro de uma hora
com Alpha, Ómega, o comandante da Guarda Zaratista e o
Governador do Banco Central de Distopia. Se perguntarem
o motivo, diga-lhes apenas que foi por ordem urgente de
Zarat. Avise-me logo que eles cheguem. Sim, senhor Con-
selheiro, respondeu a secretária, antes de desligar. Enquanto
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SESSENTA E OITO
O ressonar de alguns dos discípulos e seguidores do
profeta abafara os sons que Magdala e o Alquimista par-
tilhavam, em plena escuridão. Tinha sido um dia fatigan-
te para todos, devido ao calor intenso que se fizera sentir
durante o dia. O entardecer trouxera a frescura e o bulício
do sono entre os presentes. Uma promessa de paraíso de-
pois de uma travessia pelo inferno para todo aquele povo,
sedento de esperança e de sabedoria. Todavia, o profeta
e a antiga prostituta tinham outros planos. Os gestos que
trocavam entre si em silêncio revelavam a profundidade do
sentimento mais universal e puro que os unia. Subitamen-
te, um ruído.
Magdala foi a primeira a despertar para a realida-
de. Um pranto tímido, seguido de um soluçar pusilânime,
fez o casal olhar para todos os lados. A tristeza não tardou
em revelar a sua máscara. Mesmo ao lado da companheira
do sábio, Dharma escondia o rosto marejado de lágrimas
com os braços entre os joelhos. Mesmo na penumbra, o
Alquimista conseguira ver, de soslaio, a sombra fugidia de
Constantino. Calculou que ele estava por detrás de toda
aquela mágoa. Contudo, silenciou a dúvida e virou-se para
a jovem consternada.
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SESSENTA E NOVE
Não era todos os dias que Nicole Adágio convidava
um homem para ir a sua casa. Se namorados e amigos eram
uma ausência na sua vida, colegas de trabalho na sua re-
sidência seriam uma novidade. Naquele caso, abrira uma
excepção. Uma ameaça de atentado terrorista levara a que
fossem evacuados todos os agentes do Centro de Investi-
gação Criminal; um contratempo que a levou a chamar o
seu assistente Nicolau a fim de continuarem o trabalho de
investigação sobre o Alquimista. Sem manifestações de re-
gozijo, perante a sua antiga colega da faculdade, o agente
sentiu-se lisonjeado pelo convite. Já não eram estudantes e
as circunstâncias actuais eram muito diferentes. Todavia,
não deixava de ser uma ironia do Destino, Nicolau entrar na
casa daquela mulher, por quem nutria um enorme respeito e
carinho, apesar do seu feitio.
A confusão na cabeça de Nicole era idêntica à dos
papéis, recortes de jornais e revistas que encontrara, des-
de o início da investigação. Nicolau tentava ajudá-la quanto
podia. Era quase de madrugada e ainda estavam a rever o
que tinham apurado. O assistente pediu à inspectora-chefe
autorização para voltar a falar no paradeiro das três crianças
que tinham encontrado nos registos de Pelak. Nicole assen-
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SETENTA
As horas tinham passado, assim como as meditações
e exercícios realizados pelo Alquimista, durante o resto do
dia. A tarde chegara com o lusco-fusco e com o sibilar do
vento. Está na hora de partirmos, disse o profeta, acordando
Samuel. Os restantes discípulos e todas as outras pessoas se-
guiram o exemplo do mestre. Fora da mansão, foram banha-
dos por uma brisa morna que se fazia sentir naquela região
àquela hora. Serenamente, dirigiram-se para as viaturas e
fizeram-se à estrada. Pelo espelho retrovisor, os condutores
viam desaparecer a Mansão das Memórias como uma mira-
gem engolida pelo sono de Deus.
A emoção e o sentimento que tinham sentido, depois
daquela noite de homenagem ao sexo, perpetuavam-se nos
seus corpos, mentes e espíritos. Nenhum dos casais aban-
donou o sorriso do rosto e dos olhos durante a viagem, tal
como o Alquimista e os seus discípulos. A irradiação das
almas seguida de pequenos gestos de ternura era motivo de
orgulho para o profeta e um júbilo do céu sobre a terra.
A chegada da noite fez abrandar a velocidade das
viaturas. O Alquimista escolheu um local para todos acam-
parem e repousarem. Era preciso acordarem cedo, antes do
alvorecer, de modo a não apanharem o calor dantesco do
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SETENTA E UM
Nunca nenhum ser humano tinha assistido a tama-
nha fúria e onda de destruição no mundo. O cenário era de
tal modo apocalíptico que nem Dante era capaz de imagi-
nar um inferno pior do que aquele que milhões de pessoas,
de várias povoações do mundo, estavam a passar, devido
à quantidade de catástrofes naturais e fenómenos vindos
do céu. O degelo dos pólos do planeta transformara os
pontos mais longínquos do mundo em oceanos e mares
vorazes, sedentos de terra seca, para conquistar com a sua
fome marítima; o que dantes era deserto de areia passara
a ser uma solidão marinha, como se Neptuno despertasse
de um sono de séculos e começasse a devorar tudo à sua
volta.
Das zonas mais secas do interior, pequenas fendas
rasgavam a pele porosa do Grande Deserto em direcção
ao centro do planeta, como as paredes de um espelho a
estalar, transformando paisagens áridas em abismos sem
fundo.
Das mais altas cordilheiras, vulcões explodiam de
êxtase para o céu; cinza e lava violavam a virgindade do
escasso verde de vales perdidos e de planícies selvagens.
O fumo negro que era expelido dos cumes pintava a at-
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SETENTA E DOIS
Não havia vila onde se respirasse mais religiosidade
crística que em Vila Romã. Cada bairro, rua, esquina ou
até mesmo a praça central, estavam decorados com todo o
tipo de parafernália sacra. Desde estandartes com figuras de
santos, a imagens de anjos e mártires, padres e Papas; tudo
servia para lembrar, não só aos seus habitantes mas também
a turistas e forasteiros, a forma como o povo daquela povoa-
ção via e sentia a sua religião.
Para discípulos como Jordão e alguns seguidores
que professavam essa fé antes de conhecerem o Alquimis-
ta, aquela atmosfera transmitia uma certa nostalgia. Para os
restantes discípulos e seguidores do profeta, emanava uma
energia espiritual tão intensa, como o perfume das flores que
ornamentavam as varandas das casas e os pequenos jardins
daquele povoado. No centro da praça, ficava uma igreja em
estilo barroco homenageando Nossa Senhora de Vila Romã
– um dos mais importantes lugares de peregrinação religiosa
do planeta.
Naquele dia, toda a vila estava em festa. Celebrava-se
um casamento e todas as casas se tinham engalanado para
o evento como se a povoação fosse o centro das atenções e
não os noivos em si. Durante toda aquela cerimónia de ale-
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SETENTA E TRÊS
O milagre das alianças e as palavras do Alquimista
correram de boca em boca por toda a Vila Romã. Multidões
marejadas de alegria e lágrimas de sal prostravam-se perante
o profeta do Oráculo do Destino, como se de um novo Mes-
sias se tratasse; um enviado de Deus ao mundo para salvar
a Humanidade dos seus pecados. Clérigos enfurecidos e fa-
náticos religiosos vociferavam contra aquele forasteiro e o
povo que o seguia, utilizando frases venenosas como filho
de Satanás ou Diabo em pessoa para tentarem afugentar os
espíritos mais débeis e ignorantes: sem efeito.
Bancheler era o homem mais rico e poderoso da vila.
Mais astuto do que néscio, não tardou a convidar o homem
de que tanto falavam. Enquanto o profeta, os seus discípulos
e seguidores passeavam pelo povoado, um criado do mag-
nata apresentara o convite, verbalmente, para o banquete de
homenagem ao baptismo do seu primeiro neto. O profeta
aceitou, com duas condições: Que o convite fosse extensivo
a todos os seus discípulos e que houvesse alojamento, comi-
da e segurança na vila para ele e todos os que o seguiam. O
criado ouviu as condições do sábio e correu em direcção ao
palácio para informar o seu amo. Meia hora depois, regres-
sou com uma resposta afirmativa.
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SETENTA E QUATRO
A festa estava ao rubro no palácio de Bancheler. O
filho e o genro do neto do grande magnata da Vila Romã
recolheram-se cedo por causa da criança, menos o dono da
mansão e o resto dos convidados. As danças e as gargalha-
das prolongaram-se pela noite dentro, assim como os desejos
mais secretos de casais e amantes, ansiosos por encontrarem
no ribombar do fogo-de-artifício e na sombra dos arbustos
e árvores, o refúgio para libertarem o fogo das almas da pu-
reza dos corpos. Magdala e Samuel não eram excepções à
regra.
O arfar dos desejos e o roçar dos corpos nus, contra
os arbustos e as árvores, alimentavam o fogo invisível que
os dois amantes sentiam um pelo outro. A distância da resi-
dência do aristocrata e o estalar dos foguetes faziam daquele
pedaço de natureza o local perfeito para a consumação da
paixão que nutriam, desde o primeiro dia em que se tinham
conhecido. Apenas a lua desnudava as curvas e a natureza
dos sexos de cada um. Encostada a uma árvore cercada de
moitas, Magdala ardia toda ela de desejo. O corpo transpi-
rado da antiga prostituta excitava ainda mais Samuel, im-
paciente por despir as roupas dela, tal como a sua amante
fazia com as dele. O primeiro gemido fizera-se sentir, quan-
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SETENTA E CINCO
Quem os visse ali deitados na cama, nus, cobertos
apenas por um lençol que lhes escondia os sexos, silencio-
sos e de olhos abertos, a absorverem os primeiros fios de sol
da manhã para o silêncio e o lusco-fusco do quarto, como
dois modelos de gesso, semelhantes àqueles que se encon-
tram nas montras das lojas de pronto-a-vestir, pensaria numa
ilusão de óptica ou num sonho, prestes a evaporar-se nas
margens do tempo. Para Nicole e Nicolau era uma forma de
tentar compreender o significado da noite passada.
Os dois agentes entreolharam-se, de cigarro entre os
dedos no ar, tentando encontrar uma resposta às suas dú-
vidas. Parecia quase impossível uma mulher, como Nicole,
habituada desde tenra idade a esconder os seus sentimentos
e instintos mais primários e Nicolau, tímido mas perseveran-
te por natureza, terem acabado por se entregarem um ao ou-
tro nos braços do desejo mais carnal e libidinoso que existe
na vida animal.
Nicole falou primeiro. Nicolau... digo...agente Nico-
lau. A respeito de ontem à noite quero que saiba que... tudo...
não passou de, disse, antes de ser interrompida por um longo
beijo do seu colega, que não tardou em converter-se num
abraço lúbrico de breves minutos. Não precisas de te justifi-
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SETENTA E SEIS
Apenas alguns seguidores ficaram pelo caminho, per-
didos para sempre no labiríntico jardim do palácio de Ban-
cheler, como moscas presas numa teia de aranha. Todavia,
não deixava de ser curioso que, por cada indivíduo – ou ca-
sal – que se perdia na viagem, o Alquimista conseguia en-
contrar sempre novos seguidores. O profeta despediu-se do
magnata com um abraço e um sorriso de gratidão pela estada
em sua casa. Este retribuíra com total adesão à sua filosofia.
Melhor recompensa não poderia esperar.
Vila Romã era já uma miragem no horizonte mas uma
memória para alguns seguidores, sobretudo os mais jovens,
tatuados ainda com os efeitos de tudo o que tinham vivido
no jardim da Mansão, conseguindo chegar a tempo de se
fazerem à estrada com o profeta do Oráculo do Destino e os
seus discípulos. Três dias depois de terem partido, chegaram
a uma aldeia abandonada: pararam.
Um vento aziago desfigurara a paisagem desértica da-
quele aglomerado de ruínas de casas e edifícios públicos fei-
tos de madeira e cal; sons de janelas e portas que se abriam
e fechavam ao sabor da corrente; ratazanas do tamanho de
coelhos escondidas nas sombras de prédios contíguos; bolas
gigantes de restos de ramos e espinhos rolando pela soli-
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SETENTA E SETE
Mais do que uma necessidade, comer tem sido ao lon-
go dos séculos, um dos maiores prazeres de todos os seres
vivos, especialmente dos seres humanos que fazem da culi-
nária uma arte, com um requinte apenas acessível a algumas
bolsas e paladares refinados, capazes de distinguir a mais
sublime iguaria da mais simples refeição. Metello não era
excepção à regra e conseguia apreciar os pratos mais bizar-
ros, desde que preparados com o primor e a excelência de
um verdadeiro chefe de cozinha de um qualquer hotel de
cinco estrelas de Distopia.
Apenas duas coisas irritavam o comandante-chefe da
Guarda Zaratista durante as refeições: comida mal prepa-
rada e chamadas telefónicas. O azar batera-lhe à porta da
segunda hipótese, quando o toque polifónico do telemóvel o
despertou do seu prazer pantagruélico. O nome no visor do
aparelho fê-lo soltar um suspiro de enfado.
Dá-me um bom motivo para não desligar imediata-
mente o telemóvel, explodiu, furioso. Os meus motivos têm
sempre um nome: Zarat. Está furioso e impaciente. Há mais
de uma semana que não temos notícias nem do Alquimista
nem dos seus discípulos. Rumores de conversões aos seus
ideais e migrações de peregrinos estão a deixar o nosso
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SETENTA E OITO
Tinha passado uma semana desde a saída da aldeia de
Sabugus. Tanto os discípulos como os seguidores do Alqui-
mista estavam cada vez mais conscientes da sua verdadeira
essência. O profeta não só abordava temas, profecias e reve-
lações como elaborava exercícios práticos para todos eles,
como forma de saber se estavam a evoluir de acordo com os
seus ensinamentos.
O entardecer coloria o céu num tom dourado e azul
celeste como um sonho de verão, retratado num quadro re-
nascentista. Do cimo da colina do monte Talbot, era pos-
sível ver todas as viaturas dos seguidores e discípulos do
sábio como minúsculos pontos negros rodando pela estrada.
Durante uma hora, o Alquimista obrigou-os a subir aquele
monte em silêncio, sem lhes apresentar qualquer explicação
plausível para tamanho feito. Chegados ao cimo, sentaram-
-se em posição de Buda, à volta do profeta, meditando du-
rante meia hora, sem que o tempo ou qualquer intervenção,
humana ou divina, interferisse nessa viagem ao epicentro do
silêncio de cada um, à excepção das palavras do Alquimista.
Lembrai-vos das minhas palavras e fazei-as vossas
porque elas sempre foram vossas também. Deus sois vós e
vós sois Deus, assim como todos os seres que permitem a
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SETENTA E NOVE
Metade do planeta recebia de braços abertos a noite,
como uma sombra amiga em seu regaço. A sua legião, negra
e púrpura, chegara com o frio gelado, com que o Grande
Deserto costumava presentear todos aqueles que cruzavam
os seus domínios. A maioria dos animais circundava as re-
dondezas e a caravana do Alquimista, em volta de uma velha
base militar abandonada, cuja gare principal servira de porto
de abrigo e repouso improvisado para todos aqueles que o
seguiam.
Graco chegara no seu carro àquele aquartelamento
fantasma, ainda a noite era apenas uma criança fora do ber-
ço. Os olhos do chefe dos Rebeleus espelhavam um misto
de coragem e medo. Nunca se ausentara de Distopia duran-
te tanto tempo, nem executara qualquer espécie de missão
sozinho sem os seus camaradas. Não podia voltar atrás. O
incumprimento da missão não só punha em causa a sua re-
putação como também correspondia a um encontro marcado
com a morte.
Estava decidido. Antes de pôr o pé fora da viatura,
certificou-se das munições do seu revólver e reviu, mental-
mente, o que iria argumentar para convencer o seu antigo
pupilo a abandonar o maior inimigo do seu líder e regressar
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OITENTA
Existem certezas que queremos ignorar enquanto esta-
mos vivos ou pensamos que estamos vivos. Desde o primeiro
fôlego para a vida até ao último segundo no mundo, a morte é
vista como um mistério, um abismo intransponível, porta de
entrada para outra dimensão ou para lado nenhum da nossa
existência. Durante séculos, houve quem pensasse que podia
curar os seres vivos da sua presença, como se de uma doença
se tratasse. Infelizmente, segundo o mundo que teme a sua
sombra, a morte chega sem aviso às nossas vidas e, tal como
a justiça, não olha a diferenças quando resgata as almas do
corpo e da mente, semeando um vazio no coração do homem.
Toda a caravana que seguia a carrinha de Samuel parou
abruptamente com um grito. Os veículos que a acompanha-
vam só não chocaram por milagre. Instintivamente, os pas-
sageiros saíram das viaturas e dirigiram-se para o carro que
travara daquela maneira abrupta. Uma atmosfera de temor e
intriga pairava sobre os discípulos e seguidores do Alquimis-
ta. Rodrigo pediu para as pessoas que se afastarem, pressen-
tindo ser necessária a sua ajuda médica. O profeta foi o último
a sair.
Constantino aproveitou a confusão para ir ter com
Magdala. A companheira do sábio ficou admirada com a sua
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OITENTA E UM
A luz dos primeiros fios de sol beijando suavemen-
te os olhos dos discípulos e seguidores do Alquimista foi
mais eficaz em despertar os seus corpos que a brisa morna
que se fazia sentir naquela manhã. O espreguiçar indolente
cumpria o ritual de mais uma noite de entrega ao sono dos
justos, quais plantas a desabrocharem do solo para a vida.
Uma por uma, as pessoas que seguiam o profeta do
Oráculo do Destino faziam as suas tarefas matinais. Raros
eram os rostos de cada homem ou mulher, velho ou crian-
ça que não acolhessem o novo dia com um sorriso solar a
navegar entre os silêncios das sombras que deambulavam,
de um lado para o outro, em busca de algo para cumprir
os seus rituais diurnos. O céu transparecia a claridade mas
não o inferno que muitos passariam se continuassem no
Grande Deserto, no apogeu do sol.
Dharma inaugurou o novo dia com um desabafo.
Que dia lindo! É em dias como este que não dá vontade
de trabalhar. Apenas brincar e rebolar na cama, respondeu,
saracoteando-se no chão como uma criança. O Alquimista
assistiu a todo aquele entusiasmo com alegria e convidou
todos os discípulos, e pessoas que o seguiam a escutarem-
-no.
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OITENTA E DOIS
Samuel tinha perdido a noção do tempo, tal como a
maioria dos discípulos e seguidores do Alquimista que se-
guiam o profeta do Oráculo do Destino. Desde que conhece-
ra aquele homem, deixara de utilizar o seu GPS para viajar.
Confiava mais no sentido de orientação e na intuição do sá-
bio que encontrara a pedir boleia no Grande Deserto do que
em qualquer instrumento de navegação. O calor que se fazia
sentir no pino da tarde começava a amolecer os corpos e as
mentes dos passageiros da caravana que atravessava aquela
bigorna árida, forjada pela fúria do astro-rei. A escassez da
água e de mantimentos teria começado a apoquentar os estô-
magos mais débeis. Uma imagem desfocada pelo calor ba-
fiento da tarde alertara os espíritos de todos os passageiros.
O Alquimista explicou a Samuel e aos seus discípulos
que aquela visão, que lhes era oferecida, eram as ruínas que
tinham restado da antiga vila de Shaloma, povoação fundada
por imigrantes Doptas há séculos – outrora, um dos entre-
postos mais prósperos do planeta – e que tinha sido fustiga-
da pela fúria da natureza, a ponto de se transformar numa
autêntica vila fantasma.
Os seguidores e os discípulos do profeta aproveitaram
a passagem pela vila para pararem e restabelecerem forças.
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OITENTA E TRÊS
Medo e dor eram as expressões mais marcantes nas
mentes de centenas de habitantes das vilas e povoações que
tinham tido contacto com a sabedoria do Alquimista. Ape-
nas os mais ousados desafiavam o poder impiedoso da Guar-
da Zaratista e do exército de Zarat, combatendo com o que
possuíam: esforços infrutíferos.
Metello comandava a operação “Noite Púrpura” num
dos jipes – uma missão de busca de todo de tipo de textos
e merchandising e respectiva apreensão, feitos por simpati-
zantes e crentes das ideias do profeta do Oráculo do Destino.
Empedernido e atento como um falcão, o comandante-chefe
assistia às rusgas da Guarda Zaratista em cada povoação por
onde o Alquimista passara, com os seus discípulos e segui-
dores, enquanto comia um hambúrguer e bebia uma cerveja
de lata, com a passividade de um animal ruminante a obser-
var um palácio ou qualquer tipo de monumento emblemáti-
co, esculpido pela natureza ou pela vontade humana.
O caos deambulava por onde passavam, semeando o
pânico entre as populações. Soldados e agentes atiravam pe-
las janelas centenas de papéis e panfletos, considerados pro-
paganda subversiva contra Distopia e sua civilização; livros
com pensamentos semelhantes aos do profeta eram apreen-
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OITENTA E QUATRO
Os raios de sol que penetravam pelas janelas do Banco
local de Shaloma, aquecendo e acarinhando as pálpebras dos
discípulos e seguidores do Alquimista, tinham mais efeito
do que um som provocado pelo ser humano, animal ou qual-
quer epifania celestial, no despertar de todas as pessoas que
seguiam o profeta. Tal como árvores que erguem os seus
ramos em direcção ao céu, cada pessoa acordava, segundo o
seu ritmo, e fazia as suas tarefas matinais rotineiras. Cons-
tantino aproveitara a confusão daquele despertar para falar
com Isauro.
O jovem sindicalista sobressaltou-se com a presença
da sombra do enigmático padre crístico. Assustaste-me. Que
queres, perguntou, refeito do susto. Não tens vergonha de
teres pertencido a um povo que defende o Ateísmo e a so-
breposição do poder sobre o indivíduo, exclamou o padre,
inquisitorial. Os Rebeleus deixaram de ser o meu povo, des-
de que abandonei Distopia e enfrentei Graco, sabes muito
bem disso, respondeu, levantando-se. Escuta: fontes seguras
asseguraram-me da vinda do Golem em direcção à caravana
do Alquimista. Não tenhas receio; estou do teu lado. Vem
comigo! Conheço um excelente especialista em problemas
psiquiátricos, que te vai ajudar a superar o teu problema.
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OITENTA E CINCO
Constantino não desistia de perseguir Dharma. De-
pois de abandonar Isauro, esperou pelo fim da pregação do
Alquimista a fim de capturá-la. Faltou-lhe um pouco de sor-
te e audácia, enquanto sussurrava, ao seu ouvido, segredos
do seu passado na Mansão das Memórias. Teria conseguido
atingir o seu objectivo se não fosse o chorro da jovem, que
chamou a atenção de Magdala e do profeta. Hoje, sentia o
vento a soprar de feição. Encontrara Dharma sozinha, nas
traseiras de uma casa abandonada e em ruínas, tal como o
resto da vila de Shaloma. Mal a jovem saíra das sombras,
agarrou-a pelo braço e tapou-lhe a boca.
Constantino imobilizou Dharma com a ajuda de Qin-
na. A jovem ficou com os olhos dilatados e não conseguia
mexer um músculo sequer. Lá por nunca teres vendido o
corpo ao pecado não significa que tenhas nascido sem ele.
Eu conheci a tua mãe e sei o que ela fazia da vida no Bairro
Extasis. Aquela mulher não enganava ninguém com as suas
vestes e lábia; nem mesmo o pai do Leandro que, além de
bêbado e desempregado, era um grande cobarde. Nunca foi
capaz de assumir, perante a família, que tinha tido relações
com a puta da tua mãe nem que eras o fruto da sua luxúria,
disse o clérigo, com raiva e sarcasmo a escorrer-lhe da boca,
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OITENTA E SEIS
Nada relaxava mais Salomão que um passeio noctur-
no pelo Bairro Seleceu. O stress provocado pelo trabalho no
laboratório, os objectivos a cumprir, assim como a responsa-
bilidade exigida, impedindo-o de qualquer erro ou problema
da parte dos seus subordinados, tinham de ser repelidos da
mente do cientista, responsável pelo projecto ultra-secreto
VHCruz. Só a brisa nocturna e a solidão das ruas conse-
guiam afugentar as emoções e pressões negativas de Zarat
e dos seus conselheiros sobre o desenvolvimento desse pla-
no, além das dúvidas que mantinha sobre a viabilidade das
ideias do Alquimista.
Seria tudo verdade? Pensava Salomão. A dúvida, esse
pensamento desviante de qualquer sistema totalitário, abis-
mo entre a sapiência e a ignorância, pairava sobre a mente
de Salomão como uma sombra forasteira. Não somente a
sabedoria do Alquimista, que deambulava por todos os bair-
ros da cidade, como uma praga, assim como as previsões
das restantes profecias do Oráculo do Destino relatando as
alterações climáticas e os estranhos fenómenos no céu, des-
cobertos por cientistas de Distopia, vinte e sete anos antes –
especialmente no ano do aparecimento do profeta –, faziam-
-no céptico em relação ao pensamento e ao modo de vida
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OITENTA E SETE
Passara apenas uma semana no mundo. Para os discí-
pulos e seguidores do Alquimista parecia ter passado apenas
um dia, desde que tinham tomado conhecimento da melhor
maneira de atrair sucesso e prosperidade para as suas vidas.
As suas almas alumiavam-se cada dia que passava, apren-
dendo e experienciando algo de novo daquele homem.
Mudança de rota. Tanto os discípulos como os se-
guidores do Alquimista estavam habituados a esse tipo de
vicissitudes desde que tinham começado a seguir o profeta
e viam a carrinha de Samuel a sair da estrada. Tudo podia
acontecer. Uma nova aventura, seguida sempre de uma reve-
lação. Tudo estava em aberto.
O Armagedão árido do Grande Deserto tinha dado lu-
gar à frescura verde de uma selva gigantesca; um dos poucos
espaços verdes do planeta. As folhas e as plantas chegavam
a ser tão grandes quanto as sequóias que se erguiam até tocar
o céu. Todos os condutores sentiam dificuldade em circular
naquele verde sem fim, temendo chocar contra uma árvore,
um ramo raso mais grosso, animais selvagens ou canibais.
Apenas a fé inabalável no profeta mantinha acesa a chama
da esperança nos corações de todos aqueles que o acompa-
nhavam: susto.
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OITENTA E OITO
A noite não era visível em Rama-Muri nem na sala
da Pedra dos Tempos. A claridade provinha de um sistema
de iluminação interna que canalizava a luz do gigantesco
diamante arco-íris para toda a cidade. Durante a tarde, o pro-
feta desdobrou-se em explicações – como um guia turístico
sobre cada canto daquele agregado urbano, esquecido da
memória do mundo, sem olvidar a Pedra dos Tempos que,
segundo o sábio, conseguia visualizar o passado e o presente
de cada pessoa que a tocasse.
A atenção de Heitor para os ideogramas de uma das
paredes despertou a atenção de Isauro. Descobriste alguma
coisa, exclamou o sindicalista. Livra! Pregaste-me um susto
de morte, disse, sobressaltado. Isauro riu. Como podes falar
de morte depois de tudo o que aprendemos com o mestre,
perguntou. Tens razão – sorriu o funcionário. A verdade é
que não penso nesse assunto desde que conheci o profeta
e sobretudo quando descobri esta cidade. É incrível! Já ti-
nha ouvido falar desta civilização e entendo um pouco deste
idioma. Afinal de contas, não te esqueças que nasci Filingo e
todos os Filingus são obrigados a conhecer todas as línguas
vivas e mortas deste planeta. Tens razão. O que é que des-
cobriste, inquiriu Isauro. Pouca coisa. Os ideogramas desta
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ÉD
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OITENTA E NOVE
O dia claro que irrompera em Distopia contrastava
com o estado de espírito de Zarco, enquanto discutia com
o senhor de Distopia os custos da megalomania de Zarat.
Quem o visse naquele momento, a altercar com o homem
mais poderoso da cidade e do planeta É, julgava estar pe-
rante uma tempestade em carne humana. Ptolomeu era o
moderador da toda aquela altercação. De todos, era o mais
pragmático e o único que sorria discretamente perante aque-
le antagonismo entre a razão e a utopia.
Mas, Grande Líder, tente compreender... o orçamen-
to da VHCruz já chegou aos dez milhões. Dez milhões! Os
Distopianos já fizeram todos os sacrifícios, possíveis e im-
possíveis, durante este ano para financiar esse... engenho.
Tenho inúmeros bancos e empresas a baterem à minha porta,
desesperados. É uma situação inédita e preocupante, senhor!
Pela primeira vez, corremos o sério risco de bancarrota. Ten-
te ser razoável, disse o perturbado Governador do Banco
Central de Distopia, mostrando a Zarat, resmas de folhas,
contendo dados contabilísticos disponíveis.
Zarat teimosamente ignorou, por completo, as preo-
cupações de Zarco, barafustando com gestos e palavras áci-
das. Contas, contas, contas! Será que este mundo não pensa
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NOVENTA
A frescura de Rama-Muri e o clima tropical da selva
que encobria a sua passagem secreta eram já, há mais de
cinco horas, uma ilusão na mente de todos os discípulos e
seguidores do Alquimista. O Sol, em contacto com o chão
árido e esgotado do Grande Deserto, dava a sensação de es-
tarem a passar por um mar de lava ou pelo bafo canibal do
astro-rei. O horizonte parecia a repetição de um filme com
uma só imagem; o vento era uma miragem naquela região
inóspita e selvagem, onde só o mais forte sobrevivia: para-
ram.
Muitos desconfiavam da razão pela qual a carrinha de
Samuel tinha parado no Grande Deserto em pleno pino do
dia. Noutras ocasiões, o profeta escolhia sempre locais mais
aprazíveis para expressar os seus ensinamentos. Para muitos,
aquele espaço não fazia qualquer sentido. O sol continuava
a bater furioso contra eles. Crianças e idosos ficaram nas
viaturas, enquanto homens e mulheres seguiram os passos
do sábio, rumo a uma espécie de duna gigantesca: espanto.
O que parecia ser uma simples duna estendia-se por
mais de trezentos quilómetros de extensão e quatrocentos
quilómetros de diâmetro. Segundo o Alquimista, aquela cra-
tera fora resultado do choque de um meteoro de dez quiló-
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NOVENTA E UM
Era tarde para Simone vestir de luto o rosto e arrumar
a vergonha que carregava nos ombros. Era tarde, mas nin-
guém dera ouvidos ao silêncio lancinante que lhe remoía o
coração, como um espinho cravado no peito. Tudo o que
passara em Rama-Muri era uma memória que insultava pe-
las ruas, aos pontapés nos caixotes do lixo e nos marcos do
correio, julgando, com isso, desenterrar as palavras mais no-
bres que o ódio engolira para dentro do seu quarto chakra,
apagado de perdão.
Nada fazia prever aquele encontro. Metello aprovei-
tara as últimas horas do dia para deambular pelo Bairro
Anguscious. Acaso ou nostalgia, o cinzento dos dias e das
fachadas daquele bairro, espelho da angústia e depressão
humanas, traziam-lhe recordações agridoces de combates
urbanos; orgias com estudantes e mulheres lascivas; álcool e
drogas à mistura com uma boémia efervescente e a lembran-
ça de um amor pretérito na estrada da vida, que nunca tratara
como um mero deslize: choque.
A líder dos Dúbios barafustou tresloucada, como um
bando de corvos, crocitando em pleno voo nocturno, mal
esbarrara contra aquele homem. Simone? Que fazes aqui,
perguntou o comandante-chefe da Guarda Zaratista e do
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NOVENTA E DOIS
A notícia de uma futura colisão de um cometa com o
planeta É, varreu como uma praga as mentes de todos os se-
res humanos que acompanhavam o Alquimista. Se, noutras
ocasiões, as palavras do profeta tinham o mesmo efeito de
um bálsamo num corpo doente; neste caso, as mesmas pro-
duziram o efeito contrário. Apesar de ser um acontecimento
projectado para o futuro, restava saber a distância que existia
no tempo, tendo em conta tudo aquilo que o sábio do Orá-
culo do Destino falara acerca do tempo. A dúvida provocada
por essa incerteza causara mais consternação e contágio do
que a epidemia mais devastadora do planeta.
O profeta estava a par do estado de espírito dos seus
discípulos e seguidores através da percepção das suas ener-
gias. Nas viaturas que seguiam a carrinha de Samuel, o bu-
lício que nascera na cratera, depois das palavras do sábio,
transformara-se em violentas discussões: punha-se em causa
o futuro das gerações presentes e vindouras. Planos de fuga
e soluções suicidas não eram postas de lado, por parte das
almas mais débeis. O equilíbrio estava a ser posto em causa:
desvio.
Samuel seguiu por um outro caminho, à sua direita,
segundo indicação do Alquimista. O deserto, mais uma vez,
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NOVENTA E TRÊS
Nada era como dantes, depois das palavras que pro-
ferira nas ruínas daquelas termas míticas. O apocalipse pro-
fetizado pelo profeta era agora uma miragem nas mentes de
todos os que seguiam os seus passos e palavras, menos o
sono, que descia de mãos dadas com a noite, sobre as ruínas
das termas de Revigror, como um manto de seda púrpura.
Todo aquele povo de crentes e iluminados improvi-
sara um acampamento num dos edifícios da estância termal
abandonada. As estrelas e o canto dos grilos afogavam os úl-
timos suspiros do dia nos corpos fatigados. Apenas Magdala
não dormia sossegada. As recentes aparições dos seis líderes
dos principais bairros de Distopia aos seus companheiros ti-
nham-na feito pensar que tanto ela como Dharma, seriam as
próximas vítimas. Não estava enganada.
Um homem aproximava-se daquela estância esqueci-
da do mundo em passos de papel. O brilho lunar revelava
as feições de Faustus, alucinado pelo feitiço da sua luz. As
vestes de cabedal, as algemas e o chicote que empunhava
davam-lhe um ar sadomasoquista, paradoxal com o ambien-
te que o rodeava. Intuição ou acaso, o chefe dos Niilisteus
emitiu uma melodia instrumental, suave como uma brisa
noctívaga, através do seu telemóvel. Dharma e Magdala
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NOVENTA E QUATRO
Durante muitos anos foram vistos como um mito ur-
bano, dada a distância temporal da última batalha que ti-
nham travado contra o exército de Zarat – culminando numa
gigantesca e pesada derrota. Começaram como gente pobre
e analfabeta que via na desenfreada escalada tecnológica,
uma ameaça a si mesma e à sobrevivência humana. Prati-
cavam actos de puro terrorismo contra instalações informá-
ticas em empresas, edifícios públicos e casas particulares,
laboratórios genéticos e reactores nucleares parcialmente
construídos; inclusivamente, desencadearam uma verdadei-
ra caça aos cientistas de bata branca, acusando-os de terem
sido os causadores da destruição maciça do ser humano e
da vida no planeta. Crimes que fizeram dos Tecno-Rebeldes
uma ameaça para a civilização Distopiana.
Todavia, com a chegada de novas gerações mais qua-
lificadas que a geração anterior, o cenário mudara de figura.
No espaço de poucos meses, estes tecno-terroristas começa-
ram por recrutar antigos engenheiros nucleares, bioquími-
cos, médicos, funcionários da saúde pública, ambientalistas,
geneticistas e hackers informáticos para editarem a sua pró-
pria propaganda, moverem processos e criarem legislação
adequada, desafiando o poder de Zarat e dos chefes dos bair-
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NOVENTA E CINCO
Adriano sentia-se outro. Parecia ter sido alvo de um
milagre, provocado pela água da fonte e pelas palavras do
Alquimista sobre a Saúde. São de corpo, mente e espírito,
contara a todos a razão da sua esquizofrenia, como se esti-
vesse a contar uma estória. O vírus que o atormentara tinha
sido apagado da sua mente para sempre. Constantino perde-
ra a batalha contra o engenheiro informático Dúbio.
No dia seguinte, o Alquimista deu alguns exemplos
práticos sobre o poder do pensamento positivo na Saúde.
Primeiro, pediu a todos que identificassem a causa das suas
doenças através das suas mentes e perguntassem a si pró-
prios qual teria sido o pensamento que teria criado essas pa-
tologias. De seguida, sugeriu que repetissem para si mesmos
estarem dispostos a eliminar das suas consciências o padrão
que provocara a enfermidade que os afectara, e isso quan-
tas vezes fosse preciso, e, por último, que assumissem todos
que já se encontravam num processo de cura. Ainda o dia
não tinha terminado, e já muitos que padeciam de algumas
doenças congénitas se tinham sentido curados por aquele
placebo.
Toda a multidão estava eufórica com aquela sensação
de bem-estar. Samuel reparou no profeta a deslocar-se em
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Um furacão em carne e osso tinha entrado no Palácio
Olimpo do Bairro Extasis, fechando a porta com o estam-
pido de um trovão. Faustus ainda não tinha recuperado da
amarga derrota contra o Alquimista, além do susto que lhe
pregara com o fenómeno da multiplicação dos relógios. Fu-
rioso, distribuía gritos e toda a espécie de palavrões, conhe-
cidos e imaginários, pelos quatro cantos da casa, contra o
profeta do Oráculo do Destino, e contra Magdala e Dharma:
dois espinhos em forma de mulher, cravados no seu peito
inflamado de ódio, pela insubordinação e ultraje contra a
sua pessoa, como se a sua dignidade e honra tivessem sido
postas em causa. Valores a que, até àquele momento, nunca
tinha ligado a menor importância: Espanto.
Um rasgo de lucidez atingiu Faustus como um relâm-
pago quando entrou no seu gabinete. Pálidos como estátuas
de sal e com uma amálgama de palavras interditas em forma
de pensamentos, entaladas na garganta, os seis conselheiros
de Zarat e líderes dos seis bairros de Distopia aproximaram-
-se do chefe dos Niilisteus como zumbis. As bocas entrea-
briram-se com a aproximação, assim como a coragem.
Faustus só teve tempo para fazer a única pergunta
sensata no meio daquele grupo. O que fazem vocês aqui,
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tar para Extasis como fui vencido por aquele filho de uma
grande puta, que não só teve o atrevimento de gozar e con-
tradizer a filosofia de Nietzsche e do nosso bem-amado líder,
como teve o descaramento de atacar-me com... uma praga...
uma praga... de relógios, disse, começando a agitar-se como
um epiléptico. A perturbação do chefe dos Niilisteus conta-
giou todos os seis líderes como uma reacção em cadeia.
Subitamente...
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NOVENTA E SETE
Uma enorme discussão se tinha desencadeado como
um rastilho de pólvora nas mentes de todos os discípulos e
seguidores do Alquimista, depois de este ter revelado a ci-
dade perdida de Akoan e a existência de extraterrestres com
uma elevada sabedoria espiritual, tecnológica e científica.
Teorias da conspiração passaram a ser desfeitas por todos os
presentes, comparadas com as revelações do sábio. Tudo se
punha em causa: a origem do Homem e do Universo; reli-
giões; governos, tudo o que sempre se tinha julgado ser obra
meramente humana passava a ser alvo de clarividência com
todas aquelas descobertas. O profeta continuava a caminhar,
juntamente com o povo que o seguia, em direcção a um edi-
fício prateado feito de hexágonos, em forma de bolha. Num
dos lados de uma porta negra, soprou o pó acumulado sobre
de uma espécie de interruptor digital e premiu este; a porta
abriu-se como um leque ao contrário. Estupefacção.
O hall da entrada do edifício era composto por estra-
nhos ideogramas, vitrinas albergando estranhos seres, pare-
cidos com lagartos com rosto humano e dezenas de quadros
com fotografias de estrelas, planetas e galáxias – algumas,
desconhecidas para todo aquele povo. As colunas e naves,
como todo o interior eram ornamentadas por uma espécie de
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NOVENTA E OITO
O fervor vulcânico que se fazia sentir naquele palácio
enregelou os nervos dos sete líderes dos principais bairros
de Distopia, quando enfrentaram o semblante árctico e a
pose alexandrina de Zarat, com o sangue a ferver pelos olhos
e a lançar fumo pelo nariz, depois das confissões de fracasso
das suas missões.
E são estas as pessoas em quem confiei para trazer
de volta os seus pupilos e desmoralizarem o nosso inimigo,
exclamou, lívido de raiva. Perdoai, Grande Líder! Perdoai-
-nos a todos. Foi mais forte do que nós, exclamou Simone,
de joelhos sobre o senhor de Distopia, antes de levar uma
bofetada tão forte que parecia ecoar por todos os cantos do
edifício. A líder dos Dúbios estava desfeita em lágrimas.
Dos seus colegas: silêncio e medo.
Sinceramente, não compreendo. Coloquei a mais
avançada nanotecnologia de vigilância do planeta em todos
os seus habitantes e dei-vos tecnologia topo de gama para
detectar, não só os vossos pupilos como o Alquimista e os
seus seguidores. Julguei-vos capazes de o enfrentar com as
vossas palavras. Vós, doutos das terras da cultura e do ima-
culado conhecimento; vós, redentores da hora do supremo
silêncio; guerreiros das vossas filosofias, que protegi com
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O Evangelho do Alquimista
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NOVENTA E NOVE
Ninguém dissera uma palavra sobre o que vira e es-
cutara depois das revelações feitas sobre o povo de Akoan,
antes de sair do planetário daquela cidade. Era como se ti-
vessem tomado consciência da atitude actual dos responsá-
veis do planeta perante os danos que estavam a provocar à
natureza e ao ser humano, impedidos de absorver o remorso
por os seus antepassados nada terem feito para salvarem a
sua espécie e aquelas raças de extraterrestres e seres vivos,
inocentes da mórbida obsessão dos seus antecessores pelo
progresso a qualquer preço. O alívio de todos foi profundo,
quando puseram os pés fora daquele edifício, marcado pela
ciência e pela dor.
Adriano era de todos o que mostrava mais curiosidade
em obter o máximo de informações possíveis acerca des-
ses seres do espaço. Mestre, apesar de tudo o que aconteceu
aos nossos antepassados e a esses extraterrestres, acha que
a Justiça prevaleceu depois dessa tragédia, perguntou. O Al-
quimista fez uma pausa e respirou fundo, antes de responder
ao engenheiro informático.
A Justiça, Adriano, é um acto, não uma reacção. Não
é algo que se experimenta depois de agir de determinada
maneira, mas porque se age de determinada forma; tal como
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CEM
A libido escolhe sempre os melhores momentos de
solidão para libertar o fogo entre dois corações em chamas.
Espera pela passagem das horas graníticas, dos intervalos
sem fumo para tomar de assalto corpos incendiados pelo de-
sejo. Os olhos do mundo inibem o instinto de excitar o cor-
po. Apenas a sombra e o calor e a intimidade das almas nos
lugares mais recônditos permitem semelhante orgia.
Nicole e Nicolau não eram excepções à regra. Antes
de terminar mais um dia de trabalho, escolheram a hora e
o local para darem asas à sua paixão por códigos gestuais,
inventados por eles. Sabiam que no interior do Centro de
Investigação Criminal todos os seus movimentos eram vi-
giados à lupa pelos mais sofisticados aparelhos electrónicos
de vigilância. A privacidade e a impudência não eram permi-
tidas durante o expediente. Os vícios tinham de ser deixados
à porta, em nome da reputação da instituição e nunca do
indivíduo.
O desejo escolhera um elevador vazio, num velho ar-
mazém abandonado nos arredores do local onde trabalha-
vam e despira o fogo daqueles corpos afogueados de pai-
xão. As sombras do lusco-fusco, recortadas pelas grades do
elevador, realçavam pedaços daqueles corpos, suados e nus,
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CENTO E UM
Tudo era uma corrida contra o tempo e a morte, mes-
mo sendo conceitos irreais para os seguidores e discípulos
do Alquimista, depois de tudo o que tinham aprendido e ex-
perienciado com ele. O instinto fala mais alto que a cons-
ciência quando o corpo e a mente pressentem o fim. Atrás
deles, toneladas de pedras e terra sucumbiam como um cas-
telo de cartas. Gritos de pânico ecoavam pelo túnel secreto
que o profeta revelara a todos os que o seguiam no templo
da cidade de Akoan, quando começara o terramoto que aca-
baria por destruir a cidade alienígena. O túnel parecia não ter
fim e o soterramento parecia ser o destino de todos aqueles
que o atravessavam.
Salvamento.
O que restava do túnel, depois da saída da última
pessoa que seguia o sábio, era agora um monte de entulho.
Todos em uníssono agradeceram ao profeta e aos céus por
terem escapado daquela catástrofe. Era fim da tarde mas
para todas aquelas pessoas sabia a alvorada e liberdade a
gotejarem pelos lábios como lágrimas de nuvens, embora
estivessem em pleno deserto.
O Alquimista olhou para as primeiras estrelas que co-
meçavam a bordar o céu e o lugar onde se encontravam.
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O Evangelho do Alquimista
toda a ideia que nos separa, toda a acção que anuncia que
não estamos unidos é controlada pelo Ego colectivo. Não é
real! Contudo, faz parte da vossa realidade, pois vós fizestes
com que assim fosse. Não vou perguntar o que deveis fazer;
apenas sugerir aquilo que os seres super-evoluídos fizeram
para porem fim a todos os seus conflitos, declarou.
– O quê? – perguntou Isauro.
– Uma Revolução da Evolução.
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CENTO E DOIS
Uma atmosfera estranha pairava entre o povo que se-
guia o Alquimista. Samuel caminhava entre os veículos, sa-
cos-cama e tendas improvisadas dos seguidores do profeta
do Oráculo do Destino com uma sensação peculiar que não
conseguia explicar. Pareciam todos suspeitos de um crime
por cometer, ou já cometido em tempos remotos, ou vidas
passadas, se formos mais além da origem de tanta descon-
fiança. Por momentos, teve a sensação de ver olhos a vi-
giá-lo de soslaio, como predadores, observando a presa a
penetrar no seu território.
Magdala chocara com Samuel; a colisão não fora in-
tencional. Samuel, ainda bem que te encontro. Precisamos
de conversar, disse a companheira do Alquimista. Deixa-me
em paz; não temos nada para dizer um ao outro, respondeu,
ríspido e seco como o chão que pisavam. Magdala não de-
sistiu, respirou fundo e chamou-o de novo com a sua voz
quente, transpirando sensualidade.
Samuel parou e virou-se para ela, como se ouvisse o
canto de uma sereia. Não era nem feitiço nem encantamento
daquela mulher. Era algo mais profundo, mais forte que a
sua vontade e superior à sua razão. Ao entreolharem-se, ob-
servaram fios de luz dourada, da espessura de fios de seda,
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CENTO E TRÊS
O que guardava era demasiado importante para manter
no segredo dos deuses. Uma prostituta atravessava as ruas mais
movimentadas do Bairro Extasis, como se estivesse a fugir de
alguém que ameaçasse a sua vida. O aspecto escanzelado e des-
leixado, o corpo impúbere e o rosto pueril com maquilhagem
desajeitada, revelavam uma adolescente, caloira no ofício mais
antigo da História da Humanidade. Assim era Justine aos olhos
do mundo, que tanto a ignorava como cobiçava a sua carne.
Meia hora antes do encontro...
Atrás de si, não se vislumbrava ninguém suspeito que
estivesse a persegui-la. Alguns automóveis paravam, tentando
abordar a prostituta de tenra idade para saberem quanto custa-
vam as suas horas de prazer, enquanto corria ruas e avenidas
sem parar. Para Justine, nenhuma palavra ou murmúrio lhe tra-
zia qualquer conforto a não ser o da pessoa com quem queria
falar.
Uma rua estreita e solitária na primeira esquina à sua
direita era o esconderijo ideal. Envolta pelas sombras, ligou o
telemóvel e esperou que a pessoa, com quem tanto queria falar,
atendesse a chamada. Quatro tentativas: silêncio. Enquanto não
obtinha resposta, virava a cabeça para todos os lados, descon-
fiada e amedrontada.
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V
A ÚLTIMA CEIA
Bíblia Sagrada
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CENTO E QUATRO
A noite começava a dar os seus últimos sinais de vida.
A caravana seguia calmamente pela estrada, como um rio
às portas da foz. Todos os seguidores do Alquimista que se-
guiam a carrinha onde viajava o profeta, com os seus discí-
pulos, faziam um esforço sobre-humano para se manterem
acordados durante a viagem. Os que ficavam no lugar do
morto, procuravam abanar levemente o ombro dos condu-
tores, de modo que estes não caíssem na tentação do sono.
A lua e a noite eram um convite para um repouso profundo
que, naquelas circunstâncias, poderia ser fatal.
A atmosfera na carrinha de Samuel era o oposto do
ambiente bucólico que se vivia nos restantes veículos que
acompanhavam a viatura do caixeiro-viajante – assim como
a paisagem. Um contagiante e inebriante burburinho tomara
conta do veículo onde seguia o profeta, depois do seu último
sermão em Almanzor. Todos estavam extasiados com essa
ideia da Revolução da Evolução; pareciam crianças eufóri-
cas por terem encontrado o mapa do tesouro.
Constantino e Isauro não aguentaram mais. O padre
foi o primeiro a interpelar o Alquimista sobre esse tema. O
profeta declarou com um sorriso aberto. Esse processo de
evolução tem decorrido sempre. Mas esse método está a to-
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CENTO E CINCO
Nada parecia fazer sentido na cabeça de Nicole. Tudo
aquilo a que assistira na noite anterior ia para além de tudo
o que pudesse imaginar. O acaso e o infortúnio eram agora
palavras difíceis de dissimular, depois de toda a espécie de
fenómenos celestes e mensagens bizarras estampadas nas
paredes das ruas por onde passara com o seu automóvel.
Não, não podia ser uma coincidência ou uma ilusão dos seus
sentidos. Tinha de haver uma explicação clara e racional
para todos aqueles sinais. Confusa e intrigada, combinou um
encontro com Nicolau.
Aos olhos da cidade, o café Big Eye era um entre os
mais pitorescos e corriqueiros estabelecimentos de Distopia.
Lugar de média dimensão onde se cruzavam pessoas dos
mais diferentes estratos sociais. Desde o mais abastado mi-
lionário, passando pelo distinto intelectual ou o mais solitá-
rio forasteiro, poucos eram os que diziam não àquele ponto
de encontro e convívio onde o café e o bife da casa eram
alguns dos bons motivos para visitá-lo. Para Nicolau, era um
como tantos outros naquele fim de tarde.
Nicole chegou uns dez minutos atrasada ao café. Peço
desculpa pelo atraso. O trânsito hoje está horrível, respon-
deu, ofegante. Tal como os dias nesta cidade. Tudo parece
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CENTO E SEIS
Tinha passado um quarto de hora, desde que o Alqui-
mista e os seus seguidores tinham deixado os seus veículos
nos arredores da aldeia daquelas misteriosas crianças e jo-
vens de túnicas brancas. Todos os que seguiam o profeta
estavam encantados com a variedade de animais e plantas
que subsistiam naquele vale. À medida que se aproximavam
do centro de Exodor, filas de sequóias e abetos escondiam o
céu como um verdadeiro escudo da natureza contra a força
do sol e o voyeurismo dos humanos. O ar que respiravam
contrastava com a poluição típica de Distopia.
Magdala virou-se para o Alquimista, dando-lhe o bra-
ço. Todo este verde faz-me lembrar o dia do nosso baptismo,
lembras-te? E estas crianças e jovens que nos acompanham
são-me familiares: parecem aqueles miúdos que são perse-
guidos por cães em Distopia, respondeu.
O profeta respondeu afectuosamente à sua compa-
nheira com um beijo. Aquilo que tu chamas de miúdos, eu
chamo o futuro deste planeta. Desde que começou a conver-
gência harmónica com a constelação das Plêiades que estas
crianças começaram a aparecer cada vez em maior número
no vosso planeta. As primeiras gerações chamaram-se índi-
gos: são muito extrovertidos, determinados, tenazes e co-
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CENTO E SETE
A loucura e o tempo andavam de mãos dadas com a
razão no laboratório de Salomão. Tanto o cientista como os
seus colegas e subordinados tinham perdido a noção do tem-
po e do número de gotas de suor que lhes escorriam pelos
corpos. O ambiente era de tal maneira tenso que era de cor-
tar à faca. Ordens e recados eram transmitidos de um lado
para o outro como setas atiradas para alvos imaginários. O
fumo e o barulho das máquinas retratavam não só o trabalho
do laboratório como o estado de espírito de todos aqueles
homens e mulheres, laborando dia e noite para montar o
mais megalómano engenho alguma vez pedido por Zarat e
cujo propósito se mantinha secreto.
Salomão roía as unhas de angústia. Depois de qua-
se uma vida de dedicação à sua maior invenção, hoje iria
receber o prémio do seu esforço. Os técnicos que trabalha-
vam consigo tinham-lhe assegurado a conclusão da VHCruz
em menos de uma hora. Ao contrário dos seus colegas, não
conseguiu ficar no seu escritório, climatizado e confortável,
a assistir ao nascimento da sua criação. A expectativa era
superior à sua paciência e já tinham passado cinco minutos
do prazo estabelecido. Impaciente, saiu de rompante do es-
critório.
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CENTO E OITO
Nenhum discípulo ficou indiferente às palavras do
Alquimista. Um silêncio asfixiante tomara conta daqueles
homens e mulheres que tinham escolhido seguir o profeta
desde que este explicara o motivo pelo qual necessitava de
um restaurante. Distopia estava a um dia de viagem. Aquilo
que parecia distar uma eternidade estava apenas a um passo.
Tudo parecia um sonho a diluir-se com a alvorada.
Antes da ceia, todos os discípulos tomaram banho, a
convite do profeta, e vestiram roupas mais cuidadas para a
ceia. Após saírem dos seus quartos e no caminho para o res-
taurante, soltaram a angústia das gargantas e conjecturavam
súmulas de planos para salvarem o sábio do seu destino.
Poucos eram a favor do cumprimento da profecia.
O Restaurante era propriedade de um antigo peregrino
que deixara tudo aos seus filhos. Era rústico e asseado, tanto
por fora como por dentro. O amarelo-torrado das paredes e
o bordô da porta principal e das colunas, assim como as flo-
res frescas que enfeitavam o edifício – tanto por fora como
por dentro –, transmitiam uma atmosfera de tranquilidade e
simplicidade, reflexo do carácter das pessoas de Luxan. As
paredes estavam enfeitadas com quadros multidimensionais
de paisagens, seres fantásticos e anjos, multicores, alguns
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CENTO E NOVE
Vista do exterior, a imagem do Palácio da Monta-
nha Mágica, contrastava com a azáfama dilacerante que se
vivia nos corredores da residência oficial do homem mais
poderoso do planeta, e, principalmente, no bunker secreto
do Palácio, onde Zarat e todo o seu Estado-Maior e Conse-
lho Magno discutiam, no interior de cem mil e quinhentos
metros quadrados de metal e betão armado e portas de aço
– capazes de suportar mais de vinte toneladas de pressão e
que podiam ser abertas com apenas cinquenta e cinco libras
de pressão –, as maiores e mais graves crises de Distopia e
do planeta. Naquele momento, apenas uma crise explicava
tamanho afã: A chegada do Alquimista à cidade.
Militares e agentes da Guarda Zaratista corriam como
doidos por entre os corredores do bunker, atropelando-se ou
acotovelando-se, possuídos por um nervosismo que se fazia
sentir naquela divisão. Ordens e recados eram transmitidos
a uma velocidade inimaginável. Era preciso ter a certeza de
todos os passos dados pelo maior inimigo de Zarat e da civi-
lização predominante em Distopia e no planeta. No espaço,
satélites-espiões observavam todos os movimentos suspei-
tos naquele mundo semiárido. Tanto na cidade como nas
povoações dos arredores tinham sido montadas brigadas de
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VI
A PROFECIA
Umberto Eco
CENTO E DEZ
Era visível a consternação nos olhos dos discípulos
que tinham assistido à última ceia do Alquimista. Queriam
por força chorar ou manifestar outra sensação, menos deixa-
rem-se abater por aquele ritual de despedida. Samuel cons-
tatara, mais uma vez, nas expressões ambíguas das pessoas
que tinham estado com o profeta, desde que o encontrara no
Grande Deserto, e num pombo batendo as asas para fora do
restaurante, mal Isauro e Constantino tinham saído da sala,
onde o sábio celebrara a última refeição do dia, depois do
jantar. Algo não batia certo.
O Alquimista despediu-se dos aldeões e agradeceu às
crianças e aos jovens, com abraços calorosos e beijos cari-
nhosos nas testas, como gesto de gratidão; os seguidores que
não tinham estado presentes no Restaurante “Cálice” repeti-
ram os mesmos gestos com entusiasmo. Apenas os discípu-
los se despediram com um silêncio afiado debaixo da língua.
Um dos jovens aproximou-se de Magdala e sussur-
rou-lhe ao ouvido. Confia na profecia e no que aprendeste
com o Alquimista. Mal chegues ao Bosque dos Sete Selos e
vejas três pássaros a bater asas, foge. Alguém dos nossos
irá em teu socorro. Coragem, disse afastando-se e deixando
a companheira do Alquimista intrigada.
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CENTO E ONZE
O cerco começava a fechar-se à volta do Alquimis-
ta. Aproximava-se a madrugada. Estava frio e já não se via
rasto ou sombra dos seguidores do profeta. Durante o dia,
agentes e milicianos da Guarda Zaratista, disfarçados de
guias turísticos, convidaram todas as pessoas que seguiam
o sábio a visitar os locais mais emblemáticos e os centros
comerciais mais ostensivos de Distopia. Nenhum dos que
tinham lá entrado saiu sem ter a alma corrompida e a barriga
cheia de vícios e prazer. A corrupção marcara pontos a favor
de Zarat.
Otelo foi o primeiro a reparar nessa misteriosa diás-
pora e a entender a razão pela qual o Alquimista reservara
víveres para um dia. Todavia, não foi perspicaz ao ponto de
se aperceber da aproximação das brigadas da Guarda Zara-
tista e dos milicianos dos bairros adjacentes, como sombras
gigantescas engolindo as luzes das ruas e vielas da cidade.
Isauro liderava o grupo, por ordem do Alquimista.
Convencera o profeta e os seus camaradas a pernoitarem no
Bosque dos Sete Selos, afirmando ser esse o local mais apro-
priado para se esconderem. Magdala foi a única a opor-se
à sugestão do jovem sindicalista; conhecia bem o bosque
mas não confiava em nenhum lugar daquela cidade. Quando
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CENTO E DOZE
O olhar que Nicole fixou em Samuel reflectia mais
do que seriedade. Transmitia um misto de dever cumprido
e sentimento de culpa; algo que não deixava a jovem e bela
agente da Guarda Zaratista minimamente confortável com
o que estava a fazer. Desde que entrara para as forças espe-
ciais, sabia que tinha de engolir os seus sentimentos mais
profundos e fechar os olhos, por vezes, ao seu juízo de equi-
dade perante casos tão delicados como aquele. De todos,
aquele era o mais penoso de toda a sua carreira, a julgar pelo
sentimento de pesar que espelhava nos olhos e lhe percorria
todo o corpo: pára, a um passo do jovem caixeiro-viajante.
Fixando os olhos no Alquimista e em Metello, Nicole
abriu a pasta e retirou uma espécie de relatório. Samuel...
Samuel Urbano Gudrien é, segundo este relatório, o Alqui-
mista anunciado pela profecia do Oráculo do Destino. Filho
de Fernando Urbano e Mónica Gudrien, nasceu na Aldeia de
Nog há vinte e sete anos em casa do sapateiro Dario Celsus,
com a ajuda do doutor Rodrigo Strobber e de Heitor Fepler,
no dia em que ocorreram os sinais previstos pelo Oráculo.
Foi registado pelo Padre Constantino Vidal na paróquia de
Pelak, onde viveu até perfazer dezoito anos. Paradeiro dos
pais: desconhecido. Manipulado pelo Padre Constantino
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CENTO E TREZE
Pela primeira vez, deixara de sorrir. Samuel termi-
nara a analepse de tudo o que conseguira recordar desde
que se perdera no Deserto e que, segundo Nicole Adágio
e o psiquiatra que o havia tratado no passado, teria tido um
transtorno dissociativo de personalidade, também conheci-
do como Dupla Personalidade. Como qualquer outro doen-
te que padecesse desse problema psicanalítico, poderia ter
momentos de lucidez e pensar que tinha sido vítima de um
problema de saúde mental, ainda sem solução à vista e julgar
que cada voz que viesse da sua mente não passava de mais
um sintoma da doença. Todavia, não se conformara. Apenas
revelava cansaço, depois de três dias e três noites ao relento,
atado a uma cruz de madeira na torre mais alta da maior
prisão de Distopia.
A voz interior que o acompanhava desde que estivera
perdido no Grande Deserto voltou a dar sinais de vida. Os
soldados continuavam vigilantes, observando cada movi-
mento do prisioneiro. Cauteloso, comunicou através do pen-
samento. Já tinha saudades tuas, disse Samuel, sem mover
os lábios. Só se sentem saudades de quem já partiu, não
de quem nunca te abandonou, respondeu a voz, serena e
ressonante. Samuel voltou a sorrir. Às vezes fico a pensar
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CENTO E CATORZE
O desentorpecer dos membros foi difícil para Sa-
muel. Mal os quatro militares o libertaram da cruz de ma-
deira da torre da prisão mais inexpugnável de Distopia, o
Alquimista sentiu os ossos a estalarem e fortes lesões nos
músculos dos braços e das pernas. A fraqueza notória, de-
rivada do imobilismo, fê-lo claudicar duas vezes. Poderia
ter-se estatelado no chão frio da torre e dos corredores
que percorrera com os seus algozes, não fosse a atempada
intervenção de dois dos militares, que o ampararam até à
sala onde ia preparar-se para o julgamento. Todavia, ape-
sar de tudo o que passara, continuava com um sorriso de
orelha em orelha, como se não estivesse preocupado com
o que iam fazer com ele.
A sala do julgamento, assim como o cinzento e
negro das colunas e paredes misturado com o carvalho
castanho da mobília, e o rosto sisudo dos jurados e dos
três juízes, sentados no fundo da mesma, reflectiam o am-
biente pesado que ali se sentia. Em situações normais,
costumava ser apenas um juiz. Por ordem de Zarat, foram
nomeados três: a presença do Alquimista e a importância
daquele julgamento assim o exigiam, tal como um advo-
gado de defesa oficioso, conforme mandavam as leis da
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CENTO E QUINZE
O cenário era um misto de histeria e vergonha. Sa-
muel caminhava agrilhoado dos pés ao pescoço, escoltado
por seis militares da Guarda Zaratista, em direcção ao lo-
cal da execução. As filas paralelas de guardas e agentes que
protegiam o trajecto do Alquimista tinham dificuldade em
controlar a multidão, enlouquecida pela passagem do profe-
ta do Oráculo do Destino. Entre a plebe, não se vislumbrava
nenhuma das pessoas que o tinham seguido até Distopia. A
vergonha e a covardia de todos aqueles que o tinham acom-
panhado e se tinham deixado deslumbrar pelas malhas do
consumismo e do lazer com que a cidade os presenteara em
troca do seu silêncio, não enganavam ninguém, nem mesmo
os que tinham conseguido resistir às tentações da urbe. A
corrupção tem tentáculos muito finos e invisíveis na mente e
no coração do ser humano.
As palavras e cuspidelas, assim como toda a espécie
de vegetais, ovos e fruta podre que aquela multidão con-
seguia atirar ao Alquimista, tinham tanto ou maior impac-
to que a dureza de um chicote de couro ensebado contra o
corpo nu de um escravo ou prisioneiro, em pleno castigo.
Os gritos e a chacota não tinham limites, assim como os
cartazes com palavrões e slogans contra tudo aquilo que ele
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CENTO E DEZASSEIS
Mais do que a execução de um simples condenado, a
crucificação do Alquimista era um espectáculo de luz, cor
e som, como se tudo não passasse de um festival de cele-
bração à morte do maior inimigo de Zarat e de Distopia.
Enquanto Samuel não chegava ao local do seu suplício, fa-
ziam-se apostas sobre a hora exacta da sua morte, vendia-se
todo o tipo de merchandising com palavras obscenas contra
o profeta do Oráculo do Destino e bandas de rock e de metal
actuavam no local da execução: diferentes no estilo, iguais
na mensagem. Zarat mostrava-se ufano. Samuel estava de-
masiado debilitado para sentir, o que quer que fosse, com
nitidez.
Os técnicos efectuavam os últimos testes com a VH-
Cruz no recinto fechado, atrás do palco, onde decorriam os
concertos. A máquina mexia-se e rodopiava como um autên-
tico robô, através de instruções, digitadas pelos peritos em
HP TouchPads da última geração. Movimentos, controlo de
som, radiação e imagem, tudo era analisado até ao mais ínfi-
mo pormenor. Era o grande dia; nada podia falhar.
Terminados os concertos, Alpha e Ómega fizeram-se
passar por bobos da corte, recriando através da mímica, o
percurso do Alquimista desde o seu aparecimento até ao mo-
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CENTO E DEZASSETE
Distopia em peso celebrava a crucificação do Alqui-
mista com loucura e êxtase absolutos. Mal a VHCruz se
soergueu automaticamente e Samuel soltou o primeiro grito
de dor, uma autêntica city rave party teve início à volta do
local da execução do profeta. Todos os habitantes da cida-
de, ali reunidos, dançavam ao som de ritmos alucinantes,
instrumentais e psicadélicos, com frases subliminares sobre
diversão, desejo e subversão, abafando os lamentos, gritos e
lágrimas de tristeza dos poucos que tinham apoiado o sábio.
Os seus discípulos – presos na mais inexpugnável prisão da
cidade – não eram excepção.
No Espaço, os planetas iam-se alinhando com o centro
da galáxia, sem se importarem com o que os seres vivos dos
seus planetas habitados pensavam acerca desse fenómeno.
Apenas os astrónomos e cientistas do Planeta É observavam
e estudavam esse raro acontecimento astronómico cuja últi-
ma vez ocorrera vinte mil anos antes. Dentre esses, ninguém
queria perder o registo dessa maravilha do universo.
Samuel procurava resistir tanto quanto podia aos efei-
tos das drogas e das radiações violentas que começavam a
provocar danos por todo o seu corpo. Os ossos latejavam,
tal como a dor que o agonizava, sem que ninguém pudesse
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CENTO E DEZOITO
O espaço era branco como um imenso mar de leite. Os
sons que se ouviam eram ecos harmónicos, semelhantes aos
cânticos de baleias azuis em oceanos sem fim. Murmúrios
de pensamentos humanos deambulavam naquele vazio páli-
do, sem que se conhecesse a origem de tais reflexões. Som-
bras imaculadas de anjos, arcanjos e seres sem rosto feitos
de luz, passeavam livremente por aquele vácuo descorado,
onde o tempo não existia, sem divisões nem qualquer tipo de
barreiras, onde Samuel se encontrava deitado e inconsciente
de tudo o que tinha acontecido na sua vida terrena.
Desperta: espanto.
As dores lancinantes que tanto o tinham agonizado na
VHCruz haviam desaparecido. Estava intacto e imaculado,
como a sua túnica. Entre as sombras brancas que perpassa-
vam por si, uma silhueta familiar ganhava forma e rosto à
medida que se aproximava do jovem caixeiro-viajante. Es-
tava ainda confuso e com vertigens, depois de tudo o que lhe
acontecera. Lentamente, foi focando o olhar na figura que se
acercava de si. Ali estava o reflexo do homem, a quem julga-
va ter dado boleia no Grande Deserto e que não era mais do
que a sua supra-consciência; idêntica, tanto em rosto como
em indumentária à de Samuel.
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CENTO E DEZANOVE
Ninguém conseguia acreditar naquilo que tinha acon-
tecido. Todos os habitantes da cidade ficaram estáticos e
atónitos, sem palavras, tentando encontrar uma explicação
racional e científica para aquele fenómeno que a maioria
rejeitava denominar milagre. O regresso da luz à VHCruz
representava uma centelha de esperança para todo um pla-
neta – e uma galáxia – que perdera electricidade e, por con-
seguinte, toda a tecnologia que dependia dela. Todavia, o
despertar de Samuel e a suspensão do seu corpo a cinquenta
centímetros da máquina que tinha posto termo à sua vida
corpórea, ia para além dos limites da razão de todos os Dis-
topianos. Zarat recuperara os sentidos depois do apagão glo-
bal, provocado pelo alinhamento galáctico. O que vislum-
brou, juntamente com os seus conselheiros, deixou-o num
mar de interrogações e silêncios.
Ao quarto fôlego, a voz de Samuel fez-se ouvir por
toda a cidade. Povo de Distopia, escutai o que tenho para
vos dizer. Muitos de vós viveram debaixo de uma mentira,
que contaminou as vossas mentes e corações por gerações e
gerações, como uma praga, e fez com que todos vós duvi-
dásseis de vocês próprios. É natural terdes dúvidas e serdes
cépticos, pois o verdadeiro crente não é aquele que crê sem
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CENTO E VINTE
O milagre que acontecera com Samuel teve o efeito
de uma bola de neve. O fenómeno da suspensão do seu cor-
po no ar e o seu discurso inflamado sensibilizara todas as
pessoas que tinham assistido à sua ressurreição. Epifania ou
graça, milhares de pessoas de todos os bairros enterraram
machados de guerra sem valor e apagaram diferenças em
abraços efusivos. Militares e agentes do exército de Zarat e
da Guarda Zaratista deitaram fora as suas armas e distinti-
vos, juntando-se ao povo e ao profeta do Oráculo do Desti-
no. Os mais radicais derrubaram os muros que dividiam cada
bairro da cidade com tudo o que conseguiam arranjar. Os
jovens e adultos, índigos e cristal, auxiliados por populares
e desertores do exército e da guarda, invadiram as prisões de
Distopia e libertaram todos os presos políticos, incluindo os
discípulos do Alquimista. A Liberdade caminhava de mãos
dadas com o Amor e a Solidariedade pelas ruas da cidade e
ganhava asas onde antigamente tinha correntes.
A ovação e a histeria aumentaram à medida que Sa-
muel descia lentamente em direcção ao chão, como se ti-
vesse a ser amparado pela mão invisível de alguma entidade
divina. Lágrimas, gritos e aplausos ensurdeciam a urbe com
aquele milagre. Magdala, acompanhada por jovens e crian-
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VII
APOCALIPSE
Agostinho da Silva
CENTO E VINTE UM
Nunca fizera em toda a sua vida tanto exercício físi-
co como naquela hora. Nicolau corria como se fosse uma
flecha. Não olhava a pessoas, animais, caixotes do lixo ou
qualquer outro obstáculo que o impedisse de chegar ao Cen-
tro de Investigação Criminal. O coração, acelerado, palpita-
va como se estivesse prestes a sair-lhe da boca; as palavras
foram substituídas por fragmentos de convicções que tar-
tamudeava a cada passo que dava, a cada esquina que do-
brava, a cada rua a que chegava. Por fim, o destino. Sem
mais delongas, o agente entrou de rompante no escritório
da sua inspectora-chefe – e companheira – com uma pasta
azul: susto.
Ali chegado, foi-se recompondo do esforço, tentan-
do repor a respiração, ofegante. Nicolau, lá por sermos...
companheiros, não significa que, disse irritada, antes de ser
interrompida pelo agente. Fomos enganados, Nicole! Fomos
todos enganados, disse, ainda ofegante, atirando a pasta para
a escrivaninha da agente. O que é isto, inquiriu. O... o relató-
rio. O verdadeiro relatório de Samuel Urbano Gudrien. Ele...
nunca sofreu de nenhuma amnésia retrógrada. Como assim?
E o relatório do doutor Stockler a comprovar, perguntou,
antes de ser interrompida pelo colega. Era falso, Nicole! O
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jar alguém que o traísse. Por isso é que nenhum dos nossos
agentes e guardas o prenderam quando ele entrou na cidade:
esperaram que ele entrasse, para desviarem e corromperem
os seus seguidores e o capturarem em terreno aberto. O resto
já tu sabes, concluiu.
Nicole deu um murro na mesa e saiu abruptamente
da sala, como o vento. Onde vais, perguntou Nicolau. Até à
praça, vamos, ordenou, levando a pasta consigo.
Os dois agentes desconheciam, por completo, a revi-
ravolta que sucedera depois da condenação e execução do
Alquimista. Enquanto passavam de carro pela praça foram
apupados, e a sua viatura, pontapeada e agredida de todas
as maneiras pelos populares, furiosos com a presença de
alguém como eles – representantes de um poder que os re-
primira durante séculos. Quando o sábio se aproximou da
viatura dos dois agentes a multidão enraivecida afastou-se,
evitando-se o pior. Samuel ergueu os braços, olhando para
ambos os lados em sinal de paz e de silêncio. Todos assen-
tiram.
Nicole e Nicolau saíram do automóvel espavoridos e
com os joelhos a tremerem de medo. A presença do profeta
vivo e fora da VHCruz deixou-os estupefactos. Nicole foi
a primeira a aproximar-se do Alquimista, com a pasta azul
que Nicolau lhe trouxera horas antes, entregando-a ao sábio.
Os discípulos quedaram-se apreensivos e cautelosos. Era...
era mentira! Era tudo mentira! Fomos enganados! Fomos
todos enganados, disse Nicole, ao mesmo tempo que se vi-
rava para a turba que a rodeava. Zarat enganou-nos a todos,
fazendo-nos acreditar que este homem era nosso inimigo
quando é o nosso... salvador! A profecia do Oráculo do Des-
tino não fala de nenhuma catástrofe provocada pela vinda
deste homem, mas de um tempo novo onde pessoas, como o
nosso Líder, não têm lugar, disse em plenos pulmões. Este
documento, Samuel, prova a sua inocência, concluiu.
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CENTO E VINTE E DOIS
Jamais imaginaria um cenário como aquele. Atrás da
cortina de uma das janelas do seu gabinete, Zarat assistia
à invasão do seu quartel-general por milhares de populares
e desertores do exército distopiano e da Guarda Zaratista.
Multidões sedentas de vingança derrubavam os portões e
escalavam os muros que ladeavam o Palácio da Montanha
Mágica, como se estivessem a assaltar a Bastilha. A sensa-
ção de ver aqueles em quem depositara toda a sua fé e em
cuja lealdade acreditara a atraiçoarem-no, assaltando a sua
casa, daquela maneira, fê-lo sentir um misto de tristeza e
revolta: encontro.
Ptolomeu deixara Metello e os outros líderes dos po-
vos de Distopia entregues aos discípulos do Alquimista e
fora ao encontro do seu amo. Senhor, trago-vos más notí-
cias, os..., disse, antes de ser interrompido por Zarat, absor-
vido pelos seus pensamentos em voz alta. Como foi possí-
vel, Ptolomeu? Quanta ingratidão! Depois de tudo o que fiz
por amor aos homens, declarou, com a voz amarga e febril,
apertando com força um dos cortinados da janela. Ptolomeu
avançou, colocando uma das mãos no ombro do senhor de
Distopia. Senhor, os discípulos do profeta conseguiram en-
trar no Palácio. Metello e os nossos líderes tratarão deles.
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ZARATUSTRA
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CENTO E VINTE E TRÊS
O momento tinha chegado. Os discípulos do Alqui-
mista iam defrontar mais uma vez, os seus antigos líderes;
desta vez, com reforços. Otelo despiu a camisa, revelando
o seu corpo suado, e ofereceu-se para defrontar Metello.
Todos os restantes discípulos do profeta correram para
capturar os chefes dos povos dos principais bairros de
Distopia que, entretanto, se tinham posto em fuga. Dario
fora o único que não abandonara o artesão Makbar. Nico-
le e Nicolau tinham desaparecido: combate.
À volta do palácio, os mecanismos de defesa interna
da residência de Zarat provocavam danos aos invasores.
Dezenas de pessoas sucumbiam ou ficavam feridas ao
enfrentarem toda a espécie de armas de fogo, setas e
puas, escondidas em alçapões, e fogo grego disparado de
orifícios cavados nas paredes do palácio. No bunker, os
guardas tentavam, desesperadamente, entrar em contacto
com as bases militares que circundavam Distopia. Em
momento algum seriam capazes de imaginar que todas
elas tinham caído nas mãos dos tecno-rebeldes. Gaya,
a líder do lendário grupo rebelde apontara, sorridente,
uma besta a um dos atemorizados guardas. Ptolomeu
abandonou a sala.
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CENTO E VINTE E QUATRO
O cenário tinha mudado de figura. Os jovens e as
crianças, índigo e cristal, que tinham conseguido infiltrar-
-se no bunker secreto do palácio, hipnotizaram, através do
pensamento, os agentes da Guarda Zaratista que trabalha-
vam naquela divisão subterrânea. Num ápice, todos os me-
canismos de defesa interna da residência do homem mais
poderoso do planeta voltaram aos seus lugares e permitiram
a invasão total da maior casa de Distopia pelos povos que se
tinham revoltado contra a opressão daquele tirano.
O átrio onde Samuel defrontara Zarat, ou melhor, Za-
ratustra, não tardou a encher-se de gente. Vindas dos quatro
cantos do palácio, milhares de almas, acompanhadas por
Magdala e pelos discípulos do profeta, chegavam ao lugar
onde o Alquimista defrontara o Grande Líder de todos os
Distopianos e do Planeta É. Samuel continuava a meditar
sobre a placa com o verdadeiro nome do mítico profeta,
quando ouviu o intenso e ensurdecedor murmúrio da turba
penetrando no local da contenda. Resignado, atirou a placa
amolgada para o chão, juntando-a ao que restava do autó-
mato.
Magdala foi a primeira a abraçar e a beijar o seu ama-
do e a última, de todas as pessoas ali presentes, a assistir
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VIII
UM NOVO COMEÇO
Provérbio chinês
CENTO E VINTE CINCO
Chegara o momento de abandonar o passado. A desi-
lusão provocada pela revelação da verdadeira natureza de
Zaratustra fez com que milhares de simpatizantes e mili-
tantes da sua filosofia queimassem todos os seus livros nas
praças de Distopia. Vistas do horizonte, pirâmides de luz,
com labaredas rubras e douradas, capazes de tocar o céu,
provocavam um intenso fumo negro e um cheiro a papel
queimado. Nessas fogueiras gigantes, eram também atirados
retratos e todo o tipo de merchandising a respeito do homem
que prometera um sonho para a Humanidade o qual acabara
num enorme pesadelo. O despertar tivera o sabor da indife-
rença e, ao mesmo tempo, da esperança.
O Palácio da Montanha Mágica tivera o mesmo des-
tino do seu principal morador. Mal a última pessoa saíra da
residência oficial do antigo senhor de Distopia, o palácio
desmoronara-se como se fosse vítima de uma implosão. A
montanha de onde descera Zaratustra acabara por ser a sua
sepultura.
Dissipada a nuvem de pó, resultante do desmorona-
mento, Samuel reuniu todas as pessoas que o tinham acom-
panhado. Povo de Distopia, chegou o momento da partida.
Dentro de três meses este planeta será alvo da colisão de
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CENTO E VINTE E SEIS
O mundo caminhava para o caos de diversas manei-
ras. Distopia fervilhava de medo e pânico com a notícia da
chegada do asteróide assassino ao planeta. Tinham passado
três meses e ainda havia pessoas para sair de cada bairro
daquela cidade. A fuga e o absurdo andavam de mãos dadas
naquela metrópole, destinada a ser varrida do mapa.
A loucura juntara-se ao apocalipse que já emergia nas
mentes dos Distopianos. Em Extasis, dezenas de Niilisteus
entregavam-se à comida, ao álcool e à droga ao invés da
partida. Preferiam afogar os corpos e as mentes no vício a
aceitarem a realidade que iria abater-se sobre eles, rindo de
todos aqueles que procuravam salvar a pele, ridicularizando-
-os. Em Anguscious, dezenas de Dúbios suicidavam-se das
mais variadas maneiras ou tentavam encontrar na literatura
e nas manifestações artísticas, espalhadas por todo o bairro,
a tábua de salvação para as suas vidas. Em Cornucópia, fa-
mílias, banqueiros e empresários Averos procuravam pôr a
salvo cartões de crédito, acções da bolsa e toda a espécie de
activos e bens de luxo, antes de pensarem no mais impor-
tante. Em Rubro, burocratas e militantes Rebeleus tentavam
acautelar todos os documentos, bandeiras e panfletos revo-
lucionários, assim como os livros dos seus mais ilustres pen-
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CENTO E VINTE E SETE
O tempo é, sem dúvida, uma ilusão da mente quando
esta se dispõe a criar ou entregar-se ao serviço da alma. Ti-
nha passado um ano desde a partida de Samuel, Magdala, os
seus discípulos e os povos que os seguiram de Distopia. O
caminho em direcção ao sul fora árduo e traiçoeiro. Todos
os que tiveram a lucidez e a coragem para largarem tudo e
emigrarem para um mundo por desbravar perderam a noção
do número de vezes que tinham ficado com o coração nas
mãos, ao serem confrontados com tantas emoções, perigos e
calamidades que apanharam ao longo da sua jornada. Ape-
nas os fiéis, acreditavam numa estrela a brilhar, à sua espera
do outro lado do horizonte.
Muitos pareciam não confiar nas suas capacidades de
resistência e sobrevivência. Quando chegaram às grutas de
Galgotan e viveram em cativeiro durante doze ininterruptos
meses, no momento da colisão do asteroide, de modo algum
imaginaram estarem vivos para poderem contar a História,
nem sequer pensaram que houvesse comida, bebida, mantas
e medicamentos para todo aquele mar de gente que tinha
seguido o profeta do Oráculo do Destino. Apenas recorda-
vam o gigantesco clarão que tinham observado no horizon-
te, quando aquela gigantesca rocha vinda do espaço chocara
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CENTO E VINTE E OITO
Ninguém se atrevera a ficar pelo caminho. Depois do
cataclismo que atingira o planeta, todos os aparelhos eléctri-
cos e electrónicos se tinham avariado devido ao feixe de luz
vindo do espaço. As bússolas tinham perdido completamen-
te o norte. Os passos do profeta eram o único mapa para se
conseguir sair daquele lugar íngreme e nervoso.
Andar em fila indiana, de cordas amarradas à cintura,
era a única solução possível. Samuel puxava por todos, como
um rebocador e um farol em dias de tempestade. A neve acu-
mulava-se cada vez mais e o frio, tal como a altitude, co-
meçava a dificultar a circulação sanguínea e a respiração.
O vento era o principal inimigo, assim como os caminhos
tortuosos das montanhas por onde passavam: bastava apa-
nhar uma rajada abrupta ou dar um passo em falso para pôr
em perigo toda aquela gente. Perto de uma das montanhas,
um homem escorregou e ficou suspenso sobre um abismo:
Aflição. O momento não era para entrar em pânico e urgia
rapidez e acção. Todos sabiam, de antemão, que bastava um
cair para que toda a multidão tivesse o mesmo destino. O
desafio estava lançado. Com sangue frio e mente positiva, a
turba que seguia o sábio começou, com o coração nas mãos,
a içar o pobre indivíduo. À terceira tentativa, conseguiram
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CENTO E VINTE E NOVE
A estadia em Shambhala marcara, para todo o sempre,
as pessoas que seguiram o Alquimista. Toda aquela atmos-
fera de serenidade e sabedoria que ali se vivera encantara
todos os que tinham acompanhado o profeta. Naquele lu-
gar, todos falavam e escreviam fluentemente várias línguas;
absorviam a energia das plantas para se revigorarem e, ao
mesmo tempo, relaxavam, participando incondicionalmente
na activação dos campos de oração para manterem a cida-
de viva. Todos davam energia uns aos outros e preparavam
cada campo de oração para um nível cultural superior, como
se tivesse um significado mais profundo. Aqueles que atin-
gissem esse nível ajudavam os habitantes iniciados a moni-
torizarem-se e a ampliarem a energia a si mesmos. Naquela
cidade todos tinham um papel preponderante e cada estatuto
era manifestado pelo seu nível de energia e não pela con-
dição que possuíam. Naquela cidade, todos conseguiam vi-
sualizar as suas reencarnações e antever o futuro a partir dos
seus passados. Tudo o que o sábio do Oráculo do Destino
lhes ensinara fazia agora todo o sentido.
Samuel e a multidão que o seguia permaneceram em
Shambhala durante seis meses, partindo de seguida para o
sul do planeta, tal como tinha sido acordado com o profeta.
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CENTO E TRINTA
A Fé e a Esperança caminhavam de mãos dadas,
naquela amálgama de povos que seguiam aquela famí-
lia, abençoada pelo Céu. O nascimento de Sara dera um
novo alento e uma confiança redobrada a todos os que
acompanhavam o Alquimista. A cordilheira que subiam
era completamente diferente da que tinham transposto,
antes de chegarem a Shambhala. Nenhuma encosta íngre-
me ou caminho sinuoso existia para dificultar a passagem
daquela corrente humana. Até o clima era menos agreste
e o vento mais mavioso. Parecia que o destino queria que
todos conhecessem o que estava para lá daquela muralha
rochosa.
Os discípulos não conseguiam esconder a emoção.
Numa só noite tinham presenciado dois milagres e uma
revelação. Se o nascimento da filha de Samuel e Magdala
e a luz misteriosa vinda do Universo sobre as suas auras,
indicando o lugar para onde se dirigiam, era uma bênção
do Céu, a revelação do enigma que atormentara Heitor
desde que descobrira nas ruínas de Rama-Muri, tinha sido
um assombro. Em segredo, Dario e Otelo, nas pausas de
repouso e sob a cumplicidade dos restantes discípulos,
iam preparando uma surpresa para mostrarem ao casal,
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Impresso em Lisboa, Portugal, por: